aino kannisto
"Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei por quê."
lvc
Participar na vida interna de forma externa.
Vivo com uma criança numa cidade que me é estranha. Acompanho o crescimento dela assistindo às cumplicidades e pequenos crimes que farão parte da memória futura dele. A criança é um ele, o que importa e complica, porque os homens são mais simples, por vezes simples demais, e isso dificulta tudo.
A vantagem de ser forasteiro é que podemos manter um eterno sorriso de ironia interior. Convém que seja interior, porque os indígenas não brincam com as suas micro tempestades em alto mar. A vantagem é a desvantagem: a exclusividade pode ser a exclusão.
Vejo o filme dos segredinhos trocados nas audições de piano de filhos de boas famílias e olho-os enterrada na minha poltrona de distância irreversível, na cadeira desconfortável de quem chegou tarde e entrou tolerado pela gerência como o da mansarda.
Essas meninas de cabelo ritualmente escovado e repuxado até à dor, poderão daqui a trinta anos, entre dois copos de bom (mau ou, hélas, nenhum) vinho, recordar as audições da professora Galina Zarovnaya, ucraniana talentosa e deslocada que desaguou nesta pequena cidade e lhes fazia embalar as pernas púberes ao som do Sonho de Amor de Liszt.
Essas meninas poderão vir a recordar as vésperas de férias já não tão grandes como as da minha infância, mas ainda assim longas, talvez mais longas do que as que daqui a trinta anos as filhas delas poderão vir a ter, se é que nessa altura poderá sobreviver o conceito de férias ou talvez sejam já indistintos trabalho e pausa, essas meninas lembrarão talvez esses últimos dias de aulas em que já cheirava a férias, um odor picante de todas as possibilidades que impregnava objectos aleatórios entretanto desaparecidos, tardes moles em que se sentavam duas a duas na mesma cadeira, muito encostadas numa luta de ombros ossudos e vigorosos sincopada por uma valsa de Chopin. Era a excitação do momento, a impaciência fim de festa e o desejo pressentido de que nunca mais terminasse, pedra suspensa no tempo, eternamente em escaramuças silenciosas de ombros descarnados e teimosos.
Essas meninas davam pulinhos aos primeiros acordes de Eine Kleine Nachtmusik, no nervoso dos saltinhos delas, una piccola música nocturna.
Não recordarão por certo o meu olhar pousado nas costas delas agora, trinta anos antes, porque neste momento nem dão conta de que as estou a observar. E, no entanto, não desbaratemos as possibilidades do futuro do presente do indicativo, não excluamos a ideia de que poderá haver, daqui a trinta anos, uma forma de alguém, em alguma parte, poder descobrir o que outros não viram trinta anos antes. Não é sempre assim quando relemos? Mas de forma mais afinada e perscrutadora. Quem sabe o que pode ser o tempo daqui a trinta anos... Parece que Stephen Hawking reconheceu ter-se equivocado (precisamente há trinta anos atrás) quando afirmava que a informação engolida por um buraco negro nunca poderia vir a ser recuperada. Se ele se enganou, significa que poderíamos vir a passar este filme só perceptível a meus olhos neste momento, algures, noutro tempo mais adiante para além da minha existência, para outros que aqui não estão agora. Ou seja, que pode haver alguém ou algo que, sem nunca aqui ter estado e sem saber quem eu fui, venha a rever o que aparentemente só eu estou a ver neste momento. Uma omnisciência à rebours, como diria o vate da consciência nacional. Ou uma revisão em que o observador é tão outro como eu sou eu simultaneamente dentro e fora deste momento.
Persistiria, no entanto, uma questão que não sei se a ciência (ou a consciência) poderá algum dia resolver: aparentemente, e a não existir Deus, só eu estou a ver este filme. Ainda assim, poderíamos pôr a hipótese de alguns dos meus átomos poderem reter a memória deste momento, ou poderemos conjecturar que os objectos que me rodeiam (paredes, bancos, porta, tudo o que está atrás de mim e pode ter uma perspectiva semelhante à minha) possam ter sensibilidade e transmitir o écran deste presente já transformado em passado, em futuro do presente. Ou, sendo cépticos, em futuro do pretérito. Simples.
Não sei realmente se o que pensaria o professor Hawking destas meninas em véspera de férias.
Mas, a não ser que o professor Hawking tenha razão em se ter enganado, essas meninas não recordarão o meu olhar pousado nas costas delas, porque na altura não me viram, não sabiam que existia ali uma forte presença ausente que era eu a participar nas suas vidas internas de forma externa.
Entretanto, o meu filho vai crescendo enquanto olho para estas meninas delgadas e musicais, vai criando memórias em que eu vou permanecer de dentro e, depois, com o passar do tempo, cada vez mais de fora, como se eu tivesse existido aquém, além, nesta e noutras vidas, tal a poeira nos olhos das cidades por onde atravessei os meus átomos.
Eu não sou Velazques e não estou no meio de uma obra-prima, apenas julgo ver estas meninas e, de cada vez que se fala de meninas que olham através da câmara directamente para o futuro, entramos no túnel do tempo do qual não podemos sair sem um soluço da eternidade.
Talvez seja o tempo a abrandar para reacelerar de vez em quando como a cálida turbina arquejante de um transatlântico modernista.