"Claro que, ou ainda não tinha compreendido os mecanismos que me faziam voar, ou os voos não dependiam mesmo da minha vontade. Para o tentar descobrir passei horas noutros bancos de outros jardins e até de miradouros e praças, mas apenas tinha conseguido uns valentes banhos de assento. Levantar voo, népia. Ficava ali, sozinho, a olhar quem passava ou se sentava nos bancos vizinhos, mas nunca nada nem ninguém me despertou o interesse. Às vezes relaxava tanto que até adormecia, mas a única coisa que consegui foi levar com uma cagadela de pombo. E sentia a falta das voltinhas do Alberto. [...]
capítulo IX - pág. 35 - Nariz de mulher, focinho de cão, cu de gente, de David Teles Ferreira
Do primeiro dia em que começou a voar, passando pela inexplicável capacidade de o fazer e por que o fazia, este o livro que hoje resolvi trazer até este espaço (um pouco ao abandono, é certo), que é de alguma forma também e, por motivos vários, especial para mim.
Um romance em que a magia e o esvoaçar do pensamento dominam numa estória em que outras tantas histórias e personagens se interligam e entrelaçam entre si. Relações de vizinhança ou de afeto nos seus mais variados graus - da amizade e do amor-, todas nos lembram algum lugar ou alguém.
O escritor faz uma abordagem estilística da solidão - da sua talvez e a dos outros (de alguns personagens) - e que é, na minha modesta opinião, uma das linhas condutoras deste romance.
Para amenizar essa solidão o narrador imagina-se voando, chegando mesmo a vias de facto.
Porque voando consegue fugir da rotina de um emprego chato e monótono; porque voando conhece ou admira outros lugares; porque voando compreende, quiçá, melhor como funciona ou se comporta o ser humano; porque ao voar, vê o que não seria possível ver de outro modo.
Voar... Imaginar... Libertar o universo interior... Abrir os braços e planar no céu como uma ave.
Quem disse, afinal, que não podíamos voar através dos pensamentos?!...
O voo do narrador ou a vontade de querer voar, revela-se no início como uma inquietação quase obsessiva. Porém, com o avanço dos acontecimentos percebemos que, finalmente, e, depois de descobrir o amor, o ato e a vontade de voar se desvanecem, proporcionando menos satisfação.
À medida que vamos lendo este romance, a nossa mente transporta-nos um pouco para o realismo mágico presente nas obras de Gabriel Garcia Márquez e isso é muito bom.
"Fundir o universo mágico à realidade, mostrando elementos irreais ou
estranhos como algo habitual e corriqueiro. Além desta característica, o
realismo mágico apresenta os elementos mágicos de forma intuitiva (sem
explicação)" - Infoescola.com
"Je vole", por Carine Achard.