28 de junho de 2010

o que eu sei sobre o mundialete



ouço na tv um reporteiro em exaltação patriótico-futeboleira a esgrimir um brado saído das mais recônditas profundezas de Aljubarrota: "Portugal está pronto a ultrapassar esse obstáculo chamado Espanha!"

Esse obstáculo chamado Espanha?!!

Mas, na verdade, excluídas as metáforas e referências históricas que nos arrastariam de novo pelo menos até à batalha de S. Mamede ou ao Cid Alarico de Alafões, se não a qualquer neerdental do café da esquina, o home tem razão!
Espanha era ainda nos anos 70/80 aquele pedaço de meseta apresuntada que tinha de se atravessar com muita pressa e leveza, o deserto que tínhamos que suportar sedentos e horrorizados até, finalmente, poisarmos pé na terra prometida: a França, bien sûr.

mas voltemos ao esférico estacionado na relva.
sei pouco de futebol e, há que dizê-lo com frontalidade, tenho raiva a quem sabe.
mas há tempos ouvi outro comentário televisivo eloquente e subversivo. era a véspera de um benfica-malfica qualquer e rezava o vate: "há grande tensão nos balneários!"
não me lixem se isto não é um desporto um bocado gay!
é, pelo menos, cheio de subentendidos.
que eu, obviamente, não entendo.

outra coisa que não compreendo é a sobrevivência de um desporto que pode terminar com um empate a zero!
estou farta de pensar e não me lembro de mais nenhum em que isso aconteça.
das duas uma: ou aquilo é a "bola pela bola" tal como havia a "arte pela arte," ou é um bocado nihilista, o que o torna um pouco mais interessante.
a não ser que se viva na Mongólia.
explico: uma amiga empreendeu uma complicada viagem a sós e contra a opinião de todos à Mongólia (imaginem as voltas que uma portuguesa tem de dar até chegar à Mongólia!) e, ao voltar, quando lhe perguntaram como era aquilo, só teve um lacónico: "Não se passa lá nada!"

pois, para mim, um desafio que termina com um empate a zero ou é como a vida social na Mongólia ou é nihilismo puro e duro e, neste caso, já pia mais fino e pede bibliografia que, dado o adiantado da hora, não posso espojar aqui do pé (literalmente) para a mão.

pronto, como podem confirmar, não pesco nada de futebol, mas com o dia que se avizinha e com o iberismo ao rubro, vou ler o livro que Eça nunca escreveu sobre "A Batalha do Caia".
essa é que eça.

13 de junho de 2010

odara


Goya, el perro semihundido

Em Pompeia tropecei num fio
plástico e duro como o tempo perdido
volátil e neutro, museu petrificado
ah, a comparação há-de perder-te

40 graus à sombra sem sombra possível
poeira e vento, lixo e secura
um colar de limonada entre o comboio e o circo
vertigem íntima, quase sexual

impossível regressar a Nápoles de barco,
no funicular olham intensamente
tenho a cara congestionada de lava seca,
sangro uma pasta vermelha coberta de cinza
os bebés emparedados, as fotos do invisível,
respiração suspensa desde o meio dia.
O sol declina no fresco da colina verde,
a poeira ficou para trás excepto dentro de mim,
há 2000 mil anos que se afunda na pele
mal pisamos o solo atordoado de Pompeia
e tropeçamos num fio.

Em Pompeia tropeço e emudeço.
Não há nada a pedir, não há água, nem guias, cada um força o olhar
um pouco adiante o Vesúvio único lugar habitável
paradoxo vulcânico na sua lógica introspectiva.

Em Pompeia tropecei no tempo
havia um fio perdido no ar tórrido
o comboio atravessa o lixo
o asfalto cortou-me à chegada
só uma americana diz “can I help you?”
os vendedores de limão viram costas ao sol
em Pompeia as ruas estão limpas,
um bar de tapas chega da antiguidade,
trazido pelo vento áspero, flutua na melancolia.

uma alegria intermitente parece brotar em Pompeia
nos instantes mais ébrios em que inalamos a natureza lávica.
os oscos sentaram aqui os seus rabos primitivos na luz crua,
mais tarde desapareceu a liga dos cidadãos preocupados
viviam no luxo, no ócio, no cio, no álccol,
à sombra da declinação dos séculos por vir.

os gladiadores desfilam interminavelmente na via dell’abbondanza
na calçada irregular e agreste
os objectos falsamente abandonados
parecem exigir tanta atenção como o rosto de alguém que acabou de morrer.

deixa eu cantar para o mundo ficar odara
dizia o poeta trágico, mas ficou apenas cave cane.

queixava-se da falta de vocabulário como se fosse uma pontada nas costas.

10 de junho de 2010

essas meninas


aino kannisto

"Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei por quê."
lvc

Participar na vida interna de forma externa.

Vivo com uma criança numa cidade que me é estranha. Acompanho o crescimento dela assistindo às cumplicidades e pequenos crimes que farão parte da memória futura dele. A criança é um ele, o que importa e complica, porque os homens são mais simples, por vezes simples demais, e isso dificulta tudo.

A vantagem de ser forasteiro é que podemos manter um eterno sorriso de ironia interior. Convém que seja interior, porque os indígenas não brincam com as suas micro tempestades em alto mar. A vantagem é a desvantagem: a exclusividade pode ser a exclusão.

Vejo o filme dos segredinhos trocados nas audições de piano de filhos de boas famílias e olho-os enterrada na minha poltrona de distância irreversível, na cadeira desconfortável de quem chegou tarde e entrou tolerado pela gerência como o da mansarda.

Essas meninas de cabelo ritualmente escovado e repuxado até à dor, poderão daqui a trinta anos, entre dois copos de bom (mau ou, hélas, nenhum) vinho, recordar as audições da professora Galina Zarovnaya, ucraniana talentosa e deslocada que desaguou nesta pequena cidade e lhes fazia embalar as pernas púberes ao som do Sonho de Amor de Liszt.

Essas meninas poderão vir a recordar as vésperas de férias já não tão grandes como as da minha infância, mas ainda assim longas, talvez mais longas do que as que daqui a trinta anos as filhas delas poderão vir a ter, se é que nessa altura poderá sobreviver o conceito de férias ou talvez sejam já indistintos trabalho e pausa, essas meninas lembrarão talvez esses últimos dias de aulas em que já cheirava a férias, um odor picante de todas as possibilidades que impregnava objectos aleatórios entretanto desaparecidos, tardes moles em que se sentavam duas a duas na mesma cadeira, muito encostadas numa luta de ombros ossudos e vigorosos sincopada por uma valsa de Chopin. Era a excitação do momento, a impaciência fim de festa e o desejo pressentido de que nunca mais terminasse, pedra suspensa no tempo, eternamente em escaramuças silenciosas de ombros descarnados e teimosos.

Essas meninas davam pulinhos aos primeiros acordes de Eine Kleine Nachtmusik, no nervoso dos saltinhos delas, una piccola música nocturna.

Não recordarão por certo o meu olhar pousado nas costas delas agora, trinta anos antes, porque neste momento nem dão conta de que as estou a observar. E, no entanto, não desbaratemos as possibilidades do futuro do presente do indicativo, não excluamos a ideia de que poderá haver, daqui a trinta anos, uma forma de alguém, em alguma parte, poder descobrir o que outros não viram trinta anos antes. Não é sempre assim quando relemos? Mas de forma mais afinada e perscrutadora. Quem sabe o que pode ser o tempo daqui a trinta anos... Parece que Stephen Hawking reconheceu ter-se equivocado (precisamente há trinta anos atrás) quando afirmava que a informação engolida por um buraco negro nunca poderia vir a ser recuperada. Se ele se enganou, significa que poderíamos vir a passar este filme só perceptível a meus olhos neste momento, algures, noutro tempo mais adiante para além da minha existência, para outros que aqui não estão agora. Ou seja, que pode haver alguém ou algo que, sem nunca aqui ter estado e sem saber quem eu fui, venha a rever o que aparentemente só eu estou a ver neste momento. Uma omnisciência à rebours, como diria o vate da consciência nacional. Ou uma revisão em que o observador é tão outro como eu sou eu simultaneamente dentro e fora deste momento.

Persistiria, no entanto, uma questão que não sei se a ciência (ou a consciência) poderá algum dia resolver: aparentemente, e a não existir Deus, só eu estou a ver este filme. Ainda assim, poderíamos pôr a hipótese de alguns dos meus átomos poderem reter a memória deste momento, ou poderemos conjecturar que os objectos que me rodeiam (paredes, bancos, porta, tudo o que está atrás de mim e pode ter uma perspectiva semelhante à minha) possam ter sensibilidade e transmitir o écran deste presente já transformado em passado, em futuro do presente. Ou, sendo cépticos, em futuro do pretérito. Simples.

Não sei realmente se o que pensaria o professor Hawking destas meninas em véspera de férias.

Mas, a não ser que o professor Hawking tenha razão em se ter enganado, essas meninas não recordarão o meu olhar pousado nas costas delas, porque na altura não me viram, não sabiam que existia ali uma forte presença ausente que era eu a participar nas suas vidas internas de forma externa.

Entretanto, o meu filho vai crescendo enquanto olho para estas meninas delgadas e musicais, vai criando memórias em que eu vou permanecer de dentro e, depois, com o passar do tempo, cada vez mais de fora, como se eu tivesse existido aquém, além, nesta e noutras vidas, tal a poeira nos olhos das cidades por onde atravessei os meus átomos.

Eu não sou Velazques e não estou no meio de uma obra-prima, apenas julgo ver estas meninas e, de cada vez que se fala de meninas que olham através da câmara directamente para o futuro, entramos no túnel do tempo do qual não podemos sair sem um soluço da eternidade.

Talvez seja o tempo a abrandar para reacelerar de vez em quando como a cálida turbina arquejante de um transatlântico modernista.

2 de junho de 2010

le grand robert


Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética proliferação
Lúbrico, libidinoso transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão

Vão aos magotes
A dar com um pau
Levando o terror
Do parking ao living
Do shopping center ao léu
Do cano de esgoto
Pro topo do arranha-céu

Rato de rua
Aborígene do lodo
Fuça gelada
Couraça de sabão
Quase risonho
Profanador de tumba
Sobrevivente
À chacina e à lei do cão

Saqueador da metrópole
Tenaz roedor
De toda esperança
Estuporador da ilusão
Ó meu semelhante
Filho de Deus, meu irmão

Rato
Rato que rói a roupa
Que rói a rapa do rei do morro
Que rói a roda do carro
Que rói o carro, que rói o ferro
Que rói o barro, rói o morro
Rato que rói o rato
Ra-rato, ra-rato
Roto que ri do roto
Que rói o farrapo
Do esfarra-rapado
Que mete a ripa, arranca rabo
Rato ruim
Rato que rói a rosa
Rói o riso da moça
E ruma rua arriba
Em sua rota de rato

Saqueador da metrópole
Tenaz roedor
De toda esperança
Estuporador da ilusão
Ó meu semelhante
Filho de Deus, meu irmão