Tradução
SACKS, H. On doing “being ordinary”. In: ATKINSON, J. M. & HERITAGE, J. Structures
of Social Action: Studies in Conversation Analysis. Cambridge, U.K.: Cambridge University
Press, 1984.
Créditos da tradução
O texto foi traduzido no âmbito da disciplina Estágio Supervisionado de Tradução, do
curso de Bacharelado em Letras, ênfase em Tradução/Inglês, da Universidade Federal de Juiz
de Fora, ministrada pela ministrada pelo professor Ms. Adauto Villela.
Tradução: Felipe Portela, Priscilla Pellegrino e Vívian Gomes
Supervisão: Adauto Villela
Revisão: Adauto Villela e Paulo Cortes Gago
Agradecimentos
Ao prof. Dr. Emanuel Schegloff, executor da obra de Harvey Sacks, por nos ter
generosamente cedido os direitos autorais e facilitado o processo de negociação com a
Cambridge Univeristy Press.
À Cambridge University Press, por nos ter cedido os direitos para a tradução.
À profª. Drª Maria Clara Castellões de Oliveira, por aceitar mais uma vezi o desafio de
traduzir textos da Análise da Conversa no âmbito do curso de Tradução, ajudando, assim, na
disseminação dessa área de conhecimento no Brasil.
Os editores
Maria Cristina Lobo Name
Luiz Fernando Matos Rocha
Paulo Cortes Gago
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Ocupando-se em "ser comum"
Harvey Sacks
(Universidade da Califórnia em Irvine)
Normalmente eu inicio o curso fazendo o que faço no curso, sem qualquer afirmação
programática ou indicação dos motivos pelos quais as pessoas deveriam se interessar por ele.
Agora – talvez de modo injusto – o curso vai se tornar muito mais rigorosamente técnico do
que a maioria de vocês poderia achar interessante, e uma boa percentagem das pessoas vai
abandoná-lo, e geralmente a conseqüência disso é que elas não vão tirar nenhum proveito da
aula. Então, decidi usar esta primeira sessão para dizer algo que, na minha opinião,
dificilmente não será do interesse de todos. Assim, quando abandonarem o curso, elas terão
ao menos ouvido o que eu considero que vale o preço do curso. Devo dizer que, se isso não os
interessar, vocês não podem imaginar o quão desinteressante será o resto.
Bem, neste curso pegarei diferentes histórias tiradas de conversas e as submeterei a um
tipo de análise que serve, grosso modo, para ver se é possível submeter os detalhes de eventos
reais à investigação formal, de maneira informativa. A meta geral do trabalho que venho
fazendo é ver com que precisão os detalhes de conversas reais, ocorridas naturalmente, podem
ser submetidos a análises que resultarão na tecnologia da conversa.
A idéia é pegar seqüências singulares de conversas e desmembrá-las de forma a
encontrar regras, técnicas, procedimentos, métodos, aforismos (uma coleção de termos mais
ou menos relacionados, os quais eu uso intercambiavelmente) que podem ser usados para
gerar as características regulares que encontramos nas conversas que examinamos. A questão
é, então, retornar às singularidades que observamos em uma seqüência individual com
algumas regras que lidem com essas características individuais e também, necessariamente,
que lidem com uma série de outros eventos.
Então, estamos lidando com a tecnologia de conversa. Estamos tentando encontrar
essa tecnologia a partir de fragmentos reais de conversas, para que possamos impor como
restrição que a tecnologia lide realmente com eventos singulares e seqüências singulares de
eventos – uma restrição razoavelmente forte imposta a um conjunto de regras.
O modo como vou proceder hoje é, de muitas formas, muito diferente do modo como
procederei no resto do curso. Nesta palestra, não vou tentar provar nada, e também não vou
estudar a tecnologia de contar histórias em conversas. Vou dizer algumas coisas sobre por que
o estudo da narração, do contar histórias, deveria interessar a qualquer um. E a mensagem
mais ampla é a de que o mundo em que vivemos é muito mais bem organizado do que
imaginamos. O acúmulo de evidências sobre isso serviria somente para consubstanciar essa
afirmativa, e, depois desta aula, vocês nem precisam voltar amanhã para captar essa
mensagem e para armarem-se de alguns materiais que os permitiriam andar por aí notando
coisas que vocês não notariam, e achando-as assustadoras.
Muito do que vou dizer tem sua obscura fonte intelectual em um romance chamado
Entre a Vida e a Morte (trad. Maria Jolas, 1970) de Nathalie Sarraute. (Eu digo obscura
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porque, se vocês lessem o livro, provavelmente não achariam que ele diz o que eu digo, mas,
com alguma consideração, vocês poderiam ver como eu devo o que estou dizendo a essa
fonte). O livro não é em absoluto de leitura obrigatória. Estou apenas citando um débito.
É incrível como, em conversas comuns, as pessoas, ao relatarem algum fato, relatam
aquilo que podemos ver que aconteceu, não o que aconteceu, mas a normalidade do que
aconteceu. Os relatos não se prendem muito a cenas, atividades, participantes, mas anunciam
a normalidade do fato, o fato de ser comum. E se pensarmos em literatura ou poesia,
poderemos notar perfeitamente que a partir de qualquer evento passado, por exemplo, "Estava
uma noite agradável; nos sentamos e conversamos", caracterizações realmente elaboradas são
apresentadas.
Isso me traz às afirmações centrais que quero fazer. O que quer que você pense sobre
o que constitui ser uma pessoa comum no mundo, uma mudança inicial para essa perspectiva
é não pensar em "uma pessoa comum" como uma pessoa, mas como alguém que tem como
trabalho e preocupação constantes ocupar-se em ser comum. Não é que alguém seja comum;
é que, talvez, essa seja sua ocupação, e ela dá trabalho, como qualquer outra ocupação. Se
expandirmos a analogia do que obviamente chamamos de trabalho – qualquer coisa que exija
energia analítica, intelectual, emocional – então seremos capazes de ver que todo tipo de
coisas normalizadas, por exemplo, características pessoais e coisas desse tipo, são tarefas
desempenhadas, que precisam de um tipo de esforço, de treinamento, e assim por diante.
Então, não falarei de uma pessoa comum como essa ou aquela pessoa, nem como uma
média; isto é, como uma pessoa não excepcional assim considerada a partir de alguma base
estatística, mas como algo que é o modo como alguém se constitui e, de fato, uma ocupação
na qual uma pessoa e as pessoas em volta dela se engajam para conseguir que cada uma delas,
juntas, sejam pessoas comuns.
Uma questão fundamental é: como as pessoas fazem para se ocuparem em "ser
comuns"? Inicialmente, a resposta é fácil. Um dos modos de ocupar-se em "ser uma pessoa
comum" é passar o tempo de formas normais, ter pensamentos normais, interesses normais,
de modo que tudo que se tem que fazer para ser uma pessoa comum à noite é ligar a televisão.
Agora, o truque é ver que não é que aconteça de você estar fazendo o que milhares de outras
pessoas comuns estão fazendo, mas que as pessoas sabem que o modo de "passar uma noite
comum", para qualquer pessoa, é fazer isso. Não é que de repente eu decida: "vou ver TV
hoje à noite", mas que eu desempenho uma tarefa e encontro uma solução para a questão de
"como ser comum” hoje à noite. (Algumas pessoas, de brincadeira, poderiam dizer: "Vamos
ser comuns esta noite, vamos ver TV, comer pipoca", etc. Algo que eles sabem que está sendo
feito por milhões de outras pessoas).
Então, uma parte do trabalho é que temos de saber o que qualquer um/todo mundo está
fazendo, fazendo de forma comum. Além disso, temos que ter disponibilidade para fazer o
mesmo. Há pessoas que não têm disponibilidade para fazê-lo e que, especificamente, não
podem ser comuns.
Se, por exemplo, você estiver numa prisão, num quarto sem nenhum recurso; digamos
que haja um banco e um buraco no chão e uma torneira; então você se pega fazendo coisas
como explorar sistematicamente as rachaduras na parede do teto ao chão, durante anos, e
passa a ter certas informações sobre a parede da cela que pessoas comuns não têm sobre a
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parede de seus quartos. (Talvez as paredes de prisões sejam mais interessantes que outras, já
que, dentre outras atividades com as quais os prisioneiros se ocupam, existe a prática de
deixar informações de que estiveram lá, então há o que ser lido nas paredes). Mas não é algo
comum de se dizer: "Bem, acho que esta noite vou examinar aquele canto do teto".
Claro, é perfeitamente possível para qualquer pessoa passar uma tarde olhando para
uma parede. Você poderia escolher fazer isso. Se você toma drogas, você tem permissão de
fazê-lo. Mas, a menos que tome drogas, você não se sentiria autorizado a fazer isso, mesmo
sem ninguém por perto. Isso significa dizer que, sendo uma pessoa comum, isso não é algo
que você se permita passar o dia fazendo. E há uma gama infinita de possibilidades, de coisas
a fazer, que você não se permitiria fazer. No meio de uma tarde ou de uma noite entediante,
prefere-se passar pelo tédio da forma usual – qualquer que seja – do que ver se seria mais ou
menos entediante examinar a parede ou observar algum detalhe da árvore pela janela.
Existem, é claro, pessoas cuja profissão é fazer esse tipo de observação. Se
pegássemos os cadernos de anotações de escritores, poetas, novelistas, provavelmente
encontraríamos estudos elaborados de pequenos objetos reais. Por exemplo, nos cadernos do
poeta Gerard Manley Hopkins, há extensas e detalhadas observações naturalistas de
formações de nuvens ou da aparência de folhas sob diferentes tipos de luz, e assim por diante.
E os cadernos de alguns romancistas contêm observações extensas e detalhadas de
personagens e aparências.
Agora, há um lugar nos escritos de Freud onde ele diz: "Quando se trata de assuntos
como química ou física, leigos não se aventuram a dar opiniões. Com a psicologia é bem
diferente. Qualquer um se sente livre para fazer comentários psicológicos". Parte da função
que ele achava que cabia a si era mudar isso; isto é, desenvolver a psicologia e conjuntamente
educar os leigos, para que estes se conscientizassem de que não sabem nada sobre ela e de que
há pessoas que sabem, de modo que deixassem essas questões para os especialistas, assim
como aprenderam a deixar a química e a física para os especialistas.
Minha idéia é a de que, assim como acontece com a química e a física, assim deve
acontecer com a realização de observações distintivas sobre o mundo e as pessoas. É uma
coisa que, sendo uma pessoa comum, você simplesmente não faz. Para uma ampla gama de
coisas que você pode imaginar como sendo empolgantes, oferecemos algo como a conversa a
seguir (e não foi inventada, é real). Uma moça falando sobre o homem que encontrou na noite
anterior:
Ele é um cara bem legal, de verdade. Um cara muito legal mesmo. Então a gente tava
falando de um monte de coisas e se divertindo mesmo, bebendo um pouco, essas coisas, e ele
é muito tranqüilo. Ele é inteligente e ah, não é bonito, mas tem uma aparência boa, e muito
legal mesmo, agradável, muito agradável, um amor.
Você não ouve de alguém que está "sendo comum" um relato sobre o jogo de luz no
copo de bebida, ou sobre o conjunto formado por suas sobrancelhas, ou sobre o timbre da sua
voz.
Eu acho que não é que você possa fazer tais observações e depois não incluí-las na
história, mas sim que o modelo mental de ocupar-se em "ser comum" diz que sua ocupação na
vida é essencialmente ver e relatar somente os aspectos usuais de qualquer cena usual
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possível. Isso significa dizer que o que você procura é ver como qualquer cena em que esteja
inserido pode se tornar uma cena comum, normal, e é isso que a cena é.
Agora vocês podem ver claramente que isso pode ser uma profissão, que isso pode ser
trabalho. A cena, num primeiro momento, não se apresenta ou se define simplesmente como
insuportavelmente comum, e ponto final. É uma questão de como você vai abordá-la. O que
você vai ver nela? As pessoas normalmente monitoram as cenas por causa da possibilidade de
se tornarem histórias. Dou-lhes um exemplo repulsivo disso, de um livro chamado An
Ordinary Camp (1958ii) de Micheline Maurel. Ela relata o primeiro dia num campo de
concentração. As primeiras horas são aterrorizantes. Depois as coisas se acalmam. "Aos
poucos, a conversa se espalhou de tenda a tenda. Os boatos já começavam a circular. Por
sorte, a notícia era boa. Estaremos em casa logo. Teremos uma experiência incomum para
contar". Um modo encontrado para lidar com o evento enquanto ele ainda se passava foi
pensar que, no final, ele teria sido uma boa história. Você pode ver uma experiência com
potencial para deixar uma pessoa totalmente sem esperanças como maravilhosamente
relevante por ser capaz de sobreviver a ela. E, com certeza, você já teve a experiência de estar
em cenas cuja virtude era a de, enquanto passava por ela, poder-se ver o que depois seria
contado aos outros.
Aparentemente, existem muitas coisas que, pelo menos em algum ponto da vida das
pessoas, são feitas só para isso; ou seja, parece certo supor que haja uma época, quando
meninos e meninas brincam de "beijar e contar", em que eles beijam só para ter alguma coisa
para contar, eles não beijam por acaso e depois contam por acaso, ou querem beijar e depois
acabam contando, na verdade, parece que o que os faz gostar do beijo é o fato de gostarem de
contar.
Então parece bem óbvio que as pessoas monitorem as cenas em que estão em busca de
suas características "historiáveis". E, contudo, o fato extraordinário e incrível é que elas
acabam saindo sem nenhuma característica "historiável". Ao que parece, qualquer um de nós
com capacidade de usar as palavras pode encontrar nesta meia-hora, ou na próxima, um
grande número de coisas para dizer. Mas há o trabalho de ser uma pessoa comum e esse
trabalho inclui olhar para o mundo, para si mesmo, para os outros, para os objetos, de modo a
ver como é que aquela é uma cena comum. E quando contamos o que aconteceu,
apresentamo-lo da maneira normal: "Nada demais", ou usando quaisquer outras variantes de
descrições banais; isto é, não há diferença particular entre dizer "Nada demais" e "Não deu
pra ver".
Suponho que todos vocês já tenham ouvido as descrições usuais de "nossa sociedade
protestante"
ou
"nosso
passado
puritano",
que
dizem
que
pessoas
comuns/americanos/europeus são construídos de um jeito que os impede de ter várias
experiências que eles poderiam ter, não fossem eles reprimidos. Pensamos nos tipos de
repressão que as pessoas têm cujas bases são sociológicas; ou seja, a ética puritana envolve
passar a maior parte do tempo trabalhando, resistir ao prazer, coisas nas quais pensamos como
definitivamente representativas de uma pessoa comum na civilização ocidental. Embora isso
seja sabidamente importante, deixa escapar uma parte essencial da coisa, que é a seguinte:
tendo ou não experiências ilegítimas, a característica de ser uma pessoa comum é que, mesmo
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quando se têm as experiências ilegítimas que não se deveria ter, estas ocorrem da mesma
forma comum que ocorrem para qualquer pessoa que passe por uma experiência ilegítima.
Quando você tem um caso amoroso, toma drogas, comete um crime, e assim por
diante, você descobre que teve a mesma experiência comum que outros que fazem o mesmo
têm. Então, poderíamos muito bem remover a restrição puritana, como dizem que está sendo
removida, e o modelo mental comum, contudo, estaria lá para preservar o modo como nos
ocupamos em "ser comuns". Relatos de experiências aparentemente ultrajantes, as quais
imaginaríamos que deixariam as pessoas sem palavras, ou sobre as quais esperaríamos ouvir
detalhes extraordinários, acabam sendo feitos de modo que percebemos a experiência como
totalmente corriqueira.
Acho que agora vocês podem levar essa questão consigo e, observando a si mesmos
vivendo no mundo – ou a outras pessoas, se for mais prazeroso – vocês as verão trabalhando
para encontrar formas de tornar tudo "comum". Supostamente, seria a partir desse tipo de
percepção consciente, por exemplo, da facilidade com que, habitualmente, vemos somente as
características mais comuns das pessoas que passam por nós (aquele é um casal, aquele é um
cara negro, aquela é uma senhora de idade), ou da aparência de um pôr-do-sol, ou do que
consiste uma tarde com a namorada ou namorado, que podemos começar a nos dar conta de
que há um mecanismo de força imensa operando em nossas percepções e pensamentos, além
dos fatores conhecidos e imensamente poderosos como a química da visão, e assim por
diante.
Esse tipo de coisa não explicaria como você acaba por ver, por exemplo, que nada
demais aconteceu, que você pode voltar para casa dia após dia, e, se alguém perguntar o que
aconteceu, relatar, sem omitir, que nada aconteceu. E, se você estiver omitindo algo, aquilo
que você está omitindo, se fosse relatado, pareceria não ser nada demais. E, do modo como
acontece com você, também acontece com aqueles que você conhece. Além disso, arriscar-se
a não ser comum tem méritos e custos desconhecidos. Isto é, se você volta para casa e relata
como a grama estava ao longo do caminho, que havia quatro tons visíveis de verde, alguns
dos quais apareceram somente ontem por causa da chuva, então o seu destinatário pode
demonstrar alguma tensão. E se você fizer isso sempre, as pessoas podem imaginar que há
algo estranho com você, que você é pretensioso. Você pode achar que eles invejam você.
Você pode perder amigos. Ou seja, talvez você queira pesar os custos de arriscar a tornar sua
vida uma epopéia.
Agora, também é o caso de dizer que existem pessoas que têm direito a tornar suas
vidas uma epopéia. Existe, para nós, uma série predeterminada de pessoas, lugares e objetos
historiáveis, e eles permanecem como algo diferente de nós. Pode ser que em quase todos os
círculos exista alguém sujeito a todas as observações claras, como existe, para a sociedade em
geral, um conjunto de pessoas sobre as são feitos quais relatos detalhados, relatos que não
apenas seriam arriscados de serem feitos a respeito de outras pessoas, mas que também nunca
seriam pensados a respeito de outras pessoas. A maneira como Elizabeth Taylor deu a volta
por cima é algo notável e que merece ser relatado. A maneira como a sua mãe deu a volta por
cima é algo imperceptível, muito menos narrável.
O caso é que a ocupação de quase todos é ser comum profissionalmente. As pessoas
assumem a tarefa de manter tudo absolutamente normal. Não importa o que aconteça, quase
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todo o mundo está ocupado somente em encontrar uma forma de fazer tudo continuar comum,
com todo o esforço possível. E é realmente extraordinário ver o esforço das pessoas para
alcançar a percepção de que "nada aconteceu" nos eventos mais catastróficos. Eu venho
juntando fragmentos retirados de jornais sobre seqüestros de avião, e o que os passageiros
pensam quando ocorre um seqüestro. O último que encontrei diz algo assim:
Eu estava caminhando em direção à frente do avião e vi a aeromoça de pé, de frente
para a cabine, e um rapaz parado com uma arma nas costas dela. Meu primeiro pensamento
foi "ele está mostrando a arma para ela", e então percebi que não podia ser isso, e ficou claro
que ele estava seqüestrando o avião.
Um outro, sobre o seqüestro de avião polonês, foi assim. O avião está agora sendo
seqüestrado, e o rapaz relata: "Eu pensei comigo mesmo, nós acabamos de ter um seqüestro
polonês mês passado, e já estão fazendo um filme sobre isso". Um exemplo classicamente
dramático, quase universal, é o de que o primeiro relato do assassinato do presidente Kennedy
foi sobre terem sido ouvidos tiros.
Agora, imagine reescrever os eventos monumentais do Antigo Testamento com
pessoas comuns tomando parte deles. O que elas ouviriam ou veriam, por exemplo, quando
vozes chamassem por elas, quando começasse a chover, e assim por diante. Sem dúvida,
existe um lugar no Antigo Testamento em que encontramos tal ocorrência. Ló é avisado da
queima de Sodoma e Gomorra, e lhe é permitido tirar suas filhas e genros. "Então saiu Ló e
falou a seus genros, que casaram com suas filhas, e disse: Levantai-vos e saí deste lugar,
porque o Senhor há de destruir esta cidade. Acharam, porém, que ele gracejava com eles". E
ficaram para trás.
Vamos voltar, agora, a alguns fragmentos de conversa, retirados de telefonemas
gravados, nos quais eventos dramáticos, a sua maneira, são relatados. Ao olhar estes relatos,
podemos começar a perceber um pouco do trabalho envolvido na ocupação de ser comum.
Jean:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Jean:
Hello,
(0.4)
Jean.
Yeah,
(0.4)
Well I just thought I1d re-better report to you what’s happened at
Cromwell’s toda:y=
=What in the world ha:ppened. [hhh
[Did you have the day o:ff?
Ya:h?
(0.3)
Well I: got out to my car at fi:ve thirty I: drove arou:nd and of
course I had to go by the front of the sto:re,=
=Yeah?=
And there were two (0.2) police cars across the street and leh-e
colored lady wanted to go in the main entrance there where the
si:lver is and all the [(
),] (things).
[Yeah,]
(0.4)
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Ellen:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Jean:
Jean:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Ellen:
Jean:
Ellen:
Jean:
A:nd, they wouldn’t let her go i:n, and he, had a gu::n,
(0.2)
He was holding a gun in his hand a great big lo:ng gu::n?
Yea:h?
And then over on the other si:de, I mean to the right.of there,
where the (0.2) employees come ou:t, there was a who:le, oh:: must
have been ten uh eight or ten employees standing there, because
there must have been a:, it seemed like they had every entrance
ba:rred. I don’t know what was goin[g o:n]
[Oh my Go:d,
Alô.
(0.4)
Jean.
É,
(0.4)
Bom, pensei em... que seria melhor contar pra você o que aconteceu
hoje no Cromwell’s.
O que houve. [hhh.
[Você tava de folga?
Tava?
(0.3)
Bem, e:u saí de carro às ci:nco e meia e fui dar uma volta, e,
claro, tive que passar em frente à lo:ja,=
=Ahn?=
E dois (0.2) carros da polícia estavam do outro lado da rua e uma
ne-e uma senhora de cor queria entrar pela porta principal onde
fica a prataria e todas as [(
)] (coisas).
[Ahn, ]
E:, não queriam deixá-la entra:r, e ele, tinha uma a::rma?
Ele tava com a arma na mão, uma arma grande, de cano longo.
Ah:n?
Então, do outro lado, quer dizer, à direita de lá, onde os (0.2)
funcionários saí:am, havia um mo:nte de, a::i, devia ter uns dez é
oito ou dez funcionários parados lá, porque devia ter uma:, parecia
que tinham barra:do todas as entradas. Não sei o que estava
acon[tece:ndo.
[Meu Deus!
Vamos olhar os materiais mantendo os eventos em mente, analisando o que estava
acontecendo e brincando com a fala em referência a alguma forma de considerar o que estava
acontecendo. Eu tenho em mente algo assim: quando essa senhora interpreta os eventos, ela
os interpreta de forma a descobrir como o fato de a polícia estar lá inclui que estavam lá
legitimamente.
Podemos notar, ao menos hoje em dia, que a presença legítima da polícia tornou-se um
tipo de fenômeno distribucional, ou seja, enquanto a senhora é capaz de usar a presença da
polícia para descobrir o que estava acontecendo, considerando que a polícia devia mesmo
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estar por lá, outras pessoas podem ver a mesma cena, com o mesmo grupo, e considerar que a
polícia não tinha nada a ver com o que estava acontecendo. Quer dizer, se a ação acontecesse
em um bairro negro, visto por pessoas negras, então "exatamente a mesma cena" talvez se
tornasse, pela percepção do grupo, um fenômeno completamente diferente.
Existem lugares onde a polícia pode contar com a presença de dois de seus carros para
sustentar sua presença visível e legítima, de forma que os outros vão, então, vasculhar a cena
para descobrir o que a polícia está fazendo que devesse estar fazendo e, por exemplo, notar
que alguém está tentando entrar pela entrada em que se encontra a prataria. Ao passo que
existem outros que não irão ver de forma alguma os eventos dessa maneira, mas que, ao ver
dois carros de polícia na cena, podem olhar para ver que tipo de incômodo a polícia, por estar
na cena, está causando, em comparação ao tipo de incômodo a que eles estão apropriadamente
respondendo.
Esse tipo de organização diferencial de uma mera percepção de um evento é de
importância considerável para a maneira pela qual a presença da polícia na cena conta às
pessoas que, embora exista um problema, está tudo bem. Por exemplo, que essa senhora pode
passar direto pela cena sabendo que as coisas estão mais ou menos controladas, que algo está
acontecendo, mas a polícia irá cuidar disso, em vez de pensar que algo está acontecendo e que
a polícia o está fazendo acontecer.
Esse tipo de fenômeno tornou-se acentuadamente distribucional, e você deve aprender
a perceber a dificuldade envolvida quando grupos falam uns com os outros imaginando que o
que cada um deles estava fazendo era apenas ver o que estava acontecendo. Isto é, a noção de
que questões distribucionais estão envolvidas fica inacessível para os dois grupos devido ao
fato de que estão apenas examinando a cena para ver o que está acontecendo. Eles não estão
discutindo nada, nem imaginando nada. Estão vendo a cena organizada de alguma forma. E
dizer a eles que estão imaginando-a, ou que estão se justificando, já que você sabe
perfeitamente o que havia para ser visto devido ao que você viu, é colocá-los em uma posição
na qual eles não poderiam, de verdade, chegar a entender do que você está falando.
Isso demonstra o fato de que cada grupo está comprometido, de uma forma específica,
com uma confiança na visão, sem nenhuma concepção do que entendem por "visão".
Podemos propor aqui um debate acerca dos tipos de perplexidade absoluta pela qual as
pessoas passam em relação aos tipos de alegações que os outros fazem, por exemplo, sobre a
polícia e o que ela está fazendo, quando cada grupo imagina que está apenas relatando o que
viu, e não se justificando por o que quer que seja, estando perfeitamente dispostos a serem
justos. Essa senhora não está elaborando um relato de direita. O que ela está fazendo é apenas
relatar o que ela viu. Dizer a ela que não foi isso que aconteceu é atacar o tipo de confiança
que ela tem, e deveria ter, no que ela simplesmente vê; é propor uma situação com a qual seria
muito desconfortável conviver; é arruinar algo em que uma enorme carga de ideologia, de
certa forma ocidental, levou-a a acreditar que ela deveria, de fato, confiar.
A questão é que, grosso modo, trata-se de algo cultural e temporalmente distribucional
o fato de as pessoas confiarem ou não em seus olhos. Mesmo pessoas como os acadêmicos,
que imaginam estar correspondendo às "fundações ideológicas da percepção", podem não
usar esse tipo de correspondência para chegar a perceber a falta de confiança na visão que
algumas culturas têm. Os acadêmicos vêem isso como um tipo de antiempirismo, o qual pode
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não ser de forma alguma antiempirismo, mas que, à luz dos tipos de problemas em que as
pessoas se envolvem quando levam a sério uma orientação culturalmente ordenada de visão,
um foco sobre outros sentidos poderia parecer mais bem sucedido. O fato de as pessoas
desconfiarem sistematicamente do que vêem poderia não ser abordado como "De que forma
podem eles sobreviver com essa mágica visão das coisas?", mas como uma posição
perfeitamente empírica.
Uma outra coisa (entrando outra vez nos tipos de áreas problemáticas delicadas),
aquela senhora está por demais confortável como testemunha da cena. Contudo, você pode
muito bem imaginar como ela não se veria de maneira alguma como uma testemunha. No seu
relato, por exemplo, não existe nenhuma pista demonstrando qualquer interesse em parar e
ajudar, ou qual preocupação com o que vai acontecer.
Mais importante que isso, não existe nenhuma pista de que ela tenha tido qualquer
medo de que, de alguma forma, o policial se virasse para ela e a perguntasse o que ela estava
fazendo lá. O grande conforto na inocência dela, e no status de espectadora legítima que ela
tem, é algo a que nós deveríamos dar real atenção, ao menos dessa forma. Este tipo de coisa
que sabemos que pode ser facilmente abalado. Existem tempos e lugares nos quais alguém
não sentiria todo este conforto ao passar por tal cena e, você pode imaginar, calcularia "Ai,
meu Deus, estou aqui, a primeira coisa que vai acontecer é que vão pensar que estou
envolvido".
Isso nunca se manifestou para aquela senhora. E até que se manifeste para ela, ela não
poderá ter nenhum senso de empatia com, por exemplo, um garoto no gueto. E apesar disso,
eu creio que você poderia fazê-la ver isso, ou seja, você poderia mostrar a ela como seu
completo sentido de inocência afeta toda a maneira como ela vê a cena. Não existe nenhum
medo por parte dela de que alguém possa se enganar e tomá-la como parte da cena, embora
ela esteja disposta a apontar outros como não testemunhas, conferindo-lhes o status de parte
da cenaiii.
Novamente, não existe nenhum sentimento por parte dela de que devesse fazer algo, e
ninguém imaginaria que ela devesse sentir que precisasse fazer algo. Esse tipo de confiança
na habilidade da polícia, que está lá para cuidar do que for necessário, e que cuidará disso
bem, é um outro aspecto da maneira pela qual, sendo uma testemunha, ela pode ser uma
testemunha completa. Uma pessoa pode levar em conta, quando está se ocupando em "ser
uma testemunha da cena", as condições sob as quais o seu status de testemunha poderia ser
transformado de diferentes formas. Uma delas é tornar-se alguém (por exemplo, a senhora no
carro próximo ao seu ou o homem do outro lado da rua) que poderia ser visto por outros não
como uma testemunha, mas possivelmente como "um carro se afastando da cena", como "o
ladrão em fuga". Ou, não que você seja uma testemunha de uma cena em que está tudo sob
controle, mas que você seja alguém que está friamente passando por ela.
Eu levanto essas possibilidades, porque se você lesse a história, você poderia ter plena
certeza de que tais assuntos nunca passaram pela cabeça dela, e pode então pensar em cenas
em que você esteve envolvido, ou outros estiveram envolvidos, e daí questiornar se tais
assuntos realmente surgem ou não, e então focar nas condições que levariam alguém como
aquela senhora a, pelo menos, pensar que o policial vai atirar nela, ou dizer para ela parar, ou
que mais alguém poderia vê-la e perguntar o que ela estava fazendo lá.
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Vamos, agora, ao segundo fragmento. Este ocorre após algum tempo de telefonema.
Madge:
Bea:
Madge:
Bea:
Magde:
Bea:
Magde:
Bea:
Magde:
Bea:
Magde:
Bea:
Magde:
Bea:
Magde:
Bea:
Bea:
Madge:
Bea:
Madge:
Bea:
Madge:
Bea:
Madge:
Bea:
Madge:
Bea:
Madge:
Bea:
Madge:
Bea:
Madge:
Say did you see anything in the paper last night or hear anything
on the local radio, .hh Ruth Henderson and I drove down, to,
Ventura yesterday.
Mm hm,
And on the way home we saw the -- most gosh awful wreck.
Oh:::
We have ev- I’ve ever seen. I’ve never seen a car smashed into it
and there were people laid out and covered over the pavement,
Oh:::
It was smashed, -- .hh from the front and the back both. It must
have been in- caught in, between two car::s,
[Mm hm, uh huh
[Must have run into a car and then another car smashed into it and
there were people laid out and covered over the pavement,
Mm
We were s- parked there for quite a while. But I was going to,
listen to the local r-news and haven’t done it.
No I haven’t had my radio on either.
Well I had my television on, but I was listening to uh the blast
off, you know.
Mm hm,
The uh ah- [astronauts.
[Yeah.
Yeah,
And I, I didn’t ever get any local news
Uh huh,
And I wondered.
Uh huh, no, I haven’t had it on …
Me diz uma coisa, você viu algo no jornal ontem à noite ou ouviu
pelo rádio local, .hh Ruth Henderson e eu fomos de carro pra,
Ventura ontem.
Mm hm,
E no caminho de volta vimos uma -- batida horrível, a pior
No::ssa
que nós já- que eu já vi. Eu nunca vi um carro esmagado paradentro de um espaço tão pequeno.
No::ssa
Estava amassado, -- .hh na frente e atrás também. Deve ter ficado
agarrado em- preso, entre dois ca::rros,
[Mm hm, ãrrã
[Deve ter colidido em um carro e então outro carro bateu nele e
havia pessoas caídas e cobertas na calçada.
Mm
Ficamos p- estacionadas lá por um bom tempo. Mas eu ia, ouvir o jnoticiário local e não fiz isso.
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Bea:
Madge:
Bea:
Madge:
Bea:
Bea:
Madge:
Bea:
Madge:
Bea:
Não não tinha ligado meu rádio também.
Bem, minha televisão estava ligada, mas eu estava assistindo ao eh
à partida do foguete, você sabe.
Mm hm
Os ah a- [astronautas.
[É.
É,
E eu, não cheguei a ouvir nenhuma notícia local.
Ãrrã,
Aí eu pensei.
Ãrrã, não, não cheguei a ligar …
Anteriormente, eu estava falando sobre as restrições impostas às experiências
pelo "modelo mental comum". Quero agora enfocar o direito a ter experiências. Quero sugerir
que, ao ter testemunhado esse evento, e ao tê-lo sofrido também, de alguma maneira (por
exemplo, por ter tido que parar em um engarrafamento na rodovia por causa disso), ela passou
a ter direito a uma experiência. O fato de ela ter direito a uma experiência é algo diferente
daquilo a que seu destinatário tem direito, ou daquilo a que alguém que de alguma outra
forma tenha se deparado com essa história tem direito.
Em parte, estou dizendo que é um fato que os direitos às experiências estão
disponíveis de formas diferenciadas. Quando falo de direito, você pode pensar no assunto
como não tendo direito a ele, mas isso é apenas parte da coisa. Outra parte envolve também
não chegar a sentir absolutamente nada, comparado a sentir algo e achar que não tem direito a
isso. A idéia é a de que, ao se deparar com um evento, como testemunha ou como alguém que
o sofreu em parte, tem-se o direito a uma experiência, enquanto que o mero fato de se ter
acesso a coisas do mundo, por exemplo, de vir a conhecer a história através de outro, é uma
coisa bem diferente.
Uma maneira de ver a questão é perguntar: o que acontece a histórias como essa uma
vez que são contadas? Tornam-se propriedade do destinatário da mesma forma que pertencem
a quem as conta? Isto é, quem conta tem o direito de contar a história, e, ao fazê-lo, dá suas
credenciais (para seus direitos de contar a história) mencionando o fato de que viram o
evento, de que o sofreram. Agora a pergunta é: o destinatário de uma história vem a possuí-la
da maneira que o narrador a possui, ou seja, pode o destinatário contá-la para outrem, ou
senti-la como o narrador se sente por aqueles eventos?
Por exemplo, você pode, ao ver um acidente de automóvel com pessoas caídas, sentirse péssimo, chorar, ter o resto de seu dia arruinado. A questão é: o destinatário dessa história
está habilitado a sentir o mesmo que você? Acho simplesmente que não. Quer dizer, se você
chama um amigo seu que não tem ligação com o evento que está contando, isto é, alguém que
não seja primo, ou tia, de alguém que morreu no acidente, mas somente alguém a quem você
contou uma experiência ruim, então, se o destinatário ficar tão perturbado quanto você, ou
mais até, algo estranho está acontecendo, e você pode até se sentir injustiçado – embora isso
seja algo estranho a se sentir.
Agora, um motivo pelo qual levanto toda essa discussão, e uma maneira pela qual isso
é importante, é o fato de que poderíamos pelo menos imaginar uma sociedade na qual aqueles
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que experimentaram algo, tendo-o visto e sentido, pudessem preservar não só o conhecimento
do evento, mas também o sentimento provocado por ele, ao contar a outros. Ou seja, se eles
pudessem senti-lo, então todos a quem contassem poderiam senti-lo. Então, claramente, esse
estoque de experiências que os outros por ventura tiveram não dependeria dos eventos com os
quais chegaram a se deparar, mas poderia depender dos eventos que alguém com quem já
conversaram veio a se deparar - como pensamos em um estoque de conhecimento que temos.
Em outras palavras, se eu disser algo no qual você venha a acreditar, você tem o
direito a tê-lo. E você aceita que o estoque de conhecimento que você tem é algo que você
pode adquirir onde quer que o encontre, e ele é seu para guardá-lo. Mas o estoque de
experiências é um conjunto de coisas construído de maneira completamente diferente. Como
eu digo, para ver que isso é assim, podemos simplesmente, por exemplo, distinguir o modo
como lidamos com uma informação e o modo como lidamos com a experiência de outra
pessoa, e depois chegar a perceber que experiências ficam então isoladas, em vez de serem
por si mesmas tão produtivas quanto o são as informações.
Agora, esse fato obviamente importa muito, de todas as maneiras possíveis. Dentre
elas, temos que, se o fato de ter uma experiência é a base para ser incentivado a fazer algo a
respeito das coisas das quais essa experiência é uma instância (por exemplo, o estado das
auto-estradas, o estado dos automóveis, o estado de qualquer coisa), então, claramente, a base
para se realizar coisas é radicalmente enfraquecida sempre que aqueles que recebem sua
história não possam se sentir da mesma forma que você tem direito a se sentir.
Certamente, não há motivos para restringir a questão a sentimentos negativos. Claro, o
que afirmamos serve para a alegria também. Trata-se de um problema especificamente
observável o fato de a alegria não ser produtiva, mas o fato de aqueles que têm tal experiência
como tendo direito a estar alegres, ao contar a outros, estes podem se sentir "bem por você",
mas há limites acentuados sobre o quão bem eles podem se sentir por isso, e, também, limites
mais acentuados sobre o bom sentimento que eles podem dar a uma terceira pessoa com a
história.
Novamente, se pensarmos sobre isso, poderemos talvez ver simplesmente que direitos
limitados não é algo intrínseco à organização do mundo, mas é um jeito que nós, de alguma
maneira, chegamos a perceber e a sentir a experiência, ou o jeito como fomos ensinados a
fazer isso, o que é completamente diferente das maneiras como pensamos a respeito do
conhecimento. Presumo que, se quiséssemos, poderíamos iniciar uma discussão histórica na
qual, de algum modo, o conhecimento fosse capaz de atingir um status por si mesmo diferente
daquele da experiência, embora alguém pudesse talvez encontrar bases para tentativas de se
afirmar o mesmo, por experiência própria, que falharam. Casos óbvios são, por exemplo,
tentativas de religião universal, que são tentativas de preservar um tipo de sentimento que
alguém teve alguma vez, ao deparar-se com algo ou alguém, e da qual a história toda que
temos é a de que não funcionou. É extremamente difícil espalhar alegria. É extremamente
fácil espalhar informação.
Agora, essa é uma ordem de coisa – o caráter distribucional da experiência e a
importância de seu caráter distribucional para, digamos, os problemas e as alegrias do mundo,
em, digamos, contraste acentuado com o conhecimento e seu caráter distribucional. Você
deve imaginar que, em relação aos direitos/habilidades das pessoas de ter experiências, seria
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um tipo de fato severo demais se cada um estivesse restrito àqueles eventos do qual participou
ou que testemunhou, mas essa ainda não é a história completa dos tipos de restrição que são
impostas à possibilidade de se ter uma experiência.
O segundo tipo de restrição é: se você terá uma experiência por direito, então você terá
de ter a experiência à qual você tem direito. Você poderia imaginar que, tendo severas
restrições sobre suas chances de ter experiências, o que depende, por exemplo, de algo,
importante de alguma forma, que venha a cruzar seu caminho, ou que cujo caminho você
venha a cruzar, isso tendo acontecido, bem, então você já está quase lá. Uma vez que tivesse
conseguido, você poderia fazer com isso o que quisesse. Não. Você tem que formar a coisa
como ela é comumente, e aí misturar sua experiência com isso.
Em outras palavras, os direitos de ter experiência por virtude de, digamos, deparar-se
com algo como um acidente, são somente direitos de ter visto "outro acidente", e talvez de ter
sentido por isso, mas não, por exemplo, de ter visto Deus nisso. Não se pode ter um colapso
nervoso porque você por acaso viu um acidente de automóvel. Você não pode dar mais
importância a isso do que qualquer pessoa daria. Então, podemos pensar sobre como você tem
direito a ter uma experiência assim: você toma emprestada por um tempo aquela experiência
que está disponível, em comparação a você agora inventar a experiência à qual você pode ter
direito.
Mas já que se está tão nitidamente restringido em relação às ocasiões de se ter uma
experiência, então, provavelmente, as pessoas ficam bastante felizes em aceitá-las da forma
como acontecem. Isto é, você não conseguirá muitos sentimentos novos surpreendentes, ou o
que seja, a partir dessa experiência, mas é a única experiência que você tem uma chance
legítima de ter, então você também pode tê-la. Você pode igualmente formular essa história
do acidente de carro como uma história comum de um acidente, em vez de tentar transformála em algo que poderia ocasionar que você está realmente buscando experiências. Claro que
as pessoas são facilmente vistas buscando experiência em algo que alguém conhece como
"apenas um acidente", "apenas alguma coisa", e que elas fazem disso a ocupação da vida.
A esse respeito, há várias maneiras de o narrador dessas histórias retransmitir
para nós como ela começou a amarrar essa experiência. Quer dizer, o que ela fez disso não é
apenas contado na história, mas é contado de outras maneiras.
Dentre as maneiras pelas quais ela começa a localizar o tipo de experiência que esse
evento foi, está o fato de que ela não conta isso logo no princípio da conversa (fato que não
está disponível para você no excerto), mas em algum lugar no meio da conversa. Você verá
que histórias são diferenciadas de forma específica, em termos de importância para quem as
conta, de acordo com o momento em que o narrador as expõe na conversa.
Assim, por exemplo, uma das maneiras que o narrador tem para apresentar uma
história como realmente importante é contá-la logo de início. E uma maneira de fazê-la mais
importante do que ela é é telefonar para alguém para contá-la quando imagina que tal pessoa
não está disponível para ouvir, por exemplo, no meio da noite. As histórias são classificadas e
expressam seu status por meio do ato de telefonar para alguém e dizer, "Eu sei que estava
dormindo, mas...", onde o problema não é a pessoa estar dormindo, mas você telefonar
quando ela está dormindo, porque se você não chamá-la a essa hora, se lhe telefonar quando
estiver acordada, você já terá dito a ela algo sobre a história; isto é, a história não é tão
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importante quanto, do contrário, você pode querer que pareça. Então, o posicionamento da
história na conversa e o posicionamento da conversa na vida do destinatário são maneiras de
localizar a importância da história.
Então, claro, a narradora também conta aspectos da importância da história no contar
em si. Por exemplo, apesar de aquela ter sido uma experiência importante o suficiente para ela
dizer a si mesma "vou ouvir o rádio", outras coisas desviaram-na da realização de seu intuito.
Ela não tem vergonha de dizer que, em vez disso, ela assistiu ao seriado dos astronautas, uma
ação que, obviamente, para outra história qualquer, seria completamente perversa. Para essa
história, não há problema algum, e trata-se de uma maneira de localizar como os eventos
importam, isto é, produzi-lo enquanto indica que se fosse para escolher entre tentar descobrir
mais sobre o assunto ou ver os astronautas, ela assistiria aos astronautas.
Paralelo a isso, ela poderia ir para casa e cuidar de sua vida, em comparação a, por
exemplo, ir para casa e dormir, ou ter pesadelos durante a noite toda, ou perceber que aquilo
interferiu de outras maneiras na vida que ela levava quando do acontecido. Ela estava indo
para casa, houve um acidente, ela foi detida por um tempo, e depois foi para casa e assistiu
aos astronautas. Essa é simplesmente uma maneira de localizar o quanto a história importa, e
é simplesmente uma maneira apropriada para essa história. Se ela tivesse dito "arruinou o
resto do meu dia", "eu fiquei tremendo toda", "fui ao médico", "tive pesadelos", então sua
amiga poderia dizer "bem, você é sensível demais". Então esse negócio de o personagem da
experiência se encaixar no status convencional do evento é algo com o qual lidamos ao contar
uma história.
O meio inicialmente mais suave de formulação que podemos ter é, pelo menos, dizer
que, embora muitas pessoas imaginem que a experiência é uma grande coisa, e aparentemente
ao menos algumas pessoas são afoitas por ter experiências, estas são coisas reguladas da
forma mais extraordinária e cuidadosa. As ocasiões de ter direito a elas são cuidadosamente
reguladas, e então a experiência à qual você tem o direito nessa ocasião à qual você tem o
direito é ainda mais cuidadosamente regulada. Levando em conta que parte da experiência
envolve falar sobre ela, então o falar sobre ela constitui uma maneira pela qual aquilo que
você pode deduzir em seu íntimo do evento está sujeito ao controle de uma apresentação
aberta, mesmo para alguém considerado amigo.
Isto é, seus amigos não vão te ajudar, em geral, quando você contar alguma história
para eles, a menos que você lhes conte a história da maneira que qualquer um contaria a
alguém. Então, eles ficarão apropriadamente entretidos ou sentidos. Caso contrário, você irá
perceber que eles estão te observando para ver se você, por exemplo, está aumentando algo ao
qual você não tem o direito de fazer parecer tão grande assim, ou diminuindo algo que deveria
ser maior, ou deixando de ver algo que deveria ter visto, tudo que poderia ser deduzido por
virtude da maneira como você necessariamente formulou a coisa.
Agora, não vou dizer para abolirmos as maneiras pelas quais nos ocupamos em ser
comuns, mas, em vez disso, que queremos saber que importância isso tem. Pelo menos um
caminho que podemos seguir é tratar a banalidade dominante das histórias que encontramos –
nos meus dados, nas suas próprias experiências – não tanto como algo que se sujeite, por
exemplo, a análises estatísticas de variação, ou como algo que as torne portanto
desinteressantes de se estudar, mas como uma característica específica que provoca um tipo
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de atitude; digamos, uma atitude de tentar trabalhar em ser normal, o que é talvez central à
maneira como nosso mundo é organizado.
i
Na série de textos da Análise da Conversa traduzidos no âmbito do curso de tradução da UFJF, foi traduzido o
texto SACKS, H., SCHEGLOFF, E. & JEFFERSON, G. A Simplest Systematics for the Organization of Turn
Taking for Conversation. Language, v. 50, n. 4, p. 696-735, 1974 na Revista Veredas v. 7, n. 1 e 2, 2003, sob o
título de Sistemática elementar para a organização da tomada de turnos para a conversa. Em breve,
publicaremos também o texto de Harvey Sacks Notes on Methodology, em fase final de tradução (N. dos T).
ii
Título original: Un camp très ordinaire (Minuit, 1957). Livro ainda sem tradução para o português.
iii
O fato de que "uma senhora de cor" que "queria entrar... onde fica a prataria está" era ela própria uma
espectadora aparece em uma conversa subseqüente, entre o destinatário do relato e alguém que estava lá.
Jean:
Penny:
Jean:
Penny:
Jean:
Penny:
Jean:
Penny:
Jean:
Penny:
Jean:
Penny:
We::ll she said that there was some woman that the- that they were:
b-uhh h:ad he:ld up in the front the:re that they were pointing the
gun at and everythi:ng, (0.2) a k- nigro woman,
(0.6)
.hhh No::::
no::.
What.
That was one of the employee[s
[Oh.=
=He ran up to her and she just ran up to him and says what’s
happened what’s aa- well the kids were all lau::ghing about it.
Bem ela disse que tinha uma mulher que o– que eles estavam ehh que
tinha:m deti:do na frente lá para quem estavam apontando a arma e
tal, (0.2) uma mulher negra,
(0.6)
.hhh Na::::o
nã::o.
O quê.
Aquela era uma das empregadas
Ah=
=Ele correu pro lado dela e ela pro dele dizendo o que aconteceu e
o que- bem as crianças estavam todas ri::ndo disso.
Convenções de transcrição
[colchetes]
(0.5)
(.)
=
Fala sobreposta.
Pausa em décimos de segundo.
Micropausa
de
menos
de
dois
décimos de segundo
Contigüidade entre a fala de um
mesmo falante ou de dois falantes
distintos.
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.
?
,
? ,
:
sublinhado
MAIUSCULA
º
ºpalavrasº
palavra:
palavra:
>palavras<
<palavras>
<palavras
h
(h)
.h
((
))
(palavras)
(
)
Descida de entonação.
Subida de entonação.
Entonação continua.
Subida de entonação mais forte que
a virgula e menos forte que o
ponto de interrogação.
Alongamento de som.
Auto-interrupcão.
Acento ou ênfase de volume.
Ênfase acentuada.
Fala mais baixa imediatamente após
o sinal.
Trecho falado mais baixo.
Descida entoacional inflexionada.
Subida entoacional inflexionada.
Subida
acentuada
na
entonação,
mais forte que os dois pontos
sublinhados.
Descida acentuada na entonação,
mais forte que os dois pontos
precedidos de sublinhado.
Fala comprimida ou acelerada.
Desaceleração da fala.
Inicio acelerado.
Aspirações audíveis. Duplicação do
símbolo indica maior extensão do
fenômeno.
Aspirações
durante
a
fala.
Duplicação do símbolo indica maior
extensão do fenômeno.
Inspiração audível. Duplicação do
símbolo indica maior extensão do
fenômeno.
Comentários do analista.
Transcrição duvidosa.
Transcrição impossível.
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