U

N
I
D
A
D
E

A criao artstica e a obra de arte

 2

9.1 O que a arte?

Quais so as caractersticas que um objeto precisa de ter para ser

uma obra de arte?
Quais so as caractersticas que s as obras de arte possuem e que
nos permitem distingui-las de outros objetos?
Uma boa teoria da arte deve preservar quer o sentido classificativo
quer o sentido valorativo da palavra arte:
Sentido classificativo (descritivo): dizer que algo uma obra de arte
dizer que esse objeto pertence a uma determinada classe.
No sentido valorativo (avaliativo): dizer que algo uma obra de arte
reconhecer que esse objeto, alm de pertencer categoria das obras
de arte, um bom exemplar dessa categoria, ou seja, uma boa obra
de arte.
 3

O que a arte?

As frases seguintes pretendem ilustrar a diferena entre o sentido

classificativo e o sentido valorativo:
Isto uma obra de arte (referindo-se a um pedao de cermica encontrado
numa escavao arqueolgica).
Este quadro uma obra de arte (referindo-se a Liberdade Guiando o Povo,
de Eugene Delacroix).

Na primeira frase, a expresso obra de arte est claramente a ser usada

no sentido classificativo. Aquilo que se pretende esclarecer algum
relativamente categoria a que pertence o objeto em causa.
Na segunda frase, no existe essa dvida. Os quadros fazem parte do tipo
de coisas que habitualmente entendemos como pertencendo categoria
das obras de arte, pelo que, ao substituir a expresso este quadro por
esta obra de arte, a frase no perde o seu sentido.
 4

A teoria mimtica da arte

A poesia pica, a tragdia e a comdia, assim como a poesia ditirmbica e

a maior parte da arte de tocar flauta e lira, so todas geralmente
concebidas como imitaes.
Aristteles
Chama-se teoria mimtica da arte (do grego mimesis imitao) ou
teoria da arte como imitao, porque considera que a imitao (da
natureza, de objetos, de acontecimentos, de seres humanos ou das suas
aes) uma propriedade geral que qualquer objeto classificado como arte
possui. Ou seja, a imitao como uma condio necessria para a arte.
Plato fazia da imitao o principal alvo do seu ataque arte, que era, no
seu entender, uma mera simulao de aparncias.
Aristteles nada via de errado na imitao, antes pelo contrrio, atribua-
-lhe uma funo teraputica que designou por catarse purificao das
paixes.
 5

Tese da teoria mimtica da arte

X s uma obra de arte se for uma imitao (se x arte, ento x

uma imitao).

Alguns defensores da teoria mimtica da arte dizem que a pintura

abstrata no arte, porque no se parece com coisa alguma; ou
que um filme no arte, porque no tem uma histria parecida
com a vida real.
 Objeo da pintura abstrata
Depois de quase um sculo de pintura
abstrata, a teoria mimtica no resiste
avaliao crtica e hoje considerada
falsa. As pinturas de Mark Rothko e Yves
Klein, constitudas por puros campos de
cor, so poderosos contraexemplos a
esta teoria.
Estas pinturas no satisfazem a
condio necessria para serem
imitaes da realidade, mas so obras
de arte. Logo, a teoria de que todas as
obras de arte so imitaes falsa,
porque deixa de fora muitas coisas que
consideramos arte, ou seja,
demasiado restritiva.
Nmero 5/Nmero 22 (1950),
de Mark Rothko.

6
 7

Objeo da arte decorativa

Desde certas tapearias e cermicas at aos padres ornamentais

islmicos, a arte decorativa tem-nos oferecido ao longo dos tempos
vrios exemplos de obras de arte que no imitam a realidade.
Logo, tambm a arte decorativa constitui um contraexemplo
teoria mimtica da arte.
 8

Objeo da msica instrumental

No incio do sculo XIX, a generalizao da msica puramente

instrumental deitou por terra qualquer possibilidade de se
considerar que toda a msica pertence ao domnio das artes
imitativas.
Uma vez que a nica justificao que apresenta para a sua rejeio
o facto de estas obras no serem imitativas, o defensor da teoria
mimtica acaba por estar a argumentar de forma viciosamente
circular. Saber se a imitao ou no uma condio necessria para
que algo seja arte justamente o que est a ser posto em causa.
 9

Objees teoria mimtica da arte

A teoria mimtica defende que algo arte s se for imitao. Mas ser
esta teoria verdadeira?
1. Os crticos defendem que no e apresentam como contraexemplos
as artes no imitativas.
2. O defensor da teoria mimtica defende-se dizendo que esses
contraexemplos falham, porque no so obras de arte.
3. Os crticos perguntam por que razo se nega o estatuto de obra de
arte a esses exemplos.
4. O defensor da teoria mimtica afirma que esses exemplos no so
obras de arte porque no constituem nenhuma forma de imitao,
que justamente o que a teoria mimtica afirma.
 10

Objees teoria mimtica da arte

Aqueles que simpatizam com a teoria de Plato e de Aristteles

substituram a ideia de imitao pela de representao.

A representao o ato atravs do qual algo toma

intencionalmente o lugar de outra coisa.
Ou, dito de outra forma: X representa y se, e s se, um emissor tem a
inteno de que x esteja em vez de y e o recetor compreende essa
inteno.

A noo de representao mais abrangente do que a de imitao,

porque embora a imitao seja uma forma de representao, nem
toda a representao envolve imitao.
 11

A teoria represetacionista da arte

X s uma obra de arte se for uma representao (por outras

palavras: Se x arte, ento x uma representao.).
No podemos dizer que toda a arte implica imitao, mas talvez
possamos afirmar que toda a arte implica alguma forma de
representao. Por mais abstrata que uma obra possa parecer, o
seu autor deve pretender que ela represente alguma coisa, ou no?
H muitas obras de arte que no so representaes. A arquitetura
e a msica constituem um exemplo paradigmtico deste tipo de
contraexemplo.
A Baslica de So Pedro, no Vaticano, no est em vez da casa de Deus,
ela a casa de Deus.
Algumas peas de Bach, foram concebidas com propsitos didticos, a
fim de promover certas aprendizagens nos estudantes de msica.
 12

Objees teoria represetacionista da arte

Os ready-mades, ou outros casos de found art (ou objets trouvs),

que constam de qualquer coletnea de histria da arte, no
representam objetos comuns do quotidiano; so objetos comuns
do quotidiano.
Recorde-se os exs. das obras de Marcel Duchamp anteriormente
referidas:
A obra Fonte no representa um urinol, um urinol.
A obra Antecipao de Um Brao Partido no representa uma p de
limpar neve, uma p de limpar neve.

Depois de todas estas objees, fica a pergunta.:

Ser que no h maneira de salvar a intuio de que as obras de arte
dizem alguma coisa sobre o mundo?
 13

Teoria expressivista da arte

A arte deixa de ser um espelho do mundo objetivo e passa a ser um

espelho do mundo subjetivo, dos estados de esprito, das emoes
e das atitudes.

Assim, o lugar central preenchido pela representao na arte passa

a ser ocupado pela expresso de sentimentos. Cada obra de arte ,
assim, o registo do que o artista sentiu.
 14

Teoria expressivista da arte

H vrias verses da teoria expressivista da arte. Iremos analisar,

em seguida, a verso apresentada por Leo Tolstoi (1828-1910).
Tese da teoria expressivista da arte:
X uma obra de arte se, e s se, transmite as emoes do seu criador
a um pblico.

Esta teoria apresenta trs condies necessrias que

conjuntamente so suficientes para que haja arte:
O artista tem de experimentar determinados sentimentos ou estados
emocionais (condio experimentalista).
O artista tem de produzir uma obra que exprima os seus sentimentos
(condio expressivista).
O pblico tem de ser contagiado pelos sentimentos do artista
(condio identitria).
 15

Teoria expressivista da arte

Tolstoi era ele prprio um artista, um escritor, e o seu exemplo

pode ser utilizado para ilustrar a sua teoria da arte.

Temos uma condio suficiente para que Guerra e Paz seja

considerada uma obra de arte, se forem satisfeitas conjuntamente
as trs condies necessrias propostas por Tolstoi:
 16

Objeo condio experimentalista

Segundo a teoria de Tolstoi, para que haja uma obra de arte, o artista
tem, antes de mais, de experimentar determinados sentimentos ou
estados emocionais. Porm, est longe de ser bvio que isso seja
verdade.

Ser que um artista profissional tem necessariamente de

experimentar determinados estados emocionais enquanto cria arte?
 17

Objeo condio experimentalista

possvel que um escritor de romances, por exemplo, tenha uma

habilidade tal para manipular palavras, servindo-se de certos ritmos
narrativos, descrevendo situaes que envolvem muitos e variados
sentimentos, sem ter ele prprio de experimentar os estados emocionais
das suas personagens.
Muitas obras-primas da histria da arte so encomendas de arte religiosa.
Ora, perfeitamente possvel que os seus autores no tenham
experimentado uma nica vez a devoo religiosa que as suas obras
inspiram e isso no implica que as suas obras deixem de ser consideradas
arte.
A condio experimentalista demasiado restritiva, porque deixa de fora
muitas produes artsticas que no tm por substrato uma determinada
vivncia emocional do artista.
 18

Objees teoria expressivista da arte

Objees condio expressivista

A segunda condio necessria, exigida pela teoria expressivista
para que algo seja uma obra de arte, indica que o artista tem de
produzir uma obra que seja a expresso dos seus sentimentos.
Mas, embora os artistas possam experimentar vrias emoes,
antes, durante e aps o processo de criao artstica, h muitas
obras de arte que no expressam qualquer tipo de emoo.
Contraexemplo da arte percetiva
Existe arte criada com o nico objetivo de estimular as nossas
estruturas sensoriais arte percetiva.
Alguns exemplos, como a arte decorativa, com os seus padres
ornamentais e tapearias, ou como certos tipos de msica no exprimem
nenhuma emoo em particular. So criaes que visam apenas ser
agradveis para os sentidos, no comunicam as emoes do artista.
 19

Objees teoria expressivista da arte

Contraexemplo da arte aleatria

A arte aleatria abrange um vasto leque de produes artsticas
que, de uma maneira ou de outra, procuram substituir os
procedimentos subjetivos de deciso por procedimentos objetivos,
fortuitos e aleatrios.
Dispor aleatoriamente objetos sobre uma superfcie, salpicar tinta ao
acaso sobre uma tela, utilizar programas de computador construdos
segundo uma lgica de probabilidades para compor estruturas
musicais so alguns dos procedimentos utilizados por este tipo de
artistas, com o intuito de remover da criao artstica os estados
emocionais do seu criador.
Deste modo, deixa de ser necessrio que a obra corresponda
expresso das emoes do artista para que possa ser considerada uma
obra de arte.
 20

Objees teoria expressivista da arte

Objees condio identitria

Perante a obra, o pblico deve experimentar o mesmo sentimento ou
estado emocional do artista. Uma vez que envolve uma identificao
entre as emoes do artista e do espectador, chamamos a esta
condio identitria.
A condio identitria a mais restritiva das trs, pois considera que
algo s arte se o pblico experimentar as mesmas emoes que o
artista. Ora, isto demasiado difcil de sustentar.
Parece simplesmente implausvel defender que o estatuto de uma
obra enquanto arte est inteiramente dependente do facto de
algum ter uma experincia semelhante do seu criador, quando a
contempla.
 21

Objees teoria expressivista da arte

Objees condio identitria

As emoes do auditrio no tm de ser idnticas s do artista.
Se pensarmos na arte da representao teatral, por exemplo, as emoes do
pblico no podem, muitas vezes, coincidir com as emoes do artista. Se o
ator est a representar um vilo narcisista, pode despertar no pblico
sentimentos de desprezo, ou at mesmo dio, mas esses sentimentos no
tm de corresponder aos do prprio ator.
Nem toda a transmisso de emoes arte.
Carlos exprime, atravs das suas aes, tristeza por perder o emprego; e
acaba por contagiar o Lus com essa tristeza. Podemos dizer que:
a) O Carlos experimenta um sentimento a tristeza de perder o emprego.
b) b) O Carlos exprime esse sentimento atravs das suas aes.
c) c) As aes de Carlos despertam no Lus o mesmo sentimento que este
experimentou.
Todas as condies necessrias e suficientes propostas pela teoria de Tolstoi foram
satisfeitas. Mas estaremos na presena de uma obra de arte? Claro que no.
 22

Objees teoria expressivista da arte

Por conseguir abarcar a pintura abstrata e a msica instrumental, a

teoria da expresso mais abrangente do que as teorias da
representao. No entanto, esta teoria revela-se pouco satisfatria
por dois motivos:
1. Apresenta condies necessrias demasiado restritivas (no cobre
toda a riqueza da arte).
2. Apresenta condies suficientes demasiado abrangentes (no capta
a especificidade da arte).
 23

A teoria formalista da arte

Quando surgiu a fotografia, a reproduo de imagens tornou-se algo de

grande rigor, rpido e de baixo custo.

Para no perder o seu lugar na sociedade, a pintura teve de evoluir noutras

direes, como a pintura abstrata. A pintura adquiriu, assim, um estatuto
prprio e autnomo: a pintura pela pintura, como afirma Nol Carroll.

O que significa a expresso forma significante?

Segundo Bell, trata-se de uma configurao de linhas, cores, formas e
espaos que tem a capacidade de originar um determinado tipo de emoo
no espectador emoo esttica.
Neste sentido, dizer que x uma obra de arte afirmar que as suas linhas,
cores, formas e espaos foram concebidos com o intuito de gerar uma emoo
esttica no espectador, que o mesmo que dizer que x foi concebido para
exibir forma significante.
 24

Tese da teoria formalista da arte

X uma obra de arte se, e s se, x foi (principalmente) concebido para exibir
forma significante.
O propsito principal ter de ser o exibir forma significante; todos os outros sero
propsitos secundrios.
Este tipo de referncia inteno do criador importante, porque, de outra forma,
no haveria forma de distinguir as belezas naturais das obras de arte.
Este tipo de referncia tem ainda a vantagem de lidar de modo satisfatrio com a
diferena entre os usos classificativo (descritivo) e valorativo (avaliativo) da palavra
arte.
Um objeto ser uma obra de arte (no sentido classificativo) se, e s se, foi
concebido com o objetivo de produzir uma emoo esttica no espectador.
Caso concretize esse objetivo, ser considerado uma boa obra de arte, no sentido
valorativo. Caso falhe, o objeto ser ainda uma obra de arte, no sentido classificativo,
embora seja uma m obra de arte.
O que conta que o artista tenha a inteno de dotar a sua obra de forma significante.
Se o consegue ou no, isso indiferente para uma teoria geral da arte, ainda que seja
importante para apreciar a qualidade da obra.
 25

Objees teoria formalista da arte

Objeo 1
Segundo a teoria formalista, a qualidade de uma obra de arte depende do
facto de esta cumprir satisfatoriamente o intuito com o qual foi concebida
exibir forma significante.
Ou seja, o contedo representacional de uma obra sempre irrelevante
para apreciao artstica da mesma?
No verdade.
Objeo 2
Se pensarmos na arte demonaca, percebemos que nem toda a arte foi
concebida com o principal intuito de exibir forma significante.
Objeo 3
H coisas que foram concebidas com o principal intuito de possuir e exibir
forma significante, mas no so obras de arte.
 26

Objees teoria formalista da arte

Objeo 4
A teoria formalista afirma que o que determina a pertena de um
determinado objeto categoria de obra de arte a capacidade de
proporcionar, em virtude da sua forma, uma determinada emoo no seu
espectador.
Mas, se assim fosse, como se explicaria que os ready-mades fossem
considerados obras de arte e as suas contrapartes do quotidiano no,
apesar de exibirem exatamente as mesmas propriedades formais?
Esquema-sntese