A Norma, o Saber e o Poder
A Norma, o Saber e o Poder
A Norma, o Saber e o Poder
BRAATZ, Jennifer Priscilla FURB [email protected] KRAEMER, Celso FURB [email protected] Eixo Temtico: Educao e Sade Agncia Financiadora: no contou com financiamento Resumo: O presente artigo, dedicado noo de norma, tem como objetivo compreend-la enquanto um processo histrico e social, que vai sendo construdo e modificado de acordo com as necessidades econmicas e polticas de cada sociedade. A noo de norma perpassa os diferentes espaos sociais e as mais variadas reas de conhecimento Nesse sentido, o presente estudo elegeu como domnio privilegiado a rea da, medicina, espao no qual o processo histrico da norma est diretamente relacionada noo de sade/doena, normal/patolgico, norma vital/norma social. Ressalte-se que tanto a sociedade atual, quanto a educao se condicionam norma, muitas vezes assumindo-a ingenuamente, como se fosse natural. Desta forma, cabe ao educador e ao agente de sade, problematizar as noes de normal e os processos de normalidade operantes na sociedade. Esta pesquisa de carter bibliogrfico, entende a norma a partir das relaes de saber e poder, de acordo com o a perspectiva de Canguilhem e Foucault. Segundo anlises epistemolgicas de Canguilhem, que discute as teorias de Comte, Bernard e Leriche, norma vital, a capacidade do indivduo de tolerar e superar as normas (sade e doena) do biolgico, enquanto a norma social a capacidade do indivduo de interagir com os eventos sociais. Foucault, analisando genealogicamente a norma como conceito operatrio, percebe as relaes de poder que constituem a viso moderna da norma, tanto na medicina, psiquiatria, escola, como na formao do prprio sujeito. Tais instituies esto diretamente relacionadas aos interesses polticos e econmicos que visam regular a subjetividade, segundo a anormalidade das instituies.
Palavras-chave: Norma/normal. Sade/doena. Norma. Relaes de poder. Introduo No dia a dia somos condicionados a protocolar como patolgico tudo o que se desvia do normal. Mas o que entendemos por normal? Quais associaes que se fazem entre normal e natural? um significado amplo ou individual? Tudo que caracterizado como normal
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aceito facilmente, por qu? Como a escola caracteriza a norma? O conceito de normalidade no vai, historicamente, apenas se refinando ou se tornando cada vez mais preciso, mas vai se modificando, na medida em que as condies sociais vo sendo transformadas pela prpria ao do homem e que geram novas necessidades na relao indivduo-meio social (FREITAS, 1997). Pois, conceitos surgem, so formulados, desconstrudos e reconstrudos de acordo com a poca em que se vive, os aspectos histrico-culturais do momento; alm de opinies e abrangncia de conhecimentos sobre o assunto a ser abordado por cada indivduo. Segundo Coelho & Monteiro (2010), conceitos so mais do que palavras: servem como denominao de sentido, capaz de interpretar as observaes e as experincias. assim que Georges Canguilhem questiona o conceito de normal e patolgico, muitas vezes utilizadas em sentidos ambguos. Ele faz uma discusso sobre os equvocos promovidos pela incapacidade de reconhecimento das distines entre as situaes de fato e valor na atividade mdica. Explora a dimenso fenomenolgica da experincia individual da doena e da sade, tomada num conceito descrita como totalidade orgnica individual (PUTTINI, 2011). Michel Foucault, filsofo que possui vinculaes tericas com a tradio da epistemologia historiogrfica, tem na figura de Canguilhem uma de suas inspiraes. E atravs da reflexo histrica que Foucault procura justificar a moderna viso da norma. De acordo com Foucault (1999), todo conhecimento se enraza numa vida, numa sociedade, numa linguagem que tm histria, e nesta histria, ele encontra o elemento que lhe permite comunicar-se com outras formas de vida, outros tipos de sociedade, outras significaes; por isto, o historicismo implica sempre uma filosofia. Deste modo, o objetivo do artigo compreender a construo histrica da noo de norma e sua relao com as formas de saber e poder, de acordo com as correntes de pensamento de Comte, Bernard, Leriche, Canguilhem e Foucault. Mdia, sade e doena: Norma De acordo com Ganguilherm (2002, p. 216), o termo norma remonta ao latim, o qual, por sua vez, equivalente ao termo grego rtos, e se refere, fundamentalmente, gramtica,
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isto , regulamentao do uso da lngua, o que demonstra a preocupao do homem na busca de regularidades em suas aes. Segundo Puttini (2001), enquanto normalidade um critrio valorativo, que poderia avaliar nos seres vivos estados normais e patolgicos, normatividade a capacidade para avaliar estados humanos pela racionalidade do fenmeno vital. Segundo Canguilhem (2002), a normatividade est presente fenomenologicamente no prprio ser vivente e na vida. Para o conceito de mdia, aps estudos acerca da altura do homem, num mbito geral, segundo este estudioso, a existncia de uma mdia o sinal incontestvel da existncia de uma regularidade (CANGUILHEM, 2002, p. 124). Para Canguilhem, uma mdia que define desvios tanto mais raros quanto mais amplos forem , na verdade, uma norma. (CANGUILHEM, 2002, p. 124). Canguilhem define que a sade nada mais que a indeterminao inicial da capacidade de instituio de novas normas biolgicas (CANGUILHEM, 2002, p. 158). A sade constitui certa capacidade de ultrapassar as crises orgnicas para instalar uma nova ordem fisiolgica. O limite entre o normal e o patolgico torna-se impreciso para indivduos quando considerado simultaneamente, ou seja, valendo-se de mdias, pois ao apresentar a doena num determinado caso, em outro esta poder no ser entendida como patologia. Canguilhem afirma que a norma individual, ou seja, capacidade de um ser de se adaptar ao meio. Cada ser tem sua prpria concepo do que seria o normal para si mesmo, caracterizando a capacidade de tolerar as variaes da norma. Illich (1975) ressalta que a sade do homem tem sempre um tipo de existncia socialmente definida. Globalmente, ela se identifica cultura de que trata o antroplogo, que o programa de vida que confere aos membros de um grupo a capacidade de fazer face sua fragilidade e de enfrentar, sempre provisoriamente, um meio ambiente de coisas e palavras mais ou menos estveis. E, ao orientar o comportamento, a cultura determina a sade, e somente construindo uma cultura que o homem encontra sua sade. No somente a cultura, mas a poltica da poca em que se encontra, tambm determina os conceitos de normal e de sade. Por exemplo, na Antiguidade, sade implicava a norma, o ideal, o valor, aos padres sociais aceitos, estimados e desejados, sendo o indivduo considerado indissocivel de um
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todo. Ou seja, o cuidado sade do indivduo considerava o conhecimento do todo (elementos da natureza, da regio, da organizao social, dos hbitos), permitindo o conhecimento da parte e suas relaes com o todo. E, a partir desse conhecimento, buscava-se o equilbrio necessrio a cada indivduo, encontrando o equilbrio total: a sade (AIUB & NEVES, 2005). O desequilbrio de um destes elementos caracterizava a doena; e o desvio deste equilbrio, considerado anormalidade. At o sculo XVIII, os princpios destes conceitos predominavam, tanto no campo da filosofia como da medicina. A partir da Revoluo Francesa, os conceitos de sade e norma foram modificados. Pois, a burguesia fundou uma nova ordem capaz de funcionar como norma para toda a sociedade: a ordem econmica capitalista. Com isso, de acordo com Coelho & Almeida Filho (2010), a medicina adotou uma nova postura normativa. Pois, concomitantemente com a Revoluo Francesa, estava ocorrendo a industrializao e complexificao do trabalho, tornando-se necessria novas referncias de norma e padres de comportamento. Como afirma Foucault (1998), o rendimento e a sade individual passaram a ser indispensveis ao bom funcionamento da engrenagem social. A medicina se apoiava na anlise de um funcionamento regular, normal, para detectar onde o indivduo teria se desviado. O termo normal comeou a ser utilizado pelo povo, significando o estado de sade orgnica; a partir disso, a patologia consistiu, sobretudo, na classificao das anomalias anatmicas. (CANGUILHERM, 2002; ILLICH, 1975). O objetivo da medicina na poca da industrializao, politicamente influenciada, dedicava-se em curar algo que se teria perdido e que era necessrio restaurar, para que o indivduo retornasse produo o mais cedo possvel. A medicina passou a ser uma oficina de reparos e manuteno, destinada a conservar em funcionamento o homem usado como produto no humano (ILLICH, 1975). O homem, visto como mquina, poderia ser consertado e programado, listando suas capacidades, bem como os parmetros do funcionamento social normal. A normalidade passou a ser tarefa e fundamento da psiquiatria, psicologia e sociologia (COELHO & ALMEIDA FILHO, 2010). Para Foucault (1999, p. 476):
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antemo: nenhuma filosofia, nenhuma opo poltica e moral, nenhuma cincia emprica, qualquer que fosse, nenhuma observao do corpo humano, nenhuma anlise da sensao, da imaginao ou das paixes, jamais encontrou, nos sculos XVII e XVIII, alguma coisa como o homem, pois o homem no existia (assim como a vida, a linguagem e o trabalho); e as cincias humanas no apareceram quando, sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema cientfico noresolvido, de algum interesse prtico, decidiu-se fazer passar o homem para o campo dos objetos cientficos. A emergncia histrica de cada uma das cincias humanas ocorreu por ocasio de algum problema, de uma exigncia, de um obstculo de ordem terica ou prtica; por certo foram necessrias novas formas impostas pela sociedade industrial aos indivduos para que, lentamente, no decurso do sculo XIX, a psicologia se constitusse como cincia.
O homem tornou-se um objeto para as cincias humanas. Trata-se de um homem que, do interior das formas de produo pelas quais toda a sua existncia comandada, forma a representao dessas necessidades, da sociedade pela qual, com a qual ou contra a qual as satisfaz, de sorte que, a partir da, pode ele finalmente se dar a representao da prpria economia (FOUCAULT, 1972; FOUCAULT, 1999). De acordo com Foucault (1999, p. 491-492):
A regio psicolgica encontrou seu lugar l onde ser vivo, no prolongamento de suas funes, de seus esquemas neuromotores, de suas regulaes fisiolgicas, tambm na suspenso que os interrompe e os limita, se abre possibilidade da representao; do mesmo modo, a regio sociolgica teria encontrado seu lugar onde o indivduo que trabalha, produz e consome se confere a representao da sociedade em que se exerce essa atividade, dos grupos e dos indivduos entre os quais ela se reparte, dos imperativos, das sanes, dos ritos, das festas e das crenas mediante os quais ela sustentada ou regulada.
Paralelamente, segundo Illich (1975), nos ltimos anos do sculo XIX, os discpulos de Claude Bernard empreenderam a definio e a catalogao da patologia das funes. A sade adquiriu, paralelamente doena, status clnico: ela se tornou ausncia de sintomas clnicos. A boa sade foi associada aos padres clnicos da normalidade. Por volta de 1840, Augusto Comte deu palavra normal sua primeira conotao mdica. Exprimia sua esperana de que, logo que as leis relativas ao estado normal do organismo fossem conhecidas, seria possvel empreender o estudo da patologia comparada. Durante a ltima dcada do sculo XIX, as normas e os tipos se tornaram os critrios fundamentais do diagnstico e da teraputica. A doena enquanto desvio de uma norma
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tornava legtima a interveno mdica e fornecia orientao para a terapia (ILLICH, 1975). Assim, a ao da norma se desencadeia tanto mais eficazmente, quanto mais ntima for a relao entre medicina e Estado: luz da ordem normativa que se concebe o progresso da nao, de forma que os valores da medicina em cada poca so influenciados diretamente pela poltica de cada cultura. A seguir, ser abordada a ao da norma refletidas por Canguilhem e por Foucault de acordo com os princpios filosficos de cada autor. Para facilitar a compreenso, a temtica ser abordada separadamente na viso de cada filsofo. Norma e Normalidade Seria o estado patolgico apenas uma variao quantitativa do estado normal1? Este questionamento surgiu pelos exemplos encontrados por Canguilhem na histria da cincia. Em suas pesquisas, percebeu que as anlises das relaes entre o normal e o patolgico, desde o sculo XIX, concluam que o patolgico era apenas uma mera variao quantitativa do normal. Frente a esse dado, Canguilhem recorreu histria das cincias, explorando os conceitos de normal e patolgico no campo da filosofia da cincia e da tcnica mdica. Elaborou suas concepes de sade e doena a partir do exame crtico das ideias de alguns filsofos do sculo XIX (FRANCO, 2009). Canguilhem se disps a desconstruir uma abordagem hegemnica desde o sculo XIX: a de Augusto Comte e Claude Bernard, autores que servem de fundamento reflexo da filosofia da medicina; em seus estudos, Canguilhem se depara com as posies do mdico Leriche (PUTTINI, 2011), que diverge de Comte e Bernard. Para Augusto Comte, a distino do normal e patolgico era de natureza quantitativa, sendo as doenas nada mais que os efeitos de simples mudanas de intensidade na ao dos estimulantes indispensveis conservao da sade. (CANGUILHEM, 2002, p. 28). A poltica implicaria uma teraputica das crises sociais buscando o retorno das sociedades sua
Pimeiro questionamento realizado por Georges Canguilhem em sua tese de Doutorado em Medicina, defendida em 1943, com o ttulo: Ensaios sobre alguns problemas concernentes ao normal e ao patolgico Sua tese foi reeditada, e em 1966 foi lanada com o ttulo simplificado: O normal e o patolgico (FRANCO, 2009; PUTTINI, 2011; SANTOS, 2010).
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estrutura essencial e permanente. Claude Bernard, fisiologista, definiu que o estado patolgico no um simples prolongamento, quantitativamente variado, do estado fisiolgico, mas totalmente diferente. (CANGUILHEM, 2002, p.66). De acordo com Coelho & Almeida Filho (1999), a fisiologia de Bernard expressou, no campo mdico, a exigncia de uma poca que acreditava na onipotncia da tcnica baseada na cincia. Logo, para Comte e Bernard, a doena difere da sade, o patolgico do normal, como um atributo difere de outro, quer pela presena ou ausncia de um princpio j definido, quer pela reestruturao da totalidade orgnica (COELHO & MONTEIRO, 2010, p. 184). Para Coelho & Almeida Filho (1999), a ideia positivista fundamental, comum a Comte e Bernard, que se deve conhecer cientificamente para agir, ou seja, a tcnica a aplicao direta de uma cincia. Percebe-se ento que, para a medicina do sculo XIX, a convico de poder restaurar cientificamente o normal que anula o patolgico. Pois, segundo Coelho & Monteiro (2010), a doena deixa de ser objeto de angstia para o homem saudvel e torna-se objeto de estudo para o terico da sade. E justamente no patolgico que se pode decifrar o ensinamento da sade. A doena, nesse momento, ainda era olhada pelo mdico como o sofrimento experimentado por um ser. Ela foi colocada no centro do sistema mdico e submetida de pleno direito: verificao operacional com recurso de medidas; a estudo e experimentao clnicos; a avaliao conforme as normas tcnicas (ILLICH, 1947). De acordo com Machado et al (1978), na Revoluo Industrial ocorreu a medicalizao da sociedade: a medicina em tudo intervm e comea a no mais ter fronteiras. Exige a criao de uma nova tecnologia de poder capaz de controlar os indivduos e as populaes, tornando-os produtivos ao mesmo tempo que inofensivos, por meio de tcnicas de normalizao (que instituem e impem exigncias de ordem social como critrios de normalidade, considerando anormal toda realidade hostil ou diferente). Ao mesmo tempo que a escola tambm sanciona o aluno normal, afim de controlar a disciplina por meio de frequncias, notas; hierarquizando os alunos de acordo com seu desempenho escolar, seus gestos, comportamento global. De acordo com Portocarrero (2004), a sano normalizadora porque faz funcionar a disciplina atravs do estabelecimento da
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norma, na medida que permite avaliar e julgar, normalizando por meio da comparao, da diferenciao, da hierarquizao, da homogeneizao e da excluso. A escola normal, que uma escola onde se ensina a ensinar, onde se instituem experimentalmente mtodos pedaggicos normalizados e normalizadores, onde no se permitem desvios, punindo-os de acordo com as regras normalizadoras. Na medicina, a produo de um novo tipo de indivduo e de populao, necessrio existncia da sociedade capitalista, antes mesmo do aparecimento das grandes transformaes industriais, est intrinsecamente ligado ao novo tipo de medicina que pela primeira vez equaciona uma relao de causalidade entre os termos sade e sociedade (FOUCAULT, 2000; MACHADO et al., 1978). Porm, nesta mesma poca, ocorreu com Ren Leriche, um novo olhar sobre a sade e doena. Cirurgio francs, para Lercihe, a sade a vida no silncio dos rgos, o estado de sade, para o indivduo, a inconscincia de seu prprio corpo (CANGUILHERM, 2002, p. 67). Para ele, a doena vista como uma variao qualitativa do normal, definindo a doena como aquilo que perturba os homens no exerccio normal de sua vida e em suas ocupaes e, sobretudo, como aquilo que os faz sofrer (CANGUILHEM, 2002, p. 67). Leriche considera que a doena est na origem da ateno especulativa que o homem dedica vida. Assim, o campo da fisiologia s revelado pela doena, pois as doenas seriam virtualidades da fisiologia, que s poderiam ser conhecidas a partir da experincia da doena. A doena, e no a sade, portanto, seria o ponto de partida da Medicina e de um interesse do ser vivo pelo estudo da prpria vida. E quem determina o valor da doena o doente, a vida em si mesma. (CANGUILHEM, 2002). O estudo da perspectiva de Leriche, que aproxima o saber cientfico da prxis por um olhar clnico e impregnado de tcnica, afirmando que o aprendizado no vem unicamente da cincia e da filosofia, mas sim, do prprio doente, possibilita a Canguilhem um novo olhar sobre a doena, vista em sua totalidade orgnica (SANTOS, 2010). Deste modo, quem ilumina e informa a fisiologia no a patologia, mas o prprio doente. a experincia da doena que rompe certa imanncia silenciosa entre o sujeito e seu prprio corpo. ela que transforma o corpo em um problema que determina exigncias de saber e configura necessidades de cuidado e interveno (SAFATLE, 2006). Tais anlises permitiram a Canguilhem (2002) definir como norma vital a exigncia
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das normas do organismo, interna e imanente prpria possibilidade de vida (PORTOCARRERO, 2004). O estar doente que possibilita ao organismo do indivduo retornar sua sade. Canguilhem conclui que, no seria a ausncia de normalidade que constituiria o anormal; o patolgico tambm seria normal, pois a experincia do ser vivo incluiria a doena. Assim, para Canguilhem, o patolgico no contraditrio lgico do conceito de normal. O patolgico no ausncia de normas, mas a presena de outras normas vitalmente inferiores, que impossibilitam ao indivduo viver um modo de vida anterior, permitido aos indivduos sadios. Logo, Canguilhem definiu norma como normalidade de vida numa categoria mais ampla, que engloba a sade e o patolgico como distintas subcategorias. Sade foi definida como norma de vida superior, pela capacidade individual de instituir novas normas e ultrapassar o que define normal momentneo, como abertura a eventuais modificaes (COELHO & ALMEIDA FILHO, 2010), e doena vista como norma de vida inferior, pela perda dessa capacidade normativa, impossibilidade de mudana, fixao, obedincia irrestrita norma (COELHO & ALMEIDA FILHO, 2010; CANGUILHEM, 2002; FRANCO, 2009). Em suma, o que diferencia o estado de sade do patolgico a qualidade para abertura de eventuais modificaes. Abertura que estaria presente no estado de sade, porm, ausente no estado patolgico, tornando-se inferior sade. Porm, ao longo de seus estudos, Canguilhem no se atm mais oposio dos termos, como ocorrido em sua tese em 1943, ampliando sua viso sobre sade e doena. A doena, a partir de Canguilhem, no vista mais apenas como uma mudana quantitativa ou qualitativa da sade. Ele abrange a sade no seu mbito social, onde sade alm de obedecer a normas impostas pela sociedade. Sade a possibilidade de escolha e criao, tendo o indivduo a oportunidade da no-obedincia e a transformao. A esta definio Canguilhem denominou norma social, ou seja, normalizao que se estabelece na sociedade. Ela deve-se a uma escolha e a uma deciso exteriores ao objeto normalizado, mesmo que no haja conscincia por parte dos indivduos, por se tratar da expresso de exigncias coletivas, estabelecidas a partir do modo de relao de uma dada estrutura social e histrica, com aquilo que se considera seu bem particular (PORTOCARRERO, 2004).
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Assim, segundo Canguilhem (2002) e Coelho & Almeida Filho (2010), a sade se realiza no s no gentipo, mas tambm na relao do indivduo com o meio, ou seja, corresponde a uma ordem tanto implicada no fato biolgico da vida, como no modo de vida, ou seja, relacionada capacidade do indivduo de interagir com os eventos sociais. Canguilhem (1990) apud Coelho & Almeida Filho (2010, p. 26-27), considera:
que a sade uma questo filosfica na medida em que, tal como a filosofia, ela um conjunto de questes no qual ela mesma se faz questo. Essa sade filosfica recobre a sade individual. Ela diferente da sade do sanitarista, que compreende a sade da populao. A sade filosfica, individual, est longe de ser medida com aparelhos, j que livre, no condicionada e no contabilizvel. Trata-se de uma sade sem ideia, presente e opaca, suportada e validada pelo indivduo e seu mdico; implica o conceito de corpo subjetivo, que o mdico cr poder descrever. O saber mdico constitui, ento, um dispositivo de promoo e proteo da sade subjetiva. O mdico acolhe o que o paciente lhe diz e o que o seu corpo anuncia atravs dos sintomas e sinais clnicos.
Aos mdicos no interessam os conceitos de sade e doena. De acordo com Foucault (1998), as concepes de sade refletem os valores sociais dominantes da cultura e da poca e no seria de se esperar que uma cultura biomdica baseada nas noes de sofrimento, morte e doena pudessem produzir um interesse institucional e acadmico pelo antagonismo conceitual incorporado no conceito de sade. Para os mdicos apenas interessa diagnosticar e curar, para que o indivduo volte ao normal. Logo, o objetivo da medicina analisar o desvio de normalidade da patologia, cure o indivduo, para que este se torne normal e com sade novamente. A norma em Foucault Foucault analisa genealogicamente a histria da medicina, indagando as formas de poder que tm por alvo o sujeito. Assim, objetiva mostrar de que maneira as prticas sociais podem constituir domnios de saber, que fazem aparecer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento; a proposta do presente item especificar como pode se formar, no sculo XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do indivduo normal ou anormal, dentro ou fora da regra, a partir de prticas sociais do controle, da vigilncia e do exame, que se relacionam com a formao e estabilizao da sociedade capitalista
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(PORTOCARRERO, 2004). Foucault fez uma anlise histrica das prticas mdica que justifiquem a viso moderna da norma, bem como dos poderes que atuaram diretamente sobre a norma. Ligadas s condies de existncia e as formas de vida dos indivduos, as doenas variam com as pocas e os lugares (FOUCAULT, 1998, p. 36). Para Foucault (1994) e Illich (1975), a definio de anormalidade muda de uma cultura para outra. Cada civilizao cria suas prprias doenas, e a anormalidade, que pode ser considerada em uma cultura doena, em outra pode ser considerada crime, manifestao de santidade ou mesmo, resultado de pecado. Toda cultura elabora e define um modo particular de ser sadio, de gozar, de sofrer e de morrer. Todo cdigo social coerente com uma constituio gentica, uma histria, uma geografia dadas e com a necessidade de se confrontar com as culturas vizinhas (FOUCAULT, 1994; ILLICH, 1975). Illich (1975) complementa que a instituio mdica uma empresa profissional, tem por matriz a ideia de que o bem-estar exige a eliminao da dor, a correo de todas as anomalias, o desaparecimento das doenas e a luta contra a morte. Porm, este pensamento da medicina surgiu a partir do sculo XIX, pois, como afirma Foucault (1998), at o final do sculo XVIII a medicina referiu-se muito mais sade do que normalidade, pois a medicina no se apoiava na anlise de um funcionamento regular do organismo para procurar onde se desviou, o que lhe causa distrbio, como se pode restabelec-lo. Ela referia-se mais a qualidades de vigor, flexibilidade e fluidez que a doena faria perder e que se deveria restaurar. A prtica mdica anterior ao sculo XIX implicava uma regra de vida. Assim, as prticas de sade pblica quarentena, isolamento, fogueiras, entre outros eram normativas, visando a manuteno da sade. A doena era vista como resultado de um pecado, ou seja, quem no tem pecado, tem sade. Estas prticas, segundo o mesmo autor, teriam substitudo o ideal religioso da salvao. Mas, a partir do sculo XIX, a medicina regula-se mais pela normalidade do que pela sade; em relao a um tipo de funcionamento ou de estrutura orgnica que ela forma seus conceitos e prescreve suas intervenes (FOUCAULT, 1998, p. 39). Segundo Foucault (2000), nesse momento h um esforo para organizar um corpo mdico e um quadro hospitalar, capazes de fazer funcionar normas gerais de sade. Assim, as
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marcas que significavam status, privilgios, filiaes, tendem a ser substitudas ou pelo menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que so sinais de filiao a um corpo social homogneo, mas que tm em si mesmo um papel de classificao, de hierarquizao e de distribuio de lugares. O poder de regulamentao obriga homogeneidade, individualiza, permite medir os desvios, determinar os nveis, fixar as especialidades e tornar teis as diferenas, ajustando-as umas s outras. Assim, em todas as sociedades, as pessoas de atitudes ou comportamento estranhos constituem uma ameaa, enquanto seus traos singulares no so designados de maneira formal e desde que sua conduta anormal no seja assimilada num papel conhecido. Ao atribuir-se um nome e um papel s anormalidades que atemorizam, essas pessoas se transformam em membros de uma categoria, formalmente reconhecida. Ao catalogar os portadores de anormalidades, o Poder os coloca sob o controle da linguagem e dos costumes; assim, transforma quem uma ameaa ordem estabelecida em sustentculo dessa ordem (ILIICH, 1975, p. 57). Como afirma Machado et al (1978), a cada dia se descobre a rede de poderes que envolve nossa existncia, atinge nosso corpo e organiza nosso desempenho social. Cada vez mais se politiza o dia a dia.
Consideraes Finais
As prticas sociais, em nosso tempo, esto condicionadas pela noo de norma. A norma assumida como se fosse proveniente da prpria natureza. O normal se tornou sinnimo de natural. A partir da leitura de Georges Canguilhem e Michel Foucault, o presente artigo problematizou o senso comum estabelecido em torno da norma. Constatou-se que a norma exerce efeito de subjetividade, padronizando condutas, gostos, escolhas. Compreendeu-se tambm que a norma no faz parte da natureza, no algo que o homem descobre objetivamente, atravs da pesquisa cientfica. Ao contrrio, ela faz parte de um processo de construo histrica e social, com colaborao de pesquisadores, filsofos, prticas institucionais, interesses polticos, etc. Ao contrrio de ser uma descoberta da cincia, a norma o que condiciona e dirige o olhar do pesquisador. A doena que era antes considerada como anormal, foi instituda como normal a partir de Leriche e Canguilhem, por ser considerado como parte da experincia de vida do ser
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humano, sendo nomeado como norma inferior. E passou-se a considerar sade no somente a capacidade de tolerar mudanas biolgicas, mas tambm sociais. Em relao educao, para Foucault (2000), a escola funciona como um pequeno tribunal, com leis e infraes prprias para organizar as diferenas entre os indivduos, atribuindo pequenas penalidades, bem como prmios por merecimento, por considerar a norma como padro, punindo ou medicalizando os desvios da mdia. Cabe educao problematizar as prticas da norma, para que se constitua no ambiente de educao maior capacidade de conviver com a diversidade, tolerncia com as diferenas, no as tratando simplesmente como desvios a serem corrigidos. REFERNCIAS AIUB, Monica; NEVES, Luis Paulo. Sade: uma abordagem filosfica. Rev. Cadernos do Centro Universitrio So Camilo. So Paulo, v. 11, n. 1. P. 94-102. Jan/mar 2005. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patolgico. Traduo de Maria de Threza Redig de C. Barrocas e Luiz Octvio F. B. Leite. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2002. COELHO, Daniela de Freitas; MONTEIRO, Silas Borges. CANGUILHEM, Georges: O normal e o patolgico. Resenha. R. Educ. Pbl. Cuiab, v. 19, n. 39, p. 183-186, jan./abr. 2010 COELHO, Maria Thereza vila Dantas; ALMEIDA FILHO, Naomar de. NormalPatolgico, Sade-Doena: Revisitando Canguilhem. Physis: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999. FOUCAULT, Michel. As palavras e as Coisas. 8 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999. FOUCAULT, Michel. Doena Mental e Psicologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994. FOUCAULT, Michel. Histria da Loucura. 4 ed. So Paulo: Perspectiva, 1972. FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clnica. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1998. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 22 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000. FRANCO, Fbio Luis Ferreira Nbrega. Georges Canguilhem e a psiquiatria: norma, sade e patologia mental. Primeiros Escritos. V. 1, N. 1, p. 87-95, 2009.
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PGINA EM BRANCO