Na semana passada julguei (erradamente) que se estava a anunciar o fim nunca à vista do cavaquismo com a notícia bombástica: MAIS BACALHAU, MENOS TAMBORIL!
Toda a gente conhece o tamboril, peixe trombudo e disforme como o monstro de gelatina e banha que dá a partida de Pod Racers em Tatooine. (Refiro-me ao episódio I de Star Wars, para os que não apreciam). Essa placenta nadadora surgiu nas nossas ementas durante o cavaquismo, tal como aconteceu com as delícias do mar — derivado de esferovite com essência de restos mortais de caranguejo prensado já em avançado estado de decomposição.
O tamboril é publicitado como fazendo parte da gastronomia tradicional portuguesa.
Pura e, já que estamos com as mãos na massa do cavaquismo, rotunda mentira. Na Cozinha Tradicional Portuguesa da Maria de Lourdes Modesto, a bíblia da cozinha nacional, o tamboril nem aparece mencionado, no clássico Tesouro das Cozinheiras da Mirene, onde há capítulos inteiros dedicados aos peixes mais importantes da nossa gastronomia como o aristocrata robalo, o o’neilliano cherne, o afrancesado linguado, mas também os mais populares solha e solhão, não há uma única referência ao focinhudo e viscoso tamboril. O tamboril é peixe cavaquista tal como as delícias do mar são o prensado cavaquista. Sem ofensa para a esferovite. Em qualquer dos casos, eu prefiro comer esferovite.
Só para arrumar com o tamboril para o inferno, deixem-me dizer-lhes que é um peixe que vem dos fundilhos do mar (daí ser disforme), reproduz-se por larvas (berrg!) e é usado em pratos com semelhanças de família e designações no plural que apontam para o conceito genérico e também ele disforme de salgalhada como arrozes, massadas, caldeiradas, caris e guisados, isto é, uma cozinha que é basicamente deitar tudo o que há para dentro do tacho e deixar apurar, ou seja, ir ver se chove, dar uma volta ao bilhar grande e voltar. É aquele lado da nossa cozinha em que é tudo ao monte e fé no esturgido. Resulta muito bem com bons e seleccionados produtos, vindos directamente da horta, da lota ou do fio da navalha do talhante (ó crueldade, ó papilas gustativas!), mas, no geral, mostra pouca imaginação e dá origem a tachadas que parecem querer fazer a reciclagem de tudo o que havia no frigorífico e com isso alimentar um regimento quando havia quatro pessoas para jantar.
Para os leitores que têm mais limitações lexicais, isto é, que falam dialectos centro-meridionais, adianto que esturgido é refogado e, já agora, que a tampa da panela ou do tacho tem um nome: testo. Não é texto. Era bom, mas nem tudo pode ser literatura.
Pois na semana passada, foram aprovadas as quotas para a pesca na UE e foi com grande alegria que ouvi um destes dias o António Esteves Martins anunciar que Portugal saía escorreito e recomposto dessa negociação, com quotas mais favoráveis e um futuro gastronómico mais risonho. Deixem-me só fazer aqui um parêntese que começa com dois pontos: o António Esteves Martins é aquele jornalista que está sempre nos locais mais enfadonhos da administração europeia e que sabe sempre de tudo em primeira mão. Mas é que sabe mesmo!, não estou a brincar. Ou melhor, ele é que não brinca em serviço. Fala sobre os mais variados assuntos debatidos e legislados na UE: sobre desporto, política internacional, linguística gerativa (se for mesmo inevitável), conflitos nos subúrbios, programas de apoio ao sexo na terceira idade nos países onde o inverno dura 11 meses (agora que o clima está a aquecer), sobre o quinquagésimo terceiro referendo do ano no mais recôndito cantão suíço e por aí adiante... Tudo o que diz é estudado e está fundamentado, é coerente e bem explicado. E faz isto há largos anos. Acho que ainda nem existia a Europa quando começou. Confio totalmente no que ele diz.
E dizia ele com um grão de irreprimível alegria na voz, o que não é habitual nele, sempre muito profissional, dizia ele que Portugal vai poder aumentar as quotas de pesca do bacalhau, da pescada (outro peixe fabuloso e paradoxal), do biqueirão (que é muito melhor do que a anchova, porque o biqueirão vem do mar e a anchova vem da lata) e da juliana (nunca travámos conhecimento, mas só pode ser boa pessoa porque é da família da faneca).
Sofreremos, no entanto, uma triste redução das quotas no que respeita à solha (peixe que me irrita um bocadinho com aquele ar de sou-quase-linguado para, quando chega a hora da verdade, apresentar um banal sabor... a solha – um caso de pé que vai acima do tamanho da sua chinela), o badejo (baixa lamentável a de este primo da pescada e do bacalhau), a sarda (peixe cujas referências sexuais não devem ter passado despercebidas aos burocratas cinzentões de Bruxelas), o linguado (idem a que acresce o pedigree do bicho ou da bicha, como quiserem) e o lagostim (outro pedante: sendo o nome vulgar de uma das espécies menores de crustáceos, põe todo o tipo de dificuldade em se deixar devorar a ponto de nos vermos tentados a pedir um black and decker para o conseguir).
Muito mais me afecta a limitação de pesca do carapau, restrição que felizmente se conseguiu atenuar em relação ao que estava inicialmente proposto. Sim, pergunto eu, o que seria de nós sem o belo e quanto mais pequeno, mais jeitoso e saboroso carapauzinho?
A grande alegria é a redução mais drástica do tamboril que espero continuar a ver em queda. E, com o seu declínio, que o cavaquismo morra de vez. Gostaria muito de deixar de ver cabeças grotescas à minha frente. Essas duas pelo menos.
Ainda não é o paraíso piscícola, mas parece que começamos a sair do rescaldo da “Guerra da Palmeta”, recordam-se? Idos de 1995.
Uma só coisa me inquieta nesta nova ordem.
Ninguém fala da faneca.
Vocês vêem futuro para um país que escamoteie a questão faneca, numa era pós proibição do jaquinzinho?