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Ocupando-se em ser comum

2007, Revista Veredas

https://periodicos.ufjf.br/index.php/veredas/article/view/25224 Tradução

Tradução SACKS, H. On doing “being ordinary”. In: ATKINSON, J. M. & HERITAGE, J. Structures of Social Action: Studies in Conversation Analysis. Cambridge, U.K.: Cambridge University Press, 1984. Créditos da tradução O texto foi traduzido no âmbito da disciplina Estágio Supervisionado de Tradução, do curso de Bacharelado em Letras, ênfase em Tradução/Inglês, da Universidade Federal de Juiz de Fora, ministrada pela ministrada pelo professor Ms. Adauto Villela. Tradução: Felipe Portela, Priscilla Pellegrino e Vívian Gomes Supervisão: Adauto Villela Revisão: Adauto Villela e Paulo Cortes Gago Agradecimentos Ao prof. Dr. Emanuel Schegloff, executor da obra de Harvey Sacks, por nos ter generosamente cedido os direitos autorais e facilitado o processo de negociação com a Cambridge Univeristy Press. À Cambridge University Press, por nos ter cedido os direitos para a tradução. À profª. Drª Maria Clara Castellões de Oliveira, por aceitar mais uma vezi o desafio de traduzir textos da Análise da Conversa no âmbito do curso de Tradução, ajudando, assim, na disseminação dessa área de conhecimento no Brasil. Os editores Maria Cristina Lobo Name Luiz Fernando Matos Rocha Paulo Cortes Gago VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 165 Ocupando-se em "ser comum" Harvey Sacks (Universidade da Califórnia em Irvine) Normalmente eu inicio o curso fazendo o que faço no curso, sem qualquer afirmação programática ou indicação dos motivos pelos quais as pessoas deveriam se interessar por ele. Agora – talvez de modo injusto – o curso vai se tornar muito mais rigorosamente técnico do que a maioria de vocês poderia achar interessante, e uma boa percentagem das pessoas vai abandoná-lo, e geralmente a conseqüência disso é que elas não vão tirar nenhum proveito da aula. Então, decidi usar esta primeira sessão para dizer algo que, na minha opinião, dificilmente não será do interesse de todos. Assim, quando abandonarem o curso, elas terão ao menos ouvido o que eu considero que vale o preço do curso. Devo dizer que, se isso não os interessar, vocês não podem imaginar o quão desinteressante será o resto. Bem, neste curso pegarei diferentes histórias tiradas de conversas e as submeterei a um tipo de análise que serve, grosso modo, para ver se é possível submeter os detalhes de eventos reais à investigação formal, de maneira informativa. A meta geral do trabalho que venho fazendo é ver com que precisão os detalhes de conversas reais, ocorridas naturalmente, podem ser submetidos a análises que resultarão na tecnologia da conversa. A idéia é pegar seqüências singulares de conversas e desmembrá-las de forma a encontrar regras, técnicas, procedimentos, métodos, aforismos (uma coleção de termos mais ou menos relacionados, os quais eu uso intercambiavelmente) que podem ser usados para gerar as características regulares que encontramos nas conversas que examinamos. A questão é, então, retornar às singularidades que observamos em uma seqüência individual com algumas regras que lidem com essas características individuais e também, necessariamente, que lidem com uma série de outros eventos. Então, estamos lidando com a tecnologia de conversa. Estamos tentando encontrar essa tecnologia a partir de fragmentos reais de conversas, para que possamos impor como restrição que a tecnologia lide realmente com eventos singulares e seqüências singulares de eventos – uma restrição razoavelmente forte imposta a um conjunto de regras. O modo como vou proceder hoje é, de muitas formas, muito diferente do modo como procederei no resto do curso. Nesta palestra, não vou tentar provar nada, e também não vou estudar a tecnologia de contar histórias em conversas. Vou dizer algumas coisas sobre por que o estudo da narração, do contar histórias, deveria interessar a qualquer um. E a mensagem mais ampla é a de que o mundo em que vivemos é muito mais bem organizado do que imaginamos. O acúmulo de evidências sobre isso serviria somente para consubstanciar essa afirmativa, e, depois desta aula, vocês nem precisam voltar amanhã para captar essa mensagem e para armarem-se de alguns materiais que os permitiriam andar por aí notando coisas que vocês não notariam, e achando-as assustadoras. Muito do que vou dizer tem sua obscura fonte intelectual em um romance chamado Entre a Vida e a Morte (trad. Maria Jolas, 1970) de Nathalie Sarraute. (Eu digo obscura VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 166 porque, se vocês lessem o livro, provavelmente não achariam que ele diz o que eu digo, mas, com alguma consideração, vocês poderiam ver como eu devo o que estou dizendo a essa fonte). O livro não é em absoluto de leitura obrigatória. Estou apenas citando um débito. É incrível como, em conversas comuns, as pessoas, ao relatarem algum fato, relatam aquilo que podemos ver que aconteceu, não o que aconteceu, mas a normalidade do que aconteceu. Os relatos não se prendem muito a cenas, atividades, participantes, mas anunciam a normalidade do fato, o fato de ser comum. E se pensarmos em literatura ou poesia, poderemos notar perfeitamente que a partir de qualquer evento passado, por exemplo, "Estava uma noite agradável; nos sentamos e conversamos", caracterizações realmente elaboradas são apresentadas. Isso me traz às afirmações centrais que quero fazer. O que quer que você pense sobre o que constitui ser uma pessoa comum no mundo, uma mudança inicial para essa perspectiva é não pensar em "uma pessoa comum" como uma pessoa, mas como alguém que tem como trabalho e preocupação constantes ocupar-se em ser comum. Não é que alguém seja comum; é que, talvez, essa seja sua ocupação, e ela dá trabalho, como qualquer outra ocupação. Se expandirmos a analogia do que obviamente chamamos de trabalho – qualquer coisa que exija energia analítica, intelectual, emocional – então seremos capazes de ver que todo tipo de coisas normalizadas, por exemplo, características pessoais e coisas desse tipo, são tarefas desempenhadas, que precisam de um tipo de esforço, de treinamento, e assim por diante. Então, não falarei de uma pessoa comum como essa ou aquela pessoa, nem como uma média; isto é, como uma pessoa não excepcional assim considerada a partir de alguma base estatística, mas como algo que é o modo como alguém se constitui e, de fato, uma ocupação na qual uma pessoa e as pessoas em volta dela se engajam para conseguir que cada uma delas, juntas, sejam pessoas comuns. Uma questão fundamental é: como as pessoas fazem para se ocuparem em "ser comuns"? Inicialmente, a resposta é fácil. Um dos modos de ocupar-se em "ser uma pessoa comum" é passar o tempo de formas normais, ter pensamentos normais, interesses normais, de modo que tudo que se tem que fazer para ser uma pessoa comum à noite é ligar a televisão. Agora, o truque é ver que não é que aconteça de você estar fazendo o que milhares de outras pessoas comuns estão fazendo, mas que as pessoas sabem que o modo de "passar uma noite comum", para qualquer pessoa, é fazer isso. Não é que de repente eu decida: "vou ver TV hoje à noite", mas que eu desempenho uma tarefa e encontro uma solução para a questão de "como ser comum” hoje à noite. (Algumas pessoas, de brincadeira, poderiam dizer: "Vamos ser comuns esta noite, vamos ver TV, comer pipoca", etc. Algo que eles sabem que está sendo feito por milhões de outras pessoas). Então, uma parte do trabalho é que temos de saber o que qualquer um/todo mundo está fazendo, fazendo de forma comum. Além disso, temos que ter disponibilidade para fazer o mesmo. Há pessoas que não têm disponibilidade para fazê-lo e que, especificamente, não podem ser comuns. Se, por exemplo, você estiver numa prisão, num quarto sem nenhum recurso; digamos que haja um banco e um buraco no chão e uma torneira; então você se pega fazendo coisas como explorar sistematicamente as rachaduras na parede do teto ao chão, durante anos, e passa a ter certas informações sobre a parede da cela que pessoas comuns não têm sobre a VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 167 parede de seus quartos. (Talvez as paredes de prisões sejam mais interessantes que outras, já que, dentre outras atividades com as quais os prisioneiros se ocupam, existe a prática de deixar informações de que estiveram lá, então há o que ser lido nas paredes). Mas não é algo comum de se dizer: "Bem, acho que esta noite vou examinar aquele canto do teto". Claro, é perfeitamente possível para qualquer pessoa passar uma tarde olhando para uma parede. Você poderia escolher fazer isso. Se você toma drogas, você tem permissão de fazê-lo. Mas, a menos que tome drogas, você não se sentiria autorizado a fazer isso, mesmo sem ninguém por perto. Isso significa dizer que, sendo uma pessoa comum, isso não é algo que você se permita passar o dia fazendo. E há uma gama infinita de possibilidades, de coisas a fazer, que você não se permitiria fazer. No meio de uma tarde ou de uma noite entediante, prefere-se passar pelo tédio da forma usual – qualquer que seja – do que ver se seria mais ou menos entediante examinar a parede ou observar algum detalhe da árvore pela janela. Existem, é claro, pessoas cuja profissão é fazer esse tipo de observação. Se pegássemos os cadernos de anotações de escritores, poetas, novelistas, provavelmente encontraríamos estudos elaborados de pequenos objetos reais. Por exemplo, nos cadernos do poeta Gerard Manley Hopkins, há extensas e detalhadas observações naturalistas de formações de nuvens ou da aparência de folhas sob diferentes tipos de luz, e assim por diante. E os cadernos de alguns romancistas contêm observações extensas e detalhadas de personagens e aparências. Agora, há um lugar nos escritos de Freud onde ele diz: "Quando se trata de assuntos como química ou física, leigos não se aventuram a dar opiniões. Com a psicologia é bem diferente. Qualquer um se sente livre para fazer comentários psicológicos". Parte da função que ele achava que cabia a si era mudar isso; isto é, desenvolver a psicologia e conjuntamente educar os leigos, para que estes se conscientizassem de que não sabem nada sobre ela e de que há pessoas que sabem, de modo que deixassem essas questões para os especialistas, assim como aprenderam a deixar a química e a física para os especialistas. Minha idéia é a de que, assim como acontece com a química e a física, assim deve acontecer com a realização de observações distintivas sobre o mundo e as pessoas. É uma coisa que, sendo uma pessoa comum, você simplesmente não faz. Para uma ampla gama de coisas que você pode imaginar como sendo empolgantes, oferecemos algo como a conversa a seguir (e não foi inventada, é real). Uma moça falando sobre o homem que encontrou na noite anterior: Ele é um cara bem legal, de verdade. Um cara muito legal mesmo. Então a gente tava falando de um monte de coisas e se divertindo mesmo, bebendo um pouco, essas coisas, e ele é muito tranqüilo. Ele é inteligente e ah, não é bonito, mas tem uma aparência boa, e muito legal mesmo, agradável, muito agradável, um amor. Você não ouve de alguém que está "sendo comum" um relato sobre o jogo de luz no copo de bebida, ou sobre o conjunto formado por suas sobrancelhas, ou sobre o timbre da sua voz. Eu acho que não é que você possa fazer tais observações e depois não incluí-las na história, mas sim que o modelo mental de ocupar-se em "ser comum" diz que sua ocupação na vida é essencialmente ver e relatar somente os aspectos usuais de qualquer cena usual VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 168 possível. Isso significa dizer que o que você procura é ver como qualquer cena em que esteja inserido pode se tornar uma cena comum, normal, e é isso que a cena é. Agora vocês podem ver claramente que isso pode ser uma profissão, que isso pode ser trabalho. A cena, num primeiro momento, não se apresenta ou se define simplesmente como insuportavelmente comum, e ponto final. É uma questão de como você vai abordá-la. O que você vai ver nela? As pessoas normalmente monitoram as cenas por causa da possibilidade de se tornarem histórias. Dou-lhes um exemplo repulsivo disso, de um livro chamado An Ordinary Camp (1958ii) de Micheline Maurel. Ela relata o primeiro dia num campo de concentração. As primeiras horas são aterrorizantes. Depois as coisas se acalmam. "Aos poucos, a conversa se espalhou de tenda a tenda. Os boatos já começavam a circular. Por sorte, a notícia era boa. Estaremos em casa logo. Teremos uma experiência incomum para contar". Um modo encontrado para lidar com o evento enquanto ele ainda se passava foi pensar que, no final, ele teria sido uma boa história. Você pode ver uma experiência com potencial para deixar uma pessoa totalmente sem esperanças como maravilhosamente relevante por ser capaz de sobreviver a ela. E, com certeza, você já teve a experiência de estar em cenas cuja virtude era a de, enquanto passava por ela, poder-se ver o que depois seria contado aos outros. Aparentemente, existem muitas coisas que, pelo menos em algum ponto da vida das pessoas, são feitas só para isso; ou seja, parece certo supor que haja uma época, quando meninos e meninas brincam de "beijar e contar", em que eles beijam só para ter alguma coisa para contar, eles não beijam por acaso e depois contam por acaso, ou querem beijar e depois acabam contando, na verdade, parece que o que os faz gostar do beijo é o fato de gostarem de contar. Então parece bem óbvio que as pessoas monitorem as cenas em que estão em busca de suas características "historiáveis". E, contudo, o fato extraordinário e incrível é que elas acabam saindo sem nenhuma característica "historiável". Ao que parece, qualquer um de nós com capacidade de usar as palavras pode encontrar nesta meia-hora, ou na próxima, um grande número de coisas para dizer. Mas há o trabalho de ser uma pessoa comum e esse trabalho inclui olhar para o mundo, para si mesmo, para os outros, para os objetos, de modo a ver como é que aquela é uma cena comum. E quando contamos o que aconteceu, apresentamo-lo da maneira normal: "Nada demais", ou usando quaisquer outras variantes de descrições banais; isto é, não há diferença particular entre dizer "Nada demais" e "Não deu pra ver". Suponho que todos vocês já tenham ouvido as descrições usuais de "nossa sociedade protestante" ou "nosso passado puritano", que dizem que pessoas comuns/americanos/europeus são construídos de um jeito que os impede de ter várias experiências que eles poderiam ter, não fossem eles reprimidos. Pensamos nos tipos de repressão que as pessoas têm cujas bases são sociológicas; ou seja, a ética puritana envolve passar a maior parte do tempo trabalhando, resistir ao prazer, coisas nas quais pensamos como definitivamente representativas de uma pessoa comum na civilização ocidental. Embora isso seja sabidamente importante, deixa escapar uma parte essencial da coisa, que é a seguinte: tendo ou não experiências ilegítimas, a característica de ser uma pessoa comum é que, mesmo VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 169 quando se têm as experiências ilegítimas que não se deveria ter, estas ocorrem da mesma forma comum que ocorrem para qualquer pessoa que passe por uma experiência ilegítima. Quando você tem um caso amoroso, toma drogas, comete um crime, e assim por diante, você descobre que teve a mesma experiência comum que outros que fazem o mesmo têm. Então, poderíamos muito bem remover a restrição puritana, como dizem que está sendo removida, e o modelo mental comum, contudo, estaria lá para preservar o modo como nos ocupamos em "ser comuns". Relatos de experiências aparentemente ultrajantes, as quais imaginaríamos que deixariam as pessoas sem palavras, ou sobre as quais esperaríamos ouvir detalhes extraordinários, acabam sendo feitos de modo que percebemos a experiência como totalmente corriqueira. Acho que agora vocês podem levar essa questão consigo e, observando a si mesmos vivendo no mundo – ou a outras pessoas, se for mais prazeroso – vocês as verão trabalhando para encontrar formas de tornar tudo "comum". Supostamente, seria a partir desse tipo de percepção consciente, por exemplo, da facilidade com que, habitualmente, vemos somente as características mais comuns das pessoas que passam por nós (aquele é um casal, aquele é um cara negro, aquela é uma senhora de idade), ou da aparência de um pôr-do-sol, ou do que consiste uma tarde com a namorada ou namorado, que podemos começar a nos dar conta de que há um mecanismo de força imensa operando em nossas percepções e pensamentos, além dos fatores conhecidos e imensamente poderosos como a química da visão, e assim por diante. Esse tipo de coisa não explicaria como você acaba por ver, por exemplo, que nada demais aconteceu, que você pode voltar para casa dia após dia, e, se alguém perguntar o que aconteceu, relatar, sem omitir, que nada aconteceu. E, se você estiver omitindo algo, aquilo que você está omitindo, se fosse relatado, pareceria não ser nada demais. E, do modo como acontece com você, também acontece com aqueles que você conhece. Além disso, arriscar-se a não ser comum tem méritos e custos desconhecidos. Isto é, se você volta para casa e relata como a grama estava ao longo do caminho, que havia quatro tons visíveis de verde, alguns dos quais apareceram somente ontem por causa da chuva, então o seu destinatário pode demonstrar alguma tensão. E se você fizer isso sempre, as pessoas podem imaginar que há algo estranho com você, que você é pretensioso. Você pode achar que eles invejam você. Você pode perder amigos. Ou seja, talvez você queira pesar os custos de arriscar a tornar sua vida uma epopéia. Agora, também é o caso de dizer que existem pessoas que têm direito a tornar suas vidas uma epopéia. Existe, para nós, uma série predeterminada de pessoas, lugares e objetos historiáveis, e eles permanecem como algo diferente de nós. Pode ser que em quase todos os círculos exista alguém sujeito a todas as observações claras, como existe, para a sociedade em geral, um conjunto de pessoas sobre as são feitos quais relatos detalhados, relatos que não apenas seriam arriscados de serem feitos a respeito de outras pessoas, mas que também nunca seriam pensados a respeito de outras pessoas. A maneira como Elizabeth Taylor deu a volta por cima é algo notável e que merece ser relatado. A maneira como a sua mãe deu a volta por cima é algo imperceptível, muito menos narrável. O caso é que a ocupação de quase todos é ser comum profissionalmente. As pessoas assumem a tarefa de manter tudo absolutamente normal. Não importa o que aconteça, quase VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 170 todo o mundo está ocupado somente em encontrar uma forma de fazer tudo continuar comum, com todo o esforço possível. E é realmente extraordinário ver o esforço das pessoas para alcançar a percepção de que "nada aconteceu" nos eventos mais catastróficos. Eu venho juntando fragmentos retirados de jornais sobre seqüestros de avião, e o que os passageiros pensam quando ocorre um seqüestro. O último que encontrei diz algo assim: Eu estava caminhando em direção à frente do avião e vi a aeromoça de pé, de frente para a cabine, e um rapaz parado com uma arma nas costas dela. Meu primeiro pensamento foi "ele está mostrando a arma para ela", e então percebi que não podia ser isso, e ficou claro que ele estava seqüestrando o avião. Um outro, sobre o seqüestro de avião polonês, foi assim. O avião está agora sendo seqüestrado, e o rapaz relata: "Eu pensei comigo mesmo, nós acabamos de ter um seqüestro polonês mês passado, e já estão fazendo um filme sobre isso". Um exemplo classicamente dramático, quase universal, é o de que o primeiro relato do assassinato do presidente Kennedy foi sobre terem sido ouvidos tiros. Agora, imagine reescrever os eventos monumentais do Antigo Testamento com pessoas comuns tomando parte deles. O que elas ouviriam ou veriam, por exemplo, quando vozes chamassem por elas, quando começasse a chover, e assim por diante. Sem dúvida, existe um lugar no Antigo Testamento em que encontramos tal ocorrência. Ló é avisado da queima de Sodoma e Gomorra, e lhe é permitido tirar suas filhas e genros. "Então saiu Ló e falou a seus genros, que casaram com suas filhas, e disse: Levantai-vos e saí deste lugar, porque o Senhor há de destruir esta cidade. Acharam, porém, que ele gracejava com eles". E ficaram para trás. Vamos voltar, agora, a alguns fragmentos de conversa, retirados de telefonemas gravados, nos quais eventos dramáticos, a sua maneira, são relatados. Ao olhar estes relatos, podemos começar a perceber um pouco do trabalho envolvido na ocupação de ser comum. Jean: Ellen: Jean: Ellen: Jean: Ellen: Jean: Ellen: Jean: Ellen: Jean: Hello, (0.4) Jean. Yeah, (0.4) Well I just thought I1d re-better report to you what’s happened at Cromwell’s toda:y= =What in the world ha:ppened. [hhh [Did you have the day o:ff? Ya:h? (0.3) Well I: got out to my car at fi:ve thirty I: drove arou:nd and of course I had to go by the front of the sto:re,= =Yeah?= And there were two (0.2) police cars across the street and leh-e colored lady wanted to go in the main entrance there where the si:lver is and all the [( ),] (things). [Yeah,] (0.4) VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 171 Ellen: Ellen: Jean: Ellen: Jean: Jean: Ellen: Jean: Ellen: Jean: Ellen: Jean: Ellen: Jean: Ellen: Jean: Ellen: Ellen: Jean: Ellen: Jean: A:nd, they wouldn’t let her go i:n, and he, had a gu::n, (0.2) He was holding a gun in his hand a great big lo:ng gu::n? Yea:h? And then over on the other si:de, I mean to the right.of there, where the (0.2) employees come ou:t, there was a who:le, oh:: must have been ten uh eight or ten employees standing there, because there must have been a:, it seemed like they had every entrance ba:rred. I don’t know what was goin[g o:n] [Oh my Go:d, Alô. (0.4) Jean. É, (0.4) Bom, pensei em... que seria melhor contar pra você o que aconteceu hoje no Cromwell’s. O que houve. [hhh. [Você tava de folga? Tava? (0.3) Bem, e:u saí de carro às ci:nco e meia e fui dar uma volta, e, claro, tive que passar em frente à lo:ja,= =Ahn?= E dois (0.2) carros da polícia estavam do outro lado da rua e uma ne-e uma senhora de cor queria entrar pela porta principal onde fica a prataria e todas as [( )] (coisas). [Ahn, ] E:, não queriam deixá-la entra:r, e ele, tinha uma a::rma? Ele tava com a arma na mão, uma arma grande, de cano longo. Ah:n? Então, do outro lado, quer dizer, à direita de lá, onde os (0.2) funcionários saí:am, havia um mo:nte de, a::i, devia ter uns dez é oito ou dez funcionários parados lá, porque devia ter uma:, parecia que tinham barra:do todas as entradas. Não sei o que estava acon[tece:ndo. [Meu Deus! Vamos olhar os materiais mantendo os eventos em mente, analisando o que estava acontecendo e brincando com a fala em referência a alguma forma de considerar o que estava acontecendo. Eu tenho em mente algo assim: quando essa senhora interpreta os eventos, ela os interpreta de forma a descobrir como o fato de a polícia estar lá inclui que estavam lá legitimamente. Podemos notar, ao menos hoje em dia, que a presença legítima da polícia tornou-se um tipo de fenômeno distribucional, ou seja, enquanto a senhora é capaz de usar a presença da polícia para descobrir o que estava acontecendo, considerando que a polícia devia mesmo VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 172 estar por lá, outras pessoas podem ver a mesma cena, com o mesmo grupo, e considerar que a polícia não tinha nada a ver com o que estava acontecendo. Quer dizer, se a ação acontecesse em um bairro negro, visto por pessoas negras, então "exatamente a mesma cena" talvez se tornasse, pela percepção do grupo, um fenômeno completamente diferente. Existem lugares onde a polícia pode contar com a presença de dois de seus carros para sustentar sua presença visível e legítima, de forma que os outros vão, então, vasculhar a cena para descobrir o que a polícia está fazendo que devesse estar fazendo e, por exemplo, notar que alguém está tentando entrar pela entrada em que se encontra a prataria. Ao passo que existem outros que não irão ver de forma alguma os eventos dessa maneira, mas que, ao ver dois carros de polícia na cena, podem olhar para ver que tipo de incômodo a polícia, por estar na cena, está causando, em comparação ao tipo de incômodo a que eles estão apropriadamente respondendo. Esse tipo de organização diferencial de uma mera percepção de um evento é de importância considerável para a maneira pela qual a presença da polícia na cena conta às pessoas que, embora exista um problema, está tudo bem. Por exemplo, que essa senhora pode passar direto pela cena sabendo que as coisas estão mais ou menos controladas, que algo está acontecendo, mas a polícia irá cuidar disso, em vez de pensar que algo está acontecendo e que a polícia o está fazendo acontecer. Esse tipo de fenômeno tornou-se acentuadamente distribucional, e você deve aprender a perceber a dificuldade envolvida quando grupos falam uns com os outros imaginando que o que cada um deles estava fazendo era apenas ver o que estava acontecendo. Isto é, a noção de que questões distribucionais estão envolvidas fica inacessível para os dois grupos devido ao fato de que estão apenas examinando a cena para ver o que está acontecendo. Eles não estão discutindo nada, nem imaginando nada. Estão vendo a cena organizada de alguma forma. E dizer a eles que estão imaginando-a, ou que estão se justificando, já que você sabe perfeitamente o que havia para ser visto devido ao que você viu, é colocá-los em uma posição na qual eles não poderiam, de verdade, chegar a entender do que você está falando. Isso demonstra o fato de que cada grupo está comprometido, de uma forma específica, com uma confiança na visão, sem nenhuma concepção do que entendem por "visão". Podemos propor aqui um debate acerca dos tipos de perplexidade absoluta pela qual as pessoas passam em relação aos tipos de alegações que os outros fazem, por exemplo, sobre a polícia e o que ela está fazendo, quando cada grupo imagina que está apenas relatando o que viu, e não se justificando por o que quer que seja, estando perfeitamente dispostos a serem justos. Essa senhora não está elaborando um relato de direita. O que ela está fazendo é apenas relatar o que ela viu. Dizer a ela que não foi isso que aconteceu é atacar o tipo de confiança que ela tem, e deveria ter, no que ela simplesmente vê; é propor uma situação com a qual seria muito desconfortável conviver; é arruinar algo em que uma enorme carga de ideologia, de certa forma ocidental, levou-a a acreditar que ela deveria, de fato, confiar. A questão é que, grosso modo, trata-se de algo cultural e temporalmente distribucional o fato de as pessoas confiarem ou não em seus olhos. Mesmo pessoas como os acadêmicos, que imaginam estar correspondendo às "fundações ideológicas da percepção", podem não usar esse tipo de correspondência para chegar a perceber a falta de confiança na visão que algumas culturas têm. Os acadêmicos vêem isso como um tipo de antiempirismo, o qual pode VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 173 não ser de forma alguma antiempirismo, mas que, à luz dos tipos de problemas em que as pessoas se envolvem quando levam a sério uma orientação culturalmente ordenada de visão, um foco sobre outros sentidos poderia parecer mais bem sucedido. O fato de as pessoas desconfiarem sistematicamente do que vêem poderia não ser abordado como "De que forma podem eles sobreviver com essa mágica visão das coisas?", mas como uma posição perfeitamente empírica. Uma outra coisa (entrando outra vez nos tipos de áreas problemáticas delicadas), aquela senhora está por demais confortável como testemunha da cena. Contudo, você pode muito bem imaginar como ela não se veria de maneira alguma como uma testemunha. No seu relato, por exemplo, não existe nenhuma pista demonstrando qualquer interesse em parar e ajudar, ou qual preocupação com o que vai acontecer. Mais importante que isso, não existe nenhuma pista de que ela tenha tido qualquer medo de que, de alguma forma, o policial se virasse para ela e a perguntasse o que ela estava fazendo lá. O grande conforto na inocência dela, e no status de espectadora legítima que ela tem, é algo a que nós deveríamos dar real atenção, ao menos dessa forma. Este tipo de coisa que sabemos que pode ser facilmente abalado. Existem tempos e lugares nos quais alguém não sentiria todo este conforto ao passar por tal cena e, você pode imaginar, calcularia "Ai, meu Deus, estou aqui, a primeira coisa que vai acontecer é que vão pensar que estou envolvido". Isso nunca se manifestou para aquela senhora. E até que se manifeste para ela, ela não poderá ter nenhum senso de empatia com, por exemplo, um garoto no gueto. E apesar disso, eu creio que você poderia fazê-la ver isso, ou seja, você poderia mostrar a ela como seu completo sentido de inocência afeta toda a maneira como ela vê a cena. Não existe nenhum medo por parte dela de que alguém possa se enganar e tomá-la como parte da cena, embora ela esteja disposta a apontar outros como não testemunhas, conferindo-lhes o status de parte da cenaiii. Novamente, não existe nenhum sentimento por parte dela de que devesse fazer algo, e ninguém imaginaria que ela devesse sentir que precisasse fazer algo. Esse tipo de confiança na habilidade da polícia, que está lá para cuidar do que for necessário, e que cuidará disso bem, é um outro aspecto da maneira pela qual, sendo uma testemunha, ela pode ser uma testemunha completa. Uma pessoa pode levar em conta, quando está se ocupando em "ser uma testemunha da cena", as condições sob as quais o seu status de testemunha poderia ser transformado de diferentes formas. Uma delas é tornar-se alguém (por exemplo, a senhora no carro próximo ao seu ou o homem do outro lado da rua) que poderia ser visto por outros não como uma testemunha, mas possivelmente como "um carro se afastando da cena", como "o ladrão em fuga". Ou, não que você seja uma testemunha de uma cena em que está tudo sob controle, mas que você seja alguém que está friamente passando por ela. Eu levanto essas possibilidades, porque se você lesse a história, você poderia ter plena certeza de que tais assuntos nunca passaram pela cabeça dela, e pode então pensar em cenas em que você esteve envolvido, ou outros estiveram envolvidos, e daí questiornar se tais assuntos realmente surgem ou não, e então focar nas condições que levariam alguém como aquela senhora a, pelo menos, pensar que o policial vai atirar nela, ou dizer para ela parar, ou que mais alguém poderia vê-la e perguntar o que ela estava fazendo lá. VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 174 Vamos, agora, ao segundo fragmento. Este ocorre após algum tempo de telefonema. Madge: Bea: Madge: Bea: Magde: Bea: Magde: Bea: Magde: Bea: Magde: Bea: Magde: Bea: Magde: Bea: Bea: Madge: Bea: Madge: Bea: Madge: Bea: Madge: Bea: Madge: Bea: Madge: Bea: Madge: Bea: Madge: Say did you see anything in the paper last night or hear anything on the local radio, .hh Ruth Henderson and I drove down, to, Ventura yesterday. Mm hm, And on the way home we saw the -- most gosh awful wreck. Oh::: We have ev- I’ve ever seen. I’ve never seen a car smashed into it and there were people laid out and covered over the pavement, Oh::: It was smashed, -- .hh from the front and the back both. It must have been in- caught in, between two car::s, [Mm hm, uh huh [Must have run into a car and then another car smashed into it and there were people laid out and covered over the pavement, Mm We were s- parked there for quite a while. But I was going to, listen to the local r-news and haven’t done it. No I haven’t had my radio on either. Well I had my television on, but I was listening to uh the blast off, you know. Mm hm, The uh ah- [astronauts. [Yeah. Yeah, And I, I didn’t ever get any local news Uh huh, And I wondered. Uh huh, no, I haven’t had it on … Me diz uma coisa, você viu algo no jornal ontem à noite ou ouviu pelo rádio local, .hh Ruth Henderson e eu fomos de carro pra, Ventura ontem. Mm hm, E no caminho de volta vimos uma -- batida horrível, a pior No::ssa que nós já- que eu já vi. Eu nunca vi um carro esmagado paradentro de um espaço tão pequeno. No::ssa Estava amassado, -- .hh na frente e atrás também. Deve ter ficado agarrado em- preso, entre dois ca::rros, [Mm hm, ãrrã [Deve ter colidido em um carro e então outro carro bateu nele e havia pessoas caídas e cobertas na calçada. Mm Ficamos p- estacionadas lá por um bom tempo. Mas eu ia, ouvir o jnoticiário local e não fiz isso. VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 175 Bea: Madge: Bea: Madge: Bea: Bea: Madge: Bea: Madge: Bea: Não não tinha ligado meu rádio também. Bem, minha televisão estava ligada, mas eu estava assistindo ao eh à partida do foguete, você sabe. Mm hm Os ah a- [astronautas. [É. É, E eu, não cheguei a ouvir nenhuma notícia local. Ãrrã, Aí eu pensei. Ãrrã, não, não cheguei a ligar … Anteriormente, eu estava falando sobre as restrições impostas às experiências pelo "modelo mental comum". Quero agora enfocar o direito a ter experiências. Quero sugerir que, ao ter testemunhado esse evento, e ao tê-lo sofrido também, de alguma maneira (por exemplo, por ter tido que parar em um engarrafamento na rodovia por causa disso), ela passou a ter direito a uma experiência. O fato de ela ter direito a uma experiência é algo diferente daquilo a que seu destinatário tem direito, ou daquilo a que alguém que de alguma outra forma tenha se deparado com essa história tem direito. Em parte, estou dizendo que é um fato que os direitos às experiências estão disponíveis de formas diferenciadas. Quando falo de direito, você pode pensar no assunto como não tendo direito a ele, mas isso é apenas parte da coisa. Outra parte envolve também não chegar a sentir absolutamente nada, comparado a sentir algo e achar que não tem direito a isso. A idéia é a de que, ao se deparar com um evento, como testemunha ou como alguém que o sofreu em parte, tem-se o direito a uma experiência, enquanto que o mero fato de se ter acesso a coisas do mundo, por exemplo, de vir a conhecer a história através de outro, é uma coisa bem diferente. Uma maneira de ver a questão é perguntar: o que acontece a histórias como essa uma vez que são contadas? Tornam-se propriedade do destinatário da mesma forma que pertencem a quem as conta? Isto é, quem conta tem o direito de contar a história, e, ao fazê-lo, dá suas credenciais (para seus direitos de contar a história) mencionando o fato de que viram o evento, de que o sofreram. Agora a pergunta é: o destinatário de uma história vem a possuí-la da maneira que o narrador a possui, ou seja, pode o destinatário contá-la para outrem, ou senti-la como o narrador se sente por aqueles eventos? Por exemplo, você pode, ao ver um acidente de automóvel com pessoas caídas, sentirse péssimo, chorar, ter o resto de seu dia arruinado. A questão é: o destinatário dessa história está habilitado a sentir o mesmo que você? Acho simplesmente que não. Quer dizer, se você chama um amigo seu que não tem ligação com o evento que está contando, isto é, alguém que não seja primo, ou tia, de alguém que morreu no acidente, mas somente alguém a quem você contou uma experiência ruim, então, se o destinatário ficar tão perturbado quanto você, ou mais até, algo estranho está acontecendo, e você pode até se sentir injustiçado – embora isso seja algo estranho a se sentir. Agora, um motivo pelo qual levanto toda essa discussão, e uma maneira pela qual isso é importante, é o fato de que poderíamos pelo menos imaginar uma sociedade na qual aqueles VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 176 que experimentaram algo, tendo-o visto e sentido, pudessem preservar não só o conhecimento do evento, mas também o sentimento provocado por ele, ao contar a outros. Ou seja, se eles pudessem senti-lo, então todos a quem contassem poderiam senti-lo. Então, claramente, esse estoque de experiências que os outros por ventura tiveram não dependeria dos eventos com os quais chegaram a se deparar, mas poderia depender dos eventos que alguém com quem já conversaram veio a se deparar - como pensamos em um estoque de conhecimento que temos. Em outras palavras, se eu disser algo no qual você venha a acreditar, você tem o direito a tê-lo. E você aceita que o estoque de conhecimento que você tem é algo que você pode adquirir onde quer que o encontre, e ele é seu para guardá-lo. Mas o estoque de experiências é um conjunto de coisas construído de maneira completamente diferente. Como eu digo, para ver que isso é assim, podemos simplesmente, por exemplo, distinguir o modo como lidamos com uma informação e o modo como lidamos com a experiência de outra pessoa, e depois chegar a perceber que experiências ficam então isoladas, em vez de serem por si mesmas tão produtivas quanto o são as informações. Agora, esse fato obviamente importa muito, de todas as maneiras possíveis. Dentre elas, temos que, se o fato de ter uma experiência é a base para ser incentivado a fazer algo a respeito das coisas das quais essa experiência é uma instância (por exemplo, o estado das auto-estradas, o estado dos automóveis, o estado de qualquer coisa), então, claramente, a base para se realizar coisas é radicalmente enfraquecida sempre que aqueles que recebem sua história não possam se sentir da mesma forma que você tem direito a se sentir. Certamente, não há motivos para restringir a questão a sentimentos negativos. Claro, o que afirmamos serve para a alegria também. Trata-se de um problema especificamente observável o fato de a alegria não ser produtiva, mas o fato de aqueles que têm tal experiência como tendo direito a estar alegres, ao contar a outros, estes podem se sentir "bem por você", mas há limites acentuados sobre o quão bem eles podem se sentir por isso, e, também, limites mais acentuados sobre o bom sentimento que eles podem dar a uma terceira pessoa com a história. Novamente, se pensarmos sobre isso, poderemos talvez ver simplesmente que direitos limitados não é algo intrínseco à organização do mundo, mas é um jeito que nós, de alguma maneira, chegamos a perceber e a sentir a experiência, ou o jeito como fomos ensinados a fazer isso, o que é completamente diferente das maneiras como pensamos a respeito do conhecimento. Presumo que, se quiséssemos, poderíamos iniciar uma discussão histórica na qual, de algum modo, o conhecimento fosse capaz de atingir um status por si mesmo diferente daquele da experiência, embora alguém pudesse talvez encontrar bases para tentativas de se afirmar o mesmo, por experiência própria, que falharam. Casos óbvios são, por exemplo, tentativas de religião universal, que são tentativas de preservar um tipo de sentimento que alguém teve alguma vez, ao deparar-se com algo ou alguém, e da qual a história toda que temos é a de que não funcionou. É extremamente difícil espalhar alegria. É extremamente fácil espalhar informação. Agora, essa é uma ordem de coisa – o caráter distribucional da experiência e a importância de seu caráter distribucional para, digamos, os problemas e as alegrias do mundo, em, digamos, contraste acentuado com o conhecimento e seu caráter distribucional. Você deve imaginar que, em relação aos direitos/habilidades das pessoas de ter experiências, seria VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 177 um tipo de fato severo demais se cada um estivesse restrito àqueles eventos do qual participou ou que testemunhou, mas essa ainda não é a história completa dos tipos de restrição que são impostas à possibilidade de se ter uma experiência. O segundo tipo de restrição é: se você terá uma experiência por direito, então você terá de ter a experiência à qual você tem direito. Você poderia imaginar que, tendo severas restrições sobre suas chances de ter experiências, o que depende, por exemplo, de algo, importante de alguma forma, que venha a cruzar seu caminho, ou que cujo caminho você venha a cruzar, isso tendo acontecido, bem, então você já está quase lá. Uma vez que tivesse conseguido, você poderia fazer com isso o que quisesse. Não. Você tem que formar a coisa como ela é comumente, e aí misturar sua experiência com isso. Em outras palavras, os direitos de ter experiência por virtude de, digamos, deparar-se com algo como um acidente, são somente direitos de ter visto "outro acidente", e talvez de ter sentido por isso, mas não, por exemplo, de ter visto Deus nisso. Não se pode ter um colapso nervoso porque você por acaso viu um acidente de automóvel. Você não pode dar mais importância a isso do que qualquer pessoa daria. Então, podemos pensar sobre como você tem direito a ter uma experiência assim: você toma emprestada por um tempo aquela experiência que está disponível, em comparação a você agora inventar a experiência à qual você pode ter direito. Mas já que se está tão nitidamente restringido em relação às ocasiões de se ter uma experiência, então, provavelmente, as pessoas ficam bastante felizes em aceitá-las da forma como acontecem. Isto é, você não conseguirá muitos sentimentos novos surpreendentes, ou o que seja, a partir dessa experiência, mas é a única experiência que você tem uma chance legítima de ter, então você também pode tê-la. Você pode igualmente formular essa história do acidente de carro como uma história comum de um acidente, em vez de tentar transformála em algo que poderia ocasionar que você está realmente buscando experiências. Claro que as pessoas são facilmente vistas buscando experiência em algo que alguém conhece como "apenas um acidente", "apenas alguma coisa", e que elas fazem disso a ocupação da vida. A esse respeito, há várias maneiras de o narrador dessas histórias retransmitir para nós como ela começou a amarrar essa experiência. Quer dizer, o que ela fez disso não é apenas contado na história, mas é contado de outras maneiras. Dentre as maneiras pelas quais ela começa a localizar o tipo de experiência que esse evento foi, está o fato de que ela não conta isso logo no princípio da conversa (fato que não está disponível para você no excerto), mas em algum lugar no meio da conversa. Você verá que histórias são diferenciadas de forma específica, em termos de importância para quem as conta, de acordo com o momento em que o narrador as expõe na conversa. Assim, por exemplo, uma das maneiras que o narrador tem para apresentar uma história como realmente importante é contá-la logo de início. E uma maneira de fazê-la mais importante do que ela é é telefonar para alguém para contá-la quando imagina que tal pessoa não está disponível para ouvir, por exemplo, no meio da noite. As histórias são classificadas e expressam seu status por meio do ato de telefonar para alguém e dizer, "Eu sei que estava dormindo, mas...", onde o problema não é a pessoa estar dormindo, mas você telefonar quando ela está dormindo, porque se você não chamá-la a essa hora, se lhe telefonar quando estiver acordada, você já terá dito a ela algo sobre a história; isto é, a história não é tão VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 178 importante quanto, do contrário, você pode querer que pareça. Então, o posicionamento da história na conversa e o posicionamento da conversa na vida do destinatário são maneiras de localizar a importância da história. Então, claro, a narradora também conta aspectos da importância da história no contar em si. Por exemplo, apesar de aquela ter sido uma experiência importante o suficiente para ela dizer a si mesma "vou ouvir o rádio", outras coisas desviaram-na da realização de seu intuito. Ela não tem vergonha de dizer que, em vez disso, ela assistiu ao seriado dos astronautas, uma ação que, obviamente, para outra história qualquer, seria completamente perversa. Para essa história, não há problema algum, e trata-se de uma maneira de localizar como os eventos importam, isto é, produzi-lo enquanto indica que se fosse para escolher entre tentar descobrir mais sobre o assunto ou ver os astronautas, ela assistiria aos astronautas. Paralelo a isso, ela poderia ir para casa e cuidar de sua vida, em comparação a, por exemplo, ir para casa e dormir, ou ter pesadelos durante a noite toda, ou perceber que aquilo interferiu de outras maneiras na vida que ela levava quando do acontecido. Ela estava indo para casa, houve um acidente, ela foi detida por um tempo, e depois foi para casa e assistiu aos astronautas. Essa é simplesmente uma maneira de localizar o quanto a história importa, e é simplesmente uma maneira apropriada para essa história. Se ela tivesse dito "arruinou o resto do meu dia", "eu fiquei tremendo toda", "fui ao médico", "tive pesadelos", então sua amiga poderia dizer "bem, você é sensível demais". Então esse negócio de o personagem da experiência se encaixar no status convencional do evento é algo com o qual lidamos ao contar uma história. O meio inicialmente mais suave de formulação que podemos ter é, pelo menos, dizer que, embora muitas pessoas imaginem que a experiência é uma grande coisa, e aparentemente ao menos algumas pessoas são afoitas por ter experiências, estas são coisas reguladas da forma mais extraordinária e cuidadosa. As ocasiões de ter direito a elas são cuidadosamente reguladas, e então a experiência à qual você tem o direito nessa ocasião à qual você tem o direito é ainda mais cuidadosamente regulada. Levando em conta que parte da experiência envolve falar sobre ela, então o falar sobre ela constitui uma maneira pela qual aquilo que você pode deduzir em seu íntimo do evento está sujeito ao controle de uma apresentação aberta, mesmo para alguém considerado amigo. Isto é, seus amigos não vão te ajudar, em geral, quando você contar alguma história para eles, a menos que você lhes conte a história da maneira que qualquer um contaria a alguém. Então, eles ficarão apropriadamente entretidos ou sentidos. Caso contrário, você irá perceber que eles estão te observando para ver se você, por exemplo, está aumentando algo ao qual você não tem o direito de fazer parecer tão grande assim, ou diminuindo algo que deveria ser maior, ou deixando de ver algo que deveria ter visto, tudo que poderia ser deduzido por virtude da maneira como você necessariamente formulou a coisa. Agora, não vou dizer para abolirmos as maneiras pelas quais nos ocupamos em ser comuns, mas, em vez disso, que queremos saber que importância isso tem. Pelo menos um caminho que podemos seguir é tratar a banalidade dominante das histórias que encontramos – nos meus dados, nas suas próprias experiências – não tanto como algo que se sujeite, por exemplo, a análises estatísticas de variação, ou como algo que as torne portanto desinteressantes de se estudar, mas como uma característica específica que provoca um tipo VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 179 de atitude; digamos, uma atitude de tentar trabalhar em ser normal, o que é talvez central à maneira como nosso mundo é organizado. i Na série de textos da Análise da Conversa traduzidos no âmbito do curso de tradução da UFJF, foi traduzido o texto SACKS, H., SCHEGLOFF, E. & JEFFERSON, G. A Simplest Systematics for the Organization of Turn Taking for Conversation. Language, v. 50, n. 4, p. 696-735, 1974 na Revista Veredas v. 7, n. 1 e 2, 2003, sob o título de Sistemática elementar para a organização da tomada de turnos para a conversa. Em breve, publicaremos também o texto de Harvey Sacks Notes on Methodology, em fase final de tradução (N. dos T). ii Título original: Un camp très ordinaire (Minuit, 1957). Livro ainda sem tradução para o português. iii O fato de que "uma senhora de cor" que "queria entrar... onde fica a prataria está" era ela própria uma espectadora aparece em uma conversa subseqüente, entre o destinatário do relato e alguém que estava lá. Jean: Penny: Jean: Penny: Jean: Penny: Jean: Penny: Jean: Penny: Jean: Penny: We::ll she said that there was some woman that the- that they were: b-uhh h:ad he:ld up in the front the:re that they were pointing the gun at and everythi:ng, (0.2) a k- nigro woman, (0.6) .hhh No:::: no::. What. That was one of the employee[s [Oh.= =He ran up to her and she just ran up to him and says what’s happened what’s aa- well the kids were all lau::ghing about it. Bem ela disse que tinha uma mulher que o– que eles estavam ehh que tinha:m deti:do na frente lá para quem estavam apontando a arma e tal, (0.2) uma mulher negra, (0.6) .hhh Na::::o nã::o. O quê. Aquela era uma das empregadas Ah= =Ele correu pro lado dela e ela pro dele dizendo o que aconteceu e o que- bem as crianças estavam todas ri::ndo disso. Convenções de transcrição [colchetes] (0.5) (.) = Fala sobreposta. Pausa em décimos de segundo. Micropausa de menos de dois décimos de segundo Contigüidade entre a fala de um mesmo falante ou de dois falantes distintos. VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 180 . ? , ? , : sublinhado MAIUSCULA º ºpalavrasº palavra: palavra: >palavras< <palavras> <palavras h (h) .h (( )) (palavras) ( ) Descida de entonação. Subida de entonação. Entonação continua. Subida de entonação mais forte que a virgula e menos forte que o ponto de interrogação. Alongamento de som. Auto-interrupcão. Acento ou ênfase de volume. Ênfase acentuada. Fala mais baixa imediatamente após o sinal. Trecho falado mais baixo. Descida entoacional inflexionada. Subida entoacional inflexionada. Subida acentuada na entonação, mais forte que os dois pontos sublinhados. Descida acentuada na entonação, mais forte que os dois pontos precedidos de sublinhado. Fala comprimida ou acelerada. Desaceleração da fala. Inicio acelerado. Aspirações audíveis. Duplicação do símbolo indica maior extensão do fenômeno. Aspirações durante a fala. Duplicação do símbolo indica maior extensão do fenômeno. Inspiração audível. Duplicação do símbolo indica maior extensão do fenômeno. Comentários do analista. Transcrição duvidosa. Transcrição impossível. VEREDAS ON LINE – ATEMÁTICA – 1/2007, P. 165-181 – PPG LINGÜÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA - ISSN 1982-2243 181