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Foral do Porto

O Foral do Porto 1. O contexto histórico. Estamos a comemorar os nove séculos do foral do Porto, outorgado em Julho de 1123, por D. Hugo, primeiro bispo da cidade na era moderna. Para avaliarmos devidamente a importância do acontecimento, é da maior utilidade conhecermos o seu momento histórico. Uma onda de renovação percorria a Europa, desde a segunda metade do século X, intensificando-se de um modo especial a partir de meados do século XI, e estendendo-se pelo norte da Península Ibérica, antes de alastrar para o sul, seguindo um trajecto, que foi não só de intercâmbio político e económico, mas também de índole social, cultural e religioso, e passou à história com o nome de caminho de Santiago. O aspecto mais conhecido desse movimento é o da reconquista, levada a cabo pelos guerreiros peninsulareis, com a participação dos seus correligionários de além Pirinéus, como sucedeu com Dom Raimundo e D. Henrique. Entre os francos que vieram do outro lado das fronteiras, coube um papel importante aos burgueses, mesteirais e comerciantes, responsáveis pela reanimação gradual dos antigos centros urbanos e pelo aparecimento de novos aglomerados, especialmente nos grandes cruzamentos de estradas, que não só eram aproveitados para descansar, retemperar forças, renovar apetrechos, substituir atrelagens e calçar de novas ferragens as cavalgaduras, mas também para fazer permutas, distribuir e recolher mercadorias, vender e comprar, em suma, fazer negócio. Somaram-se-lhes as feiras periódicas, semanais, quinzenais e mensais, importante estímulo para o desenvolvimento económico e excepcional ocasião de intercâmbio cultural e humano. Referem-se aos burgueses, ou genericamente, aos mercadores, diversos forais, e a sua actividade é suposta pelas listagens dos impostos que recaem sobre diversos artigos e actividades. Na confirmação do foral de Guimarães, D. Afonso Henriques referir-se-á à ajuda, isto é, ao financiamento que recebeu dos burgueses, nos acontecimentos que tiveram por cenário esta cidade. O alastrar desta onda de renovação económica na direcção do sul, conforme avançava a reconquista, forneceu novas energias ao país, que então ensaiava os primeiros passos, cujos resultados são mais visíveis ao longo das grandes vias de comunicação. Às campanhas militares e ao desenvolvimento económico agregaram-se os efeitos da renovação religiosa, que se manifestou em diversas vertentes: a acção das ordens religiosas, a uniformização litúrgica, a que se acrescentou a renovação da escrita 1 Para a consolidação da reconquista, um dos pilares fundamentais foi, com eeito, o da unidade religiosa. Os cristãos da Península que, vivendo em territórios sob o domínio muçulmano, eram designados como moçárabes, seguiam um rito litúrgico dito toledano, de ascendência visigótica, com marcadas influências da liturgia bizantina, sobre cuja ortodoxia ainda pairavam dúvidas, desde que se registaram alguns episódios da adesão ao adopcionismo e ao arianismo. Fazendose eco de algumas disposições tomadas em concílios provinciais, como os de Coyanza (1055) e de Burgos (1080), D. Afonso VI de Leão e Castela determinou a substituição do rito moçárabe pelo rito romano. Outra importante medida estabelecida em Coyanza foi a de levar os mosteiros a seguir a Regra de São Bento, o que contribuiu para lhes dar uma nova dinâmica e para facilitar a coordenação da sua actividade. A reforma da Ordem Beneditina, protagonizada pela Abadia de Cluny, abria amplos horizontes. Com a mudança dos livros litúrgicos, resultante da transferência do rito moçárabe para o rito romano, está relacionada a obrigação de substituir a escrita toledana pela escrita romana, e para ensinar esta foi importante a vinda dos monges franceses. Um dos principais centros de coordenação de tal movimento foi o mosteiro de Sahagún. Procedente de além-Pirinéus, foi seu abade o monge Dom Bernardo, que se tornaria delegado pontifício para toda a Península e Arcebispo Primaz de Toledo. Como ele, outros monges chegaram das terras gaulesas e alguns deles até ascenderam ao episcopado, como sucedeu em Portugal com S. Geraldo e Maurício Burdino. Entre eles viria Gui da Borgonha, irmão do Conde D. Raimundo, que deambulou demoradamente pela Galiza, tornando-se um dos principais paladinos do culto a Santiago, tendo escrito a obra que se designou como Codex Calistinus, por o seu autor, depois de exercer as funções de Arcebispo de Vienne, ter sido eleito Papa, adoptando o nome de Calisto II. Provavelmente terá sido também o caso de D. Hugo, que viria a ser Bispo do Porto, tornando-se o primeiro bispo portuense deste período. 2. Dom Hugo. Francês de origem, mas discípulo e depois colaborador principal de D. Diogo Gelmires, D. Hugo, eleito em 1113 e sagrado em 1114, só entre 1117 e 1119 teve ocasião de permanecer mais longo tempo na diocese, no intervalo das suas deslocações à Cúria Romana (1115) e ao concílio de Reims (1119), onde do seu conhecido e particular amigo de Santiago, o Papa Calisto II, filho dos Condes da Borgonha e irmão de D. Raimundo Conde da Galiza, iria obter, além da dignidade metropolitana para Santiago, em sucessão de Mérida, então sob o jugo muçulmano, e da legação apostólica para Diogo Gelmires, a definição dos limites da Diocese do Porto com as de Coimbra e de Braga. 2 Embora também Diogo Gelmires, bispo e ao mesmo tempo senhor temporal de Santiago de Compostela, estivesse interessado em que a nova diocese fosse confiada a um homem da sua inteira confiança, a carta de doação do couto do Porto ao seu Bispo, outorgada por D. Teresa1, dá razão ao papel que Luís Gonçalves de Azevedo atribuiu à mediação do Conde D. Henrique e de D. Urraca2, na escolha de D. Hugo ou pelo menos no processo conducente ao restauro da diocese, pois que já antes fora dotada com todos ou parte dos bens, que são objecto da carta de D. Teresa: “quod primitus soror mea regina Urraca dederat”. O Bispo estava, de facto, nas boas graças de D. Teresa3, como se depreende do facto de esta, por carta de 18 de Abril de 1120, lhe ter confiado a jurisdição temporal do burgo portuense. Para organizar a sua administração, D. Hugo outorgou, em 14 de Julho de 1123, o foral do Porto4. Poucos forais tinham sido outorgados, até ao momento, no Condado Portucalense. De outorga real ou imperial, contavam-se o foral de S. João da Pesqueira, só mais tarde foi integrada no condado portucalense, assim como os primitivos forais de Coimbra e Santarém. Por outorga condal surgiram em 1111, ou à volta desse ano, os forais de Guimarães e de Constantim, do início do governo do conde D. Henrique, e, depois, ainda em 1111, os de Sátão, Coimbra, Soure, Tavares, Tentúgal, e Azurara da Beira, na frente sul do território. D. Teresa confirmaria o foral de S. Martinho de Mouros em 1121, e de seguida outorgaria os forais de Viseu, em 1123, de Ponte de Lima, em 1125, e de Ferreira de Aves, por 1126, surgindo no intervalo o de Sernancelhe, em 1124, com outorgante aparentemente senhorial, mas de facto a agir na qualidade de alcaide nomeado por D. Teresa. Apenas o foral de Arganil fora outorgado por um Bispo, o de Coimbra, em 1114. Seguiu-se-lhe o do Porto, no rol dos primeiros forais cuja outorga se ficou a dever não ao supremo poder político, neste caso à autoridade condal, mas a uma autoridade eclesiástica, com a particularidade de ser concedido a um burgo que se desenvolvia nos arredores da Sede episcopal. 1 T.T., F. A., m. 3, n.o 12, fl. 75 v.º -76. Publ. em DMP-DR I, doc. N.º 53, p. 66-67. 2 Luís Gonçalves de Azevedo, História de Portugal, vol. III, Lisboa, 1940, p. 98. É, no entanto, descabida, porque desprovida de fundamentos documentais, a suspeição sugerida quanto ao tipo das suas relações com D. Teresa. 3 T.T., Corpo Cronológico, parte II, maço 88, doc. 9. O texto do foral do Porto consta de vários documentos do Cartório do Cabido da Sé do Porto. Cf. José Gaspar de Almeida, Inventário do Cartório do Cabido da Sé do Porto e dos Cartórios Anexos, Porto; Imprensa Portuguesa, 1935. Encontrase publicado nos P.M.H. – Leges et Consuetudines, p. 361-362, e no Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium eorum qui in Archivo Municipali Portucalensi Asservantur Antiquissimorum. Diplomata, Chartae et Inquisitiones. Vol. I. Fasciculus I – Diplomata et Chartae. Portucale, Typis Portugalensibus, MDCCCXCIX, p. 19. 4 3 Ao outorgá-lo, D. Hugo podia ter presentes como hipotéticas referências, no território português, apenas os de Constantim e de Guimarães – que, de facto, não lhe seriam desconhecidos – dado que os outros, pelo seu arcaísmo ou pelo carácter eminentemente agrário dos espaços a que se destinavam, se não adequavam à situação do burgo portuense. Como colaborador, que foi, da administração eclesiástica e temporal da Galiza, estava a par dos movimentos de emancipação burguesa e municipalista que nessa altura atravessava uma das fases mais dinâmicas em todo o norte da Península Ibérica, acompanhando a vasta movimentação que se intensificava ao longo da velha estrada que se passou a designar como o Caminho de Santiago. 3. O Foral do Porto. Já tivemos oportunidade de analisar o parentesco do foral outorgado pelo Conde D. Henrique a favor do burgo vimaranense com dois importantes forais de povoações situadas ao longo daquela estrada a que se chamou Caminho de Santiago: o foral de Jaca, de 1063, onde pela primeira vez aparece o termo burgueses a designar os que se dedicavam ao comércio e aos ofícios não agrícolas nem religiosos ou militares, e o foral de Logroño, influenciado pelo anterior e de 1095. Mas D. Hugo tinha outras referências, na própria Compostela, onde fizera a sua carreira anterior à eleição para o Porto. O primeiro foral de Santiago foi outorgado, pelo conde D. Raimundo, numa assembleia magna então realizada na cidade, cuja convocatória se deverá talvez a D. Diogo Gelmires5. Em 1113, D. Diogo Gelmires outorgou uma nova carta “ad protegendos pauperes” e “ad protegendum populum, ad exibendam justitiae normam” (proteger os pobres e o povo, e tornar pública a norma da justiça), destinada aos povos do bispado de Compostela “excepta Compostelana urbe, omnisque burgis, quo advenae aliique complures confluentes statuta nullatenus observare valerent” (com excepção da cidade de Compostela, e de todos os burgos, onde os que aí acorrerem ou chegarem, vindos de fora, não forem de alguma forma capazes de observar esses estatutos) 6. Apesar da supressão dos maus foros proclamada no diploma de 1105 que abrangiam a isenção de fossadeira, a extinção da lutuosa e das osas matrimoniais, a anulação da taxa de caritel (aferição de medidas), a proibição de penhoras para valores superiores a cinco soldos, a limitação da obrigação de hoste a um dia, etc., e Manuel Lucas Alvarez, Tumbo A de la Catedral de Santiago, Santiago, 1998, p. 172-173. Cf. José Barreiro Somoza, El Señorio de la Iglesia de Santiago de Compostela, La Coruña, 1987, p. 255-257. 5 Tomas Muñoz y Romero, Colección de Fueros Municipales y Cartas Pueblas, Madrid, 1847 (fac-símile 1972 e 1978), p. 403-409. 6 4 da intenção de proteger os pobres e o povo, anunciada no intróito do foral de 1113, a administração da justiça atingia laivos de excessivo rigor e o suporte da máquina eclesiástica, administrativa e militar do senhorio implicava um forte pressão fiscal, que foi por certo a principal causa das revoltas e sublevações urbanas de 1117 e 1136, com grandes e degradantes humilhações para o Arcebispo e até para D. Urraca. Em 1123, D. Hugo estava atento a esses problemas. Na sua bagagem estaria não só o conhecimento dos amargos dissabores que o Bispo de Santiago sofreu em 1117 mas também a situação de confronto vivida em Sahagún em anos mais recuados (1087), para cuja resolução foi necessária a intervenção pessoal de Afonso VI, e novamente ao iniciar-se a segunda década do século XI. No foral de Compostela, de 1113, reflectir-se-ão, aliás, as alterações introduzidas, no foral de Sahagún, em 1110, pelo abade do mosteiro, suprimindo o núncio e a maneria (tributos relativos aos que morressem com ou sem herdeiros). Como era frequente, se não quase uma regra, entre o Bispo D. Hugo e os burgueses do Porto houve contactos prévios ou mesmo negociações preparatórias da elaboração e outorga do foral: não se tratava de mera retórica, quando, no preâmbulo, o documento se apresentava como outorgado “cum consensu clericorum nostrorum et consilio proborum virorum” (com o consenso dos nossos clérigos e o conselho dos homens bons). Mais tarde, no início do século XIII, o Porto conhecerá o afrontamento entre os burgueses e o seu Bispo7, mas, por agora, os acontecimentos pouco antes ocorridos na Galiza contribuiriam para que os burgueses do Porto não aceitassem um estatuto que se considerasse idêntico ao de Santiago e não deixariam de levar a que o Bispo, com o intento de lhes captar a simpatia, acenasse com um estatuto mais convidativo, como era o que, no termo de vários ajustamentos, regulava as relações entre os monges de Sahagún e os burgueses que animavam a povoação instalada nas cercanias do mosteiro. 4. O paradigma. O paradigma, de que D. Hugo se serviu, aliás muito livremente, foi o foral do burgo formado nos arredores do mosteiro de San Facundo e San Primitivo (de San Facundo ou San Hagún vem o nome actual da povoação correspondente, Sahagún), redigido certamente pelos monges, embora outorgado por Afonso VI, em 10848. D. Hugo conhecia bem os foros de Sahagún e o modo como eram respeitados. Se não 7 Cf. Torquato Brochado de Sousa Soares, Subsídios para o Estudo da Organização Municipal da Cidade do Porto durante a Idade-Média, Barcelos, 1935, p. 31 e ss. 8 Tomás Muñoz y Romero, Colección de Fueros Municipales y Cartas Pueblas, Madrid, 1847 (ed. fac-simile em 1972), p. 301-306. 5 chegou a viver longamente no mosteiro, estanciou nele diversas vezes. Pouco antes da outorga do foral do Porto, participou no concílio realizado em Burgos, em 1117, no qual se trataram assuntos relativos a Sahagún9, e, mais ainda, em 1121, já depois de lhe ter sido feita a doação do burgo do Porto, participou no concílio de Sahagún10. Serviu o foral de Sahagún de modelo a vários outros, nas Astúrias e na Galiza, designadamente os de Oviedo, Avilés, Allariz, Ribadavia, Santander, e Santillana e outros, e até em Portugal o de Melgaço, que seguiu o de Allariz e Ribadavia11, mas, na altura em que foi outorgado o do Porto, apenas tinha influenciado o primeiro foral de Silos, de 108512. O próprio Bispo acompanhou bem de perto a redacção do foral, se é que não foi o autor da minuta. Discípulo e depois colaborador de D. Diogo Gelmires, que por sua vez tinha sido chanceler de D. Raimundo, D. Hugo era hábil nas artes da escrita, o que aliás evidenciou na conhecida Historia Compostelana, de que foi um dos autores. Embora a sua figura e a sua personalidade tenha sido obscurecida pela colaboração dedicada que prestou a D. Diogo Gelmires – os documentos fornecem-nos indícios de que se tratava de um homem inteligente, corajoso, hábil, de fácil relacionamento com os outros, que, além de ter posto outrora estas qualidades ao serviço do seu patrono, também as soube utilizar para conciliar espíritos desavindos. É de pensar que esta característica terá determinado a sua escolha para Bispo do Porto, e, que, em tais funções continuou a evidenciar a mesma capacidade. A sua inteligência e a sua habilidade para congraçar os ânimos estão reflectidas no foral do Porto, que, aparentado com os forais de Santiago e descendente, em linha recta, do primitivo foral de Sahagún, os superou em linearidade e clareza e sobretudo no respeito que lhe mereceu uma certa autonomia da comunidade de burgueses sobre a qual o prelado detinha o senhorio. Ana Maria Barreiro Garcia, Los Fueros de Sahagún, «A.H.D.E.» (1982), p. 419. Para a autora, D. Hugo tomou por referência o foral de Sahagún por ser «completamente extraño al medio portugués», afirmação que é de facto injusta e incompreensível. 9 António Martínez Coello, Don Hugo, Obispo de Oporto, en la Historia Compostelana, em Tempos e Lugares de Memória – I Congresso sobre a Diocese do Porto, 5 a 8 de Dezembro de 1998, II vol., Porto, 2000, p. 233-247. 10 Pode ver-se a este respeito a comunicação relativa aos forais antigos de Melgaço, que apresentámos no Congresso Comemorativo do tratado de Alcanices: António Matos Reis, Os Forais Antigos de Melgaço, terra de fronteira, em “Revista da Faculdade de Letras – História”, II série, vol. XV (Porto, 1998), p. 99-128. Cf. Ana Maria Barreiro Garcia, Los Fueros de Sahagún, «A.H.D.E.» (1982), p. 414-415. 11 12 Cf. o quadro genealógico dos forais derivados de de Sahagún no fim deste capítulo. 6 D. Hugo diz expressamente: "hominibus in Portugalensi burgo abitantibus vel qui ad abitandum venerit, dono et concedo (...) tales et tam bonos foros quales habent in Sancto Facundo" (aos homens que habitam no Porto ou que aí vierem a habitar, dou e concedo tais e tão bons foros, como os que tem em Sahagún). Mas o foral do Porto é mais breve e simples, tendo sido expurgado de algumas cláusulas excessivamente rígidas ou vexatórias, que, em Sahagún, perturbaram, algumas vezes, a paz entre os burgueses e o mosteiro. O foral pressupõe que estão reservados ao Bispo o poder judicial, e ao seu meirinho as funções de administração económica e de intervenção policial. Não há qualquer referência ao juiz, função naturalmente reservada ao próprio bispo, ou a um clérigo por ele delegado, com poderes quer no foro civil, quer no foro religioso. Na administração ordinária do município, o meirinho substituía o bispo, cabendolhe as atribuições que noutros lugares eram penhorados, mas, se os não encontrasse, teria de fazer-se acompanhar de dois ou três homens-bons características do mordomo e do saião, isto é, o desempenho das funções económicas e policiais. Competia-lhe atribuir terras para a plantação de vinhas, e, do mesmo modo, autorizar a construção de nova casa àquele que, vindo de fora, quisesse instalar-se no burgo, e cobrar-lhe o respectivo soldo, correspondente aos direitos dominiais, assim como a venda da mesma por parte de um morador que pretendesse migrar para outra localidade, podendo exercer o direito de opção, como representante do bispo. Sob pena de ser destituído do seu cargo, teria de respeitar uma certa contenção na execução de alguns actos: quando tivesse de fazer uma penhora, não podia entrar na casa dos burgueses, se no exterior existissem bens para serem penhorados; se aí os não encontrasse, tendo de entrar na casa, devia fazer-se acompanhar por dois ou três homens bons. Nos assuntos mais importantes, o Bispo ouvia o “consilio proborum virorum”, a cuja colaboração, o próprio meirinho, em certas circunstâncias, devia igualmente recorrer, como meio de evitar injustiças e prepotências, sob pena, se o não fizesse, de ser destituído. Aliás, no capítulo penal, a carta de foro do Porto é muito breve. Depois de estabelecer a uniformidade das medidas a usar na compra e na venda, designadamente do pão, do vinho e do sal, atribui aos transgressores uma pena bastante pesada (cinco soldos), e considera grave delito a sonegação das portagens, que é penalizada com o pagamento do dobro do seu valor e a “inimizade” do bispo. Quanto ao mais, é excepcionalmente lacónica: “decima pars reddatur nisi fuerit rausum et homicidium et maiorinum”. Desde que liquidasse os devidos tributos, qualquer cidadão tinha liberdade de se instalar no burgo e de o deixar, de comprar e de vender. No entanto, como em Sahagún, restringia-se, o direito a dispor, por venda ou doação, da sua casa, pois era obrigatório pedir a autorização do bispo, ou do seu 7 meirinho, e, em caso de venda, o prelado teria sempre direito de opção. No fundo tratava-se não só de uma fórmula tendente a relembrar o poder senhorial do antístite, mas também de um mecanismo apto a evitar a intromissão, no seio da comunidade, de elementos perturbadores da paz social, e nesse aspecto correspondia a certas cláusulas que encontramos noutros forais. Não obstante a sua índole de burgo, e porque à volta se estendiam as terras do couto, previa-se a extensão agrícola da povoação, a incrementar em dois sentidos: arroteamento de novas terras, situadas fora dos muros, que se tornavam propriedade do desbravador, ficando sujeito ao pagamento de uma renda anual correspondente a um quarto do rendimento, assim como fazer a plantação de vinha em locais cedidos, para essa finalidade, pelo meirinho, das quais igualmente pagaria a quarta parte do vinho produzido. O tributo fundamental, idêntico ao que encontramos noutros burgos, consistia num soldo anual, por cada casa. Como sucedia noutras povoações habitadas por burgueses, as transacções estavam sujeitas a um tabela fixa (as ditas portagens), muito semelhante à que o conde D. Henrique estabelecera para Guimarães e Constantim. O foral concedido por D. Hugo representava, como acabamos de ver, um significativo progresso a favor dos destinatários, em relação ao foral de Sahagún. Embora se trate de uma povoação senhorial, há um respeito profundo entre a máxima autoridade local e os seus principais súbditos, em cujo seio preponderam os burgueses. Estes contribuem para a animação económica da povoação e, pagando as suas taxas, suportam os encargos da autoridade. O Bispo, senhor do Porto, auscultou-os na elaboração do seu estatuto fundamental, isto é, do seu foral, e ouvia-os em relação aos assuntos mais importantes. Os funcionários da autoridade eram instados a agir com moderação e equilíbrio. Sem evitar os conflitos, que virão a ocorrer, mas serão oportunamente debelados, esta situação pode considerar-se exemplar, ao nível interno e ao das povoações idênticas de outros países, designadamente dos que nos estavam mais próximos. Apesar do arcaísmo dos documentos, tudo nos leva a olhar para o Foral do Porto como a primeira manifestação do espírito moderno que anima esta cidade. 8 PORTAGENS 13 TAXAS ARTIGOS ( ) 1 soldo cavalo * 1 trouxel ou carga [de panos] * » 6 dinheiros égua 4 » asno 2 » carga de ibição (jumento) [panos] 2 » boi / vaca * 2 » capa * 2 » manto * 2 » corda de pano 2 » cabo de fustão 2 » dúzia de raposas 1 » carga de peão [panos] 1 » uma raposa 1 » couro * 1 » porco * 1 » saia * 1 mealha ovelha / carneiro - isento dois bragais vendidos para comer » pão 13 Assinalam-se com asterisco os artigos mencionados com taxa idêntica à de Guimarães. Apenas à égua, ao asno e à ovelha e a uma carga de peão se aplicam taxas diferentes. Específica do foral do Porto é a cláusula segundo a qual os forasteiros que matem vaca ou porco são taxados com o pagamento dos lombos. Das colheitas agrícolas paga-se uma renda que consiste na quarta parte. 9 SAHAGUN 1085 Silos Porto 1085 1123 1152 S. Martin Frutos Oviedo de Madrid 1145 1255 Avilés Allariz 1155 1164 1126 Cedofeita 1237 V. N. Gaia Campomanes Santander Nora e Nora Gozon 1255 1168 1187 1245 I.Carreño, Ribadávia 1164 Castrillón Bonoburgo de Caldelas [1169-1172] 1309 Melgaço 1183 Santillana 1209 Mapa genealógico dos forais derivados do de Sahagun, em cuja família se inclui o do Porto 10 11 1123.07.14.[Porto] — Foral do Porto o B - A.N.T.T., Convento de Arouca, m. 2, n. 28, fl. 51; C - A.N.T.T., Chanc. de D. Afonso IV, liv. I, fl. ; D - A.N.T.T., Corpo Cronológico, parte II, m. 88, n.o 9. Outras versões na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Não existe a versão original e nas que chegaram até nós há pequenas diferenças em relação ao conteúdo primitivo, como se pode verificar pela transcrição que a seguir se apresenta, onde aparece a subscrição não só do bispo D. Hugo mas também dos prelados que lhe sucederam - D. João Peculiar, D. Pedro Rabáldis, D. Pedro Pitões, e D. Pedro Sénior -, o que não invalida a autenticidade do documento, antes, pelo contrário, documenta a sua sucessiva confirmação por parte dos sucessores do outorgante inicial. Na transcrição,colocam-se em itálico as variantes que faltam em C, e em negrito as que faltam em B. Negligenciam-se as variantes que não têm expressão significativa. A data aparece-nos de uma forma confusa em B (dois dias dos Idos é o mesmo que 14 de Julho) e i sobretudo em C (V. Qdt. II idus). Publicado em PMH-LC, pp. 361-362; Corpus Codicum, I, Diplomata et Chartae, Porto, 1929, p. 19. [1] Christus. In nomine Sancte et Individue Trinitatis Patris et Filii et Spiritus Sancti. [2] Que firmiter fieri volumus per litteras et scripta confirmamus. [3] Quapropter Ego Hugo Dei gratia licet indignus Portugalensis episcopus per huius scripture firmitatem tam presentibus quam futuris notum fieri volo quod hominibus in Portugalensi burgo abitantibus vel qui ad abitandum venerit, dono et concedo cum consensu clericorum nostrorum et consilio proborum virorum tales et tam bonos foros quales habent in Sancto Facundo. [4] Id est ut in die cena Domini reddat unusquisque de unaquaque domo unum solidum. [5] Et qui voluerit domum in burgo facere dabit ei maiorinus ville locum et accipiat inde unum solidum. [6] Et qui voluerit domum suam vendere vendat cuicumque burgensi voluerit cum consilio et licencia Episcopi vel maiorini sui. [7] Et si aliquis fuerit opressus aliqua gravi necessitate et voluerit exire de burgo cum pace episcopi et maiorini sui habeat in potestate vendere domum suam vel dare. Et si Episcopus conparare voluerit vel eius maiorinus habeat prius pro precio quod homines ville laudarent. [8] Maiorinus vero non pignoret aliquem burgensem in domum suam quandiu extra domum poterit invenire quod pignoret nec ingrediatur ad pignorandum alicuius domum sine duobus aut tribus ipsius ville bonis hominibus. Et ipsi eant cum eo. Si aliter intraverit quicquid de domo extraxerit violenter dupletet careat maiorinitate sua. [9] Quicumque panem ad istam villam adduxerit ad vendendum nullum portaticum inde det. Et mensura panis sit una per quam vendatur et conparetur per totam villam. Et de vino similiter sed de vino accipiatur portaticum sicut forum est. Et qui per aliam mensuram falsam e vendiderit vel conparaverit V. solidos solvat. Et de sale similiter per unam mensuram vendatur sicut de vino conparetur. 12 [10] De omnibus calumpniis decimam pars reddatur nisi fuerit raussum aut homicidium et maiorinum. [11] Qui vendiderit kaballum det unum solidum. De equa VI denarios. De asino IIII denarios. Et de bove II denarios. Et de porco I denarium. Et de carnario una menalia. [12] Et si quis extraneus mactaverit vakam aut porcum reddat inde lonbos. [13] Si aliquis advena vendiderit II bragales pro victa non det portaticum. [14] De trosello unum solidum. [15] De una raposa I denario. De una duzena II denarios. De uno corio I denario. De una saia I denario. De una capa II.os denarios. De uno manto II denarios. De una corda de pano II denarios. De uno capud de fustam II denarios. [16] Quicumque extra murum vineam plantaverit per illa loca que maiorinus dederit det inde quartam partem de vino ad cellarium sedis portugalensis. De quanto laboraverit in vinea postquam plantata fuerit non inde det nisi X.am pro anima sua donec vinea det vinum. [17] Et quicumque ruperit rutela per illos montes aut per valles det quartam partem et habeat in perpetuum. [18] Et quicumque portaticum celaverit incurrat inimiciciam Episcopi et duplet illud. [19] De evicione onerata II denarios. De pedone I denarium. [20] Hanc autem kartulam facimus ut Deus omnipotens concedat domine nostre Regine Tarasie remissionem omnium peccatorum suorum et det ei vitam eternam et suis parentibus et amicis et nobiscum faciat misericordia amen. [21] Quicumque ergo hanc nostre constitucionis kartam scienter destruxerit et post III. amoniciones satisfacere neglexerit in primis ira Dei incurrat et cum Iuda traditore participationem habeat, et quod temptaverit evanescat et kartula sit semper firma. [22] Homines eiusdem ville sint semper obediens Sedi et Episcopo et Capitulo tanquam dominus. [23] Facta autem kartula V. Qdt. (et dedit) II Idus Julii Era M. C. LX. I. [24] Ego Hugo Portugalensis Episcopus roboro et confirmo. [25] Ego Petrus Portugalensis Episcopus II. hanc cartam roboro et confirmo. Ego Ihoanes Portugalensis Episcopus hanc cartam roboro et confirmo. Ego Petrus Portugalensis us us Episcopus III. hanc kartam roboro et confirmo. Ego Petrus Portugalensis Episcopus I. hanc kartam roboro et confirmo. (Ego Ihoanes Portugalensis Episcopus hanc cartam roboro et us confirmo. Ego Petrus Portugalensis Episcopus I. hanc cartam roboro et confirmo. us Ego Petrus Portugalensis Episcopus II. hanc kartam roboro et confirmo. Ego Petrus us Portugalensis Episcopus I. hanc kartam roboro et confirmo). [26] Qui viderunt et presentes fuerunt: Dom TIfardo test. Vermudo test. Pelagius test. Gundisalvus test. [27] Rodericus presbiter notuit. es i us Tradução [1] Cristo. Em nome da Santa e Indivisa Trindade Pai Filho e Espírito Santo. [2] Com documentos escritos confirmamos o que firmemente queremos fazer. 13 [3] Pelo que eu Hugo, embora indigno, por graça de Deus Bispo do Porto, pela firmeza desta escritura quero que tanto os presentes como os vindouros saibam que, com o consenso dos nossos clérigos e o conselho dos homens bons, dou e concedo aos homens que habitam ou vierem a habitar no burgo do Porto tais e tão bons foros como os que há em Sahagun. [4] Isto é: que no dia da Ceia do Senhor cada um dê um soldo de cada casa. [5] E a quem quiser fazer casa no burgo o meirinho dará um lugar na vila e receberá daí um soldo. [6] E quem quiser vender a sua casa venda-a a qualquer burguês que queira, com aprovação e autorização do Bispo ou do seu meirinho. [7] E se alguém for oprimido por alguma grave necessidade e quiser sair do burgo, com a paz do bispo e do seu meirinho, tenha poder de vender ou dar a sua casa. E se o Bispo, ou o seu meirinho, a quiser comprar, tenha-a pelo preço que os homens da vila avaliarem. [8] O meirinho não penhore qualquer burguês na sua casa, quando fora da casa puder encontrar coisa que penhore, nem entre nalguma casa para fazer penhora sem levar consigo dois ou três homens bons da vila, e estes o devem acompanhar. Se de outro modo entrar, dará em dobro o que tirar da casa e perderá o cargo de meirinho. [9] Quem trouxer pão a esta vila para vender não pague nenhuma portagem. E apenas haja uma medida do pão, para comprar e para vender, em toda a vila. E de modo semelhante do vinho, mas do vinho cobre-se portagem como é do foro. E quem por outra medida falsa vender ou comprar pague cinco soldos. E de modo semelhante ao vinho, também o sal se venda e compre por uma só medida. [10] De todas as coimas se dê a décima parte, exceptuado o rouso ou o homicídio e o meirinho. [11] Quem vender cavalo, dê um soldo. De égua, seis dinheiros. De asno, quatro dinheiros. E de boi, dois dinheiros. E de porco, um dinheiro. E de carneiro, uma mealha. [12] Se um estranho matar vaca ou porco, dê os lombos deles. [13] Se um adventício vender dois bragais para comer, não dê portagem. [14] De trouxel, um soldo. [15] De uma raposa, um dinheiro. De uma dúzia, dois dinheiros. De um coiro, um dinheiro. De uma saia, um dinheiro. De uma capa, dois dinheiros. De um manto, dois dinheiros. De uma corda de pano, dois dinheiros. De um cabo de fustão, dois dinheiros. [16] Quem fora de muros plantar vinha nos locais que o meirinho conceder, dê a quarta parte do vinho ao celeiro da Sé portucalense. De quanto granjear na vinha depois que for plantada, não dê mais nada a não ser a décima, pela sua alma, enquanto a vinha produzir vinho. [17] E quem arrotear terrenos pelos montes e pelos vales dê a quarta parte das colheitas e possua-os para sempre. [18] E quem sonegar portagem incorra na inimizade do Bispo e pague-a a dobrar. [19] De carga de ibição, dois dinheiros. De peão, um dinheiro. [20] Fazemos esta carta para que Deus omnipotente conceda à nossa Rainha, D. Teresa a remissão de todos os seus pecados e lhe dê a vida eterna, assim como aos seus pais e amigos, e use de misericórdia para connosco. Amem. [21] Quem destruir conscientemente esta carta da nossa constituição e, depois de três admonições, for negligente a dar satisfação, em primeiro lugar incorra na ira de Deus e tenha parte com Judas o traidor, e o que tentar fazer se desvaneça, permanecendo esta carta sempre firme. 14 [22] Os homens da mesma vila sejam sempre obedientes à Sé, ao Bispo e ao Cabido, como seu senhor. [23] Feita a carta em 11 de Julho do ano de 1123 (5.º dia dos Idos de Julho da Era de MCLXI) [24] Eu Hugo Bispo do Porto roboro e confirmo. [25] Eu João, Bispo do Porto, roboro e confirmo esta carta. Eu Pedro primeiro, Bispo do Porto, roboro e confirmo esta carta. Eu Pedro segundo, Bispo do Porto, roboro e confirmo esta carta. Eu Pedro terceiro, Bispo do Porto, roboro e confirmo esta carta. [26] Viram e estiveram presentes: D. Ifardo testemunha, Vermudo testemunha, Paio testemunha, Gonçalo testemunha. [27] Rodrigo, presbítero, foi o notário. 15