Guia de Urbanismo Social - 2023

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GUIA DE URBANISMO

SOCIAL

LA BORATÓRIO ARQ.FUTURO DE CIDADES DO INSPER


GUIA DE URBANISMO
SOCIAL

Correalização:
Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de
Cidades do Insper e Diagonal

Organização:
Carlos Leite, coordenador do Núcleo de Urbanismo Social

LA BORATÓRIO ARQ.FUTURO DE CIDADES DO INSPER

SÃO PAULO 2023


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Guia de urbanismo social (livro eletrônico) /


organização Calos Leite. --1. ed.-- São Paulo: BEI Editoal:
Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de
Cidades do Insper e Diagonal, 2023. PDF.

Vários colaboradores.
ISBN 978-65-86205-34-3

1. Arquitetura — Aspectos sociais 2. Arquitetura sustentável —


Aspectos ambientais 3. Cidades — Aspectos sociais
4. Paisagismo 5. Planejamento urbano 6. Políticas públicas I.
Leite, Carlos.

23-146825 CDD - 711

Índice para catálogo sistemático:


1. Urbanismo social 711
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
O que é o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper
Resultado de uma parceria firmada em 2019 entre o Insper — Insti-
tuto de Ensino e Pesquisa e a plataforma Arq.Futuro, o Laboratório
tem na interdisciplinaridade e na inovação, a orientação para o
ensino e a pesquisa sobre a cidade, com a missão de contribuir
para o impacto real na vida das populações urbanas.

Por que um “Laboratório de Cidades”?


As abordagens tradicionais do urbanismo já não são capazes de
equacionar os complexos desafios enfrentados pelas cidades
contemporâneas. Com o extraordinário aumento da disponibilidade
de dados georreferenciados e a evolução de métodos analíticos, a
pesquisa interdisciplinar sobre os conglomerados urbanos avançou
muito em diversos países.

No Brasil, entretanto, constata-se uma carência de práticas inovado-


ras na gestão das cidades e uma escassez de avaliação de impacto
sobre a eficácia das políticas públicas para a sua transformação.
O Laboratório Arq.Futuro de Cidades tem como objetivo enfrentar
esses desafios, integrando-se a uma escola de negócios que é
referência nas suas atividades acadêmicas de pesquisa e ensino.

Como funciona o Laboratório?


Estruturado em núcleos, o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do
Insper se integra aos programas educacionais e centros de pes-
quisa existentes na instituição de modo transversal, oferecendo
grande liberdade para a reflexão e o estabelecimento de múltiplas
associações e criando um ambiente particularmente propício ao
aprendizado, à pesquisa e à inovação.

A proposta é que o conhecimento sobre cidades seja compreendido


não como uma especialização e sim como um campo de atuação
no qual profissionais de diversas disciplinas aplicam seus conhe-
cimentos e ferramentas.

LA BORATÓRIO ARQ.FUTURO DE CIDADES DO INSPER

V
A Diagonal é uma consultoria pioneira em Gestão Social, que apoia
empresas, organizações e governos a elevarem seu padrão ESG
(governança ambiental, social e corporativa) e a gerarem impacto
socioambiental positivo para a sociedade.

Ao longo da sua trajetória, executou ações em mais de 22 países


e mil municípios brasileiros, e sua atuação integrada, humanizada
e disruptiva foi um marco para a gestão social do Brasil, tendo
influenciado a evolução de políticas públicas voltadas ao trabalho
social, ao relacionamento e ao diálogo com as comunidades.

As bases metodológicas de sua atuação partem do princípio de


que todos os problemas são integrados, simultâneos, sistêmicos e
interdependentes; além da certeza de que para propor soluções para
os problemas complexos dos territórios e de suas comunidades, é
necessária uma abordagem integrada e que leve em consideração
diferentes perspectivas e olhares.

O território é visto como a base do trabalho, porém, para conhecê-lo


profundamente, a Diagonal compreende-o como matriz da vida
social, econômica e política de cada comunidade em que atua. E,
para isso, combina conhecimento interdisciplinar às tecnologias
sociais e digitais, tendo como premissas a participação, a cocriação
e o diálogo social, pois acredita que só é possível traçar planos
estratégicos que incorporam ações realmente sustentáveis por
meio da escuta ativa, do acolhimento e da cooperação.

O trabalho participativo constrói as soluções com a população e


não apenas para ela, favorecendo o desenvolvimento sustentável e
estabelecendo uma relação mais humana, justa e duradoura entre
as pessoas e seus territórios.

VI
_APRESENTAÇÕES
UMA CONTRIBUIÇÃO EM FAVOR DE
CIDADES DESENVOLVIDAS, JUSTAS,
INCLUSIVAS E SUSTENTÁVEIS

As cidades — a maior invenção da espécie humana, como atesta o


economista norte-americano Edward Glaeser — vivem, atualmente,
um desconcertante paradoxo. Enquanto no Norte Global, sobretudo,
elas vêm ganhando “inteligência”, explorando o uso de tecnologias
e desenvolvendo práticas de sustentabilidade para melhorar o seu
funcionamento e a qualidade de vida dos cidadãos, no Sul Global
os direitos mais básicos seguem distantes da maioria da população.

Superar essa vergonhosa contradição, que a pandemia de covid-19


apenas escancarou aos olhos do planeta, é mais que um desafio
para a sociedade contemporânea: é um dever moral. Dentre as
ferramentas disponíveis para realizar essa complexa e incontornável
tarefa, o urbanismo social tem se revelado uma das mais eficazes. A
estratégia, que teve como uma das referências o projeto Favela-Bairro,
do Rio de Janeiro, consagrou-se mundo afora a partir de Medellín.
Nos anos 1990, a metrópole colombiana chegou a ser a mais violenta
da Terra. Graças ao urbanismo social — cujo propósito é, por meio da
inclusão cidadã, promover uma transformação real nas comunidades
pobres —, em 2013 ela foi considerada a mais inovadora do globo.

Sendo um país que tem cerca de 85% dos seus habitantes morando
em cidades, e quase um quarto deles em situação de pobreza, o Brasil
precisa cada vez mais do urbanismo social (e, de fato, já o adotou,
com êxito, em algumas localidades). Daí a pertinência e a importância
de uma obra como esta que o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do
Insper traz agora ao público, em uma correalização com a empresa
Diagonal. Trata-se do primeiro livro do gênero nessa área lançado no
país. Sua ambição é falar de perto a todos os agentes envolvidos nas
questões das populações periféricas brasileiras, fornecendo-lhes
conhecimento teórico e indicações de práticas bem-sucedidas para
ajudá-los a superar as dificuldades que assolam tais territórios.
VII
O presente Guia, que inaugura a nossa “Coleção Urbana”, é outra
iniciativa pioneira do Laboratório, que, em 2020, criou o primeiro
curso de pós-graduação lato sensu em urbanismo social do Brasil,
já em sua terceira turma.

Ambos, obra e curso, têm em sua organização o Núcleo de Urbanis-


mo Social do Laboratório, cuja missão destaca a qualificação dos
territórios vulneráveis de modo propositivo, com vistas à promoção
de cidades desenvolvidas, justas, inclusivas e sustentáveis.

A solução dos problemas das populações urbanas passa necessa-


riamente pela gestão compartilhada. É preciso não só “enxergar”
as comunidades invisibilizadas como também “ouvi-las”. Esse
processo de escuta está na raiz do urbanismo social cujas diretrizes
o Laboratório anseia contribuir para difundir e consolidar no país.
Por um motivo simples: é o caminho mais robusto, solidário, ético
e curto para que todos os brasileiros possam realmente, um dia,
considerar as cidades como a maior invenção humana.

Tomas Alvim
Coordenador-Geral
Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper

VIII
PELA TRANSFORMAÇÃO PREMENTE DA REALIDADE
SOCIOAMBIENTAL DE UMA IMENSA PARCELA DA
POPULAÇÃO DO PAÍS

É com grande satisfação que vemos a consolidação deste Guia


de Urbanismo Social e sua disponibilização abrangente a fim de
que possa se constituir em mais um subsídio ao planejamento de
intervenções em assentamentos precários e bairros marcados por
altos índices de vulnerabilidade socioambiental. Neste trabalho,
vários profissionais sintetizam suas experiências individuais e
coletivas, elencando caminhos possíveis ante as dificuldades e
potencialidades que se apresentam nas ações que visam diminuir
diferenças históricas ou recentes de padrão de vida urbana nas
periferias desassistidas das grandes cidades brasileiras.

A experiência da Diagonal, de mais de 32 anos de consultoria socio-


ambiental em planos e projetos de habitação de interesse social e de
urbanização de áreas degradadas de diversos portes e matizes setoriais
(habitação, saneamento, mobilidade e outros), aponta a importância
do trabalho social junto às comunidades impactadas, com foco na
organização e mobilização para uma participação social efetiva nos
processos de intervenção que contemplem, para além das melhorias
físicas urbanísticas, ações no âmbito das dimensões da sustentabili-
dade ambiental e do desenvolvimento local das comunidades.

Tal processo de trabalho social estabelece uma aproximação dos


agentes públicos com a comunidade, a partir da qual se evidencia
como grande desafio a articulação das políticas sociais nesses
territórios. Articular na ponta, no território, o que muitas vezes
não está presente na estrutura central da gestão pública tem se
mostrado uma difícil tarefa na condução das discussões acerca das
demandas das comunidades envolvidas. Não se pode ignorar que
as necessidades das comunidades exigem uma visão integrada da
totalidade dos aspectos e problemas que afligem a vida de famílias
em situação de vulnerabilidade que vão além das questões tratadas
pela intervenção física e urbanística, reivindicando um arcabouço
de políticas sociais — educação, saúde, trabalho e renda, cultura,
esporte, assistência social, segurança e outras.

IX
A perspectiva do urbanismo social vem lançar luz sobre a im-
portância do acolhimento das diversas necessidades sociais dos
bairros. Realça a relevância do planejamento territorial a partir de
uma compreensão mais abrangente da questão social, buscando
articular, no tempo, intervenções estruturantes com outras de ca-
ráter pontual, mas igualmente importantes para a melhoria da vida
cotidiana desses bairros. Sua ênfase na implementação de planos
locais integrados, a partir de processos de participação delibera-
tivos, também induz à necessidade de articulação desses planos
locais com uma agenda de planejamento global do município para
que não surjam descolados do orçamento geral da cidade. Nesse
sentido, a experiência da Diagonal tem mostrado a importância de
uma liderança capaz de articular políticas sociais, possibilitando
resultados satisfatórios no atendimento holístico das demandas
das comunidades em vulnerabilidade.

Esses argumentos reforçam os princípios nos quais a Diagonal


acredita e que adota em sua atuação junto às prefeituras, governos
estaduais e federal, empresas privadas e organismos multilaterais,
tanto no Brasil quanto em outros países. Parte desse conteúdo com-
põe capítulos deste Guia, trazendo aspectos de uma metodologia de
abordagem muito similar e aderente ao que defende o urbanismo
social — qual seja, colaborar para a busca de um planejamento
urbano efetivo em áreas vulneráveis, imprescindível para a redução
das desigualdades socioambientais das cidades, propósito central
que vem mobilizando toda a nossa trajetória.

Esperamos que a leitura deste Guia contribua para a transformação


premente da realidade socioambiental de uma imensa parcela da
população brasileira.

Kátia Mello
Copresidente da Diagonal

X
_PREFÁCIOS
O TERRITÓRIO IMPORTA: SUPERANDO AS
DESIGUALDADES COM INTERSETORIALIDADE,
CONTINUIDADE E PROTAGONISMO LOCAL

Perto do final deste primeiro quarto do século XXI, estamos viven-


ciando, enquanto humanidade, um conjunto de novas e velhas crises,
uma das quais é o crescimento das desigualdades. O abismo que
separa as condições de vida das camadas mais altas para as mais
baixas da população só cresce em termos materiais e subjetivos,
com a tecnologia e a ciência levando uns a experimentar arte,
cultura e viagens por meio da realidade virtual, além da superação
de doenças crônicas e sonhos de vida em outros planetas, enquanto
outros ainda não dispõem de algo tão simples como um banheiro ou
água corrente em suas casas. A intensidade dessas desigualdades
tem se ampliado, bem como a velocidade com que crescem, de
modo a ser possível imaginar um ponto de não retorno social, uma
situação em que já não seremos capazes de conectar os mundos e
construir uma sociedade efetivamente justa e inclusiva.

É urgente, portanto, repensar as formas como lidamos com o processo


de desenvolvimento e, em particular, como construímos alternativas
para a superação das vulnerabilidades na ponta mais frágil desse
cenário. Infelizmente, estamos acostumados a buscar soluções rá-
pidas, setoriais e generalizáveis para um fenômeno que, na verdade,
é complexo e específico. As famílias que se encontram em situação
de vulnerabilidade vivenciam um conjunto de restrições materiais
e de oportunidades que se articulam para dificultar as possíveis
estratégias de saída. Não se trata apenas de uma questão de baixa
renda. É a falta de renda em conjunto com a menor mobilidade, com
educação e saúde de mais baixa qualidade, ausência de saneamento
básico, pouca oferta de opções culturais e de entretenimento e mais
um conjunto de condições que criam uma vulnerabilidade sistêmica.
Ou seja, não é possível resolver a questão com ações e políticas
setoriais e pontuais. É preciso abarcar esse conjunto de aspectos
que condicionam a vida das pessoas em situação de vulnerabilidade.
XI
Mas, ao mesmo tempo que essa multiplicidade de vulnerabilidades
pode ser identificada, e de certa maneira, generalizada para diversos
territórios, as soluções específicas que devem ser construídas não
são genéricas. Elas devem levar em consideração as condições
particulares de cada local e de cada família, com um olhar atento
para o fato de que não é apenas de vulnerabilidades que essas pes-
soas se constituem. Cada uma delas, em seus bairros e territórios,
desenvolve estratégias próprias de sobrevivência, bem como rotinas
potentes de convívio e colaboração que constroem suas histórias de
luta e superação dentro desse difícil contexto. As novas soluções de
combate às desigualdades têm que considerar essa potência local
como fonte propulsora do desenvolvimento territorial. É nas histórias
específicas que está a chave de articulação dos aspectos mais ur-
gentes e que podem dar início a um ciclo positivo de superação das
vulnerabilidades. Nesse sentido, o fortalecimento das organizações
locais, com respeito e estrutura para a sua atuação, seria o modo
de impulsionar projetos intersetoriais de transformação contínua e
efetiva para os territórios.

Entendemos que esses são os grandes valores por trás do urbanismo


social, conceito que este Guia nos convida a aprofundar. Para nós,
falar em urbanismo social é reconhecer que os territórios urbanos
são o lugar onde a vida efetivamente acontece e, que por isso, mes-
mo eles devem ser o motor da transformação social. Por meio dos
territórios se constitui sentido de pertencimento, se compartilham
anseios sociais, se constroem projetos concretos.

A superação das desigualdades é urgente. A valorização dos territórios


é um caminho estruturante para que possa ser efetiva. Esperamos
que gestores e líderes sociais possam se inspirar nas reflexões aqui
trazidas para que tenhamos cada vez mais ações promovendo a
intersetorialidade, a continuidade de políticas e o protagonismo local.

Maria Alice Setubal


Presidente do Conselho Curador da Fundação Tide Setubal

Mariana Neubern de Souza Almeida


Diretora-executiva da Fundação Tide Setubal

XII
URBANISMO SOCIAL: O GRANDE DESAFIO DO
FUTURO DE NOSSAS CIDADES

Desde o início do século XX, as cidades latino-americanas, do


norte do México até a Patagônia argentina, caracterizaram-se pela
superurbanização. Ausentes do horizonte de políticas públicas
territoriais, elas facilitaram décadas de ocupação irregular de suas
periferias e, com isso, deram margem ao aumento da pobreza, da
desigualdade social e da injustiça.

As cidades que se urbanizaram informalmente em decorrência de


diversos fatores, como o êxodo rural em sua direção, a busca de
oportunidades e, recentemente, em decorrência da migração de
outros países por problemas políticos, assentaram-se em territórios
sem capacidade de suporte (serviços públicos, ruas, equipamentos
de qualidade e moradia digna).

Tais assentamentos, desconectados da cidade formal, distantes de


sua dinâmica social e econômica, são hoje o grande problema de
nossas urbes e o maior desafio a assumir nas próximas décadas. Por
isso, é preciso construir políticas públicas que permitam a disponi-
bilização simultânea de todas as ferramentas de desenvolvimento,
possibilitando identificar e enfrentar as carências presentes em
bairros, favelas e outros conglomerados socialmente vulneráveis
e, assim, pagar a dívida histórica que a cidade e a liderança insti-
tucional têm com os seus cidadãos e seus territórios.

A referida política pública, que para os fins deste texto denomi-


namos urbanismo social, é uma iniciativa que focaliza o cidadão
como sujeito e a cidadania como coletivo e sociedade. A estratégia
propõe um estudo tangível e imaterial do território e, com base
nisso, a geração e formulação de programas e projetos de forma
integral e urbanisticamente definidos como ações sistemáticas
e não isoladas, com o objetivo de proporcionar o maior impacto
possível na população e sua vinculação com a dinâmica da cidade
formal, melhorando todos os indicadores de cobertura básica da
vida urbana e, com ela, a qualidade de vida.

XIII
Na América Latina têm sido realizados programas específicos no
âmbito do urbanismo social. As experiências de Projetos Urbanos
Integrais (PUIs), como as desenvolvidas no Rio de Janeiro, caso do
programa Favela-Bairro; modelos como o de Medellín; as iniciativas
em Iztapalapa, no México, e as ações que vêm sendo realizadas no
Recife (os Centros Comunitários da Paz — Compaz) e estão come-
çando na capital paulista são, entre outras, as apostas para assumir
o desafio de transformar os territórios de maior vulnerabilidade. No
entanto, de acordo com minha experiência em vários países, elas
muitas vezes não constituem uma política pública integral; não
representam uma decisão dos governantes das cidades.

Por fim, e enfatizando o título dado a esta breve apresentação, temos


quatro desafios realmente importantes para o futuro. Primeiro,
fazer prevalecer a diretriz política por meio da qual os governos
entendam que muitos dos problemas dos referidos territórios vul-
neráveis existem devido à sua fragmentação em relação à cidade
formal e à dívida social acumulada. Em segundo lugar, destacar a
importância de estudar, compreender e atuar naquelas localidades
em favor de seus habitantes para buscar soluções conjuntas, a
fim de conseguir, mediante projetos enquadrados em uma política
pública como o urbanismo social, implementar o PUI. Terceiro:
dignificar o cidadão e, finalmente, dar o primeiro passo que nos
leve, a todos, do medo à esperança.

Carlos Mario Rodriguez


Urbanista e professor do Instituto Tecnológico de Monterrey

XIV
_SUMÁRIO

_APRESENTAÇÕES 7

_PREFÁCIOS 11

01_ SUMÁRIO EXECUTIVO 16

02_ URBANISMO SOCIAL: CONCEITOS 32

03_ PLANO DE AÇÃO LOCAL 66

04_ DIMENSÃO GOVERNANÇA 80

05_ DIMENSÃO TERRITORIAL 102

06_ DIMENSÃO SUSTENTABILIDADE URBANA 152

07_ DIMENSÃO SOCIOECONÔMICA E CULTURAL 190

08_ TÓPICOS EM POLÍTICAS PÚBLICAS 210

09_ TÓPICOS EM REGULAÇÃO URBANA 226

10_ TÓPICOS EM FORMAS DE FINANCIAMENTO 240

11_ TÓPICOS EM CIDADE E CRIANÇAS 254

12_ TÓPICOS EM SAÚDE URBANA 272

13_ TÓPICOS EM MULHERES E TERRITÓRIOS 284

14_ TÓPICOS EM MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO 298

15_ CASOS REFERENCIAIS 310


01_
SUMÁRIO EXECUTIVO

1.1_ O que é o Guia? Qual o objetivo?

1.2_ A quem interessa?


O público-alvo

1.3_ Como organizamos as


dimensões do urbanismo social e o
Guia?

1.4_ O contexto

1.5_ Onde encontrar mais


informações?

1.6_ Quem contribuiu?

AUTORES

Núcleo de Urbanismo Social


Capítulo 01 : Sumário Executivo

1.1_ O QUE É O GUIA?


QUAL O OBJETIVO?

Este Guia apresenta um “cardápio” amplo de tópicos e temas sobre


a pauta do urbanismo social, aqui entendida e abordada de forma
abrangente. Sabe-se que provavelmente nenhum caso referencial ou
programa de urbanismo social contempla todos os itens apresentados
nos quinze capítulos do livro. A ideia é oferecer às leitoras e aos leitores
as diversas alternativas e oportunidades que possam ser utilizadas
e que sirvam de referência tanto no conteúdo do capítulo específico
como nas indicações apresentadas em “Para saber mais” — ou ainda
nos casos referenciais citados em diferentes momentos da obra e
analisados na parte final do trabalho, o Capítulo 15.

Conforme está explicado no Capítulo 2, o termo “urbanismo social”


foi consagrado internacionalmente no início do século XXI com a
experiência colombiana, em especial de Medellín. Assim, a referência
primordial é essa; não por acaso, existem muitos artigos acadêmicos e
livros sobre o urbanismo social de Medellín (vários, aliás, citados neste
Guia). Isso não implica que o caso de Medellín não tenha limitações ou
críticas, como também se aponta no mencionado capítulo.

O caso de Medellín inclui alguns elementos que justificam a sua


fama e referência como o grande modelo na América Latina de
“urbanismo social”, trazendo, assim, os conceitos do que se entende
por essa estratégia de atuação de modo amplo: (i) a continuidade do
programa por quase quinze anos e várias gestões municipais; (ii) a
efetivação de uma entidade pública empoderada que coordena as
diversas políticas e ações públicas e as integra e territorializa nos PUIs
(Projetos Urbanos Integrais), a EDU (Empresa de Desenvolvimento
Urbano); (iii) a construção de modelos de governança compartilhada
entre a gestão pública, a academia e, claro, com protagonismo da
comunidade local; (iv) a efetiva implantação de ações, projetos e obras
em diversos territórios, com destaque para a construção de grandes
equipamentos públicos-âncora (bibliotecas-parque; UVA — Unidades
de Vida Articulada e outros) com altíssima qualidade arquitetônica;
(v) as entregas rápidas de espaços públicos de qualidade articulados
com outros elementos do plano urbanístico e, em especial, com os

17
Guia de Urbanismo Social

sistemas de mobilidade urbana, tendo como destaque as estações do


Metrocable (teleférico); (vi) a ênfase na redução da violência urbana,
desde a seleção inicial dos territórios (sempre aqueles com índices
de maior violência), passando pelas abordagens sociais e urbanas
integradas às de cultura e educação como estratégia de ação (em
contraposição à postura policial repressora). Vale lembrar ainda que
o programa de urbanismo social iniciado em 2004 continha uma
nova visão de cidade, em essência mais inclusiva socialmente, ou
seja, tratava-se de um projeto amplo e abrangente, com estratégias
gerais e integradas de transformação e não apenas de ações ou
planos específicos para alguns territórios.

E o termo “urbanismo social”? De fato, popularizada desde o início


do programa pelo prefeito Sergio Fajardo e sua equipe em Medellín
(gestão 2003-7), a expressão adjetivou a palavra urbanismo, en-
fatizando sua demanda focada no impacto social, e o sucesso do
programa a tornou um conceito com o qual se passou a trabalhar
em diversas cidades da América Latina. Naturalmente, a expressão
trouxe consigo esperadas polêmicas. Questiona-se por que agregar
a palavra “social” se “todo urbanismo deva ser social”1. Para este
Guia, justifica-se o uso da expressão sobretudo por se reconhecer
na prática do urbanismo social trazido da experiência de Medellín um
programa de urbanismo com algumas especificidades. Obviamente,
não se intenciona no Guia buscar rivalizar ou deixar de reconhecer
a enorme importância e pioneirismo dos programas de urbanização
de favelas que são anteriores, pioneiros e inspiraram o programa de
Medellín e, sim, trabalhar no âmbito das especificidades dos projetos
de urbanismo social, assim como apontar diversos elementos que
são comuns às duas abordagens, as quais, portanto, não devem ser
vistas como excludentes.

1 Ao avaliar as inúmeras ações e programas de urbanismo no mundo inteiro, ao


longo da história, há que considerar, naturalmente, uma imensa pluralidade e di-
versidade de enfoques: desde as políticas e ações públicas promotoras de instru-
mentos urbanos e seus planos até inúmeros projetos e ações de caráter privado e
imobiliário. Ou seja, existem “urbanismos” de caráter público e social, assim como há
“urbanismos” não sociais que promovem exclusão. E, entre os dois extremos, exis-
tem inúmeros “urbanismos” com enfoques variados e mesclados. Vale aqui lembrar
da expressão consagrada no Brasil, inclusive legalmente, do conceito e termo “ha-
bitação social”. Essa expressão diferencia e qualifica a palavra “habitação”, dando
foco para aquela específica de interesse social.

18
Capítulo 01 : Sumário Executivo

Ainda no Capítulo 2, comenta-se sobre os tradicionais programas de


urbanização de favelas, desenvolvidos no Brasil desde a década de
1990, referenciando-se o pioneiro e premiado Favela-Bairro, que teve
lugar no Rio de Janeiro, com o propósito de esclarecer as diferenças
e as aproximações entre os dois conceitos.

Nesse sentido, destaca-se que este não é um “guia de urbanização de


favelas”, pois: (i) o urbanismo social apresenta algumas especificidades
e diferenças e (ii) já existem diversos e ótimos livros, teses, artigos
e manuais publicados no Brasil e América Latina a respeito daquele
tema, seja via produção acadêmica consistente ou por intermédio de
órgãos públicos e organizações multilaterais2 (apontam-se alguns
desses trabalhos nos Capítulos 2 e 15).

As cidades sempre foram palco de disputas no uso do território, e nos


países com imensas desigualdades sociais, como o Brasil, é nelas que
os problemas se concretizam e quaisquer programas e ações no campo
do urbanismo e afins se polemizam. Não se intenciona, no presente
Guia, alimentar competição entre programas — cada qual tem o seu
contexto histórico e local — e, sim, evidenciar suas especificidades,
além, é claro, de apresentar nossas definições de urbanismo social.

Não existe um “modelo único” de urbanismo social; o que se tem são


diversos processos e programas nos quais, em diferentes situações
e contextos específicos, utilizam-se itens variados do “cardápio” do
urbanismo social, mais completos ou parciais, mais ou menos dura-
douros, mais ousados ou restritos. E haverá ações e programas que
serão nominados de urbanismo social, de modo polêmico. O que se
procurou trazer no Guia foi aportar o referencial amplo de temas de
urbanismo social e apresentar alguns casos concretos. Propõe-se aqui
um aprendizado sobre os diversos temas, processos, estratégias e
lições que tenham potencial de replicabilidade nas cidades brasileiras.

O objetivo final do urbanismo social é a promoção de melhores


condições de vida à população que vive nas favelas por meio da qua-
lificação integrada dos territórios precários com base na governança

2 BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento); Cities Alliance; Banco Mundial;


CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina).
19
Guia de Urbanismo Social

compartilhada entre a população local e a gestão pública, atuando !


de modo integrado e com continuidade dos programas. Trata-se de PARA SABER MAIS, VER:
demanda social urgente no Brasil, pois estima-se que cerca de 17
▸ Instituto Locomotiva,
milhões de pessoas, 8% da população, residam em favelas3, e que 2021. Educação, cultura,
o déficit habitacional no país seja de aproximadamente 5,8 milhões periferia e racismo:
um levantamento do
de moradias (18,5 milhões de pessoas)4. Instituto Locomotiva
para a Central Única das
Favelas.

▸ Fundação João
Pinheiro, 2021. Déficit
Existem diversos termos para favelas no Brasil: comunidades, territó- habitacional no Brasil.
rios de vulnerabilidade social, territórios periféricos, bairros informais,
assentamentos precários (usada pelos governos, assim como favelas),
"áreas degradadas, ocupadas desordenadamente e sem infraestrutura",
aglomerados subnormais (IBGE) e outros. Optou-se no Guia pela utilização
do termo favela por ser o mais comumente utilizado e provavelmente o de
maior aceitação pelas comunidades desses territórios. Obviamente não
se deve impor ao termo nenhum tipo de significado pejorativo ou precon-
ceituoso, muito pelo contrário: trata-se, sobretudo, do reconhecimento do
termo junto à sua população, com seus desafios e potencialidades, como
se mostra ao longo do Guia.

O Guia tem como objetivos:


▸ Apresentar um elenco de possíveis soluções e propostas, apren-
dizados e referências para a promoção do urbanismo social de
modo amplo em nossas cidades; uma sistematização de conceitos,
práticas e metodologias orientados para a replicabilidade;

▸ Servir de apoio técnico e instrumento de mobilização na imple-


mentação de programas de urbanismo social, especialmente junto
às comunidades das favelas e suas potencialidades;

▸ Gerar impacto social pela divulgação e disseminação ampla e


gratuita de conhecimentos em urbanismo social.

3 MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela: a maior pesquisa


já feita sobre a favela brasileira. São Paulo: Gente, 2014

4 Ver: O déficit habitacional no Brasil. Fundação João Pinheiro, 2019.

20
Capítulo 01 : Sumário Executivo

1.2_ A QUEM INTERESSA?


O PÚBLICO-ALVO

Como em todo guia, ou manual, procurou-se fazer deste um produto


prático, de linguagem objetiva e acessível ao grande público, não
especializado. O objetivo é que quem mais precise promover, de
algum modo, práticas de urbanismo social nas diversas cidades
do Brasil encontre aqui explicações, definições, conceitos, meto-
dologias e exemplos concretos.

Assim, os públicos-alvo do Guia são: (i) lideranças comunitárias


e moradores das favelas das cidades brasileiras; (ii) gestores
públicos; (iii) lideranças do terceiro setor; (iv) meio acadêmico e
demais interessados em promover melhorias nos territórios e na
vida dos moradores das favelas, por meio das diversas práticas de
urbanismo social aqui apresentadas.

1.3_
COMO ORGANIZAMOS AS
DIMENSÕES DO URBANISMO
SOCIAL E O GUIA?

Por se tratar de objeto de estudo em área multi e interdisciplinar,


organizou-se o presente Guia e seus diversos conteúdos em termos
de dimensões e tópicos de atuação. Eles ajudam a visualizar como
o programa está estruturado e permitem abordar cada aspecto em
separado, sem prejuízo da proposta de integralidade das diversas
ações. Tudo deve se conectar no território e no seu uso pela comu-
nidade. Assim, as dimensões e sua organização no Guia são estas:

INSTITUCIONAL E GOVERNANÇA

▸ O Capítulo 4, A governança diz respeito aos espaços de tomada de decisão e aos


principalmente, e atores (stakeholders) que participam desse processo em determinado
também o 3 e o 5
território. Deve-se refletir sobre a forma de organização de tais atores,
abordam aspectos
dessa dimensão. seja nos órgãos públicos — nas suas diversas escalas e setores de
atuação —, privados ou nas entidades comunitárias, tendo em vista
os objetivos do programa. Aspectos como transparência, participação

21
Guia de Urbanismo Social

social, capacidade de gerenciamento de processos e resultados devem


ser considerados no desenho institucional, do mesmo modo que novas
formas de governança compartilhada podem ser desenvolvidas.

TERRITORIAL

O ordenamento territorial implica a correlação entre um conjunto de ▸ O Capítulo 5,


políticas setoriais que se relacionam direta ou indiretamente com a sobretudo, e também o 3
e o 15 abordam aspectos
política de desenvolvimento urbano a partir de diferentes escalas. dessa dimensão.
Em linhas gerais, devem ser consideradas ações de um conjunto de
políticas, programas, planos, ações e projetos relacionados aos seus
diversos elementos: Sistema de Infraestrutura; Sistema de Transporte
e Mobilidade; Sistema de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços
Livres; Sistema de Equipamentos Urbanos e Sociais; Serviço de
Moradia Social; Sistema de Proteção do Patrimônio Cultural, dentre
outros. Tais sistemas podem ser entendidos como o hardware com o
qual o programa deve dialogar, da mesma maneira que as dimensões
de governança e participação social se refeririam ao software.

SOCIOECONÔMICA E CULTURAL

As dimensões socioeconômica e cultural dizem respeito ao conjunto ▸ Contudo, o Capítulo 7,


de políticas públicas e recursos locais que tratam desses aspec- em especial, e também
o 2, 4, 5, 8, 11, 13 e 15
tos em termos de desenvolvimento social, empreendedorismo, tratam dessa dimensão.
artes, hábitos e costumes presentes que atendem determinado
território ou são produzidos pela comunidade da área em ques-
tão. Relacionam-se aos programas de tais políticas e, como eles,
dialogam com os territórios quanto à abrangência, qualidade,
prioridades e mecanismos de integração de serviços. Aqui também
se apresentam as fundamentais ações que emergem nas diversas
comunidades a partir de seus moradores, os diversos processos
bottom-up, a potência das favelas. Essa temática está presente de
modo transversal em diversos capítulos do livro.

SUSTENTABILIDADE URBANA
▸ O Capítulo 6,
principalmente, e
As dimensões ambiental e de sustentabilidade abordam a melhoria também o 5 abarcam
do padrão de vida em todos os espaços da cidade por meio de uma aspectos dessa
dimensão.
22
Capítulo 01 : Sumário Executivo

relação mais bem-sucedida entre a ocupação urbana e a natureza,


de modo a garantir condições socioambientais satisfatórias para
a população nos bairros e nas comunidades. Essas dimensões olham
para os seguintes aspectos: Sistema de Espaços Livres e Infraestrutura
Verde, Sistema de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário,
Drenagem da Superfície, Coleta e Disposição dos Resíduos Sólidos e
Orgânicos, Gestão de Riscos Urbanos e Educação Ambiental e Ações
e Instrumentos de Redução dos Impactos das Ações Climáticas. Como
as periferias são impactadas e podem ser territórios de recuperação
ambiental e ações de sustentabilidade urbana? Como reduzir áreas
de risco ambiental levando sempre em conta as comunidades locais?
Como promover a justiça ambiental nas periferias?

JURÍDICA (MARCOS REGULATÓRIOS)

▸ O Capítulo 9, O elemento jurídico alude aos instrumentos que prezam pela


sobretudo, e também o promoção da função social da cidade e da propriedade e da ges-
10, abordam aspectos
tão democrática urbana. Trata ainda de todos os demais itens da
dessa dimensão.
regulação urbana que podem ajudar na promoção de cidades mais
justas e inclusivas e na qualificação dos territórios de vulnerabili-
dade social. Tais instrumentos podem responder ao desequilíbrio
de forças no que diz respeito ao desenvolvimento local de áreas
urbanas vulneráveis e suas populações. Para essa dimensão é
importante realizar o levantamento e a análise do marco regula-
tório aplicável, especialmente em relação à política urbana e às
interfaces com as demais políticas setoriais que dialogam com o
escopo do programa.

FINANCEIRA
(FORMAS DE FINANCIAMENTO)

▸ O Capítulo 10 aborda
Refere-se ao potencial ou formato de investimentos público e/ou de
aspectos dessa agências multilaterais de financiamento (Banco Mundial, BID, CAF
dimensão.
etc.), assim como àqueles derivados da política fundiária, utilizados
para viabilizar os programas de urbanismo social. A depender das
estruturas organizacionais, normas legais e interesses políticos, as
formas de viabilização do projeto podem ser distintas e, por vezes,
inovadoras para o investimento público.

23
Guia de Urbanismo Social

Além de tais dimensões — as mais tradicionais, por assim dizer —,


apresentam-se alguns tópicos que complementam o cardápio da obra.
São temas e pautas de crescente importância em nossas cidades e
nos territórios de vulnerabilidade social:

▸ Tópicos em políticas públicas — Capítulo 8

▸ Tópicos em cidade e crianças — Capítulo 11

▸ Tópicos em saúde urbana — Capítulo 12

▸ Tópicos em mulheres e territórios — Capítulo 13

▸ Tópicos em monitoramento e avaliação de impacto — Capítulo 14

A pauta específica dos Planos de Ação Local — que, em uma situação


ideal, deve aglutinar em seu escopo todas as dimensões e tópicos
mencionados, integrando-os e territorializando-os — está no Capítulo 3.

Por fim, no Capítulo 15 abordam-se alguns casos referenciais no


Brasil e na América Latina.

24
Capítulo 01 : Sumário Executivo

1.4_ O CONTEXTO

Este Guia emerge do Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório


Arq.Futuro de Cidades do Insper, que tem como missão congregar
de forma integrada, multidisciplinar e inovadora as dimensões de
extensão e impacto social, pesquisa aplicada, ensino e capacitação.
Trata-se do primeiro centro especializado no tema no Brasil com
tal agenda emergencial, que consiste em uma complexa pauta de
promoção das cidades inclusivas, com a qualificação dos territórios
de vulnerabilidade social de modo propositivo e transformador,
incremental e contínuo.

O Núcleo busca atuar como um “laboratório de conceituação”,


estudos de caso e pesquisa baseada em dados e evidências, visan-
do à construção de conhecimento em urbanismo social e unindo
pesquisadores e instituições das áreas pública e privada, do âmbito
acadêmico e do terceiro setor, além de lideranças comunitárias, e
promovendo parcerias com instituições multilaterais.

O Guia surge também alinhado à Pós-graduação em Urbanismo


Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. Pioneiro
no país, o curso traz uma agenda emergencial para as cidades
brasileiras: capacitar profissionais a estarem aptos a trabalhar
na qualificação dos territórios de vulnerabilidade social. Inserida
no Núcleo de Urbanismo Social, a pós-graduação é resultado de
uma parceria entre Insper, Itaú Cultural e Arq.Futuro e compõe, de
maneira transversal, uma plataforma interdisciplinar que oferece
grande liberdade para a reflexão e o estabelecimento de múltiplas
associações, propício ao aprendizado, à pesquisa e à inovação. Tal
plataforma compreende que o conhecimento sobre as cidades deve
ser entendido como um campo de atuação no qual profissionais
de diversas áreas desenvolvam as competências e habilidades
necessárias à atuação em favelas.

25
Guia de Urbanismo Social

1.5_ ONDE ENCONTRAR MAIS


INFORMAÇÕES?

Ao longo do Guia, apresentamos destaques de conteúdo em formato


de box e em “Para saber mais” damos indicações de leitura para
quem tiver interesse em se aprofundar nos tópicos discutidos no
livro. Sendo um guia prático e não um produto acadêmico, pro-
curou-se evitar citações e referências bibliográficas, exceto em
passagens nas quais isso era absolutamente necessário. Nesses
casos elas são apresentadas como notas de rodapé. Sempre que
possível, tanto as indicações de “Para saber mais” como as de
referências acadêmicas são acompanhadas de hiperlinks para
os conteúdos disponíveis na internet. Imagens e fotografias dos
casos estão no Capítulo 15.

1.6_ QUEM CONTRIBUIU?

O Guia é uma iniciativa do Núcleo de Urbanismo Social, em parceria


com outras áreas do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper —
Arquitetura e Cidade; Cidade e Regulação; Habitação & Real State;
Mobilidade Urbana; Mulheres e Territórios e Saúde Urbana — e a
empresa Diagonal, que tem longa, ampla e reconhecida experiência
prática no assunto. Em diversos temas específicos, contou-se com
a colaboração de entidades parceiras e de especialistas, além dos
membros do Núcleo de Urbanismo Social e da Diagonal: Anaclaudia
Rossbach (Lincoln Institute of Land Policy); André L. Duarte (Insper);
Camila Maleronka (Insper); Carlos Mario Rodriguez (Instituto Tec-
nologico de Monterrey); Elisabete França (Prefeitura de São Paulo);
Fernanda Almeida (Territórios Clínicos, FTAS); Fundação Tide Setubal
(FTAS); Gabriela Massuda; Gareth Doherty (Harvard University
Graduate School of Design); Fernanda Moreira; Hubert Klumpner e
Klearjos E. Papanicolaou (Urban Think Thank Next, Zurique); Instituto
Alana; Instituto Pólis; Jorge Melguizo (Medellín); José Brakarz; Lizete

26
Capítulo 01 : Sumário Executivo

M. Rubano e Vigliecca & Associados; Lucas Bueno (FAU-USP); Lucas


B. Rosin (EACH/USP); Marcus A. Y. Salusse, Juliana M. Mitkiewicz e
Luiz F. C. S. Durão (Insper); Marcos Rosa (FAU-USP); Martín Motta
e Mariana Poskus (CAF — Banco de Desenvolvimento da América
Latina); Murilo Cavalcante (Prefeitura de Recife); Nadia Somekh
(CAU-BR); Observatório de Olho na Quebrada de Heliópolis; Portal de
Dados Urbanos do Insper; Renato Anelli, Angélica Alvim e Andresa
Marques; Antonio Fabiano Jr. (FAU-Mackenzie); Ricardo Henriques
(Instituto Unibanco); Roland Krebs e Markus Tomaselli (Urban Design
Lab, Universidade Técnica de Viena); Sérgio Magalhães (FAU-UFRJ);
Simone Gatti (WRI Brasil / FICA); Ygor Santos Melo e Camila Jordan
(TETO Brasil); Vera S. Luz (PUCCAMP).

Cabe destacar que o Guia contou com a colaboração fundamental


não só de pesquisadores da academia, mas também de profissionais
técnicos e gestores públicos e de lideranças que atuam diariamente
nos territórios de vulnerabilidade social e favelas, em especial as que
integram o Núcleo Mulheres e Territórios.

Em cada capítulo, apontam-se os nomes dos autores e das respectivas


instituições/entidades às quais eles são ligados. Nos casos de autoria de
membros dos núcleos do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper
ou da Diagonal — os mais recorrentes no Guia —, creditamos ambas,
enquanto os autores aparecem referenciados nos quadros adiante.

A organização e a coordenação-geral do Guia ficaram a cargo de Carlos


Leite, coordenador do Núcleo de Urbanismo Social, com apoio de Ana
Letícia Salla, pesquisadora do mesmo núcleo. O Núcleo teve ainda a
participação de Fernando Túlio em 2020 e 2021 e de Laryssa Kruger
em 2022, ambos colaborando na estruturação dos temas da pesquisa.

A revisão editorial dos textos é de Rinaldo Gama, coordenador de


Conteúdo do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e inte-
grante da equipe BEĨ.

O projeto gráfico e a diagramação são de Mariana Demuth e da


San.po Arquitetura e Design.

27
Guia de Urbanismo Social

A seguir, a participação dos diversos autores nos respectivos capítulos:

CAPÍTULO AUTORES

1 Sumário Executivo Núcleo de Urbanismo Social

2 Urbanismo social: conceituação Núcleo de Urbanismo Social; Lucas Bueno

3 Plano de Ação Local Núcleo de Urbanismo Social; Diagonal

Carlos Mario Rodriguez; Fundação Tide Setubal;


4 Dimensão governança Núcleo Mulheres e Territórios; Antonio Fabiano Jr.
e Vera S. Luz.

Diagonal; Portal de Dados Urbanos do Insper;


Núcleo Arquitetura e Cidade; Murilo Cavalcante;
Núcleo de Urbanismo Social; Núcleo de
5 Dimensão territorial Mobilidade Urbana; Núcleo Habitação & Real
State; Núcleo de Mulheres e Territórios; Núcleo de
Urbanismo Social; Nadia Somekh.

6 Dimensão sustentabilidade urbana Diagonal; André L. Duarte; FAU-Mackenzie

Núcleo de Urbanismo Social; Núcleo Mulheres


e Territórios; Marcus A. Y. Salusse, Juliana M.
7 Dimensão socioeconômica e cultural
Mitkiewicz e Luiz Fernando C. S. Durão; Marcos
Rosa; TETO Brasil

8 Tópicos em políticas públicas Lucas B. Rosin; Ricardo Henriques; Jorge Melguizo

9 Tópicos em regulação urbana Núcleo Cidade e Regulação; Instituto Pólis

10 Tópicos em formas de financiamento Camila Maleronka; Anaclaudia Rossbach; Diagonal

Instituto Alana; Núcleo de Urbanismo Social;


11 Tópicos em cidade e criança Núcleo Mulheres e Territórios; Observatório de
Olho na Quebrada de Heliópolis

12 Tópicos em saúde urbana Núcleo de Saúde Urbana; Fernanda Almeida

13 Tópicos em mulheres e territórios Núcleo Mulheres e Territórios

14 Tópicos em monitoramento e avaliação Ana L. M. Salla; Fundação Tide Setubal

Núcleo de Urbanismo Social; Gabriela Massuda;


Sérgio Magalhães; José Brakarz; Elisabete França;
15 Casos referenciais Diagonal; Lizete Rubano e Vigliecca & Associados;
CAF; UTT_next; Roland Krebs e Markus Tomaselli;
Gareth Doherty; Simone Gatti (WRI Brasil / FICA).

28
Capítulo 01 : Sumário Executivo

Nesta página estão listados os núcleos do Laboratório Arq.Futuro de


Cidades do Insper e os integrantes deles que colaboraram com o Guia:

NÚCLEO COORDENADOR EQUIPE

Urbanismo Social Carlos Leite Ana Letícia Salla, Laryssa Kruger

Carmen Silva; Cleide Alves,


Eliana Silva, Ester Carro, Evaniza
Mulheres e Territórios Juliana Mitkiewicz
Rodrigues, Joelma Sousa, Marília
Di Santis

Cidade e Regulação Victor Carvalho Pinto José Antonio Apparecido Junior

Adriano Borges Costa, Evandro


Mobilidade Urbana Sérgio Avelleda
Luís Alves

Saúde Urbana Paulo Saldiva Paulo Afonso André

Arquitetura e Cidade Laura Janka

Habitação & Real State José Police Neto

A equipe da Diagonal que participou do livro foi esta:

Coordenação-geral: Katia Mello


Coordenação técnica: José Guilherme Schutzer

CAPÍTULOS AUTORES

José Guilherme Schutzer, Katia Mello e Vilma Dourado


3 Plano de Ação Local Matos Maia Gomes

Andressa Capriglione, Letícia Canonico, Paulo Olivato,


5 Dimensão territorial Rodrigo Tavares

Dimensão Daniela Lira Mariz, Deise Coelho, Fabio Pereira dos


6 sustentabilidade urbana Santos, José Guilherme Schutzer, Rafael Costa e Silva

Tópicos em formas de
10 financiamento
Andressa Capriglione e Deise Coelho

Sandra Capriglione, Laís Rebeque Dagola, Carolina de


15 Casos referenciais Queiroga Jucá, Kátia Mello e Vilma Dourado Matos Maia
Gomes

29
Guia de Urbanismo Social

AGRADECIMENTOS

O coordenador do Guia, Carlos Leite, agradece especialmente a


Tomas Alvim, coordenador-geral do Laboratório Arq.Futuro de
Cidades do Insper, e a Katia Mello, presidente da Diagonal, pelos
apoios fundamentais durante todo o período de desenvolvimento
desta obra — da fase de pesquisas à edição final, passando pelo
amplo trabalho de alinhamento das contribuições dos diversos
colaboradores. Registra ainda um agradecimento ao revisor edi-
torial, Rinaldo Gama.

30
02_
URBANISMO SOCIAL: CONCEITOS

2.1_ Definições, origem e contexto

2.2_Medellín: contexto e
singularidade (o que é replicável e o
que é específico)

2.3_ Programas de urbanização


de favelas e urbanismo social:
semelhanças e complementaridades

AUTORES

2.1_ 2.3_ Núcleo de Urbanismo Social;


2.2_ Lucas Bueno.
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

2.1_ DEFINIÇÕES, ORIGEM E CONTEXTO

“O urbanismo social coloca o cidadão no centro da


transformação; não é a cidade que se transforma, mas, sim, o
cidadão que se transforma e acaba por transformar a cidade.”
Jorge Melguizo1

O termo “urbanismo social” tornou-se internacionalmente conhe-


cido no início do século XXI, com a experiência colombiana, em
especial de Medellín. A referência primordial é essa; não por acaso
existem muitos artigos acadêmicos e livros sobre o Urbanismo
Social dessa cidade2.

Reforça-se aqui a importante explicação apresentada no Capítulo 1:

O caso de Medellín inclui alguns elementos que justificam a


sua fama e referência como o grande caso na América Latina
em “urbanismo social”, trazendo, assim, os conceitos do que se
entende por urbanismo social de modo amplo: (i) a continuidade do
programa por quase quinze anos e várias gestões municipais; (ii)
a efetivação de uma entidade pública empoderada que coordena
as diversas políticas e ações públicas e as integra e territorializa
nos PUIs (Projetos Urbanos Integrais), a EDU (Empresa de Desen-
volvimento Urbano); (iii) a construção de modelos de governança
compartilhada entre a gestão pública, a academia e, claro e com
protagonismo, a comunidade local; (iv) a efetiva implantação de
ações, projetos e obras em diversos territórios com destaque
para a construção de grandes equipamentos públicos-âncora
(Bibliotecas-Parque; UVA — Unidades de Vida Articulada e outros)
com altíssima qualidade arquitetônica; (v) as entregas rápidas de
espaços públicos de qualidade articulados com outros elementos

1 Nascido na Comuna 13, o bairro periférico mais violento na época do narcotrá-


fico e do protagonismo de Pablo Escobar, Jorge Melguizo foi secretário de Cultura
Cidadã e de Desenvolvimento Social de Medellín e um dos responsáveis pela pro-
moção do urbanismo social. É atualmente escritor, consultor em diversas cidades
da América Latina e professor do curso de Pós-graduação em Urbanismo Social do
Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper.

2 Ver Capítulo 15, com os casos referenciais.

33
Guia de Urbanismo Social

do plano urbanístico e, em especial, com os sistemas de mobilidade


urbana, com destaque para as estações do Metrocable (teleférico);
(vi) a ênfase na redução da violência urbana, desde a seleção
inicial dos territórios (sempre os com índices de maior violência),
passando pelas abordagens sociais e urbanas integradas às de
cultura e educação como estratégia de ação (em contraposição à
postura policial repressora). Vale lembrar ainda que o programa
de urbanismo social iniciado em 2004 continha uma nova visão
de cidade, essencialmente mais inclusiva socialmente, ou seja,
tratava-se de um projeto amplo e abrangente, com estratégias
gerais e integradas de transformação e não apenas ações ou
planos específicos para alguns territórios.

No Capítulo 1 apresentou-se a explicação e a justificativa do uso


do termo “urbanismo social”.

Urbanismo social não é uma experiência que surge de modo isolado


na Colômbia. É o resultado de aprendizados, da construção de
conhecimentos e de práticas coletivas que tornaram possível a
transformação e qualificação das favelas na América Latina, cujas
populações há décadas vêm sofrendo com a violência de conflitos,
a pobreza, as desigualdades, as carências de infraestrutura urbana
de todo tipo e de habitação digna. E que, reconhecidamente pelos
seus autores de Medellín, é influenciado pelo caso pioneiro e
premiado de urbanização de favelas, o programa Favela-Bairro3,
desenvolvido no Rio de Janeiro na década de 19904. Ou seja,
deixa-se claro que ambos os conceitos — urbanismo social e
urbanização de favelas — não são aqui vistos como excludentes
ou objeto de disputa e sim como abordagens complementares e
derivadas do desenvolvimento em contextos diversos.

3 Sobre o programa Favela-Bairro, ver item 2.3, adiante.

4 Programas de urbanização de favelas (ou “assentamentos informais”), “Mejo-


ramiento de barrios” (espanhol) ou “Slum upgrading programs” (inglês) são os ter-
mos utilizados na literatura, bastante ampla, sobre o tema produzida no Brasil e na
América Latina, na academia, em programas estatais e nas agências internacio-
nais de fomento como BID, CAF, Banco Mundial, ONU Habitat ou Cities Alliance.
Ver item 2.3, adiante.
34
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

No Guia também se pretende mostrar que alguns desses elemen-


tos trabalhados pelo urbanismo social já vêm sendo aplicados
e desenvolvidos em outras intervenções no Brasil e nos demais
países da América Latina inspirados pela experiência de Medellín,
mesmo que ainda de modo parcial, em especial os casos do Compaz
(Centro Comunitário da Paz) no Recife, desde 2016, e das Utopias
de Iztapalapa, desde 2018, na cidade do México. Destaca-se que
a experiência pioneira de Medellín, as de Recife e Iztapalapa e as
mais recentes sendo desenvolvidas no estado do Pará (Usinas da
Paz — Territórios pela Paz) e na cidade de São Paulo (Urbanismo
Social em São Paulo, em fase de planejamento e licitação de obras)
têm com elemento protagonista a escolha dos territórios com
altos índices de violência (ver esses casos no Capítulo 15). Menos
enfáticos no protagonismo da redução da violência, mas com ins-

!
pirações no urbanismo social e abordagens específicas, pode-se
citar os programas Rede CUCA (Centros Urbanos de Cultura, Arte,
PARA SABER MAIS, VER: Ciência e Esporte) em Fortaleza, Vida Nova nas Grotas, em Maceió,
▸ Artigo Medellín: e Mais Vida nos Morros, em Recife.
inspiração para resgatar
as cidades brasileiras.
Outras Palavras, 2022. Aqui já se anota, então, um elemento particular dos programas de
▸ Os diversos webinários urbanização social que o diferencia dos programas de urbanização
e publicações na página de favelas — o foco na atuação em territórios de maior violência,
do Laboratório Arq.
com robustas ações modeladas para sua redução — e que teve
Futuro de Cidades do
Insper. no Brasil uma experiência pioneira, mesmo que infelizmente de
curta duração na sua concepção original abrangente, o programa
UPP Social (Unidades de Polícia Pacificadora), criado no Rio de
Janeiro em 2010 e que chegou a implantar alguns equipamentos-
âncora inspirados nas Bibliotecas-parque de Medellín, as Praças
do Conhecimento, pontos de referência dos serviços públicos nos
bairros pacificados.

Ou, como apontado no documento do Pacto pelas Cidades Justas,


movimento da sociedade civil reunindo quase trinta instituições da
sociedade civil para promoção do urbanismo social em São Paulo
em parceria com a Prefeitura da cidade criado em 2020:

O papel do urbanismo como instrumento contra a violência das


cidades foi amplamente comprovado pela experiência de Medellín,

35
Guia de Urbanismo Social

na Colômbia. A transformação ocorreu graças a um projeto que


integrou a construção de espaços e equipamentos públicos de
qualidade, soluções inteligentes de mobilidade e investimento
contínuo em educação e cultura. Sobretudo, o sucesso se deveu
ao fato de que o projeto não se vinculou a uma gestão ou mandato,
tendo sido mantido pelas sucessivas administrações da cidade.

Medellín foi a cidade que conseguiu consolidar, de maneira articulada,


diversas intervenções simultâneas que geraram um resultado urbano
e social surpreendente em um período relativamente curto, dado o
escopo de todas elas. Isso não significa que esse processo é isento
de desafios e críticas. Nenhuma política pública é infalível nem tem o
poder de resolver por completo todos os problemas a que se propõe.

O surgimento de tal política pública e da metodologia de intervenção


participativa centrada na comunidade visando à qualificação de
favelas ou territórios de vulnerabilidade social é resultado de um
conhecimento coletivo acumulado ao longo dos anos por diversos
atores, e em várias cidades, que encontrou ambientes com condições
mais ou menos favoráveis para a sua implementação. Medellín,
por variadas razões, como veremos mais à frente, não é um caso
considerado de fácil replicação. Nem deveria ser. As especificidades
históricas, culturais, sociais, jurídicas e financeiras de cada cidade
demandam adaptações e traduções de estratégias empregadas
em circunstâncias distintas. O contexto local importa, o processo
importa. O que se propõe aqui, vale reiterar, é justamente um
aprendizado sobre os processos e estratégias — lições que tenham
potencial de replicabilidade — e não das soluções específicas em
si desenvolvidas para o contexto de Medellín ou outras cidades
que, mais recentemente, também têm promovido o urbanismo
social. Esse exercício de análise também permite aprender com
os impasses e desafios encarados nessas cidades, com a possibili-
dade de antecipá-los durante o processo de adaptação da política
para outros territórios, lembrando que se aprende com os erros e
acertos, limitações e avanços e, sempre que possível, por meio
de análises de avaliação e monitoramento calcadas em dados e
evidências (ver Capítulos 14 e 15).

36
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

O urbanismo social, em situações ideais com programas completos,


opera uma transformação integral no território, promove a quali-
ficação e a geração rápida de espaços públicos e a construção de
equipamentos públicos-âncora que, juntos e integrados à rede
de mobilidade urbana, se transformam rapidamente em lugares
públicos qualificados para a vida comunitária ocorrer, elemento
essencial de vitalidade urbana e de empoderamento da comunidade
local da favela. Ainda, busca-se promover a oferta de infraestrutura
urbana e da mobilidade urbana, a construção de habitação social e a
recuperação do sistema natural associado às estruturas ecológicas
do território, além da redução da violência urbana. Para tanto, é
determinante o restabelecimento e o incentivo às relações sociais
e culturais solidárias, com o propósito de recuperar o tecido social
local e de consolidar uma relação de confiança junto aos atores pro-
motores. Esses processos são ainda caracterizados pela presença
de ferramentas e instrumentos participativos nas diversas etapas
do projeto (desenho, implementação e pós-implementação), que
objetivam estabelecer abordagens inclusivas levando em conside-
ração perspectivas, demandas e potencialidades das comunidades
em questão. Seu escopo é amplo, complexo e variado de caso
para caso, porém se busca promover a adequada integração das
comunidades às cidades, objetivando melhorar as condições de
vida dos habitantes daquelas áreas e ampliar o direito à cidade.

Assim, o urbanismo social não apresenta um desenho ou solução


únicos e sim pressupostos que permitem a criação de diversas
soluções “personalizadas” para os problemas locais complexos.
Soluções essas que também surgem e são viabilizadas a partir
das possibilidades institucionais e arranjos de governança, com a
presença do Estado e de atores locais.

Desse modo, o urbanismo social convida ao diálogo multidisciplinar


que lida com a diversidade e os desafios dos conflitos sócio-urbanos
e ambientais, aportando uma visão sistêmica tanto dos problemas
quanto das soluções. Ressalta-se que as questões que afetam
as favelas são muitas vezes estruturais e interligadas, podendo
constituir causa ou consequência de outros problemas lá presentes.
A própria concepção de vulnerabilidade social é entendida como

37
Guia de Urbanismo Social

um conceito multidimensional no qual privações de acesso e de


garantia de direitos se acumulam e se interconectam. Assim, as
diversas ações e políticas do urbanismo social devem procurar
promover os acessos básicos ao direito à cidade e à moradia
digna, assim como também às ações afirmativas, à pluralidade e
diversidade de gênero e étnico-raciais, à equidade socioeconômica,
à acessibilidade, à inclusão digital e social. !
PARA SABER MAIS, VER:

Ressalte-se que o urbanismo social busca sempre valorizar a ▸ Conceito de


experiência e história local das comunidades, integrando-as, de vulnerabilidade social
ver IPEA. Atlas da
forma participativa, aos projetos: o reconhecimento da potência Vulnerabilidade Social.
das favelas e das vozes da comunidade local é essencial. A imple- Brasília: Instituto de
Pesquisa Econômica
mentação busca manter um alto nível de comprometimento com a
Aplicada (IPEA), 2017
execução e entrega das obras (sejam elas de grande ou pequena mais adiante.
escala). Esse compromisso também se estende à construção
sólida de colaboração local e de articulação institucional, nas
quais o processo de governança compartilhada e integrada das
intervenções entre as instâncias governamentais e comunitárias
é fundamental. O urbanismo social deve nascer ancorado em um
plano integrado de ação local, que integra e territorializa todas
as políticas públicas e ações, de curto, médio e longo prazo. Há
uma governança pública local forte que reúne todos os setores e
promove entregas rápidas de elementos catalisadores da trans-
formação territorial, como os equipamentos-âncora.

Urbanismo social, deve-se acentuar, é um chamado para a ação — as


ações de infraestrutura são fundamentais para garantir e melhorar
as condições de vida local, ao mesmo tempo que funcionam como
instrumentos para unir a população em torno de um objetivo con-
creto em comum. Essas intervenções podem eventualmente ser
reduzidas, desde que sejam substanciais, ou seja, obras significativas
para o desenvolvimento adequado da comunidade e que estejam
alinhadas às suas demandas. Os projetos podem começar por ca-
minhos diferentes, contudo é essencial promover ações integradas
tanto no planejamento quanto na fase de implementação.

38
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

A perspectiva de urbanismo social traz elementos de transfor-


mações urbanas, ambientais e arquitetônicas visando melhorias
socioeconômicas, físicas e sociais do território através de práticas
inclusivas para regenerar conexões em áreas vulneráveis. Apesar
de demandarem grandes investimentos e esforços para as trans-
formações físicas do território, as obras de arquitetura e urbanismo
de alta qualidade técnica são concebidas como importantes fer-
ramentas que conduzirão à mudança. Ou seja, “o melhor para os
mais pobres”, como dizia o ex-prefeito de Medellín (2003-7), Sergio
Fajardo, o gestor público pioneiro do urbanismo social junto com o
arquiteto e urbanista Alejandro Echeverri, nomeado e devidamente
empoderado por Fajardo como gerente-geral da EDU, Empresa de
! Desenvolvimento Urbano.
PARA SABER MAIS:

▸ Atualmente Alejandro Ainda: não é a obra em si que transforma o território, mas o tecido
Echeverri é Diretor social de confiança institucional e comunitária consolidado no
da Urbam EAFIT em
Medellín, professor exercício cidadão e participativo ao longo do processo de trans-
convidado em diversas formação física e social e após sua conclusão.
universidades e
membro do Conselho do
Laboratório Arq.Futuro
de Cidades do Insper.

39
Guia de Urbanismo Social

PRINCIPAIS ASPECTOS E PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS DO


URBANISMO SOCIAL EM MODO ABRANGENTE

▸ Forte engajamento de lideranças políticas empoderadas na coordenação do programa, tanto de


figuras públicas como de lideranças comunitárias;

▸ Governança integrada e compartilhada das intervenções, tanto entre as instituições da gestão


pública (secretarias, agências governamentais etc.) quanto com a comunidade e, quando possível,
com outras instituições (terceiro setor, academia);

▸ Participação social deliberativa da comunidade local nas diversas etapas do projeto (desenho,
planejamento, implementação e pós-implementação) e controle social visando a uma gestão
democrática da cidade na escala local;

▸ Estabelecimento de relações de confiança entre os atores promotores e a comunidade, consolidando


um tecido social solidário;

▸ Abordagem integrada (sistêmica) do planejamento, desenho e implementação dos diversos projetos


e ações: infraestrutura, mobilidade, equipamentos sociais, habitação social, espaços públicos etc.;

▸ Planos integrados de ação local: ações de curto, médio e longo prazo e processo incremental
contínuo: “Nada se faz, em qualquer setor ou secretaria da administração pública, sem que não
esteja no PUI”, como se dizia — e fazia — em Medellín;

▸ Ações concretas de entrega rápida: espaços públicos recuperados e criados, preferencialmente


integrados à mobilidade urbana;

▸ Equipamentos-âncora públicos com alta qualidade dos projetos arquitetônicos e das obras e com
formas de autogestão ou cogestão junto à comunidade e à sociedade civil organizada;

▸ Atuação prioritária em territórios com indicadores de grande violência por meio da adoção de
abordagens sociais e urbanas integradas às de cultura e educação como estratégia de ação (em
contraposição à postura policial repressora);

▸ Priorização da agenda pública em territórios de alta vulnerabilidade social, visando à mitigação


ou redução das assimetrias no acesso aos serviços urbanos;

▸ Monitoramento e avaliação das intervenções no território por meio de evidências: ações que
efetivamente não impactem em melhoria na qualidade de vida nos territórios devem ser revistas.

40
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

A seguir são apresentados alguns dos processos importantes para


uma abordagem de urbanismo social:

CONHECIMENTO DOS TERRITÓRIOS E


DAS DINÂMICAS LOCAIS

A complexidade dos problemas inerentes aos territórios das fa-


velas representa um desafio para a implementação de quaisquer
políticas públicas. Conhecer os obstáculos que cada comunidade
enfrenta é um diferencial na efetivação de políticas bem-sucedidas.
Para o urbanismo social, é fundamental compreender a situação
concreta dos territórios — as condições de pobreza e desigualdade
e seus principais desafios; como elas se manifestam e se perpe-
tuam — antes de enfrentá-la. Esse conhecimento profundo sobre
espaços e as comunidades moldará o planejamento e a execução
dos projetos às necessidades e costumes locais. Além disso, é uma
abertura para a construção de uma relação de confiança entre as

!
comunidades e a gestão pública, que deverá perdurar ao longo de
todo o projeto, sendo essencial nas diferentes etapas.
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Capítulo 5 sobre a CONSTRUÇÃO DE PLANOS DE AÇÃO


Dimensão Territorial.
LOCAL OU INTEGRADOS

Os Planos integrados ou de Ação Local são ferramentas que definem


e orientam as estratégias de intervenção no território. Nele estão
definidos os projetos de pequeno e grande porte e as ações que
serão implementadas no curto, médio e longo prazo. Ele guiará as
ações integradas e integrais que acontecem sob um processo de
governança compartilhada e transparente. Um exemplo de Plano
de Ação Local são os PUIs de Medellín, que articulavam ao mesmo

! tempo várias ferramentas, estratégias e programas de urbanização


buscando uma melhoria sistemática dos territórios em que atuavam.
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Adiante a seção a
CONVERGÊNCIA E VISÃO
respeito dos PUIs e o
Capítulo 3, sobre Planos COMPARTILHADA DO PROJETO
de Ação Local.

Um dos aspectos mais importantes do urbanismo social é a


compreensão de que os projetos convergem e se concretizam

41
Guia de Urbanismo Social

nos territórios. Os projetos a serem implementados devem ser


compartilhados e discutidos detalhadamente num mesmo espaço
decisório, alcançando de maneira compreensível os diferentes
atores envolvidos. Isso previne disputas e descompassos entre
agentes que possam vir a ter uma atuação de oposição, capaz de
atrasar ou mesmo impedir o andamento do projeto. Ter um espaço
decisório compartilhado entre todos os atores também contribui
para que a comunidade se sinta parte do processo. Trata-se, afinal,
de construir e realizar intervenções com a comunidade e não apenas
para a comunidade. Ações descoordenadas entre secretarias da
administração pública, por exemplo, podem levar a processos mais
longos, com disfunções burocráticas e desconectadas do nível local.
A construção de uma visão compartilhada entre a comunidade e
aqueles que planejam e executam as intervenções age como um
fio condutor do projeto.

APROXIMAÇÃO MULTIDISCIPLINAR
DO TERRITÓRIO E PROCESSO DE
COMUNICAÇÃO ABERTO E INCLUSIVO
COM A POPULAÇÃO

O engajamento da população passa por um esforço intencional e


conjunto de aproximação entre o poder público e as comunidades.
Isso implica que o diálogo com a população local não deve ser res-
ponsabilidade unicamente de assistentes sociais, mas também de
outros gestores especialistas, que precisam conhecer os espaços e
seus moradores para compreender suas demandas e preocupações.
Essa pode não ser uma aproximação fácil — muitas comunidades
sofrem repetidas vezes com a falta de acesso e atenção de políticas
públicas e esperam há anos por soluções para os serviços urbanos
mais básicos. Ao mesmo tempo, os servidores podem frustrar ou não
saber gerenciar a quantidade de demandas e desafios apresentados
pela população que precisam atender. Entender os lados dessa
relação é parte essencial para criação de um ambiente cooperativo.
Para que eles dialoguem são necessários paciência, linguagem clara
e inclusiva e esforços coletivos. Os técnicos precisam considerar
a dificuldade que os habitantes possam ter para compreender
linguagens e conteúdos de caráter técnico, buscando ferramentas

42
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

para democratizar o entendimento dessas informações. Devem


ainda encorajar a comunidade a pensar sobre soluções estimulan-
tes e inovadoras para o seu território, superando o mero debate do
básico, do essencial, e se aproximando da dimensão do “sonhar”.
Apresentar possibilidades em ambientes com grandes restrições e
ter a capacidade de traduzir demandas e sonhos é o primeiro passo
para ativar potencialidades tanto pessoais quanto da comunidade.

Por sua vez, a população local deve utilizar esse espaço de diálogo
para apresentar suas demandas, percepções e contrapontos sobre as
propostas dos técnicos e do poder público. Também é uma oportuni-
dade para construir conhecimento a respeito de temas que afetam a
vida da comunidade, como a interdependência entre os problemas, e
sobre os processos políticos existentes na produção e implementação
de projetos. Usar esse espaço participativo, no qual a contribuição de

! todos tem o mesmo peso e importância, é essencial para a construção


de projetos melhores e mais alinhados às demandas locais.
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Capítulo 5, sobre a
GOVERNANÇA COMPARTILHADA NOS
Dimensão Territorial.
TERRITÓRIOS DE INTERVENÇÃO

A governança compartilhada, para o urbanismo social, diz respeito


aos espaços de participação e de tomada de decisão, bem como aos
atores que participam desse processo nos territórios que passam
pelas intervenções de qualificação. A governança compartilhada
busca unir tanto as instituições quanto a comunidade em si. Sua
criação demanda uma reflexão sobre o modo de organização desses
atores (instituições públicas em suas distintas escalas e setores de
atuação, entidades privadas ou organizações comunitárias) presentes
e atuantes nos territórios, consolidando mecanismos de gestão social,
financeira e institucional e atribuindo responsabilidades e obrigações
aos agentes do território. Tal processo consiste na criação de grupos de
organizações que trabalham coletivamente como uma rede e que têm
como ponto forte o envolvimento dos parceiros na tomada de decisões
que afetarão a implementação e o planejamento das intervenções
locais, bem como a flexibilidade e a responsividade às necessidades
do território e de sua população. É um modelo que, para ser eficiente,
exige comprometimento e esforços dos participantes, com recursos e

43
Guia de Urbanismo Social

tempo dedicados ao seu funcionamento — daí a importância de uma


boa articulação com a comunidade, do compromisso com prazos e da
promoção de entregas que darão credibilidade às ações.
!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Capítulo 4, sobre
LIDERANÇA E COORDENAÇÃO
Governança.
POLÍTICA COMO CHAVE PARA
INTEGRAR AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Um dos pontos mais desafiadores do urbanismo social é a coor-


denação política e a presença de uma liderança forte na figura
do prefeito (e/ou de seus secretários, ou de um grupo gestor
específico). Por se tratar de uma política que presume eficiente
coordenação institucional, integração intersetorial e destinação
orçamentária expressiva no médio e longo prazo, o prefeito é a
liderança que pode colocar todos esses atores na mesa para
dialogar e priorizar a agenda em seu governo.

Tais alinhamentos políticos e institucionais reclamam muita co-


ordenação, de modo que o apoio dos secretários e dos demais
servidores é igualmente importante para que o projeto seja bem-
-sucedido. A construção e a condução do processo são coletivas e
participativas não apenas em relação à comunidade como também
entre os órgãos e secretarias do governo local. Não se trata uni-
camente do estabelecimento de metas compartilhadas e sim de
uma visão compartilhada do projeto, que é aprimorado por meio
das contribuições de cada área. Isso evita que os projetos sofram
com sobreposições de competências e disputas internas na ges-
tão pública. Além da legitimidade do voto e do apoio que atores
eleitos venham trazer às políticas, a burocracia, representada
pelos servidores públicos, pode ter um papel crucial como agente
incentivador ou de resistência aos projetos de urbanismo social. A !
boa comunicação e o alinhamento entre os distintos atores internos PARA SABER MAIS, VER:

em relação ao poder público podem fazer a diferença no encami- ▸ Item 2.2, sobre o caso
nhamento das várias etapas de tramitação que a política pública de Medellín.

demanda. Os servidores, além de terem condição de atuar como ▸ SILVEIRA, Mariana


Costa. O ativismo da
facilitadores, ainda podem ser parceiros ou até mesmo contribuir
burocracia estatal nas
de forma engajada com a agenda, trazendo possíveis inovações e políticas públicas. Jornal
perspectivas complementares. Nexo, 2020.

44
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

ASPECTOS FINANCEIROS E
JURÍDICOS PARA MANUTENÇÃO E
CONTINUIDADE DOS PROJETOS

O desenvolvimento de projetos de urbanismo social, assim como


de outras intervenções urbanas, precisa estar de acordo com o
arcabouço jurídico e os marcos legais vigentes nas cidades onde
os planos serão implementados. Uma dificuldade recorrente é
que nem sempre os marcos legais levam em consideração ca-
racterísticas e desafios específicos de territórios das favelas – e
que parcela considerável da população urbana vive em bairros
irregulares, "invisíveis", portanto, à aplicação das políticas pú-
blicas e suas ações.

Outro ponto importante é compreender que se, mesmo após a


intervenção, esses territórios continuarem sem acesso a serviços
públicos básicos — como coleta de lixo, manutenção da rede de
esgoto, oficialização de ruas, iluminação adequada etc. —, haverá
um processo de deterioração que ameaçará todo o avanço e os
benefícios levados até aquela população. Sem a devida manu-
tenção dos serviços públicos, qualquer bairro se deteriora. Por
isso, a regularização desses bairros e o fornecimento de serviços

! públicos básicos é um fator essencial para que o investimento


governamental não tenha sido em vão.
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Capítulo 9, sobre MANUTENÇÃO E CONTINUIDADE


Tópicos em Formas de
Financiamento; DOS PROJETOS

▸ Capítulo 8, a respeito
dos Tópicos em Outros dois grandes dilemas enfrentados em quaisquer políticas
Regulação Urbana. públicas são (i) a manutenção e (ii) a continuidade de projetos
implementados durante uma gestão pelos seus sucessores. O
ciclo eleitoral é, claro, parte do processo democrático, assim como a
alternância no poder. Prefeitos vêm e vão; entretanto, como garantir
a continuidade dos projetos ao longo dos anos e das gestões? Pro-
jetos socialmente considerados positivos e cujo valor é percebido e
compartilhado com a população têm mais chances de sobrevida. A
comunidade e os processos (e espaços) de participação e controle
social são dois elementos cruciais. Muitas vezes a realização de

45
Guia de Urbanismo Social

grandes projetos é evitada por haver receio de riscos políticos


associados (rejeição e críticas). Uma forma de diminuir esse risco
é dividi-lo com outros atores (desde a população até servidores
públicos e secretários), consolidando mecanismos de gestão
social, institucional e financeira, atribuindo responsabilidades e
obrigações para os agentes do território. Ao incentivar uma ampla
participação na formulação dos projetos com as diferentes partes
interessadas, cria-se uma lógica coletiva alinhada com demandas
e necessidades locais, bem como capacidades institucionais. Ao
espalhar a decisão entre instituições e entes públicos, não se está
compartilhando apenas o poder de decisão; ao mesmo tempo,
reduz-se o risco associado a certas políticas e projetos. A partici-
pação comunitária em todo o processo orienta à apropriação social
coletiva da comunidade, que cobrará dos agentes e dos usuários
a manutenção e conservação do projeto.

Outra abordagem possível é introduzir algumas etapas do projeto


de maneira incremental ao longo do tempo. Isso permite que certos
aspectos sejam discutidos e incorporados de modo gradual, evitando
mudanças bruscas que possam gerar atritos e questionamentos. Um
prazo maior também permite processos participativos mais robustos
e elaborados. Ambas as estratégias diminuem os riscos porque
constroem visões compartilhadas, fortalecendo a legitimidade. Os
possíveis problemas e conflitos vão surgindo e sendo solucionados
durante o processo, e não somente após a entrega da intervenção.
Quando uma política é construída de forma participativa, cria-se
um vínculo com aquela ação, que passa a ser de todos, gerando
incentivos para a sua continuidade.

46
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

CONSTRUÇÃO DA PERCEPÇÃO SOBRE A


POLÍTICA PÚBLICA

Ao partilhar de uma visão positiva sobre uma política pública ou projeto,


a sociedade dá maior legitimidade a ela e, por isso, pode contribuir para
garantir a sua continuidade, apesar dos desafios existentes. Por esse motivo,
é importante desenvolver um trabalho constante de conscientização da
população — como um todo, não apenas dos territórios que estão no foco
das intervenções — a respeito do valor e dos bons resultados gerados a partir
das ações propostas. Persuadir a opinião pública pode não ser uma tarefa
fácil, então aqui estão algumas sugestões de como fazer isso de modo sério:

▸ Monitorar indicadores sociais e processos de avaliação dos resultados


com base em evidências;

▸ Divulgar essas informações de maneira transparente e acessível em


diferentes meios de comunicação;

▸ Participar de fóruns de debate com outras comunidades e organizações


da sociedade civil, apresentando as experiências, os resultados alcançados
e compartilhando desafios;

▸ Apresentar experiência e processos de monitoramento e avaliação


em espaços de debate no ambiente acadêmico, como universidades,
encontros e seminários;

▸ Compartilhar as boas experiências em órgãos multilaterais.

▸ Ver mais nos Capítulo 8 e 14.

47
Guia de Urbanismo Social

ENTREGAS RÁPIDAS DE
AÇÕES CONCRETAS

A dinâmica das entregas representa um importante diferencial


no urbanismo social: implementar as ações concretas e de modo
rápido e contínuo, superando o campo do planejamento, gargalo
recorrente nos programas de urbanização de favelas no Brasil e na
América Latina. Entregas rápidas e recorrentes são fundamentais
para garantir maior aderência, credibilidade e participação da
comunidade local.

Uma característica importante que distingue o urbanismo social


é a rapidez dos projetos. A base dessa característica está na
necessidade de implantar ações físicas e materializadas no terri-
tório, como um compromisso social do poder público para aquela
comunidade. O aspecto central é consolidar ações concretas no
território, como os equipamentos-âncora e os espaços públicos
que promovem a qualificação da vida coletiva de forma imediata.
Paralelamente a isso, trabalha-se em processos e projetos mais
complexos, e consequentemente mais morosos, como a promoção
de infraestrutura e de habitação social (via de regra, em mais de
uma gestão). Aqui vale a máxima "não se trata do que fazer, mas
como de fazer". Naturalmente, é fundamental ter bons processos
de planejamento e projetos de alta qualidade de futuras interven- !
ções, no entanto é necessário superar essa etapa, consolidando
PARA SABER MAIS, VER:
ações concretas no território que ratifiquem os compromissos dos
▸ Capítulo 3, sobre
agentes promotores com a comunidade. Planos de Ação Local.

▸ Capítulo 15, com casos


Materializar ações programadas nos planos de intervenção local, referenciais.
independentemente de seu porte, contribui para a transformação ▸ CAVALCANTI, Murilo.
do cenário habitual de estagnação e descontinuidade de projetos, Conexão Recife Medellín
Compaz — Laboratório de
o que leva ao perigoso descrédito da população com o poder
boas práticas urbanas.
público, cristalizando a ideia de que se “produzem muitos planos Recife: Cepe, 2022.
sem que nada saia do papel”. ▸ PONZI, Túlio, LEITE,
Carlos. Urbanismo Social
com as cores do Recife,
Revista Piauí, 2021.

48
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

PRINCIPAIS DESAFIOS DA ABORDAGEM DE


URBANISMO SOCIAL

▸ Baixa articulação institucional dentro do governo para atuar de maneira

coordenada no mesmo projeto com as mesmas metas e os mesmos objetivos;

▸ Descontinuidade ocasionada por mudanças nas gestões, tanto pelo


ciclo eleitoral quanto pela troca de secretários e equipe das secretarias;

▸ Sustentabilidade dos projetos, intervenções de longo prazo e com alto


custo de implementação e manutenção posterior;

▸ Manutenção das intervenções no território, especialmente se não


houver ação coordenada para oficialização da respectiva localidade e
fornecimento de serviços públicos;

▸ Manutenção da mobilização e engajamento da população (processos


participativos e de governança) sem que haja mudanças ou entregas
concretas acontecendo.

Bons projetos e bons planos de intervenção integrada fazem a


diferença — inclusive para a manutenção posterior dos bairros
e projetos — desde que combinados com processos planejados
de entregas rápidas e alinhados com as ações incrementais e
sistêmicas de médio e longo prazo.

49
Guia de Urbanismo Social

2.2_
MEDELLÍN: CONTEXTO E
SINGULARIDADE (O QUE É
REPLICÁVEL E O QUE É ESPECÍFICO)

Na década de 1990, Medellín chegou a ser considerada a cidade mais


violenta do mundo, com índices altíssimos de homicídios: em torno de
380 mortos por 100 mil habitantes em 19915. A metrópole colombiana
era campo de um violento conflito interno — que envolvia atores do
Estado aplicando fortes políticas de repressão contra o narcotráfico,
as guerrilhas e os grupos paramilitares —, em um cenário que refletia
uma complexa dinâmica local de disputa nas áreas sociais, políticas
e econômicas. Foi naquele contexto que Medellín desenvolveu e
implementou o urbanismo social, concebido a partir da mediação
de conflitos e da abertura de diálogo institucional com a comuni-
dade e consolidado com os projetos urbanos integrais executados
posteriormente. Sublinhe-se que as intervenções de urbanismo
social em si não trataram problemas de violência local por meio
de ações de forças policiais e sim de abordagens construtivas de
prevenção e mediação de conflitos nos assentamentos informais
dos “bairros populares” — favelas — de Medellín, localizados nas
encostas do vale, em regiões íngremes e de alto risco.

Como em outros centros urbanos, a violência, a pobreza e as


desigualdades sociais dominavam as regiões periféricas ou zonas
excluídas da cidade, que eram ocupadas e comandadas por diferen-
tes grupos armados. Esse contexto e os diversos atores em disputa
evidenciam a enorme dificuldade e urgência de implementação
naquele território de projetos urbanos para a entrada (e perma-
nência) do governo em tal área e para a conquista da confiança da
população local no governo municipal. A presença da violência na
vida e nos espaços urbanos do cotidiano, ao lado da complexidade
social dos territórios, exigia do Estado uma resposta maior do que
os meros deveres básicos de fornecimento de serviços públicos. A
solução encontrada foi um modelo de intervenção aberto a novas

5 Disponível em: Urbanismo Social que promove segurança. Arq.Futuro/Casa Vo-


gue, 2019.
50
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

dinâmicas de participação, que respondesse ao conjunto de deman-


das dos habitantes, ao mesmo tempo que se reconstruía a coesão
do tecido social e se reintegravam os espaços físicos, reconectando
as zonas historicamente excluídas ao restante da cidade.

Naturalmente, há uma história prévia que contextualiza a emer-


gência do programa de urbanismo social na gestão do prefeito
Sergio Fajardo em 2014, que passa (i) pela emergência no âmbito
nacional colombiano de um marco regulatório urbanístico inovador
e robusto — derivado das leis colombianas de reforma urbana — e a
criação de instrumentos jurídicos locais; (ii) pelas especificidades
da estrutura urbana e econômica de Medellin; (iii) pelo ambiente
político, por arranjos institucionais e agentes estratégicos para a
proposta de mudanças sociais e espaciais mencionadas adiante
e (iv) pelas transformações inovadoras e impactantes que vinham
ocorrendo havia alguns anos na capital do país, Bogotá6.

No Capítulo 15 aprofundamos o caso de Medellin, e aqui destacamos


três iniciativas locais que foram fundamentais para a construção,
coordenação e implementação das intervenções de urbanismo
social: a Empresa de Desenvolvimento Urbano (EDU), os Projetos
Urbanos Integrais (PUIs) e a Empresa Pública de Medellín (EPM).
Elas, além de inovadoras, são parte do que tornou a metrópole
colombiana um caso singular, no qual financiamento, planejamento,
articulação interinstitucional e implementação integrada transfor-
maram não apenas as comunidades mas a cidade como um todo.

EMPRESA DE DESENVOLVIMENTO
URBANO (EDU)

O urbanismo social em Medellín é marcado pelo robusto exercício


da coordenação interinstitucional. Os PUIs foram coordenados
e implementados pela Empresa de Desenvolvimento Urbano
(EDU) — instituição jurídica municipal essencial para viabilizar a
transformação urbana e social.

6 Mariana Wilderom em LEITE, Carlos et al. Social Urbanism in Latin America: Cases
and Instruments of Planning, Land Policy and Financing the City Transformation with
Social Inclusion. Cham: Springer Nature, 2020.

51
Guia de Urbanismo Social

Com uma proposta inovadora, a EDU é uma empresa pública mu-


nicipal que possui patrimônio próprio e autonomia administrativa
e financeira. Com essas características, a EDU liderou todo o
processo de implementação das intervenções (elaboração, coor-
denação institucional, planejamento e implementação via PUIs).
Essa empresa pública tornou-se um poderoso espaço institucional
intersetorial para a articulação de órgãos públicos e privados. A
EDU começou a mobilizar e coordenar diferentes agentes de acordo
com a competência necessária de cada intervenção sob sua super-
visão: agências de planejamento, Empresas Públicas de Medellín
(EPM), as diversas secretarias municipais etc. Essa capacidade de
articulação, planejamento, gestão e monitoramento de resultados
desenvolvida pela EDU foi fundamental para a expansão dos PUIs.

DESTAQUES DA ATUAÇÃO DA EMPRESA DE


DESENVOLVIMENTO URBANO (EDU)

▸ Espaço institucional intersetorial empoderado de articulação de órgãos


públicos e junto à sociedade;

▸ Mobilização e coordenação de diferentes órgãos de acordo com a


competência necessária a cada intervenção sob a sua supervisão, como
agências de planejamento e de implementação (diversas secretarias);

▸ Capacidade de articulação, planejamento, formulação e gestão, o que


se revelou fundamental para a metodologia integrada proposta pelo
urbanismo social.

52
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

PROJETOS URBANOS INTEGRAIS (PUIS)

Os PUIs começaram a ser realizados em 2000 e são uma evolução


dos Programas de Melhoramento Integral de Bairros Subnormais
(PMID). Atuam em três dimensões —física, social e institucional —,
promovendo ações integradas entre as diferentes secretarias com
o objetivo de reduzir as desigualdades socioterritoriais e ampliar o
direito à cidade às comunidades afetadas. As ações são destinadas
à promoção e qualificação do espaço público, construção de equipa-
mentos de uso coletivo — os chamados equipamentos-âncora — como
bibliotecas, escolas, creches, recuperação do sistema natural, promo-
ção da regularização fundiária e construção de moradias populares.

Os projetos consolidados promoveram, articulados entre si, novas


formas de apropriação do espaço público urbano, a partir da acessi-
bilidade e da inclusão, por meio de articulações locais com equipes
especializadas e multidisciplinares. Os PUIs propunham programas e
projetos complementares focados na educação, empreendedorismo,
segurança, convivência, saúde, esporte e recreação. Eles concentra-
vam esforços de atuação em bairros com certo grau de consolidação
urbana porém baixo índice de desenvolvimento humano, segregados
e com altos índices de pobreza e violência — onde a ausência do
Estado era notável.

Os PUIs sempre foram os instrumentos essenciais à promoção do


urbanismo social, alinhando as diversas ações e políticas públicas,
integrando-as e territorializando-as.

RECORTES DE ATUAÇÃO DOS PUIS

No âmbito físico
▸ Intervenções concretas em infraestrutura, equipamentos de uso
coletivo, saneamento e habitação, com priorização das zonas mais
conflituosas das comunas, criando ambientes seguros contra os
diversos riscos;

▸ Recuperação de áreas ambientalmente degradadas e consolidação


de sistema de espaço público associado à mobilidade e aos projetos
definidos para cada zona.
53
Guia de Urbanismo Social

No âmbito social
▸ Reconhecimento das lideranças e agentes locais dos territórios,
estabelecendo atores-chave para a comunicação e o desenvolvimento
das etapas subjacentes;

▸ Implementação de conselhos gestores e de processos participa-


tivos para resolução de conflitos associados aos territórios e para
o planejamento das atividades previstas, legitimando as ações
definidas para o território;

▸ Amplo diagnóstico das condições de vida da população local,


residente na área de intervenção, procurando identificar os prin-
cipais problemas para o exercício digno da vida, seja associado ao
acesso à terra, à moradia, ao saneamento básico, aos serviços ou à
infraestrutura pública.

No âmbito institucional
▸ Articulação com agentes estabelecidos nos territórios, de maneira
a consolidar parceiros locais, fortalecendo a gestão institucional e
ampliando os laços com a comunidade;

▸ Definição de instrumentos, mecanismos e responsabilidades para


a efetivação dos projetos estipulados;

▸ Gestão financeira responsável e articulada entre secretarias e


instituições promotoras, determinando responsabilidades e atribui-
ções para a execução dos projetos;

▸ Planejamento da gestão durante e após a execução dos projetos,


elencando as atribuições e responsabilidades pertinentes para cada
agente da comunidade e das instituições participantes.

A promoção dos PUIs orientados através dos eixos de mobilidade


projetados para a cidade — como os metrocables (teleféricos) —
permitiu a transformação integral desses territórios, promovendo a
articulação das comunidades e da cidade formal, potencializada pela
estratégia do equipamento-âncora como impulsionador das atividades
e como um contrato social com a comunidade, e a qualificação dos
espaços públicos, estruturando um sistema que expande o caráter
das transformações sociais instituídas nos territórios em questão.

54
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

EMPRESAS PÚBLICAS MUNICIPAIS (EPM)

A implementação de políticas públicas sociais e urbanas complexas


e de escopo tão extenso quanto as realizadas em Medellín necessita
de consideráveis investimentos. Outro órgão de grande relevância
para as ações foi a Empresas Públicas Municipais de Medellín
(EPM), que se mostrou essencial para o financiamento das amplas
obras de reintegração física e social do território.

A EPM constitui um grupo empresarial que atua na área de infraestru-


tura, incluindo geração e distribuição de energia elétrica, tratamento
e distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto, distribuição
de gás encanado, coleta e destinação de resíduos sólidos e serviços
de telecomunicação, entre outros. Controlada pela prefeitura de
Medellín, presta serviço também para várias cidades da Colômbia
e de outros países da América Latina. É considerada referência
internacional em matéria de governança corporativa de empresas
públicas. Entre 2001 e 2011, a EPM contribuiu com US$ 877 milhões,
uma média de 50% de seus lucros para o município, o que, por sua
vez, representa 27% dos recursos de investimento da cidade7.

2.2.1_ ALGUMAS LIMITAÇÕES E CRÍTICAS AO


URBANISMO SOCIAL

A abordagem no presente Guia é sempre no sentido de analisar e


referenciar uma experiência duradoura que permita uma reflexão
crítica sobre os seus avanços e limites.

Apesar dos vários e robustos ganhos em potencial apresentados, o


urbanismo social não está isento de avaliações mais críticas sobre
seus conceitos e implementações. Tais reparos demonstram a
complexidade que as políticas públicas urbanas podem enfrentar na
sua implementação em ambientes sociais complexos e os revezes
a que elas estão sujeitas se houver baixa aderência política e/ou
social ao projeto que vem sendo desenvolvido.

7 Mariana Wilderom. Ibidem.


55
Guia de Urbanismo Social

PROGRESSIVA DESCONTINUIDADE
DAS AÇÕES E PROGRAMAS APÓS
TRÊS GESTÕES

Os projetos de urbanismo social em Medellín existem há quase


vinte anos. Os diferentes prefeitos apoiaram com maior ou menor
intensidade a continuidade do que foi implementado por outros
governantes. Mas mesmo lá, porém, o prosseguimento dos projetos
ainda é dependente de um ciclo político favorável. Depois de três
gestões, a continuidade ou manutenção daquilo que fora implanta-
do foi sendo reduzida gradativamente conforme acontecia a troca
de prefeitos. Apesar dessa falta de disposição para seguir com
os projetos de urbanismo social atualmente, cabe apontar que a
institucionalização deles e a forte aderência da população podem
ser apontados como fatores que contribuíram para que a política
e os equipamentos não fossem desmobilizados por completo.

A CRÍTICA AO “MARKETING URBANO”, “CITY BRAND”


E APRESENTAÇÃO DA CIDADE COMO O “MEDELLÍN
MIRACLE” OU O “MODELO MEDELLÍN”

Junto com a surpreendente transformação pela qual passou a


cidade colombiana8, começaram a surgir algumas críticas:

▸ Crítica ao uso do “modelo Medellín” de urbanismo social como


uma fórmula com apelo de marketing que permitiria “exportar” o que
se fizera naquele município para outras cidades da América Latina,
sem levar em conta os seus contextos locais e suas peculiaridades;

▸ Crítica ao fato de que supostamente o sucesso de Medellín


haveria sido capturado pela publicidade turística, gerando, assim,
uma forte e valiosa marca, uma “city brand”. Esse fator teria sido
responsável por um grande afluxo de visitantes, vindos de diversos
lugares do planeta, só para conhecer os territórios transformados
pelo urbanismo social, as chamadas comunas.

8 Medellín: da mais violenta à mais inovadora do planeta, BBC Brasil, 2013.

56
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

A “GENTRIFICAÇÃO” CAUSADA PELO


URBANISMO SOCIAL

Trata-se do processo de valorização urbana que ocorre após a


transformação e a qualificação de territórios precários, com a
consequente expulsão da população local de baixa renda, impos-
sibilitada de lá continuar vivendo devido à elevação dos custos e a
dificuldade de atrair população de baixa renda para esses lugares.
Vale lembrar que o fenômeno da valorização dos preços — particu-
larmente da terra e dos imóveis — ocorre inexoravelmente em todos
os territórios que se qualificam, em quaisquer cidades do mundo.
O que se tenta fazer nos processos de transformação urbana é
atenuar o fenômeno por meio de alguns instrumentos de política
fundiária, dentre eles: a demarcação de áreas/zonas destinadas
exclusivamente à moradia social — e, quando for necessário, a
construção de moradia social nesses lugares — para a manutenção
da população local; a promoção dos instrumentos de captura da
valorização do solo.
!
PARA SABER MAIS, VER: Por fim, como qualquer processo de transformação urbana du-
▸ Capítulo 9.
radouro em uma grande cidade (Medellín tem aproximadamente
2,5 milhões de habitantes) — e esse é um dos maiores méritos do
urbanismo social dessa cidade —, há sempre limitações conjunturais
de difícil superação. Ainda assim, “talvez o elemento fundamental
e catalisador da transformação urbana de Medellín tenha sido o
conjunto de estratégias participativas que ativaram diferentes
estruturas e representações da sociedade civil dentro do processo
político. Ao convidá-los a pensar, desenvolver e pactuar planos e
intervenções, vislumbrou-se a possibilidade de um novo contrato
social. Esse talvez tenha sido o maior mérito de Fajardo: criar o
ambiente adequado para que isso acontecesse. E talvez seja tam-
bém o seu maior legado, pois, na medida em que a população tem
reconhecido os seus direitos de cidadão na tomada de decisões,
pode, afinal, vir a exigi-los”9.

9 Mariana Wilderom. Op. cit.

57
Guia de Urbanismo Social

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Publicações da Urbam EAFIT, Medellín;

▸ ALCALDÍA DE MEDELLÍN. Guía de la Transformación Ciudadana, 2004-2011.


Medellin: Alcaldía de Medellín, 2011;

▸ ALCALDÍA DE MEDELLÍN e BID. Medellín, Transformación de una Ciudad.


Medellin: Alcaldía de Medellín e BID, 2009;

▸ CAVALCANTE, Murilo (org.). As lições de Bogotá e Medellín: Do caos à referência


mundial. Recife: INTG, 2014;

▸ Publicações e webinários do Núcleo de Urbanismo Social;

▸ ANTONUCCI, Denise e BUENO, Lucas. A construção do espaço público em


Medellín. Quinze anos de experiência em políticas, planos e projetos integrados.
São Paulo: Arquitextos, 2018;

▸ COELHO, Tiago. Como escapar do inferno. Outras Palavras, 2022;

▸ Capítulo 15 (Casos Referenciais).

58
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

2.3_
PROGRAMAS DE URBANIZAÇÃO DE FAVELAS
E URBANISMO SOCIAL: SEMELHANÇAS E
COMPLEMENTARIDADES

Nas cidades brasileiras, a atuação da gestão pública no que se


refere às favelas foi até o final dos anos 1980, pautada pela lógica
de erradicação desses espaços e não pelo seu reconhecimento e
pela busca por solucionar seus problemas. Tais territórios eram
encarados como anomalias, em vez de resultado de fatores estru-
turais, e suas peculiaridades e potencialidades passavam ao largo.

As características dos assentamentos precários são muito diversas,


variando em localização (morros, vales, periferias urbanas), tamanho
e densidade (com poucas famílias ou milhares de habitantes), tipo
e qualidade de construções, situação da propriedade (ocupações
em áreas públicas ou privadas), situação de (i)legalidade e regulari-
zação fundiária, grau de consolidação e níveis de integração com a
chamada cidade formal, isto é, aquela regularizada, equipada e com
infraestrutura. O que esses territórios geralmente têm em comum
é a forte carência de infraestrutura urbana, baixo acesso a serviços
e equipamentos públicos essenciais, significativa segregação em
relação à cidade formal, precariedade associada a suas formas de
morar e a incerteza na posse da terra onde estão localizados, além
da presença de crescentes e variados modos de violência urbana.

A relação entre Estado e favelas no Brasil veio se transformando


ao longo das décadas, passando pela repressão, tolerância, su-
bordinação, relativa aceitação, reconhecimento de existência e
permanência e, finalmente, por sua legitimação na cidade, incluindo
o reconhecimento e valorização das potências locais construídas
pelas comunidades. São transformações alcançadas tanto por mu-
danças nos marcos institucionais quanto por pressões sociais — de
maneira progressiva e através de um longo processo de lutas pelos
direitos básicos à cidade e à moradia10. A partir daí tem emergido em
diversas cidades brasileiras o entendimento sobre a necessidade de
metodologias que permitam intervenções mais abrangentes, capazes

10 O Capítulo 5 aborda mais o tema da habitação social.


59
Guia de Urbanismo Social

de incluir todo o território, apesar de ainda estarem distantes do


necessário e da urgente demanda por ganhar escala e continuidade11.

Em geral, no Brasil e nos demais países da América Latina, os pro-


gramas de urbanização de favelas têm como aspectos centrais a
promoção de habitação social e de infraestrutura urbana essencial.
E, nos programas mais completos, chamados integrais, as ações
incluem: mapeamento e reassentamento de famílias situadas em
áreas de risco; o provimento de infraestrutura urbana (sistemas de
água, esgoto, saneamento, energia elétrica, drenagem e iluminação);
promoção de obras de contenção e estabilização de encostas; aber-
tura de ruas; promoção de moradia; construção de espaços públicos;
inserção de equipamentos públicos essenciais e, na sequência, as
dimensões de regularização fundiária e dos direitos básicos de
cidadania (endereço oficial).

Durante todo o processo, há o acompanhamento social junto à


comunidade e o empenho para que ela participe do processo. Tais
ações são fundamentais para promover a inserção da população no
contexto legal da cidade e, na situação ideal, visa-se transformar uma
favela com inúmeros problemas e carências em um “bairro regular”,
com melhores condições de vida. Daí o nome do programa brasileiro
pioneiro nessa frente: Favela-Bairro (ver Capítulo 15).

Como tais intervenções são bastante complexas, morosas e de alto


custo, além de essencialmente dependentes de ações públicas,
com frequência não é possível entregar “o pacote completo”, de
modo que o que foi planejado, muitas vezes, não tem êxito em sua
totalidade. Com frequência, os programas são interrompidos ou
executados apenas em parte; isso por diversas razões: ausência de
uma liderança política forte com essa pauta empoderada na gestão,
baixa integração setorial das políticas públicas e suas as ações,
ausência de financiamento para todas ações, falta de priorização do
programa por parte dos prefeitos, descontinuidade de gestão etc.

11 BONDUKIi, Nabil (org.). A luta pela reforma urbana no Brasil: do seminário de


habitação e reforma urbana ao plano diretor de São Paulo. São Paulo: Instituto Casa
da Cidade, 2018.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
60
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

As ações de urbanização de favelas podem ser utilizadas em


territórios onde predominam formas de ocupação mais precárias,
como palafitas, ruas sem asfaltamento, sem ligação de esgoto
etc. Nesses casos, serão necessários investimentos maiores em
infraestrutura urbana, como saneamento e recuperação de áreas
de risco. A provisão habitacional também se torna essencial,
tendo em vista a condição de precariedade existente. Por sua vez,
no urbanismo social, ainda que haja projetos de infraestrutura e
expansão de acesso a esses serviços básicos, os programas atuam
prioritariamente em territórios cujo grau de precariedade física
não seja tão amplo e intenso a ponto de monopolizar a urgência
de investimentos apenas para essas ações essenciais e custosas.

Seja por impasses relacionados à descontinuidade de gestão, con-


tingenciamento orçamentário ou baixa integração entre secretarias
e coordenadorias que cuidam de políticas setoriais de maneira
independente, os programas de urbanização de favelas, salvo
exceções, infelizmente têm revelado descontinuidade ao longo
do tempo, não conseguindo concluir todas as entregas previstas
inicialmente. A população, mobilizada e inserida no processo de
escuta e de decisão, acaba muitas vezes deixando de acreditar no
processo. Além do efeito simbólico de confiança nas instituições
públicas, essa prática tem o efeito de deslegitimar as contribui-
ções advindas do processo participativo. Por isso, parte central da
política de urbanismo social são as entregas contínuas, de curto,
médio e longo prazo e de baixa, média e alta complexidade. Assim,
é sempre possível enxergar o que está sendo realizado, mantendo
o engajamento e a legitimidade da comunidade.

Os programas tradicionais de urbanização de favelas dão um


enfoque maior a dois elementos: (i) melhorias de infraestrutura
urbana e (ii) moradia. Ambos são os mais custosos e morosos.
Apesar de serem demandas essenciais e urgentes na promoção
da qualificação do território e consequente melhoria nas condi-
ções de vida da comunidade, talvez a abordagem integrada e que
contempla entregas rápidas de elementos menos complexos e
morosos do urbanismo social — espaços públicos, urbanismo tático
e equipamentos públicos — possa complementar os programas.

61
Guia de Urbanismo Social

Deve-se ressaltar a enorme diferença de contexto em escala


dessas demandas essenciais — melhorias de infraestrutura urbana
e promoção de moradia — entre Medellín e duas grandes cidades
brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, cujos tamanhos de população
e carências são muito maiores.

Nesse sentido, remete-se o leitor do Guia a algumas experiências


de urbanização e favelas amplamente estudadas nas duas grandes
metrópoles nacionais: o já mencionado programa Favela-Bairro,
no Rio de Janeiro (com mudanças de nome no decorrer do tempo,
entre paralisações e retomadas), e os programas em São Paulo nos
mananciais, em Paraisópolis e em Heliópolis. Adiante são apontadas
referências a essas e experiências em outras cidades do país.

Ao se lembrar dos elementos característicos e das singularidades


do urbanismo social apontadas no item “2.1_ Definições, origem
e contexto”, deve-se novamente ressaltar que há muitas aproxi-
mações e semelhanças entre os dois conceitos, a começar pelo
objetivo central: a promoção da melhoria das condições de vida
das comunidades que vivem nas favelas. As abordagens podem
ser vistas como complementares, e as lições advindas — sucessos
e reveses — dos casos de urbanismo social e dos programas de
urbanização de favelas no Brasil e na América Latina como um
todo devem servir para os aprendizados, sejam quais forem as
abordagens.

Lembre-se ainda de que há muito mais experiências desenvolvidas


por meio dos programas de urbanização de favelas nas cidades do
chamado Sul Global, assim como é farta a produção bibliográfica
a respeito no meio acadêmico, livros, manuais e referências publi-
cadas por governos, instituições do terceiro setor e multilaterais.

Apontamos a seguir algumas de destaque.

62
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ ALIANÇA DE CIDADES e PMSP (Prefeitura da Cidade de São Paulo). Urbanização


de favelas em foco — Experiências de seis cidades. Washington: The Cities Alliance,
2008;

▸ CARDOSO, A. L. Avanços e desafios na experiência brasileira de urbanização de


favelas, Cadernos Metrópole, 2007;

▸ CARDOSO, Adauto e DENALDI, Rosana (orgs.). Urbanização de favelas no Brasil:


um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018;

▸ FERREIRA, L.; OLIVEIRA, P. e IACOVINI, V. Dimensões do Intervir em Favelas. São


Paulo: Peabiru TCA / Coletivo LabLaje, 2019;

▸ IBAM. Estudo de avaliação da experiência brasileira sobre urbanização de favelas e


regularização fundiária. IBAM: Rio de Janeiro, 2002;

▸ LIBERTUN DE DUREN, Nora R. E OSORIO RIVAS, Rene. Favela-Bairro: 10 anos


depois. Washington: BID, 2020;

▸ MAGALHÃES, Sérgio e CONDE, Luiz Paulo. Favela-Bairro: Uma outra história da


cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: RioBooks, 2021;

▸ Plataforma Global por el Derecho a la Ciudad. Decálogo para el Mejoramiento​


Integral de Barrios;

▸ SILVA, M. N.; CARDOSO, A. L. e DENALDI, R. Urbanização de favelas no Brasil :


trajetórias de políticas municipais. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022;

▸ VILLAROSA, Francesco di e MAGALHÃES, Fernanda. Urbanização de favelas —


Lições aprendidas no Brasil. Washington: BID, 2012;

▸ ZUQUIM, Maria de Lourdes (org.), 2014. Práticas recentes de intervenções


contemporâneas em cidades da América Latina. São Paulo: FAU-USP, 2014;

▸ Capítulo 15, Incluindo textos da Diagonal, Elisabete França, Jose Brakarz e


Sérgio Magalhães.

Diante de todos esses critérios e orientação, pode restar a dúvida se


projetos de urbanismo social somente poderão ser implementados
nessas condições ideais. Como mencionado no item 2.1, existem
algumas iniciativas que bebem das experiências e aprendizados de
tal estratégia de intervenção e tentam adaptá-los às suas realidades
e possibilidades locais.

O urbanismo social como foi implementado na Colômbia tem


especificidades que vão além dos projetos e contextos urbanos
e sociais locais, refletindo uma forma própria de organização do
Estado naquele país e algumas especificidades regionais muito

63
Guia de Urbanismo Social

relevantes e de enorme dificuldade de replicar em outros contextos


(como apresentado na seção sobre Medellín).

Inspirar-se em políticas bem-sucedidas de outros governos ou re-


plicá-las não é uma novidade na área da gestão pública. No entanto,
esse movimento de transferir políticas não é tão simples quanto
parece. Ele é o processo no qual o conhecimento sobre políticas
de um determinado tempo ou local é usado no desenvolvimento da
gestão em outro tempo ou local. Transferir, porém, não é apenas
“copiar e colar” uma política ou uma “boa prática”. Esse processo
pode ser bem complexo, a depender dos contextos (e problemas)
locais e do escopo da política de interesse. Transferir uma política
para um contexto diverso daquele em que foi originalmente dese-
nhado apresenta vários desafios, obstáculos e riscos que devem
ser levados em consideração para que ela se converta em uma
iniciativa exitosa após sua transferência. É possível tomar empres-
tado boas soluções, mas é necessário adaptá-las e customizá-las
às possibilidades e realidades locais do município adotante.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ SALLA, Ana Leticia. Desafios na Transferências de políticas públicas: experiências


de urbanismo social em perspectiva comparada. São Paulo: Revista Exame, 2021.

▸ Capítulo 15 (Casos Referenciais)

64
03_
PLANO DE AÇÃO LOCAL

3.1_
Plano de Ação Local

3.2_
Contribuições para a metodologia
do Plano de Ação Local

AUTORES

3.1_ Núcleo de Urbanismo Social


3.2_ Diagonal
Capítulo 03 : Plano de Ação Local

3.1_ PLANO DE AÇÃO LOCAL

3.1.1_ INTRODUÇÃO

Dentro de uma metodologia de planejamento urbano, e não apenas


no contexto do urbanismo social, um Plano de Ação Local tem a
função de articular justamente o planejamento do território e as
priorizações de projeto, considerando as questões orçamentárias
e os objetivos traçados, de forma a organizar as diversas ações
previstas, tanto em relação à sua temporalidade — curto, médio e
longo prazo — quanto à espacialidade. Tudo isso por meio da terri-
torialização das ações previamente definidas e também das ações
estratégicas e sistêmicas, além de alinhar-se desde o início com o
processo de governança compartilhada.

Diante de um cenário de descontinuidade de políticas públicas e


considerando os ciclos político-administrativos de gestão, o Plano
de Ação Local pode funcionar como garantia de implementação
a médio e longo prazo dos programas elaborados, assim como a
destinação planejada dos investimentos previstos.

Como comentado no Capítulo 1 (e será detalhado no Capítulo 14), a


maior referência de Plano de Ação Local em urbanismo social são os
PUIs, Projetos Urbanos Integrais de Medellín. No Brasil, infelizmente,
há poucos casos de desenvolvimento e implantação de Planos de
Ação Local e mesmo de Planos de Bairro — que poderiam incorporar
Planos de Ação Local dentro deles.

No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, o Plano Diretor Estra-


tégico de 2014 (PDE) define que a cada quatro anos é necessária a
! realização dos Planos de Ação das Subprefeituras, “que têm o objetivo
PARA SABER MAIS, VER: de detalhar as propostas e intervenções necessárias, na escala local,
▸ Prefeitura de São para o desenvolvimento urbano e ambiental da região”, articulando o
Paulo. Portal Gestão planejamento territorial, as leis orçamentárias (como o Plano Plurianual
Urbana SP.
— PPA, a Lei de Diretrizes Orçamentárias — LDO e a Lei Orçamentária
Anual — LOA) e o Programa de Metas de cada gestão.

67
Guia de Urbanismo Social

Utilizando como referência os marcos legais mencionados — PDE e


Plano de Ação das Subprefeituras, entre outros (Planos de Bairro,
por exemplo) —, a iniciativa do Pacto pelas Cidades Justas reuniu, em
!
2019, diferentes entidades da sociedade civil para a implementação PARA SABER MAIS, VER:

de estratégias para projetos de urbanismo social em algumas áreas ▸ Pacto pelas Cidades
Justas. Produto 5:
da cidade de São Paulo, através de uma metodologia estabelecida
Relatório Final.
pelo Plano de Ação Local.

A experiência do Pacto pelas Cidades Justas no âmbito do ur-


banismo social foi também inspirada no projeto de Medellín
para territórios em situação de vulnerabilidade social. Portanto,
além da implementação de um planejamento urbano integrado,
realizado a partir de diagnósticos técnico e social-participativo e
de um planejamento detalhado para cada localidade, os projetos
seguem diretrizes de: (i) priorização dos investimentos em áreas
em situação de alta vulnerabilidade; (ii) articulação territorial das
ações públicas e da sociedade civil; (iii) participação comunitária
em todas as etapas de projeto; (iv) implementação de um modelo
de governança integrado e compartilhado na escala local; e (v)
avaliação e monitoramento dos impactos das políticas públicas.

Sendo assim, o Plano de Ação Local, de acordo com a metodologia


elaborada pelo Pacto, é montado a partir da priorização das ações
propostas nos Planos Urbanos Integrados e Programas Sociais
Integrados, a fim de colocar em prática as diretrizes propostas
em um período de tempo de médio prazo. Essas priorizações se
dão a partir das avaliações e consultas com a equipe técnica,
secretarias envolvidas e também diretamente nos territórios,
levando em consideração aspectos como: (i) urgência e gravidade
do problema; (ii) custo; e (iii) oportunidade (se está dentro de um
contexto de implementação facilitada pelas condições gerais que
influenciam no andamento do projeto/programa).

Vale ainda ressaltar que, assim como todos os processos de im-


plementação de projetos e planejamento realizados pela via do
urbanismo social, o Plano de Ação Local deve considerar as formas
organizadas de participação contínua e permanente da população
local e das lideranças comunitárias, pois a priorização de ações, bem

68
Capítulo 03 : Plano de Ação Local

como a cobrança pela continuidade dos projetos, estão diretamente


ligadas aos interesses da própria comunidade beneficiada.

3.1.2_ FASES DE IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO DE


AÇÃO LOCAL NO URBANISMO SOCIAL

O Plano de Ação Local tem como objetivo viabilizar a implementação


de programas e projetos estratégicos para favelas, levando em
conta a diversidade de cada localidade em transformação, suas
problemáticas sociais e ambientais. Sendo assim, ele funciona
como um importante instrumento para urbanização e integração
desses territórios à cidade formal — através da priorização de
recursos para transformações no espaço físico urbano e também
das intervenções sociais, com a participação e gestão ativa das
comunidades locais.

Pode-se considerar o Plano de Ação Local um mapeamento de


todas as ações planejadas e contextualizadas dentro do território
beneficiado, integrando as questões orçamentárias (fontes de
financiamento, investimentos públicos e/ou privados), os atores
envolvidos no processo (comunidade, poder público, setor privado,
sociedade civil etc.), os modelos de gestão, os tipos de intervenções
e a priorização dos projetos.

Sua viabilização segue uma metodologia com quatro eixos prin-


cipais de ação:

▸ Planejamento;

▸ Formulação;

▸ Implementação e Gestão;

▸ Avaliação e Monitoramento.

Na etapa de Planejamento, é realizada uma análise de reconhe-


cimento da área de intervenção, de suas características e pro-
blemáticas. Para isso são feitos diagnósticos físicos, espaciais e
socioparticipativos, tais como:

69
Guia de Urbanismo Social

▸ Diagnóstico Físico: morfologia urbana definição dos objetivos propostos, é necessá-


(topografia, hidrografia, uso e parcelamento rio realizar um detalhamento das atividades
do solo, traçado viário etc.); definidas para cada lugar específico, soman-
do-se ao planejamento estratégico sobre as
▸ Diagnóstico Social: composição da popu-
demandas locais e suas prioridades, pois,
lação e sua caracterização (nível de escolari-
além dos projetos de estruturação urbana e
dade, saúde pública, segurança pública etc.);
qualificação ambiental dos territórios, existe
▸ Diagnóstico de Inserção Política e Insti- a preocupação de que as ações estratégicas
tucional: análises de programas e políticas dos programas sociais promovam a qualifica-
estatais e municipais, ações preexistentes ção da vida das pessoas que habitam essas
em benefício da população local, secretarias áreas, com ações que vão desde a comple-
envolvidas e suas atividades; mentação de renda à segurança alimentar,
passando pela inclusão digital, a capacitação
▸ Diagnóstico Participativo: identificação
profissional e o empreendedorismo, além de
das demandas junto aos moradores e demais
toda uma ativação do território através de
atores envolvidos (prefeitura, profissionais
atividades culturais e de educação.
e técnicos e entidades da sociedade civil),
estabelecendo as agendas prioritárias.
A etapa de Implementação e Gestão com-
pactua com todo o processo anterior de
A etapa de Formulação é iniciada após a diagnóstico, planejamento e formulação,
identificação dos problemas levantados na estabelecendo de maneira clara uma organi-
etapa de diagnósticos. Nela, portanto, são zação da governança entre todos os atores
desenvolvidas as estratégias e soluções envolvidos nos projetos e seus objetivos.
que darão andamento aos projetos e sua É de extrema importância que haja uma
execução. Nessa fase, a participação da comunicação e uma gestão transversal
comunidade local e seu envolvimento na entre a totalidade desses atores para que
formulação dos projetos são essenciais para todas as fases do projeto estejam alinhadas,
o seu desenvolvimento. O processo coletivo coordenadas, e que consigam sair do papel
de desenho e discussão é geralmente rea- como planejado, dentro dos prazos de curta,
lizado no formato de oficinas participativas média e longa duração.
comunitárias, nas quais são expostas as
propostas dos participantes e definidas No campo das políticas públicas, a imple-
as ações prioritárias dentro do território, mentação é compreendida não como a mera
por meio de mapas, práticas de desenho e execução daquilo que foi planejado, mas
visualização de imagens representativas. como um complexo processo de interação
entre atores, no qual a intervenção pública
Juntamente com o exercício de territoriali- é continuamente influenciada e redefinida
zação das ações de cada área estudada e a pelas ações que a põem em prática. Uma

70
Capítulo 03 : Plano de Ação Local

implementação coerente e coordenada deve Ressalta-se também a importância de ga-


prever, portanto, espaço para aprendizados rantir a transparência dentro da estrutura
e acomodações, que devem ser comparti- de governança, com o acompanhamento
lhados na rede de governança. das atividades dos atores que a compõem,
além da necessidade de prestar contas à
Nos modelos de gestão no urbanismo social sociedade, à população e aos órgãos de
é fundamental que exista a capacitação controle. O accountability (prestação de
dos líderes comunitários e a tomada de contas/transparência) funciona como uma
responsabilidade pela população local, estratégia para continuidade dos projetos ao
pois a transformação do espaço físico não longo do tempo, além de fortalecer o senso
está desassociada da transformação social, de responsabilidade dos gestores públicos
impactada diretamente pela integração da locais perante às ações pactuadas.
comunidade e seu envolvimento na apro-
priação e gestão do espaço construído de
modo coletivo. O planejamento e a gover-
nança compartilhada permitem justamente
que a comunidade local esteja incluída nos
processos de deliberação e tomada de deci-
sões de todas as etapas do Plano de Ação
Local, de forma que o desenvolvimento dos
projetos possa ser monitorado e avaliado
pelos próprios moradores.

A etapa de Avaliação e Monitoramento é uma


continuidade do modelo de governança com-
partilhado. Segundo experiências de urba-
nismo social acompanhadas pelo Programa
Pacto pelas Cidades Justas, o monitoramento
das entregas do Plano de Ação Local e a
avaliação de seus impactos no território são
Saiba mais sobre a metodologia de
parte fundamental para a efetividade das
urbanismo social, com foco nos Pla-
intervenções. Esse modelo de governança
nos de Ação Local desenvolvido pelo:
organiza entidades da sociedade civil junto à
Pacto pelas Cidades Justas.
população local para que, de maneira colabo-
rativa, sejam capazes de avaliar e monitorar a
implementação dos projetos nos territórios,
através da coleta de dados e do acompanha-
mento periódico e a longo prazo.

71
Guia de Urbanismo Social

3.2_ CONTRIBUIÇÕES PARA A


METODOLOGIA DO
PLANO DE AÇÃO LOCAL

Serão apresentadas a seguir três contri- deflagra uma sequência de ações e impac-
buições metodológicas para a construção tos desfavoráveis à condição humana nesse
de Planos de Ação Local no que tange às hábitat. Essa realidade constantemente
questões de governança e participação co- produzida e reproduzida em territórios de
munitária. A primeira dá relevância ao olhar vulnerabilidade dá lugar a grandes espaços
metodológico para a desigualdade, para as de precariedade. Nesse sentido, é neces-
questões de nível macro e micro das polí- sário olhar para o território em questão
ticas públicas no combate às duas formas fundamentando-se minimamente em dois
de desigualdade, a territorial e a social. A princípios básicos: a abordagem integrada
segunda realça a inclusão dos processos de e interdisciplinar e a participação e o pro-
mobilização, organização e fortalecimento tagonismo das comunidades.
social relacionados à elaboração de Planos
de Ação Local. A terceira contribuição lança o Estão ancoradas na abordagem integrada e
olhar para a leitura e análise das instituições interdisciplinar dois procedimentos: a leitura
e organizações locais, como um instrumento territorial integrada das desigualdades e as
relevante para o planejamento dos processos estratégias globais de combate a elas. Os
de governança e participação, englobando esquemas a seguir ilustram esses dois as-
os desafios relacionados à prática da gestão pectos de leitura e planejamento das ações
participativa e a necessidade de considerar a junto às áreas em condição de vulnerabilidade.
interdependência entre plano global e local, No primeiro, ressalta-se a importância do
com exemplos de práticas desenvolvidas cruzamento de ambas as dimensões da vulne-
pela Diagonal. rabilidade de uma comunidade — a territorial
e a social — e a necessidade da focalização e
da universalização das políticas públicas no
3.2.1_ OLHAR INTEGRADO DAS território, entendidas como um direito. No
DESIGUALDADES segundo, enfatiza-se a relevância de consi-
derar os dois níveis de ações que intervêm no
Favelas, de forma geral, se confundem planejamento territorial: o macro, que orienta
com áreas urbanas degradadas, pois são as ações globais e estruturantes da organiza-
o reflexo de uma construção humana pau- ção do território, e o micro, que olha e articula
tada pela necessidade, recursos escassos as ações locais dentro das especificidades
e busca de uma localização urbana para de cada área, em uma perspectiva de outra
morar. São um produto social contraditório, temporalidade, visando ao atendimento de
no qual a ocupação do núcleo de vivência demandas históricas e urgentes.

72
Capítulo 03 : Plano de Ação Local

INFOGRÁFICO 01:
LEITURA TERRITORIAL INTEGRADA DAS DESIGUALDADES

Precariedade
Desigualdade Social
Territorial

Periferia marcada pela POLÍTICAS PÚBLICAS Territórios vulneráveis


inseguridade do solo/ FOCALIZADAS E UNIVERSALIZADAS marcados pela
relevo, da infraestrutura, desigualdade econômica
da construção, da estrutural impactando em:
condição jurídica da
posse do terreno.

Qualidade de vida:
capacidade de
subsistência-renda,
qualidade ambiental
VULNERABILIDADES

Contradição;
(água, esgoto, lixo),
Gera uma cadeia para a PRECARIEDADE DESIGUALDADE qualidade dos
cidade inteira; TERRITORIAL SOCIAL domicílios, propriedade;
deslocamentos nas
Crescimento geográfico ruas, ofertas de
desigual. serviços básicos (saúde,
educação, transporte
público, lazer).

Vulnerabilidades Baixo índice de


socioambientais; desenvolvimento
humano:
A precariedade territorial POLÍTICAS PÚBLICAS COMO DIREITO educação infantil,
nas cidades brasileiras BASEADAS EM EVIDÊNCIAS mortalidade, violência,
é mais do que a imagem padrão de tolerância/
da desigualdade, é intolerância a
condenação de todas as heterogeneidades de
cidades de coexistirem gênero, etnia, opção
com um urbanismo sexual, opção religiosa,
de risco. trabalho feminino.

Fonte: Diagonal.

73
Guia de Urbanismo Social

INFOGRÁFICO 02:
ESTRATÉGIAS GLOBAIS DE ATAQUE

VISÃO GLOBAL DAS


ESTRATÉGIAS GLOBAIS
NÍVEL MACRO ÁREAS DEGRADADAS
DE ATAQUE
[região, município ou estado]

RETROALIMENTAÇÃO ▸ Principais problemas; ▸ Propostas e Programas de

▸ Principais demandas de Ações Globais;

cada área; ▸ Propostas de captação

▸ Quadro geopolítico e das de recursos (opção de

organizações. implantação gradual).

ESPECIFICIDADES DE PROJETOS E AÇÕES


NÍVEL MICRO
CADA ÁREA ESPECÍFICAS

▸ Diagnóstico integrado da ▸ Projetos específicos;


área e individualizado por ▸ Implantação e
unidade familiar; monitoramento das ações.
▸ Diagnóstico integrado
geopolítico.

Fonte: Diagonal.

3.2.2_ PARTICIPAÇÃO E PROTAGONISMO COMUNITÁRIO

No Brasil, a evolução das abordagens participativas dentro das


experiências de urbanização integrada de assentamentos precários
deu protagonismo ao trabalho social de mobilização, organização e
fortalecimento das comunidades impactadas pelas obras, estrutu-
rando e proporcionando visibilidade à importância desse trabalho no
contexto das intervenções.

A própria normatização realizada no âmbito do Ministério das Cida-


des — atual Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional
(MDR) — para o financiamento de projetos reforça essa relevância no

74
Capítulo 03 : Plano de Ação Local

processo de implementação, buscando abrir espaço para o protagonismo comunitário. Tais


diretrizes participativas e deliberativas constituem parte dos preceitos do urbanismo social
e devem ser incorporadas em seus projetos. O fluxograma apresentado a seguir ilustra
sinteticamente os principais processos de elaboração de planos de ação que agregam a
contribuição do trabalho social, incorporando suas principais linhas ou eixos de atuação, nas
distintas fases das obras/intervenções:

INFOGRÁFICO 03:
FLUXOGRAMA DOS PLANOS DE AÇÃO LOCAL EM FAVELAS

PROCESSO 1 PROCESSO 2
AÇÕES INICIAIS E PLANO DE TRABALHO DIAGNÓSTICO

AÇÕES INVESTIGAÇÕES, AÇÕES


PRELIMINARES ANÁLISES E ESTUDOS PRELIMINARES

Mobilização da Pesquisa de Fontes Diagnóstico Socioeconômico;


Comunidade; Secundárias;
Diagnóstico Sócio-organizativo;

Pesquisa Diagnóstico Urbanístico;


Socioeconômica-
Discussão do
Ambiental; Diagnóstico Jurídico e Fundiário.
Programa Melhorias
para o Bairro;
Pesquisa Sócio-
organizativa
(quantitativa);
Discussão do Plano de
Trabalho da Equipe, Diagnóstico Integrado e Diretrizes
diagrama de fluxos e Levantamento do
da Intervenção.
cronograma; Perfil das Instituições;

Estudos sobre
Discussão do papel
Tendência da Terra;
da comunidade
e definição do
modelo de gestão Estudos Urbanísticos e
participativa. Ambientais.

Fonte: Diagonal.

75
Guia de Urbanismo Social

3.2.3_ DIAGNÓSTICO SÓCIO-ORGANIZATIVO COMO INSU-


MO NOS PROCESSOS DE GOVERNANÇA E PARTICIPAÇÃO

O desenvolvimento de um Plano de Ação Integrado demanda um


diagnóstico sócio-organizativo do território, composto pelo mape-
amento das instituições/organizações locais, além de pesquisas
qualitativas que contribuam para a compreensão do sistema de
governança local.

MAPEAMENTO DAS INSTITUIÇÕES

O trabalho integrado com a comunidade requer um amplo diagnóstico


das organizações comunitárias e institucionais inseridas nos terri-
tórios que envolvem a ação, tomando como base o cadastramento
e georreferenciamento de todas as unidades presentes e operantes
nas comunidades. Poderá ser complementado com organizações/
instituições do entorno ou da cidade em forma de tabela.

Os dados básicos do mapeamento devem contemplar:


▸ Identificação;

▸ Natureza das organizações (formal ou informal);

▸ Objetivos;

▸ Serviços prestados;

▸ Capacidade de atendimento;

▸ Convênios (caso existam);

▸ Parcerias, canais de reivindicação;

▸ Identificação e papel dos líderes;

▸ Constituição da organização (estatuto);

▸ Representação em conselhos gestores de governos;

▸ Indicação de outras lideranças da comunidade ou fora dela;

▸ Redes de comunicação virtuais;

▸ Outros dados necessários ao objetivo do projeto integrado.

76
Capítulo 03 : Plano de Ação Local

PESQUISAS QUALITATIVAS
Com o intuito de exemplificar as perspec-
tivas de uma análise integrada das orga-
A pesquisa qualitativa procura, junto às
nizações sociais, demonstra-se a seguir
lideranças e a atores de referência, indivi-
uma das possibilidades de avaliação das
dualmente ou em grupo, resgatar a história
organizações visando à governabilidade dos
das comunidades, coletando suas principais
planos e as atenções para capacitação e
reivindicações, mobilizações e formas de
ações participativas, incluindo as estratégias
lutas. Com as informações coletadas, junto
a serem adotadas.
a essas lideranças e aos moradores mais
antigos, é possível situar num contexto his-
Exemplos de aspectos a serem considerados
tórico o processo de ocupação das áreas, as
para a construção da Matriz de Avaliação
etapas mais importantes do desenvolvimento
das Organizações/Instituições Comunitárias:
das comunidades e os traços marcantes da
dinâmica das relações sociais internas e ex-
VARIÁVEIS DE ANÁLISE
ternas, inclusive no que diz respeito ao poder.
▸ Mobilidade para mudança e resistência;
O roteiro utilizado é semiestruturado em
▸ Organização e representatividade;
torno das seguintes referências básicas:
▸ Formalidade ou informalidade;
▸ Histórico de ocupação;
▸ Relações políticas (institucionais/partidárias);
▸ Organizações comunitárias: processos
▸ Reivindicações por grau de necessidade;
de lutas e reivindicações;
▸ Situação fundiária;
▸ Participação em conselhos e movimentos
populares; ▸ Pontos críticos.

▸ Principais demandas das comunidades;

▸ Correlação de forças internas e externas.

retângulo
As informações obtidas, somadas aos cadas-
tros, fornecem quadros das relações sociais
que permitem o planejamento de diversas
frentes de trabalho, ações conjuntas e de-
finição de estratégias com menor margem
de erro. Descrever em cada comunidade as
análises e marcar os pontos facilitadores e
dificultadores colabora muito para a iden-
tificação e priorização de ações de acordo
com as especificidades dos grupos locais.
77
Guia de Urbanismo Social

DESAFIOS E OBSTÁCULOS PARA O 3.2.4_ A INTERDEPENDÊNCIA


PROTAGONISMO SOCIAL ENTRE PLANO GLOBAL E PLANO
DE AÇÃO LOCAL
A proposição de novas linhas de ação que
envolvem processos de governabilidade so- As experiências obtidas no desenvolvimento
cial integrada prevê mudanças significativas das ações de acompanhamento social das
e desafios em diversos aspectos. Exemplos: intervenções em áreas vulneráveis indicam
▸ Tarefas: que passarão de simples, já en- que os melhores resultados têm correspon-
tão vivenciadas, para multidimensionais, dido aos momentos em que os Planos de
mais complexas no fazer e nas relações Ação Local são discutidos e priorizados na
que estabelecem; formulação de um planejamento territorial
mais amplo da cidade. É nesse processo
▸ Papéis: de beneficiários do poder público
que as questões locais são articuladas com
para gestores de programas;
aquelas mais gerais dos municípios, na
▸ Valores: de solidariedade e responsabilida- combinação dos aspectos estruturais das
de social nos “negócios” (empreendimentos); políticas setoriais com as múltiplas necessi-
dades sociais e urbanísticas de cada bairro,
▸ Serviços de apoio e assistência: para
em suas carências históricas e nas novas,
serviços de gerenciamento e execução de
surgidas nos tempos atuais. Nesse trânsito
ações que envolvem fatores econômicos e
de escalas, o orçamento pode ser priorizado
financeiros, técnicos e sociopolíticos num
de modo mais claro para os agentes técnicos
contexto determinado.
e de governança — e de maneira transparente
Os obstáculos para a participação popular para as comunidades envolvidas.
e o protagonismo social podem ser sinte-
tizados pela falta dos seguintes aspectos: Trata-se da busca pela construção de pla-
▸ Experiência dos três lados (governos, nejamento e pactos territoriais olhando para
comunidades e parceiros privados); a totalidade, e que não sejam sobrepujados
pelos planos e pactos setoriais orientados
▸ Organização pontual para reivindicar e
e/ou determinados por uma lógica predomi-
garantir o objeto de suas demandas (flui de
nantemente econômica, na qual se ressalta
acordo com os moradores e as emergências);
o poder político de determinados agentes
▸ Organização para a autogestão; e de classe social.

▸ Conhecimento sobre custos, variáveis téc-


Em muitas intervenções de urbanização
nicas e processos envolvidos na realização
integrada de assentamentos precários as
dos seus objetivos;
políticas setoriais de saneamento e mobili-
▸ Visão pontual e segmentada sobre o am- dade estrutural tendem a determinar — em
biente local e a cidade. virtude de sua rigidez técnica-tecnológica

78
Capítulo 03 : Plano de Ação Local

e elevado consumo de recursos orçamen- Em Boa Vista/RR, o Programa Braços Aber-


tários e de financiamentos — os principais tos — elaborado nos primeiros meses de
investimentos no tempo e no espaço, pro- gestão de Teresa Surita na prefeitura (2001-
porcionando pouca margem decisória e de 2004), desenvolvendo metodologia similar
atendimento a outras demandas sociais da à de Curitiba, acima mencionada — foi o
vida do bairro. Configura-se, assim, a prática instrumento de planejamento das ações
corrente de um planejamento de cima para estruturais e locais da cidade, com foco na
baixo (top-down), no qual a racionalidade participação social. Para tanto, foi criada a
econômica se impõe sobre uma questão que Secretaria de Gestão Participativa e Cidada-
é política: a discussão do uso do território. nia, designada a trabalhar todo o processo
de relação com a população, organização
Algumas poucas experiências de elaboração e levantamento de dados, informações e
de Planos de Ação Local derivados de uma pesquisas, além de definir planos locais
discussão mais ampla dos problemas e do de ação integrada, com a participação das
orçamento da cidade podem ser relatadas, comunidades. Valendo-se da estratégia de
como as que aconteceram em Curitiba (PR), engajamento e envolvimento da população
em 1999, e Boa Vista (RR), entre 2001-2004. no processo, o programa combinou a reali-
zação de obras estruturais da cidade e do
Na capital paranaense, o Plano Decidindo bairro, de médio e longo prazo, com entregas
Curitiba, elaborado na primeira gestão do rápidas, de curto prazo, focando aquelas de
prefeito Cássio Taniguchi (1997-2000), vi- alto impacto e baixo custo e que gerassem
sou aplicar para toda a cidade metodologia emprego e renda para as pessoas.
de intervenção desenvolvida em áreas e
assentamentos vulneráveis, que pressupu- A priorização de investimentos e intervenções
nha abordagem territorializada, integrada, urbanísticas e sociais nos bairros mais vul-
focalizada, participativa e negociada com a neráveis de Boa Vista configura exemplo de
comunidade. Desse plano decorreram inter- urbanismo social em que as demandas locais
venções integradas em toda a cidade. Em do bairro assumem protagonismo no processo
bairros periféricos, múltiplas ações setoriais de decisão e escolhas do poder público.
desenvolvidas se articularam às necessida-
des identificadas e priorizadas, tendo como
centro as demandas da comunidade. Essas
ações são exemplos de urbanismo social,
pois tiveram como foco o atendimento das
principais questões do lugar, enquanto to-
talidade que expressa o acontecer solidário
das relações sociais e a construção e ressig-
nificação da paisagem do bairro de vivência.

79
04_
DIMENSÃO GOVERNANÇA

4.1_
Processos de governança no
urbanismo social

4.2_
Diretrizes para construção de um
modelo de governança territorial
para o urbanismo social

4.3_
Eixos para construção de uma boa
governança territorial

4.4_
Diagnóstico dos principais
problemas de governança

4.5_
Diretrizes para a modelagem de
uma boa governança territorial
AUTORES
4.6_
4.1_ Carlos Mario Rodrigues (Instituto
Objetivos, instâncias e instrumentos
Tecnologico de Monterrey);
4.2_ a 4.7_ Pedro Marin e Andrelissa
4.7_
Ruiz (Fundação Tide Setubal);
Mobilização e protagonismo
[Box A Maré que Queremos] Núcleo
comunitário
Mulheres e Territórios;
[Box Ações cooperativas academia-
-comunidade-escola pública no Jardim
Ângela] Vera S. Luz (PUC-Campinas) e
Antonio Fabiano Jr. (FAU-Mackenzie).
Capítulo 04 : Dimensão Governança

4.1_ PROCESSOS DE GOVERNANÇA NO


URBANISMO SOCIAL

O urbanismo social em Medellín como política pública territorial


visou construir uma governança corresponsável do território,
focando a relação entre Estado e sociedade no cidadão como
sujeito de transformação social, econômica e cultural. Essa ideia de
governança, nascida no início dos anos 1990, levantou a necessidade
de boas práticas na forma como o Estado intervém no território e
define instâncias e cenários de discussão com uma estrutura menos
piramidal e mais horizontal, gerando, assim, espaços de tomada
de decisão compartilhada, o que implica o empoderamento da
sociedade nas ações levadas a cabo na comunidade.

A governança como estratégia de eficiência requer uma demanda


por processos de planejamento que permitam pensar e repensar
o território de modo democrático. No urbanismo social, e espe-
cificamente nos Projetos Urbanos Integrais (PUIs) — que são
mediados por processos de planejamento tangíveis da área em
questão —, isso se faz com a leitura conjunta do território pelo
Estado e pela sociedade.

O reconhecimento do território por todos os seus intervenientes


e o acompanhamento constante durante os processos de imple-
mentação garantem a sustentabilidade, a melhoria das condições
econômicas, o aumento dos indicadores da qualidade de vida dos
habitantes e por último, mas não menos importante, a construção
do capital social.

A governança é o principal objetivo desses processos enqua-


drados no urbanismo social. A partir dos diferentes programas
e projetos que visam à democratização dos territórios, eles são
implementados e fazem da transformação da cidade intervenções
integrais nas quais todas as ferramentas de desenvolvimento
estão disponíveis de forma simultânea.

81
Guia de Urbanismo Social

4.2_ DIRETRIZES PARA CONSTRUÇÃO


DE UM MODELO DE GOVERNANÇA
TERRITORIAL PARA UM
URBANISMO SOCIAL

Uma das premissas do urbanismo social é a necessidade do


estabelecimento de um modelo de governança diferenciado para
os territórios que são objeto de intervenção. A descontinuidade
administrativa, as dificuldades das diversas pastas de trabalharem
de acordo com o mesmo planejamento e o baixo nível de institucio-
nalização das instâncias participativas locais, como os conselhos
gestores de equipamentos públicos, são características frequentes
na atuação do poder público em favelas.

Os capítulos anteriores já demonstraram que o sucesso do ur-


banismo social em casos de referência como Medellín e Recife
também estão atrelados a modelos consistentes e inovadores de
governança compartilhada no território. Isso porque o sucesso
da implementação das intervenções urbanas e das diretrizes de
integração de políticas sociais aqui propostas depende, em grande
parte, da capacidade do poder público de fortalecer a coordenação
intersetorial e de estreitar seus laços com a sociedade civil local,
além de garantir a continuidade dos investimentos necessários
ao longo do tempo.

Para alcançar tais objetivos, é de interesse do poder público pro-


mover mudanças significativas na maneira como as políticas para
o território são planejadas, implementadas e avaliadas. A esses
arranjos formais e informais de interdependência entre diferentes
atores estatais e não estatais que produzem e implementam as
políticas públicas no território chamamos de governança1.

1 MARQUES, Eduardo. Government, political actors and governance in urban poli-


cies in Brazil and São Paulo: concepts for a future research agenda. Brazilian Political
Science Review, [s. l.], v. 7, p. 8-35, 2013.
STOKER, Gerry. Governance as theory: five propositions. International Social
Science Journal, [s. l.], v. 50, p. 17-28, 2002. DOI 10.1111/1468-2451.0010.
82
Capítulo 04 : Dimensão Governança

O QUE É GOVERNANÇA?

Governança é um termo amplo que pode ser usado em diversos contextos.


Aqui, porém, entendemos governança como arranjos formais e informais
nos quais participam representantes do poder público, entidades privadas
locais e organizações comunitárias que estão presentes nos territórios.
Esses arranjos são espaços de articulação, de participação e de tomada
de decisões que afetam tanto o território e sua população quanto as
próprias intervenções. Nele se constitui uma interdependência entre
diferentes atores estatais e não estatais que produzem e implementam
as políticas públicas na área em questão. É um espaço para discutir e
alinhar os diferentes interesses do território. Lembrando que o sucesso
na mobilização comunitária é um dos aspectos determinantes para a
construção de modelos bem-sucedidos de governança territorial.

Nos capítulos anteriores, vimos que não há um único modelo de


urbanismo social, uma “receita pronta” que funcione para todos
os contextos. Da mesma forma, a implementação de um modelo
de governança para o urbanismo social deve ser pensada a partir
da realidade de cada território, em diálogo próximo com os atores
envolvidos no processo.

Sendo assim, em vez de algo pronto, apresentaremos a seguir


algumas diretrizes para a construção de um modelo de governança
que permita enfrentar os desafios elencados acima e dar um salto de
! qualidade na capacidade de implementação das ações planejadas
no âmbito de projetos de urbanismo social. Essas diretrizes foram
PARA SABER MAIS, VER:
elaboradas no âmbito do projeto de cooperação entre o Pacto pelas
▸ Capítulo 15 (Casos
Referenciais) Cidades Justas e a Prefeitura Municipal de São Paulo a partir de
um extenso trabalho de levantamento sobre o funcionamento das
! instâncias de participação local nos territórios-alvo no diagnóstico
PARA SABER MAIS, VER: sobre a governança dos Centros Educacionais Unificados, bem
▸ Comitê das Bacias como nos estudos de benchmark a respeito dos principais casos
Hidrográficas dos Rios
de referência: Medellín; Compaz e Porto Digital, no Recife; Comitê
Piracicaba, Jundiaí e
Capivari (PCJ). das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, no
Estado de São Paulo (CBH-PCJ).

83
Guia de Urbanismo Social

4.3_ EIXOS PARA CONSTRUÇÃO


DE UMA BOA GOVERNANÇA
TERRITORIAL

Estudos sobre governança2 estabelecem três principais eixos


que devem orientar o desenho de um modelo dessa natureza que
produza bons resultados.

Em primeiro lugar, um arranjo de governança deve ser capaz de


produzir um planejamento compartilhado, ou seja, que todos os
atores envolvidos no desenho das políticas públicas participem
de sua construção e estejam cientes de quais objetivos devem
ser perseguidos no curto, médio e longo prazo. Esse planejamento
definido no e com o território deve ser efetivamente transmitido
às instâncias superiores de todas as organizações envolvidas na
governança, de modo que o plano local esteja contemplado nos
instrumentos centrais de planejamento físico e orçamentário. Para
o poder público, isso significa que instrumentos de planejamento
como planos setoriais, planos regionais, planos estratégicos, Plano
Plurianual e Lei Orçamentária Anual devem trazer de maneira
explícita o planejamento pactuado nos territórios-alvo dos proje-
tos de urbanismo social, de forma a garantir a priorização dessas
ações em face do imenso conjunto de demandas com as quais as
secretarias têm de lidar no dia a dia.

Uma boa estrutura de governança deve também favorecer uma


implementação coerente e coordenada das ações pactuadas na
etapa do planejamento. A implementação será coerente se seguir,
sempre que possível, o planejamento estabelecido, sendo que os
inevitáveis ajustes no planejamento original devem ser feitos de
modo integrado, com a participação e a ciência de todos os atores
envolvidos. A dimensão da coordenação refere-se à capacidade
das diversas áreas responsáveis pela implementação das ações
de compartilhar conhecimento técnico, protocolos e recursos na
condução das atividades planejadas, garantindo que as ações

2 PIERRE, Jon; PETERS, Guy. Governing complex societies: trajectories and scena-
rios. Houndmills, Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005. ISBN 978-0-230-51264-1.
84
Capítulo 04 : Dimensão Governança

aconteçam na ordem em que têm que acontecer e que haja efetiva


ação intersetorial no enfrentamento dos problemas.

Por fim, é necessário garantir o accountability, ou seja, a transpa-


rência no processo e a responsabilização contínua daqueles que
participam da estrutura de governança. Tal prática se dá de duas
maneiras principais. A primeira é interna, e se manifesta na medida
em que os atores que compõem a rede de governança necessitam
dar satisfações uns aos outros na condução das atividades do
cotidiano. A segunda é externa, e refere-se à prestação de contas
da estrutura de governança à população do território, aos órgãos
de controle e à sociedade como um todo.

Ambas as formas de accountability são vitais para garantir a con-


tinuidade do projeto no tempo, considerando as descontinuidades
administrativas que são características do regime democrático no
Brasil. O fortalecimento do accountability interno fortalece o senso
de responsabilidade dos gestores públicos locais e da burocracia
de nível de rua perante o projeto e a sociedade civil envolvida. A
▸ Burocracia de nível cobrança entre pares torna mais difícil que o novo gestor de um
de rua se refere ao
equipamento público local adote práticas muito diferentes daquelas
servidores públicos
que atuam diretamente pactuadas. Já o accountability externo mantém o projeto em evi-
no atendimento à dência perante a população local e à sociedade como um todo ao
população — são a face
do Estado em contato
longo do tempo, criando novos constrangimentos que favorecem
com os cidadãos. a continuidade das ações pactuadas.

PRINCIPAIS DIRETRIZES PARA A


CONSTRUÇÃO DE UM MODELO DE
GOVERNANÇA

▸ Planejamento compartilhado;

▸ Implementação coerente e coordenada das ações pactuadas na etapa


do planejamento;

▸ Accountability ou transparência no processo e responsabilização contínua


daqueles que participam da estrutura de governança.

85
Guia de Urbanismo Social

4.4_ DIAGNÓSTICO DOS PRINCIPAIS


PROBLEMAS DE GOVERNANÇA

A modelagem de uma estrutura de governança orientada pelos


eixos apresentados anteriormente deve partir da consolidação
do diagnóstico dos principais problemas e lacunas da estrutura

!
atual em cada território. Com base nos levantamentos conduzidos
pela equipe do Pacto pelas Cidades Justas nos três territórios que
foram objeto de intervenção na cidade de São Paulo, foi possível PARA SABER MAIS, VER:

identificar quatro problemas principais relacionados à governança ▸ Capítulo 5 (Dimensão


Territorial), sobre
naquele contexto. Esses problemas, embora detectados no processo a elaboração de
de diagnóstico de três casos específicos, tendem a se reproduzir diagnóstico local.
em outros contextos de vulnerabilidade social, razão pela qual
iremos discuti-los a seguir.

Entretanto, recomendamos que cada processo de intervenção


territorial tenha sua etapa própria de diagnóstico dos problemas de
governança, de modo que o processo de modelagem seja conduzido
de maneira mais adaptada ao contexto local.

BAIXA RESPONSIVIDADE ÀS
DEMANDAS LOCAIS

A baixa capacidade de resposta das diversas secretarias municipais


às demandas apresentadas pela população tem gerado um forte
sentimento de frustração, apatia e descrédito em relação ao poder
público nas favelas. Décadas de demandas ignoradas, promessas
não cumpridas e intervenções que levam muito mais tempo para
ocorrer do que deveriam fizeram com que as lideranças e a popu-
lação em geral nutram um forte sentimento de desconfiança em
relação ao poder público e à própria possibilidade de mudanças
significativas na qualidade de vida no território. Nesse cenário,
a mobilização da população local em torno de um projeto de ur-
banismo social participativo como o proposto neste Guia é tarefa
especialmente desafiadora.

86
Capítulo 04 : Dimensão Governança

BAIXO NÍVEL DE
PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA

Como consequência do problema apontado anteriormente, verifi-


ca-se um alto nível de fragmentação e um baixo grau de institu-
cionalidade das instâncias de participação social nos territórios. A
atuação nas instâncias formais de participação, como o conselho
participativo ou os conselhos gestores de equipamentos públicos,
não é vista pelas lideranças públicas locais como estratégica na
busca por soluções para o território, uma vez que essas instâncias
não têm se mostrado capazes de fornecer respostas efetivas para
os problemas. Em tal contexto, as lideranças comunitárias do
território também têm dificuldade de mobilizar pessoas em torno
de objetivos coletivos.

POUCA INTEGRAÇÃO DAS


POLÍTICAS LOCAIS

Os funcionários do poder público responsáveis pela implementação


das políticas públicas na ponta têm pouca interação significativa
entre si na formulação, construção ou implementação de políticas.
Há uma dificuldade do poder público de engajar esses servidores
em torno de objetivos comuns, bem como de estabelecer uma
escuta ativa e contínua dos funcionários. Essa integração torna-se
ainda mais difícil quando envolve quadros de diferentes níveis de
governo (estadual e municipal) que atuam no mesmo território.

DESCONTINUIDADE
POLÍTICO-ADMINISTRATIVA

As mudanças políticas oriundas de eleições ou trocas de secreta-


riado ou subprefeitos costumam levar a alterações relativamente
frequentes da equipe responsável pela direção de equipamentos
públicos vitais para o sucesso do projeto de urbanismo social.

87
Guia de Urbanismo Social

4.5_ DIRETRIZES PARA A MODELAGEM


DE UMA BOA GOVERNANÇA
TERRITORIAL

Com base nos problemas aqui apresentados, estabelecemos as


seguintes diretrizes de modelagem para um novo sistema de
governança local compartilhada:

PACTUAÇÃO CLARA DE OBJETIVOS

Os objetivos comuns a serem perseguidos no âmbito do projeto


de urbanismo social no curto, médio e longo prazo devem ser de
conhecimento de todos os atores do território e, ainda, ser objeto
de priorização no planejamento físico e orçamentário de cada pasta.
Esse processo de priorização é fundamental não apenas para dar
orientação integrada às equipes técnicas locais e facilitar o pro-
cesso de coordenação intersetorial no território como também para
garantir que haja recursos orçamentários para financiar as ações
pactuadas com os atores da comunidade em questão, garantindo
responsabilidade e diminuindo o sentimento de frustração da socie-
dade civil local. Nesse sentido, é fundamental que o planejamento
não seja apenas uma “lista de desejos” irrealista, mas constitua, isto
sim, uma programação de ações possíveis de serem implementadas
nos tempos previstos e com os recursos disponíveis.

CENTRALIZAÇÃO DOS PROCESSOS


PARTICIPATIVOS LOCAIS

A fragmentação de espaços de participação social no território


desmobiliza a população local e pulveriza a energia comunitária
em torno de diversos pequenos conselhos sem poder efetivo de
influenciar as políticas públicas na área em questão. Combater essa
fragmentação de espaços participativos requer a concentração de
recursos institucionais e de mobilização de modo a fortalecer um
fórum que de fato seja reconhecido no território como interlocutor
na definição e monitoramento das políticas públicas para a localida-
de. Tal fórum deve ser intersetorial; neles, o planejamento do bairro
como um todo é debatido e deliberado. Para que seja fortalecido,
88
Capítulo 04 : Dimensão Governança

é fundamental que as decisões tomadas tenham consequências,


refletindo no trabalho de todas as secretarias envolvidas.

COORDENAÇÃO INTERSETORIAL

Um planejamento comum e compartilhado entre as equipes téc-


nicas locais de todas as secretarias com presença no território é
um primeiro passo importante no sentido de construir uma coor-
denação intersetorial mais robusta. Outro passo fundamental diz
respeito à criação de instâncias de coordenação intersecretarial
na escala territorial e na escala central em torno de temas de
natureza intersetorial. Desafios concretos e de interesse comum
tendem a facilitar o início de um processo mais amplo de integra-
ção de políticas públicas. Um exemplo de desafio desse tipo é o
de proteção da primeira infância, que mobiliza áreas tão diversas
quanto Saúde, Educação, Assistência e Desenvolvimento Social,
Segurança Pública, além dos Conselhos Tutelares.

APOIO À MOBILIZAÇÃO COMUNITÁRIA

Para além dos mecanismos formais de participação, é preciso


estabelecer incentivos para a mobilização comunitária mais ampla,
que permita integrar ao processo de urbanismo social pessoas
que não têm experiência prévia com processos de construção
coletiva. Para tanto, é importante empoderar lideranças locais e se
apoiar nas microrredes dos atores que já estão mobilizados, além
de identificar temas que têm o potencial de mobilizar pessoas no
território. Ações de urbanismo tático, por exemplo, têm o potencial
de mobilizar novas pessoas em torno de processos mais complexos
de planejamento comunitário.

COMPARTILHAMENTO DA GOVERNANÇA
COM A SOCIEDADE CIVIL

As experiências bem-sucedidas de governança em urbanismo


social demonstram que formas inovadoras de parceria com a
sociedade civil costumam render bons frutos. No caso do Porto
Digital de Recife, referência no modelo de governança, a direção

89
Guia de Urbanismo Social

do equipamento público é tripartite e compartilhada entre


governo, academia e sociedade civil. Em São Paulo, um Termo
de Parceria poderia instituir a sociedade civil como guardiã do
Plano de Ação Local e empoderá-la para atuar como responsável
formal por seu monitoramento.

A figura a seguir resume essa construção das diretrizes de mo-


delagem a partir da consolidação do diagnóstico dos principais
problemas da governança nos territórios:

INFOGRÁFICO 01:
PROBLEMAS E DIRETRIZES PARA GOVERNANÇA LOCAL

PROBLEMAS DIRETRIZES

RESPONSIVIDADE ÀS DEMANDAS SOCIAIS OBJETIVOS PACTUADOS


Baixa capacidade de resposta às demandas apresen- Priorizar os objetivos pactuados no território no
tadas pela população, gerando frustração e apatia. planejamento físico e orçamentário de cada pasta,
garantindo responsividade.

retângulo retângulo
INTEGRAÇÃO DAS POLÍTICAS LOCAIS COORDENAÇÃO INTERSETORIAL
Dificuldade de engajar funcionários da ponta em Criar instâncias de coordenação intersecretarial na
torno de objetivos comuns. escala territorial e central em torno de temas de
natureza intersetorial (ex: primeira infância).

retângulo retângulo
PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA FOMENTO À MOBILIZAÇÃO E CENTRALIZAÇÃO
Baixo nível de participação social, fragmentação e DAS INSTÂNCIAS PARTICIPATIVAS
baixo grau de institucionalidade das instâncias de
Criar incentivos para a mobilização comunitária e
participação social.
concentrar recursos institucionais para fortalecer
um fórum participativo que de fato seja reconhecido
no território.

retângulo retângulo
DESCONTINUIDADE GOVERNANÇA COMPARTILHADA
Descontinuidade político-administrativa relacionada Estabelecer parceria com a sociedade civil para atuar
aos ciclos eleitorais. como guardiã do planejamento e como responsável
por seu monitoramento.

retângulo
Fonte: Pacto pelas Cidades Justas. retângulo

90
Capítulo 04 : Dimensão Governança

4.6_ OBJETIVOS, INSTÂNCIAS E


INSTRUMENTOS

Com base nas diretrizes e nos eixos elencados, é possível propor


um modelo de governança que englobe o uso de instrumentos
de planejamento existentes e a criação de novas instâncias de
coordenação de modo a reunir os atores relevantes em torno de
objetivos específicos relacionados à construção e implementação
de um projeto de urbanismo social. A figura a seguir traz propostas
de instrumentos e instâncias pensados a partir dos três eixos da
boa governança: planejamento compartilhado, implementação
coerente e coordenada e accountability.

INFOGRÁFICO 02:
OBJETIVOS, INSTRUMENTOS E INSTÂNCIAS DE
COORDENAÇÃO DO MODELO DE GOVERNANÇA
retângulo

IMPLEMENTAÇÃO
PLANEJAMENTO
COERENTE E ACCOUNTABILLITY
COMPARTILHADO
COORDENADA
retângulo retângulo
▸ Unificar e integrar ▸ Implementar as ▸ Monitoramento
o planejamento para políticas previstas no participativo da imple-
intervenções no território. planejamento de forma mentação do plano.
integrada. ▸ Garantir a
OBJETIVOS ▸ Garantir a priorização
pelas diversas pastas ▸ Implementação do responsabilidade continuada
em seus respectivos planejamento pactuado do Poder Público pelos
planejamentos físicos e sem descontinuidade. objetivos pactuados, mesmo
orçamentários. com mudanças políticas.

▸ Plano de Bairro. ▸ Termo de Parceria ▸ Termo de Parceria com a

▸ Programa de Metas, com a Organização da Organização da Sociedade


PROPOSTAS DE
INSTRUMENTOS PPA, LOA, Planos Setoriais. Sociedade Civil (OSC). Civil (OSC).

▸ Protocolos específicos ▸ Observatório local.


para políticas integradas.

▸ Conselho Gestor do ▸ Comitê intersecretarial ▸ Conselho Gestor do Plano


Plano de Bairro. de Urbanismo Social. de Bairro.
PROPOSTAS DE
INSTÂNCIAS DE ▸ Núcleo de
▸ Comitê intersecratarial ▸ Núcleo de
COORDENAÇÃO
de Urbanismo Social. Desenvolvimento Local Desenvolvimento Local (em
(em parceria com a OSC). parceria com a OSC).

Fonte: Pacto pelas Cidades Justas.


91
Guia de Urbanismo Social

No eixo do planejamento compartilhado, órgãos de coordenação territorial do poder


temos como objetivos principais a unificação público em torno da pactuação de objetivos
e integração do planejamento das interven- compartilhados para a área em questão.
ções no território e a garantia da priorização
pelas diversas pastas em seus respectivos Mas o Plano de Bairro não deve ser o único
planejamentos físicos e orçamentários. A instrumento público de planejamento em
função desse planejamento unificado é que as ações de desenvolvimento ter-
traduzir as ações estabelecidas no projeto ritorial pactuadas no urbanismo social
de urbanismo social em um pacto entre estejam refletidas: como já foi dito, é fun-
poder público e população local para o damental que o os planos estratégicos, o
curto, médio e longo prazo, tendo em vista Plano Plurianual (PPA), a Lei Orçamentá-
as demandas da área em questão, as prio- ria Anual (LOA) e os planos setoriais de
ridades político-administrativas da gestão políticas públicas garantam os devidos
pública e a disponibilidade de recursos. recursos e esforços institucionais e polí-
ticos para que o planejamento territorial
No contexto paulistano em que tal proposta seja priorizado nos processos internos de
de modelo de governança está baseada, cada órgão do poder público. Para discutir
compreendeu-se que o melhor instrumento a incorporação do planejamento territorial
para consolidar esse planejamento unifi- no planejamento central das secretarias,
cado é o Plano de Bairro, um dispositivo pleitear e decidir a destinação de recursos
que tem como base a participação da po- oriundos de fundos públicos e dar visibi-
pulação no planejamento da cidade e que lidade ao projeto por parte do chefe do
está previsto em diversos Planos Diretores Executivo deve existir um fórum de alto
municipais. No entanto, diferentes instru- nível que congregue funcionários de médio
mentos poderão ser adotados em outros e alto escalão das secretarias envolvidas
contextos, a depender das possibilidades no projeto de urbanismo social. Nessa pro-
e institucionalidades locais. posta denominamos tal instância “Comitê
Intersecretarial de Urbanismo Social”.
A criação do Plano de Bairro ou outro
instrumento integrado de planejamento Uma vez pactuados os objetivos e concluído
territorial deve ser conduzida por uma o processo inicial de planejamento territo-
instância de coordenação e participação rial, entramos na etapa de implementação.
com enfoque territorial. No caso de São Uma implementação coerente e coordenada
Paulo, tal instância foi denominada Con- deve prever espaço para aprendizados e
selho Gestor do Plano de Bairro. É esse o acomodações, que, por sua vez, devem ser
fórum que permitirá centralizar o processo compartilhadas na rede de governança. As-
de participação no território, reunindo a sim sendo, temos como principais objetivos
sociedade civil local, equipes técnicas e os no eixo de implementação coordenada e

92
Capítulo 04 : Dimensão Governança

coerente a execução das políticas previstas fornecendo apoio e aconselhamento técnico


no planejamento de forma integrada e a não no desenho de projetos urbanos e protocolos
descontinuidade em relação ao planejado. de integração de políticas.
Os aprendizados e dificuldades naturais da
etapa de implementação devem ser retroa- A coordenação do processo de implementa-
limentados ao processo de planejamento; ção seria, dessa maneira, compartilhada por
contudo, não devem ser usados como pre- um Núcleo de Desenvolvimento Local, “braço
textos para abandonar o projeto original. local” do poder público no território, e pela
OSC. O Comitê Intersecretarial de Urbanismo
Há duas propostas de instrumentos para Social a que nos referimos no eixo anterior
atingir esses objetivos. Em primeiro lugar, também tem um papel a cumprir, facilitando
é necessário estabelecer protocolos es- as negociações em torno da construção de
pecíficos para a integração de políticas. O protocolos integrados. Por fim, é importante
segundo instrumento representa uma das estabelecer fóruns de integração de políticas
maiores inovações do modelo de gover- locais que reúnam as equipes técnicas do
nança proposto no âmbito do projeto do território em torno de desafios comuns, como
Pacto pelas Cidades Justas com a Prefei- no exemplo da proteção da primeira infância
tura Municipal de São Paulo. Trata-se do mencionado antes.
estabelecimento de um Termo de Parceria,
baseado no Marco Regulatório das Organi- Por fim, no eixo de accountability, temos
zações da Sociedade Civil (MROSC), com como objetivos a viabilização do monito-
organizações sem fins lucrativos (OSC) que ramento participativo da implementação
possam colaborar de diversas maneiras do plano e a garantia da transparência do
com o processo de implementação, moni- processo e responsabilização contínua do
toramento e avaliação do urbanismo social Poder Público pelos objetivos pactuados,
nos territórios. mesmo com mudanças políticas. O Termo
da Parceria com a OSC é instrumento-chave,
A organização ou rede de organizações a sendo a responsabilidade pelo monitora-
serem selecionadas teriam experiência em mento do plano um dos objetivos principais
mobilização social e gestão intersetorial e da construção de tal parceria. Caberá às
capacidade de articulação com os atores do OSCs selecionadas construir estratégias de
território. Essa OSC pode atuar sensibilizan- monitoramento e avaliação na forma de um
do e mobilizando os atores do território em “observatório local”, acompanhando de perto
torno da implementação do plano, incluindo as ações do projeto, reunindo dados e dando
equipes técnicas, associações de bairro e publicidade à atualização dos indicadores
movimentos sociais locais, somando esfor- de impacto. Em parceria com o Núcleo de
ços de coordenação aos do poder público. Desenvolvimento Local, serão elaborados
Outra maneira como a OSC pode contribuir é ainda relatórios periódicos de prestação

93
Guia de Urbanismo Social

de contas, os quais chegarão às instâncias


de coordenação responsáveis pelo controle
do processo no território.

Como foi possível notar, a governança de um


projeto de urbanismo social não diz respeito
apenas às esferas com atuação específica
nos territórios-alvo. Ela envolve também as
estruturas de coordenação central das se-
cretarias e do poder público como um todo.

94
Capítulo 04 : Dimensão Governança

4.7_ MOBILIZAÇÃO E PROTAGONISMO


COMUNITÁRIO

Falar sobre estratégias de participação comunitária é pensar o


território não apenas como espaço urbano: é considerá-lo também
em sua condição de território de direitos, onde espaço, seres e sub-
jetividades compõem uma organização para um bem viver coletivo.

Talvez o motivo determinante para uma comunidade se mobilizar


ou não seja o quanto ela se identifica com o território em questão,
sobretudo em áreas de ocupações, nas quais há muita rotatividade
em função das precárias condições de habitação. Moradores de
territórios periféricos são afetados pela rotina exaustiva de trabalhar
longe de casa, o que gera anseio por mudanças, todavia não possi-
bilita brechas para uma vivência mais intensa das questões locais.
O bairro é muitas vezes apenas o território de moradia, o lugar para
o qual se retorna no fim do dia, não permitindo o estabelecimento
de vínculos sociais mais profundos.

Por isso, ao lidar com mobilização é necessário primeiro aproximar


a população do sentido de território; promover a identificação
local, pois haverá baixo engajamento se o objetivo principal for
apenas individual — ou seja, melhorar a própria vida para sair dali.
O território precisa ser mais do que uma delimitação geográfica
sobre a qual recai uma proposta de transformação: há um sentido a
ser construído. A peça-chave de todo esse processo são os atores
envolvidos e suas expectativas em relação àquele espaço em
que vivem. A relação das pessoas na construção de um território
pressupõe identidade com o lugar e o que viver ali representa
para elas. A participação comunitária, portanto, não pode ser
traduzida em uma receita e sim em estratégias que precisam se
moldar às questões socioespaciais de maneira a fortalecer as
potências locais a fim de que possam contribuir com o processo
de forma autêntica e estimulante. Também é importante perceber
o que freia a participação, como o descrédito no próprio potencial
individual e a falta da vivência de coletividade.

95
Guia de Urbanismo Social

Outro elemento que dificulta a mobilização comunitária em ter-


ritórios periféricos é uma espécie de “cultura da ruptura” que
predomina nesses locais. Como por muito tempo eles não foram
o foco do poder público, passaram-se longos períodos sem que se
conseguisse algo concreto capaz de servir de estímulo à participação
comunitária — ou, como é bastante comum, alcançando coisas pela
metade. Nada se conclui, ou seja, o provisório quase sempre se
torna permanente nesses locais. Isso, sem contar a demora, às
vezes de gerações, para se obter alguma transformação. Sendo
assim, encontra-se nessas áreas uma complexidade de problemas
que só se resolverão a partir de um olhar interdisciplinar e inter-
setorial por parte da gestão pública, aliado com a participação
comunitária, capaz de alcançar camadas que uma ação de melhoria
pensada somente pelo poder público jamais alcançaria, dadas as
especificidades locais.

Apesar dos desafios a serem superados, implementar projetos


baseados no urbanismo social no Brasil é uma abordagem pro-
missora. Medellín constitui uma referência que traz esperança
de que é possível fazer grandes mudanças nos territórios de
favelas e periferias, com base em um trabalho focado na me-
lhora das condições de vida dos moradores desses espaços e no
desenvolvimento local.

96
Capítulo 04 : Dimensão Governança

MOBILIZAÇÃO COMUNITÁRIA E
PLANEJAMENTO TERRITORIAL: REFLEXÕES
A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO
JARDIM LAPENA

O Jardim Lapena, um dos três territórios com atuação do Pacto pelas


Cidades Justas em São Paulo, tem uma longa história de mobilização
social, iniciada por líderes comunitários em 1965.

Na última década, a mobilização popular no local foi responsável por


conquistas importantes, como a construção dois CEIs (Centro de Educação
Infantil), uma UBS (Unidade Básica de Saúde), um acesso ao bairro pela
estação São Miguel da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropoli-
tanos) — que não constava no projeto original da nova estação — além de
melhorias expressivas no saneamento básico e na coleta de resíduos sólidos.

Em 2017, o Jardim Lapena iniciou o processo de construção do seu Plano


de Bairro, cujo objetivo era conectar as ações de participação comunitária
já existentes com um instrumento de planejamento urbano estabelecido
pelo poder público. Sua metodologia de construção foi desenvolvida em
parceria com moradores e organizações locais e contou com a composição
de um grupo fixo de participação, mas com entrada sempre aberta, deno-
minado Colegiado Plano de Bairro Jardim Lapenna, o que gerou sentido
de protagonismo e identidade ao movimento de transformação local.

Não existe, sublinhe-se, uma receita para a participação comunitária,


no entanto é possível afirmar: ninguém melhor do que uma comunidade
ribeirinha, por exemplo, para saber o que de fato faz diferença para quem
vive em beiras de rios; ninguém melhor do que um jovem da periferia de
uma grande cidade para saber qual política pública atende seus anseios
e os de seus pares; ou seja, quem vive as adversidades e dinâmicas locais

! são os melhores consultores para qualquer projeto local. Essa é a riqueza


da participação comunitária: abrir espaços para as diferentes vozes,
PARA SABER MAIS, VER: descentralizar planejamentos e decisões e, sobretudo, estabelecer uma
▸ Fundação Tide governança territorial, na qual cada um tem o seu papel e os cidadãos
Setubal. 2019. podem realmente se reconhecer como sujeitos políticos da sua cidade.

97
Guia de Urbanismo Social

EXEMPLOS DE INICIATIVAS COMUNITÁRIAS:


A MARÉ QUE QUEREMOS, O SONHO QUE
MOVIMENTA A LUTA

A Maré que Queremos é um conjunto de mo- 3_ Regularização das Ruas: Propõe-se a ga-
vimentos que buscam articular ações estrutu- rantir o reconhecimento dentro do processo
rantes a partir da mobilização, do envolvimento de urbanização dos espaços e territórios do
e do fortalecimento de agentes atuantes no conjunto de 16 favelas da Maré e incidir, de
contexto territorial das dezesseis favelas do maneira política, na garantia e na efetivação de
Complexo da Maré e que impactam de modo uma gestão pública que promova a regularização
direto na qualidade de vida dos moradores. Ele das comunidades. Desse modo, é incentivada a
se baseia em três iniciativas estruturantes que inclusão urbana definitiva em equilíbrio com a
caminham juntas: natureza e o meio ambiente, junto com projeto
Maré Verde. Em julho de 2021, o Programa de
1_ Fórum das Associações dos Moradores/ FAM:
Engenharia Ambiental (PEA-UFRJ) convidou a
Reúne-se mensalmente, desde 2010, visando à
comunidade para participar do seminário “Segun-
melhoria da qualidade de vida dos moradores da
das Ambientais”, a partir do trabalho realizado
região nas mais diferentes áreas, especialmente
pelo Maré Verde — Campanha Climão.
no âmbito da política urbana, direito socioam-
biental, educação, saúde e segurança pública. As metodologias das ações do projeto Maré que
Em tais encontros, são identificadas e debatidas Queremos envolvem produções de diagnósticos
diferentes reivindicações da população local, e conhecimento, mobilização e formação de dife-
promovendo o fortalecimento de lideranças rentes grupos, coletivos, iniciativas e atores locais
comunitárias e iniciativas do território, aproxi- estratégicos na articulação de diferentes redes de
mando-as dos representantes do poder público. parcerias, incidência política e práticas.

2_ Missão em Foco: Busca apoiar jovens, suas Abordar as realidades mareenses a partir de uma
iniciativas e fazeres, que pensam no desenvolvi- perspectiva de interseccionalidade implica que
mento territorial da Maré. A partir dessa articu- as políticas públicas considerem os impactos
lação em rede e de processos de formação — o distintos que são gerados em relação ao terri-
que inclui ferramentas para o desenvolvimento tório, classe social, etnia e meio ambiente, entre
de projetos e gestão de equipes —, o propósito é outros. Além disso, que levem ao reconhecimento
contribuir para que tais ações sejam ainda mais territorial e ao direito à cidade, possibilitem e
potentes e próximas do que almejam. A iniciativa condicionem as práticas de desenvolvimento.
é do Itaú Social, Redes da Maré e Projeto Maré Assim, figuram no radar do diálogo: informação,
que Queremos. O último Missão em Foco ocorreu participação e mobilização, urbanismo, susten-
em 2020 e, no momento (outubro de 2022), não tabilidade, regularização urbana, equipamentos
há previsão de abertura de novas inscrições para comunitários, integração ambiental e gestão
o processo de mentoria. comunitária, entre outros temas.
98
Capítulo 04 : Dimensão Governança

AÇÕES COOPERATIVAS ACADEMIA-


COMUNIDADE-ESCOLA PÚBLICA NO JARDIM
ÂNGELA

O conjunto de três intervenções apresentadas a seguir tem como âncora a


Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Chácara Sonho Azul, locali-
zada no Fundão do Jardim Ângela, periferia da zona sul de São Paulo — um
modelo de escola-comunidade, sob direção e coordenação pedagógica de
Antonio Norberto Martins, Shirlei do Carmo e Kelly Batista. Tais iniciativas,
idealizadas e construídas entre os anos 2016 e 2017, se estruturam pela
compreensão do ensino acadêmico associado à pesquisa permanente e
como ponte inexorável de atividades de extensão com ações reais no local.

Por meio de construção de relação e colaboração entre os professores


Vera S. Luz e Antonio Fabiano Jr, alunos e alunas do último ano do curso
de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas e lideranças comunitárias
do Jardim Ângela, o desafio a ser pensado e continuamente reformulado
foi a perspectiva do alargamento democrático, atrelada a processos de
formação do ser político técnico-científico.

Dentro do escopo do Trabalho Final de Graduação (TFG), ao longo de


dois anos alunos e alunas daquela instituição universitária elaboraram
um projeto urbano em escalas sucessivas — metropolitana, regional e
local — e desenvolveram projetos de arquitetura compromissados com o
território escolhido. Esses direcionamentos propositivos geraram também
atuações efetivas junto à comunidade, da pequena escala local à sistêmica,
articulando essas ações concretas como horizonte possível. Vislumbrou-se
também uma reflexão crítica e propositiva e, em certa medida, um apoio aos
modos e formas de articulação da parceria academia-comunidade como
modelo de participação comunitária, para o fortalecimento dos sistemas
de estabelecimento de programa de necessidades, projeto e gestão.

Dentre as atividades propostas realizadas figuraram:

▸ O desenvolvimento de forro térmico no galpão da escola, iniciado e concluído em


2016, estruturado em três etapas: i) campanha de recolhimento de isopor utilizado na

FAU/PUC-Campinas para os trabalhos acadêmicos dos alunos ao longo de um ano;

ii) instalação de duas faixas desse material sobre tecidos de chita atirantados para

proteção térmica da cobertura da área coletiva da escola; iii) instalação completa

do forro da cobertura;
99
Guia de Urbanismo Social

▸ Aperfeiçoamento do ateliê de artes da escola, iniciado e concluído em 2016,


estruturado em duas etapas: i) criação de crowfunding para arrecadação
de valores em dinheiro para a aperfeiçoamento de ateliê de arte para a
comunidade dentro da EMEI Chácara Sonho Azul; ii) acompanhamento
técnico de restauração de sistema de esgotos e instalação de pia de
trabalho no ateliê de arte e educação da EMEI Chácara Sonho Azul;

▸ Plantio de árvores de espécies nativas da Mata Atlântica em área pública


para criar espaço de estudo ambiental, convívio e sombreamento para
atividades comunitárias da escola, em 2017. Essa iniciativa foi realizada
em três etapas e fez parte da programação da 11ª Bienal Internacional de
Arquitetura de São Paulo: i) preparação de terreno em área verde pública
contígua à EMEI Chácara Sonho Azul para cultivo de horta educativa em
extensão à atividade já existente; ii) construção de um muro na área que,
antes, em projeto, estava destinada à praça pública aberta. Construir
um muro na cidade já tão segregada e confinada, onde a disputa pelo
território urbano é fato declarado, constante e intrínseco em sua lógica,
se apresentou necessário como posicionamento coletivo no propósito da
sua preservação; como ato de resistência à grilagem praticada em área
contígua; como resposta necessária para a luta diária; iii) Plantio em
mutirão com a comunidade.

Tais atividades foram premiadas no 23º Prêmio IAB (Instituto de Arquitetos


do Brasil) – 2022, categoria Urbanismo, Planejamento e Cidade. Mais do
que isso, ainda reverberam em ações no território, com a professora Vera
S. Luz integrando a comissão do Fórum Fundão das Águas, em defesa
da represa Guarapiranga, o Fórum de Pesquisadores do M’Boi Mirim e o
Fórum em Defesa da Vida, da Sociedade Santos Mártires.

100
05_
DIMENSÃO TERRITORIAL

5.1_ Diagnósticos técnico-territorial


e social-participativo

5.2_ Dados em territórios informais

5.3_ Mapeamento de territórios


invisibilizados

5.4_ Identificação de
potencialidades

5.5_ Processos de urbanização

5.6_ Desenho urbano e urbanismo


tático

5.7_ Espaços públicos, de


AUTORES
convivência e áreas verdes
5.1_ 5.2_ 5.4_ 5.5_ 5.7_ Diagonal;
5.3_ Adriano B. Costa e Evandro L. Alves 5.8_ Equipamentos públicos e
(Portal de Dados Urbanos Insper); sociais e equipamentos-âncora
5.6_ Diagonal e Núcleo Arquitetura e
Cidade; 5.9_ Tópicos em mobilidade urbana
5.8_ Murilo Cavalcante e Núcleo Urba-
nismo Social;
5.10_ Tópicos em habitação social
5.9_ Núcleo Mobilidade Urbana;
5.10_ Núcleos Habitação & Real State e
de Urbanismo Social; 5.11_ Tópicos em segurança pública
5.11_ Núcleo Mulheres e Territórios
(5.11.1) e Murilo Cavalcante (5.11.2).
BOX Urbanismo social e Arquitetura
Popular: Nadia Somekh (CAU-BR)
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.1_ DIAGNÓSTICOS TÉCNICO-TERRITORIAL


E SOCIAL-PARTICIPATIVO

RECONHECIMENTO E PERTINÊNCIA:
UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR
E PARTICIPATIVA SOBRE O TERRITÓRIO

O urbanismo social tem duas características fundamentais em


seu processo de transformação das favelas e áreas de maior
vulnerabilidade social visando a sua qualificação.

A primeira delas é o reconhecimento, característica que, por meio


de uma jornada exploratória e crítica sobre diferentes aspectos
relacionados à condição local, é responsável pela identificação
e reflexão sobre as principais questões presentes no território.
Orientada por uma abordagem multidisciplinar e territorializada
sobre diferentes temas e políticas setoriais, essa característica
ajuda a revelar as particularidades físicas e sociais do local e
sua situação atual de maneira integrada, constituindo-se numa
fotografia sobre a realidade imediata da comunidade.

A segunda característica é a pertinência, um complemento essencial


à primeira, pois o reconhecimento da realidade local, de acordo
com a abordagem proposta pelo urbanismo social, é inseparável do
olhar de quem vive o cotidiano da área. A pertinência, nesse sentido,
compreende uma abordagem inclusiva que valoriza a perspectiva
da própria comunidade, que, ao explorar as questões presentes em
seu território, identifica as principais demandas e potencialidades
do local, além de conferir ao futuro das intervenções o devido
pertencimento comunitário.

LEITURA TÉCNICA PRELIMINAR

Em geral, o reconhecimento do território tem seu início na leitura


técnica multidisciplinar. Seu olhar exploratório é responsável
pela reunião dos primeiros dados e indicadores sobre os temas e
políticas setoriais de interesse, organizando, em suas respectivas
dimensões, uma leitura preliminar sobre o território que será objeto

103
Guia de Urbanismo Social

Do ponto de vista prático, essas duas características, reconhecimento


e pertinência, estão reunidas na abordagem que orienta o processo de
elaboração do diagnóstico técnico-territorial e sócio-participativo. Base
para o planejamento das intervenções, o diagnóstico deve ser compre-
endido como um exercício de construção coletiva, conciliando análises
técnicas e práticas do cotidiano para identificar os principais problemas
presentes no território. O objetivo principal é que o diagnóstico organize
uma leitura integral dos fatores que interferem na qualidade de vida das
pessoas e sua relação, contribuindo para a fundamentação das propostas
de intervenção e tomada de decisão.

das intervenções. Aqui teremos as primeiras impressões sobre o


local, o que auxiliará na identificação de questões prioritárias para
discussão coletiva e aprofundamentos.

Para a elaboração da leitura técnica, a equipe responsável tem


como fontes principais dados e documentos públicos já consoli-
dados, como o Censo Demográfico1; diagnósticos setoriais (saúde,
educação, assistência social etc.); e planos municipais (Plano
Municipal de Habitação, entre outros). A análise desses dados, de
maneira crítica e integrada, é o que permite localizar o território
em seus diferentes níveis de necessidades, seja pela ausência de
equipamentos públicos e serviços essenciais, ausência ou insufi-
ciência de infraestrutura urbana básica, entre outros aspectos que
compreendem a investigação.

Objetivamente, trata-se de um exercício que situa o território em


relação aos principais temas e políticas setoriais de forma articulada
com a cidade, auxiliando na identificação das condições externas e
internas que configuram a condição de vulnerabilidade local.

As cidades brasileiras, em sua maioria, refletem, no uso do território,


imensas desigualdades quanto ao acesso às diversas oportunidades.
As favelas são os territórios com maiores carências. O acesso às

1 Os dados do Censo Demográfico podem ser acessados em diferentes níveis terri-


toriais (distritos, bairros e setores). Ver: Sidra.

104
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

pesquisas territoriais com dados continuamente atualizados é de


grande relevância para a formulação do diagnóstico técnico, seja
para uso no desenvolvimento de Planos de Ação Local, Planos de
Bairro e exposição no diálogo com a comunidade local, seja na

! formulação de políticas públicas e ações visando à qualificação


dos territórios mais vulneráveis.
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Insper Metricis. A LEITURA COMUNITÁRIA E VIVÊNCIA LOCAL


lupa na cidade: Painel
de indicadores de
desenvolvimento Embora os processos de intervenção urbana tragam, atualmente,
de áreas urbanas componentes participativos em suas discussões, o urbanismo
vulneráveis. 2021;
social apresenta uma ruptura com os modelos de intervenção
▸ Rede Nossa São Paulo.
mais fechados, optando pela valorização da experiência local e
Mapa da desigualdade.
2021; pelo engajamento deliberativo das comunidades na elaboração
▸ PMSP Geosampa. dos projetos de intervenção.
Mapa digital da cidade
de São Paulo;
Esse caráter deliberativo é o ponto disruptivo da abordagem
▸ Pacto pelas Cidades proposta pelo urbanismo social, ao inserir o cidadão no centro
Justas. Diagnóstico
participativo do processo de transformação de sua comunidade e pela sua
para elaboração escala local. Por esse motivo, o engajamento e a participação
de projetos de
da comunidade são fundamentais desde o início. Ao considerar o
integração de políticas
setoriais visando ao território enquanto ator de mudança, o urbanismo social estabelece
desenvolvimento local; uma camada humana no processo de leitura integrada dos aspec-
▸ Fundação Tide tos que organizam a área em questão, refletindo em si a própria
Setubal. Territórios de
organização social da comunidade.
direitos — Um guia para
construir um Plano de
Bairro com base na Utilizando métodos de produção de dados primários sobre a vivência
experiência do Jardim
Lapena. 2019. local, tais como mapeamento de atores, mapas comunitários, rodas
de diálogo e pesquisas qualitativas, o componente participativo
auxilia na construção do olhar em primeira mão sobre as principais
questões que caracterizam o cenário de vulnerabilidade das áreas,
bem como na identificação das demandas da população para o
projeto de intervenção.

105
Guia de Urbanismo Social

5.2_ DADOS EM TERRITÓRIOS INFORMAIS

Um princípio para a implementação de um projeto de intervenção


de qualidade em um território é o seu reconhecimento adequado.
Para isso, é importante recorrer a dados fundamentados e bem
elaborados. Assim será possível o desenvolvimento de um bom
diagnóstico e planejamento da intervenção.

No entanto, um desafio comum na elaboração de um diagnóstico


técnico e participativo é a indisponibilidade de dados e informações
sobre o território das comunidades. Em geral, não há uma variedade
de dados disponíveis sobre os diversos temas de uma investigação
territorial como a proposta pelo urbanismo social. Esses dados,
classificados como secundários, quando disponíveis, ainda correm o
risco de estarem defasados, ou seja, em descompasso com o momento
atual da comunidade. Isso pode comprometer a investigação e o
nível de planejamento das intervenções que buscam a melhoria de
suas condições na localidade. Além disso, há outras questões que
demandam informações mais qualificadas e atuais que esses dados
não conseguem fornecer no nível de leitura que se pretende — como
é o caso das formas de acesso às políticas setoriais de saúde, edu-
cação e assistência social pela perspectiva da própria comunidade.

Diante desse desafio, a própria comunidade surge como um im-


portante recurso para produzir e organizar esses dados sobre
sua realidade. A produção de dados comunitários, nesse sentido,
é uma fonte importante de dados primários atualizados para a
identificação de questões relevantes no território, auxiliando na
leitura e contribuindo para que o diagnóstico forneça os principais
elementos para o planejamento das intervenções futuras. Dessa
maneira, tanto a leitura técnica quanto a comunitária podem se valer
de métodos de coleta de dados primários que utilizem a perspectiva
da própria comunidade na produção de informações atualizadas.

Dentre as principais formas de produção desses dados, a pesquisa


qualitativa auxilia na compreensão de significados e situações

106
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

que dificilmente os dados secundários poderiam fornecer. Essa


abordagem, focada na perspectiva das pessoas que residem
no território, é um olhar contextualizado e autêntico sobre as
principais questões que integram a leitura do diagnóstico. Tal
tipo de pesquisa, que tem a possibilidade de ser estruturada para
abordar questões objetivas do diagnóstico sobre diversos temas,
não descarta a alternativa de ser realizada tanto individualmente
— através de entrevistas com lideranças e pessoas de referência
da comunidade — como de modo coletivo, com grupos focais que
tragam um olhar específico sobre determinadas questões, caso de
mulheres que tenham interesse em discutir questões de gênero,
ou de jovens focados nas perspectivas de mercado de trabalho.

Além da pesquisa qualitativa, outro método de produção de dados


primários em conjunto com a comunidade é o mapeamento comu-
nitário, que consiste na identificação espacializada de questões
relevantes para o diagnóstico. Ele pode ser realizado com mapas
impressos ou digitais e permite aos participantes a elaboração de
um exercício de reconhecimento sobre o território, contribuindo
para o desenvolvimento de uma perspectiva espacial a respeito
das principais demandas e potencialidades do local.

Pode-se, então, trabalhar na produção de dados primários, através do


mapeamento comunitário e da pesquisa qualitativa em complementação
aos dados secundários, quando existentes.

107
Guia de Urbanismo Social

5.3_ MAPEAMENTO DE TERRITÓRIOS


INVISIBILIZADOS

O DESAFIO DA INFORMAÇÃO SOBRE AS FAVELAS E


TERRITÓRIOS DE VULNERABILIDADE SOCIAL

Territórios ocupados pelas parcelas mais pobres da população


nas grandes cidades tendem a concentrar maior vulnerabilidade
socioambiental, a estar localizados perto de lixões, aterros sani-
tários, áreas inundáveis, plantas industriais. Somada à falta de
infraestrutura e serviços adequados, essa situação cria um cenário
complexo, merecendo um olhar aprofundado de tomadores de de-
cisão nas esferas governamentais e da sociedade civil organizada.
Mas, analisando o problema mais de perto, torna-se fundamental
também ressaltar que esses territórios não são negligenciados
apenas pela falta de infraestrutura urbana e de serviços públicos:
eles padecem ainda de uma carência sistemática de dados confiáveis
sobre a realidade local, que informem em maiores detalhes seus
problemas e suas potencialidades.

Para além dos já bastante conhecidos problemas relacionados à


informalidade e à vulnerabilidade social, é importante também
constatar que tais territórios são invisibilizados nos processos
tradicionais de aplicação de metodologias de mapeamento e de
caracterização socioterritorial. Sua complexidade não está bem
representada nos mapas e nos números oficiais e nem se encontram
bem representados os desafios vividos cotidianamente por seus
habitantes. Isso acaba por dificultar muito uma tomada de decisão
baseada em evidências que seja capaz de garantir a implementação
das soluções mais efetivas de transformação social, gerando um
círculo vicioso de sobrevulnerabilização, especialmente para pessoas
que carregam no seu corpo grandes marcadores da diferença social
(pobres, mulheres, pessoas não brancas, pessoas LGBTQIA+ etc.).

Uma das dimensões desse problema de maior destaque em debates


especializados e junto à opinião pública é a baixa representativi-
dade de pesquisas censitárias nas favelas, evidenciada por uma

108
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

recorrente diferença entre as contagens populacionais realizadas


por diferentes fontes para uma mesma comunidade. Um exemplo
ilustrativo é a favela de Heliópolis, em São Paulo, que tem 65 mil
habitantes segundo o Censo de 2010, 180 mil segundo a subprefei-
tura de Ipiranga, 140 mil moradores segundo a Secretaria Municipal
de Saúde e mais de 200 mil moradores segundo a UNAS, União
de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região,
organização da comunidade local. Ao competirem entre si, as
informações, avalizadas pelo poder público e de caráter oficial,
acabam confundindo o tomador de decisão, gerando um cenário
de incerteza que pressiona os agentes a implementar soluções que
podem agravar os problemas, quando não os leva a se omitirem do
dever de implementar soluções.

Há várias causas possíveis para essa dificuldade de obter in-


formações censitárias básicas sobre a população residente em
favelas. Destacamos, primeiramente, um problema relacionado à
metodologia de pesquisa, dado que o Censo Demográfico trabalha
com amostras que nem sempre são representativas em escala
territorial mais local, comunitária — ou seja, informações sobre
bairros, comunidades, aldeias, vilarejos etc. Há também o problema
de, muitas vezes, ocorrerem intensos fluxos migratórios em tais
territórios, o que dificulta uma boa medição e um monitoramento
dessa medição nos espaçados intervalos de tempo entre uma
pesquisa censitária e outra. Contudo, saltam aos olhos também
problemas que não são de natureza estritamente metodológica,
como a dificuldade de estruturar e interpretar de maneira coor-
denada os resíduos informacionais de atendimentos de políticas
públicas presentes no território — isto é, a falta de “diálogo” entre
o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), a UBS (Uni-
dade Básica de Saúde), as escolas etc.—, bem como a dificuldade
de implementar pesquisa de modo mais adequado em função do
controle que grupos civis armados exercem sobre a comunidade.

E cabe destacar também que a incorporação de tecnologias de


fronteira ao processo de coleta, produção e sistematização de
informações em tais territórios é peça essencial na jornada de supe-
ração dessa situação de invisibilização informacional que estamos

109
Guia de Urbanismo Social

diagnosticando aqui, no entanto, não é garantia de sucesso por si


mesma. A figura a seguir é ilustrativa da invisibilização também
existente em soluções high tech, destacando o forte “contraste car-
tográfico” na comparação entre as mesmas comunidades informais
no Google Maps (à direita) e no OpenStreetMap (à esquerda). No
exemplo, podemos observar que o mapeamento do Complexo do
Alemão, na cidade do Rio de Janeiro, produzido pelo Google Maps
apresenta menos detalhes de configuração espacial do que aquele
produzido pela iniciativa Open Street Map. Esse contraste pode ser
atribuído a um maior viés da ferramenta do Google para “colocar
no mapa” apenas lugares onde transitam os carros.

Fonte: Google Maps/Open Street Map.

BOAS PRÁTICAS NA PRODUÇÃO DE


INFORMAÇÃO SOBRE AS FAVELAS E
TERRITÓRIOS DE VULNERABILIDADE SOCIAL

Nas primeiras tentativas de encontrar formas de superar o desafio


da informação em territórios invisibilizados, pode ficar a impressão
de um "beco sem saída". Contudo, um olhar mais atento é capaz de
enxergar uma série de experiências inovadoras de mapeamento que
nos ajudam a vislumbrar soluções sistemáticas para tal problema. São
experiências que chamam a atenção por serem, em geral, muito ricas
em termos de caráter participativo e também porque normalmente se
utilizam de uma relação orgânica com a dinâmica territorial e/ou de
inventivas aplicações de tecnologias de fronteira em geoprocessa-
mento e em ciência de dados — e que podem ser complementares a
processos oficiais de mapeamento, inclusive oferecendo perspectivas
de aperfeiçoamento das teorias e métodos aplicados.

110
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

ALGUNS EXEMPLOS PODEM SER LISTADOS


EM UM ROL NÃO EXTENSIVO DE PRÁTICAS
▸ A destacada experiência do Censo da Maré, que mobilizou o complexo
de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, para a realização de uma pesquisa
censitária no território;

▸ A interessante ferramenta “Mapa de Direitos”, da TETO Brasil, que se


utiliza de BI (Business Intelligence) e de aprendizado de máquina (Machine
Learning) para estruturar informações a partir dos registros de atendimentos
realizados pela instituição;

▸ A inovadora experiência da Fundação Tide Setubal com seu projeto A


Lupa na Cidade, no Jardim Lapena, periferia de São Paulo, que mobiliza
um sofisticado instrumental de métricas relacionadas a uma Teoria da
Mudança e organiza indicadores de diagnóstico socioterritorial aplicados
junto a grupos de tratamento e de controle;

▸ O interessante projeto Observatório de Olho na Quebrada, em Heliópolis,


que tem se colocado como uma referência em produção de informações
sobre a maior favela de São Paulo e que constrói um importante ciclo de
formação de jovens e adultos para o trabalho com pesquisa socioespacial
aplicada à comunidade;

▸ A pioneira aplicação da metodologia LiDAR na maior favela do Brasil, a


Rocinha, no Rio de Janeiro, que foi implementada pela Prefeitura da cidade
em parceria com o MIT (Massachusetts Institute of Technology) no projeto
Favelas 4D e que oferece uma importante alternativa ao uso de drones e
outras técnicas de identificação do ambiente construído por sensoriamento
remoto, que sofrem resistência em razão de reivindicações de privacidade;

▸ O projeto Territórios da Cidadania, organizado pela ONU-Habitat em


Juiz de Fora (MG), que promove parcerias com o poder público local e
incorpora aprendizados da atuação da instituição no Brasil em termos de
diagnósticos participativos e facilitação do uso de tecnologias de fronteira.

111
Guia de Urbanismo Social

Experiências como essas nos remetem a uma série de ações de


diagnóstico, monitoramento e avaliação que devem ser estudadas
de perto e que podem ser tomadas como boas práticas. São ações
que possuem várias camadas de complexidade e que apresentam
resultados que merecem acompanhamento e detalhamento mais
profundo, mas é possível concluir algumas questões a partir de
uma análise geral.

Podemos, em primeiro lugar, destacar algumas diretrizes que são


comumente tidas como boas práticas em qualquer contexto de
aplicação de ciência de dados e que se manifestam nessas prá-
ticas de referência em territórios populares. É possível ver nelas
abordagens muito diretas para questões como reprodutibilidade,
produtização, escalabilidade de soluções e também forte interação
com movimentos/princípios hoje largamente promovidos pelas
comunidades de desenvolvimento como Dados para o Bem (Data
for Good), Software Livre e Dados Abertos.

São diversas as hipóteses de trabalho que podemos inferir de ex-


periências de mapeamento em territórios invisibilizados. Podemos
destacar algumas: primeiramente, a constatação de que há uma
sistemática falta de evidência para essas comunidades que está
prejudicando a tomada de decisão de políticas públicas relacio-
nada a eles; a ideia de que questões de governança são melhores
solucionadas com o fortalecimento da rede de sociedade civil
organizada que já atua nos territórios; a visão de que é prioridade
trabalhar com a integração e a incorporação das coisas que já exis-
tem antes de se lançar a explorar novos caminhos metodológicos;
a perspectiva de que novas tecnologias de fronteira no campo da
computação visual, do geoprocessamento e da ciência de dados
têm muito a contribuir; a aplicação em contextos de projetos pilo-
tos e experimentais antes de aplicar soluções em larga escala; e
também a noção de que existe um enorme ganho para processos
de mapeamento e diagnóstico socioterritorial se forem feitos de
modo integrado em Planos de Ação Local (ver Capítulo 3).

112
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

INFOGRÁFICO 01:
QUAIS DIRETRIZES DE TRABALHO PODEMOS DESTACAR A PARTIR DA ANÁLISE DE
ALGUMAS BOAS PRÁTICAS DE MAPEAMENTO DE TERRITÓRIOS INVISIBILIZADOS?

Boas práticas em análise de dados em territórios populares podem ser

consideradas parte do movimento Data for Good. São resultados de processos de

DADOS PARA O BEM trabalho cada vez mais vinculados à era do Big Data e orientados a dados (data-
(DATA FOR GOOD) driven), porém, mais que isso, são intrinsecamente relacionadas ao propósito de

gerar impacto positivo em termos de desenvolvimento social e sustentabilidade,

sendo esses resultados lucrativos ou não.

retângulo É essencial para coleta, produção e sistematização de informações em territórios

REPRODUTIBILIDADE populares. Os métodos, transparentes, são compartilhados com as partes

interessadas e podem ser reproduzidos por pesquisadores e servidores públicos.

retângulo
Boas práticas de mapeamento e diagnóstico socioespacial em territórios

populares são fortemente ligadas aos princípios do movimento de Dados

retângulo
DADOS ABERTOSAbertos. Há um intenso esforço de compartilhar, além dos métodos e
retângulo procedimentos de tratamento de dados, os dados em si.

retângulo
Soluções em análises de dados em territórios populares são fortemente

orientadas à produtização e ao ganho de escala. Mesmo que circunscritas


PRODUTIZAÇÃO/
retângulo
ESCALABILIDADE
a iniciativas pequenas, geralmente aparecem como projetos pilotos que

pretendem ser aplicados não apenas ao contexto específico de cada projeto

como também a problemas relacionados e a outros territórios similares.

retângulo

retângulo

113
Guia de Urbanismo Social

INFOGRÁFICO 02:
QUAIS HIPÓTESES DE TRABALHO SÃO SUGERIDAS PELA ANÁLISE DE ALGUMAS
BOAS PRÁTICAS DE MAPEAMENTO DE TERRITÓRIOS INVISIBILIZADOS?

Investir tempo e recursos na produção de melhores

H0: Há falta de evidências sobre evidências sobre a realidade socioespacial da cidade

a cidade informal, prejudicando a informal para fins de monitoramento e avaliação

tomada de decisão configura um melhor cenário para a redução da

vulnerabilização social de seus habitantes.

retângulo retângulo
Apostar que instituições atuantes em territórios

H1: Uma rede de sociedade civil vulnerabilizados adaptarão seus processos de

organizada no território produz melhor trabalho para fins de mapeamento é algo preferível

governança a investir em abordagens de especialistas que ainda

não atuam no local.

retângulo retângulo
Processos e atividades de mapeamento que já estão

H2: A prioridade é integrar o em curso têm qualidade técnica razoável e sua

que já existe integração deve ser priorizada em relação a novas

intervenções de mapeamento.

retângulo retângulo
Tecnologias de fronteira — sobretudo no campo da

H3: Novas tecnologias podem computação visual — podem enriquecer os processos

contribuir de forma decisiva de mapeamento que já estão em curso e produzir

novos percursos metodológicos a serem explorados.

retângulo retângulo
Para uma solução de mapeamento que alinhe atores

estratégicos para uma metodologia comum de

H4: É preferível iniciar com um trabalho e que seja, ao mesmo tempo, replicável

projeto piloto a todos os territórios invisibilizados é necessário

começar com um projeto piloto em um território

específico.

retângulo retângulo

114
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

Para tornar os eventos de mapeamento um processo

que também seja orientado para a transformação

H5: O mapeamento deve ser integrado da realidade social desses territórios, é desejável

a um Plano de Ação Local para garantir que, em vez de pensar problemas em separado, o

melhores resultados processo seja vinculado a uma ampla concertação de

interesses e iniciativas de intervenção social na forma

de um Plano de Ação Local.

retângulo retângulo
Por fim, cabe ressaltar a mais crítica e mais simples das hipóteses: a
conscientização acerca do fato de que há uma importante trajetória
de aprendizado sendo construída por essas e outras iniciativas, que
pode (e deve) ser fortalecida e priorizada pelas partes interessadas
no desenvolvimento territorial local. Não há necessidade nem
serventia de pensarmos esse processo como algo que parte de
uma folha em branco, o que nos leva a ter como questão primordial
pensar primeiramente em caminhos que promovam a integração e o
aprimoramento metodológico dos bons processos de mapeamento
que estão em curso.

Podemos pensar nisso como a meta muito direta de um primeiro


passo para contornar os gargalos de informação em territórios
invisibilizados. Nela, o verbo integrar aparece como a palavra-chave.
E integrar as experiências exige não apenas o simples ato de juntar
os produtos resultantes do trabalho desses agentes mapeadores.
Exige também viabilizarmos cenários em que esses diversos levan-
tamentos possam construir momentos de aprendizagem em comum
e se tornem processos comparáveis entre si, promovendo, assim,
um grande apoio à tomada de decisão baseada em evidências para
territórios hoje invisibilizados. Trata-se de uma iniciativa bem-vinda
e urgente promovermos espaços físicos e virtuais para que essa
convivência de experiências aconteça e floresça no país.

115
Guia de Urbanismo Social

5.4_ IDENTIFICAÇÃO DE
POTENCIALIDADES

Etapa fundamental no processo de planejamento das intervenções,


a identificação das potencialidades locais pode ser considerada o
ponto mais importante da síntese do diagnóstico técnico-territorial
e social-participativo. Essa síntese, integrando as leituras da carac-
terização preliminar com a vivência local, auxilia na identificação
dos fatores que podem contribuir para alavancar as intervenções
e maximizar seus resultados no cotidiano da comunidade.

Para colocar tal olhar em prática, o primeiro passo é a definição


das categorias de análise integrada. Essas categorias, além de
orientar o exercício de reflexão conjunta sobre a intervenção local,
vão definir as estratégias de ação, planejando o fio condutor de
todo o processo de transformação da área em questão. Dentre
as categorias de análise integrada sobre as potencialidades da
comunidade, esse exercício pode, por exemplo, direcionar seu olhar
para os potenciais humano, social e urbano — categorias essas
que permitem uma visão abrangente a respeito da diversidade de
temas e questões locais.

Outras categorias podem ser definidas em conjunto com a comu-


nidade por meio de oficinas de integração técnica e comunitária.
O ideal é que essas categorias permitam uma reflexão ampla
sobre todas as questões abordadas no diagnóstico e, sempre que
possível, façam do exercício de integração um espaço de debate
no qual a comunidade enxergue sua própria perspectiva de análise.

116
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

INFOGRÁFICO 03:
CATEGORIAS DE ANÁLISE INTEGRADA SOBRE AS
POTENCIALIDADES DA COMUNIDADE

Envolve o conhecimento, as competências e


capacidades locais (educação e experiência)
POTENCIAL
existentes na comunidade e que facilitam
HUMANO
a criação de bem-estar pessoal, social e
econômico.

retângulo retângulo
Abrange não somente o tamanho de sua
população como também a existência, a
POTENCIAL
quantidade e a distribuição no território das
SOCIAL
instituições públicas e privadas e suas redes
de equipamentos e serviços.

retângulo retângulo
É refletido pela existência de uma
adequada infraestrutura urbana e
ambiental que possibilite um padrão de
vida digno para a população. Nesse quesito
entram os dados sobre infraestrutura de
POTENCIAL mobilidade e acessibilidade, saneamento,
URBANO energia etc., além das condições
habitacionais (dos domicílios, conjuntos,
bairros), da regularização jurídico-
fundiária e da segurança urbana, por meio
dos serviços nessa frente, do controle das
áreas de risco etc.

retângulo retângulo

117
Guia de Urbanismo Social

5.5_ PROCESSOS DE URBANIZAÇÃO

Verificam-se dois distintos processos de ocupação urbana: o de


produção da cidade formal e o da cidade informal. Nas áreas for-
mais sua configuração física se dá por meio da realização de três
operações de estruturação do espaço. Os parâmetros em cada uma
delas são: (i) parcelamento (a divisão de grandes glebas, por meio da
rede viária, em porções menores, as quadras) e microparcelamento
(a divisão das quadras em lotes); (ii) implantação de infraestrutura;
e (iii) construção das edificações.

A cidade formal, portanto, corresponde aos bairros mais centrais,


consolidados e dotados de maior infraestrutura urbana, que podem,
todavia, se mesclarem em situações e práticas de informalidade
(bem como nas áreas informais podem existir traços de formalidade).
As áreas formais costumam apresentar uma estrutura viária legível,
em uma malha mais ou menos regular, mais ou menos densa, sobre
a qual podem ainda ser realizadas intervenções diversas como
redesenho das suas espacialidades, novas articulações viárias,
ampliação e adequação das infraestruturas existentes, qualifi-
cação de espaços públicos, novos equipamentos, adensamento
habitacional etc.

As chamadas áreas informais correspondem às configurações nas


quais predominam precariedades diversas. Uma das operações
citadas anteriormente está ausente ou incompleta. No caso dos
loteamentos irregulares, por exemplo, o parcelamento do solo
foi realizado por meio de um projeto técnico com os lotes comer-
cializados, porém o empreendedor não cumpriu a obrigação de
fornecer toda a infraestrutura básica2. Frequentemente, algumas
ações ainda devem ser endereçadas, envolvendo a implantação
de infraestrutura por meio das redes oficiais, pavimentação das
vias, qualificação dos passeios públicos e, ao mesmo tempo,
regularização fundiária dos lotes, entre outras.

2 Lei Federal No 6.766/79.

118
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

As favelas, por sua vez, não contam com projeto de parcelamento


e ocupação do solo e a maior parte da infraestrutura básica está
ausente. Tomamos as favelas como exemplo para discussão de
infraestrutura por serem assentamentos nos quais estão presentes
elevados graus de vulnerabilidade social. A intervenção nos pro-
cessos de urbanização das favelas requer uma análise cuidadosa
do tecido urbano, ao associarmos as questões de vulnerabilidade
social às de riscos diversos — e incluindo severas situações de
insalubridade e isolamento territorial. Deve-se considerar reverter
tais situações com ações técnicas, contudo sem perder de vista
um cuidadoso acompanhamento e envolvimento dos moradores.

Intervir tanto em áreas formais quanto informais da cidade


pressupõe reconhecer a sua conexão os sistemas que possuem
rebatimentos nas escalas micro e macro. Para isso, pode-se
trabalhar com as camadas territoriais, enquanto leitura cartográ-
fica de cada uma das grandes temáticas, inter-relacionando-as,
conforme o quadro a seguir:

119
Guia de Urbanismo Social

INFOGRÁFICO 04:
CAMADAS TERRITORIAIS INTER-RELACIONADAS

CAMADAS SUBCATEGORIAS ANALÍTICAS

A análise das formas de uso e ocupação do solo deve contemplar, quando possível ou
aplicável, questões como:
▸ Caracterização tipológico-funcional das zonas habitacionais, industriais, de comércio e
serviços da área em estudo e sua articulação com os sistemas de mobilidade e transportes;

▸ Localização e caracterização tipológico-funcional das áreas de centralidade ou


de pontos de referência, ou daquelas que exercem atração ao usufruto coletivo da
USO E
população, ao contribuírem para a legibilidade da área;
OCUPAÇÃO
DO SOLO ▸ Características locacionais dos espaços abertos de uso público, verificando sua
continuidade, articulação e condições de acessibilidade em relação às linhas e
modalidades de circulação e transportes;

▸ Características locacionais da rede de equipamentos públicos destinados à promoção


da educação, da saúde e assistência social;

▸ Uso e ocupação do solo (tendências de expansão, desocupação, deterioração,


substituição, adensamento, mudança de função etc.).

Sistematização e cruzamento das camadas relativas às infraestruturas:

retângulo
▸ Mobilidade e acessibilidade;

▸ Sistema de abastecimento de água;

▸ Sistema de coleta e tratamento de esgoto;

▸ Drenagem de águas pluviais;

retângulo
INFRAES-
TRUTURA ▸ Energia elétrica etc.
Compreende recolher informações necessárias à descrição dos diversos componentes dos
sistemas, caracterizando, segundo as diversas modalidades e níveis hierárquicos implicados,
as deficiências e pendências, limitações e potencialidades de desempenho técnico e funcio-
nal das redes e serviços existentes. Implica ainda analisar as demandas atuais e futuras.

Camadas físico-ecológicas e de uso dos sistemas naturais (serviços ambientais):

retânguloretângulo ▸ Relevo-geomorfologia;

▸ Geologia;

FÍSICO- ▸ Hidrografia e hidrologia;


AMBIENTAL
▸ Aspectos climáticos;

▸ Cobertura vegetal;

▸ Sistemas de regulação e proteção ambiental.


A síntese dessas leituras leva ao reconhecimento dos compartimentos ambientais
da paisagem, propiciando a elaboração de diretrizes de ordenamento, respeitando o
equilíbrio entre os processos naturais e a urbanização e os usos do território.

120

retângulo retângulo
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

As informações cartográficas e quantitativas necessárias à tarefa


de construção do mapeamento têm obtido importante ajuda dos
programas de georreferenciamento dos dados coletados em campo
e das informações públicas advindas de diversas fontes de pesquisa.
O trabalho de transformação das áreas informais tende a gradativa-
mente promover o fortalecimento dos valores de dignidade humana
e do tecido social, minimizando as desigualdades. A implantação
das infraestruturas corresponde a elevados investimentos públicos
e faz enorme diferença no processo de urbanização de favelas.

Nas duas ou três últimas décadas, diversas intervenções foram rea-


lizadas em favelas nas cidades brasileiras na tentativa de incorporar
áreas informais às áreas formais da cidade. As características mais
comuns desses planos referem-se à redução das situações de risco,
com remoções de habitações em tais condições e reassentamento
na própria comunidade ou nas suas proximidades, implantação de
infraestrutura de saneamento, instalação de equipamentos públicos
! e melhorias nos espaços públicos de uso coletivo.
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Capítulo 15
(Casos Referenciais).

121
Guia de Urbanismo Social

5.6_ DESENHO URBANO E


URBANISMO TÁTICO

O direito à cidade deve assegurar uma vida digna a todos, garantindo


os fundamentais espaços de sociabilidade. O cuidado em valorizar
as narrativas da vida comunitária, por vezes esquecidas pelo olhar
tecnicista, torna-se um procedimento central na promoção do urba-
nismo social e, nesse sentido, deve-se promover o desenho urbano
adequado, tecnicamente desenvolvido em processos produtivos
de interação junto à comunidade local.

Algumas alternativas ao planejamento urbano tradicional vêm


surgindo na última década, como as ações do urbanismo tático. Ele
pode apontar para uma saída diante de uma crise de governança
nas cidades e da corriqueira morosidade da gestão pública em
implantar as melhorias dos espaços públicos nas favelas. Trata-se
de intervenções urbanas de ação rápida, baixo custo e, por vezes,
em uma escala pontual (microescala), chamada de acupuntura
urbana. O urbanismo tático propõe alternativas ao processo tra-
dicional de projeto urbano e propõe a mobilização da base para
o topo, no que se refere aos agentes de transformação, além de,
por sua escala mais pontual, não demandar muitos investimentos
concentrados. Dessa maneira, ele mantém pontos de contato com
o urbanismo social desde o seu aspecto estratégico, com desdo-
bramentos locais e participativos, até, eventualmente, intervenções
mais sistêmicas. O urbanismo social e o urbanismo tático mobilizam
um conjunto de agentes com capacidades produtivas e criativas na
transformação socioespacial e que têm uma boa dose de viabilidade
em suas proposições. Nesse caso, ele pode ser um importante
desencadeador, em etapas iniciais, de ações mais duradouras e
estruturantes, aumentando o engajamento em políticas vinculadas
coletivamente, com maior empoderamento social.

As intervenções urbanas devem, assim, ser pensadas não apenas


em termos das configurações espaciais das porções mais visíveis
dos assentamentos e sim considerando também a articulação das
proposições, de modo a prever as transformações, incorporando

122
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

suas bordas ao contexto circundante e estabelecendo formas de


penetração de urbanidade nas porções interiores dos recortes
territoriais em questão. Ressalte-se a importância do efetivo diálogo
entre o novo e os elementos preexistentes da paisagem com seu
valor simbólico e identitário.

Por fim, sugere-se, durante a criação de projetos que envolvam


o redesenho urbano, a elaboração de propostas que combinem
atividades, ampliando o repertório de programas conhecidos, via
de regra, excessivamente utilitaristas e monofuncionais. Esse
olhar crítico ajuda a reposicionar a atuação não apenas nas áreas
formais e legíveis, como também nas situações mais difíceis,
eventualmente desprezadas, ou residuais, geralmente resultan-
tes da interferência entre as grandes linhas de infraestrutura
(viadutos, linhas de energia etc.) e o tecido urbano do bairro. O
desenho, nesse sentido, pode ser um parceiro para ressignificar
áreas consideradas, por vezes, como degradadas.

O urbanismo social deve procurar estender a atuação para escalas


mais amplas, por meio de um plano de ação global, associando
um conjunto de ações locais a um olhar sistêmico. No entanto, as
ações locais e rápidas como as do urbanismo tático, quando mul-
tiplicadas, possuem um potencial de impacto no todo. Trata-se de
compor soluções multifuncionais e em diversas esferas, resultando
em uma transformação de visão, enquanto aproximação com as
questões territoriais.

O urbanismo tático, sublinhe-se, é um método de transformação


urbana estratégico para criar mudanças rápidas e maior aderência
social. Como um processo de engajamento e de governança comu-
nitária, baseia-se na construção de ambientes criativos: campos de
ação, inovação e imaginação, transformando espaços concretos em
laboratório de experiências voltadas para a melhoria do hábitat. O
urbanismo tático fomenta o ambiente coletivo: processos engajando a
comunidade que se apoia na infraestrutura social local e que buscam
refletir a identidade dos espaços com a participação ativa dos cidadãos.
O processo é iterativo. O método “Planejamento baseado em ações"
surge como alternativa para prever os impactos das transformações

123
Guia de Urbanismo Social

futuras, a partir de dinâmicas de cocriação3. Os processos de desenho


e planejamento urbano tradicional são baseados numa sequência
linear com pouca margem de mudança. Já no planejamento baseado
em ações, as soluções de desenho sustentam-se em uma lógica mais
ágil de testar e corrigir — vale dizer, medição, testagem e redefinição
—, existindo abertura para mudanças e adaptações que se revelarem
necessárias ao longo do processo.

!
Por fim, ações de urbanismo tático têm ajudado na implementação
de áreas de trânsito calmo, definidas com o objetivo de melhorar
a segurança de usuários vulneráveis por meio de medidas como PARA SABER MAIS, VER:

exigência de baixa velocidade no entorno de uma escola, com ▸ WRI. Guia para áreas
de trânsito calmo. 2022.
priorização dos pedestres nas vias em detrimento dos veículos.

O Mutirão da Praça dos Sonhos no Jardim Lapena, favela na Zona Leste


em São Paulo, foi desenvolvido em um fim de semana de 2022 na forma
de mutirão junto à comunidade local. Dentre várias atividades, contou com
ações de urbanismo tático e teve a participação de dezenas de crianças do
CEI (Centro de Educação Infantil) que desenvolveram desenhos e maquetes.

Fotografias: Carlos Leite.

3 Gehl. Action Oriented Planning Methodology. 2016.

124
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

CARACTERÍSTICAS DO
URBANISMO TÁTICO
▸ Inspiração para projetos estruturantes: as ▸ Convocatória: nesse modelo, é mais fácil
mudanças concretas, e especialmente físicas, despertar a percepção sobre necessidades
embora temporárias, servem de modelo de ou possibilidades de mudança que estavam
transformação a longo prazo. São projetos pilotos passando em branco. Para os moradores da
que permitem trazer para o presente propostas região pode ser uma oportunidade para que
para o futuro e, com isso, avaliar os impactos e grupos alheios ao projeto experimentem
planejar melhor o que será feito e até mesmo fisicamente um espaço de maneira distinta. O
visibilizar outras mudanças. engajamento comunitário com resultados físicos
concretos no entorno é um bom caminho para
▸ Equipamentos seguros: os equipamentos,
trazer setores do poder público para a conversa.
especialmente aqueles considerados “âncora”, e
o seu entorno são importantes porque geram vida ▸ Processo Bottom-up: o urbanismo tático é uma
pública e comunitária, sendo também chamarizes ferramenta valiosa para incorporar práticas de
para frequentadores. baixo para cima, em oposição ao planejamento
tradicional de cima para baixo (Top-Down).
▸ Coleta de dados: o urbanismo tático apresenta
um momento inovador no processo tradicional ▸ Processo pedagógico: uma cidade
de planejamento: o de acertar os indicadores educadora é um lugar que potencializa todos
baseados numa ação real. Ao mesmo tempo, os espaços físicos e aspectos subjetivos, como
é uma oportunidade para conhecer melhor a oportunidades de aprendizagem. O urbanismo
localidade, a partir de dados quantitativos ou tático permite passar da teoria à prática e da
qualitativos, como o nível de participação e a prática ao desenho, ao mesmo tempo que traduz
aceitação do projeto. estratégias complexas em transformações
concretas e visíveis.
▸ Ampliação da participação social: o
engajamento comunitário é complexo e ▸ Capital social: o desenvolvimento do capital
precisa se apoiar não apenas em dinâmicas social entre os cidadãos e a construção da
de planejamento. As ações concretas criam capacidade organizacional entre instituições
ânimo de mudança, assim como estabelecem públicas/privadas, organizações do terceiro setor
novos pontos de partida ao longo dos e a população local são indissociáveis do modelo
processos participativos. Como o urbanismo de urbanismo tático.
tático trata de transformações físicas nos
espaços, principalmente, comunitários, é uma
oportunidade para atrair diferentes atores.

125
Guia de Urbanismo Social

5.7_ ESPAÇOS PÚBLICOS, DE


CONVIVÊNCIA E ÁREAS VERDES

A matriz pública dos espaços urbanos é composta pelos espaços


de domínio público e acessíveis a toda a população. São os lugares
de passagem, de encontro, de integração e de trocas — como ruas,
calçadas, largos, praças, parques e jardins, entre outros — a partir
dos quais se desdobram os demais usos e atividades de convivência.
Essa vivência nos espaços livres públicos ocorre no cotidiano das
cidades através dos seus mais diversos percursos. Mas não são
raras as vezes em que nos deparamos com a falta de conexão,
pertencimento e articulação entre as áreas urbanas. Essas bar-
reiras, presentes em inúmeras situações de segregação, geram
inacessibilidade e percepção de insegurança à população.

Pensar e promover a diversidade nos espaços urbanos é essencial


para a construção de lugares mais saudáveis, inclusivos e seguros.
O debate atual por cidades mais justas e inclusivas se depara com
o enorme desafio de propiciar espaços mais humanos, adequados
e receptivos, que integrem e acolham as diferentes características
de seus usuários, como gênero, raça, etnia, orientação sexual,
renda, idade e condições físicas diversas.

Deve-se ter um olhar atento para o protagonismo comunitário,


desde as escolhas iniciais dos projetos até a gestão desses espa-
ços. É fundamental dialogar e integrar quem vivencia o território;
valorizar e incentivar a participação da população nas decisões e
processos, em todas as etapas. Além disso, é preciso pensar polí-
ticas públicas que permitam outras formas de habitar e interagir
com o território, incentivem outras relações com o tempo, com a
memória, com o trabalho, com o alimento, com o brincar, com os
resíduos e com o diferente — e, sobretudo, possibilitem que surjam
potências locais, estimulem e exercitem uma visão sistêmica que
integre o corpo, a ecologia, a cultura e o território.

126
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

O caso das hortas urbanas e outras ações comunitárias em di-


ferentes áreas, como a Praça Sete Jovens, na Brasilândia, ou a
Comunidade Cultural Quilombaque, em Perus, ambas em São Paulo,
constituem exemplos de iniciativas nas quais a própria população,
através de editais públicos e privados de apoio a projetos de base
e periféricos, como a Lei de Fomento à Periferia, atua em seu
território. Isso se dá em diferentes escalas, desde a individual até
a urbana, com atendimentos psicológicos, incremento de projetos
de educação formal e ambiental, recuperação de nascentes, rodas
de jogo e de samba etc. que valorizam o indivíduo, a sua cultura e
o seu território, promovendo ações sociais e ambientais.

Novamente, deve-se lembrar da carência desses espaços abertos


de convivência, praças e áreas verdes nas favelas brasileiras, onde
comumente a única área de tal natureza é o campo de futebol, que,
a despeito de cumprir uma função esportiva, é um espaço de uso
predominantemente masculino e não arborizado. Os indicadores
de distribuição territorial de praças e parques nas cidades do
país mostram a urgência na implantação desse tipo de área nas
periferias de nossas cidades.

127
Guia de Urbanismo Social

5.8_ EQUIPAMENTOS PÚBLICOS E


SOCIAIS E EQUIPAMENTOS-ÂNCORA

Toda cidade deve ter uma rede de equipamen- de "entregas rápidas", ou seja, das primeiras
tos públicos equitativamente distribuída pelas de porte nos processos de urbanismo social.
suas diversas regiões e bairros, de modo que Isso porque, além de cumprirem suas fun-
a população possa acessar, de modo equâni- ções essenciais, fizeram também o papel de
me, as oportunidades de saúde, transporte, acelerar as transformações nos territórios,
esportes e lazer, cultura etc. Infelizmente, essa gerando importantes locais de encontro
não é uma realidade no Brasil, onde as favelas da comunidade e propiciando o desejável
e territórios periféricos são os que menos processo de credibilidade da comunidade
possuem equipamentos públicos. em relação ao programa.

Assim, é parte fundamental dos processos e Em Medellín, os equipamentos-âncora são


programas de urbanismo social o adequado as grandes escolas públicas, bibliotecas e
mapeamento desses equipamentos, que bibliotecas-parque, Unidade de Vida Articu-
naturalmente possuem, cada qual com suas lada (UVA) e Casa da Justiça, dentre outros.
especificidades e demandas, as áreas de Em duas de suas célebres afirmações como
influência e abrangência nas cidades e a o gestor público que pioneiramente criou tais
respectiva promoção de oferta. programas, o então prefeito Sergio Fajardo
(2004-2008) apontava "o melhor para os
Novamente aqui trazemos a referência de mais pobres" e "o bom design educa". Assim,
Medellín, com um de seus elementos-chave os melhores projetos, obras, equipamentos
do urbanismo social: os grandes equipamen- públicos, escolas da metrópole colombiana
tos públicos implantados nas diversas "comu- estão nas áreas de menor IDH e extrema
nas" (favelas) situadas nos morros da cidade, pobreza da cidade e se transformaram ra-
em geral com programas multifuncionais, alta pidamente em referências nos territórios. A
qualidade de projeto e execução, conectados ideia foi alinhar ética e estética para acabar
com os sistemas de mobilidade — as estações com o ciclo da pobreza e exclusão social: em
do famoso teleférico (Metrocable) e escadas Medellín, toda arquitetura deve ser peda-
rolantes —e os espaços públicos. gógica e toda engenharia deve ser social.
Lá, os equipamentos-âncora configuram
Sendo projetados sempre nos Projetos Ur- centralidades no território e simbolizam as
banos Integrais (PUIs) e alinhados com as transformações sociais e culturais.
demais ações setoriais, a implantação de
tais equipamentos consistiu ações públicas

128
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

Com as lições aprendidas em Medellín, pela Prefeitura do Recife, com 850 m2 e um


nasce a Rede Compaz em Recife 4
acervo de cerca de quinze mil livros.

O Centro Comunitário da Paz – Compaz Já o Dojô chegou à marca de mais de oi-


foi concebido com foco na prevenção à tocentos praticantes. O número qualifica
violência, na inclusão social e no fortaleci- o espaço como o maior centro público de
mento comunitário. Baseado em experiên- treinamento de artes marciais de Pernam-
cias colombianas de urbanismo social e de buco e o coloca como o principal projeto
outras fontes de espaços de cidadania, o social ligado à prática de artes marciais no
Compaz possui quatro unidades no Recife. Brasil. Vários alunos já se tornaram atletas
Conhecidos como “Fábricas de Cidadania”. profissionais, vencendo competições nacio-
Os equipamentos se destacam tanto pela nais e internacionais. Os bairros diretamente
estrutura quanto pelos serviços e atendi- beneficiados, além do Alto Santa Terezinha,
mentos oferecidos, a exemplo de cursos e que estão no raio de 1 km de lá, são: Bebe-
de capacitação profissional. ribe, Água Fria, Dois Unidos, Linha do Tiro
e Bomba do Hemetério.
Os Compaz fazem parte da Secretaria de
Segurança Cidadã da Prefeitura do Recife, e, Em março de 2017, a segunda unidade foi
em 2019, o projeto foi escolhido como o me- entregue à população no bairro do Cordei-
lhor para a redução da desigualdade social ro: o Compaz Escritor Ariano Suassuna. O
no país pelo Programa Cidades Sustentáveis equipamento oferece espaços para resolver
e Oxfam Brasil. O prêmio objetiva reconhe- pendências de documentação, orientações
cer projetos nacionais de larga escala social judiciárias, mediar conflitos e informações
que tenham impacto em vários setores. sobre assistência social. Entre os destaques
da unidade da zona oeste recifense está o
A primeira unidade do projeto foi inaugurada Ateliê Compaz, cujo foco é capacitar os par-
em 2016, no bairro do Alto Santa Terezi- ticipantes para a geração de renda. As duas
nha, zona norte da capital pernambucana. quadras de tênis e a quadra poliesportiva
O Compaz Governador Eduardo Campos também são diferenciais. O equipamento
oferece diversos atendimentos e ativida- abriga com exclusividade uma Junta Militar
des esportivas, com destaque para o Dojô, e tem mais de 22 mil pessoas cadastradas.
espaço de artes marciais, e a biblioteca A segunda “Fábrica de Cidadania” da cidade
Afrânio Godoy. Mais de quinze mil pessoas atende, além de Cordeiro, os moradores dos
estão cadastradas no equipamento público. bairros San Martin, Torrões, Prado, Bongi,
Em média, 250 pessoas frequentam diaria- Mustardinha e Afogados e as comunidades
mente sua biblioteca, a maior construída da Roda de Fogo e Vietnã.

4 CAVALCANTI, Murilo. Conexão Recife, Medellin,


Compaz. Recife: Cepe, 2022.

129
Guia de Urbanismo Social

Já o Compaz Governador Miguel Arraes,


terceira unidade da rede, foi inaugurado em
2019, na comunidade do Sítio do Berardo, na
Praça da Caxangá. Entre seus diferenciais,
está a atenção especial à cultura maker,
com uma Unidade de Tecnologia (UTEC),
da Secretaria de Educação, oferecendo
cursos básicos de computação, de robótica,
animação digital e a oficina de Arduino. Essa
unidade atende os moradores dos bairros
da Iputinga, Torre, Zumbi, Madalena, Ilha
do Retiro, Derby, Graças, Santana e Várzea.

A quarta “Fábrica de Cidadania”, o Compaz


Dom Hélder Câmara, foi inaugurada em
2020, na comunidade do Coque. Possui
piscina, quadra poliesportiva, Dojô, Centro
de Referência em Assistência Social — CRAS
e o auditório Geneton Moraes Neto. Entre os
serviços que só essa unidade oferece estão:
Sala Mãe Coruja, espaço do empreendedo-
rismo, estúdios de rádio, TV e fotografia e
Casa da Justiça e Cidadania.

130
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.9_ TÓPICOS EM MOBILIDADE URBANA

FATORES QUE DIFICULTAM A Entre os fatores comuns que tornam a


MOBILIDADE E O ACESSO mobilidade urbana precária nas favelas,
NAS FAVELAS destacam-se a ausência, a inadequação ou
a precariedade dos seguintes elementos:
As comunidades urbanas desprovidas de in-
fraestrutura são as que mais sofrem também ▸ Viário: uma das características mais
com a exclusão do acesso às oportunidades visíveis das favelas é a ocupação desor-
de trabalho, serviços públicos, lazer e outros denada, que leva à ausência de sistema
equipamentos das cidades. Quando não são viário articulado, tal como nas áreas urbanas
distantes dos centros comerciais, de serviços consolidadas em geral;
e de empregos, tais comunidades sofrem com
▸ Calçadas: quando presentes, caminhos
a falta de integração com infraestruturas e
segregados para deslocamentos a pé
serviços de transporte existentes. Linhas de
são irregulares, estreitos e muitas vezes
ônibus não penetram em seus territórios, as
ocupados por automóveis estacionados
ruas não se conectam de forma a otimizar
e comércio. Comumente, pedestres e
a circulação e a conexão com estações de
veículos são obrigados a compartilhar o
metrô ou corredores de média capacidade,
mesmo espaço, expondo os caminhantes
por exemplo. A insegurança viária e a pre-
a riscos de atropelamento, especialmente
cariedade das infraestruturas para desloca-
idosos e crianças. Apesar disso, os des-
mentos ativos predominam.
locamentos a pé são meio fundamental
para moradores circularem no território e
A dificuldade de se mover dentro das favelas,
acessarem serviços de transporte público
bem como para fora delas, é mais uma cama-
para locomoção diária com destino ao
da de vulnerabilidade que se soma a tantas
trabalho ou a serviços públicos;
outras e que afeta de modo marcante o dia
a dia de seus moradores. Uma mobilidade ▸ Rotas de bicicletas: em territórios com
precária afeta o acesso a serviços públicos topografia não acentuada, em que o uso da
e torna ainda mais penosos deslocamentos bicicleta é frequente, ciclistas conflitam
fundamentais para a vida urbana, como em no precário e limitado espaço viário com
direção ao trabalho, à escola e a comércios. carros, motos, pedestres e comércios, o
Assim, a mobilidade urbana digna e eficiente, que torna o uso de tal meio deslocamento
além de ser um direito, é um meio para a ineficiente e inseguro;
efetivação de outros — e fundamental para
uma vida digna e saudável.
131
Guia de Urbanismo Social

▸ Serviços de transporte público capilariza- fortemente a capacidade de seus moradores


dos: as rotas coletoras ou de bairro operadas de ter uma vida produtiva, digna e saudável.
por ônibus não possuem penetração nessas
áreas. Os veículos, mesmo de menor porte PROMOVENDO MOBILIDADE E
(micro-ônibus), não conseguem transitar ACESSIBILIDADE NAS FAVELAS
pelas vielas, ruas irregulares e pequenos
espaços entre as construções que caracteri- Melhorar a mobilidade em favelas e promo-
zam as favelas e outros territórios informais; ver acesso a oportunidades urbanas a seus
moradores passa não só por intervenções
▸ Conectividade com sistemas por trilho: o
urbanísticas que remodelem as condições do
sistema viário não articulado e as condições
viário como também pela adequação dos sis-
precárias para deslocamentos ativos (a pé e
temas de transporte às condições existentes
de bicicleta) dificultam a conectividade com
nessas comunidades. Experiências no Brasil
estações de metrô e trem urbano, quando
e em países cidades latino-americanos com
elas estão presentes no entorno das favelas.
sistemas de gôndolas conectando ocupações
Condições mais adequadas para ciclistas e
em regiões de morro a bairros consolidados
pedestres poderiam tornar o deslocamento
e infraestruturas de transporte ganharam
até tais infraestruturas de transporte de
grande visibilidade nas duas últimas décadas.
massa menos penoso, mais rápido e seguro.
Especial destaque foi dado ao Metrocable de
Esses fatores reduzem enormemente o Medelín (ver Capítulo 15) e ainda às expe-
acesso dos moradores aos benefícios de riências de Caracas, La Paz (Mi Teleférico),
viver em cidades. Além de comprometer o Manizales, Cali (MÍO Cable), Bogotá (Trans-
acesso a serviços públicos e empregos, bair- MiCable) e Greater Mexico City (Mexicable).
ros precarizados também veem seriamente O Rio de Janeiro também implementou essa
dificultada a entrega de produtos e serviços solução com o Teleférico do Alemão, que
nessas regiões, elevando custos logísticos e foi inaugurado em 2011; mas o serviço foi
excluindo a população da possibilidade de suspenso em 2016, quando o governo do
aquisição de bens e serviços. Mal existindo estado deixou de pagar os subsídios que
espaço para automóveis, motos e pedestres, mantinham o sistema em operação.
também não há condições para a implanta-
ção de infraestrutura ciclística, que poderia No entanto, muitas favelas não estão lo-
viabilizar deslocamentos em um veículo sus- calizadas em regiões de morros e, mesmo
tentável, barato, acessível e, também, seguro. assim, encontram barreiras não naturais
A presença de ruas de terra em algumas que dificultam seu acesso às oportunidades
dessas comunidades torna-as intransitáveis que as cidades oferecem. Algumas ações
e ainda mais inseguras em dias de chuva. São e medidas podem ser desenvolvidas com
camadas de vulnerabilidade que se somam o objetivo de enfrentar tal situação. Entre
em um mesmo território e que comprometem elas destacamos:

132
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

PROMOVENDO MOBILIDADE E
ACESSIBILIDADE NAS FAVELAS

É um serviço de transporte de passageiros por teleférico com o objetivo


de conectar assentamentos informais localizados nos morros que mar-
cam a topografia da cidade ao Metrô. É considerado o primeiro sistema
de transporte urbano movido a cabo na América do Sul e o primeiro no
mundo promovendo acesso para um bairro pobre, violento e precário. Em
funcionamento desde 2004, atualmente o sistema é composto por seis
linhas. Um estudo acadêmico encontrou evidências de que a implantação
do Metrocable levou à redução da criminalidade nos bairros que passaram
a ser conectados à cidade consolidada1.

▸ Manuais de desenho urbano para territórios informais: cidades


podem elaborar manuais de sistemas viários que contemplem
regras, padrões e diretrizes para todos os tipos de vias, inclusi-
ve aquelas localizadas em favelas. Entender as necessidades
específicas dessas áreas e oferecer padrões de soluções pode
facilitar imensamente o trabalho de implantação de soluções que

!
melhorem a caminhabilidade e a convivência entre diferentes
modos de transporte. A capital paulista já conta com um manual
PARA SABER MAIS, VER: que especifica soluções para vielas e becos.
▸ PMSP, Secretaria
Municipal de Mobilidade ▸ Plano diretor de mobilidade para favelas: para além da gestão
e Transportes. Manual do sistema viário, seria interessante ter um verdadeiro plano de
de Desenho Urbano e
mobilidade urbana para favelas, contendo diretrizes para o viário,
Obras Viárias de São
Paulo, que contempla mas também para implantação de soluções ciclísticas. Além
diretrizes para vielas e disso, a gestação desse plano, desde que ele seja construído
becos em contextos de
favelas. com a participação da comunidade, pode identificar com muito
mais eficiência as rotas prioritárias que conectam as residências
às escolas, creches, unidades de saúde e pontos de ônibus mais
próximos. Identificadas as rotas prioritárias, devem elas receber a
atenção primeira do poder público com intervenções que melhorem

1 CERDÁ, M. et al. Reducing violence by transforming neighborhoods: a natural expe-


riment in Medellín, Colombia. Am. J. Epidemiol. 175 (10): 1045–53, 2022.

133
Guia de Urbanismo Social

sua caminhabilidade, a segurança, a superação de obstáculos e o


aumento da sua atratividade. A chave para o sucesso de um plano
dessa natureza é assegurar o engajamento social das comunida-
des, envolvendo a população local na formulação e execução das
intervenções e melhorias.

▸ Planejar o transporte público com flexibilidade e prioridade


de atendimento: o desenho das rotas de transporte público deve
priorizar atender os pontos de conexão mais fáceis para as comu-
nidades onde os veículos não podem entrar. Entretanto, ao mesmo
tempo, a autoridade gerenciadora do sistema de transporte coletivo
deve buscar flexibilizar o tamanho dos veículos para lograr acessar
o maior número possível de pontos dentro das favelas. A lógica da
rentabilidade deve dar lugar ao compromisso de garantir acesso a
todas e todos que moram nessas localidades. Além disso, o desenho
das rotas deve assegurar o atendimento não apenas radial, partindo
das comunidades em direção às centralidades econômicas, como
também contemplar a demanda de viagens para equipamentos
de saúde, escolas e creches, onde mãe e pais possam deixar seus
filhos antes de irem para o trabalho.

▸ Financiamento do transporte público: a lógica do financiamento


do transporte público considera o rateio dos custos entre os seus
usuários. Apesar de o transporte ser tão essencial quanto a saúde
e a educação, que têm os custos suportados por toda a sociedade,
são os usuários que financiam tal serviço, salvo poucas cidades
brasileiras onde existe subsídio público. É preciso reduzir o valor
das tarifas, oferecendo integração e descontos, além de políticas
de gratuidade aos que mais precisam, a fim de assegurar o direito
ao transporte e o acesso a todas as pessoas, independentemente
de renda ou posição social.

▸ Políticas para aumentar a oferta de transporte por aplicativo:


através da regulação do transporte por aplicativos a cidade pode
incentivar a oferta do serviço de maneira mais igualitária, bene-
ficiando os moradores das favelas e comunidades mais carentes.
Em São Paulo, por exemplo, a regulação do serviço oferece um
desconto às empresas de aplicativo sobre o valor que elas devem à
cidade como contrapartida do uso quando a viagem é iniciada fora

134
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

do centro expandido. Essa medida cria uma racionalidade econô-


mica em favor do atendimento das regiões mais pobres da cidade.

▸ Políticas para oferta de bicicletas compartilhadas nas regiões


mais carentes: as cidades devem buscar oferecer sistemas de
compartilhamento de bicicletas, que democratizam o acesso e
viabilizam o uso desses veículos por uma gama muito maior de
pessoas do que apenas os seus proprietários. Contudo, nas poucas
cidades brasileiras que contam com esse serviço, não há registro
de oferta nas regiões mais carentes. Cabe ao poder público exigir
das empresas operadoras um balanço equânime na oferta de
bicicletas, indo além dos bairros mais ricos ou das centralidades
econômicas. Ajuda muito se o mesmo meio de pagamento do
transporte público puder ser aceito para liberação das bicicletas
e, inclusive, se existirem tarifas integradas com descontos para
conjugação das viagens.

▸ Foco na logística sustentável: assegurar que as comunidades


tenham acesso a serviços de entregas e que os comércios locais
sejam regularmente abastecidos é outra tarefa fundamental para
melhorar a inclusão social. Uma possibilidade é o incentivo público à
construção de centros logísticos destinados a concentrar a entrega
de produtos comprados e que precisam ser entregues em domicílio,
nas franjas das comunidades, consolidando em um único local a
entrega desses produtos. Incentivar a adoção de veículos leves,
preferencialmente não motorizados, ou elétricos, a fim de permitir a
entrega eficiente de produtos e o abastecimento do comércio local.

Para a maior parte dos moradores de favelas, deslocar-se para o


trabalho, para a escola, frequentar serviços de saúde ou se envol-
ver em atividades sociais requer caminhadas longas e inseguras,
demoradas esperas entre serviços mal conectados, em locais
inconvenientes ou viagens caras em veículos desconfortáveis e
inseguros. Promover a capacidade dos moradores de circularem
dentro e para fora de seus bairros, especialmente utilizando
modos ativos, promove a garantia de direitos básicos e o acesso
aos benefícios urbanos para uma vida produtiva, digna e saudável.

135
Guia de Urbanismo Social

5.10_ TÓPICOS EM HABITAÇÃO SOCIAL

Segundo estudo da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacio-


nal no Brasil em 2019 era de 5.876.699 unidades habitacionais.
Esse total está distribuído em diferentes componentes: habitação
precária, coabitação, ônus excessivo com aluguel e adensamento
desmedido de domicílios. O componente de habitação precária
demanda 1.482.585 unidades (25,2%) e é subdividido em domi-
cílios rústicos (696.849 unidades 11,9%), domicílios improvisados
(785.736 unidades 13,4%); coabitação demanda 1.358.374 unidades
(23,1%), subdividida em unidades domésticas conviventes (1.261.407
unidades, 21,5%) e domicílios cômodos (96.968 unidades, 1,7%);
ônus excessivo com aluguel: 3.035.739 unidades (51,7%).

Destaca-se ainda o déficit qualitativo de moradias, em que a pro-


visão de nova unidade não precisa ser a solução, que pode partir
das melhorias das habitações existentes. A distribuição territorial
entre as regiões e diferentes tamanhos de cidades, seu perfil
socioeconômico, bem como a dinâmica dos diversos componentes
do déficit, indicam a necessidade de políticas diversas que possam
afetar intencionalmente cada um dos problemas.

O principal referencial legal na política de moradia no país é a Lei


11.124/2005, que estabelece as diretrizes gerais para uma política de
habitação de interesse social, além de criar um fundo específico para
financiamento da política e mecanismos de governança. Também
são relevantes as leis que criaram os programas de aquisições, o
Casa Verde Amarela e o Minha Casa Minha Vida, responsáveis pela
contratação de mais de cinco milhões de unidades de habitação
social e mercado popular. Outro marco legal que vale destaque é
a nova Lei de Regularização Fundiária — Reurb (ver Capítulo 9),
ainda que alguns de seus instrumentos dependam de regulamen-
tação municipal.

Há ainda que se mencionar as políticas setoriais que dialogam dire-


tamente com a questão da moradia por tratarem da infraestrutura
136
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

do entorno. É o caso do Marco Regulatório do Saneamento Básico5,


da Política de Mobilidade6 e da Política Nacional de Resíduos Sóli-
dos7 . Todavia, é necessário lembrar que os elementos essenciais
de regulação da política urbana estão contidos nas legislações
municipais em função das atribuições constitucionais distribuídas
a cada ente federativo.

Aqui são apresentadas algumas das principais reavaliações suge-


ridas, a serem consideradas no conjunto de propostas oferecidas
em habitação, direito à moradia e à cidade.

O primeiro passo é a concepção moderna de Direito à Moradia


e Direito à Cidade que vá além da infraestrutura primária e da
unidade habitacional. Locais infraestruturados contribuem para
a redução da necessidade de investimentos futuros, em especial
de mobilidade e equipamentos públicos, assim como têm o papel
de reduzir a ociosidade na própria infraestrutura.

Apesar da existência de várias políticas setoriais, inclusive com


bons resultados, não há mecanismos eficientes de articulação entre
elas, sobretudo entre as de infraestrutura primária e as políticas
urbanas. Essa condição se reflete nas três esferas de governo e
nas relações interfederativas, gerando superposição ou mesmo
conflito de diretrizes que poderiam ser compartilhadas, mas que,
na prática, competem entre si.

A concepção do grande conjunto habitacional, distante das


centralidades e com limitações para a criação de sua própria
centralidade, está definitivamente ultrapassada. É necessário
que os programas de regularização e urbanização levem em conta
os espaços para usos comerciais e que possam ter condições de
indução de negócios capazes de gerar emprego e renda endógenos,
preservando os antigos e ampliando as novas oportunidades.

5 Marco Regulatório do Saneamento Básico (2007 e 2020).

6 Política de Mobilidade (2012).

7 Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010).

137
Guia de Urbanismo Social

É necessário acompanhar e exigir a plena utilização dos recursos


disponíveis aos municípios através dos instrumentos urbanísticos
da política fundiária (ver Capítulo 10).

Além disso, implementar ferramentas de avaliação de custos,


resultados e impactos das políticas em suas diversas fases per-
mite encaminhar decisões com base em evidências empíricas.
Essa produção de dados também deve servir para estabelecer
uma métrica capaz de equilibrar o atendimento ao déficit nas
áreas metropolitanas, onde os custos de produção, bem como as
externalidades negativas resultantes do adensamento periférico,
são muito diversos.

Há ainda alguns instrumentos e ferramentas possíveis para qualifi-


car a política habitacional. Primeiramente, trata-se de estabelecer
estímulos e induções à adoção pelos municípios de instrumentos
de controle da função social da propriedade e a transferência do
direito de construir para fins de moradia. A medida tem importân-
cia fundamental, uma vez que coloca pressão negativa sobre o
valor da terra infraestruturada, estimulando sua comercialização
e a produção de novas unidades habitacionais e empreendimen-
tos comerciais em áreas melhor localizadas. O instrumento está
previsto no Estatuto da Cidade (ver Capítulo 9), que estabelece
a possibilidade de utilização da Transferência do Direito de Cons-
truir (TDC) para áreas associadas a programas habitacionais. A
concessão de coeficientes adicionais a empreendimentos que
contemplem a demanda por habitação social, a possibilidade de
pagamento de outorga pela produção de unidades de Habitação
de Interesse Social (HIS) no mesmo território, o estímulo ao uso
misto e a mescla de classes sociais em um mesmo empreendimento,
entre outras medidas, podem assegurar a viabilidade econômica
de empreendimentos.

Porém, apesar das contribuições apresentadas, em muitos casos


o atendimento ao direito à moradia em áreas infraestruturadas e
com oferta de empregos só é possível por meio de um arranjo de
programa de locação e não de transferência de propriedade. Essa
também é uma solução viável de atendimento para a crescente

138
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

população com idade superior a 60 anos, uma vez que os cálculos


atuariais inviabilizariam os financiamentos habitacionais.

! A locação social é um instrumento relevante no sentido de poder


PARA SABER MAIS, VER: atender cada família nas suas necessidades específicas, que variam
▸ CHIESA, Mariana. A ao longo da vida. Adicionalmente, a adoção em escala permitiria
locação social como
maior accountability da relação entre a demanda atendida e a ocu-
opção para reduzir o
déficit habitacional. pação efetiva dos imóveis subsidiados. Esse controle atualmente
Nexo Jornal, 2021. é difícil, gerando desgaste burocrático e alto custo, sem que seja
de fato eficiente.

Ademais, considerando diferentes realidades encontradas a partir


do déficit, entende-se como adequada a adoção de soluções
diversificadas, que demonstraram resultados positivos quando
aplicados de forma piloto. Alguns bons exemplos são programas
de geração de emprego, renda e fomento ao empreendedorismo, a
preservação de atividades econômicas em áreas reurbanizadas e a
criação de incentivos ao teletrabalho. Por fim, as soluções também
devem contemplar programas de autogestão, que empoderem as
comunidades e entidades de maneira mais significativa, como foi
o Programa Minha Casa Minha Vida — Entidades e outros arranjos
de governança compartilhada.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Entrevista com José Police Neto: O desafio do déficit habitacional (Insper


Notícias/Laboratório Arq.Futuro de Cidades, 2022).

URBANISMO SOCIAL E ARQUITETURA POPULAR: QUAL


PARTICIPAÇÃO?

A existência de mais de vinte milhões de moradias precárias no


Brasil confirma que a regulação urbanística exclui a população
mais pobre, reproduzindo as desigualdades presentes no espaço
urbano. Entendemos que é possível contrapor um urbanismo
social ao histórico urbanismo corporativo, usual na regulação das
cidades brasileiras.

139
Guia de Urbanismo Social

Segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro, o número acima


é de domicílios no país que apresentaram ao menos um tipo de
inadequação (de infraestrutura, edilícia, fundiária). Quando se
trata de déficit habitacional (domicílios que não oferecem as
condições mínimas de segurança), a maioria desses lares são de
responsabilidade das mulheres.

Nesse sentido, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil


(CAU Brasil) e as unidades federativas vêm apoiando cada vez mais
a implementação de serviços gratuitos de Assistência Técnica em
Habitação de Interesse Social (ATHIS) para construção e reformas
de moradias, a serem prestados por profissionais de arquitetura
e urbanismo a famílias de baixa renda. Desde 2008, o país tem
uma Lei de Assistência Técnica (Lei nº 11.888), que garante esse
direito a famílias com renda de até três salários mínimos. Contudo,
a legislação ainda é pouco aplicada no território nacional.

O CAU Brasil entende a ATHIS como um direito fundamental do


cidadão, assim como saúde e educação. Trata-se da qualidade
de vida da população, não apenas em sua residência, mas na
cidade como um todo.

No entanto, a construção de uma política pública específica — e


complementar à já anunciada retomada do Programa Minha Casa
Minha Vida — é imperiosa. Além disso, a inclusão dos municípios
numa perspectiva de desenvolvimento local e a conscientização
da população de seu direito a uma moradia adequada em um
espaço urbano digno demandam ainda a existência de recursos
para se atingir uma escala própria às necessidades sociais, sempre
excluídas das pautas do urbanismo corporativo.

O CAU Brasil deu o primeiro passo para promover a ATHIS em 2015,


com um edital que oferecia R$ 150.000,00 para financiar ações de
desenvolvimento e socialização da arquitetura e do urbanismo. O
primeiro projeto financiado foi a concepção e execução de 98 uni-
dades habitacionais do Loteamento Canhema II, em Diadema (SP).
Com o sucesso da experiência, o plenário do CAU Brasil aprovou uma
resolução destinando 2% do total das receitas de arrecadação dos

140
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

27 Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Distrito


Federal (CAU/UF) para o desenvolvimento de projetos de ATHIS.

Em 2018, o CAU Brasil e a revista Projeto lançaram uma edição


especial dedicada ao tema da habitação social. Ela vinha encartada
com a Cartilha ATHIS, produzida em coedição pelo CAU Brasil com
o CAU/SC. O documentário Habitação social: Uma questão de saúde
pública (2020), com 52 minutos de duração, mostrou como a pandemia
da covid-19 agravou a situação de vulnerabilidade das famílias que
vivem em assentamentos precários.

Na gestão 2021-2023 do CAU Brasil, em meio ao surto do novo


coronavírus, foi lançado o Programa Mais Arquitetos, evidenciando
também que habitação social é uma questão de saúde pública.
Campanhas nas redes sociais buscaram a conscientização da popu-
lação de baixa renda sobre seu direito a uma moradia digna através
da Lei de ATHIS. Vídeos e podcasts com influenciadores digitais
impactaram uma audiência de mais de sessenta milhões de pessoas.
No Congresso Nacional, o CAU Brasil conseguiu que senadores e
deputados destinassem emendas parlamentares para projetos de
ATHIS nos municípios.

O entidade lançou ainda no mesmo período dois editais de ATHIS,


oferecendo financiamento de até R$ 2 milhões para ações de constru-
ção e reformas em habitações de interesse social. O objetivo desses
editais de Assistência Técnica é mostrar a importância fundamental
desse tipo de intervenção nas cidades brasileiras, convencendo os
gestores públicos a promover tais ações em escala necessária para
atingir as 25 milhões de famílias que vivem em moradias precárias.
Na perspectiva de promover o urbanismo social e a arquitetura po-
pular, essenciais ao Programa Mais Arquitetos, o Edital Nº 05/2022
do CAU Brasil está investindo mais R$ 1,5 milhão em projetos de
ATHIS com foco na prevenção e mitigação de riscos e em ações que
visem a recuperação de áreas degradadas por desastres ambientais
recentes (últimos cinco anos).

Os exemplos a seguir apontam o direcionamento desse instrumento —


que, para atingir a escala necessária, requer o apoio do governo federal,

141
Guia de Urbanismo Social

estados e municípios, além da conscientização da população sobre


os seus direitos e os recursos específicos. O projeto Reabilitação
urbana e ambiental do bairro Gogó da Ema (Itabuna-BA) apontou
que há mais de cinquenta anos aquela localidade sofre com as
enchentes. O propósito da iniciativa é enfrentar esse problema
histórica a partir de uma proposta de ATHISt estruturada em seis
fases, que envolvem desde cursos de extensão universitária — em
parceria com o programa de residência da Universidade Federal da
Bahia — até a implementação de relatórios e publicações a serem
entregues às prefeituras da região.

Em São Paulo, o Mutirão para mitigação de risco em Franco


da Rocha mostrou que os deslizamentos de terra já destruíram
muitas moradias no bairro de São Carlos. Lá, o terreno íngreme, o
saneamento precário e o descarte indevido de resíduos de cons-
trução potencializam os estragos em períodos de chuva intensa.
O projeto prevê, então, a construção de um muro de contenção e
um dissipador pluvial na área mais afetada.

Na área coberta pelo projeto Casa Eco-Pantaneira (Ladário-MS),


localizada no Pantanal Mato-Grossense do Sul, as queimadas cons-
tantes afetam a vida da população. A ATHIS realizada justamente
na Área de Proteção Ambiental Bahia Negra vai construir habita-
ções adequadas para a população ribeirinha, dentro das regras do
Plano de Manejo da Unidade de Conservação de Uso Sustentável.
Será também promovido um programa de capacitação conjunta,
pilotado pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS),
Secretaria de Patrimônio da União e a ONG Ecoa.

A iniciativa Projeto Morar Bem, em Rio Branco do Sul (PR), visa


capacitar mulheres para realização de melhorias habitacionais,
promovendo a autonomia da população no processo de readequação
do espaço de moradia. A ideia é fornecer conhecimento e material
para que a população, principalmente donas de casa, possam
identificar e reparar problemas em sua habitação e no interior da
comunidade. De modo indireto, toda a comunidade será impactada
pela proposta, tendo em vista a multiplicação do conhecimento por
meio de tecnologias sociais.

142
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

Em São Carlos (SP), os projetos Reurb-S nas Ocupações “Em


busca de um sonho” e “Em busca por moradia”, se veem às voltas
com moradores que enfrentam diversas dificuldades de acesso à
cidadania: risco de vulnerabilidade socioambiental, condições habi-
tacionais precárias e insegurança jurídica sobre a posse das casas.
Os pilares da ação de reurbanização consistem na recuperação
de áreas degradadas, aplicação de políticas públicas ambientais,
capacitação da população e divulgação e conscientização sobre
ATHIS, entre outros.

Exemplo de urbanismo social pode ser encontrado no projeto


Entre o parque e a favela, no bairro da Coréia de Mesquita (Rio de
Janeiro). A comunidade foi muito afetada pelas fortes chuvas de
abril de 2022, que causaram enchentes e deslizamentos na região.
O objetivo do projeto financiado pelo CAU Brasil é conscientizar e
envolver a população por meio de dinâmicas baseadas na prática
de jogos, exercícios e técnicas teatrais baseadas no Teatro do
Oprimido, de Augusto Boal.

Um caso particularmente dramático é o abarcado pelo Plano


comunitário de gestão de riscos na comunidade caiçara de Ponta
Negra (Paraty-RJ): Também em abril de 2022, um deslizamento
atingiu várias residências na localidade e vitimou sete pessoas.
Desenvolvido pelo Pólis -Instituto de Estudos, Formação e Assessoria
em Políticas Sociais, o projeto consiste na criação de um Plano de
gestão de riscos. A ideia é estudar e mapear a região, identificando,
assim, possíveis riscos de deslizamento de terra, como já ocorreram
anteriormente, e realocar as famílias moradoras do território.

Já o principal objetivo do projeto Autourb-Reurb Anchieta (São


Paulo) é retirar famílias da comunidade Anchieta Grajaú de regiões
de risco de deslizamentos e alagamentos e assentá-las em lotes
marcados. A proposta é desenvolvida pela Peabiru Trabalhos Co-
munitários e Ambientais, que atua desde 2019 na ocupação, visando
não só as melhorias habitacionais na comunidade como também o
processo de regularização fundiária e urbanística, inserindo mais
arquitetos, urbanistas e estudantes nesse campo de atuação.
Exemplos similares aos aqui mencionados estão sendo desenvolvidos

143
Guia de Urbanismo Social

pelos Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Dis-


trito Federal, onde de 2% a 10% de cada orçamento estão sendo
investidos. Todavia, reiteramos que, para atingir a escala necessária,
é fundamental formular uma política pública que envolva a União,
estados e municípios e tenha a participação da população, além
da destinação de recursos para um fundo por meio do qual o CAU
Brasil possa sustentar ações capazes de atingir o país inteiro.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ CAU-BR.

▸ Levantamento revela que mais de (ou apenas...) 20 cidades brasileiras têm leis
ATHIS;

▸ Plataforma colaborativa que visa fomentar o debate sobre a Assistência Técnica


de Habitação de Interesse Social (ATHIS).

144
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.11_ TÓPICOS EM SEGURANÇA PÚBLICA

5.11.1_ SEGURANÇA PÚBLICA E TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS

A discussão sobre o direito à segurança pública, no contexto da


elaboração de projetos que trabalham com o conceito de urbanismo
social, é primordial. Isso porque na construção de novos paradigmas
no campo das políticas públicas, da mobilização social e da efetiva-
ção de direitos devemos levar em consideração a necessidade de
uma compreensão mais elaborada das representações, vivências
e violações que existem nos espaços nos quais as desigualdades
sociais se fazem mais presentes.

Nessa perspectiva, é preciso reconhecer que a ação do aparato


do Estado, no que tange às políticas de segurança pública nos
territórios populares, é marcada, historicamente, pela diferença
de tratamento e de investimento em relação aos espaços ditos
formais. Materializar o direito à segurança pública como um
elemento integrado a outras políticas públicas e dentro de um
escopo de direito humano para o conjunto dos cidadãos e cidadãs
numa cidade está longe de ser efetivado na maioria dos estados
brasileiros. Ao contrário disso, o que prevalece é uma lógica nor-
teada pela conservação da ordem social vigente, na qual práticas
diferenciadas afirmam um modo de funcionamento do Estado que
tem pressupostos sustentados em hierarquias sociais distintas
e pela reprodução de um processo de privatização da soberania
nas favelas e periferias conduzido por grupos que se organizam
em variadas frentes de atividades ilícitas e criminosas, em geral.

Nesse quadro, o Estado, que deveria garantir a segurança pública


de toda cidade, age nos territórios considerados periféricos sem
considerar condicionantes e necessidades dos cidadãos. Essa
postura naturaliza o uso da violência como eixo axial da estratégia
policial para conter os grupos criminosos vinculados ao comércio de
drogas no varejo, modalidade de crime transformada em prioridade
absoluta de combate pelo Estado no espaço urbano brasileiro. Dessa

145
Guia de Urbanismo Social

maneira, a superação das formas de soberania diferenciadas na


cidade e, em função disso, dos modos distintos de ação das forças
de segurança é o caminho necessário para a construção de uma
cidade democrática, onde exista apenas um tipo de cidadão.

Nessa lógica, constata-se — no que se refere à percepção global


dos moradores de favelas e periferias e também de profissionais
que nelas atuam — uma visão de que é necessário mudar radical-
mente a forma de atuação das forças policiais nessas regiões, já
que é consenso o fracasso das atuais políticas/programas para
lidar com a questão da segurança pública, na maioria dos estados
do país. É evidente, também, um sentimento de impotência que
domina os olhares e práticas daqueles agentes sociais, o que
contribui, sobremaneira, em alguns contextos, para uma inércia
e passividade diante da grave negligência que vem ocorrendo
em relação à priorização de políticas públicas por parte dos
governos voltadas para as populações que mais são atingidas
pela desigualdade social no Brasil.

Nesse entendimento, é importante olhar para algumas experiências


da sociedade civil, que colocam foco no fundamental papel que
as populações diretamente atingidas devem ter na necessária e
urgente mudança no campo da segurança pública.

O trabalho desenvolvido nessa área a partir de uma organização


da sociedade civil, a Redes da Maré, no Rio de Janeiro, é um
exemplo, dentre alguns que existem no país, que colocam como
foco da sua atuação o fortalecimento das populações — no caso,
das dezesseis favelas do Complexo da Maré, onde residem 140 mil
pessoas —como prerrogativa para que se modifique o contexto
de violações de direitos cometidos por profissionais da segurança
pública e também por integrantes de grupos civis envolvidos em
atividades ilícitas e criminosas na região.

146
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

O EXEMPLO DA MARÉ
O bairro Maré, no Rio de Janeiro, é uma expressão concreta não só dos
limites das representações tradicionais sobre as favelas como também
da necessidade de se construírem novas interpretações sobre complexos
territórios, que levem em conta a pluralidade, a riqueza da vida cotidiana e
de sua estrutura material. Ao longo da consolidação das dezesseis favelas
na região da Maré, foram se formando diferentes movimentos sociais em
torno de lutas para a efetivação dos direitos mais básicos da população
que ali chegava. As associações de moradores tiveram, e, ainda têm, papel
determinante na organização e conquista do conjunto de equipamentos e
serviços públicos existentes até o momento. Foi nesse contexto que a Redes
da Maré surgiu, sendo alguns de seus fundadores parte do processo histórico
de lutas empreendidas nas favelas daquela localidade.

REDES DA MARÉ

Com uma longa tradição de atuação nas dezesseis favelas do complexo, a


Redes da Maré tem como missão maior fomentar a criação de processos que
contribuam de forma estruturante e concreta, em curto, médio e longo prazo,
para a efetivação dos direitos de sua população. Sempre numa perspectiva
de reconhecimento e investimento no potencial local, produz conhecimento
sobre os modos de vida dos moradores e elabora projetos e ações que con-
tribuam para ampliação e consolidação das políticas públicas que devem ser
implementadas numa escala que é responsabilidade dos governos.

Do ponto de vista da sua organização, a Redes da Maré atua a partir de quatro


eixos programáticos, quais sejam: (i) Arte, Cultura, Memórias e Identidades;
(ii) Direitos Urbanos Socioambientais e Saúde; (iii) Educação; e (iv) Direito à
Segurança Pública e Acesso à Justiça. De modo articulado, essas áreas de
trabalho formulam iniciativas, a partir das quais respondem a demandas
específicas trazidas pelos moradores da comunidade. A ideia básica é que
seja possível construir, de maneira coerente, processos político-pedagógicos
que mobilizem os moradores e os envolvam de forma orgânica nas invenções
que precisam acontecer para que, de fato, disso resulte mais igualdade no
acesso e qualidade das políticas públicas. Tal engajamento também deve
alcançar o enfrentamento das violências que estruturam o processo desigual
que se configura no racismo, bem como da criminalização em relação aos
habitantes da região.

147
Guia de Urbanismo Social

SEGURANÇA E JUSTIÇA
O Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré
busca fortalecer a concepção justamente sobre segurança pública e justiça a
partir de uma lógica de direitos humanos. Para tanto, as ações desenvolvidas
se organizam em três grandes áreas:

▸ Produção de conhecimento sobre o contexto de violência armada na Maré:


Atua a partir da seguinte metodologia: a) coleta de dados sobre violência e
violações de direitos in loco, durante os confrontos armados e até 48 horas
depois de seu início; b) articulação de rede de colaboradores locais que
reportam e validam evidências sobre as violências ocorridas; c) coleta de
dados oficiais; d) levantamento em meios de comunicação de massa e redes
sociais; e) produção e manutenção de banco de dados; e f) publicação anual
do Boletim Direito à Segurança Pública da Maré.

▸ Atendimento às vítimas de violações de direitos: Prestação de serviço de


atendimento sociojurídico gratuito aos moradores, no contexto da violência
armada. Acolhimento realizado por assistentes sociais, psicólogas e advogadas,
buscando viabilizar e fortalecer o acesso a direitos, sobretudo à justiça.

▸ Mobilização de moradores: Atividades de sensibilização e disseminação


de conteúdo acerca de direitos fundamentais. A partir do diálogo cotidiano
nas ruas, pretende-se fortalecer estratégias de reivindicação de direitos,
especialmente nas áreas onde são perpetradas recorrentes violações.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Redes da Maré. Boletim Direito à Segurança Pública na Maré.

148
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.11.2_ MEDELLÍN: O URBANISMO SOCIAL AJUDA A


REDUZIR A DESIGUALDADE SOCIAL E A COMBATER O
NARCOTRÁFICO

Medellín já foi a cidade mais violenta do planeta — na década de


1990, dominada pelo narcotráfico de Pablo Escobar, apresentava
o índice de 380 assassinatos por 100 mil habitantes, situação de
guerra. Atualmente, esse indicador caiu para vinte. O que garan-
tiu, a longo prazo, a queda dos índices de violência de Medellín
foi um conjunto de políticas públicas pensadas para reduzir as
desigualdades sociais e garantir que os moradores dos bairros
pobres tivessem acesso aos serviços públicos oferecidos nos
bairros de classe média.

Por meio dos Projetos Urbanos Integrados (PUIs), Medellín pacificou


territórios violentos e reduziu as distâncias físicas, éticas e morais
entre a cidade formal (a cidade de todos os direitos) e a cidade
informal (a cidade dos esquecidos, a cidade dos invisíveis, a cidade
dos direitos negados). O caso mais emblemático de Medellín se deu
através do PUI da Comuna 13. Uma grande oferta de equipamentos
públicos de altíssima qualidade — escolas públicas, bibliotecas,
Casa da Justiça, Unidade de Vida Articulada (UVA), iluminação
pública, saneamento, mobilidade, dentre outras intervenções —
transformou o território no maior destino de turismo internacional
da metrópole colombiana. Algo impensável há vinte anos, quando
a própria polícia tinha dificuldade de entrar naquela área.

Medellín mostrou para o mundo que o contrário de insegurança


não é polícia, é convivência. Quanto mais gente nos espaços públi-
cos, mais seguros esses espaços serão. A metrópole colombiana,
literalmente, deu dignidade para a população que mora nas áreas
mais vulneráveis da cidade.

Para as autoridades públicas de Medellín, “a vida é o valor máximo e


não há uma só ideia ou propósito que justifique o uso da violência”.
Se em Medellín todos não são iguais perante a lei, são, de fato,
iguais perante os recursos públicos investidos na cidade. Eis o
verdadeiro princípio da equidade.

149
Guia de Urbanismo Social

Em Medellín, a segurança não é tratada como um problema de


esquerda, centro ou direita. É um direito do cidadão à vida, porque
a vida é sagrada.

Duas palavras são chave na gestão pública: confiança e esperança.

Ao estabelecer tais políticas públicas, Medellín abandonou um


passado que definitivamente deve ser esquecido. Ela é hoje reco-
nhecida internacionalmente por ser a cidade mais inovadora do
globo — título obtido em um concurso promovido pelo Wall Street
Journal, em parceria com o Citigroup — e a que, também em todo
o planeta, mais reduziu a taxa de homicídios.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Urbanismo e segurança pública. Org: Arq.Futuro e Escola da Cidade, Bei, 2019.

150
06_
DIMENSÃO SUSTENTABILIDADE
URBANA
6.1_ Introdução

6.2_ Diagnóstico Ambiental

6.3_ Processos de Qualificação


Ambiental: ações estratégicas,
sistêmicas e locais

6.4_ Resiliência urbana e justiça


ambiental em territórios periférico

6.5_ Projeto Campo-Favela: um


caso escalar

AUTORES

6.1_ 6.2_ 6.3_ Diagonal;


6.4_ Angélica B. Alvim; Renato Anelli e
Andresa L. Marques (FAU-Mackenzie);
6.5_ André L. C. M. Duarte (Insper).
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

6.1_ INTRODUÇÃO

A dimensão da sustentabilidade urbana e ambiental traz um olhar


para a melhoria da qualidade de vida em todos os espaços da
cidade por meio de uma melhor relação entre a ocupação urbana
e a natureza, garantindo condições socioambientais satisfatórias
à vida nos bairros e comunidades.

Toda ocupação e uso do solo gera alterações nas dinâmicas naturais,


modificando a intensidade dos processos que compõem a ambi-
ência do território. O crescimento das aglomerações urbanas e os
elevados padrões de consumo geram graves impactos ambientais,
especialmente nas grandes cidades. A implantação de infraestru-
tura urbana básica e social frequentemente não acompanha esse
processo, excluindo de parcelas da população o direito à cidade e a
condições ambientais adequadas à saúde e à sua reprodução social.
Esses déficits, resultado de assimetrias de poder no planejamento
e na distribuição dos recursos da cidade, historicamente vêm sendo
confrontados pelas reivindicações por melhores condições de habi-
tabilidade (habitação, saneamento, mobilidade, segurança urbana),
de saúde, educação, cultura e espaços de lazer.

Nas áreas em que a situação de vulnerabilidade social é elevada,


as questões ambientais são percebidas no bojo das reivindicações
pelos direitos à moradia e infraestrutura urbana e social básica.
Assim, diferentemente das demandas daqueles que moram
nos bairros bem servidos de infraestrutura, o "ambientalismo
dos pobres" emerge geralmente dentro desse quadro de luta
contra conflitos distributivos1 de maneira pragmática, e menos
por uma compreensão de sustentabilidade ambiental conforme
impulsionada pelos organismos globais.

Nessa perspectiva é que cabe salientar a grande variedade de


acepções que o termo sustentabilidade alcança na atualidade,

1 Ver ALIER, Joan Martinez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e lingua-
gens de valoração. São Paulo: Contexto, 2009

153
Guia de Urbanismo Social

caminhando em meio às contradições entre os padrões de consumo


e capacidade de suporte do planeta e de seus territórios, da distri-
buição desigual da poluição e das amenidades verdes nas cidades,
da desigual oferta de infraestrutura urbana e social, dentre outras,
denotando que o conceito ainda está fortemente dominado por
uma racionalidade mais econômica do que ambiental2.

A desigual adequação da infraestrutura e condições de habita-


bilidade nos amplos espaços periféricos e/ou degradados das
grandes cidades do Sul Global faz com que a questão ambiental
seja, muitas vezes, confusamente percebida nas comunidades com
elevado grau de vulnerabilidade. É nesse ponto que se destaca a
importância da execução de um trabalho de educação ambiental
durante todo o processo de urbanismo social, desde o planejamento
até as intervenções por melhorias nas áreas vulneráveis.

Assim, a dimensão sustentabilidade urbana aqui trabalhada para


fins de um Urbanismo Social agrega os elementos que compõem
a infraestrutura ambiental de um território urbanizado3 , incluindo
o olhar para os aspectos apresentados no Infográfico 01.

Dessa forma, este capítulo apresenta as duas principais etapas da


abordagem da dimensão sustentabilidade urbana e ambiental no
planejamento de intervenções de Urbanismo Social: o diagnóstico
ambiental e os processos de qualificação ambiental.

2 LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura: a territorialização da racionalidade am-


biental. Petrópolis: Vozes, 2009.

3 SCHUTZER, J. G. Infraestrutura verde no contexto da infraestrutura ambiental ur-


bana e da gestão do meio ambiente. Revista Labverde n. 8, jun. 2014.

154
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

INFOGRÁFICO 01:
DIMENSÃO SUSTENTABILIDADE URBANA: ELEMENTOS E ASPECTOS QUE
COMPÕEM A INFRAESTRUTURA AMBIENTAL DE UM TERRITÓRIO URBANIZADO

ELEMENTOS ASPECTOS

retângulo retângulo

Sistema de espaços livres e áreas verdes, en-


SISTEMA DE ESPAÇOS LIVRES —
INFRAESTRUTURA VERDE tendidos como uma rede de espaços abertos

multifuncionais — ambiental e social — conectados;

Vinculados ao uso e consumo do bem natural


SISTEMA DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA água, requerendo um olhar para a qualidade, dis-

ponibilidade e desperdício (consumo consciente);

Utiliza a água como suporte à diluição e transporte


SISTEMA DE ESGOTAMENTO SANITÁRIO
dos efluentes;

Inclui a drenagem natural (espaços permeáveis,

retângulo DRENAGEM DA SUPERFÍCIE


retângulo
bairros ecológicos, bairros verdes) e a construída

(sistema de drenagem convencional e soluções

de drenagem sustentável/infraestrutura verde);

retângulo
SISTEMA DE COLETA E DISPOSIÇÃO DOS
retângulo
Faz uso da superfície do solo como agente recep-

tor, incluindo os aterros sanitários, a coleta seletiva


RESÍDUOS SÓLIDOS E ORGÂNICOS
e soluções alternativas;

retânguloGESTÃO DE RISCOS URBANOS


retângulo
Os sistemas de controle dos riscos urbanos, que

envolvem áreas de risco e áreas contaminadas;

retângulo retângulo
Importante instrumento de difusão do cuidado

com o meio ambiente, mudança de valores, de


EDUCAÇÃO AMBIENTAL padrões de consumo e de engajamento da popu-

lação para intervenções ambientais de cuidado


com a natureza e a saúde.

retângulo retângulo

retângulo retângulo 155


Guia de Urbanismo Social

6.2_ DIAGNÓSTICO AMBIENTAL

O diagnóstico que aqui será abordado se baseia nos pressupostos


apresentados ao longo do Capítulo 5 — Dimensão Territorial. Para
entender e pensar um processo ambiental integrado às ações de
urbanismo social, é elaborado um diagnóstico único, adotando
as mesmas estratégias metodológicas em todas as dimensões
presentes. Em síntese, a construção do diagnóstico ambiental deve
ser conduzida no âmbito da elaboração do diagnóstico geral da
dimensão territorial, reconhecendo e articulando as questões am-
bientais nos levantamentos técnico-territorial e social-participativo.

Portanto, esta seção está estruturada em duas frentes. Na primeira


são apresentados os temas e estudos ambientais a serem conduzi-
dos e integrados no diagnóstico técnico-territorial. Na segunda são
organizadas as principais questões ambientais a serem tratadas
junto à população no diagnóstico socioparticipativo.

O diagnóstico ambiental, para fins de planejamento territorial


em áreas vulneráveis, deve conter informações técnicas de dados
secundários e primários sobre os sistemas ambientais locais e
regionais, obtidos a partir de visitas de reconhecimento de campo,
e, o mais importante, de insumos colhidos junto à população mo-
radora. Os territórios vulneráveis, periféricos ou não, apresentam
em comum situações de degradação da paisagem de seus bairros.
Essa degradação, como se sabe, combina vulnerabilidade social e
ambiental, em virtude das carências de infraestrutura, em especial
de saneamento ambiental (esgoto, drenagem e resíduos) e da ausên-
cia de oferta de terrenos urbanizados ou habitação adequada para
as faixas da população de mais baixa renda. Assim, tanto em áreas
periféricas quanto em bairros degradados centrais, a população
em vulnerabilidade ocupa, predominantemente, fundos de vale
suscetíveis a enchentes e alagamentos, ou encostas de morros e
anfiteatros de nascentes passíveis de ocorrência de deslizamentos.

156
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

A seguir estão destacadas as principais abordagens ambientais a


serem trabalhadas no diagnóstico técnico-territorial.

DIAGNÓSTICO AMBIENTAL:
TÉCNICO-TERRITORIAL

O objetivo da leitura técnica sobre as questões ambientais do


território é realizar um levantamento detalhado de informações
dos sistemas ambientais da área de intervenção, devendo-se
considerar os seguintes temas:

▸ Compartimentos ambientais da paisagem: o relevo como con-


dicionante dos processos naturais e urbanos

Neste tema é importante observar e caracterizar as condições


do relevo, em seus aspectos topográficos, formas de relevo e da
ocupação inserida, bem como as condições geotécnicas, chegando
à identificação dos compartimentos ambientais existentes (topo,
vertentes e fundos de vale)4, em suas particularidades, e conside-
rando suas fragilidades e potencialidades em relação ao uso urbano.

Muito mais que uma simples caracterização topográfica, é impor-


tante reconhecer quais funções, ante as dinâmicas do clima e da
água, cada compartimento desempenha, para fins de proposição
de ações e intervenções adequadas a cada um deles, visando
reduzir impactos no meio ambiente urbano e perda de recursos
monetários em investimentos de baixa efetividade.

Será importante a identificação, nos fundos de vale, da presença de


setores de planície aluvial, com seus ambientes de várzeas alagáveis,
e seu estado de preservação, conservação e ocupação. Também é
relevante a demarcação dos setores íngremes das vertentes, que
geralmente caracterizam anfiteatros de nascentes abrigando en-
costas de alta declividade, ambientes extremamente suscetíveis à
erosão, que impulsiona os riscos de deslizamentos, gerando impactos
negativos na vida das comunidades que ali residem.

4 SCHUTZER, J. G. Cidade e meio ambiente: a apropriação do relevo no desenho am-


biental urbano. São Paulo: Edusp, 2012.

157
Guia de Urbanismo Social

▸ Sistema hídrico e drenagem

Associada à investigação dos compartimentos ambientais da


paisagem, cabe uma caracterização atenta da situação do local
em relação à bacia hidrográfica na qual o bairro se encontra
inserido. Para isso, identificar o canal receptor mais próximo que
recebe o escoamento das águas pluviais e servidas do bairro, e
suas condições de conservação e/ou ocupação urbana, é muito
importante. Nas reuniões com a comunidade e encontros de
reconhecimento participativo com grupos de interesse (lideran-
ças, futuros agentes ambientais, ativistas etc.), é pedagógico
identificar o caminho das águas locais, pelos terrenos internos
às quadras e ao longo do sistema viário.

Ao mesmo tempo, verificar as condições do canal receptor, seja


ele perene ou intermitente, aparente à superfície ou canalizado,
é relevante para reconhecer as fragilidades que apontam para os
riscos de enchentes, nos casos de estrangulamento do canal e
depósito de entulho e lixo, e riscos à saúde, nos casos de conta-
minação da água pelo recebimento de efluentes.

Nessa investigação é importante verificar e quantificar os espaços


que permitem a infiltração da água no solo, em especial nos com-
partimentos ambientais do relevo em que essa função é desejada,
para subsidiar a discussão e o planejamento de ações que visem
uma maior porosidade no tecido urbano do bairro como estratégia
natural de prevenção de enchentes e reabastecimento do lençol
freático. Essa abordagem traz bons subsídios para a implementação
de estratégias de infraestrutura verde como os jardins de chuva,
biovaletas, grades verdes, poços e lagoas de infiltração5 .

▸ Sistema de áreas verdes e dinâmicas do clima associadas

Neste tema cabe identificar dois aspectos: o primeiro é composto pela


quantidade e pelas condições dos espaços livres e verdes existentes,

5 CORMIER, Nathanael S.; PELLEGRINO, Paulo R. M. Infraestrutura verde: uma es-


tratégia paisagística para a água urbana. In Revista Paisagem e Ambiente: ensaios, nº
25, p. 127-142, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
São Paulo: FAU, 2008.

158
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

como as praças e parques de vizinhança acessíveis à comunidade.


O segundo são as condições de ambiência desses espaços públicos
de lazer, circulação e vivência (sistema viário e calçadas).

Quanto ao primeiro, os parâmetros urbanísticos recomendados


mencionam distâncias de quinhentos metros para praças e parques
de vizinhança e de mil metros para parques de bairro e demais
equipamentos de esportes e lazer. Em relação às condições de
ambiência do bairro, cabe mensurar a quantidade de espaços
arborizados (conjuntos arbóreos e arborização nas calçadas) e
superfícies verdes (jardins arbustivos e gramados) presentes no
sistema viário, praças e parques, bem como os estudos sobre
ilhas de calor e aquecimento da superfície, que possam trazer
subsídios para a percepção do conforto ambiental existente. Com
a finalidade de tangibilizar essas condições da ambiência urbana
em que a comunidade vive, é possível analisar a fisiologia da
paisagem local quanto ao conforto térmico, por meio da relação
entre cobertura vegetal (arborização e superfícies verdes) e as
dinâmicas do clima.

Muitas soluções de infraestrutura verde vêm sendo aplicadas


atualmente por várias cidades em escala mundial, como estímulo à
transformação desse cenário de desconforto térmico e engajamento
das comunidades na regeneração ambiental dos espaços livres.

!
Mutirões para conservação e plantio de arborização nos espaços
livres e calçadas, implantação de hortas comunitárias, tetos e
PARA SABER MAIS, VER: paredes verdes, viveiros de mudas, entre outras, são experiências
▸ Exemplo de que podem ser mostradas como estímulo à ação.
organização social
Mulheres do GAU (Zona
Leste de São Paulo) — ▸ Saneamento básico
Viveiro Escola União de
Vila Nova. Dentre os grandes desafios atuais postos ao urbanismo social, a
superação do déficit e das desigualdades no acesso aos serviços
de saneamento pode ser incluída como uma questão fundamental
colocada para toda a sociedade e, em particular, para os profis-
sionais e instituições atuantes no setor. A resposta sobre como
é possível planejar e gerir de uma maneira mais adequada a
prestação desses serviços ainda não foi plenamente apresentada,

159
Guia de Urbanismo Social

e insiste em desafiar a capacidade de reflexão e de formulação


de políticas públicas para o setor.

É necessário o convencimento de todos da importância de tratá-lo


de forma associada às demais dimensões — drenagem e resíduos
sólidos — em toda a sua complexidade, o que significa pensar e
desenhar adequadamente as soluções tecnológicas e a infraes-
trutura, assim como considerar todas as variáveis socioculturais
e ambientais envolvidas na formulação dessas soluções, desde a
adequação às necessidades, expectativas e valores culturais locais.

Os serviços de abastecimento de água e saneamento constituem,


juntamente com o manejo de resíduos sólidos e a drenagem das
águas pluviais urbanas, o saneamento básico. Esses serviços bási-
cos levam à melhoria da qualidade de vida das pessoas, sobretudo
na saúde da criança6, com redução da mortalidade infantil, além
de melhorias na educação, na expansão do turismo, na valorização
dos imóveis, na renda do trabalhador, na despoluição dos rios e
preservação dos recursos hídricos, repercutindo, inclusive, na
melhoria da autoestima dos habitantes de uma região, produzindo
efeitos positivos em diversos setores da sociedade e do país tanto
em termos socioambientais quanto econômicos.

É importante destacar a conformação espacial de cada localidade,


considerando que a concepção desses sistemas deverá levar em
conta um ou mais formatos de atendimento. Para isso, é preciso
vencer as dificuldades locais, buscando métodos, tecnologias e
inovações que se adéquem à realidade local.

Os maiores impactos da falta de água, de saneamento, de drenagem


e coleta de lixo estão presentes nos extratos da população mais
vulnerável, que ocupam os territórios que sobraram da urbanização
regular, ora situada às margens de vales, canais ou rios sujeitos a
alagamentos, ora em encostas, sujeitas a erosões e deslizamentos,

6 Estudos da Organização das Nações Unidas (ONU) estimam que uma criança
morra no mundo a cada 2,5 minutos por causa de água não potável, saneamento e
higiene deficientes.

160
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

SANEAMENTO COMO UM DIREITO HUMANO

Um avanço que ocorreu na metade da década passada foi a Organização


das Nações Unidas (ONU) ter reconhecido o Saneamento como um di-
reito humano, separado do direito à água potável7 . Contribuiu para esse
avanço o que fora estabelecido através dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS), no caso do saneamento o ODS 6 — Água Potável e
Saneamento — que estabelece: Assegurar a disponibilidade e gestão
sustentável da água e saneamento para todos.

aliado às maiores densidades populacionais. São locais com maior


risco de transmissão de doenças de veiculação hídrica ou transmitida
por vetores, como mosquitos, ratos e baratas.

Em relação ao esgotamento sanitário, é muito comum o uso de


sistemas de drenagem para o afastamento dos esgotos, mesmo
que sejam apenas das águas servidas, os quais trazem consigo
uma sensação de “problema resolvido”, que tende a afastar os
usuários de uma solução definitiva, quando esta lhes é oferecida,
produzindo impactos significativos sobre o meio ambiente e a
saúde de todos que ali residem. Essa condição propicia o contato
direto da população com esse líquido.

Esse cenário demonstra um paradoxo incrível no processo de


urbanização das cidades: serviços considerados essenciais para a
vida e responsáveis por garantir as condições mínimas de habita-
bilidade da população, são precários, ou são os últimos ofertados,
! implantados depois dos serviços de energia, pavimentação etc.

PARA SABER MAIS, VER:


Em termos técnicos, no diagnóstico ambiental os principais aspectos
▸ Sistema Condominial —
alternativa para favelas e que devem ser considerados quanto ao saneamento básico são
áreas de baixa renda.W apresentados no Infográfico 02.

7 A natureza é reconhecida distintamente, embora tenha mantido os direitos juntos.


161
Guia de Urbanismo Social

INFOGRÁFICO 02:
DIAGNÓSTICO AMBIENTAL: ASPECTOS TÉCNICOS DO SANEAMENTO BÁSICO

TEMAS ASPECTOS

retângulo retângulo

▸ Áreas ou domicílios não atendidos pela rede regular;

▸ Intermitências no sistema;
ABASTECIMENTO DE
▸ Ligações clandestinas;
ÁGUA
▸ Perda de água;

▸ Sistema de tarifação do local;

▸ Existência de cisternas, poços, entre outros.

retângulo
retângulo
▸ Mapeamento da rede de esgotos instalada;

▸ Identificar os setores não servidos pela rede;

ESGOTAMENTO ▸ Taxa de adesão de domicílios ao sistema junto à operadora;

SANITÁRIO ▸ Organizar informações sobre os sistemas alternativos, descentralizados e


ecológicos de coleta e tratamento passíveis de incorporação nas condições
urbanas e naturais do bairro: como o sistema condominial, wetlands (zona de
raízes), biodigestores, entre outros.

▸ Mapeamento da rede de drenagem existente;


retângulo
retângulo
▸ Pontos de concentração do escoamento superficial;

▸ Qualidade das águas superficiais;

▸ Percentual de áreas permeáveis;

▸ Setores de relevo plano e/ou suave ondulado nos compartimentos de topo


compatíveis para o incentivo à infiltração das águas pluviais;
DRENAGEM
▸ Condições de conservação dos canais de drenagem aparentes;

▸ Organizar informações sobre medidas não estruturais de drenagem


sustentável ligadas às soluções de infraestrutura verde, como: biovaletas,
grade verde, jardins de chuva, poços de infiltração, lagoa pluvial, alagado
construído, cisternas e pequenos reservatórios de detenção integrados aos
parques lineares, dentre outras;

▸ Sistema de coleta e disposição dos resíduos sólidos e orgânicos;

▸ Forma de atendimento no bairro;

retângulo
retângulo
RESÍDUOS SÓLIDOS ▸ Pontos de descarte irregular;

▸ Cooperativas atuantes na região;

▸ Existência de ecopontos, coleta seletiva, pátios de compostagem e


composteiras comunitárias, entre outras.

162
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

▸ Áreas de risco e gestão de risco

A contínua ressignificação das definições de risco, realocou-o nas


ciências sociais, resgatando os aspectos social e econômico e o
definindo como “a probabilidade de danos e perdas futuras asso-
ciadas à ocorrência de um evento físico danoso”8, dando ênfase aos
prováveis impactos e perdas sobre as pessoas e comunidades, como
os moradores de setores de risco de deslizamento ou inundação.

A presença da população, comunidades e infraestruturas expostas


a possíveis impactos causados por perigos associados a processos
físicos, como deslizamentos e inundações, são fatores indispen-
sáveis para que o desastre aconteça. Entretanto, além desses
elementos, a vulnerabilidade é a variável que exerce influência
direta para determinar o grau de risco. A mudança de abordagem
mostrou que os riscos resultam das fragilidades e vulnerabilidades
da sociedade, de comunidades, pessoas, bens e infraestrutura a
diferentes processos físicos e sujeitos a seus impactos. Logo, ele
pode ser entendido como a probabilidade de ocorrência futura de
um acidente, um desastre ou qualquer outro evento físico que resulte
em danos e perdas sociais, econômicas e até de vidas humanas.

Assim, considera-se que para o seu enfrentamento, ou gestão, as


ações devem integrar, necessariamente, três aspectos fundamentais:
(a) conhecimento sobre o tema dos riscos e suas componentes; (b)
intervenções e ações para a redução dos riscos socioambientais;
e (c) planejamento e organização para o manejo de desastres. O
conhecimento sobre o território é indispensável para a efetiva gestão
de riscos socioambientais e ponto de partida para o diagnóstico, que
deve considerar tanto fatores que contribuem para a construção do
perigo no meio físico quanto para aspectos da exposição e fragilidades
(vulnerabilidade física e social) e das capacidades de enfrentamento.
Para tanto é necessário identificar, mapear e avaliar os perigos e as
vulnerabilidades. Assim sendo, deve-se estar atento para caracte-
rísticas e dados relacionados ao (i) Meio físico; (ii) Demográfico, (iii)

8 NARVÁEZ, L.; LAVELL, A,; ORTEGA, G. P. La gestión del riesgo de desastres: un


enfoque basado en procesos. San Isidro: Secretaría General de la Comunidad An-
dina, 2009.

163
Guia de Urbanismo Social

Socioeconômico; (iv) Urbanístico; (v) Ambiental. Logo, as cartografias


geotécnicas (carta de suscetibilidade a movimento de massa e inun-
dações a carta de aptidão à urbanização) são instrumentos, quando
disponíveis, indispensáveis para o ordenamento e planejamento
territorial, respectivamente, e podem ser utilizadas no processo
de diagnóstico para entender as potencialidades e limitações dos
terrenos nas áreas de intervenção. Dados do censo demográfico,
informações provenientes das secretarias de assistência social, de
saúde, habitação, defesa civil, entre outras, são essenciais para a
caracterização social, econômica e demográfica das populações e
comunidades nas áreas de intervenção.

Dessa forma, para o diagnóstico de riscos elencamos os principais


pontos a serem considerados na vistoria em campo:

INFOGRÁFICO 03:
DIAGNÓSTICO DE RISCOS: PRINCIPAIS PONTOS A CONSIDERAR
NA VISTORIA EM CAMPO

CAMADAS SUBCATEGORIAS ANALÍTICAS

retângulo retângulo

▸ Taludes: de corte, aterro ou naturais, altura e se o solo está compactado ou não;

▸ Distância entre moradia e encosta;

▸ Declividade;

▸ Estrutura do solo;
ENCOSTAS ▸ Presença de blocos rochosos e matacões, paredões rochosos;

▸ Se a ocupação é em cabeceira de drenagem;

▸ Se há trincas nas moradias;

▸ Árvores, muros ou postes inclinados ou muros embarrigados;

▸ Degraus de abatimento, cicatrizes de escorregamentos anteriores, outras


rupturas ou feições erosivas.

▸ Tipo de canal e se ele é natural, sinuoso ou retificado;

retângulo
NAS MARGENS DE
CURSO D’ÁGUA
retângulo ▸ Distância da moradia à margem;

▸ Altura do talude marginal;

▸ Altura de cheias no curso d’água.

164
retângulo retângulo
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

▸ Concentração de águas superficiais;


DRENAGEM E
▸ Lançamento de água servida em superfície;
ESGOTAMENTO
▸ Presença de fossas ou lançamento de esgoto.

retângulo retângulo
▸ Sarjetas e redes de drenagem pluvial;

▸ Rede de abastecimento de água;

INFRAESTRUTURA ▸ Rede de coleta de esgoto;

URBANA ▸ Coleta de resíduos sólidos regular ou caçamba;

▸ Energia elétrica e sua origem;

▸ Intervenções estruturais anteriores para controle de riscos.

retânguloVEGETAÇÃOretângulo
▸ Presença de árvores, vegetação rasteira ou área desmatada;

▸ Áreas de cultivo.

retângulo retângulo

▸ Moradores idosos, portadores de ncessidades especiais, dependentes


químicos ou alcoólicos;

▸ Evidências de fragilidade construtiva, de instabilidade estrutural ou de


degradação significativa da edificação;

▸ Acúmulo de lixo significativo no entorno da moradia;


VULNERABILIDADES ▸ Evidência clara de perigo ou impacto ou dano à moradia por ocorrência
pretérita, sem que haja providência observável de reparo ou mitigação por
parte do morador;

▸ Desorganização espacial e/ou adensamento excessivo das edificações na


área vistoriada, afetando fluxos de drenagem superficial;

▸ Lançamento desorganizado de águas servidas sobre taludes


(NOGUEIRA et al., 2018).

retângulo
retângulo
O diagnóstico de riscos deve ser feito, obrigatoriamente, em campo.
Isso não significa que sistemas de informação geográfica e outras
ferramentas remotas não devem ser utilizados para dar suporte
ao trabalho. Também é importante considerar aspectos funcio-
nais — como o viário local, principais vias de acesso, localização
de equipamentos públicos —, aspectos de conforto ambiental —
como o material construtivo, densidade construtiva e conformação
espacial das edificações —, e aspectos legislativos — como lei de
uso e ocupação do solo, zoneamento, plano diretor, ZEIS.

165
Guia de Urbanismo Social

AMBIENTE CONSTRUÍDO E HABITABILIDADE

A forma e a configuração dos assentamentos são fatores relevantes


para as condições ambientais. Aqui nos referimos não somente à
relação com elementos naturais, como (cursos d’água e relevo, por
exemplo), mas também a própria configuração física dos assen-
tamentos, o que denominamos ambiente construído, interfere nas
referidas condições ambientais.

Para além da relação com elementos naturais e da definição de


sistema de vias que permita a circulação e a implementação
de infraestrutura, fatores como definição de espaços livres,
arborização e permeabilidade do solo, parcelamento e controle
da densidade construtiva das quadras, bem como observância a
afastamentos e recuos das construções, permitem obter favoráveis
condições de habitabilidade. Tais fatores tomam maior emergência
a partir do contexto da pandemia de covid-19, que demonstrou a
importância da busca por condições favoráveis de moradia nos
assentamentos que permitam observar variáveis de salubridade
e habitabilidade, adensamento, bem como a segurança física dos
espaços construídos e domicílios.

Dados da maior incidência de doenças respiratórias em assentamen-


tos vulneráveis demonstram a correlação entre moradia e saúde.
Nesse contexto, é importante observar que quando tratamos de
moradia digna, adequada e saudável devemos considerar elementos
em duas dimensões, como mostra o Infográfico 04.

É importante observar que, ao contrário do que preza o senso co-


mum, os assentamentos vulneráveis não são territórios informais
desprovidos de regras. A dinâmica de produção desses assenta-
mentos é, por vezes, negociada e pactuada entre os moradores.
Nesse contexto, podemos elencar alguns princípios que orientam o
processo de Produção do Espaço em assentamentos vulneráveis9:

▸ A destinação prioritária da terra para a moradia;

9 NISIDA, Vitor Coelho. Desafios da regulação urbanística no território das favelas,


2017. 242 f. Dissertação Mestrado, FAU-USP, 2017.
166
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

▸ A edificação como a célula — em geral e diferentemente dos


assentamentos planificados que têm o lote como unidade do
parcelamento, a edificação é que configura o Ambiente Construído
dos assentamentos vulneráveis;

▸ O direito de construir — a liberdade para construir, que se sobre-


põe à necessidade do vizinho ter acesso a iluminação e ventilação;

▸ O direito de passagem — a construção de uma edificação não


poderá impedir a passagem e o acesso de vizinhos aos seus res-
pectivos domicílios.

Observar essa dinâmica de produção dos assentamentos vulne-


ráveis pode ser um subsídio para a definição de estratégias para
negociação e pactuação de intervenções e projetos.

INFOGRÁFICO 04:
DIMENSÕES PARA O ESTUDO DAS CONDIÇÕES DE HABITABILIDADE

DIMENSÕES ELEMENTOS

retângulo retângulo

Para além de condição de vizinhança (disponibilidade de

serviços e oportunidades no entorno) e riscos geotécnicos

(enchentes e deslizamentos etc.), relaciona-se, de forma

mais objetiva, com:

INSERÇÃO E CONFIGURAÇÃO DO ▸ Forma e parcelamento do assentamento (incluindo

ASSENTAMENTO tamanho dos lotes);

▸ Densidade construtiva, recuos e afastamentos entre


edificações (de modo a permitir a disposição de janelas e
poços de iluminação/ventilação);

▸ Definição de espaços livres.

Relacionada às condições de cada moradia, em síntese:

retângulo retângulo ▸ Habitabilidade e salubridade (iluminação e ventilação,


eliminação de situações de umidade etc.);
ASPECTOS DA UNIDADE
▸ Densidade da moradia (relacionada ao número de
DOMICILIAR
pessoas por domicílio);

▸ Segurança estrutural (patologias construtivas,


eliminação de riscos de acidentes e injúrias).

167
retângulo retângulo
Guia de Urbanismo Social

DIAGNÓSTICO AMBIENTAL: SOCIAL-PARTICIPATIVO

Neste trabalho reforçamos a pertinência da perspectiva comunitária


somada às análises técnicas para entender os problemas presentes
no território, conforme discutido no Capítulo 5. Aliar a leitura da
realidade aos processos sociais participativos pode sensibilizar,
promover a mobilização social e compartilhar decisões sobre as
ações, que serão inclusive desenvolvidas na prevenção de riscos.
O convite à participação social, que considera a centralidade dos
grupos sociais no diagnóstico e nas ações, gera responsabilização
e conscientização social, que promove as comunidades a prota-
gonistas dos processos.

Os princípios metodológicos desse diagnóstico são elencados a seguir:

▸ Identificação dos atores (stakeholders) e fortalecimento da


organização comunitária

O estímulo à participação de lideranças comunitárias, agentes de


saúde ambiental, agentes comunitários de saúde, de saneamento,
auxilia no mapeamento e compartilhamento das visões sobre os
principais problemas ambientais enfrentados. Nesse sentido, caberá
mapear associações de moradores, grupos sociais ambientais,
ONGs que atuam com defesa do meio ambiente, que devem ser
articuladas e convidadas a dialogar com os estudos e promover a
difusão do trabalho.

168
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

PROCESSOS PARTICIPATIVOS DE ESCUTA

Os processos participativos de escuta podem assumir diferentes formatos


de acordo com o contexto da ação. Nesse sentido, a coleta de informações
pode utilizar ferramentas quantitativas ou qualitativas.

São consideradas ferramentas como oficinas, grupos focais e rodas de


conversa para entender como a população reconhece as questões do
bairro e as situações relacionadas aos diversos riscos, como enchentes,
deslizamentos, solapamento das construções e erosão. Tais processos
levam em consideração a percepção das pessoas e suas falas. Eles
ganham contornos objetivos ao serem desenhados e registrados a partir
de conversas facilitadas pela equipe de trabalho social.

Assim, mapeiam-se as condições gerais dos serviços de limpeza urbana


e coleta (seletiva) de lixo e de manutenção dos córregos, situação das
áreas verdes, dados do sistema viário e das calçadas, abastecimento de
água, coleta e tratamento de esgoto, mobilidade e acessibilidade, dentre
outros. A sistematização dessa leitura pode ocorrer nos chamados mapas
falados, mapeamentos participativos variados, totens, painéis, entre outros,
apontando eventuais fragilidades, potencialidades e pontos de atenção
com a localização das questões indicadas.

169
Guia de Urbanismo Social

6.3_ PROCESSOS DE QUALIFICAÇÃO


AMBIENTAL: AÇÕES ESTRATÉGICAS,
SISTÊMICAS E LOCAIS

Na dimensão Sustentabilidade Urbana, associada ao lazer, cultura, saúde e desen-


os processos de qualificação do território volvimento local (agricultura urbana, hortas
apresentam uma natureza transversal aos urbanas, turismo de base comunitária, vivei-
sistemas de infraestrutura urbana e social. ros de produção e educativos etc.).
Suas ações estratégicas, sistêmicas e locais
▸ Sistema de saneamento ambiental: ações
integram os objetivos dos principais instru-
vinculadas à qualificação da infraestrutura
mentos do Urbanismo Social, que são os
básica de abastecimento de água, esgoto,
Planos Urbanos Integrados e os Programas
drenagem e resíduos sólidos, incluindo a
Sociais Integrados. Pautado pelas informa-
recuperação ambiental de corpos d´água
ções trazidas no Diagnóstico Ambiental,
e incorporação de sistemas ecológicos e
esta etapa visa à identificação do conjunto
sustentáveis de esgotamento sanitário,
de ações estruturantes, locais e pontuais
drenagem urbana e resíduos.
(urgentes) a serem implementadas para a
melhoria das condições ambientais no bairro, ▸ Sistema de mobilidade: ações voltadas
para fins de dimensionamento e priorização. à qualificação ambiental do sistema viário
Essas ações buscam encontrar respostas (ruas, calçadas, vielas, ciclovias, travessias)
aos principais problemas presentes nos ter- visando melhorar as condições de conforto
ritórios de alta vulnerabilidade social identi- térmico e da paisagem, incorporando ele-
ficados nas leituras técnica e participativa. mentos de infraestrutura verde e soluções
baseadas na natureza.
A partir dos temas estudados no diagnóstico
▸ Ambiente construído e habitabilidade:
realiza-se uma primeira integração temática
ações vinculadas à melhoria das condições
relacionando as questões ambientais às
entre ambiente, moradia e saúde para
seguintes frentes de ação:
a qualificação das condições gerais do
assentamento.
▸ Sistema de áreas verdes e espaços pú-
blicos: ações voltadas à expansão, recu- ▸ Áreas de risco e gestão de risco: ações
peração e qualificação dos espaços livres voltadas à gestão dos riscos urbanos por
das áreas de intervenção (praças, parques, meio da implementação de medidas estru-
unidades de conservação etc.), visando à turantes e não estruturantes, para controle,
integração no sistema de áreas verdes da redução e erradicação dos riscos, tendo em
região e do município, na perspectiva da vista os processos do seu reconhecimento
conectividade e multifuncionalidade desses e subsequente integração a projeto de
espaços, incluindo a conservação ambiental maior amplitude.

170
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

▸ Sustentabilidade das intervenções e do Outra ação estratégica para a qualificação


território: ações voltadas à educação am- da ambiência urbana da área de intervenção
biental, articulação de parcerias e promoção é a ampliação da arborização urbana nos
de intervenções ambientais no âmbito de espaços públicos existentes, especialmente
ativismos verdes, economia circular, desen- nas praças, calçadas e canteiros centrais
volvimento local/geração de renda, consumo de avenidas, e nos equipamentos sociais
consciente, entre outras. públicos do entorno e demais espaços li-
vres que incorporem nascentes, fundos de
SISTEMA DE ÁREAS VERDES
vale e encostas. Para isso, a articulação do
poder público com a comunidade local é de
Nas leituras técnica e comunitária realizadas
extrema relevância.
na fase do diagnóstico ambiental pode-se
identificar e avaliar as potencialidades e
De cunho sistêmico são as ações relativas
fragilidades da área em relação à oferta de
à implementação das soluções baseadas
espaços verdes de lazer, conjuntos arbóreos,
na natureza impulsionadas pelo conceito
arborização viária e a qualidade existente ou
de infraestrutura verde, que visam tirar
desejada desses ativos.
partido dos processos naturais, muitas
vezes mimetizando-os. Entre as soluções
Assim, entre as ações prioritárias estão aque-
que podem ser desenvolvidas pelo poder
las voltadas à expansão do sistema de espa-
público em parceria com a comunidade
ços livres e verdes na área de intervenção, o
local e/ou com coletivos e outras formas
que pode incluir a criação de novas praças,
de ativismos verdes estão:
parque de vizinhança ou de bairro, ou ainda
unidades de conservação (fundos de vale com
▸ Propor e implementar soluções de Drena-
várzeas ou encostas íngremes florestadas). Na
gem Urbana Sustentável, como biovaletas,
existência desses ativos, cabe a avaliação da
grades verdes e jardins de chuva, ligadas às
necessidade de sua recuperação e/ou quali-
calçadas e canteiros centrais de avenidas,
ficação (com a inclusão de novos elementos
e lagoas pluviais nas praças e parques;
ou equipamentos). A perspectiva de conec-
tividade ecológica e social desses espaços
▸ Propor e implementar soluções de Conecti-
com os do entorno é um desafio que deve ser
vidade Ecológica, por meio de caminhos ver-
explorado, bem como a multifuncionalidade
des, arborização urbana e parques lineares;
que devem abrigar em face de seu conteúdo
urbano, visando articular a conservação da
▸ Em alguns casos, propor e implantar solu-
natureza e dos processos naturais com usos
ções de estabilização de taludes, encostas
sociais associados ao lazer, à cultura, à saúde,
e margens de córregos — naturalizadas,
e quando possível ao próprio desenvolvimento
associadas às ações de gestão de riscos
comunitário e econômico.
urbanos;

171
Guia de Urbanismo Social

▸ Propor e viabilizar soluções de Regu- necessidades de melhoria nas instalações.


lação e Amenização Climática por meio da Alinha-se a esse fato a reprodução de uma
implantação de paredes (muros) verdes, cultura ainda centrada na individualidade
tetos verdes e arborização dos espaços (presente não exclusivamente nestes ter-
públicos e privados. ritórios), mas que demanda esforços para
sua desconstrução e para pôr em marcha
As ações ambientais que desenvolvem o processos participativos que possam atenu-
potencial humano, social e produtivo das ar o impacto desse modo de encarar a vida
comunidades não podem ser ignoradas. Den- urbana. Assim, é fundamental considerar
tre elas destaca-se a agricultura urbana, a necessidade de mobilização social para
com suas variantes na implementação de reforçar o processo participativo na busca
hortas comunitárias, ações de difusão de de soluções conjuntas.
alimentação saudável, venda de produtos,
operacionalização de viveiros de mudas, Diante de toda essa problemática, para que
educação ambiental, entre outras. Nessa se possa intervir em saneamento básico,
ação, a articulação do poder público a cole- integradamente com os demais segmentos
tivos, grupos comunitários, associações etc. do urbanismo, propõe-se que 5 cinco pre-
é de extrema relevância para impulsionar o missas sejam consideradas, a saber:
potencial local por meio de fomento e formas
diversas de apoio, dando funcionalidade a ▸ Inter-relação entre os quatro sistemas
muitos espaços livres vazios e ociosos, como que compõem o saneamento básico
o exemplo das faixas de domínio das infraes- Os quatro sistemas que compõem o sanea-
truturas de abastecimento de água e energia, mento básico funcionam dentro do espaço
de equipamentos públicos, praças etc. urbano de forma muito próxima. A operação
de cada um deles, quando não é realizada de
SISTEMA DE SANEAMENTO BÁSICO forma eficiente, tende a produzir impactos
negativos sobre os demais sistemas. Con-
A cultura generalizada de que mediante o siderando a adoção do sistema separador
distanciamento dos esgotos das residên- absoluto, em que as águas residuais pro-
cias o problema estaria resolvido tem sido venientes do uso doméstico ou industrial
danosa para as cidades, especialmente são conduzidas por um sistema de coleta
devido ao processo de contaminação dos e as de chuva por outro sistema, este sem
recursos hídricos. Esse cenário se inten- a necessidade de sofrer tratamento para
sifica nos segmentos da população de seu lançamento nos corpos hídricos, é
renda baixa ou muito baixa, que dispõem fundamental que as redes de saneamento
de instalações intradomiciliares precárias sejam implantadas de forma a garantir a
ou até mesmo inexistentes, sem possuir melhor estanqueidade possível, absorvendo
capacidade financeira para adequar-se às apenas uma pequena parcela de água por

172
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

infiltração. Por seu turno, o sistema de dre- esgotamento de vala e escoramento. Em


nagem das águas pluviais também não deve função da dimensão do território que se
receber qualquer contribuição da produção quer sanear, e da disponibilidade financeira
dos esgotos domésticos ou industriais. O para implantação do sistema, é possível
lançamento indevido da água da chuva na concebê-lo de forma a adotar um gradu-
rede coletora de esgotos, além de diluir o alismo para essa intervenção.
esgoto, pode ocasionar extravasamentos e
até mesmo seu retorno às residências. Já as No primeiro momento, a questão mais im-
ligações de esgoto, realizadas clandestina- portante é afastar os esgotos do contato
mente nas redes de drenagem das águas com a população. Coletar, bombear, trans-
pluviais, provocam danos graves ao meio portar e tratar em um nível que atenda às
ambiente e afetam a saúde da população. exigências ambientais do corpo receptor.
Em períodos de chuva de maior intensidade Se na partida, ou seja, na concepção, esse
ou de alagamentos, essas águas extravasam território foi avaliado e planejado de for-
do sistema coletor de drenagem para as ma a se constituir em “pequenos espaços
vias, gerando o contato da população e po- territoriais de coleta”, a disponibilidade de
luindo o espaço citadino. Além disso, esses recurso pode atender um ou mais espaços
espaços abertos nos dispositivos do sistema e o tratamento, pensado em etapas, pode
de drenagem propiciam a proliferação de ser implantado por partes. Esses “pequenos
vetores de transmissão de doenças, além de espaços territoriais” são na realidade as
causarem mau odor no território próximo a microbacias, definidas a partir de divisores
esses dispositivos. naturais (divisor de água, canais, rios, áreas
de proteção ambiental) ou divisores físicos
▸ Gradualismo das intervenções (linha férrea, grandes avenidas, equipamen-
Diante desse desafio, como avançar para tos como aeroporto etc.), descentralizadas,
a implantação de um sistema de esgota- sempre a depender da disponibilidade dos
mento sanitário único, sendo esse sistema recursos financeiros.
um dos mais caros?
▸ Soluções alternativas de atendimento
O esgoto deve ser conduzido a favor da gra- Examinada a questão do abastecimento
vidade, ou seja, sempre se encaminhando de água e coleta de esgotos, podem ser
para os pontos mais baixos da topografia identificados dois pontos circunstanciais
local. Em áreas planas isso resulta em re- que precisam ser destacados na busca da
des profundas, cuja implantação demanda solução do problema: o primeiro diz respeito
grandes escavações para sua implantação, à necessidade de concentrar esforços na
e, a depender do tipo de solo (rochoso redução de perdas do sistema de abasteci-
ou com lençol freático elevado), o uso de mento de água, o segundo na necessidade
explosivos ou de rebaixamento do lençol, de reduzir custo, simplificar a implantação

173
Guia de Urbanismo Social

e operação dos sistemas de esgotamento a adesão consciente e a fidelização dos


sanitário, adequando-o perfeitamente a usuários ao sistema e, por conseguinte, a
todos os tipos de urbanização, com menos tão deseja universalização.
transtorno e mais diálogo entre os envol-
vidos. A conjunção adequada da solução Outra alternativa são as chamadas Wetlands
desses dois pontos não só implica a distri- ou Zonas de Raízes, cujas experiências já
buição dos recursos financeiros entre os acumula três décadas de aperfeiçoamento
dois sistemas de forma equilibrada, como dessa forma ecológica de tratamento de
atende à necessidade urgente de buscar águas residuais em todo o mundo. Esse
medidas eficazes que promovam a sua tipo de tratamento pode servir para esgoto,
universalização. águas residuais industriais e agrícolas, lixi-
viação de aterro e escoamento de águas plu-
Conhecido mundialmente, o Sistema Condo- viais. Nessa solução a poluição é removida
minial, conforme já mencionado na seção an- através de processos naturais comuns, mas
terior, é uma alternativa de atendimento que realizados em condições mais controladas.
alia uma solução técnica a um componente As Zonas de Raízes podem ser projetadas
de participação da sociedade cujo foco é a como ecossistemas de múltiplos propósitos,
busca mais adequada de atendimento a cada fornecendo outros serviços ecossistêmicos
imóvel, adaptando-se a todo tipo de ocupa- tais como controle de inundações, sequestro
ção. Esses dois componentes fortemente de carbono ou hábitat da vida selvagem.
integrados é que proporcionam o sucesso Podem estar vinculadas a parques lineares
da aplicação do Modelo Condominial. e áreas de conservação nas áreas de pre-
servação permanente de córregos em áreas
A ação integrada física e social parte de urbanas, pulverizadas no tecido urbano da
uma estratégia de trabalho social muito cidade, como solução de atendimento na
bem planejada para o empoderamento da microescala de bairros.
população beneficiária.
▸ Setorização da Distribuição da Água
Essa tecnologia propicia uma nova forma Potável no Centro Urbano — contribuindo
de exercer a Engenharia Sanitária. A prática para o controle do sistema e a redução das
precisa ser integrada para: (i) atuar com as perdas de água
equipes integradas: projeto, social, obra Uma das questões graves que afetam a
e operação; (ii) conhecer e se adequar à gestão do setor de saneamento básico é a
realidade, nos seus aspectos urbanísticos, situação dramática das perdas de água nos
socioeconômicos e ambientais; (iii) cons- sistemas de distribuição existentes nas ci-
truir pactos e dialogar com as instituições dades. Trata-se de um desafio para o avanço
públicas, ONGs, formadores de opinião, lide- do saneamento básico e a escassez hídrica.
ranças locais e a população; (iv) conquistar Diversas medidas podem e devem ser

174
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

implementadas para o enfrentamento des- ▸ O Processo Participativo e sua importân-


sa questão, porém o controle operacional cia na implantação e manutenção/operação
da distribuição de água pode ser a partida do Saneamento Básico
para esse enfrentamento. Em função da A participação dos agentes institucionais,
conformação urbanística e topografia local, nas suas várias esferas, que têm uma rela-
a concepção de uma rede de distribuição da ção direta ou próxima na implantação dos
água para uma localidade poderá contar com sistemas, da sociedade civil organizada e
mais de um ponto de alimentação, mesmo da população usuária, é um pré-requisito
tendo como ponto de partida para o abaste- para que um sistema de saneamento básico
cimento um reservatório. seja implantado em qualquer território,
urbano ou rural.
Se a região for muito acidentada, deve-se
estabelecer faixas de atendimento para que Para a população em geral, o direito à in-
se garanta pressões dinâmicas mínimas para formação sobre o serviço, as obras, suas
cada habitação e pressões estáticas máxi- condições de acesso e os transtornos cau-
mas, evitando, dessa forma, pressão elevada sados durante essas obras, no caso dos
na rede, que acaba propiciando perdas físicas três sistemas que contam com redes físicas
provenientes de vazamentos, rupturas da (drenagem, água e saneamento), é uma
tubulação etc. Dessa forma criam-se Setores questão de cidadania.
de Distribuição (ou Ilhas Hidráulicas) que
favorecem o controle de perdas de água Uma peculiaridade que demanda atenção
no sistema, uma vez que essa tarefa não é no sistema de esgoto é que a matéria-prima
realizada em toda área onde se concentra do sistema é produzida no domicílio, por-
o número total de conexões domiciliares. tanto, esse sistema depende do usuário. A
Cada um dos setores contará apenas com população pode não sentir a necessidade
um ponto de alimentação, controlado por do serviço, o que demanda ao interveniente
um medidor de vazão e uma válvula de in- conscientizá-la a seu respeito. Ou pode não
terrupção (ou registro de parada). ter os requisitos mínimos para o serviço de
atendimento (instalações sanitárias míni-
Se a região for plana, pode-se definir um mas), informações para o uso correto e/ou
traçado mais econômico para a linha tronco disponibilidade (fácil) para o pagamento,
principal, a qual não deverá ter distribuição sendo necessário que qualquer intervenção
em marcha, buscando ao máximo sua otimi- considere essas dificuldades.
zação, e a partir desse traçado criar setores
de distribuição, os quais contarão com um É importante também que a população
ponto de distribuição alimentando a rede entenda quais são seus direitos e deveres,
secundária de cada setor e serão controlados a partir das informações fornecidas de
por um medidor e um registro. forma clara, aprofundada e verdadeira. As

175
Guia de Urbanismo Social

entidades locais, no plano institucional, da viário. Essas ações estão voltadas à quali-
sociedade e do sistema produtivo, devem ficação paisagística e de conforto térmico,
ser envolvidas para que se possa criar uma mas também visam explorar a multifun-
Rede de Difusão do projeto. Da mesma cionalidade desses espaços, abrigando,
forma, é importante identificar e trazer para quando possível e adequado, soluções de
o processo aquelas entidades que podem infraestrutura verde ligadas à drenagem
abrir seus espaços para também constituir sustentável. Dentre elas, destacam-se as
uma Rede Operativa, tais como templos biovaletas, jardins de chuva e grade verde.
religiosos, escolas, mídia, associações co-
munitárias, entre outras. Das soluções baseadas na natureza para
melhorar as condições microclimáticas dos
O papel da mulher no planejamento, imple- espaços de mobilidade, a de maior relevân-
mentação, gestão, utilização e manuten- cia é a arborização, pois é ela que interfere
ção das infraestruturas de abastecimento positivamente na redução da emissividade
de água e saneamento; tem se mostrado de calor das superfícies urbanas, trazen-
necessário. De fato, a mulher é a grande do condições climáticas mais amenas aos
protagonista desse setor; ela sempre está passeios públicos. Atua também como um
à frente de suprir as necessidades básicas importante refrigerador climático ao impul-
de sua família, sendo a água uma neces- sionar os processos de evapotranspiração
sidade vital para a vida. A escola também que umidificam o ar. Em áreas tropicais
deve ser um espaço de destaque para esses serviços ambientais são fundamentais
promover a importância de ter um serviço para promover ainda mais o uso público dos
adequado de saneamento. espaços abertos.

Esse processo impacta sobremaneira no Há mais de três décadas que se acentu-


funcionamento dos sistemas, nos quais a aram os estudos sobre os benefícios da
população usuária ocupa um papel ativo arborização e da vegetação urbana para
e, portanto, precisa entender o conceito de o microclima das cidades; no entanto, em
coparticipação, assumindo o compromisso muitos lugares a arborização permanece
com a despoluição ambiental e tornando-se como um contínuo desafio em virtude da
Agentes de Transformação. prevalência de uma visão utilitarista dos
espaços públicos do sistema viário, sempre
SISTEMA DE MOBILIDADE privilegiando o automóvel. Nesse sentido,
as principais ações que o urbanismo social
A relação da dimensão ambiental com os deve considerar são:
assuntos de mobilidade é de natureza com-
plementar e visa dar qualidade ambiental ▸ Articular comunidades e prefeitura local
aos passeios, calçadas e ao próprio sistema para a implementação de programas de

176
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

arborização urbana, promovendo interven- As intervenções e ações para a redução


ções de plantio em parceria com moradores serão, necessariamente, definidas após o
e alunos das escolas do entorno; processo de conhecimento e reconhecimen-
to territorial. O risco, nessa abordagem, é
▸ Promover estudos para a ampliação de
totalmente dependente do processo de uso
calçadas e a incorporação de baias no leito
e ocupação do solo e sua relação com o meio
carroçável para possibilitar o plantio de
físico, com as dinâmicas socioterritoriais,
árvores em ao menos um lado da rua;
características urbanísticas e ambientais.
▸ Promover a implantação de calçadas Dessa forma, é possível propor soluções
verdes nas ruas de baixa declividade, in- viáveis e que se integrem aos processos de
corporando paisagismo e abrindo espaço qualificação urbano-ambiental, elevando
para a infiltração das águas pluviais; a segurança de populações vulneráveis e
expostas aos perigos.
▸ Articular as discussões entre poder pú-
blico e comunidade para a implementação
Para cada situação identificada é proposta
de medidas de drenagem sustentável nos
uma tipologia de intervenção para reduzir
passeios públicos, como biovaletas, cantei-
a situação de risco diagnosticada. As tipo-
ros pluviais, jardins de chuva e pavimentos
logias básicas de intervenções e ações são:
permeáveis;

▸ Identificar necessidades de implantação ▸ Serviço de limpeza e recuperação de en-


de barreiras acústicas vegetadas e articular tulhos e lixos. Recuperação ou limpeza de
comunidade e poder público para discutir sistemas de drenagem, esgoto e acessos.
sua implementação. Inclui também limpeza de canais de dre-
nagem. São serviços manuais ou que se
utilizam de maquinário de pequeno porte;
ÁREAS DE RISCO/GESTÃO DE RISCO
▸ Obras de drenagem superficial, proteção
O resultado do diagnóstico possibilita a vegetal com gramíneas e desmonte de blo-
sistematização de referenciais técnicos e cos e matacões. Incluem implantação de
gerenciais para a implementação de inter- canaletas, escadas hidráulicas, plantação
venções estruturais e ações não estruturais de cobertura vegetal adequada. Predomínio
para controle, redução e erradicação dos de serviços simples, manuais ou com auxílio
riscos. As áreas identificadas com situações de máquinas de pequeno porte;
de riscos são setorizadas, possibilitando
▸ Obras de urbanização agregadas a dre-
executar ações de qualificação ambiental
nagem e esgotamento sanitário. Pequenas
de acordo com os problemas identificados
obras de urbanização como aberturas de
em cada situação, porém sempre integrados
acessos, melhoria de passagens e vielas e
a projetos de maior amplitude.
becos, execução de passarelas, urbanização

177
Guia de Urbanismo Social

de áreas visando à implantação de rede de habitabilidade dos domicílios, considerando


drenagem e esgotamento sanitário; a correlação entre condições ambientais,
moradia e saúde.
▸ Estruturas de contenção de pequeno por-
te. Implantação de estruturas como gabiões
▸ Requalificação do ambiente construído —
e muros de concreto;
que implica, via de regra, a atuação do Poder
▸ Estruturas de contenção de médio e gran- Público para intervir na configuração do
de porte e que envolvem obras de contenção assentamento ou ambiente construído —
ativas e passivas, como muros de gravidade, buscando adequar a forma de parcelamento,
cortinas atirantadas, entre outros; a densidade construtiva (garantindo vãos e
recuos para iluminação e ventilação) e a pre-
▸ Obras de terraplanagem de médio e gran-
visão de espaços livres. Por vezes, esse tipo
de porte com auxílio de maquinário;
de intervenção pode implicar a necessidade
▸ Remoções de edificações, que podem de remoções ou reparcelamento. Para tanto,
ser definitivas ou não. Priorizar, sempre que é fundamental prever, desde o planejamento,
possível, realocamentos dentro da própria os recursos para garantir o atendimento habi-
área ocupada e em local seguro. tacional para eventuais moradias removidas,
ou seja, que cada morador tenha garantido
o direito à moradia, tendo acesso a um novo
AMBIENTE CONSTRUÍDO E
domicílio, sempre que possível no mesmo
HABITABILIDADE
assentamento ou em localidade próxima;

Como mencionado anteriormente10, o Am- ▸ Melhorias habitacionais — que contem-


biente Construído — casas e demais cons- plem a qualificação das moradias, intervindo
truções no território — é fator relevante para em problemas relacionados à: habitabilidade
as condições ambientais dos assentamentos. e salubridade —iluminação e ventilação,
Tal fator influencia também as condições de eliminação de situações de umidade etc.;
habitabilidade, tema que toma maior emer- densidade da moradia — relacionada ao nú-
gência a partir do contexto da pandemia de mero de pessoas por domicílio, prevendo-se
covid-19, não desconsiderando outras enfer- ampliações, quando possível ou viável; e
midades que sistematicamente acometem segurança estrutural — de modo a solucio-
populações residentes em assentamentos nar patologias construtivas — eliminação de
vulneráveis ou precários. riscos de acidentes e injúria.

É importante também observar alternativas


Assim, é importante prever alternativas
de ações sistêmicas e locais que se relacio-
para intervir no Ambiente Construído, bem
nam à qualificação do Ambiente Construído,
como para melhorias nas condições de
por meio de mutirões, manutenção de espa-
ços públicos e plantio de hortas, entre outros.
10 Ver o tópico 6.2_ Diagnóstico Ambiental.

178
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

SUSTENTABILIDADE DAS INTERVENÇÕES


E DO TERRITÓRIO

A sustentabilidade das intervenções e das transformações al-


cançadas no território demanda construir e manter um trabalho
abrangente de mobilização e engajamento da comunidade residente,
compreendida como agente protagonista do processo de produção
do espaço urbano na escala intraurbana das áreas vulneráveis.

Nesse sentido, a Educação Ambiental refletida pela sociedade


representa um dos temas transversais mais importantes das polí-
ticas, dos programas e dos investimentos nas áreas de habitação,
mobilidade e saneamento ambiental. Mais recentemente, vem sendo
percebida como importante instrumento nas ações de prevenção
e mitigação dos desastres ambientais.

As ações do trabalho social no eixo Educação Ambiental devem


ser desenvolvidas em todas as fases do processo de intervenção,
desde a escuta e planejamento até a execução e consolidação
das transformações produzidas. Assim, as ações com vistas ao
alcance da sustentabilidade visam promover mudanças de atitude
em relação ao meio ambiente, ao patrimônio e à vida saudável,
fortalecendo a percepção crítica da população sobre os aspectos
que influenciam sua qualidade de vida, além de refletir sobre os
fatores sociais, políticos, culturais e econômicos que determinam
sua realidade, tornando possível alcançar a referida sustentabili-
dade ambiental e social da intervenção. O envolvimento de vários
segmentos sociais, como moradores, lideranças comunitárias,
professores, gestores municipais, conselheiros, entre outros,
é fator determinante para o sucesso das ações, promovendo a
consolidação e a consistência dos investimentos.

O trabalho a ser desenvolvido deve ser capaz de subsidiar, sensi-


bilizar e orientar a população sobre a importância das questões
ambientais e patrimoniais presentes no seu bairro e na moradia,
através das informações teóricas e práticas disponibilizadas e
das vivenciadas pela população, que sirvam de ferramentas para
apropriação de novos conhecimentos e estimulem atitudes positivas

179
Guia de Urbanismo Social

e comportamentos ativos em relação à conservação, manutenção


e recuperação de seu ambiente de vivência e dos aspectos que
influenciam sua qualidade de vida.

A sustentabilidade das intervenções prevê uma abordagem sistêmi-


ca, portanto, a Educação Ambiental deve ser inserida não somente
no pós-obra, mas em todas as fases da intervenção (pré, durante e
pós-intervenção/obra). Dessa forma, a estratégia de mobilização,
que se inicia no planejamento do projeto e/ou intervenção, deve
abranger, para além de observar as discussões mais diretamente
relacionadas às questões ambientais, aspectos relacionados à
autoestima dos moradores, do fomento ao trabalho coletivo, e, em
especial, a articulação ou associação com dinâmicas de geração
de trabalho e renda.

A qualificação do Espaço Construído, bem como sua manutenção,


deve estar associada com questões ambientais, de saúde e habi-
tabilidade e estratégias de subsistência, contemplando iniciativas
como manutenção de espaços comuns, cultivo de hortas urbanas
e preparo de alimentos para comercialização, coleta e triagem de
materiais para reciclagem. A partir dessas iniciativas pode-se, por
exemplo, oportunizar e potencializar o fomento à visitação dos
espaços e da valorização da história e ações locais por meio de
Turismo de Base Comunitária, entre outros.

Em síntese, no fomento à Educação Ambiental junto aos moradores


e demais atores (stakeholders) locais pode-se articular a realização
de atividades nos seguintes temas:

Sensibilização sobre meio ambiente: construção de conhecimentos,


atitudes e habilidades voltadas à preservação do meio ambiente e
levantamento de interesse sobre a temática.

Manejo dos espaços verdes e comuns: incentivo e desenvolvimento


de práticas ambientais relacionadas ao manejo (do solo, plantio
e manutenção) e melhorias nos espaços livres do bairro (áreas
verdes e comuns) e entorno.

180
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

Resíduos sólidos:
▸ Coleta seletiva: sensibilização e apoio à implementação de
coleta seletiva e óleo de cozinha, bem como aproveitamento de
material orgânico para compostagem, e material reciclável para
arte-artesanato;

▸ Catadores de materiais recicláveis: articulação/apoio a processos


de organização e capacitação de catadores de materiais recicláveis
e/ou de famílias que sobrevivem em lixão, quando da sua existência
na área de intervenção;

Saneamento Básico (água e esgotos): orientação sobre o uso


racional de água e do sistema de esgotamento sanitário (rede e
equipamentos), e da tarifa social vinculada a esses serviços;

Segurança Alimentar e Nutricional: sensibilização da comunidade


para o consumo de alimentação saudável, redução das despesas por
meio do aproveitamento integral e produção e preparo de alimentos;

Formação de Multiplicadores/Agentes/Influenciadores: identi-


ficação e formação de agentes ambientais, e, quando oportuno,
constituição e formação de comissão de conservação, manutenção
e melhorias dos espaços verdes e públicos.

181
Guia de Urbanismo Social

6.4_
RESILIÊNCIA URBANA E JUSTIÇA
AMBIENTAL EM TERRITÓRIOS
PERIFÉRICOS

O debate acerca da resiliência urbana e da justiça ambiental


torna-se cada vez mais relevante e urgente, sobretudo quando se
considera o contexto de precariedade das cidades brasileiras, com
suas enormes desigualdades socioespaciais e exposição a riscos
socioambientais crescentes11.

Nas cidades do século XXI os desastres ambientais e as pandemias


evidenciam as precárias condições de vida de grande parte da
população do planeta. A crescente destruição da natureza, com o
consumo exacerbado e a poluição da atmosfera, tem impactado
o meio ambiente com inundações frequentes, secas severas,
incêndios extensivos, deslizamentos de terra, dentre outros danos
prejudiciais ao hábitat humano. O 6º Relatório de Avaliação do IPCC
(2021) indica que o agravamento desses desastres corresponde à
efetivação das previsões de alterações nos regimes de precipitações
modelados ao longo da última década, assim como a elevação das
temperaturas médias. Os impactos dos eventos extremos atingem
com maior rigor as populações mais pobres, distribuídas em regiões
que se pautam pela precariedade dos assentamentos onde vivem.

Nesse cenário emergem os temas da resiliência urbana e justiça


ambiental, entendidos aqui como conceitos indissociáveis que
remetem ao enfrentamento de algumas das principais proble-
máticas da população das cidades na contemporaneidade, em
especial aquelas que ocupam territórios periféricos e áreas de
fragilidade ambiental.

O modelo de urbanização disperso e extensivo das cidades brasi-


leiras resulta em assimetrias socioespaciais que se expressam, na
maioria das vezes, no avanço ilegal e predatório da ocupação urbana

11 Pesquisas : (i) O papel das redes de infraestrutura na redução das vulnerabilidades


das cidades brasileiras às mudanças climáticas (Renato Anelli, apoio do CNPq e Fun-
do MackPesquisa); (ii) Planos e projetos urbanos para cidades brasileiras: desafios da
resiliência em áreas protegidas (Angélica Alvim, Bolsa Produtividade CNPq).

182
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

sobre áreas protegidas, fundamentais à garantia da sustentabilidade


da sociedade12. Para Anelli13, os esforços do planejamento urbano
para reverter esse modelo de urbanização dispersa seguiram o
conceito de cidade compacta, buscando o maior adensamento
das áreas estruturadas. Nesse sentido, destaca-se o Plano Diretor
Estratégico de São Paulo, no qual o adensamento foi concebido
associado às linhas de transporte público de alta capacidade,
constituindo uma malha que deveria reestruturar o crescimento
urbano, revertendo a tendência à dispersão. Estudos recentes
avaliam o impacto desse novo modelo urbano na produção de ondas
de calor e na distribuição de chuvas, trazendo subsídios ainda não
incorporados na revisão dos instrumentos de planejamento urbano
e em políticas públicas.

As favelas inserem-se em um cenário de crise ambiental, defla-


grando uma série de problemas, incluindo os de caráter social, que
se configuram em grandes desafios para as metrópoles contem-
porâneas. Grande parte dos domicílios situados nas favelas das
cidades brasileiras localizam-se em margens de rios, córregos e
lagos; uma parte situa-se em áreas contaminadas (aterros, lixões
etc.) ou em unidades de conservação, devendo sua permanência
ser objeto de discussão. O número de favelas em áreas de risco
é alto e crescente. A publicação “População em áreas de risco no
Brasil” do IBGE, em parceria com o Cemaden (Centro Nacional de
Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), apresenta números
inéditos sobre o problema, a partir dos dados do Censo de 2010,
mapeados em 872 municípios monitorados pelo próprio Centro. A
população em áreas de risco em tais localidades chegava a 8.270.127
habitantes, que moravam em 2.471.349 domicílios particulares
permanentes. Cerca de 17,8% das pessoas que viviam nas áreas de
risco desses municípios eram idosos ou crianças, os grupos etários
mais vulneráveis; 20,3% moravam em “aglomerados subnormais”
(1,7 milhão de pessoas), em 19,9% de domicílios (total de 490.849).

12 ALVIM, A. T. B.; RÚBIO, V. M. (org.). Sustentabilidade em projetos para urbaniza-


ção de assentamentos precários no Brasil: contexto, dimensões e perspectivas. Barueri:
Manole, 2022.

13 ANELLI, R. L. S. As cidades e o aquecimento global: desafios para o planejamento


urbano, as engenharias e as ciências sociais e básicas. Journal of Urban Technology
and Sustainability, v. 3, edição 1, 2020.

183
Guia de Urbanismo Social

A questão da urbanização em favelas nas cidades brasileiras é


recorrente, com investimentos públicos alocados ao longo de
décadas. Entretanto, as intervenções têm sido desarticuladas e
insuficientes, não indicando avanços socioambientais qualitativos
de abrangência coletiva.

Evidencia-se, também, a importância central de uma abordagem


sistêmica sobre a cidade, uma vez que nenhum dos setores da
realidade urbana é dissociável e ações que levam à resiliência
urbana podem contribuir para a redução da desigualdade e para
a ampliação da justiça ambiental

O conceito de resiliência urbana tem ganhado enorme repercussão


em pesquisas ligadas ao urbanismo social, principalmente por sua
inserção no documento Transformando o nosso mundo: A agenda
2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que apresenta os 17
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), com destaque
para o Objetivo 11: Tornar as cidades e os assentamentos humanos
inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.

Para Meerow et al.14, a resiliência urbana é entendida a partir de uma


perspectiva complexa como a capacidade dos sistemas urbanos
de manter ou retornar suas funções após situações de choques e
distúrbios, ou ainda adaptar e transformar os sistemas que limitam
a adaptação atual ou futura. Ao considerar a complexidade dos
sistemas urbanos, os autores apontam que eles são formados
não apenas pela dimensão técnica como também pelas redes
socioecológicas e sociotécnicas em diferentes escalas espaciais
e temporais.

A literatura aponta que a resiliência urbana possui múltiplas di-


mensões. Há quatro centrais e inter-relacionadas que configuram a
construção de resiliência urbana: fluxos metabólicos (e.g., cadeias
de produção, abastecimento e consumo); rede de governança (e.g.,
estruturas institucionais e organizações); dinâmicas sociais (e.g.,

14 MEEROW, S.; NEWELL, J. P.; STULTS, M. Defining urban resilience: a review.


Landscape and Urban Planning, v. 147, p. 38-39, mar. 2016.

184
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

demografia, capital humano e desigualdades); ambiente construído


(e.g, serviços ecossistêmicos nas paisagens urbanas)15.

Essa reflexão é fundamental, pois o debate acerca da resiliência


urbana não pode estar dissociado dos problemas e desigualdades
existentes nos ambientes urbanos. Sendo assim, a construção da
resiliência nas cidades brasileiras não deve assumir uma pers-
pectiva tecnocêntrica e rígida, que reproduz profundas injustiças
ambientais, transferindo as consequências dos desequilíbrios dos
ecossistemas para as comunidades e territórios mais vulneráveis,
como tem sido apontado por diversos autores no debate acerca
da sustentabilidade.

O termo “justiça ambiental” aparece como um conceito aglutina-


dor e mobilizador, por integrar as dimensões ambiental, social e
ética da sustentabilidade e do desenvolvimento, frequentemente
dissociados nos discursos e nas práticas. Justiça ambiental, mais
que uma expressão do campo do direito, assume-se como campo
de reflexão, mobilização e bandeira de luta de diversos sujeitos e
entidades locais, muitos deles afetados por diversos riscos, cuja
participação é essencial para a boa governança16.

Em tal contexto, operam em rede a governança multiescalar (que


articula o local, a região e a nação) e a multissetorial (que articula
as questões setoriais, partes de um único sistema). Trata-se da
implementação de uma cogestão da resiliência, dividida entre
atores locais e de âmbito global, entre público e privado, entre
indivíduos, empresas e governos.

É através do processo participativo e democrático que os gru-


pos mais vulneráveis podem ter voz, colocar suas demandas
e se tornar atores ativos na busca de um equilíbrio de força na

15 RESILIENCE ALLIANCE. Urban resilience research prospectus: a resilience


alliance Initiative for transitioning urban systems towards sustainable futures. USA,
Sweden, Australia, Arizona State University, Stockholm University: Commonwealth
Scientific and Industrial Research Organisation — CSIRO, 2007.

16 ACSELRAD, H. Justiça ambiental: ação coletiva e estratégias argumentativas. In:


ACSELRAD, H.; HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. (org.). Justiça ambiental e cidadania.
Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Ford, 2004.

185
Guia de Urbanismo Social

disputa por territórios em conflitos ambientais. Assim, torna-se


indispensável a implementação de políticas públicas urbanas e
ambientais — integradas às intervenções que promovam a resiliência
urbana de comunidades vulneráveis, por meio de um processo de
governança que valorize a participação da sociedade e, ao mesmo
tempo, incorpore princípios de preservação e de recuperação
ambiental, em prol da justiça ambiental.

186
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

6.5_ PROJETO CAMPO-FAVELA:


UM CASO ESCALAR

Um dos dezessete Objetivos para o Desen- o acesso a alimentos in natura ou minima-


volvimento Sustentável é fome zero e agri- mente processados é raro ou inexistente
cultura sustentável. Esse objetivo visa acabar (desertos alimentares) ou áreas onde há a
com a fome, garantindo acesso a alimentos predominância da venda e distribuição de
seguros e nutritivos em quantidade suficiente produtos altamente processados e ultra-
para todos até 2030. Faz parte do mesmo processados, altamente calóricos e pouco
objetivo dobrar a produtividade e a renda de nutritivos (pântanos alimentares). Garantir o
pequenos produtores de alimentos, incluindo acesso a uma alimentação saudável, segura
os pequenos agricultores familiares. e em quantidade adequada é, ou deveria
ser, uma preocupação de muitos gestores
Alcançar esse objetivo é um grande desafio públicos do país, tendo enorme impacto no
para as grandes cidades brasileiras. Dados sistema de saúde local.
do IBGE mostram que a disponibilidade
domiciliar de alimentos in natura ou minima- Se a ponta consumidora mais vulnerável tem
mente processados vem perdendo espaço dificuldade para acessar alimentos frescos
para alimentos processados e ultraproces- de maior qualidade nutricional, a ponta
sados. Esse movimento é ainda mais forte produtora desses alimentos também tem
em territórios mais vulneráveis, locais onde grande dificuldade para produzir e escoar
a oferta de produtos saudáveis e nutritivos a sua produção. Estima-se que cerca de 70
(frutas, verduras e legumes) é significati- a 80% da alimentação de produtos in natura
vamente menor quando comparada com a do dia a dia das famílias seja proveniente
realidade em bairros mais ricos, reforçando do pequeno produtor familiar.
dessa forma uma forte desigualdade social
e alimentar. Estabelecimentos comerciais e Com a pandemia, as duas pontas frágeis
varejistas existentes nesses locais preferem dessa cadeia sofreram ainda mais. O acesso
trabalhar com produtos processados ou a alimentos frescos ficou ainda mais restrito
ultraprocessados, pois são menos pere- aos moradores de áreas mais vulneráveis
cíveis, não precisam de refrigeração, são das grandes cidades, em especial os mora-
facilmente estocados e, muitas vezes, são dores de favelas. O fechamento de escolas
também mais baratos. e creches impediu que crianças e adoles-
centes tivessem acesso a uma alimentação
Muitas dessas áreas das grandes cidades saudável. Dados da Unicef de 2021 apontam
podem ser consideradas desertos ou pân- que as famílias de baixa renda foram as
tanos alimentares, ou seja, são locais onde que mais sofreram com a queda na renda,

187
Guia de Urbanismo Social

com o aumento da insegurança alimentar de 1.500 pequenos produtores rurais foram


e da ingestão de alimentos não saudáveis beneficiados pelo projeto. O projeto, em uma
ou ultraprocessados. escala menor, continua, com o apoio de uma
empresa de fertilizantes e com a operação
Com o objetivo de ajudar as duas pontas de uma cooperativa de pequenos produtores
frágeis dessa cadeia, surgiu a ideia do familiares. Além disso, algumas associações
Projeto Campo Favela. No campo, havia de moradores de comunidades passaram
produtos sendo jogados fora e produtores a comprar frutas e verduras diretamente
familiares sem renda. Nas favelas, havia de agricultores familiares e a vendê-los a
famílias sem renda ou com pouca renda para preços competitivos.
comprar alimentos, e crianças sem acesso
a uma alimentação saudável. Um grupo de As pesquisas com o objetivo de redesenhar
professores e pesquisadores do Insper se as cadeias de alimentos frescos, propondo
reuniu para desenvolver e executar o projeto modelos alternativos e sustentáveis para
e, com a participação de alunos e de grande atender áreas de baixa renda, também
parte da comunidade do Insper, conseguiram continuam sendo desenvolvidas, e contam
alavancar o projeto, que teve dois grandes com pesquisadores não só do Insper, mas
objetivos: (1) ajudar as famílias do campo também do MIT (Massachusetts Institute
e das favelas nesse período de pandemia, of Technology) e da LSE (London School of
e simultaneamente (2) criar um modelo Economics), contando com financiamento
sustentável que permitisse uma ligação da British Academy.
direta entre produtores e consumidores
das favelas. Com a redução do número de
intermediários, haveria uma diminuição do
desperdício de alimentos, e os produtos
frescos poderiam chegar às famílias de
baixa renda, moradoras de favelas, a um
preço mais baixo, mas ao mesmo tempo re-
munerando de forma justa todos os agentes
envolvidos nessa complexa cadeia.

Como resultado, o projeto Campo-Favela


conseguiu arrecadar cerca de R$ 4 milhões
em doações de pessoas físicas e jurídicas.
Foram mais de um milhão de quilos de ali-
mentos frescos distribuídos gratuitamente
para mais de 130.000 famílias carentes das
favelas de diversas cidades do país. Mais

188
07_
DIMENSÃO SOCIOECONÔMICA E
CULTURAL
7.1_ A dimensão socioeconômica e o
urbanismo social

7.2_ Cultura local

7.3_ Empreendedorismo nos


territórios

7.4_ A coprodução urbana pelas


lentes de iniciativas comunitárias

7.5_ A potência das comunidades


fortalecidas a partir de tecnologia
social e cívica

AUTORES

07.1_ Núcleo de Urbanismo Social;


07.2_ Núcleos de Mulheres e Territórios e
de Urbanismo Social;
07.3_ Marcus A. Y. Salusse, Juliana M.
Mitkiewicz e Luiz F. C. S. Durão (Insper);
07.4_ Marcos L. Rosa (FAU-USP);
07.5_ Ygor Santos Melo e Camila Jordan
(TETO Brasil).
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

7.1_ A DIMENSÃO SOCIOECONÔMICA E O


URBANISMO SOCIAL

Quando nos referimos aos aspectos socioeconômicos e culturais


das favelas, estamos, de modo inevitável, falando das condições de
vida das pessoas e das comunidades que habitam esses territórios.
Tal qualidade de vida passa pela presença e disponibilidade de
serviços públicos atendendo à população local (tais como serviços
de saúde, esporte, lazer, cultura, assistência social, direitos humanos,
abastecimento, segurança alimentar e desenvolvimento econômico),
assim como pelo conhecimento em profundidade do território e de
sua população. Conforme já mencionado no Capítulo 2, na pers-
pectiva do urbanismo social, os principais indicadores que guiam
as intervenção nos territórios devem ser os indicadores sociais e
não apenas os indicadores urbanos e de infraestrutura.

Para o urbanismo social, as intervenções devem ser pensadas e


planejadas para resolver também questões sociais, e não somente
do espaço urbano, em processos colaborativos. Obviamente há uma
relação entre qualidade do espaço urbano e qualidade de vida, mas a
construção e a reformulação desse espaço precisam acompanhar
as características e demandas da população local — lembrando que
o urbanismo social pretende deixar mudanças sociais duradouras
e que empoderem as comunidades, criando um ciclo positivo de
desenvolvimento local. Entregas previamente formatadas sem
construção conjunta com a comunidade podem levar a desperdícios
de recursos valiosos por não corresponderem às necessidades reais
daquele território e de sua população, além de potencialmente não
estimularem um sentimento de apropriação e pertencimento da
comunidade em relação aos produtos ou serviços que estão sendo
entregues.

Por isso, ressalta-se a importância de processos de diagnóstico e


planejamento que sejam participativos e equitativos, refletindo
a rica e potente diversidade social do território de forma inter-
seccional, abarcando todas e todos, mulheres, crianças, idosos,
população LGBTQIA+, migrantes e negro(a)s. É importante incentivar
e buscar de maneira ativa a participação de públicos historicamente

191
Guia de Urbanismo Social

sub-representados em processos decisórios na zona sul da cidade) — que possui forte


e em espaços de representação política. A presença de comunidades indígenas, baixíssi
participação permite que as decisões refli- ma densidade populacional e grandes áreas
tam de forma mais democrática e inclusiva de proteção ambiental —, precisa ou deve
as características de cada território e sua receber exatamente as mesmas políticas
comunidade — suas demandas e potências. públicas que Paraisópolis (também localizada
na região sul), a segunda maior favela da
A construção de políticas públicas e suas cidade e com altíssima densidade demo-
ações para e nas comunidades das favelas gráfica? Conhecer as especificidades dos
devem conciliar as necessidades e deman- territórios é dar visibilidade aos seus prin-
das dos territórios com as características cipais problemas e também reconhecer as
particulares de cada local e o reconheci- potencialidades ali presentes. As soluções
mento dos seus potenciais; ações diversas nem sempre vêm de fora. Muitas vezes elas
nos âmbitos sociais, culturais, educativos, precisam ser reconhecidas e fomentadas
econômico etc. que são desenvolvidas a localmente. Porém, isso só será possível
partir da população local. com um conhecimento profundo e a pro-
dução de dados qualitativos e quantitativos
Saber, por exemplo, o número de crianças sobre os territórios e suas populações, para
e de migrantes, os índices de gravidez pre- que decisões sejam tomadas de maneira
coce e de violência pode mudar o rumo e a informada e deliberada1.
escolha das políticas e programas a serem
priorizados localmente. Apesar de esses O que o urbanismo social também procura
espaços urbanos, de um modo geral, enfren- alcançar é a redução de distâncias geo-
tarem desafios socioeconômicos similares, gráficas, éticas e morais entre as cidades
dado o contexto de exclusão, pobreza e “formal” e “informal”. Busca-se romper com
vulnerabilidade social, é importante ressal- estigmas contra as comunidades das fave-
tar que cada território possui um contexto las, proporcionando espaços para que elas
e uma realidade específica que devem ser possam continuar criando e expressando
conhecidos e considerados. suas culturais locais e também garantindo
acesso a espaços e oportunidades da cidade
Em um país de proporções continentais como como um todo. Em última instância, ao unir
o Brasil, isso fica mais evidente quando olha- as cidades formal e informal, o urbanismo
mos para municípios de diferentes regiões: social almeja que a cidade como um todo
uma comunidade no Rio de Janeiro é igual também possa acessar livremente e sem
ou enfrenta os mesmos problemas de uma
comunidade no Pará? E mesmo dentro de
1 Marsillac e as comunidades indígenas: Extremo
um município do tamanho de São Paulo, Sul de São Paulo: terra indígena, SESC-SP, 2022. E
por exemplo, o distrito de Marsillac (situado também: Sobre as diversas ações da comunidade de
Paraisópolis.

192
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

preconceitos as culturas locais e periféricas. a estigmatização socioespacial. Isso passa


Conectar esses territórios é o primeiro passo por compreender esses territórios como
para uma transformação mais profunda na espaços urbanos que sofreram com uma
cidade e na sociedade. De forma clara, na insuficiência histórica de investimentos do
perspectiva do urbanismo social não se Estado. Também são territórios nos quais
faz uma intervenção para manter a favela se costuma dizer que há pouca presença do
no “gueto” e sim para conectá-la à cidade. Estado quando, na verdade, há uma presença
precária por parte dele — inclusive, recor-
O modo como caracterizamos as favelas rentemente essa presença se dá de forma
ou territórios de vulnerabilidade social violenta e repressiva. Assim, para construir
influencia ou demonstra os preconceitos uma caracterização de maneira mais huma-
em relação a esses territórios e seus mora- nizada com suas peculiaridades resultantes
dores ou os reconhece na sua rica e potente de processos socioeconômicos complexos,
vida comunitária social e cultural. precisamos levar em consideração e ressig-
nificar certos aspectos presentes ali, como:
Se olharmos apenas essas características
sem levar em conta a complexidade e di- ▸ Relações de trabalho marcadas por níveis
versidade na formação e constituição das elevados de subemprego e informalidade;
favelas, acaba-se gerando pressupostos
▸ Apropriação social do território, especial-
centrados em parâmetros negativos, que se
mente para fins de moradia;
baseiam em noções idealizadas de cidades
“normais” versus territórios permeados por ▸ Construções predominantemente carac-
diversas ausências e carências, estimulan- terizadas pela autoconstrução e realizadas
do-se, assim, a perpetuação de estigmas de acordo com os espaços disponíveis no
e preconceitos por não seguirem padrões território;
hegemônicos de certos modelos urbanís-
▸ Indicadores socioeconômicos e ambien-
ticos (muito reproduzidos pelo mercado
tais abaixo da média do verificado na cidade
e pelo Estado). Esses territórios rompem
como um todo;
com o imaginário de “cidade ideal” e nos
confrontam com a realidade da desigual- ▸ Territórios permeados por alto grau de
dade social, da crescente pobreza urbana vulnerabilidade ambiental;
e da segregação socioespacial presente
▸ Elevada densidade habitacional e taxa
em nossas urbes.
de densidade demográfica acima da média;

O Observatório das Favelas, por exemplo, ▸ Forte presença de relações sociais e de vi-
propõe uma outra maneira para caracterizar zinhança, com uma sociabilidade que valoriza
as favelas que congrega aspectos urbanos, os espaços comuns como lugar de encontro;
sociais e políticos e que procura romper com
▸ Alta concentração de negro(a)s e pardo(a)s;
193
Guia de Urbanismo Social

▸ Índices de violência, sobretudo a letal, acima e caracterizar essas comunidades com suas
da média do observado na cidade “formal”. distintas condições. E deve-se buscar reco-
nhecer e valorizar as ações lá existentes,
Ao destacar aspectos sociais, econômicos,
quase sempre desenvolvidas sem apoio ou
políticos e culturais que caracterizam esses
financiamento públicos.
territórios, abrimos espaço para quebrar
concepções negativas e preconceituosas de
▸ Componente social
espaços periféricos e de suas populações.
Entender como está a educação, a primeira
A consideração dos interesses dos benefici- infância, a saúde e a segurança ajuda a
ários ou afetados (por qualquer intervenção construir insumos para a construção de
urbana) é necessária para garantir que um equipamentos que acolham essas neces-
processo de decisão seja justo e democrá- sidades. Trata-se de conhecer os aspectos
tico e não gere injustiças e/ou reproduza sociais e culturais para que os componentes
um processo de dominação por padrões físicos possam abrigar essas relações que
hegemônicos. Uma comunidade informada já existem no território e não desenvolver o
e empoderada também sustenta a manu- projeto primeiro de maneira desconectada.
tenção e continuidade do projeto. Para que São as dinâmicas próprias locais que darão
isso se concretize, podemos articular ações valor aos projetos sendo desenvolvidos.
em termos de quatro componentes cruciais:
▸ Componente econômico
▸ Componente comunicacional
Investigar e buscar entender quais são as
Implementar uma linguagem comum com fortalezas da economia local e como forta-
espaços de troca entre técnicos, gestores lecê-las. Como vinculá-las com a economia
e a comunidade, para que “aprendam a falar da cidade como um todo? Essas economias
a mesma língua”. Construir essa linguagem internas ao território geram e mantêm a eco-
comum proporciona a criação de estratégias nomia local viva e são fontes de valor para
de comunicação mais eficazes. produzir relações econômicas importantes
e positivas com a cidade como um todo. Em
▸ Componente cultural inúmeras favelas do país existem ações de
empreendedorismo local.
Lembrar que nem sempre os projetos são
replicáveis de maneira literal nos territórios.
Portanto, o urbanismo social estimula pro-
Realizar leituras dos territórios a partir dos
jetos que respeitam e integram em seu
valores sociais e culturais da comunidade
desenho as preexistências do território e
é fundamental. Importante também é com-
a cultura local. Assim, é importante levar
preender como os territórios constroem
em consideração e integrar aos projetos de
laços, assim como seus conflitos internos,
urbanização as lógicas urbanas, sociais e

194
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

culturais locais presentes em cada território


ALGUMAS INICIATIVAS DAS
e valorizar os espaços públicos enquanto
E NAS FAVELAS
morada do coletivo dessas comunidades.

CUFA — Central Única das Favelas: é uma


Outro ponto importante é a perspectiva de
organização brasileira reconhecida nacional e
que todo projeto deve estimular a forma-
internacionalmente nos âmbitos político, social,
ção de capacidade instalada no território,
esportivo e cultural que existe há vinte anos;
fortalecendo associações e comunidades
locais. Podemos considerar que a susten- G10 Favelas — é formado por um grupo de
tabilidade do projeto a médio e longo prazo líderes e empreendedores de impacto social
também depende dessa formação para gerar das favelas;
capacidade instalada no território (que per-
Observatório das Favelas: Organização da So-
durará após a implementação e entrega final
ciedade Civil de Interesse Público sediada no
dos projetos). Organizações sociais de base,
Conjunto de Favelas da Maré, dedicada à pro-
associações e lideranças fortalecidas geram
dução de conhecimento e metodologias visando
e mantêm a capacidade instalada nos territó-
incidir em políticas públicas sobre as favelas e
rios de forma a dar continuidade a processos
periferias e promover o direito à cidade.
de cidadania participativa, engajamento no
desenho e planejamento das intervenções Para saber mais sobre os dados e as pesquisas,
e, inclusive, atuando como controle social. ver as referências seguintes:
Essa capacidade instalada também auxilia
▸ Instituto Locomotiva
na construção de uma narrativa cidadã com-
partilhada sobre e nos territórios. ▸ Fundação Tide Setubal — Iniciativas

▸ Dicionário de Favelas Marielle Franco


Além disso, a articulação desses componen-
tes nos projetos de urbanismo social exige ▸ ANF – Agência de Notícias das Favelas
uma mudança de lógica institucional com
▸ Portal Favelas
integração entre as diferentes secretarias
— para saber mais, ver o Capítulo 8. ▸ Digital Favela

195
Guia de Urbanismo Social

7.2_ CULTURA LOCAL

A cidade como lugar de encontro deve propiciar a interação entre


pessoas diferentes, dentro de uma vasta diversidade, presente em
cada indivíduo, e sobretudo na coletividade, pois justamente são
as pessoas que constituem a cidade, e não o contrário. O encontro
é necessário pelas mais diversas razões, tais como para trabalhar,
vender o que se produz, consumir o que foi produzido, para o lazer,
para debater e refletir politicamente, para construir e desconstruir,
entre muitas outras possibilidades. Contudo, sabemos que existe
uma desigualdade explícita em relação à distribuição de equipamen-
tos e atividades culturais e sua acessibilidade dentro do território
da cidade. A política cultural, historicamente, na sua efetivação,
é muitas vezes tratada como objeto de consumo, limitando não
apenas o consumo e acesso como também o reconhecimento dos
mais variados produtos e ações culturais. !
PARA SABER MAIS, VER:

Investir e desenvolver territórios com baixo acesso a equipamentos ▸ Instituto de Estudos


Avançados – USP.
culturais passa por valorizar e reconhecer o potencial cultural pe- Periferias como
riférico, assim como os atores e as organizações locais. É essencial potência.
reconhecer as múltiplas organizações e projetos comunitários que
trabalham com cultura. São territórios que, por diversas razões,
estão apartados dos principais centros culturais das cidades e
possuem uma carência de equipamentos públicos (ou privados)
para atividades dessa natureza. No entanto, são espaços que têm
desenvolvido suas próprias linguagens e produções culturais — na
música, rap, funk, passinho, rodas de samba; nas artes visuais, o
grafite, para citar só duas áreas — que historicamente são pouco
reconhecidas pelo Estado e por quem não está inserido naquele
contexto sociocultural.

O urbanismo social entende a construção simbólica do valor da


cultura como um eixo essencial para a transformação da socie-
dade e do território. A cultura é uma das fortalezas que permitem
aproximar pessoas e deve avançar de modo simultâneo com a

196
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

arquitetura física e a arquitetura social. Trata-se, então, de criar e


fortalecer espaços nos quais a cultura local periférica ou da favela
já presente nos territórios possa se manifestar e crescer. Além
de fortalecer a produção cultural local, é importante estimular e
proporcionar acesso dos moradores dessas comunidades a outros
centros culturais da cidade (facilitando a mobilidade urbana e tor-
nando o custo dos eventos culturais mais acessíveis, por exemplo).
Por fim, promover a ida a esses espaços culturais nas periferias e
favelas por moradores de outras regiões da cidade é uma forma
de estimular a integração do tecido social urbano como um todo,
abrindo oportunidade para romper com preconceitos.

Assim, a cultura local também precisa de estímulos para crescer e


romper com concepções negativas com as quais podem ser asso-
ciadas por preconceitos e superar a negação da cultura específica
produzida nesses territórios. Além da criação de equipamentos
públicos culturais mais próximos das favelas, é importante fortalecer
as entidades e grupos culturais locais via políticas públicas mais
acessíveis. Instrumentos formais de estímulo à cultura (como uma
Lei Rouanet) não dão conta de alcançar grupos menos formalizados.
Uma opção é repensar o desenho de eventos culturais para trans-
formá-los em geradores de inclusão, equidade e oportunidades,
e para que sejam fonte e evidência das novas propostas culturais.

ARTISTAS DA MARÉ – MARÉGRAFIA

A pesquisa “Marégrafia”, desenvolvida pela Redes da Maré, foi realizada


no conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro. Seu objetivo foi romper
a lógica eurocêntrica, branca e rica sobre o que é cultura e arte, reivin-
dicando o reconhecimento da importância da arte e da cultura na favela.
A pesquisa aponta como os artistas vivem e produzem seus trabalhos.
É preciso reunir esforços para que a sociedade entenda e reconheça a
realidade e as potencialidades dos artistas brasileiros.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Instituto de Estudos Avançados — USP. Periferias como potência.

197
Guia de Urbanismo Social

7.3_ EMPREENDEDORISMO NOS


TERRITÓRIOS

Nesta seção serão apresentadas as dimensões socioeconômica


e cultural do urbanismo social, que se manifestam por meio da
atividade empreendedora tradicional e do empreendedorismo social
e cultural nos territórios urbanos e de sua relação com as políticas
públicas e recursos locais. Oferece-se uma análise de iniciativas
em empreendedorismo tradicional, social e cultural que levam
em consideração as características específicas dos territórios,
referências para pensar ações de urbanismo social.

Historicamente, as cidades são palco de disputas no uso do território,


e, assim como em outras economias emergentes, as desigualdades
sociais e níveis de pobreza no Brasil tornam as disputas no uso
dos territórios2 ainda mais presentes. Isso porque, em sociedades
caracterizadas por elevados níveis de desigualdade, as instituições
e infraestrutura existentes podem não ser suficientes para prover
à população o suporte adequado ao desenvolvimento de atividades
econômicas, culturais e sociais. Esses vazios institucionais podem
limitar a participação de estratos da população em mercados
formais e sua intenção de empreender e ter sucesso/impacto
dos negócios desenvolvidos nesses territórios. Em tal contexto,
as ausências demandam esforços adicionais da população para
garantir o exercício de seus direitos e afetam o desenvolvimento
socioeconômico dos territórios.

É importante analisar a dimensão socioeconômica e cultural do


urbanismo social sob a perspectiva dos indivíduos e sua relação
com os elementos social, cultural e comunitário presentes nos
territórios de maior vulnerabilidade social. Sob a perspectiva
individual, o processo empreendedor se inicia a partir de um
determinado conjunto de recursos que são mobilizados e que
determinam as possibilidades, objetivos e oportunidades. Trata-se

2 Ver mais em BARKI, E. et al., U. Em busca do empreendedorismo social inclusivo.


Stanford Social Innovation Review (SSIR), 2022.

198
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

não apenas de recursos financeiros e conhecimento, aspectos que


tradicionalmente são relacionados ao desenvolvimento de atividades
socioeconômicas, mas também das redes de relacionamento dos
indivíduos e de seus aspectos psicológicos, como a confiança para
desenvolver tarefas e atividades desafiadoras, pontos inerentes ao
processo empreendedor. Esses recursos são chamados de “capital”
e são de quatro tipos: financeiro, humano, social e psicológico.

O capital financeiro se refere à quantidade de recursos como


dinheiro, poupança e acesso a crédito dos indivíduos dos territórios
urbanos e está relacionado, em diversas pesquisas, ao bem-estar
e a maiores níveis de satisfação e felicidade dos empreendedo-
res. Por sua vez, a escassez de recursos está associada a altos
níveis de estresse desses indivíduos, uma vez que as atividades
socioeconômicas desenvolvidas contribuem diretamente para a
subsistência de suas famílias. Como se trata de um recurso central
para a dimensão socioeconômica, é essencial que se desenvolvam
políticas e projetos de acesso a recursos financeiros que sirvam
de apoio à criação e desenvolvimento de negócios.

Por sua vez, o capital humano refere-se ao conhecimento formal e


informal adquirido ao longo da vida e se traduz por meio de habili-
dades para desenvolver atividades que possam gerar valor, seja ele
econômico, social ou cultural. Iniciativas de urbanismo social devem
considerar maneiras de gerar acesso a conhecimentos que gerem
valor para o entorno, além de incorporar o próprio conhecimento
das comunidades locais.

Também é importante considerar o capital social dos empreende-


dores, ou seja, as redes de relacionamento que esses indivíduos
podem acessar e mobilizar através de laços pessoais fortes e
fracos — homogêneos e heterogêneos. Elas permitem aos indivíduos
acessar informações e recursos de outras pessoas e redes, que
são relevantes para o sucesso das iniciativas empreendedoras,
especialmente em ambientes carentes de sistemas de apoio.

Por fim, iniciativas de empreendedorismo precisam considerar o


capital psicológico dos indivíduos, seu estado de confiança para

199
Guia de Urbanismo Social

assumir tarefas desafiadoras, otimismo com relação ao sucesso


atual e futuro da organização, perseverança, redirecionamentos
quando necessário e resiliência3. O capital psicológico influencia
positivamente o bem-estar e a satisfação com relação às suas ini-
ciativas e impacta todo o processo empreendedor, da identificação
de oportunidades à promoção de inovações.

É a partir desses recursos, no sentido amplo, que importantes ações


emergem nas diversas comunidades. Essas conexões com suas redes
de relacionamento permitem aos indivíduos preencher e superar
vazios institucionais que limitam a atividade empreendedora e que
geram valor financeiro, cultural e social para suas comunidades.

Da interação entre esses dois elementos, recursos individuais e


ambiente institucional, é que o urbanismo social deve ser pensado,
especificamente em modos de promover as iniciativas individuais por
meio do desenvolvimento das infraestrutura e ambiente favorável
às atividades culturais, sociais e de negócios.

FEIRAS DE EMPREENDEDORISMO NEGRO E


DAS FAVELAS

Feira Preta — “Considerado hoje o maior festival afro da América Latina,


a Feira Preta nasceu em 2002 como uma feira para produtos de empreen-
dedores negros”, com foco em empreendedorismo, tecnologia, literatura,
música, artes digitais e o que há de mais urgente e futurista nas reflexões
da existência preta;

ExpoFavela — “A Expo Favela é uma feira de negócios cujos expositores


são empreendedores e startups da favela. O objetivo é dar visibilidade
para essas iniciativas e, assim, promover um palco para esee encontro
com investidores que possam acelerar estes empreendimentos”.

3 Para saber mais, veja SARASVATHY, S. D. What makes entrepreneurs entrepre-


neurial?, SSRN, 2021.
200
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

EXPERIÊNCIAS E INICIATIVAS DE
EMPREENDEDORISMO EM FAVELAS

FAVELAR — Desenvolve projetos de engenharia, arquitetura e urbanismo


social, executando reformas e integrando soluções sustentáveis, em
habitações de favelas e comunidades periféricas;

Moradigna — Negócio social que reforma casas em situação de insa-


lubridade, unindo a opção de “ter uma casa bonita mas também um
ambiente saudável e longe de doenças que o mofo, a umidade e outros
fatores podem causar”;

Be.Sun — Realiza a logística reversa de materiais de construção novos,


seminovos e usados qualificados para reúso. Destina-os à venda com preço
acessível a todos. Parte do lucro é destinada, por meio de doações, às
instituições filantrópicas apoiadas ou organizações parceiras de incentivo
ao desenvolvimento sustentável local;

Coletando — Primeira green fintech do mundo a disponibilizar pontos


móveis, promove uma economia circular ecológica, trocando lixo por
dinheiro em comunidades vulneráveis.

201
Guia de Urbanismo Social

7.4_ A COPRODUÇÃO URBANA


PELAS LENTES DE INICIATIVAS
COMUNITÁRIAS

Recentemente, processos auto-organizados que atualizam as maneiras


de uso de espaços subutilizados nas cidades, especialmente nas
periferias, têm ganhado visibilidade, denunciando a desigualdade,
a exclusão, o impacto ambiental e a precariedade urbana. Trata-se
de práticas relacionadas à geração de emprego e renda, à melhoria
da qualidade do espaço, a formas de expressão de grupos margina-
lizados por meio da arte, cultura e educação. Essas práticas seguem
demandas e agendas ligadas às comunidades e movimentos locali-
zados. Manifestam desejos de sujeitos concretos, expressando uma
diversidade de modos de lidar com o espaço cotidiano que são distintas
daquelas dominantes. São diversas formas de produção sociocultural
na cidade que demandam o reconhecimento e a afirmação de sujeitos
e territórios no contexto de disputa sobre o projeto e as ideias que
definem o urbano.

Essa miríade de iniciativas projeta um imaginário urbano e amplia o


debate sobre a coprodução dos espaços das cidades. Sua ação qua-
lifica o espaço a partir de ações diretas, apontando para maneiras de
democratizar processos de decisão e produção da cidade, em resposta
a diversas formas de exclusão. Apesar das relações limitadas, mas, em
outros casos, também por causa de parcerias saudáveis com governos
municipais, há inúmeros exemplos exitosos da participação ativa da
sociedade civil na construção e qualificação da cidade.

Politicamente, são experiências fundamentais para revelar demandas


reais e tornar legíveis problemas relacionados às políticas públicas: um
pré-requisito para se mover adiante. Socialmente, são atos localizados
na escala humana, buscando providenciar serviços e qualidades
necessários para a vida cotidiana. Espacialmente, sua ação revela as
limitações de um modelo abstrato e prescritivo de desenho e plane-
jamento urbano que impôs de modo homogêneo espaços genéricos
à cidade como um todo. Os espaços que ocupam revelam novos
campos de ação em que são experimentadas práticas especializadas.

202
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

Nessas experiências, a ideia de coprodução inclui questões relevantes


sobre como reconhecer um problema, desvelar potencial, inspirar
soluções e desenvolver respostas programáticas. Envolve também
questões de agência e sustentabilidade em relação à forma de
implementação, gerenciamento e manutenção de serviços, espaços
e infraestruturas urbanas.

THRIVE, CIDADE DO CABO, ÁFRICA DO SUL

Criada em 2009, a Thrive — que em inglês significa crescer, prosperar — é uma organização mul-
tifacetada que se dedica a iniciativas relacionadas à reciclagem e ao gerenciamento de resíduos.
Operando a partir de uma instalação de resíduos urbanos na fronteira entre um assentamento
informal (Imizamo Yethu) e condomínios de alto padrão (Hout Bay), sua localização escancara a
desigualdade existente na paisagem pós-apartheid na Cidade do Cabo e evidencia um forte desejo
comum de mudança. É gerida pela cooperativa comunitária de reciclagem Hout Bay Recycling
(HBR), contemplada pela licitação governamental para reciclagem na área. Trabalhando com
materiais descartados, onze membros recuperam itens reutilizáveis, além de classificar e vender
materiais recicláveis.

De maneira adicional a esse escopo básico de trabalho com reciclagem, a ação do grupo criou
frentes de inovação: o TrashBack é um novo empreendimento social que consiste em um programa
de reciclagem baseado em incentivos, no qual cerca de 500 membros da comunidade adjacente são
recompensados por trazer materiais recicláveis para a HBR. As recompensas incluem vales para uma
rede de lojas e serviços da comunidade, fortalecendo a economia local. Sua ação também aumenta
a conscientização sobre o desperdício por meio de atividades escolares, apresentações e contatos
com a mídia local. Aparas descartadas como resíduos de jardinagem florescem em jardineiras feitas
de velhas telhas e em jardins cercados por pedras e pneus pintados, irrigados por um sistema de
mangueiras reutilizadas. Essa prática de jardinagem se espalhou pelos espaços subutilizados nos
terrenos vizinhos, com impacto na qualidade do espaço urbano em que ocorre. As atividades no
local se fortalecem mutuamente ao demonstrar a possibilidade de verdejar uma paisagem árida,
gerar renda e fortalecer a economia local junto à iniciativa de cashback capilarizada na comunidade.

203
Guia de Urbanismo Social

CONSELHO COMUNITÁRIO DE MIRAVALLE,


CIDADE DO MÉXICO

Dentro dos limites da Cidade do México e no topo de uma colina com


vista para a paisagem urbana metropolitana, Miravalle é um bairro de
Iztapalapa construído no final dos anos 1980 em antigas terras agrícolas.
Por décadas, o assentamento foi caracterizado pela falta de infraestru-
tura urbana e insegurança. Desde 2006, diferentes organizações locais
se reuniram em um conselho comunitário com o objetivo de melhorar a
qualidade urbana do bairro. Ações iniciais conquistaram junto ao governo
serviços de infraestrutura básica como água, esgoto, arruamento e ilumi-
nação pública. Na sequência, o projeto se consolidou buscando criar uma
rede de espaços recreativos e culturais seguros para crianças e jovens,
articulados a um projeto focado na sustentabilidade no manejo da água
e dos recursos naturais locais.

Como resultado, espaços abandonados foram transformados em espaços


públicos, dispostos em uma área aberta com uma grande variedade de
instalações e programas. Eles incluem uma biblioteca, um centro de treina-
mento digital, uma sala para oficinas, um refeitório comunitário que atende
trezentas pessoas, um centro de saúde, uma distribuidora subsidiada de
leite e duas arenas abertas usadas para diferentes atividades culturais e
recreativas. Adjacente a uma reserva natural, a comunidade utiliza áreas
fronteiriças para atividades produtivas e educacionais, desenvolvendo o
manejo sustentável por meio do cultivo de alimentos e da instalação de
um centro de reciclagem que processa toneladas de resíduos plásticos,
além de empregar trinta jovens da comunidade. Essa rede de espaços
configura um limite claro e permeável entre o espaço construído e a reserva
ecológica, viabilizando uma relação mutuamente benéfica.

A rede de cooperação criada entre as partes interessadas locais, academia,


governo e organizações civis vem fomentando um processo de trans-
formação local que figura como um modelo de reativação sociocultural
para outras comunidades urbanas marginalizadas na Cidade do México.

204
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

As formas de coprodução que caracterizam essas práticas locais


podem servir para avançar na agenda da justiça social e sustenta-
bilidade, na medida em que oferecem alternativas às estruturas
que reproduzem desigualdade, contribuindo para a construção
de outros imaginários desdobrados do fazer-saber local. Esse
entendimento expande a definição de serviços urbanos básicos
oferecidos pelo governo, para incluir o papel de cidadãos organi-
zados no mapeamento e reivindicação de outras demandas, nos
processos de decisão e manutenção dos espaços coletivos. Nesse
sentido, essas práticas podem informar modos de engajamento
mutuamente relevantes à arquitetura e planejamento urbano, e

!
à ação de movimentos e organizações para encontrar formas de
ação localizadas, com base nas experiências do lugar.
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Marcos Rosa.
Urbanismo feito à mão,
2013.

205
Guia de Urbanismo Social

7.5_
A POTÊNCIA DAS COMUNIDADES
FORTALECIDAS A PARTIR DE
TECNOLOGIA SOCIAL E CÍVICA

Dentre as principais contribuições da TETO Brasil à atuação em


assentamentos vulneráveis, como no caso da Favorita, em Curitiba,
está seu modelo de intervenção baseado na Mesa de Trabalho,
tecnologia social que busca estimular as capacidades comunitá-
rias de identidade, organização, participação e trabalho em rede.
Ao longo dos mais de 25 anos de experiência da TETO Brasil na
América Latina trabalhando lado a lado com as comunidades, per-
cebemos como crucial que as primeiras ações e projetos com os
territórios sejam ágeis, baratos, simples e com impacto concreto
e imediato, pois assim são fortalecidos laços e interesses que se
revelam fundamentais na execução de iniciativas futuras de maior
complexidade. A construção da confiança se dá majoritariamente
pelo contato próximo e contínuo, a divisão das responsabilidades
e a entrega do que foi acordado de maneira coletiva. Os projetos
desenvolvidos entre a TETO Brasil e as comunidades sempre têm
como objetivo final o fortalecimento das capacidades comunitárias:
identidade, organização, participação e trabalho em rede.

Dentro dos aprendizados da TETO Brasil com as Mesas de Trabalho


está a constante disposição para resolução de crises e suporte
às comunidades em momentos de dificuldade, tendo em vista
a frequência dos ataques e outras dinâmicas, pois a partir do
fortalecimento da capacidade de resistência e luta dos territórios
está justamente uma das chaves importantes da tecnologia social
Mesa de Trabalho.

Entende-se que esse fortalecimento de capacidades possibilitará,


em seu devido tempo, que os próprios moradores das comunida-
des ganhem autonomia para aplicar instrumentos de gestão na
execução de projetos comunitários, além de ampliar suas noções
de cidadania e capacidade de reivindicação política, em face da
violação de seus direitos. A experiência da comunidade Favorita,
na capital paranaense, compartilha diferentes características em

206
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

comum com outros assentamentos populares. O contexto de vulne-


rabilidade aglutina diferentes dinâmicas, as quais influenciam mais
ou menos no dia a dia das lideranças comunitárias e organizações
que trabalham em conjunto com os territórios. Nada disso teria
sido possível sem os desafios inerentes a processos comunitários
como momentos de baixa participação de moradores, de conflitos
com a equipe de voluntariado da TETO Brasil, de dificuldades com
o poder público e a iniciativa privada, dentre outros. Entretanto, a
robustez da tecnologia social da Mesa de Trabalho permitiu que
mesmo diante os desafios o esforço conjunto impactasse de forma
concreta as comunidades e, estimulando o desenvolvimento de
lideranças e projetos — que fazem a diferença dentro e fora das
fronteiras comunitárias.

207
Guia de Urbanismo Social

MESA DE TRABALHO: para a comunidade. O questionário possui mais de


A EXPERIÊNCIA DA 190 questões, e pode ser aplicado a todos ou em
COMUNIDADE FAVORITA uma amostra representativa de moradores das
(CURITIBA, PR) comunidades7. Após a aplicação, os dados de 2018
foram sistematizados e devolvidos à comunidade
conforme exemplo, juntamente com o mapeamento
A comunidade Favorita está há dezesseis anos
do território8.
localizada no município de Araucária, na região
metropolitana de Curitiba. De acordo com dados da Os relatórios quantitativos são fundamentais
TETO Brasil4 — que trabalha há mais de cinco anos para compreender aspectos gerais do território
com o território — a comunidade possui cerca de e facilitar, na sequência, processos qualitativos
715 domicílios e aproximadamente 2.145 pessoas que utilizam os dados em debates e deliberações
moradoras no total .5
coletivas na Mesa de Trabalho. A TETO aprendeu
que só é possível compreender com profundidade
Com o interesse comunitário validado durante uma
determinado dado a partir de espaços ativos de tro-
assembleia de abertura e alinhado com os objetivos
ca entre as pessoas envolvidas. E é justamente em
institucionais, em março de 2018 foi estabelecida
espaços como esse que o processo de diagnóstico
a Mesa de Trabalho (MdT) na comunidade Favori-
qualitativo da TETO Brasil, conhecido como Olhar
ta — composta por moradore(a)s da comunidade
Participativo, é aplicado e serve para identificar
e voluntário(a)s para estruturar em conjunto
oportunidades de projetos comunitários e ações
projetos e ações voltados ao fortalecimento das
que dialoguem com a realidade local representada
capacidades comunitárias. Em seguida à criação
pelos dados e cartografias. Assim, seguindo essas
da Mesa de Trabalho, a fase de diagnósticos foi o
metodologias e analisando os dados levantados em
primeiro passo para que as partes envolvidas, so-
associação com uma leitura da conjuntura realizada
bretudo a comunidade, conheçam seus potenciais
pela TETO Brasil e a comunidade, o primeiro projeto
e desafios, a fim de construir soluções coletivas
deliberado na Mesa de Trabalho foi uma Oficina
capazes de responder com o vigor necessário à
de Regularização Fundiária e Reintegração de
ampla e escancarada violação de direitos sofrida
Posse9 — articulada com apoio de organizações e
pelo território. A ação Escutando Comunidades
(ECO)6 reuniu informações quantitativas sobre e
7 Na ECO de 2018 foi mapeado e considerado um
universo amostral de 398 casas, excluídos os imó-
veis desocupados constatados nos três dias de co-
leta amostral (em número de 25). Dentro do universo
4 A TETO Brasil atua há quinze anos no país, mobili- amostral foram aplicadas 280 enquetes, das quais 261
zando voluntários e voluntárias para atuar lado a lado completas e 19 recusadas (o equivalente a 70,35% da
de moradores e moradoras em comunidades precárias comunidade). Devido à limitação de tempo estabeleci-
de diferentes estados. da para a execução do evento, 143 casas do universo
não foram visitadas.
5 Estimativas do Relatório Escutando Comunidades
(ECO). TETO Brasil, setembro de 2022. A margem de 8 Veja aqui o relatório completo.
erro é de 3,6% para mais ou para menos.
9 Oficinas que a TETO Brasil aplica regularmen-
6 TETO Brasil. Documento Interno — Relatório Final te nas comunidades onde atua, conhecidas também
Escutando Comunidades (ECO). Favorita, Araucária, como Oficinas de Empoderamento Legal ou Oficina de
Paraná, 2018. Direitos.

208
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

profissionais parceiros, consistindo em dinâmicas, cooperação e capacidade de tomada de decisão


exposições, palestras e diálogos coletivos sobre a de maneira coletiva, tiveram evidente crescimento,
situação fundiária da comunidade, o zoneamento, e isso refletiu na legitimidade que as lideranças e
órgãos públicos de apoio ao tema (onde pedir associação de moradores ganharam nos últimos
ajuda) e alternativas de organização comunitária. dois anos. Segundo dados da TETO Brasil, em 2018
Hoje, a Mesa de Trabalho da Favorita continua apenas um terço (33%) dos moradores declarava
atuante no processo de reintegração de posse que havia pessoas representando a comunidade
e desenvolveu ações emergenciais para atender e 37,2% declarava que existia uma associação de
as famílias que vivem na comunidade durante a moradores, enquanto em 2022 70,41% declaram
pandemia de covid-19, entre outros projetos locais. que havia pessoas representando a comunidade
e 91,72% que existia uma associação de morado-
A tecnologia social e cívica Mesa de Trabalho teve
res. Por fim, a categoria “trabalho em rede” foi
impactos relevantes nesse processo de fortaleci-
amplamente fortalecida, tendo a comunidade
mento das capacidades da comunidade como pro-
autogerido parcerias em diferentes frentes (com
tagonista. Segundo dados do Mapa de Direitos de
o Poder Público, iniciativa privada, terceiro setor,
2022, 73,96% dos moradores não planejam sair da
pessoas físicas, universidades etc.), as quais tive-
comunidade, 63,02% declaram que a comunidade
ram resultados concretos refletidos em projetos
melhorou em relação aos dois últimos anos e 78,7%
de infraestrutura, moradia, ações filantrópicas,
acreditam que irá melhorar nos próximos dois anos.
desenvolvimento local e resposta à pandemia.
Aspectos relacionados às categorias “organiza-
ção” e “participação”, tais como objetivo comum,

209
08_
TÓPICOS EM POLÍTICAS
PÚBLICAS
8.1_ Urbanismo social como um
tópico de políticas públicas

8.2_ Políticas públicas integradas


em territórios vulneráveis

8.3_ O social do urbanismo social de


Medellín

AUTORES

8.1_ Lucas Bravo Rosin (EACH/USP);


8.2_ Ricardo Henriques (Instituto Unibanco);
8.3_ Jorge Melguizo (Medellín).
Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

8.1_ URBANISMO SOCIAL COMO


TÓPICO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Embora seja componente central da vida social, o conceito de políticas


públicas é pouco consolidado no entendimento coletivo. Partindo da
definição consagrada de Jobert e Muller (1987)1, as políticas públicas
são uma expressão do “Estado em ação”. Avançando nesse enten-
dimento, chega-se à ideia de que a inação também é uma escolha,
explícita ou implícita. Em outras palavras, toda e qualquer ação,
ou decisão sobre não agir, que verse sobre regramentos coletivos,
passa pela tutela do Estado.

Nessa linha, é possível dizer que planejar a cidade é, inexoravelmente,


um tema de políticas públicas. Seja com mais ou menos presença
direta do Estado, é impossível pensar o planejamento urbano de
maneira dissociada da organização formal da vida social coletiva. Ao
fim e ao cabo, o urbanismo serve, justamente, para promover o melhor
enquadramento e distribuição do uso do espaço, público e privado.

De modo amplo, podemos dizer que o conceito moderno de planeja-


mento urbano é “parente” histórico do conceito de políticas públicas.
Ambos se consolidaram ao longo do século XIX, na medida em que
a noção de que existem males coletivos que atingem a sociedade
de forma geral ganhou espaço no entendimento dos tomadores de
decisão. Trata-se de conceitos contemporâneos, que partem de um
pressuposto comum, determinante para entender o desenvolvimento
da vida coletiva: a ideia de interdependência social, ou, em outras
palavras, aceitar e lidar com a necessidade — inevitável — de coexistir
socialmente.

A gênese2 do Estado de bem-estar social está ancorada na percepção


dos efeitos negativos — e abrangentes — gerados pela desigual-
dade social. Políticas sanitárias e de atenção à pobreza ganharam

1 MULLER, Pierre e JOBERT, Bruno. L’État en action. Politiques publiques e corpora-


tismes, Paris, Presses Universitaires de France, 1987.

2 SWAAN, Abram de. The sociogenesis of the Welfare State: by way of introduction.
Amsterdams Sociologisch Tijdschrift, v. 13, n. 4, p. 579-596, 1987

211
Guia de Urbanismo Social

destaque na Inglaterra vitoriana, com o avanço da industrialização


e da transição do campo para a cidade. A falta de regras gerava um
grande acúmulo de desigualdades e desumanidades, expressas
em epidemias e problemas de segurança pública que atingiam a
sociedade como um todo. De maneira semelhante, a gênese do que
hoje se entende como planejamento urbano ganhou notoriedade com
as reformas promovidas por Haussmann, administrador da cidade de
Paris em meados do século XIX. O planejamento seria motivado pelo
aumento significativo do adensamento urbano e, consequentemente,
o surgimento de problemas compartilhados por diferentes classes
sociais, como o mau cheiro das ruas, as epidemias, o caos no tráfego
de carroças e carruagens.

Se essa noção de interdependência é tão potente a ponto de mudar


compreensões dominantes e impulsionar ações que abrangem
indivíduos com diferentes capacidades contributivas, por que,
ainda hoje, discutimos a necessidade de adicionar o sufixo social
a esses conceitos?

Um dos questionamentos fundantes do campo de análise de políticas


públicas se concentrava em entender “quem ganha o quê, como e
quando”3. Embora o cuidado abrangente com a organização social
pareça um ato motivado pela noção de fraternidade, trata-se —
para além da “romantização” do Estado de bem-estar social — da
garantia de condições civilizatórias essenciais para o funcionamento
e desenvolvimento das democracias capitalistas liberais. Assim,
o planejamento urbano, tal como diversas agendas de políticas
públicas, é resultado de uma intensa disputa pela distribuição de
recursos diversos, que vão do manejo das finanças ao controle dos
entendimentos sobre a priorização de problemas e soluções.

Atualmente, considerando as principais resoluções internacionais


sobre progresso social, pode-se dizer que o objetivo finalístico do
planejamento urbano, em essência, consiste no aprimoramento da
convivência coletiva nas cidades. Como foi dito, apesar disso se
realiza o esforço de adicionar o complemento “social” a um campo

3 LASSWELL, Harold. Politics: who gets what, when, how. Whitefish, Montreal: Li-
terary Licensing, 2012.

212
Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

do conhecimento que é — ou deveria ser — “social” por definição.


E, mesmo com pretensões sociais, muitas vezes as soluções são
elaboradas de modo distante do conjunto amplo da sociedade.
Entende-se que as soluções para os problemas urbanos passam,
necessariamente, pelo uso de bens físicos que, per se, reuniriam
condições para solucionar as questões sociais mais prementes. Nessa
linha, os problemas que ainda não foram solucionados dependeriam,
portanto, de novas tecnologias materiais.

Cumpre ressaltar que essas decisões não são tomadas por falta de
alternativas. Em sua obra clássica, Morte e vida das grandes cidades,
publicada em 19614, Jane Jacobs (1916-2006) já chamava a atenção
para a importância da perspectiva social no planejamento urbano. O
balé das calçadas, as cidades vivas e os usos socialmente intensos
do solo consideram, para além de intervenções físicas, uma noção
da centralidade de questões socioculturais no planejamento urbano
virtuoso. Sem essas ponderações, não se planejam "cidades para
pessoas”5, mas, sim, “cidades rebeldes”6.

Vale questionar, outra vez: qual é o objetivo contemporâneo do


planejamento urbano? Diversos avanços normativos nacionais, desta-
cadamente o Estatuto da Cidade (2001), apresentam entendimentos
que destacam a dimensão social do urbanismo7.

O urbanismo social apresenta soluções que aparentam certa “sim-


plicidade”, a qual, todavia, pressupõe um entendimento sofisticado.
Trata-se de entender as questões urbanas de forma multifacetada,

4 JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. 3. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2011.

5 GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2014.

6 HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São


Paulo: Martins Fontes —W Selo Martins, 2014.

7 Resultado da luta dos movimentos pela reforma urbana durante as discussões


constituintes dos anos 1980, o estatuto institucionaliza definições importantes,
das quais destaco duas: 1) A função social da cidade e sua relação com o conceito
de “direito à cidade”; 2) O papel central na formulação e implementação das po-
líticas urbanas.
Para uma discussão mais detalhada, ver: CALDEIRA, Teresa; HOLSTON, James. Es-
tado e espaço urbano no Brasil: do planejamento modernista às intervenções demo-
cráticas. A participação em São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2004. p. 215-255.

213
Guia de Urbanismo Social

abordando-as com soluções interseccionadas. O programa “Mais


Vida nos Morros” em Recife (ver Capítulo 15), por exemplo, se
vale, sobretudo, de uma estratégia aparentemente estética que
influenciaria em diversos problemas, de questões relacionadas à
segurança pública como também de apropriação e aproveitamento
do território. É a tinta, per se, que melhora o ambiente, ou a noção
de que a autoestima do território também é importante para a
melhoria urbana e o envolvimento comunitário?

Embora seja incipiente no Brasil, o urbanismo social pode apresen-


tar um amplo conjunto de alternativas factíveis e adequadas para
problemas complexos e historicamente persistentes. A questão
central que se coloca reside, justamente, na baixa presença desse
entendimento na disputa pela agenda de políticas urbanas. Talvez,
de novo, a questão passe pela inclusão, cada vez mais organizada
e qualificada, da sociedade civil nos processos de produção de
soluções urbanas locais. Tanto para o Estatuto da Cidade como
para o urbanismo social, o papel da participação social e do envol-
vimento comunitário é um pressuposto organizativo da formulação,
implementação e avaliação de soluções urbanas.

O urbanismo social, à luz de casos internacionais, apresenta um


conjunto amplo de soluções que, do ponto de vista operacional, são
mais simples que as soluções focadas exclusivamente na infraestru-
tura. Trata-se de alternativas de baixo custo relativo que poderiam
ser aplicadas de maneira sistemática, estruturada e abrangente,
com apoio consistente do Estado, seja na implementação direta
ou na regulação de sua aplicação por meio do terceiro setor ou até
mesmo da iniciativa privada.

Afinal, o que falta para o urbanismo social ganhar espaço relevante


na agenda de implementação de políticas urbanas no Brasil?
Ainda que as análises sobre os problemas sociais, incluindo a
urbanização excludente, já tenham avançado, muitas vezes pro-
blemas complexos são tratados, continuamente, com soluções
isoladas, fragmentadas e sobrepostas em termos de políticas
públicas. Adiante, a contribuição de Ricardo Henriques lançará
luz sobre esse desafio transversal que atinge diferentes agendas

214
Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

de políticas sociais — e que parece ser crucial para responder ao


questionamento levantado. Em seguida, Jorge Melguizo amarra as
experiências nacionais aqui apresentadas em linhas gerais, com
a visão sofisticada de Henriques, apresentando sua experiência
prática de formulador e implementador de uma política territorial
pautada nos preceitos do urbanismo social.

215
Guia de Urbanismo Social

8.2_ POLÍTICAS PÚBLICAS


INTEGRADAS EM TERRITÓRIOS
VULNERÁVEIS

O Brasil produziu ao longo de sua história dessa integração depende do mapeamento


um desenvolvimento estruturalmente exclu- inicial e contínuo dos atores presentes no
dente. A condução das políticas econômica território, incluindo os coletivos e as organi-
e social tem sustentado, tradicionalmente, zações da sociedade civil. De igual relevância
um crescimento alinhado a programas com- é a escuta atenta dos beneficiários, tanto
pensatórios como o principal caminho para de suas dimensões específicas de vulne-
combater a pobreza. A despeito dos avanços rabilidade como de suas expectativas; e,
na redução da extrema pobreza de 18%, em também, dos agentes da ponta, responsáveis
1992, para 6% da população brasileira até pela execução da política. Por fim, a política
2015, a condição de vulnerabilidade dos pública deve ser territorializada, garantindo
territórios brasileiros tem persistido, dado maior aderência ao contexto e às situações
o caráter multidimensional da pobreza. Para locais de elevada heterogeneidade.
enfrentá-la é necessário produzir políticas
públicas multissetoriais e multiníveis, que Contudo, o plano de qualificar a coordena-
identifiquem situações individuais e familia- ção de políticas públicas para o atingimento
res complexas e que produzam uma agenda, de resultados concretos e transformadores
integrada entre diferentes áreas, capaz de dependerá do quão bem-sucedidos for-
ser modulada às variadas configurações de mos no enfrentamento de seus gargalos
vulnerabilidade presentes nos territórios. estruturais. Dentre os principais desafios
no contexto de execução da política social,
Em geral, sabemos que a efetividade da podemos destacar a fragmentação, a sobre-
política social se define pela melhoria da qua- posição e o isolacionismo setorial.
lidade de vida da população em condições de
maior vulnerabilidade e, portanto, depende O primeiro desafio estrutural, chamado
de diagnósticos rigorosos e contextualizados aqui de fragmentação da política social,
para que se chegue a um desenho mais se expressa em distintas esferas de gestão
assertivo no seu enfrentamento — vale dizer, de programas e ações governamentais.
diagnósticos baseados em evidências e em As evidências empíricas e as percepções
dados quantitativos e qualitativos. Nesse acerca da fragmentação são recorrente-
sentido, um bom desenho de implementa- mente associadas a ineficiências no de-
ção da política pública deve levar em conta senho ou na implementação das interven-
elementos como a integração horizontal e ções sociais. Observamos com frequência
vertical, representada pela intersetorialidade a dispersão de programas em vários ór-
e pela colaboração federativa. A viabilização gãos da mesma esfera governamental,

216
Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

dificultando o estabelecimento de uma de informação que reduzem a amplitude da


lógica comum tanto na conceituação como cobertura e a qualidade da focalização na
na implementação da política. implementação de cada programa, dado
que um conjunto de indivíduos pode vir a
Indo além, a fragmentação pode ser entendi- receber mais de um, enquanto outros indi-
da no contexto mais amplo de uma racionali- víduos pertencentes ao mesmo público-alvo
dade perversa das políticas públicas. Nesse podem, inclusive, não acessar qualquer dos
contexto, o fragmento pode ser considerado programas disponíveis.
a unidade ótima do assistencialismo, uma
vez que a política brasileira é um ambiente No que se refere ao isolacionismo setorial,
fértil e estimulante para a execução de terceiro desafio estrutural, sabemos que
agendas fragmentadas. Aqui se consolida a tendência das diferentes pastas temá-
a alegoria do político (ou gestor) tradicional, ticas é especializar-se em determinado
que constrói sua estrutura de poder com fenômeno social, aumentando, portanto, a
base na dominação de clientela ou da tutela probabilidade de realizar um bom trabalho.
do público-alvo de programas específicos. Por outro lado, a setorialização excessiva
Assim, o espaço público torna-se um am- pode se fazer surda às demandas e aos
biente de práticas norteadas pela assimetria desafios intersetoriais, refletindo uma
de informações, maximizando, portanto, opção limitada e limitante das políticas
as possibilidades de exploração, controle públicas. Ao estreitar o entendimento da
e submissão de parte da população que complexidade das situações de pobreza
necessita acessar os programas sociais. e vulnerabilidade, é frequente que o olhar
setorial exacerbado suponha causalida-
A sobreposição entre programas e políticas, des e efeitos reducionistas que, na prática,
segundo desafio inerentemente estrutural, não refletem a realidade, mas expressam
deriva da precária coordenação entre as a miopia situacional de uma lente que se
esferas de governo. Essa dificuldade de atém às referências e aos repertórios do
coordenação reduz a potencialidade de setor social em questão. Mais do que isso,
impacto dos programas sociais similares, terminam por incentivar desnecessárias
na medida em que os governos não com- segmentações intrassetoriais, produzindo
partilham diagnósticos e aprendizados para ações e programas isolados no interior de
melhorias na concepção e no desenho dos cada área social.
programas, gerando maior ineficiência na
alocação de recursos públicos — dissonância Há pelo menos três mecanismos pelos quais
no compartilhamento tanto entre diferentes o isolacionismo setorial se nutre: a disputa
níveis de gestão, como entre distintas áreas pela distribuição do orçamento público, o
no interior de cada nível administrativo. fetiche pelo registro de uma ação, programa
Além disso, são produzidos diversos ruídos ou política pelos gestores e, por último, a

217
Guia de Urbanismo Social

hipótese arbitrária de sequencialidade se- relação aos meios como aos fins. Nesse
torial do ponto de vista do bem-estar social. sentido, as combinações entre níveis de con-
Isso significa que, por exemplo, o especialista flito e entre níveis de ambiguidade geram
na área de saúde suponha que os desafios contextos de implementação diferenciados
sanitários devam preceder os demais. O que podem ser deletérios no endereçamento
mesmo ocorre em relação aos especialis- dos desafios de fragmentação, sobreposição
tas das áreas de educação, de segurança e isolacionismo setorial.
alimentar, de transporte e assim por diante.
Desse modo, o isolacionismo setorial tende a Assim, tão importante quanto ter uma buro-
reduzir a qualidade das intervenções setoriais cracia de nível de rua mobilizada e conven-
e a enfraquecer a coordenação e integração cida sobre a importância do programa ou
das políticas públicas. política pública, e que seja capaz de identi-
ficar a população vulnerável potencialmente
Adicionalmente, há um grau de realismo beneficiária, é dispor também de um corpo
sobre os desafios de implementação sob de agentes implementadores que compre-
contexto orientado, capaz de contemplar endam a demanda social reprimida em cada
parâmetros e tensões entre os entes e território. Não basta realizar uma leitura
agentes com responsabilidade pública de apenas objetiva, informacional, do ponto de
decisão. Contexto que deve ser levado em vista técnico-científico; é preciso também
consideração, adicionando, portanto, mais executar uma escuta atenta e consequente
uma camada nesse cenário já desafiador. que dê contornos factuais à demanda.
Segundo Matland8, todo contexto de política
pública é marcado por graus diferentes de A escuta deve voltar-se não só aos indivíduos
conflito e de ambiguidade; a interdepen- e suas famílias como também à comunidade
dência entre esses dois elementos leva a e suas diversas organizações de represen-
ambientes mais ou menos propícios para tação, transformando aquele espaço em um
implementações bem-sucedidas. O conflito território humanizado. A estruturação do
pode ser caracterizado em relação aos fins processo de escuta deve estabelecer um
(atores não concordam com os objetivos da diálogo contínuo que permita a calibragem
política) e em relação aos meios (discor- do desenho das intervenções e, inclusive,
dância em relação às formas de atingir os sua discussão e revisão periódica. Diálogo,
objetivos). Já a ambiguidade, por sua vez, aliás, com marcadores temporais acordados
diz respeito ao espaço dado pela política e ritualizados. Aqui, a empiria informa a qua-
para interpretação e adaptação tanto com lidade da adequação entre as demandas dos
indivíduos e da comunidade e as ofertas de
serviços, permitindo a revisão e a correção
8 MATLAND, R. E. Synthesizing the implementation li-
terature: the ambiguity-conflict model of policy imple-
de rotas das ações com agilidade e sentido
mentation. Journal of Public Administration Research de pertinência. Isso significa que viabilizar a
and Theory, Lawrence, v. 5, n. 2, p. 145-174, abr. 1995.

218
Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

interpretação e a ação a partir desse mapa A seleção de beneficiários em um progra-


de vulnerabilidades estará estritamente con- ma de combate à pobreza que contemple
dicionado a duas dimensões: o olhar técnico apenas transferências de renda necessita
e denso do burocrata de nível de rua e o diá- identificar o grau de pobreza de cada família.
logo com escuta qualificada junto a sujeitos Porém, a implementação de uma política
concretos residentes nos territórios. mais ampla para superação da pobreza
requer informações individualizadas muito
Cabe ressaltar, entretanto, que as demandas mais elaboradas e um relacionamento com
reveladas não serão uma justaposição das a família mais profundo, já que cada família
manifestadas. Em outras palavras, a inter- tem necessidades específicas. Embora uma
pretação desse mapa não deverá ser um transferência de renda seja capaz de aliviar
empilhamento da demanda, tampouco uma a pobreza de qualquer família, só um aten-
cartilha com análises de indicadores sociais. dimento personalizado é capaz de retirá-la
Os agentes públicos da burocracia de nível dessa situação e criar condições reais de
de rua deverão conciliar a interpretação mobilidade social. Assim, se desejamos que
real da demanda à estrutura da oferta, de um programa de combate à pobreza seja, de
acordo com um cardápio das diferentes fato, eficaz, é preciso que o grupo benefici-
vulnerabilidades materializadas no território. ário receba assistência continuada e indivi-
dualizada de agentes de desenvolvimento
Dito isso, a melhoria da vida das pessoas, de familiar e comunitário que, em parceria
suas famílias e de sua comunidade depende, com eles, formulem e implementem planos
por um lado, da qualidade tanto do dese- específicos e comunitários de superação da
nho como dos sistemas de implementação, pobreza e de desenvolvimento local.
monitoramento e avaliação, e, por outro, da
capacidade de construir, em cada território O desafio estratégico para uma política
específico, uma agenda customizada que social integrada e integradora é combinar,
permita referenciar e contrarreferenciar a de maneira estruturada e operacional: (i) a
situação de vulnerabilidade. É fundamental capacidade de diagnósticos robustos das
destacar que tais vulnerabilidades partem condições de vulnerabilidade; (ii) a qualidade
não apenas da situação econômica das e a plasticidade no desenho da política
famílias: inclui ainda a falta de acesso aos social; (iii) a flexibilidade na implementação
serviços públicos, de exposição à violência, adequada aos territórios; (iv) o engajamento
uso de drogas, exclusão social, discrimi- de todos os setores relevantes; (v) a interse-
nação em suas várias formas, entre outros torialidade junto à colaboração federativa;
fatores. Portanto, o desenho da política (vi) o encaminhamento para trajetórias de
pública deve contar com múltiplas visões inclusão produtiva dos mais vulneráveis; (vii)
de vulnerabilidade social. a equidade como referência organizadora
da estratégia; (viii) o monitoramento e a

219
Guia de Urbanismo Social

avaliação como estuário da qualidade; e (ix) a efetividade como


compromisso da gestão.

Trata-se, em síntese, de redefinir a estratégia de desenvolvimento


social, promovendo espaços, processos e instrumentos participativos
e com densidade técnica e analítica que viabilizem uma abordagem
que enfrente de forma efetiva nossos complexos desafios. Dito de
outro modo: rigor e compromisso com a qualidade da oferta dos
serviços públicos em linha com a atenção e a dedicação ao entendi-
mento das complexas realidades de vulnerabilidade dos indivíduos e
das famílias. Uma arquitetura da política social orientada para criar
condições efetivas de mobilidade social de pessoas em situação
de vulnerabilidade e, portanto, para atender e cuidar de sujeitos
concretos em territórios concretos. Aqui cabe lembrar uma frase do
dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980): “Subdesenvolvimento não
se improvisa; subdesenvolvimento é uma obra de séculos”. Ocorre
que desenvolvimento também não se improvisa; todavia, de forma
alguma pode ser uma obra de séculos. Desenvolvimento é obra do
agora, marcado pelo sentido de urgência, pelo compromisso com
a equidade e pela necessidade de políticas públicas integradas
em territórios vulneráveis.

220
Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

8.3_ O SOCIAL DO URBANISMO SOCIAL


DE MEDELLÍN

Quando se fala em “urbanismo social”, há abordagem e que o que de fato queríamos


uma tendência a focar o que a primeira pala- dizer soa parecido com isso, no entanto é
vra, “urbanismo”, representa, que é assumida diferente: o que estamos fazendo é, como
como substantivo, como a essência dos dois disse anteriormente, um projeto profundo
termos. Em vez disso, a palavra “social” é de transformação educacional e cultural
geralmente assumida como adjetivo, como com conteúdo e resultados urbanos.
complemento, acréscimo, maneira de qua-
lificar o tipo de urbanismo. Isso significa que, no planejamento urbano
social, predomina o substantivo “social”: as
Em relação a Medellín, quando usamos a ex- obras físicas, urbanas, devem estar sujeitas
pressão “urbanismo social”, assumimos, re- ao projeto social e não o contrário. É preciso
almente, as duas palavras como essenciais, pensar em nós mesmos como sociedade e
dois substantivos — como denominadores é preciso pensar em todas as dimensões da
do que é e deve ser a ação urbana e a ação sociedade: educacional, cultural, ambiental,
social. Aqui, iremos focar a vertente social esportiva, recreativa, sanitária, econômica,
do urbanismo social, para ajudar a compre- de gênero, populacional etc., e construir um
ender a dimensão dos nossos projetos na projeto a partir dessas dimensões. E aí sim,
cidade e o alcance ambicionado para eles. definir quais obras físicas, quais projetos ur-
banos são necessários para viabilizar aquela
O que temos tentado fazer em Medellín, nos sociedade que queremos e podemos ser.
últimos 30 anos, é alcançar uma profunda
transformação social, educacional e cultural, Conversas entre todos os setores: a primei-
com conteúdos e resultados urbanos. Nosso ra das chaves do urbanismo social
projeto é construir uma sociedade, não ape-
nas construir uma cidade. A transformação Quando me perguntam em outro lugar sobre
de nossas cidades deve ser fundamental- o que fizemos em Medellín nos últimos
mente a transformação de nossas socieda- anos para conseguir reduzir nossa taxa de
des. Mudar uma cidade não é apenas (mas mortalidade por homicídio em 96,3% entre
também) uma transformação urbana, física. 1991 e 2021, uma conquista que surpreende
o planeta inteiro e que, principalmente,
Durante anos dissemos que precisávamos se torna uma referência para as cidades
realizar projetos físicos, urbanos, com conte- na América Latina, onde se vivem situa-
údo e resultados sociais. Mas há alguns anos ções muito semelhantes, respondo que
venho falando que estávamos errados nessa para entender o que foi feito em Medellín

221
Guia de Urbanismo Social

é preciso voltar à década de 1990 do sé- intervenção integral nos bairros, que nos
culo XX: esses anos foram os das alianças permitiu conhecer e nos reconhecer em
iniciais de todos os setores da sociedade, nossos graves problemas de desigualdade,
independentemente da ideologia e filiação exclusão, pobreza, falta de oportunidades,
política. Foram anos em que assumimos falta de coesão social, violência de todos os
o desafio coletivo de construir soluções tipos, geração de gangues armadas com-
coletivas para enfrentar nossos próprios postas por crianças e jovens.
fracassos como sociedade e como cidade.
Ou seja, enfrentamos coletivamente nossas Para mim, estes são os principais "comos"
falhas coletivas. do processo de Medellín:

Os Diálogos de Futuro Alternativo de Me- Geralmente, quando nos referimos ao ur-


dellín, realizados ao longo de cinco anos banismo social, falamos do quê? De polos
(de 1991 a 1995) — nos quais participaram urbanos, parques de bibliotecas, Unidades
pessoas de toda a cidade, de todos os tipos de Vida Articulada (UVA), unidades espor-
de organizações e ideologias, e nos quais tivas, sistemas de mobilidade e outros pro-
convocamos pessoas e entidades-chave jetos urbanos semelhantes. Acho que para
de outras metrópoles e outros países para analisar o urbanismo social devemos nos
aprender a partir de experiências especí- concentrar mais no “como” e não no “quê”.
ficas —, tornaram-se espaços de conhe- Esses “comos” são os que nos permitem
cimento e reconhecimento do próximo, mostrar avanços reais na tarefa de tornar
dos muitos outros que somos. As lógicas o setor público (serviços básicos, saúde,
privadas conversavam, e se confrontavam, educação, cultura, recreação, esportes,
com as lógicas comunitárias. As lógicas co- mobilidade, espaço público) sinônimo de
munitárias dialogaram e confrontaram com qualidade e dignidade. E um dos fatos mais
as lógicas públicas, oficiais. Os bairros mais marcantes em Medellín é a continuidade dos
pobres, mais densamente povoados e mais principais programas públicos, apesar das
violentos, tornaram-se foco de atenção e mudanças de governo e de partido político
experimentação, e Medellín se transformou no comando da gestão, embora também haja
em um laboratório urbano, social, educacio- uma fragilidade nessas mudanças.
nal e cultural.
Procuramos respostas diferentes para os
A década de 1990 foi de formação de uma problemas usuais e mudamos as perguntas
capacidade social e institucional, pública que enfrentam esses mesmos problemas.
e privada, comunitária e universitária que
nos permitiu começar a encontrar soluções Geramos alianças público-privado-comu-
estruturais para problemas estruturais, que nitárias, múltiplas alianças para múltiplos
nos permitiu começar a medir o alcance da processos, entendendo a necessidade de

222
Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

combinar diferentes saberes, diferentes Integrais. Gosto de dizer que os PUIs (Proje-
lógicas, diferentes pontos de vista. tos Urbanos Integrais) podem ser descritas
como orgias institucionais, públicas, priva-
Assumimos a participação social como das e comunitárias: os objetivos não são
essência e não apenas como ferramenta. setoriais e sim territoriais e populacionais.
Assumimos e buscamos que a participação Na verdade, acho que hoje devemos mudar
seja verdadeira, não acomodada a discursos os modelos de gestão pública para passar do
e práticas oficiais. É preciso somar ou mes- setorial para o territorial e populacional, com
mo contrapor democracias participativas e base em três grandes objetivos: equidade,
deliberativas à democracia representativa, oportunidades e convivência. Atualmente,
e é fundamental promover múltiplos espa- a construção da equidade territorial e po-
ços de controle social do cidadão, como as pulacional deve ser o principal objetivo da
Vigilâncias Cidadãs. nossa sociedade.

Escutamos — sim, é preciso ouvir muito Partimos do princípio de que as obras urba-
para poder conhecer, reconhecer, valorizar nas devem estar subordinadas ao projeto
e promover o que já se faz nos bairros de social: os governos têm suas maiores prio-
Medellín. E isso se faz sem o Estado, apesar ridades e investimentos em obras físicas,
do Estado ou mesmo contra o Estado: esse e realmente o que Medellín tem feito é dar
reconhecimento é fundamental porque nos- prioridade máxima aos projetos sociais.
sas próprias comunidades têm buscado a Nossas cidades precisam de novas agendas
saída diante dessa reiterada ausência do sociais, para aprofundar suas transforma-
Estado, e isso é algo que os governantes da ções e para que essas agendas determinem
época muitas vezes não veem por causa de que tipo de obras urbanas são necessárias.
sua arrogância ou, simplesmente, por causa Acho que a Habitat 3 errou ao definir uma
daquela "síndrome de Adão" que parece Nova Agenda Urbana Mundial, promovida
dominar a todos. pela ONU Habitat, porque a urgência é ter
uma Nova Agenda Social Mundial.
Entendemos que o Estado se faz no bair-
ro e que cada rua deve ser evidência da Aprendemos com muitas cidades, suas
presença do Estado. conquistas e seus fracassos, e transfor-
mamos Medellín em um laboratório social,
Realizamos intervenções verdadeiramente educacional, cultural e urbano, com muitas
abrangentes nos bairros, como o PRIMED, o tentativas que deram certo ou não, mas com
Programa de Melhoria Integral de Bairros, as quais aprendemos a continuar inovando
que foi o iniciador, nos anos 1990, do que na tarefa de mudar a gestão pública e no
mais tarde na primeira década deste sé- enorme desafio de nos construirmos como
culo chamamos de PUI, Projetos Urbanos uma nova sociedade.

223
Guia de Urbanismo Social

Para o urbanismo social precisamos de muitos diálogos, e temos


de encontrar novas formas de diálogo, que nos levem a saber que
sociedade somos hoje e a pensar, coletivamente, como enfrentamos
não apenas desafios temporários e também, fundamentalmente,
aqueles que continuam sendo nossos grandes desafios estruturais:
desigualdade, pobreza, violência cotidiana, classismo, indiferença, falta
de valorização da própria vida e dificuldade de conviver com os outros.

224
09_
TÓPICOS EM REGULAÇÃO
URBANA
9.1_ O papel do direito urbanístico

9.2_ O direito urbanístico na


Constituição

9.3_ A legislação federal

9.4_ Direito à cidade

9.5_ O direito à cidade como


princípio orientador do ordenamento
territorial

AUTORES

9.1_ 9.2_ 9.3_ Núcleo de Cidade e Re-


gulação;
9.4_ 9.5_ Henrique Frota (Instituto Pólis).
Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

9.1_ O PAPEL DO DIREITO


URBANÍSTICO

Falar sobre as relações entre o urbanismo social e o direito urba-


nístico é discursar sobre fins e os meios. De fato, se a finalidade
do urbanismo social é proporcionar uma cidade mais justa, equi-
librada, inclusiva e democrática, caberá ao direito urbanístico ser
o meio para alcançar esses objetivos. O direito, assim, cumpre um
papel instrumental, de concretizador dos objetivos e diretrizes do
planejamento das cidades, que direciona o desenvolvimento do
espaço urbano.

O direito urbanístico é construído e aplicado mediante processos


público-participativos, e o conteúdo de seus comandos normativos
sofre direta influência da realidade que se pretende transformar.
Ele, por sua vez, não deve ser confundido com urbanismo.

O urbanismo é uma técnica que, combinando diversos saberes,


define o que se deseja nas cidades. Seus modais lógicos de decisão
são “desejado/não desejado”, “bom/ruim”, “adequado/inadequado”.
O urbanismo, tratado como gênero, e incluindo-se nessa noção o
urbanismo social, nos diz o que a cidade deve perseguir para o
maior benefício de seus habitantes.

Já o direito urbanístico é um ramo do Direito. Trata-se de comandos


normativos que estabelecem preceitos jurídicos obrigatórios; seus
modais lógicos são o “lícito/ilícito”, “proibido/permitido”, “autorizado/
negado”. Em síntese, não é o direito urbanístico que definirá qual
o modelo de cidade ideal, mas é nele que serão encontrados os
instrumentos jurídicos para que se alcancem os objetivos do urba-
nismo. Por outro lado, também é no direito urbanístico que os órgãos
de controle e a sociedade civil encontrarão normas e comandos
de regulação que poderão ser exigidos do poder público e dos
particulares, promovendo-se, dessa forma, o controle da atividade
urbanística, tanto no campo administrativo quanto no judicial.

227
Guia de Urbanismo Social

9.2_ O DIREITO URBANÍSTICO NA


CONSTITUIÇÃO

A estruturação do direito urbanístico em nosso país ocorre a partir


das disposições fundamentais da Constituição Federal1, que tratam
das competências do município para regular o uso e a ocupação do
solo urbano. As condições a serem observadas na implantação da
política de desenvolvimento urbano, por sua vez, estão expostas no
Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001), a mais importante
do direito urbanístico).

A partir desses dois marcos normativos, a tarefa de efetivar a


função social da propriedade e garantir o bem-estar dos habitantes
das cidades sob princípios jurídicos, diretrizes de política urbana e
institutos próprios é realizada pelos planos diretores municipais e
pela legislação deles decorrentes. Fica estabelecido, desse modo,
o que é reconhecido como a “ordem urbanística”, que conforma
a propriedade imobiliária urbana, equilibrando os direitos dos
proprietários e o bem-estar coletivo.

O direito urbanístico detém alguns elementos fundamentais à sua


compreensão: a propriedade e sua função social, a noção de política
urbana e suas competências normativas, o conceito de plano diretor
e seu conteúdo e, finalmente, a noção da livre-iniciativa e o papel
do Estado no desenvolvimento urbano.

Inicialmente, é preciso destacar que a propriedade e a função social


têm íntima relação no texto constitucional, que em cláusula pétrea2
garante tanto o direito de propriedade (artigo 5º, inc. XXII) como a
determinação de que a propriedade atenderá a sua função social
(inc. XXIII). A Constituição estabelece ainda que a função social
da propriedade terá como índice de aferição o atendimento aos
preceitos do plano diretor, regulando de maneira detalhada as regras
de aproveitamento compulsório da propriedade imobiliária urbana.

1 Tais disposições se encontram especialmente nos art. 30, incs. I e VIII, e nos arts.
182 e 183.

2 Ou seja, incluída entre aquelas que jamais poderão ser suprimidas.


228
Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

Quanto a esse aspecto, o texto constitucional apontou de forma


decisiva para a necessidade de promoção da justiça fundiária,
instituindo o Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios
(o conhecido “PEUC”) e a usucapião especial urbana. Os comandos
do PEUC3 exigem, de modo progressivo, que os proprietários
promovam o adequado aproveitamento de seus imóveis, coibindo,
assim, os vazios urbanos em áreas dotadas de infraestrutura. Já
a usucapião4 incide sobre imóveis de até 250 metros quadrados,
sendo apto em cinco anos de posse ininterrupta e sem oposição
do bem, transferindo de forma originária a sua propriedade à
família residente. Para o seu cumprimento alguns princípios
devem ser observados: que os beneficiários não tenham outra
propriedade, a proibição de mais de uma usucapião por pessoa,
a não incidência sobre terrenos públicos (admitindo-se, no en-
tanto, a concessão de uso, que não transfere a propriedade) e a
possibilidade de atribuição do título ao homem, à mulher ou a
ambos, independentemente do estado civil.

Verifica-se, assim, que o direito urbanístico terá um papel funda-


mental na estruturação do desenvolvimento nacional, uma vez que
caberá a ele parametrizar o crescimento das cidades de acordo
com condições que distribuam os ônus e benefícios pertinentes a
tal processo de modo equitativo a todos os cidadãos.

O segundo elemento fundamental a ser abordado neste ensaio é


a noção de “política urbana”. Considerando que ela diz respeito ao
conjunto de estratégias necessárias à constituição, preservação e
melhoria da ordem urbanística em prol do bem-estar das comuni-
dades, constata-se que a estratégia estabelecida na Carta Magna
é que a política de desenvolvimento urbano será baseada em lei,
tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade.

O plano diretor, como se vê, é elemento central nessa estratégia


constitucional, consubstanciado em uma lei que conclui um processo

3 Previsto no § 4º do art. 182.

4 Prevista no art. 183.

229
Guia de Urbanismo Social

de planejamento urbanístico, isto é, uma normatização que torna


obrigatório observar o diagnóstico e prognóstico do desenvolvimento
urbano capturado em amplo processo participativo. Verifica-se que a
ideia que perpassa o texto constitucional é estabelecer um padrão
mínimo de exigência de normatização para as cidades brasileiras.

O plano diretor trará as disposições fundamentais da “propriedade


urbanística”, isto é, as condições básicas de parcelamento, uso e
ocupação do solo (como se poderá dividir, construir e utilizar a
propriedade). Além disso, ele veiculará a instrumentação jurídica
necessária ao atingimento dos objetivos e diretrizes da política que
ilustrará a atuação dos setores público e privado no desenvolvi-
mento urbano. A lei, em síntese, não somente dirá o que se deseja
para a cidade como também estabelecerá os meios colocados à
disposição da sociedade para tanto.

No tocante a essa última observação, cumpre tecer algumas consi-


derações sobre os papéis desses dois atores na política de desen-
volvimento urbano, ressaltando, em consonância com os artigos 173
e 174, a relevância da atividade dos empreendedores privados para
o desenvolvimento urbano. De fato, além da própria atividade de
construção da paisagem urbana com base nas leis de zoneamento ou
de obras de infraestrutura e equipamentos públicos contratadas pela
administração pública, as parcerias entre o poder público e o setor
privado são essenciais para implementação dos planos e projetos
urbanos — tal como ocorre nas operações urbanas consorciadas,
concessões urbanísticas e obras de infraestrutura urbana.

230
Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

9.3_ A LEGISLAÇÃO FEDERAL

A regulação constitucional da função social espraia-se por toda


a legislação referente ao campo do direito urbanístico. Aqui des-
tacamos algumas das principais normativas.

O ESTATUTO DA CIDADE

É a principal norma federal sobre a política urbana. Entre as diretrizes


que convergem para um conceito de urbanismo social, encontram-se
nela algumas garantias como: o direito à terra urbana, à moradia, ao
saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e lazer para as presentes e futuras
gerações. Garante-se ainda a oferta de equipamentos, transporte
e serviços públicos adequados às necessidades da população e às
características locais, e a regularização fundiária e urbanização das
áreas ocupadas pela população de baixa renda, mediante normas
especiais, consideradas a situação socioeconômica da população
e as normas ambientais.

Além de regulamentar a usucapião constitucional, o Estatuto abriu a


possibilidade de sua aplicação coletiva, hipótese em que se formará um
condomínio entre os possuidores até que se complete a urbanização do
assentamento. No caso de terrenos privados insuscetíveis de usucapião,
o Estatuto permite que o município os adquira mediante o exercício
de direito de preempção (preferência) ou doação acompanhada de
transferência do direito de construir para outro terreno.

Também se admite o emprego do consórcio imobiliário, um acordo no


qual o município promove a regularização e devolve ao proprietário
unidades de valor equivalente ao do imóvel original. O Código Civil
(Lei n.10.406/2002) admite, ainda, a desapropriação em favor dos
possuidores, pela qual o juiz faculta a eles adquirirem o terreno
diretamente, mas mediante pagamento de indenização ao proprietário.

Como formas de financiar a regularização, o Estatuto prevê a consti-


tuição de um fundo com as receitas derivadas da venda do potencial
231
Guia de Urbanismo Social

construtivo adicional (que é uma contrapartida exigível dos proprie-


tários em caso de verticalização) e a operação urbana consorciada,
em que são promovidas transformações urbanísticas estruturais em
áreas específicas da cidade, fazendo uso da captura da valorização
imobiliária gerada pelos próprios investimentos.

Nos municípios com áreas de risco sujeitas a deslizamentos ou


inundações, o Estatuto exige que o plano diretor mapeie tais
áreas, preveja intervenções preventivas, institua diretrizes para a
regularização fundiária e demarque zonas especiais de interesse
social (Zeis), que deverão ser ocupadas preferencialmente por
habitação popular.

A REGULARIZAÇÃO EM ÁREAS PÚBLICAS

Como visto, a Constituição não admite a usucapião de bens públicos.


Nesse caso, a regularização poderá ser feita mediante alienação,
doação ou concessão de direito real de uso aos ocupantes. Apenas
os terrenos classificados como dominicais, ou seja, que não estejam
afetados a uma finalidade pública, podem ser regularizados. Os
de uso especial (destinados a um equipamento público) e os de
uso comum do povo (que podem ser livremente usufruídos por
qualquer pessoa) precisam ser antes desafetados, a fim de que
se convertam em dominicais.

Essa é uma situação bastante comum, pois muitos assentamentos


ocupam áreas transferidas ao município por loteadores, a fim de
que sejam aproveitadas como espaços livres de uso público ou equi-
pamentos comunitários. A Lei Orgânica de cada município definirá
a necessidade ou não de legislação municipal para a desafetação.

A LEI DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

Não seria possível cogitar a edição da Lei Federal n. 13.465/2017 — a


Lei da Reurb — sem esses fundamentos constitucionais. A regula-
rização fundiária urbana abrange medidas jurídicas, urbanísticas,
sociais e ambientais destinadas a incorporar os assentamentos
informais ao ordenamento territorial urbano e a titular seus

232
Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

ocupantes. Entre suas diretrizes, destacam-se a prestação de


serviços públicos, a melhoria das condições urbanísticas e ambien-
tais, o acesso à terra urbanizada, a permanência dos ocupantes,
a integração social, a geração de emprego e renda, a resolução
extrajudicial de conflitos, a garantia do direito à moradia digna, a
função social da propriedade, a eficiência na ocupação do solo, o
desestímulo à formação de novos assentamentos informais, a pre-
ferência da mulher na concessão de direitos reais e a participação
dos interessados em todas as etapas do processo.

A lei, que prevê uma série de instrumentos e procedimentos para que


sejam realizados processos de titulação de ocupantes de assentamen-
tos informais localizados em áreas públicas e privadas, reconhece que
a “cidade real” deve ser incorporada e reconhecida como a “cidade
formal”, gerando dignidade às pessoas que nela habitam.

A Reurb depende da aprovação pelo município de um projeto de regu-


larização fundiária, que deverá conter: levantamento planialtimétrico
e cadastral georreferenciado; soluções para as desconformidades
ambientais e urbanísticas, com reassentamento dos ocupantes,
quando necessário; cronograma para implantação da infraestrutura
essencial e execução de compensações urbanísticas e ambientais;
e definição dos responsáveis pela execução do cronograma.

Essas determinações deverão ser traduzidas em um projeto urbanísti-


co que indicará o sistema viário, as unidades existentes e projetadas,
os espaços livres, as áreas destinadas a edifícios e equipamentos
urbanos, as medidas para correção de desconformidades, mobilidade,
acessibilidade e relocação de edificações e as obras de infraestrutura
essencial (constituída pelos sistemas de abastecimento de água
potável, esgotamento sanitário, energia elétrica e drenagem, além
de outros equipamentos exigidos pelo município).

! Aprovada a Reurb, caberá ao município emitir uma Certidão de


PARA SABER MAIS, VER: Regularização Fundiária (CRF), com o nome dos ocupantes e das
▸ Reurb — Lei Federal n. respectivas unidades, que deverá ser levado a registro juntamente
13.465/2017. com o projeto de regularização fundiária.

233
Guia de Urbanismo Social

AS ÁREAS DE RISCO E DE PROTEÇÃO


PERMANENTE

É comum que assentamentos informais se formem ocupando


terrenos sensíveis ambientalmente e em áreas de risco. Isso ocorre
porque a legislação proíbe o mercado formal de urbanizá-las.

A Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei n.6.766/1979) não o


admite em terrenos alagadiços e/ou sujeitos a inundações, aterrados
com material nocivo à saúde pública, em condições geológicas que
desaconselhem a edificação ou que não o ofereçam condições
sanitárias devido à poluição.

Para tanto, os municípios devem mapear tais áreas e elaborar um


Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil, um plano de
implantação de obras e serviços para redução de riscos e uma
carta geotécnica de aptidão à urbanização, além de criar meca-
nismos de controle e fiscalização para evitar sua ocupação. Nas
áreas já ocupadas, o que se prevê é a adoção de providências para
redução do risco e, quando necessário, a remoção de edificações,
com reassentamento dos ocupantes em local seguro. A remoção
depende de vistoria e elaboração de laudo técnico que aponte os
riscos à integridade física.

A regularização fundiária é admitida mediante aprovação do projeto,


acompanhado de estudo que demonstre a melhoria das condições
ambientais em relação à situação anterior e contenha medidas de
recuperação de áreas degradadas, prevenção de riscos geotécnicos
e inundações, uso adequado dos recursos hídricos, proteção de
unidades de conservação, saneamento básico e garantia de acesso
público às praias e corpos d’água.

234
Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

9.4_ DIREITO À CIDADE

O Brasil tem um papel histórico nesse processo não apenas por


desenvolver inúmeras políticas graças às demandas da socie-
dade civil organizada como também por ser o primeiro país do
mundo a expressamente reconhecer o direito à cidade em uma
lei, o Estatuto da Cidade. Segundo ele, a política urbana deve
obrigatoriamente implementar a garantia do direito a cidades
sustentáveis e à gestão democrática, induzindo os municípios
a adotarem uma cultura orientada à participação popular e à
redução das desigualdades socioterritoriais.

O direito à cidade tem sido utilizado em todo o mundo para contestar


o modelo de urbanização excludente e, com isso, reivindicar melhores
condições de vida e propor que as urbes sejam mais justas, democráticas,
inclusivas e ambientalmente responsáveis.

Na América Latina e, em especial, no Brasil, a ideia e as práticas ligadas


a esse direito fazem parte da agenda de reivindicações dos movimentos
urbanos há várias décadas, dialogando com o que se denominou de “re-
forma urbana”. Embora seu conceito tenha surgido da obra do intelectual
francês Henri Lefebvre (1901-1991) no final da década de 1960, foi a partir
das ruas e das lutas sociais que o direito à cidade ganhou vida enquanto
fator de mobilização e transformações.

Nesta seção, vamos explorar as dimensões do direito à cidade e


quais compromissos devem ser adotados em relação ao planeja-
mento e gestão das urbes.

CONCEITO E DIMENSÕES DO DIREITO À CIDADE

Embora, como foi dito, o Brasil tenha reconhecido o direito à cida-


de na legislação, tal conceito vem sendo atualizado de maneira
constante a partir de cada contexto histórico e geográfico. Nesse
sentido, é possível encontrar diferentes conceituações acadêmicas,
em documentos oficiais ou nas narrativas dos movimentos sociais.

235
Guia de Urbanismo Social

Neste texto, serão considerados dois conceitos importantes cons-


truídos por governos locais e redes internacionais da sociedade
civil. O primeiro deles está presente na Carta Mundial pelo Direito
à Cidade, elaborada durante os Fóruns Sociais Mundiais no início
dos anos 2000. De acordo com esse documento:

O Direito a Cidade é definido como o usufruto equitativo das


cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia
e justiça social; é um direito que confere legitimidade à ação
e organização, baseado em seus usos e costumes, com o
objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão
de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a
todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos,
concebidos integralmente e inclui os direitos civis, políticos,
econômicos, sociais, culturais e ambientais. Inclui também
o direito à liberdade de reunião e organização, o respeito
às minorias e à pluralidade ética, racial, sexual e cultural; o
respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e herança
histórica e cultural.

Na sequência, muitas das organizações e redes internacionais que


participaram da elaboração da Carta Mundial pelo Direito à Cidade
fundaram, em 2014, a Plataforma Global pelo Direito à Cidade,
passando a estabelecer um entendimento comum de que ele é

o direito de todas(os) as(os) habitantes, presentes e futuras(os),


permanentes e temporárias(os), de habitar, usar, ocupar,
produzir, governar e desfrutar cidades, vilas e assentamentos
humanos justos, inclusivos, seguros e sustentáveis, definidos
como bens comuns essenciais para uma vida plena e decente.

Em ambos os conceitos, o marco do direito à cidade põe ênfase em


melhorar a participação política, a cidadania livre de discriminação,
a promoção das funções sociais da terra e da propriedade e a
produção social do hábitat na perspectiva dos direitos humanos.
Diante da complexidade desse direito, podemos considerar que
ele articula de modo dinâmico três dimensões fundamentais da
vida urbana.

236
Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

Diz respeito ao acesso universal e equitativo à


DIMENSÃO
terra bem localizada, aos serviços e equipamen-
MATERIAL
tos urbanos, à moradia e aos espaços públicos;

Diz respeito à participação social e cidadania


ativa, assegurando o direito de participar das
DIMENSÃO decisões públicas e realizar controle social
POLÍTICA independente da condição de residente per-
manente, ampliando a ideia de cidadania para
incluir grupos sociais excluídos;

Diz respeito à transversalização do enfrenta-


mento das desigualdades raciais, de gênero,
DIMENSÃO de origem, de acessibilidade, de orientação
SIMBÓLICA sexual e quaisquer outras em toda a política
urbana para a construção de cidades livres de
discriminação.

Tais dimensões, por sua vez, não são estanques nem isoladas, mas se
relacionam entre si e devem ser consideradas de maneira integrada
na formulação das políticas públicas e no ordenamento territorial.

237
Guia de Urbanismo Social

9.5_ O DIREITO À CIDADE COMO


PRINCÍPIO ORIENTADOR DO
ORDENAMENTO TERRITORIAL

Com base na lente do direito à cidade, podemos propor uma lei-


tura dos territórios que necessariamente deve enfrentar as três
dimensões aqui descritas e, com isso, orientar as políticas e planos
públicos que regulam o solo.

Há valores fundamentais que o direito à cidade traz para as agendas


mais técnicas, científicas ou de desenvolvimento. Em primeiro lugar,
conferir centralidade às pessoas e às comunidades e alinhar-se aos
padrões dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente. Em
segundo, um marco criado por meio de uma abordagem partici-
pativa nos níveis de elaboração, implementação e monitoramento.
Em terceiro, um âmbito territorial no qual as políticas de gestão
territorial estejam orientadas a resolver as injustiças e a prevenir
futuros excessos relacionados a violações de direitos humanos e à
destruição do meio ambiente. Em quarto e último lugar, o marco do
direito à cidade reconhece e leva em consideração como diversos
grupos experimentam a urbe de diferentes maneiras — é o caso
das mulheres, discutido no Capítulo 13 deste Guia.

Isso significa que nossa política urbana, e consequentemente


seus marcos normativos, devem ser formulados e implementados
seguindo as diretrizes estabelecidas, isto é, a participação social
(dimensão política), contendo medidas transversais de redução
de todas as formas de desigualdade (dimensão simbólica) e pro-
movendo a justiça territorial e o usufruto equitativo dos serviços
e benefícios das cidades por todas as pessoas, com efetivação
da função social da terra e da propriedade (dimensão material).

238
10_
TÓPICOS EM FORMAS DE
FINANCIAMENTO
10.1_ Instrumentos de recuperação
da valorização do solo

10.2_ Modelos e possibilidades


via financiamento de agências
multilaterais

10.3_ Modelos e possibilidades


estatais

AUTORES

10.1_ Camila Maleronka (Insper);


10.2_ Anacláudia Rossbach (Lincoln
Institute of Land Policy);
10.3_ Diagonal.
Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

10.1_ INSTRUMENTOS DE
RECUPERAÇÃO DA
VALORIZAÇÃO DO SOLO

Para além dos modelos tradicionais de financiamento urbano, vale


considerar a utilização dos chamados instrumentos base solo ou
instrumentos de recuperação da valorização do solo (em inglês,
land value capture). Trata-se de um conjunto de ferramentas que
podem mobilizar a valorização dos terrenos urbanos em linha
com as diretrizes de política urbana, viabilizando investimentos
sem implicar aumento de impostos ou ônus a gerações futuras.
Essa forma de financiamento ainda é tida como alternativa ou
complementar, apesar de incluir instrumentos consolidados e ter
grande potencial de mobilização de recursos.

O princípio por trás da ideia é simples e inclui uma forte justificativa


ética: a valorização urbana é gerada por ações públicas e coletivas,
e sua apropriação privada é, portanto, indevida e injusta; assim,
faz sentido recuperar a valorização, revertendo-a em benefício
público. Sem a recuperação, a valorização do solo será apropriada
por proprietários privados, contribuindo para a concentração de
renda e reprodução de desigualdades. A recuperação da valori-
zação permite mobilizar recursos que ampliam a capacidade de
investimento do poder público, e que podem, inclusive, ser usados
em uma perspectiva de políticas redistributivas.

! São duas as principais fontes de valor dos terrenos urbanos: obras


PARA SABER MAIS, VER: públicas (infraestrutura) e regulação urbanística. Como regra, áreas
▸ ver Capítulo 15 e a com boa infraestrutura valem mais que áreas sem as mesmas
publicação Favela-
condições. Já no que se refere à regulação, a regra é: quanto mais
Bairro: 10 anos depois;
permissiva a legislação incidente sobre determinado bairro ou
▸ BID (2020).
zona (com maior diversidade de usos e limites construtivos mais
amplos), maior valor se adiciona aos terrenos ali localizados. Essas
regras aparentemente banais condicionam o gradiente de preços
das localizações urbanas e o modo como o valor, gerado por ações
públicas, se distribui no território.

241
Guia de Urbanismo Social

Em tese, as definições públicas sobre oferta de infraestrutura


e definições de regulação urbanística são interdependentes:
promove-se o uso mais intensivo do solo onde há infraestrutura
suficiente para dar suporte a tal intensidade e restringe-se a ocu-
pação onde falta infraestrutura. Uma política urbana racional tende
a concentrar valor em determinadas localizações (por exemplo,
promovendo o adensamento ao longo do sistema de transporte)
em detrimento de outras (digamos, limitando a ocupação de áreas
ambientalmente frágeis).

Correntemente, a dinâmica de geração (e destruição) de valor nas


cidades é tomada como aleatória ou incontornável, uma fatalidade.
Já quando se adota a perspectiva da gestão da valorização do solo,
essa mesma dinâmica é reconhecida como resultado de definições
de planejamento urbano e os instrumentos base solo entram em
cena. Sua aplicação considera uma visão integral de desenvol-
vimento urbano e não se encerra na arrecadação de recursos,
mas se retroalimenta pelo investimento. Tão importante quanto
recuperar a valorização oriunda de ações públicas é direcionar os
recursos obtidos para investimentos que considerem as diferenças
intraurbanas, com a perspectiva de redistribuição.

CICLO DE GESTÃO DA
VALORIZAÇÃO DO SOLO

AÇÕES PÚBLICAS
[OBRAS E REGULAÇÃO]

INVESTIMENTO VALORIZAÇÃO DE
[REDISTRIBUIÇÃO] TERRENOS URBANOS

INSTRUMENTOS BASE
SOLO
[RECUPERAÇÃO DE VALOR]

242
Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

No Brasil, os instrumentos base solo podem ser classificados como


tributários e não tributários. Contudo, no capítulo “Instrumentos da
Política Urbana” do Estatuto da Cidade — Lei n.10.257, de 10 de julho
de 2001, discutido no Capítulo 09, constam instrumentos das duas
categorias, sem fazer tal distinção. O ideal é que sejam utilizados
em conjunto, conformando um sistema, porém sua implementação

! depende de condicionantes locais, tanto de ordem técnica, quanto


política. O Estatuto deixa ainda em aberto a proposição de novos
PARA SABER MAIS, VER: instrumentos pelos municípios, reconhecendo o protagonismo dos
▸ Coleção Cadernos governos locais na política urbana.
Técnicos de
Regulamentação
e Implementação O primeiro deles é o IPTU — Imposto Predial e Territorial Urbano.
de Instrumentos do A parcela “territorial” do IPTU recupera incrementos gerais no
Estatuto da Cidade,
publicada pelo
valor dos terrenos urbanos, desde que sua base de cobrança — a
Ministério das Cidades. chamada planta genérica de valores — esteja atualizada e reflita
valores de mercado. A despeito da alta carga tributária no país, o
IPTU tem um desempenho muito aquém das suas possibilidades.

! No Brasil, a receita agregada de todos os municípios representa


0,45% do PIB, enquanto nos EUA, 3%. Para além do financiamento, o
PARA SABER MAIS, VER: IPTU também tem características extrafiscais que contribuem para
▸ Para um diagnóstico a gestão urbana, como o estímulo ao uso dos imóveis e a redução
do IPTU no Brasil, ver
da retenção especulativa.
Diagnóstico IPTU no
Brasil. FGV Projetos
(sem data). Outro instrumento tributário é a contribuição de melhoria, que
possibilita repor custos de obras públicas que valorizem imóveis
adjacentes. É um instrumento antigo, previsto desde a Constituição
de 1934, e vinculado diretamente à diretriz do Estatuto da Cidade
que estabelece a “recuperação dos investimentos do Poder Público
de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos” (Lei
n.10.257/2001, art. 2º, inciso XI). A valorização gerada por obras
públicas, em geral, supera em muito seu custo. Há vários exemplos
registrados na literatura especializada, entre os quais um estudo

! sobre uma obra de drenagem em Porto Alegre que gerou uma valo-
rização estimada em sete vezes o seu custo. O limite de recuperação
PARA SABER MAIS, VER: da contribuição de melhoria é o menor valor entre incremento de
▸ Sobre esse e outros valor e o custo da obra, ou seja, em geral, mesmo repondo o gasto,
casos, ver Estudo do
os proprietários se apropriam de parte relevante da valorização,
Banco Mundial (2020).
com um alinhamento de interesses entre os envolvidos.

243
Guia de Urbanismo Social

Os instrumentos não tributários são aqueles que geram contra-


partidas para o poder público quando no licenciamento de novos
empreendimentos. Qualquer tipo de obrigação urbanística — por
exemplo, a exigência de destinar um percentual de áreas públicas
em novos loteamentos — é um instrumento base solo de recuperação
da valorização, na medida em que reverte parte do valor gerado
pela autorização de um novo empreendimento em benefício público.

Além desses instrumentos gerais, de ampla utilização, há os espe-


cíficos, que mobilizam a valorização da terra por meio da gestão
dos direitos de construir ou do potencial construtivo. Nesse grupo,
com aplicações diversificadas, estão os bônus de densidade, ins-
trumentos que premiam determinadas condutas — como a inclusão
de tipologia de habitação de interesse social em parte do novo
empreendimento — oferecendo edificabilidade adicional. Com a
mesma natureza, o Estatuto da Cidade definiu três instrumentos:
a outorga onerosa do direito de construir (instrumento básico que
organiza a aplicação de todos os outros), a transferência do direito
de construir e a operação urbana consorciada. O princípio é que o
direito de propriedade inclui um direito básico de construção, igual
para todos os imóveis urbanos. O potencial adicional é definido
por critérios urbanísticos e constitui patrimônio público, passível
de outorga onerosa, ou seja, concessão mediante contrapartida.

Com uma trajetória de implementação que soma mais de três


décadas, a cidade de São Paulo é referência na utilização desses
instrumentos, tendo recuperado volumes expressivos de recursos.
Algumas das principais obras de reurbanização de favelas na
cidade foram financiadas por meio de contrapartidas por potencial
construtivo, em operações urbanas e fora delas. Em 2021, a receita
de outorga onerosa na capital paulista correspondeu a 23% de
todos os investimentos realizados.
!
PARA SABER MAIS, VER:

Investimentos em urbanismo social podem ser financiados de ▸ MALERONKA, Camila.


Operações urbanas: o
múltiplas maneiras. A inclusão dos instrumentos base solo no rol
que podemos aprender
de possibilidades amplia o leque de forma consistente e robusta: o com a experiência de
orçamento corrente não é impactado, há transparência fiscal (ori- São Paulo? (2017).

gem-destino dos recursos), não gera peso morto e, principalmente,

244
Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

tem um grande potencial de redistribuição. Trata-se de uma alter-


nativa coerente com os preceitos do urbanismo social, com uma
perspectiva de ganhar cada vez mais espaço na política urbana.

245
Guia de Urbanismo Social

10.2_ MODELOS E POSSIBILIDADES VIA


FINANCIAMENTO DE AGÊNCIAS
MULTILATERAIS

No Brasil e no restante da América Latina os Bancos de Desenvol-


vimento e as agências internacionais desempenharam um papel
fundamental para a inserção de programas de urbanização de
favelas na agenda de municípios e governos regionais e nacio-
nais. Embora urbanização de favelas não seja sinônimo estrito
de urbanismo social, certamente a impulsão de projetos para a
melhoria de assentamentos precários foi e é fundamental para
lastrear intervenções de mais longo prazo e de natureza sistêmica.
Isso porque reorientou o planejamento urbano e as estratégias
de desenvolvimento local, na medida em que tais projetos: (i) por
um lado requerem alterações regulatórias e legais; e, (ii) de outro,
paulatinamente introduzem uma nova cultura sobre o espaço
urbano, onde o território precário e informal ganha cada vez
mais centralidade e funciona como espaço concreto de políticas
públicas com enfoque em inclusão e na promoção da equidade.

Embora hoje existam diversas organizações internacionais que


atuam na esfera da assistência técnica e da prática da advocacy,
historicamente algumas se destacaram em promover essa agenda
que hoje chamamos de urbanismo social — seja com projetos icôni-
cos, seja através de ações combinadas de apoio ao desenvolvimento
institucional, capacitação, pesquisa e incidência política. Como
iniciativas emblemáticas emergentes nos anos 1990 e princípios
de 2000 podemos citar, na esfera local, o projeto Favela-Bairro,
no Rio de Janeiro, financiado pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), e o Programa Mananciais em São Paulo,
custeado pelo Banco Mundial (ver Capítulo 15). Como projetos,
ambos influenciaram intervenções similares não só no Brasil como
também em outras nações, e ficaram bastante conhecidos.

Por outro lado, menos conhecido, mas com um impacto significativo,


o Programa Habitar Brasil BID de 1999 foi responsável pela inserção
do tema da urbanização de favelas na política nacional e nos 119

246
Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

! municípios incluídos no escopo do projeto executado pelo governo


federal. O Habitar Brasil incluía: (i) ações de desenvolvimento
PARA SABER MAIS, VER: institucional, como mudanças no planejamento local, desenvol-
▸ Sobre o programa vimento de instrumentos de regularização fundiária, adequação
HBB Brasil BID, ver
de normas e regras urbanísticas com flexibilidade compatível à
Habitar Brasil BID/IDB,
Ministério das Cidades realidade local e capacitação de equipes técnicas; (ii) elaboração
(sem data). e execução de projetos de urbanização que incluíam regularização
▸ Sobre os programas fundiária, infraestrutura urbana, equipamentos sociais, de cultura
de urbanização
e lazer, além de um componente de desenvolvimento comunitário
de favelas e seu
financiamento, ver: BID. com aspectos de capacitação de lideranças, educação ambiental,
Urbanização de Favelas: e geração de trabalho e renda.
lições aprendidas no
Brasil (2012).
A relevância desse programa está relacionada não somente com
o impacto nas cidades beneficiadas pelo mesmo como também
ao avanço institucional ocorrido simultaneamente à aprovação da
legislação e marco urbano no Brasil, o Estatuto da Cidade, em 2001.
Além de trazer instrumentos para que os municípios pudessem re-
conhecer na prática a função social da terra e da cidade, o Estatuto
serviu de fundamento legal para uma escalada de investimentos
públicos direcionados a projetos de urbanização de favelas por meio
do “Programa de Aceleração do Crescimento — PAC Favelas”. A
liberação de recursos da União em larga escala para financiar ações
em assentamentos localizados em áreas onde a propriedade não
está claramente definida ocorreu graças à Instrução Normativa n. 1
da Secretaria do Tesouro Nacional1, que disciplina a celebração de
convênios para projetos financiados com recursos do Orçamento
Geral da União. Tal regulamentação permite a utilização de recursos
públicos em “Zonas Especiais de Interesse Social — Zeis”, como
alternativa à comprovação da propriedade2 .

Esse precedente é fundamental para desobstruir o fluxo de financia-


mento público para obras de urbanização de favelas e, no contexto
deste Guia, viabilizar estratégias de longo prazo de urbanismo
social, já que o financiamento por bancos de desenvolvimento

1 Instrução Normativa n. 1, de 15 de janeiro de 1997 — Celebração de Convênios


(Texto Consolidado), Capítulo II, artigo 2º, parágrafo IX – f.

2 ROSSBACH e MAGALHÃES. Estatuto da Cidade: A Velha e a Nova Agenda Urba-


na. P- 94. 2016.

247
Guia de Urbanismo Social

internacional passam obrigatoriamente pelo tesouro público, além


de exigir contrapartidas locais. No caso do Habitar Brasil BID, por
exemplo, o montante de contrapartida era de 40% do investimento
de um total de US$ 298,9 milhões3.

É muito importante ressaltar ainda o papel histórico do Banco


Mundial e da Cities Alliance4, organizações que estavam integradas
do ponto de vista institucional e contribuíram para muitos avanços
na agenda de urbanização de assentamentos precários nas escalas
local e nacional. Ações de assistência técnica e capacitação foram
implementadas em vários municípios e em apoio à Política Nacional
de Habitação do Ministério das Cidades. Um exemplo emblemático
foi a construção de um sistema de informações georreferenciado
das favelas do município de São Paulo, atrelado a indicadores de
vulnerabilidade física e social, o Habisp. Ele não consistia apenas
em um inventário; funcionou também como instrumento técnico-
-político para hierarquizar as intervenções, e com isso viabilizar
o planejamento de longo prazo. Posteriormente, esse sistema foi
incorporado a um outro maior, de georreferenciamento do município,
o mapa digital da cidade, o Geosampa, além de ter sido replicado
no município de São Bernardo do Campo, com o apoio, igualmente,
da Cities Alliance, com a denominação de Sihisb.
!
PARA SABER MAIS, VER:

Em termos de apoio à política nacional, conjuntamente a Cities ▸ Sobre o Habisp,


ver link.
Alliance e o Banco Mundial apoiaram diversas frentes para promover
o avanço institucional da agenda de urbanização de favelas. Des- ▸ Sobre o Sihisb,
ver link.
tacam-se: (i) apoio ao Plano Nacional de Habitação — Planhab, com
o desenho de um modelo de subsídios e financiamento que incluía
aspectos preventivos de produção de novas habitações e curativos de
expansão de infraestrutura e melhorias habitacionais em territórios
precários; (ii) viagens de estudo e intercâmbio de conhecimento,
incluindo apoio institucional ao componente de assentamentos
humanos do acordo de cooperação internacional conhecido com
IBSA (Índia, Brasil e África do Sul); (iii) capacitação de atores locais

3 Habitar Brasil BID, 2007.

4 A Cities Alliance é fruto de uma coalisão internacional em prol da pobreza urba-


na, sob o lema “Cities without slums” (“Cidades sem favelas”), que, no início, estava
vinculada institucionalmente ao Banco Mundial.

248
Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

por meio de ensino a distância, incluindo duas edições do curso


“Ações Integradas de Urbanização de Assentamentos Precários”.

Mais recentemente, as operações financiadas pelos bancos de


desenvolvimento internacional incorporaram uma forte abordagem
de sustentabilidade climática e ambiental, dela fazendo parte
tanto aspectos de mitigação de riscos e promoção de resiliência
como de preservação de entornos naturais de bairros periféricos
e precários. Assim, temas como espaços verdes e mobilidade
sustentável ganharam evidência. Um exemplo importante é o
projeto implementado pela companhia de água e saneamento do
estado de São Paulo, a Sabesp, Improving Water Service Access
And Security in the Metropolitan Region of São Paulo Project,
um projeto de US$ 250 milhões para o período de 2018-2025,
de abrangência metropolitana, que teve como foco os bairros
localizados no entorno da represa Billings, uma área estratégica
de preservação ambiental e para o abastecimento de água da
região. Por não se enquadrar aos limites administrativos de um só
município, foi necessária uma grande articulação para o desenho
do território de abrangência, assim como ações coordenadas no
processo de implementação, ainda em curso.

Sem um histórico tão robusto de operações de crédito com enfoque


em urbanização de assentamentos precários, a CAF, Banco de
Desenvolvimento da América Latina, atuou fortemente no processo
de realização da Conferência Hábitat III e na elaboração da Nova
Agenda Urbana, coordenando um grupo de trabalho dedicado ao
tema Direito à Cidade, relacionado com o fortalecimento da dimen-
são urbana, e uma abordagem de inclusão social em sua estratégia
corporativa. Projetos icônicos financiados pela CAF em Guayaquil,
no Equador, e em Buenos Aires, na Argentina, foram desenhados
com o objetivo de promover o acesso a serviços, habitação e
infraestrutura em territórios precários. No Brasil, entre 2009 e
2019, o CAF aprovou 35 operações de crédito para 26 municípios,
de cerca de USD 2,3 bilhões de dólares, com um portfólio robusto
de projetos orientados à reabilitação, integração e melhoria de
infraestrutura urbana em territórios vulneráveis.

249
Guia de Urbanismo Social

Embora a assistência técnica vinculada às operações promovidas


pelos bancos internacionais de desenvolvimento possa ser não
onerosa, em alguns casos, empréstimos com enfoque em desen-
volvimento institucional são concedidos para os governos nacional
ou subnacionais. Trata-se de empréstimos mais enxutos e de curto
prazo, que normalmente financiam consultorias para a elaboração
de diagnósticos, políticas, planos e programas que podem (ou não)
resultar em operações mais robustas e de longo prazo que financiam
a execução de projetos; ou mesmo estar associados a empréstimos
mais flexíveis para fortalecer o tesouro público, contudo atrelados
a compromissos setoriais (gestão, fiscal, infraestrutura urbana ou
social). No Banco Mundial, essa modalidade se chama “Empréstimo
de Política de Desenvolvimento” (Development Policy Loan, DPL
em inglês). Por exemplo, em 2010 o governo do estado do Rio de
Janeiro recebeu dois empréstimos do Banco Mundial atrelados a
compromissos de melhorar a gestão metropolitana nos aspectos
de risco e desastre, desenvolvimento urbano, inclusão social e
redução de vulnerabilidades.

Naturalmente, em se tratando de empréstimos, além das contra-


partidas obrigatórias, os recursos são onerosos e precisam ser
reembolsados aos bancos, e, embora a taxa de juros seja inferior
às praticadas pelo mercado, a variação cambial é um elemento
importante a ser considerado. De todo modo, para firmar um
empréstimo internacional um governo subnacional necessita de
aprovação federal (executivo e legislativo) condicionada à capaci-
dade fiscal. Adicionalmente, um processo de desenho e construção
conjunta precede as negociações finais de um empréstimo, e as
equipes sediadas nas representações em Brasília coordenam,
com apoio internacional, visitas e missões para avaliações iniciais
e estudos de viabilidade com o objetivo de certificar-se de que
os objetivos do apoio solicitado estão em linha (i) com as suas
estratégias setoriais e de país; (ii) com o marco legal e político do
Brasil; e (iii) atendem às exigências de salvaguardas ambientais e
sociais definidas pela instituição e a legislação local.

O histórico e os exemplos mencionados refletem uma clara disposi-


ção dos bancos internacionais de desenvolvimento em apoiar ações

250
Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

relacionadas à melhoria da qualidade de vida em territórios urbanos


vulneráveis por meio de assistência técnica e financiamento de
projetos. Nesse sentido podem, sim, constituir um pilar estratégico
para o financiamento de longo prazo de ações de urbanismo social,
tanto em seu componente físico (infraestrutura, habitação, mobi-
lidade, espaços e equipamentos públicos), como social (apoio ao
desenvolvimento comunitário, inserção socioeconômica, segurança).

Vale evidenciar, no entanto, a relevância do orçamento público para


financiamento de infraestrutura nos assentamentos precários no Brasil.
O já mencionado Programa de Aceleração do Crescimento — PAC
representou um fluxo bastante significativo de investimentos naqueles
territórios, o equivalente a US$ 10 bilhões de dólares. Superando em
muito o aporte internacional, tais recursos foram fundamentais para
ampliar o impacto da ação histórica dos bancos internacionais de
desenvolvimento no país.

251
Guia de Urbanismo Social

10.3_ MODELOS E POSSIBILIDADES


ESTATAIS

O investimento público e estatal sistemático é fundamental para a


construção, manutenção e gestão dos equipamentos e intervenções
urbanísticas comunitárias. Diante da escassez e competição pelo
fundo público, e da necessidade de direcionar investimentos para
áreas socialmente vulneráveis, é central que haja a compreensão a
respeito dos modelos públicos de financiamento, além de outros,
de origens diversificadas.

Somados aos instrumentos de recuperação da valorização do solo


e via agências multilaterais, anteriormente discutidos, apresentam-
-se outras possibilidades de financiamento urbano. Uma dessas
possibilidades é a adoção de sistemas de políticas públicas, planos
ou programas específicos, federais ou estaduais, que exerçam
o repasse de recursos para investimentos vinculados, ou fundo
a fundo. É o caso de investimentos setoriais em infraestrutura e
desenvolvimento urbano, tais como o Plano Local de Habitação de
Interesse Social (PLHIS)5, Plano Municipal de Saneamento Básico
(PMSB)6, Plano Municipal de Limpeza Urbana (PMDU)7, Plano
Municipal de Resíduos Sólidos (PMRS)8.

Outra possibilidade seria o financiamento proveniente de fundos


e fundações estatais, como o Fundo Socioambiental Caixa e a
Fundação Banco do Brasil, que apoiam projetos com caráter so-
cioambiental, voltados ao desenvolvimento sustentável, à inclusão
socioprodutiva e à reaplicação de tecnologias sociais. Nesses
casos são realizados investimentos não reembolsáveis em parceria
com instituições sem fins lucrativos por meio da celebração de

5 Exigido pela Lei nº 11.124, de 16 de junho de 2005, para municípios com mais de
50 mil habitantes.

6 Instrumento exigido pela Lei Federal nº 11.445, de 2007.

7 Visa atender a Lei Federal n° 11.445/07, conhecida como Lei do Saneamento,


novo marco regulatório do setor

8 Estabelecido pela Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n°


12.305/2010) e regulamentada pelo Decreto n° 7.404/10.

252
Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

convênios ou contratos, a partir dos editais de chamamento público.


Trata-se de um instrumento com grande potencial para amplificar
o financiamento de transformações comunitárias e identitárias
nas cidades. Por fim, destaca-se a possibilidade de obtenção de
recursos por meio das transferências voluntárias9, a exemplo de
emendas parlamentares e concessões públicas e constitucionais.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ LEITE, Carlos et al. Social Urbanism in Latin America: cases and instruments of
planning, land policy and financing the city transformation with social inclusion, 2020.

9 São definidas pelo art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) como a entre-
ga de recursos financeiros a outro ente da federação, a título de cooperação, auxílio
ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou
os destinados ao Sistema Único de Saúde.
253
11_
TÓPICOS EM CIDADE E
CRIANÇAS
11.1_ A prioridade absoluta do direito
da criança e do adolescente à cidade

11.2_ O Programa Urban95

11.3_ O papel da escola pública em


territórios de vulnerabilidade social

11.4_ Mapeando a quebrada: as ruas


são para brincar

AUTORES

11.1_ Pedro Hartung e Guilherme Pecoral


(Instituto Alana);
11.2_ Núcleo de Urbanismo Social;
11.3_ Núcleo de Mulheres e Territórios;
11.4_ Aluízio Marino, Leticia Avelino,
Sabrina O. Santos (Observatório de Olho
na Quebrada de Heliópolis).
Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

11.1_ A PRIORIDADE ABSOLUTA DO


DIREITO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE À CIDADE

Toda criança tem direito a crescer em um ambiente em que se


sinta segura, tenha acesso a serviços básicos, água e ar limpos,
possa brincar, aprender e crescer onde a sua voz seja ouvida e
importe. Esse é o mote da iniciativa Cidades Amigáveis à Criança,
projeto do Unicef que apoia governos municipais a realizarem os
direitos de crianças e adolescentes.

A partir da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU de


1989, a iniciativa considera que uma cidade amigável é aquela em
que crianças e adolescentes são saudáveis e cuidados, protegidos
de exploração e violência e têm acesso a serviços sociais de
qualidade e a uma educação inclusiva e participativa, expressam
suas opiniões e influenciam decisões, participam da vida familiar,
cultural e social, vivem em ambientes seguros e limpos, com acesso
a espaços verdes, encontram amigos, contam com espaços para
brincar e com oportunidades, independentemente de origem étnica,
religião, renda, gênero ou condição física.

A ideia de cidades amigas da criança, na perspectiva do direito


à cidade, exige mobilização em várias dimensões do urbano,
como o planejamento, o funcionamento, as políticas públicas, a
acessibilidade, o acesso à natureza e a participação.

Do ponto de vista do planejamento urbano, é preciso que a criança


seja considerada com prioridade no processo e nas decisões,
inclusive no desenho dos espaços. A perspectiva de crianças
pequenas deve estar incluída no planejamento, não só para que
seus direitos sejam garantidos como também porque a cidade
amiga da criança é, igualmente, amiga de todos, mais segura e
acessível1. Nesse campo, há o desafio de reimaginar e replanejar
as cidades, muitas vezes marcadas por conflitos e desigualdades
em sua história e forma.

1 Conforme explicitado no item “O Programa Urban95” deste Capítulo.

255
Guia de Urbanismo Social

Além disso, é preciso que crianças e adolescentes sejam conside-


rados no cotidiano da cidade, o que compreende o deslocamento
da casa para escola, aos espaços de lazer etc., tanto em termos
espaciais, de distância e acessibilidade, quanto de segurança.
Nesse sentido, aparelhos e políticas públicas devem ser conectados
territorialmente, combinando, por exemplo, os serviços de saúde
ao conselho tutelar.

Cidades amigas da criança também devem ser compatíveis com


a diversidade da população, sem barreiras sociais, estruturais
ou geográficas, especialmente em relação a crianças pequenas
ou àquelas que têm necessidades específicas, relacionadas à
mobilidade, por exemplo.

São fundamentais, ainda, a existência, o acesso e a qualidade da


experiência de crianças e adolescentes em espaços verdes, para
que possam conviver e brincar entre si e na natureza. A iniciativa
dos parques naturalizados promove o aproveitamento das carac-
terísticas dos terrenos e a utilização de elementos naturais, como
troncos, árvores e plantas para a ampliação de espaços verdes
amigáveis às infâncias nas cidades.

No mais, é indispensável a participação de crianças e adolescentes


nas discussões e decisões públicas. É preciso fortalecer os Conse-
lhos Municipais e as ações de escuta sensível para que tal partici-
pação seja efetiva e considerada em suas diferentes linguagens.

A expressão ‘’direito à cidade’’ (ver Capítulo 09) produz reflexões


sobre o espaço urbano no Brasil e no resto do mundo, seus sentidos,
desafios e perspectivas, e, nesse contexto, crianças e adolescentes
são pessoas com necessidades, desejos e direitos próprios. Seu
direito à cidade corresponde ao de viver, acessar e ocupar os espa-
ços sem ter sua existência e particularidades de desenvolvimento e
expressões como indivíduos e grupo social ignoradas. Ao contrário,
elas devem ser consideradas por todos no planejamento e uso
da cidade, com igualdade de condições e respeito às diferenças.
Crianças e adolescentes correspondem a um terço da população

256
Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

brasileira e, assim, devem ser consideradas democraticamente em


todas as decisões e ações que as impactem, de maneira direta ou
indireta, inclusive no âmbito do espaço urbano.

A garantia disso está prevista no artigo 227 da Constituição Federal.


Possibilitar a toda criança e a todo adolescente o: direito à vida, à
segurança, à saúde, alimentação, educação, esporte, lazer e cultura
é fundamental para que o direito à cidade se realize e contribua
para a existência de um lugar melhor para que a população infantil
e a jovem, além de todas as demais faixas, vivam plenamente.

O direito à cidade, como expressão de diversos outros direitos, é igual-


mente contemplado pelo artigo 227 da Constituição Federal, que diz:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade,
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.

Fruto de uma ampla mobilização social, inclusive de muitas crianças


e adolescentes, esse artigo é paradigmático, funcionando como
diretriz para todas as famílias, a sociedade, as comunidades — in-
clusive as urbanas — e o próprio Estado ao consagrar a prioridade
absoluta como perspectiva inafastável nas decisões e ações
públicas e privadas.

Sua importância decorre do fato de que crianças e adolescentes


são sujeitos em estágio peculiar de desenvolvimento, de forma que
as situações pelas quais passam têm potencial de produzir efeitos
para toda a vida. O pico do desenvolvimento neuronal humano
é na primeira infância, segundo fundamentos da neurociência,
que explicitaram ainda mais a sensibilidade das experiências e
expressões de tal período. A adolescência, por sua vez, é outra fase
da maior importância, sobretudo em razão do desenvolvimento do
córtex pré-frontal. Adversidades nas duas etapas podem impactar

257
Guia de Urbanismo Social

o aprendizado, o comportamento e a saúde dos indivíduos, inclusive


por meio do estresse tóxico advindo da vivência de adversidades
ambientais (como a falta de alimentos, de saneamento, de situações
de violência urbana etc.) ou relacionais (negligência parental e
violência doméstica, entre outras). Além disso, tais fatores acirram
desigualdades, em suas múltiplas dimensões, podendo consolidá-las
para o decorrer da vida.

Assim, o dever constitucional da prioridade absoluta é necessário


para proteger de modo especial as crianças e os adolescentes
em um período peculiar e sensível do desenvolvimento humano e
promover sua cidadania e potencialidades, inclusive nas cidades,
onde as condições de moradia, circulação etc. são decisivas para a
qualidade de vida, além de um crescimento e um amadurecimento
sadios e integrais.

O QUE ISSO SIGNIFICA NA PRÁTICA


PARA AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES
QUE VIVEM EM CIDADES?

O artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),


instrumento que data de 1990, detalha quais são os principais
aspectos aos quais se vincula a prioridade absoluta para as faixas
que ele abarca:

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

▸ Primazia de receber proteção e socorro em quaisquer


circunstâncias;

▸ Precedência de atendimento nos serviços públicos ou de


relevância pública;

▸ Preferência na formulação e na execução das políticas


sociais públicas;

▸ Destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas


relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

258
Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

Para a vida nas cidades, são inúmeras as situações em que esse


dispositivo deve ser aplicado.

A primazia de receber proteção e socorro coloca as crianças e


adolescentes à frente em situações de violência, desastres, opera-
ções policiais, insegurança alimentar, despejos e remoções, entre
outras. Isso significa que qualquer intervenção que impacte direta
ou indiretamente crianças no espaço urbano deve ser guiada pelo
seu melhor interesse e direitos previstos em primeiro lugar, para
sua devida proteção.

A precedência de atendimento em serviços ilumina a prioridade da


criança para além de ambientes como escolas e creches — inclui ainda
todo serviço de relevância pública, como estabelecimentos de saúde,
cultura e lazer, distribuídos e organizados no espaço urbano. Assim,
cabe à administração garantir o devido acesso a esses serviços com
prioridade, sem obstáculos ou desigualdades territoriais.

A preferência na formulação e na execução de políticas públicas,


por sua vez, é um aspecto essencial, inclusive para a realização da
proteção e do atendimento, porque impõe o dever de considerar as
infâncias e adolescências nos projetos públicos e urbanísticos em
elaboração ou execução. Nesse sentido, é dever da administração
garantir que na formulação e execução de políticas urbanas, como
o plano diretor de uma cidade, as crianças sejam consideradas e
contempladas em suas necessidades em primeiro lugar.

Por fim, a destinação privilegiada de recursos é medida obrigatória


que beneficia não apenas essa população como toda a sociedade.
Investir na infância é uma decisão estratégica para toda a popu-
lação. Estudos apontam que o investimento nas áreas da infância
e adolescência é aquele que mais traz retornos sociais e econô-
micos — especialmente os realizados em áreas de vulnerabilidade
social —, gerando benefícios em setores como educação, saúde,
previdência, segurança no próprio orçamento público.

São diversas e múltiplas as infâncias e adolescências que habitam


as cidades brasileiras. Idade, deficiência física e/ou intelectual,

259
Guia de Urbanismo Social

classe, território, gênero e raça são alguns dos fatores que condi-
cionam a vida urbana entre crianças e adolescentes e seu acesso
a direitos. Assim, é necessário que as desigualdades na cidade
sejam levadas em consideração na definição das populações
prioritárias a serem protegidas, conforme a legislação brasileira
e internacional, que determina que, quanto mais vulnerável um
grupo de crianças ou adolescentes for, mais proteção devem
receber, em um modelo interseccional de proteção2.

É, portanto, compromisso constitucional a construção de uma


sociedade igualitária e não discriminatória. Nesse sentido dispõem
a Lei n.13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e a Lei
n.13.257/2016 (Marco Legal da Primeira Infância), sobre faixas
populacionais que devem ser priorizadas também na política urbana.
Além disso, é necessário que a atenção pública se debruce com
prioridade sobre outras infâncias e adolescências particularmente
vulneráveis nas cidades, como as populações em situação de rua,
em acolhimento institucional, no sistema socioeducativo, imigrantes,
periféricas, negras e indígenas.

UM CASO BRASILEIRO:
O MUNICÍPIO DE JUNDIAÍ

A cidade de Jundiaí, no Estado de São Paulo, conta com uma história


recente exemplar de política urbana voltada a crianças.

Em 2017, foi criada naquele município a Política Municipal da Criança


na Cidade, que tinha como objetivo orientar o planejamento urbano,
os projetos e as ações das diferentes áreas para o desenvolvimento
saudável e seguro da população infantil.

Em 2018, foi formado um grupo de trabalho composto por repre-


sentantes de diferentes áreas que, desde então, trabalha para
a construção da intersetorialidade nas políticas públicas para
a criança na cidade. Assim, por meio de um decreto municipal,
foi criado o Comitê das Crianças de Jundiaí, que tem entre suas

2 HARTUNG, Pedro. Levando os direitos das crianças a sério. Tese (Doutorado) —


Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

260
Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

principais funções a escuta da população infantil do município,


visando à construção de políticas públicas sob sua própria ótica.

No ano seguinte, a cidade aprovou o seu plano diretor, que, de


maneira pioneira, dedica um capítulo exclusivo às políticas para a
criança no município. Também em 2019 a Prefeitura recebeu um
pedido do Comitê para a construção de um parque público gratuito
para crianças de todas as idades. O pedido foi atendido, dando
início às obras do Parque Mundo das Crianças.

Na pandemia da covid-19, o Mundo das Crianças passou a funcionar


também como uma sala de aula a céu aberto da rede municipal de
ensino, proporcionando uma experiência inovadora aos alunos. O
Parque é ainda a extensão da área de preservação da represa que
abastece Jundiaí e busca concretizar os direitos da criança, com
base em pesquisas e experiências internacionais sobre as relações
do ambiente urbano e o planejamento de políticas públicas.

261
Guia de Urbanismo Social

11.2_ O PROGRAMA URBAN95

No contexto do urbanismo social, a discussão em torno da qualifica-


ção do espaço urbano, sobretudo nos territórios de vulnerabilidade
social, não pode deixar de priorizar a perspectiva da população
mais afetada inserida nessas localidades, ou seja, as crianças, os
jovens e seus cuidadores, e também os idosos.

A pauta da criação de cidades voltadas para o desenvolvimento positivo


das crianças e suas famílias vem, felizmente, tomando espaço nas
discussões relacionadas à gestão dos municípios, no planejamento
urbano e na formulação de políticas públicas. Uma das principais
iniciativas na promoção da transformação do cenário urbano com
foco nas crianças é o Programa Urban95, da Fundação Bernard van
Leer, o qual se fundamenta no princípio de que uma cidade acessível
e segura para as crianças, bebês, jovens e seus cuidadores é uma
cidade que tende a se desenvolver econômica e socialmente.

A questão-chave para o Urban95 é justamente projetar a cidade


pensando na perspectiva de uma criança de 3 anos, ou seja, a uma
altura de visão de aproximadamente 95 centímetros. A iniciativa
promove o apoio aos gestores públicos, planejadores urbanos
e urbanistas no planejamento das cidades para que priorizem o
desenvolvimento infantil através de estratégias inovadoras que
melhorem o modo de vida das famílias e de crianças na primeira
infância. Tais estratégias partem de ações como, por exemplo, o
favorecimento de atividades educadoras nos espaços públicos,
como praças e parques; o estímulo à criação de uma rede de ca-
minhabilidade na escala do bairro, e toda a conectividade urbana
entre os equipamentos públicos e áreas de lazer; e, ainda, numa
escala menor, o uso de mobiliário urbano desenvolvido para a
acessibilidade das crianças e de seus cuidadores.

262
Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

PROGRAMA MAIS VIDA NOS MORROS,


RECIFE

Diversas cidades do país fazem parte do Programa Urban95, da Fundação


Bernard van Leer, implementando projetos de impacto em territórios
de vulnerabilidade social. Recife é uma importante referência, com
investimentos voltados à primeira infância e projetos para a redução
das desigualdades e da criminalidade em bairros vulneráveis, em casos
modelares também para o urbanismo social (ver Capítulo 15), a exemplo
do Mais Vida nos Morros e dos Centros Comunitários da Paz (Compaz).

A ampliação do Mais Vida nos Morros integra um conjunto de políticas


públicas, programas e projetos lançados pela prefeitura da capital per-
nambucana e sustentada pelo Marco Legal da Primeira Infância, lançado
em 2018, e pelo mais recente Plano Municipal da Primeira Infância do
município, sancionado em 2020. Segundo dados do Programa Mais Vida
nos Morros, acima de 60% das crianças entre 0 e 14 anos vivem em casas
com renda inferior a meio salário mínimo no estado do Pernambuco, no qual
a cidade de Recife retrata uma das regiões mais pobres do Brasil. Portanto,
garantir a mitigação das desigualdades sociais é uma necessidade vital
para o desenvolvimento das crianças em todos os seus aspectos — proteção
social, bem-estar, qualidade de vida, assistência social, saúde e educação.

Os projetos de urbanismo social nas comunidades recifenses voltaram-se


para o envolvimento e o protagonismo das crianças, a partir da qualifi-
cação do espaço público que estimula o brincar, o lazer, e as atividades
educativas junto de seus cuidadores. A criação de praças, espaços lúdicos,
parquinhos etc., acompanhados de toda uma estrutura de ações locais e
engajamento social, vem transformando diversas comunidades na capital. O
trabalho junto às comunidades, gestores públicos e sociedade civil aponta
! resultados positivos em relação aos indicadores sociais nesses territórios,
como a sensação de segurança e a possibilidade de brincar fora de casa.
PARA SABER MAIS, VER:
Segundo os dados da comunidade do Burity, incluída no Programa Mais
▸ PONZI, T. e LEITE, C.
Vida nos Morros, o número de crianças que usam o espaço público como
Urbanismo social com as
área de lazer aumentou em 64,3 pontos percentuais, passando de 11,4%
cores do Recife. Revista
Piauí, 2021. para 75,7%, após as intervenções, realizadas em 2019.

263
Guia de Urbanismo Social

GUIAS DE BAIRROS
AMIGÁVEIS À PRIMEIRA
INFÂNCIA (BAPIS)
Outra iniciativa importante para a promoção do urbanismo social a partir
da dimensão das crianças são os recentes Guias de Bairros Amigáveis à
Primeira Infância (BAPIs) da Fundação Bernard van Leer em parceria com
o Instituto de Arquitetos do Brasil, IAB, 2021.

Trata-se de uma série de quatro publicações que foram desenvolvidas


pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) como parte de um projeto
em parceria com a Fundação Bernard van Leer e a cidade de Aracaju.
As recomendações elaboradas pelo IAB foram inspiradas em uma série
de guias semelhantes desenvolvidos na Índia e adaptados ao contexto
brasileiro. Os quatro guias são estes:

Guia 1 — Estruturação de políticas públicas;

Guia 2 — Manual de políticas públicas;

Guia 3 — Diretrizes para desenho urbano;

Guia 4 — Indicadores para monitoramento.

264
Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

11.3_ O PAPEL DA ESCOLA


PÚBLICA EM TERRITÓRIOS DE
VULNERABILIDADE SOCIAL

A escola pública brasileira é uma conquista social que precisa


ser defendida constantemente. Desde a década de 1930, com os
Pioneiros da Escola Nova — cujos expoentes foram Anísio Teixeira
(1900-1971) e Fernando de Azevedo (1894-1974) —, o Brasil busca
formular políticas para uma educação pública, laica e gratuita.
Durante esse período, de quase um século, a sociedade brasileira
viveu conquistas importantes, como, por exemplo, a universalização
da educação básica, o piso nacional docente, o plano nacional de
educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o Estatuto da
Criança e do Adolescente. Ainda que insuficientes, são conquistas
que demandam eterna vigilância por parte da sociedade civil para
que se mantenham e se expandam.

A educação é um campo de disputas ideológicas que, de tempos


em tempos, enfrenta retrocessos no que diz respeito ao acesso,
ao financiamento e à qualidade do ensino no país. O entendimento
da educação como direito fundamental ainda não é uma realidade
para grande parte da população, principalmente aquela que vive
em territórios de grande vulnerabilidade social.

É inegável, entretanto, que as escolas são as instituições de


maior capilaridade nas grandes cidades brasileiras. Junto com
o Sistema Único de Saúde (SUS), muitas vezes são os únicos
equipamentos públicos que atendem as classes populares — e,
por esse motivo, têm uma importância estratégica na garantia
de direitos à população como um todo.

A pandemia da covid-19 mostrou a importância da instituição


escolar no atendimento integral das populações empobrecidas:
as escolas fechadas em períodos de necessário distanciamento
social impossibilitaram, por exemplo, a segurança alimentar de
milhões de estudantes que se nutrem exclusivamente da merenda
que lá recebem.

265
Guia de Urbanismo Social

As pessoas que residem nas periferias das grandes cidades re-


conhecem na escola pública a referência para o acesso a outros
direitos, muito além da educação. Ainda que corrompida pela
precariedade, é a escola que, muitas vezes, articula acessos à
rede de proteção social, de saúde e de alimentação. Ela ocupa,
ainda que em meio a violências de diversas naturezas, um lugar
de respeito no imaginário social.

Do mesmo modo, a escola é uma instituição que potencialmente


elabora e propaga princípios e valores em conjunto com a comunida-
de onde está inserida. Segundo a Base Nacional Comum Curricular,
o projeto pedagógico de todas as escolas brasileiras deve, mais
do que promover o ensino de conteúdos das disciplinas clássicas,
contextualizá-lo em relação às demandas sociais do seu território.
Isso significa que as comunidades têm autonomia para conceber e
realizar o projeto político pedagógico de suas escolas, ao passo que
se constitui como grupo organizado em pleno gozo da democracia.

É evidente que o Brasil ainda tem um longo caminho na busca


pela justiça social, pela equidade de direitos, pela melhoria da
qualidade de vida de sua população. A educação pública popular
se apresenta, mais do que nunca, como uma profícua estratégia
política para o desenvolvimento das comunidades que vivem em
vulnerabilidade — e, mais ainda, para o desenvolvimento da nação.

266
Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

11.4_ MAPEANDO A QUEBRADA: AS


RUAS SÃO PARA BRINCAR

Parques e praças são espaços públicos fundamentais para o con-


vívio em sociedade. É nesses lugares que as pessoas conversam,
se conectam e estabelecem o sentido de comunidade. Já nas pe-
riferias, onde há carência de espaços dessa natureza, são as ruas
e calçadas que funcionam como áreas de socialização. Em frente
às casas e aos estabelecimentos comerciais acaba por existir uma
grande interação comunitária, com os moradores participando
de manifestações e celebrações diversas — de blocos festivos a
procissões religiosas. Para as crianças, em especial, a importância
desses locais em seus bairros é tanta que, a depender do território,
é impossível distinguir onde começa o ambiente privado de seus
quartos e onde terminam os espaços comuns aos pequenos, nos
quais eles se encontram com seus amigos para brincar.

No entanto, quando passamos a pensar nas vulnerabilidades de


crianças e adolescentes dentro de suas comunidades, é possível
observar que os problemas relacionados ao tráfego de carros,
à segurança pública e às desigualdades sociais — os quais se
desdobram em questões de gênero, raça, classe e orientação se-
xual — acabaram condicionando, ao longo dos anos, a forma como
eles interagem com esses espaços, tidos hoje como ameaçadores,
inseguros e criadores de maus hábitos. Nesse sentido, a tendência
é percebê-los como vítimas e, portanto, seres que precisam ser
constantemente vigiados e protegidos, seja pelo Estado, seja por
seus familiares e professores. Mas o que fazer quando esses atores
também não conseguem garantir ambientes seguros para todos
os pequenos e os jovens?

A vulnerabilidade das crianças e adolescentes transcende seu


tamanho, força ou idade, ligando-se também às práticas sociais. Ou
seja, muitas vezes eles apanham dos pais, são constrangidos por
professores e/ou desrespeitados pelos vizinhos. Além disso, muitos
lugares que foram criados no intuito de protegê-los acabaram se
tornando referência de escândalos de violação de seus direitos.

267
Guia de Urbanismo Social

Então, se é assim que acontece, como reduzir a vulnerabilidade dos


pequenos e dos jovens, uma vez que aqueles que deveriam protegê-los
são os que mais ameaçam? Existe, de fato, um lugar que seja seguro
para eles, independentemente de suas origens e características?

Uma consulta aos dados do Disque 100, canal de denúncias de


violações de direitos humanos, demonstra que as violências contra
crianças e adolescentes ocorrem em distintos lugares, sendo inclu-
sive a casa e o ambiente familiar o principal local de insegurança
(considerando as denúncias do ano de 2021, 86,7% delas correspon-
dem a violações que ocorrem no interior da residência da vítima).
Observamos também uma tendência preocupante de aumento no
número de denúncias durante a pandemia da covid-19 no país. Na
cidade de São Paulo, por exemplo, o total de denúncias no Disque
100 foi 55,18% maior em 2021 do que na comparação com 2019.

Para compreender a fundo essas violências, é fundamental ir além


dos números. Nesse intuito, o Observatório de Olho na Quebrada3,
em parceria com o projeto Violência Aqui Não Entra, Não (VANEN),
ambos da UNAS (União de Núcleos, Associações dos Moradores de
Heliópolis e Região), realizou uma pesquisa4 de caráter qualitativo
com pelo menos 256 crianças e adolescentes que residem no
território conhecido como “Fundão do Ipiranga”5. Com idades entre
6 anos e 14 anos, todos são matriculados em quatro Centros para
Crianças e Adolescentes (CCAs), localizados nos bairros Boqueirão,
Jardim Maristela, Jardim São Savério e Água Funda.

Através de mapas afetivos, o objetivo da pesquisa foi compreender


o olhar e a narrativa das próprias crianças e dos adolescentes
sobre seu território e as vulnerabilidades que os atravessam. Por

3 O Observatório de Olho na Quebrada é um projeto da UNAS, protagonizado por


22 jovens pesquisadores e pesquisadoras, todos/as moradores/as da favela de He-
liópolis. As pesquisas que desenvolvemos evidenciam as potencialidades e vulne-
rabilidades existentes no território, e a partir dos resultados obtidos disputamos
melhores políticas públicas para a nossa quebrada. Saiba mais sobre o Observatório
no Linktree e no Instagram do projeto.

4 O relatório final com os resultados da pesquisa será lançado no primeiro semes-


tre de 2023.

5 Conjunto de bairros que inclui: Jardim Clímax, Parque Bristol, Jardim São Savério,
Jardim Maristela, Boqueirão e Heliópolis.

268
Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

meio de desenhos e do diálogo com eles, buscou-se identificar


em quais locais sentem bem-estar físico e mental, e onde eles
têm sentimentos de insegurança e desconforto.

As oficinas para elaboração dos mapas tiveram a duração de dois


encontros de uma hora cada, mediados pelos pesquisadores do
Observatório com o auxílio de mais dois jovens de cada território,
ex-frequentadores dos CCAs. Eles disponibilizaram materiais
(como folhas sulfite, lápis de cor, réguas, apontadores e canetas),
acompanharam a realização dos desenhos e transitaram entre os
grupos dos participantes, dialogando, incentivando e tirando as
dúvidas existentes. Como os encontros foram mediados por jovens
que também residem na região, o clima das oficinas se revelou
bastante agradável e amigável, com alguns poucos relatos de
indisciplina. Apostar nesse diálogo foi um potencial explorado por
essa pesquisa, já que proporcionou um espaço confortável para os
pequenos e os adolescentes se expressarem, sem o típico medo
do erro e da repressão.

Ao longo da atividade, muitas controvérsias apareceram. É neces-


sário ter parques arrumados, limpos e iluminados para as crianças
e os adolescentes se divertirem saudavelmente, ou, na verdade, a
presença de um adulto que “olha” por elas e os mantém em espaços
fechados é uma melhor decisão? Podemos confiar na vigilância
policial nos espaços públicos, de modo a torná-los uma extensão
das casas e dos espaços comunitários? Os pequenos e os jovens
estão mais seguros confinados em casa sozinhos, nas escolas ou
brincando com os colegas na rua?

Com um olhar aguçado, tal mapeamento, de caráter exploratório,


descritivo e analítico, permite aos educadores e pesquisadores
identificar vulnerabilidades individuais, relacionais, comunitárias
e sociais que envolvem os matriculados, de maneira a promover
a prevenção primária da violência, além de esquematizar a rede
de recursos e equipamentos locais e/ou regionais que recebem
indivíduos em situação de violências.

269
Guia de Urbanismo Social

A análise dos mapas afetivos foi uma tarefa árdua. Afinal, ela
implicou em registrar a forma como as crianças e os adolescentes
se colocavam num determinado lugar, e até mais do que isso, como
interagiam entre si, com o meio e com os objetos neles disponíveis.
Desse modo, podemos dizer que o produto da investigação nos
ofereceu dicas de como aqueles sujeitos utilizam seus bairros,
como circulam e/ou como se relacionam com eles.

De maneira geral, com a aplicação dos mapas afetivos, percebemos


que não existe um lugar 100% seguro para pequenos e jovens. Assim,
mais do que pensar na constituição de um tipo de “espaço seguro”, é
fundamental pensarmos em como garantir segurança e bem-estar
para esse público no bairro e na cidade. E fazer isso de tal forma que
todos os locais tenham práticas que garantam a segurança física
e psicológica das crianças e dos adolescentes. A partir dos mapas
afetivos e dos relatos dos participantes das oficinas, elencamos pelo
menos cinco pontos importantes para essa transformação: (i) ruas
para os pequenos e os jovens; (ii) mais praças e parques acolhedores;
(iii) fim das violências nas escolas; (iv) transporte público seguro para
as meninas; (v) moradias seguras para todos.

Nós reforçamos a necessidade de que as ruas — e, de modo mais


amplo, o planejamento das cidades — sejam pensados para, a
partir e pelas crianças e pelos adolescentes. Em vez de tirá-los das
ruas, narrativa muito presente em projetos e políticas de cunho
assistencialista, é imprescindível transformar tais espaços em
ambientes propícios e seguros para interações sociais divertidas,
para o nascimento de novas amizades, para a descoberta de
semelhanças e diferenças e para o acolhimento de interesses
individuais e coletivos.

A presença da polícia nas ruas e avenidas configurou-se como um


elemento extremamente contraditório em nossas pesquisas: para
alguns, ela é sinônimo de combate ao crime, à marginalidade e à bru-
talidade características das periferias urbanas. Para outros —garotos
negros, sobretudo —, o histórico de abandono e violência racial das
forças policiais, responsável por lhes dar uma “identidade bandida”,
tornam esse ambiente ainda mais ameaçador, qualquer seja o horário.

270
Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

Por fim, a interpretação dos mapas afetivos revela que os peque-


nos e o jovens têm crescido em apartamentos e casas exíguas,
com liberdade reduzida e praticamente sem acesso aos espaços
públicos. Eles se tornaram vítimas de cidades pouco preparadas
para recebê-los e de uma superproteção adulta, justificada pela
percepção da redução da segurança nas ruas e aumento no nú-
mero de acidentes. Nesse sentido, nós acreditamos que construir
bairros, e, por consequência, cidades mais seguras para crianças
e adolescentes é também construir uma cidade segura para todos.

271
12_
TÓPICOS EM SAÚDE URBANA

12.1_ Saúde urbana

12.2_ A saúde mental em territórios


periféricos: A gramática social do
sofrimento psíquico

AUTORES

12.1_ Núcleo de Saúde Urbana;


12.2_ Fernanda Almeida (Territórios Clí-
nicos da Fundação Tide Setubal).
Capítulo 12 : Tópicos em Saúde Urbana

12.1_ SAÚDE URBANA

As cidades surgem em função da necessidade de sobrevivência


da espécie humana. Em regiões onde o modo de vida de nossos
antepassados caçadores/coletores não era possível, tornou-se impe-
riosa a obtenção de alimentos por meio de técnicas agropecuárias.
O aumento da produção de nutrientes permitiu o crescimento e a
fixação da população humana em cidades. Ao mesmo tempo que
a convivência próxima de um número maior de pessoas permitiu
o desenvolvimento de artes e a inovação, o saneamento precário
e a proliferação de patógenos trouxeram consigo o adoecimento.
Talvez seja válido dizer que Logos e Páthos caminham de braços
dados pelas ruas das urbes mundo afora.

As cidades são uma enorme invenção humana e vieram para ficar. Ao


longo da história, as cidades superaram crises monumentais, como
pestes, guerras e mudanças climáticas. No entanto, a urbanização
acelerada das últimas décadas acarretou novos desafios. Nas me-
trópoles das nações do chamado Sul Global — onde ocorreu uma
“explosão de urbanização” em poucas décadas —, diferentemente
dos países do Norte — onde as cidades levaram séculos a evoluir
gradativamente —, a distribuição desigual das infraestruturas
urbanas, dos equipamentos e serviços públicos, das áreas verdes
e de lazer, o excesso de trânsito, poluição e ilhas de calor, a falta de
moradia digna para milhões de pessoas e, em especial, a existência
de favelas com condições precárias de vida, áreas propensas a
inundações e deslizamentos, representam evidentes ameaças à
saúde humana.

Este capítulo aborda a saúde dos habitantes das cidades e sua


complexidade. Visa apresentar como o urbanismo desempenha papel
extremamente significativo para a melhoria da saúde e bem-estar
das pessoas que escolheram as urbes como local de viver.

273
Guia de Urbanismo Social

12.1.1_ CIDADES E DOENÇAS para os grandes centros urbanos mais uma


INFECCIOSAS vez se manifesta na pandemia de covid-19
em pleno século XXI.
O desenvolvimento das urbes criou as con-
dições para o desenvolvimento das doenças Convivemos nos dias de hoje com febre ama-
infecciosas. Muitas das doenças infecciosas rela, dengue, zika, chikungunya, leishma-
surgidas nas cidades foram consequência niose, leptospirose e outros padecimentos
da falta de saneamento combinada com afins, indicando que há porções de nossas
a passagem para a espécie humana de metrópoles que ainda exibem perfil sanitário
patógenos que estavam em equilíbrio com medieval, combinando más condições de mo-
os animais que foram domesticados para radia e criadouros de insetos em lixo sólido.
produção de alimentos. A tuberculose, a
peste bubônica, a gripe, o cólera, a varíola e Se as pandemias virais dos séculos XX e XXI
a covid-19 são exemplos do que foi definido retratam o papel do adensamento populacio-
como epizootias (doenças humanas de alto nal e da mobilidade global como fatores de
impacto originárias de animais). propagação de agentes infecciosos, a tuber-
culose é uma manifestação clara dos efeitos
O adensamento populacional e o transporte da desigualdade urbana como promotores de
dos agentes infecciosos a longas distâncias, adoecimento. Por sua baixa contagiosidade, a
seja pelo comércio ou mesmo pelas guerras, transmissão do bacilo da tuberculose ocorre
fez com que as urbes criassem o cenário preferencialmente entre pessoas que mante-
ideal para o surgimento das pandemias. A nham contato prolongado entre si. Portanto,
peste negra (peste bubônica, transmitida a transmissão do bacilo é favorecida pela
pela Yercinia pestis), que assolou o continente precariedade das habitações dos segmentos
europeu a partir do século XIV, seria um mais vulneráveis da população.
exemplo da disseminação de um patógeno
originário no Oriente e disseminado ao longo O que foi exposto indica que o controle das
da rota da seda. O estouro da população das doenças infecciosas ultrapassa os limites
cidades europeias a partir do século XVII exclusivos da atuação da saúde, pois de-
contribuiu para o surgimento da varíola, e pende das condições de moradia, trans-
o aumento do trânsito de mercadorias pelo porte e organização laboral. Como exemplo
crescimento do comércio promovido pelo recente, podemos, mais uma vez, apontar
Império Britânico no século XIX levou o cólera o comportamento da covid-19 nas grandes
a todos os continentes. As grandes migrações cidades brasileiras, onde, para o mesmo
causadas pela Primeira Guerra resultaram agente infeccioso, as maiores incidência
nas pandemias de H1N1 em 1918. A centra- e letalidade foram observadas nas áreas
lidade da combinação entre adensamento menos privilegiadas.
populacional e atração de mobilidade global

274
Capítulo 12 : Tópicos em Saúde Urbana

Tomemos o exemplo de São Paulo, onde as Estudos epidemiológicos conduzidos em di-


pessoas que viviam em áreas mais pobres ferentes nações têm apontado que os trans-
tiveram um risco significativamente maior tornos mentais tendem a ser mais frequentes
de morrer por causa da doença provocada no ambiente urbano, notadamente nas me-
pelo Sars-Cov-2. Morreram porque são po- gacidades. O ritmo intenso de trabalho e os
bres; não tiveram tempo para controlar suas longos tempos de deslocamento dificultam a
condições crônicas de saúde nem fazer o manutenção e o fortalecimento das relações
isolamento social pela necessidade de prover afetivas e sociais, favorecendo o estado de
o seu sustento. Morreram por más condições solidão coletiva, tão frequente nos tempos
de transporte e moradia. Morreram tentando atuais. As cidades também podem interferir
ganhar dinheiro para sobreviver. Tal quadro em alguns mecanismos básicos necessários
é uma demonstração clara da importância para a manutenção da nossa integridade
de uma abordagem sistêmica da saúde e psíquica, como a deterioração da qualidade
do planejamento urbano como política de do sono promovida pelo excesso de trabalho
saúde urbana. e pelas poluições sonora e luminosa.

O diálogo entre planejamento urbano, com Dormir bem, tanto em quantidade como em
enfoque do urbanismo social, e os setores qualidade, é extremamente importante para a
da saúde é, portanto, uma necessidade im- saúde mental. Durante o sono, são secretados
periosa, para o controle das febres urbanas. hormônios que protegem as nossas funções
cognitivas e comportamentais, como, por
12.1.2_ CIDADES E DOENÇAS exemplo, a melatonina. A secreção desses
PSIQUIÁTRICAS hormônios ocorre em sua maior intensidade
nas fases mais profundas do sono. Isso signi-
As doenças psiquiátricas como a esquizo- fica que não basta dormir bastante; há que se
frenia e a depressão são causadoras de dormir bem e profundamente. O excesso de
sofrimento, incapacidade e também de trabalho e as horas perdidas em um trânsito
significativas perdas econômicas para o mais lento subtraem horas de sono.
indivíduo e para a sociedade. Além dos
aspectos genéticos, os ambientes físico O ritmo das fases claro/escuro também é
e social contribuem para a eclosão das afetado pelo cotidiano urbano. A secreção
doenças mentais. Há uma modulação epi- de melatonina, que induz o sono e protege a
genética dos nossos genes. Fatores como saúde mental, inicia-se cerca de uma a duas
o contato mais prolongado com os pais e horas após o escurecimento. Atualmente,
um ambiente familiar mais harmonioso na o viver urbano é cada vez mais luminoso,
primeira infância são reconhecidamente seja pela iluminação interna ou pela luz que
capazes de reduzir o risco de transtornos emana das telas dos computadores, tele-
mentais nas fases posteriores da vida. visores e celulares. As lâmpadas também

275
Guia de Urbanismo Social

mudaram o comprimento de onda luminosa, 12.1.3_ CIDADE, POLUIÇÃO E CLIMA


por exemplo, as dicroicas, que emitem mais
na faixa do azul, que estimula com maior efi- A consistência das evidências científicas
ciência a retina. As alterações do ciclo claro/ relacionando poluição a efeitos adversos
escuro também ocorrem nas megacidades sobre a saúde humana fez com que a OMS
porque elas passaram a funcionar durante estabelecesse padrões globais de qualidade
as 24 horas do dia. Não apenas os serviços do ar progressivamente mais restritivos em
essenciais como praticamente todas as de- 2015 e 2021. Nesses estudos, foi estimado
mais atividades urbanas não adormecem que a poluição do ar responde, em escala
nas grandes cidades. Academias, super- global, por cerca de sete milhões de mortes
mercados, transporte, lazer, comunicação, prematuras ao ano. Infecções respiratórias,
lojas, restaurantes e postos de serviço são doenças cardiovasculares, câncer do pulmão
exemplos de atividades ininterruptas das ci- e desfechos gestacionais adversos têm hoje
dades que nunca dormem. Os trabalhadores associação comprovada com a exposição aos
que exercem as suas funções em turnos que poluentes do ar. Dados de monitoramento
se alternam para prover a continuidade dos global da poluição indicavam claramente que
serviços urbanos também apresentam maior as maiores concentrações de poluentes at-
risco para o desenvolvimento de transtornos mosféricos eram observadas nos países com
mentais, cuja causa básica reside na mudan- maior vulnerabilidade econômica da América
ça do ciclo de luz dos seus dias, que resulta Latina, África, Ásia e Oriente Médio. Dentro
em maior fragilidade dos mecanismos de de cada região do planeta e em cada cidade
controle da saúde mental. avaliada, as populações mais vulneráveis são
as mais expostas e têm a saúde mais afetada.
A maior parte dos estudos sobre transtornos Além desse efeito, estudos de valoração
mentais no ambiente urbano indica que o ambiental indicam claramente que o custo
risco para o seu desenvolvimento é maior da poluição em saúde é de uma ordem de
nas regiões mais carentes. É nesses territó- magnitude que prejudica o desenvolvimento
rios que fatores como a violência, o excesso econômico das nações mais pobres, criando
de horas trabalhadas, o tempo perdido em um círculo vicioso de pobreza e doença.
deslocamentos e a insegurança no emprego
são mais frequentes. Isso significa que a A poluição do ar não é passível da adoção de
taxa de doenças mentais é também um bom medidas de proteção individual, dependendo
indicador para aferir a desigualdade entre os exclusivamente de políticas urbanas. No
habitantes urbanos. caso brasileiro, verificou-se que a dose e
os efeitos da poluição são dependentes da
melhoria das condições de mobilidade, do
tempo de deslocamento entre a residência e
o trabalho e das condições de moradia. Esse

276
Capítulo 12 : Tópicos em Saúde Urbana

conjunto de fatores faz com que o controle


da poluição extrapole os limites da questão
ambiental e da saúde, adentrando aspectos
da cidadania e da dignidade humana.

É importante frisar que as mesmas fontes


de emissão de poluentes tóxicos emitem,
simultaneamente, gases de efeito estufa
e afetam a morfologia urbana e o uso do
solo. Tais aspectos indicam que as fontes
emissoras de poluição influem sobre o com-
portamento do clima global e também do
microclima urbano.

Estudos realizados no Brasil sugerem que as


mudanças de clima recentes influenciam a
taxa de pluviosidade, promovem inundações
e deslizamentos, aumentam a incidência e a
distribuição geográfica das doenças infec-
ciosas e influenciam a morbidade e a letali-
dade de doenças crônicas não transmissíveis
em cidades de todas as regiões brasileiras.
Nesse contexto, políticas urbanas que con-
templem alterações da permeabilidade do
solo, a cobertura vegetal e a drenagem são
parte central das estratégias de redução de
emissões e aumento da resiliência climática
das urbes brasileiras.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ SALDIVA, Paulo. Vida urbana e saúde: os desafios dos


habitantes das metrópoles. São Paulo: Contexto, 2018.

▸ LEITE, Carlos, TAVARES, Hermano, SALDIVA, Paulo.


Cidade Sã, Mente Sã? Revista Piauí, 2022.

277
Guia de Urbanismo Social

12.2_
A SAÚDE MENTAL EM
TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS:
A GRAMÁTICA SOCIAL DO
SOFRIMENTO PSÍQUICO

Quem mora nas periferias das grandes cidades do Brasil sabe que não
é simples chegar ao trabalho — uma violência cotidiana, naturalizada
e silenciada. O corpo da trabalhadora e do trabalhador periféricos é
submetido a toda sorte de hostilidade, algo que, somado à privação
de sono, além de outras formas degradantes, produz um tipo de
sofrimento que é coletivo, mas transformado — intencionalmente
— em patologia quando diagnosticado isoladamente. É o caso hoje
da síndrome de burnout. Um conjunto de sintomas psicossociais,
relacionados diretamente às extenuantes exigências provocadas
pela precarização das condições de trabalho, é tornado patologia
ao ser inserido na Classificação Internacional de Doenças — CID10.

O corpo periférico sabe que sacolejar nos transportes públicos


produz desgaste físico e mental. Quem utiliza a rede metroviária na
capital paulista, por exemplo, já deve ter escutado no alto-falante
a voz do maquinista anunciar que o trem está parado porque “há
passageiros na via”. As tentativas de suicídio do metrô foram redu-
zidas após a instalação das portas de segurança nas plataformas;
entretanto, a mobilidade urbana continua sendo um dos fatores
importantes nas estatísticas diárias de crises de ansiedade ou de
outros modos de sofrimento. Fosse somente isso — que já é de-
masiado —, mas há ainda todos os demais determinantes sociais
que impactam direta e indiretamente na vida objetiva e subjetiva
dos sujeitos periféricos.

Nessa direção, é fundamental o acúmulo teórico-prático que vem


sendo produzido pelos coletivos, pesquisadoras(es) e militantes
do movimento negro nas suas variadas vertentes: trata-se do
reconhecimento do racismo estrutural e de suas consequências,
como determinação social, na produção do processo saúde-doença.
Tomemos como exemplo a taxa de mortes violentas no Brasil. De
acordo com o estudo do Fórum de Segurança Pública e do Unicef,
80% delas são de jovens negros entre 15 e 19 anos. Outro dado

278
Capítulo 12 : Tópicos em Saúde Urbana

alarmante aponta que o índice de suicídio entre adolescentes negros


cresceu, sendo na atualidade 45% maior do que entre os brancos.

O Portal Geledés reúne um conjunto significativo de dados que


revelam: as mulheres negras e periféricas são, historicamente,
as mais afetadas em decorrência das transformações sociais e
macroeconômicas. Nos últimos tempos, o impacto das contradições
das relações sociais da sociedade capitalistas na vida das mulheres
negras tem sido fonte de constantes denúncias: desemprego e
subemprego, mortalidade materna, violência obstétrica, feminicídio
e objetificação dos seus corpos, entre outros fatores que incidem
diretamente nas subjetividades de tal grupo. Assim, a intersecção
raça, classe e gênero convoca a urgente e necessária revisão e
construção de políticas públicas que atuem no sentido da indis-
pensável reparação histórico-social.

Como se pode notar, ao tomar o adoecimento psíquico sem con-


siderar as múltiplas determinações sociais, corre-se o risco de
reduzir o sofrimento a uma dimensão meramente subjetiva e
patológica. A discussão das relações entre o social e o patológico
é fundamental, pois expõe as múltiplas e complexas disputas no
interior do campo da psiquiatria tradicional, e que vêm de longa
data. Resta dizer que, desde o trabalho pioneiro da psiquiatra Nise
da Silveira (1905-1999), o que vemos é a disputa hegemônica e
conceitual que envolve aspectos políticos e ideológicos em torno
da mercantilização da loucura, do estigma e da patologização do
sofrimento, assim como do controle social dos corpos.

Importa perceber que nem todo sofrimento é doença e nem toda


doença psíquica produz sofrimento. E mais: os diagnósticos são
instrumentos técnicos importantes, ao mesmo tempo em que
podem se tornar ferramentas poderosas de controle social de
determinados comportamentos. O importante é saber que a vida
não cabe nessas parametrizações técnicas. Ela é muito maior.
Um diagnóstico não pode definir uma pessoa. Os sujeitos são
mais complexos, dinâmicos e diversos que as caracterizações
moralizantes impregnadas nos códigos que classificam os tipos
de transtornos, síndromes e doenças. Os sofrimentos das pessoas

279
Guia de Urbanismo Social

são legítimos, contudo parece que tem sido mais “fácil” produzir
“doenças” (diagnósticos) para explicar as mazelas da sociedade
do que transformar suas relações profundamente adoecedoras.

12.2.1_ SAÚDE MENTAL E PANDEMIA

Seguramente, 2020 já entrou para a história. Passados — no momento


em que se finaliza este Guia — a quase três anos de pandemia, a
estimativa é que globalmente tenham morrido, aproximadamente,
quinze milhões de pessoas. Ao final do citado período, o Brasil ocupava
o terceiro lugar em número de óbitos, com 681.763 vidas perdidas.
Se o primeiro ano foi marcado por medo, incerteza, insegurança e
indeterminação, agora já podemos falar em consequências e legados
desta que foi, sem dúvida, a maior crise sanitária da história recente
— isso, enquanto ela ainda nos impõe preocupação e contabiliza
altas taxas diárias de transmissão e mortes.

No primeiro ano, o confinamento forçado e compulsório alterou


profundamente a nossa relação com o tempo, o espaço, o cotidiano,
as coisas e suas prioridades. Por outro lado, o período imediatamente
posterior foi marcado pelo esforço insano de impor um “retorno à
normalidade”. Por aqui, a pressão advinda do mercado e do setor
produtivo, com expressivo apoio do governo federal, impactou a
economia, da mesma maneira que as subjetividades — fato que só
faz crescer os indicadores de impacto negativo na saúde mental.

Desde o início, os especialistas já apontavam que a pandemia no


Brasil seria marcada por aquilo que o país tem de melhor e pior em
termos epidemiológicos. A capilaridade do SUS foi um fator positivo e
determinante no controle de novos casos, todavia, ao mesmo tempo,
a estruturante desigualdade social e étnico-racial aprofundou as
fissuras entre as múltiplas camadas que compõem o tecido social.

A naturalização da destrutividade parece ter sido a marca coletiva


e subjetiva impressa por parte de setores da sociedade civil e do
governo — fator que, juntamente com outros aqui descritos, tem
gerado sofrimento e angústia. Se o luto infinito é a expressão
mais mordaz do sofrimento psíquico na pandemia, a normalização

280
Capítulo 12 : Tópicos em Saúde Urbana

impositiva ao silenciamento do sofrimento é a expressão maior da


indiferença em face da catástrofe.

As consequências desse impacto nos corpos, nas subjetividades e


nas sociabilidades dos sujeitos lotam os serviços públicos de saúde
mental e os consultórios privados dos psicólogos e psicanalistas nos
quatro cantos do território nacional. Além de toda determinação
social do sofrimento, a morte generalizada e a negação do trabalho
de luto necessário para atravessá-la é um dos imensos desafios
que ficam como consequência da pandemia. Lembremos que o luto
não se restringe à morte da pessoa amada: perderam-se posições
sociais, empregos, relacionamentos amorosos, projetos coletivos.
Assim, além do lamentável e expressivo número de mortes, temos
vivenciado muitas perdas, renúncias e abdicações.

Mas afinal, o que significa ter saúde mental?

De maneira simples, podemos dizer que ter saúde mental é conse-


guir lidar com as múltiplas demandas — internas e externas — que
mobilizam afetos, emoções e sentimentos. Em outras palavras, ter
saúde mental envolve muito mais que a ausência de doenças men-
tais, pois requer um conjunto de fatores materiais (externalidades)
e imateriais (subjetividades) que o sujeito constrói ao longo de sua
história, nas suas relações pessoais e na interação com a sociedade.
Assim, ainda que o sujeito sofra e/ou adoeça singularmente, a saúde
mental tem sempre uma dimensão coletiva e, portanto, política.

Agora você pode estar se perguntando: é possível ter saúde mental


em um momento histórico tão adverso e diante de uma sociedade
tão hostil? A resposta é afirmativa, pois ter saúde mental envolve
entristecer-se diante das perdas e das dificuldades, tanto quanto
alegrar-se diante das conquistas. O falatório simplista sobre a saúde
mental difunde uma positividade tóxica e alheia às condições reais
que fazem com que as pessoas sofram. Por outro lado, seus oradores
são aqueles que, em muitos casos, silenciam as vozes dissonantes
que reivindicam a universalidade e a qualidade dos serviços públicos
de saúde mental, por ora tão precarizados e sucateados.

281
Guia de Urbanismo Social

SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL

Na cidade de São Paulo, as portas de entrada para o atendimento na


área de saúde mental são os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e
as Unidades Básicas de Saúde (UBS) da Secretaria Municipal da Saúde
de São Paulo. Para conhecer a Rede de Atenção Psicossocial, acesse o
site da Prefeitura de São Paulo.

OUTROS SERVIÇOS DISPONÍVEIS

O projeto Territórios Clínicos, da Fundação Tide Setubal, visa desenvolver e


fomentar propostas que promovam a circulação e a ampliação de práticas
no campo da saúde mental nos diversos territórios periféricos. Foi realizado
um levantamento de organizações que oferecem atendimento clínico
psicanalítico e/ou psicológico abertos à comunidade, para além da rede
SUS. Para mais informações, consulte: Territórios Clínicos — Mapeamento.

282
13_
TÓPICOS EM MULHERES
E TERRITÓRIOS
13.1_ Diversidade, equidade e
inclusão: O papel do ativismo
feminino para a mudança social

13.2_ Redes de solidariedade e


geração de capital social

13.3_ A articulação feminina para a


garantia da propriedade da moradia
em nome da mulher

13.4_ Modelo de organização para


autogestão habitacional — O caso
do Mutirão Florestan Fernandes

13.5_ Movimentos de mulheres em


Heliópolis: luta pela iluminação
pública e organização de mães
crecheiras

13.6_ Programa Fazendeiras —


capacitação feminina no setor da
construção civil

AUTORES

Núcleo de Mulheres e Territórios.


Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

13.1_ DIVERSIDADE, EQUIDADE E


INCLUSÃO: O PAPEL DO ATIVISMO
FEMININO PARA A MUDANÇA SOCIAL

O presente capítulo é protagonizado pelo Núcleo Mulheres e Terri-


tórios do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper — um grupo
composto por mulheres pretas e brancas, oriundas de diferentes
contextos sociais e distintas frentes de lutas. Seu propósito é atuar
como uma rede de pesquisa-ação, sempre baseada em dados e
evidências, mas também no conhecimento territorial, visando à
construção de metodologias participativas e projetos de intervenção
urbana com um olhar coletivo feminino.

Essa parceria de mulheres tem em comum o fato de elas enfren-


tarem as adversidades que encontram em seu cotidiano de forma
articulada, priorizando a produção de conhecimento e a visibilidade
das suas demandas com o intuito de influenciar políticas públicas. A
aposta sustentada é que essas experiências também são produção
de conhecimento, além de um modo de resistência, apontando para
uma nova realidade em que mulheres tenham conscientização de
seu protagonismo e potência.

Por meio da produção escrita e da construção de narrativas, há a


possibilidade de transmissão das experiências vividas no território,
assim como, da realidade local. Para Conceição Evaristo (2017)1,
“escreviver” significa contar histórias particulares e que, de alguma
forma, se reflete na vida de outras mulheres, identificando semelhan-
ças, mesmo estando em distintas posições raciais e/ou em outros
termos sociais. Reconhecer a voz das mulheres periféricas é uma
quebra de paradigmas na sociedade em que vivemos; é descolonizar
o pensamento e o conhecimento, trazendo novos modelos metodoló-
gicos, que fogem ao padrão estabelecido. Grada Kilomba (2020)2 faz
alusão à máscara da escrava Anastácia em relação ao silenciamento
no acesso ao saber acadêmico e ao próprio direito à fala.

1 EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

2 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de


Janeiro: Cobogó, 2019.

285
Guia de Urbanismo Social

Quem pode falar? Quem pode construir conhecimento e saberes?

Essas mesmas mulheres articulam e criam, entre si e na comu-


nidade, uma rede de proteção a partir de laços de solidariedade,
incluindo vizinhos, familiares e amigos e instituições locais, com
a finalidade de alcançarem êxito em seus objetivos pessoais, na
luta pelo acesso aos serviços públicos e no desenvolvimento com
menos desigualdade. São essas mulheres que realizam a gestão
da própria vida, criando estratégias para superação das variadas
condições de vulnerabilidade.

As contribuições a seguir são fruto das experiências individuais e


coletivas de tais mulheres, uma vivência por vezes marcada com
feridas: algumas presas, silenciadas e ignoradas dentro de um
sistema historicamente patriarcal, racista e violento. Trata-se de
mulheres resilientes, em um cenário quase improvável de batalhas
vencidas na guerra contra a desigualdade social, despendendo
esforços que devem ser divulgados e reconhecidos.

Apresenta-se aqui a essencial importância do ativismo e da ação


da liderança feminina para a concretização das mudanças em ter-
ritórios vulneráveis. Elas não ocorrem de forma automática; antes
disso, demandam coragem e uma construção social colaborativa
em torno dos problemas e soluções e, igualmente, das tecnolo-
gias sociais utilizadas. Todo processo deve ser ainda legitimado
sob a perspectiva da organização comunitária, proporcionando
caminhos para a inclusão de quem mais precisa.

Tradicionalmente, as mulheres também têm desempenhado um papel


protagonista, preponderante e determinante na luta por melhorias
diversas da qualidade de vida das populações e dos territórios
negligenciados. Partindo desse reconhecimento, consideramos
fundamental trazer neste Guia algumas experiências referencias a
respeito da organização de mulheres, especialmente aquelas que
vêm realizando tal trabalho em seus territórios de origem.

286
Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

A violência contra a mulher é um fenômeno normalizado, estrutural e


cultural, uma vez que deriva da desigualdade, não só econômica como
também política e social1, e se utiliza dessa condição para mantê-las
em situação de inferioridade2. Pesquisas mostram que, quanto maior a
desigualdade entre homens e mulheres em uma sociedade, maior é a
violência de gênero. O Brasil apresenta uma das maiores taxas do pla-
neta em termos de desigualdade entre homens e mulheres — e um dos
maiores índices de violência de gênero. De acordo com o último relatório
do Fórum Econômico Mundial de 2022, ao ritmo atual, serão necessários
132 anos para que a verdadeira igualdade de gênero aconteça em nossa
sociedade. O relatório também apresenta recomendações, orientando
a revisão de leis e a criação de políticas afirmativas, a fim de que haja
avanço no processo de igualdade de gênero. Ainda que a passos lentos,
vêm ocorrendo avanços nas políticas de gênero no Brasil; todavia, como
nenhuma conquista está garantida, a permanência e a durabilidade delas
ainda está em jogo, havendo um longo caminho para que seja possível
medir o impacto das políticas direcionadas às mulheres.

1 EXPÓSITO, Francisca; RUIZ, Sergio. Tratamiento para maltratadores: una propues-


ta de intervención desde la perspectiva de género. In: FARIÑA, Francisca; ARCE
Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (ed.). Violencia de género: tratado psicológico y
legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015. p. 222.

2 ESCOBAR CIRUJANO, Ana et al. In: PEREZ VIEJO, Jesús M.; HERNÁNDEZ, Ana
Montalvo (coord.). Violencia de género, prevención, detección y atención. Madrid:
Grupo 5, 2011. p. 41.

287
Guia de Urbanismo Social

13.2_ REDES DE SOLIDARIEDADE E


GERAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL

As mulheres geralmente acumulam múl- Colombo, em São Paulo. Ela deixara o Rio
tiplas tarefas, e suas necessidades são Grande do Norte motivada pela busca de
esquecidas. Elas exercem o papel de cui- melhores condições para sua família. Nunca
dado diariamente, desde o trabalho com havia morado numa favela. No entanto, Maria
seus filhos, irmãos, sobrinhos, netos etc., relatou estar impressionada com a rede de
ao mesmo tempo em que são responsáveis apoio que conseguiu tão logo chegou ao
pelas tarefas domésticas. Além desses tra- Jardim Colombo: em menos de oito meses
balhos não remunerados, nas periferias e conseguira mobiliar sua casa inteira a partir
favelas a maioria das mulheres ainda atua da mobilização de moradores e familiares.
pelo sustento do lar. Seus salários são in- Assim, entendeu o verdadeiro significado de
feriores e as possibilidades de alçar novos “coletivo” em um dos momentos mais difíceis
voos profissionais são menores, visto que de sua vida. Atualmente, Maria Josiane pro-
há uma carga de afazeres que recai sobre cura apoiar outras mulheres em situações
as mulheres muito superior à de um homem. similares. Diz que, no futuro, ao lado de suas
amigas, pretende criar um aplicativo para
Nesse contexto, o que se observa são cons- facilitar a contratação de mulheres no mer-
truções de redes de solidariedade nos ter- cado da limpeza, oferecendo um salário justo.
ritórios desassistidos por uma questão de
necessidade de sobrevivência. Essas redes De acordo com Marconatto e Pedrozzo3,
adquirem diversas configurações; surgem capital social é a benevolência engendrada
na colaboração individual entre um vizinho pela interação mútua das três forças sociais
e outro, ajudando de maneira específica em (indivíduos, redes e instituições) e que pode
uma demanda pontual, ou, muitas vezes, ser utilizada por elas para facilitar a ação.
por meio da constituição de coletivos, mo- Suas fontes residem nas relações sociais
vimentos e organizações sociais para um e institucionais dos atores individuais ou
trabalho mais amplo e contínuo. No segundo coletivos, sociais ou institucionais, localiza-
caso, a atuação pode se dar em diferentes dos nos diversos níveis de um determinado
eixos, facilitando, inclusive, o diálogo entre campo. Seus efeitos ocorrem sobre os fluxos
sociedade civil e poder público. de informações e o potencial de solidarie-
dade e influência desses mesmos atores.
Para exemplificar essa condição, apresen-
ta-se aqui o caso de Maria Josiane, mãe solo
3 MARCONATTO, Diego; PEDROZO, Eugenio. Capi-
de duas meninas, que em setembro de 2022, tal social: visão integrada. Revista Brasileira de Gestão
vivia, havia dez meses, na favela do Jardim e Desenvolvimento Regional, Taubaté, v. 9, n. 2, p.154-
181, 2013.

288
Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

Com o ritmo das atividades comunitárias em Um balanço do período revelou que o impacto
plena ascensão, muitas organizações tive- social nas ações elaboradas e com partici-
ram que suspender suas ações em virtude pação de quem está na linha de frente dos
da pandemia de covid-19. A nova realidade territórios desassistidos é maior. Porém, ainda
de restrições à mobilidade e à aglomeração há um árduo trabalho de conscientização,
de pessoas atingiu fortemente o país. Para confiança e fomento a projetos e políticas
além de gerar uma mudança drástica de ro- que apoiam e se utilizam dessas redes.
tina, significou um drama sem precedentes.
A refeição, garantida no âmbito escolar, já
não estava disponível, o trabalho e a renda
das famílias ficaram comprometidos, assim
como a vida de seus dependentes. Por fim,
os já desempregados, mais do que nunca,
enfrentaram dificuldades para encontrar
uma oportunidade de trabalho.

Com o objetivo de minimizar as consequên-


cias causadas pela pandemia, numa tenta-
tiva de ação efetiva, movimentos, institutos
e associações comunitárias iniciaram cam-
panhas de arrecadação de doações ao lado
de universidades e entidades públicas e
privadas — uma situação em que a sociedade
civil se mobilizou a fim de acolher as famílias
e os territórios atingidos pela fome.

A partir dessas iniciativas de rede de soli-


dariedade foi possível promover suporte
para distintas comunidades vulneráveis
Brasil afora por meio de um mapeamento
coletivo de atuação emergente. O grau de
organização comunitária atingido propiciou
oportunidades de inclusão em programas
governamentais de fundamental importância
para que fossem minimizados os impactos
gerados pela pandemia — e cujos resultados
foram além de ações assistenciais.

289
Guia de Urbanismo Social

13.3_ A ARTICULAÇÃO FEMININA PARA


A GARANTIA DA PROPRIEDADE DA
MORADIA EM NOME DA MULHER

Analisando a trajetória das políticas habitacionais, pode-se


concluir que elas, ao ignorarem a dimensão de gênero, acaba-
vam por priorizar os homens em seus contratos, concedendo
a eles a titularidade da moradia, especialmente em programas
que exigiam a comprovação de renda. A expressão “cabeça do
casal” ou “chefe de família” só era atribuída à mulher em caso de
famílias monoparentais, nas quais a figura masculina não existia.
O pressuposto era o de que, se houvesse um homem na família,
ele seria o responsável. As mulheres, por sua vez, por estarem
submetidas à condição de “dependentes”, ou sequer figurarem
como parte dos contratos, ficavam em condição delicada em que
as moradias podiam ser vendidas sem anuência delas, agravando
sua condição de desamparo.

Entretanto, quando olhamos para a composição familiar nas


favelas e periferias do país, vemos uma realidade bem diferente
desse cenário. Pesquisa realizada pela organização da sociedade
civil Redes da Maré, no Rio de Janeiro — que em 2015 entrevistou
2000 mil famílias residentes em alguma das dezesseis favelas
do complexo —, identificou que 39% delas tinham uma mulher
como a responsável principal pelo sustento do núcleo familiar.
Não por acaso, há mais de quinze anos a União dos Movimentos de
Moradia — UMM constituiu uma Secretaria de Mulheres voltada a
tratar a pauta de gênero no dia a dia e a combater a desigualdade
no mesmo âmbito que caracteriza muitas políticas públicas. Dessa
forma, a presença das mulheres em espaços institucionais levou
ao fortalecimento da pauta e à alteração desse quadro a partir
de propostas concretas.

No município de São Paulo, lideranças femininas dos movimentos


incidiram na aprovação do projeto que prioriza o atendimento da
mulher como beneficiária dos programas de habitação de inte-
resse social, determinando que os contratos sejam em seu nome,

290
Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

independentemente de estado civil ou renda4. A lei definiu ainda que


as ações desenvolvidas nos territórios com finalidade de capacitação
profissional e atividades assistenciais devem priorizar as mulheres.

Em nível federal, também houve uma vitória feminina com a pro-


mulgação da Lei Nacional de Habitação de Interesse Social5, que
recomenda que o registro de titularidade dos imóveis produzidos
com financiamento ou concedidos pelo poder público seja feito
em nome da mulher. Além disso, o Programa Minha Casa Minha
Vida (PMCMV) garantiu prioridade de atendimento às famílias com
mulheres responsáveis pela unidade familiar, sendo os contratos
efetivados preferencialmente em nome da mulher. O PMCMV
garantiu ainda que, em caso de separação, dissolução de união
estável ou divórcio, o título de propriedade do imóvel seja registrado
ou transferido à mulher, independentemente do regime de bens
adotado pelo casal. Essa normativa inaugurou uma nova perspectiva
para a política habitacional, alterando, inclusive, a previsão contida
no Código Civil, tornando-se um marco em direção às políticas
públicas mais equânimes.

Tais conquistas pesaram não apenas em uma mudança de mentali-


dade acerca da propriedade da moradia mas também influenciaram
na redação do novo Código Civil, reconhecendo o protagonismo
das mulheres em relação à unidade habitacional. A alteração legal
garantiu mais segurança à permanência da mulher na moradia
nos casos de dissolução matrimonial, bem como preservou a ela
a autonomia decisória sobre o destino da habitação.

Apesar de tudo isso, é claro que somente a previsão legal não


garante a alteração da realidade, da prática. Por isso, a Secretaria
de Mulheres segue sua atuação na difusão dessas pautas e na
capacitação da população feminina dos territórios onde a UMM
está presente, bem como mantém os governos e as instituições
responsáveis pela política habitacional sob incessante pressão.

4 Lei nº 13.770/2004, regulamentada pelo Decreto nº 45.987/2005.

5 Lei nº 11.124/2005.

291
Guia de Urbanismo Social

13.4_ MODELO DE ORGANIZAÇÃO PARA


AUTOGESTÃO HABITACIONAL — O
CASO DO MUTIRÃO FLORESTAN
FERNANDES

Os mutirões José Maria Amaral e Florestan Fernandes estão


localizados na Cidade Tiradentes, extremo leste da cidade de
São Paulo. Eles vêm sendo executados por 396 famílias com
renda inferior a dois salários mínimos, em sua maioria lideradas
por mulheres filiadas à União dos Movimentos de Moradia e ao
Movimento Sem Terra Leste 1.

Os conjuntos são financiados pelo programa federal Minha Casa


Minha Vida Entidades (PMCMV-E) e apoiados pela prefeitura e pelo
governo do estado de São Paulo. Trata-se de um empreendimento
construído por autogestão da comunidade, que se organiza com
o apoio dos movimentos, uma assessoria técnica e uma equipe de
trabalho social, gerindo todo processo de produção de moradia
sem a figura de uma empresa construtora.

O processo de controle comunitário está em todas as etapas:


na definição do terreno, do projeto, da equipe técnica, forma de
construção, compra de materiais, contratação de mão de obra,
organização do mutirão, prestação de contas, trabalho técnico
social e organização da vida comunitária. O objetivo disso é o
fortalecimento coletivo das famílias. Além dos temas relacionados
diretamente à obra, também é discutida com os envolvidos a luta
pelo direito à moradia e à cidade.

Cada família deve participar do trabalho mutirante, com um “expe-


diente” mensal de aproximadamente dezesseis horas. Os mutirantes
recebem formação prévia para a execução das tarefas relacionadas
às obras, que, via de regra, não requerem especialização profissional
e são de baixo risco de acidentes.

Ao integrar as famílias de forma solidária e ativa, o mutirão contribui


para o fortalecimento dos laços de companheirismo e da solidarieda-
de, além de proporcionar a formação de novos talentos e lideranças.

292
Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

A expressiva participação de mulheres nas associações e coope-


rativas, tanto em sua base como, mais recentemente, na direção e
responsabilidades de gestão, também é uma importante marca nesse
e em diversos outros processos autogestionários dos movimentos.

293
Guia de Urbanismo Social

13.5_ MOVIMENTOS DE MULHERES


EM HELIÓPOLIS: LUTA PELA
ILUMINAÇÃO PÚBLICA E
ORGANIZAÇÃO DE MÃES
CRECHEIRAS

Historicamente, as mulheres que residem em favelas são as maiores


vítimas da ausência de políticas públicas. Talvez por isso sejam elas
as protagonistas dos esforços pela implementação de serviços
fundamentais para a garantia de direitos. Como exemplo é pertinente
mencionar a experiência de Heliópolis, a maior favela da cidade
de São Paulo, onde a fundação e a materialização das lutas dos
movimentos populares passaram pela atuação forte das mulheres
em busca de condições de subsistência para as suas famílias.

A batalha pela habitação digna, infraestrutura urbana, serviços de


educação, saúde e assistência social sempre foi realizada pelas
mulheres do território em questão, partindo de suas necessidades
mais básicas: morar, trabalhar, alimentar e educar seus filhos. O
surgimento da União de Núcleos, Associações dos Moradores de
Heliópolis e Região — UNAS na década de 1980, é consequência
da luta de muitas mulheres que se organizaram para pressionar
sucessivos governos em relação à construção de creches e de
centros da criança e do adolescente na localidade.

Assim, o acesso às políticas públicas tem se materializado como


uma vitória comunitária das mulheres, em uma prova de que a
articulação comunitária é capaz de romper barreiras que sempre
predominaram nos espaços de poder, gerando resultados concretos.
Nessa perspectiva, o Movimento das Mulheres de Heliópolis vem
executando uma agenda de encontros mensais de acolhimento
às moradoras em situação de alta vulnerabilidade social, além
de contribuir para a formação cidadã de novas lideranças. Tais
encontros são espaços de planejamento de ações e atos de pres-
são popular para evidenciar violências sofridas e pressionar para
a sua resolução por parte das autoridades competentes, com um
diferencial: a partir de soluções propostas pelas próprias mulheres.

294
Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

Cite-se, a título de exemplo, a implementação da iluminação pública


na favela de Heliópolis, motivada pelo relato de mulheres que se
sentiam inseguras ao retornar para casa à noite. Majoritariamente,
os becos e vielas eram escuros e, portanto, amedrontadores e
inseguros. Dessa identificação de problema, surgiu a iniciativa de
promover um “lanternaço” — manifestação realizada por centenas
de mulheres em marcha pelas ruas escuras com lanternas nas
mãos. Mobilizados a imprensa e o poder público, o resultado foi
este: Heliópolis foi a primeira comunidade de São Paulo a receber
lâmpadas de LED em toda a sua área.

A experiência ilustra a história de luta das mulheres das favelas:


olham para suas dificuldades em busca de soluções, organizam-se,
pressionam, ganham espaços e conquistam políticas que acabam
por beneficiar a todos, incluindo os que não vivem no território em si.
A luta das mulheres da UNAS é por uma cidade mais justa, inclusiva,
educadora e feminina, ansiando pelo dia em que ela seja apenas
pela melhoria das condições de vida — e não pela garantia dela.

295
Guia de Urbanismo Social

13.6_ PROGRAMA FAZENDEIRAS —


CAPACITAÇÃO FEMININA NO
SETOR DA CONSTRUÇÃO CIVIL

No final de 2020, em meio às restrições necessárias impostas


pelas ações de combate à covid-19, o Instituto Fazendinhando
expandiu suas iniciativas de suporte à comunidade nas demandas
assistenciais. Ressaltam-se aqui as ações de estímulo às condições
de empregabilidade dos moradores.

Com base em pesquisas realizadas durante a quarentena e a


partir da convivência diária com os moradores, ficou evidente para
o Fazendinhando a urgência de iniciativas específicas voltadas
ao público feminino. O objetivo central era diminuir as mazelas
identificadas, ofertando uma oportunidade de recolocação no
mercado de trabalho e empoderando a população feminina nas
ações internas da comunidade. A partir daí foram criados os cursos
de qualificação para as mulheres no setor da construção civil,
denominado afetivamente de “Fazendeiras”.

Numa governança compartilhada de responsabilidades, integrantes


do “Fazendinhando” e da União de Moradores, em conjunto com
profissionais convidados para palestras e trabalhos específicos de
canteiro, conduziram as atividades previstas nos cursos com grande
êxito. Destaca-se como resultado relevante, como observado na
figura a seguir, o fato de as atividades práticas de canteiro terem
sido desenvolvidas em ambientes reais da comunidade, permitindo
a recuperação e reformas de cômodos e de áreas precárias a partir
das competências profissionais desenvolvidas com as alunas
durante o curso.

O ingresso de mulheres no ramo da construção civil vem sendo incen-


tivado por oportunidades de salários melhores, muitas vezes superior
ao que se costuma pagar para atividades como a de doméstica. A falta
de mão de obra qualificada no mercado é outro fator relevante, sem
falar no diferencial que as trabalhadoras aplicam nessa profissão —
são mais detalhistas e cuidadosas ao manusear os equipamentos e
concluem suas tarefas com maior precisão e qualidade de detalhes.

296
Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

INFOGRÁFICO 01:
METODOLOGIA DESENVOLVIDA AO LONGO DA CAPACITAÇÃO

Abertura de vagas
para mulheres de 18
a 60 anos
Definição e
levantamento
técnico das moradias

Aulas teóricas +
Material didático
Aulas práticas
+ Reforma
das moradias
(acompanhadas)
Criação de grupo
de Whatsapp
para estimular o
fortalecimento do
grupo Parcerias com
empresas do setor
para inserção no
mercado de trabalho

Formatura — Entrega
de certificados

Empreendedorismo
+ Assessoria MEI

Valores transversais são trabalhados nas aulas teóricas e prendidos na prática:


COLABORATIVIDADE, SUSTENTABILIDADE E EMPREENDEDORISMO.

Fonte: Instituto Fazendinhando (2021); adaptação: Insper.

297
14_
TÓPICOS EM MONITORAMENTO
E AVALIAÇÃO
14.1_ Processos de monitoramento e
avaliação

14.2_ Urbanismo social e


estratégias de monitoramento e
avaliação

AUTORES

14.1_ Ana L. M. Salla


(Núcleo de Urbanismo Social);
14.2_ Pedro Marin e Andrelissa Ruiz
(Fundação Tide Setúbal).
Capítulo 14 : Tópicos em Monitoramento e Avaliação

14.1_ ROCESSOS DE MONITORAMENTO


E AVALIAÇÃO

O processo de monitoramento e avaliação é um instrumento que


permite acompanhar a interação entre o planejamento e a execu-
ção de um programa ou projeto, possibilitando corrigir desvios na
implementação para que os resultados almejados sejam efetiva-
mente alcançados. Ou seja, são processos de acompanhamento
dos programas implementados para que se possa avaliar seus
resultados. Esses processos nos ajudam a trabalhar de forma estru-
turada informações que darão suporte a diagnósticos, formulação
e implementação para a avaliação de projetos e políticas públicas.

Para as políticas públicas, que buscam solucionar ou prevenir


problemas de interesse coletivo, o processo de monitoramento e
avaliação é um recurso que orienta governos em suas tomadas de
decisão ao fornecer evidências sobre o desempenho de programas
e projetos implementados. Caso seja identificado um resultado
abaixo do esperado, é possível realizar correções e ajustes con-
forme o necessário.

O monitoramento acompanha sistematicamente as ações desen-


volvidas pelo programa por meio de indicadores, medindo sua
evolução e registrando regularmente as observações de modo a
produzir dados consolidados e estratégicos para a gestão do projeto.
Por exemplo, programas voltados para a melhoria do bem-estar
ou qualidade de vida de comunidades vulneráveis podem coletar e
acompanhar a evolução de indicadores de renda, educação, saúde
e mobilidade urbana, entre outros. Esses dados, além de apontarem
para a melhoria (ou não) das condições de vida naquele território,
podem servir de parâmetro para construção de metas e ajustes nas
atividades conduzidas e/ou implementadas (caso os indicadores não
estejam apontando resultados esperados na velocidade desejada).
De certa maneira, ele apresenta o que está sendo entregue em
relação ao que foi planejado — o que mostra comparativamente
o progresso em um período de tempo determinado. Assim, o mo-
nitoramento pode apontar para a existência de problemas, como

299
Guia de Urbanismo Social

indicadores respondendo abaixo do nível esperado. No entanto,


ele não trará informações para entender por que o problema está
ocorrendo e como ele pode ser resolvido.

Já a avaliação tem diferentes concepções (como as relacionadas a


processos, desempenho e impacto) e metodologias que procuram
responder a perguntas específicas e orientar a tomada de decisão
dos gestores. De maneira geral, a avaliação procura melhorar a
qualidade de processos de implementação ou auferir resultados
dela, podendo ser conduzida por métodos quantitativos ou qua-
litativos. Aqui focaremos o conceito de avaliação de impacto. A
avaliação de impacto procura entender se o projeto é o responsável
pelas mudanças nas métricas dos indicadores observados. Um dos
maiores desafios da avaliação está em exatamente conseguir isolar
o impacto do projeto de outros fatores que também estão agindo
sobre a comunidade. Ou seja, muita coisa pode estar acontecendo
no território que não é resultado direto do programa ou projeto,
levando a uma conclusão parcial de que ele seria o único respon-
sável pelos resultados encontrados. De forma geral, a avaliação
de impacto busca responder à pergunta: “O que teria acontecido
com as comunidades ou os beneficiários caso eles não tivessem
sido expostos ao projeto?” (Insper Metricis).

O QUE É MONITORAMENTO?
Monitoramento diz respeito à coleta de indicadores junto à população-alvo
ou beneficiários de determinado programa ou projeto ao longo do tempo.

O QUE É AVALIAÇÃO DE IMPACTO?


Consiste em medir efetivamente se o projeto é o responsável pelas
melhorias apontadas pelos indicadores que estão sendo acompanhados
ao longo do tempo.

300
Capítulo 14 : Tópicos em Monitoramento e Avaliação

O processo de desenho do monitoramento e da avaliação de im-


pacto passam por diversos estágios, como veremos a seguir. Para
! as etapas descritas, usamos como referência o Guia de Avaliação
PARA SABER MAIS, VER: de Impacto Socioambiental do Insper Metricis.
▸ Existem diversos
materiais para conhecer
14.1.1_ DESENHO DO MONITORAMENTO
o processo e etapas
da construção da
Teoria da Mudança. DEFINIÇÃO DO PROBLEMA E OBJETIVOS
O próprio Guia de
Avaliação de Impacto
Socioambiental do Essa primeira etapa é uma das mais importantes para todo o
Insper Metricis traz
processo de monitoramento e avaliação. A definição precisa e
uma explicação mais
detalhada; por isso o objetiva do problema que se pretende (ou com o qual já se trabalha)
recomendamos como é essencial, pois esse entendimento é que irá guiar tanto as ações
consulta para quem
quiser se aprofundar
do projeto quanto o monitoramento e a avaliação.
no tema.

Ter uma interpretação equivocada significa colocar esforços e


recursos no problema errado, prejudicando potencialmente toda
a implementação do projeto. É comum que isso ocorra quando as
ações iniciais foram baseadas em impressões ou diagnósticos
superficiais (sem a devida discussão e aprofundamento) ou o
problema está relacionado a um campo que não é de expertise
dos envolvidos no projeto.

Quanto aos objetivos, é sempre importante perguntar: o que o projeto


quer alcançar para melhorar a vida das pessoas? Além de trazer
precisão e transparência com relação aos propósitos em si, essa
discussão também auxilia na definição do que está fora do campo
de ação, ou seja, quais desses objetivos estão diretamente sendo
influenciados pelo programa — lembrando que tempo e recursos
são finitos. Podem existir propósitos mais amplos, mas que estão
fora do campo de ação do projeto ou que não dependem apenas das
ações realizadas por ele. Assim, é importante discutir o problema de
modo crítico e objetivo, considerando os pressupostos colocados,
as fontes de evidência e no que isso implicaria. Também é relevante
avaliar qual a raiz do problema para se assegurar de que se está
focando em sua raiz e não em uma consequência (o método da
“árvore de problema“ é uma boa ferramenta para esse exercício).

301
Guia de Urbanismo Social

ÁRVORE DE PROBLEMAS

É uma ferramenta que procura organizar as principais causas dos proble-


mas que estão sendo estudados. A causa, ou raiz do problema, pode ser
entendida como uma dentre várias condições que, associadas, tornam
provável a ocorrência da questão que se gostaria de solucionar.

DEFINIÇÃO DA POPULAÇÃO-ALVO

Dado o acesso limitado a recursos (seja financeiro, de tempo


ou de pessoal), a escolha da população-alvo ou beneficiários
dos projetos é uma etapa fundamental. Ela pode ser entendida
como focalização — "Oportunidade de centrar esforços em quem
realmente precisa ou de dar ênfase a segmentos nos quais a
intervenção pode ser mais efetiva" (Insper Metricis).

VARIÁVEIS A SEREM CONSIDERADAS NO


PROCESSO DE FOCALIZAÇÃO DO PROJETO

O Guia de Avaliação de Impacto Socioambiental do Insper Metricis sugere


algumas variáveis que podem ser levadas em consideração durante
esse exercício de focalização do projeto: (i) delimitação geográfica; (ii)
características demográficas (idade, gênero, raça etc.); (iii) características
socioeconômicas (renda, escolaridade, ocupação e outras); (iv) pessoas
com deficiências físicas e cognitivas e demais vulnerabilidades relevantes;
(v) suscetibilidade a fatores ambientais (clima, potenciais desastres etc.);
(vi) contextos com condições iniciais limitantes (populações em condições
adversas de moradia).

BENCHMARKING

Refere-se à busca por experiências anteriores que trazem lições


(positivas ou negativas) relevantes para o projeto. Assim, ele se
beneficia de um processo de aprendizagem contínuo iniciado por

302
Capítulo 14 : Tópicos em Monitoramento e Avaliação

projetos similares. Nessa etapa, podem ser levantados estudos


acadêmicos, publicações de organizações não governamentais
e/ou internacionais e até mesmo realizarem-se conversas com os
gestores ou gestoras de outros projetos similares. O importante
é compreender os erros, acertos e aprendizados que a prática
proporcionou e que possam contribuir para diminuir erros ou
dificuldades na implementação do projeto em questão.

TEORIA DA MUDANÇA

É uma das etapas mais desafiadoras, pois faz o encadeamento e


mostra como as ações realizadas no âmbito de um projeto estão
conectadas e gerando o resultado esperado. A Teoria da Mudança é
"uma forma clara e lógica de articular a conexão entre as atividades
realizadas e os resultados socioambientais pretendidos". Suas
etapas são compostas pela definição e construção de "insumos
e atividades, que geram produtos ofertados à população-alvo
(outputs), os quais, por sua vez, conduzem a resultados (outcomes)
ligados tanto às atividades principais do projeto quanto a transfor-
mações mais amplas para a sociedade" (Insper Metricis).

ESCOLHA DE MÉTRICAS

A etapa final do processo de monitoramento é a escolha das


métricas ou indicadores que irão medir os resultados esperados
definidos na etapa anterior da Teoria da Mudança. Aqui cabe
destacar que para objetivo de monitoramento do projeto podem
ser selecionados indicadores das ações sendo realizadas (também
chamados indicadores de processo) e dos produtos finais. Todavia,
para uma avaliação de impacto são necessários indicadores de
resultado, ou seja, indicadores capazes de mostrar que os objetivos
do projeto foram alcançados (mesmo que parcialmente) ou não.

Importante! Cabe ainda destacar que um bom sistema de moni-


toramento e avaliação passa pela seleção de indicadores rele-
vantes e coerentes com as ações que estão sendo conduzidas
(indicadores sobre o que nos interessa medir e que irão refletir as
ações implementadas, caso contrário não será possível perceber

303
Guia de Urbanismo Social

o efeito do projeto). Idealmente, esses indicadores serão de baixo


custo (incluindo os de coleta) —, lembrando que dados abertos
ou disponíveis de maneira pública são uma boa alternativa para
reduzir custos.

O QUE SÃO INDICADORES?

Indicadores são medidas que ajudam a entender a realidade e agem como


termômetros que mostram variações (ou estabilidade) de aspectos sociais,
econômicos, ambientais etc. Taxa de mortalidade infantil, taxa de analfa-
betismo e número de beneficiários de programas sociais são exemplos de
indicadores que nos ajudam a dimensionar de maneira objetiva a realidade.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Políticas Públicas, Nexo Jornal, 2022. 7 Pontos sobre


indicadores e políticas públicas.

304
Capítulo 14 : Tópicos em Monitoramento e Avaliação

14.1.2_ DESENHO DA AVALIAÇÃO

O processo de desenho da avaliação é mais complexo e exige co-


nhecimentos e técnicas avançadas. É um campo que tem crescido
no Brasil nos últimos anos, mas que envolve custos mais altos,
tempo e profissionais especializados.

MÉTODO DE VERIFICAÇÃO DA ADICIONALIDADE

É preciso considerar como será conduzida a verificação da adiciona-


lidade, isto é, entender “o que provavelmente teria acontecido com
a população-alvo, caso o projeto não tivesse sido executado” (Insper
Metricis). De forma geral, esse processo consiste na seleção de
dois grupos: tratados e controle. Os tratados são aqueles que foram
beneficiados diretamente pelo projeto e o controle são aqueles que
não receberam ou participaram das ações do projeto. Ambos os
grupos possuem características similares para que seja possível
compreender “adequadamente o que poderia ter acontecido aos
tratados sem o projeto”. São diversas as técnicas possíveis para
isso, que seguem critérios específicos para sua aplicação.

PLANO AMOSTRAL

Diz respeito à escolha sobre quantos indivíduos ou beneficiários


ou mesmo quantos grupos farão parte da avaliação do projeto.
Há técnicas específicas para definição do tamanho amostral de
acordo com o método da avaliação elaborado e com o número de
beneficiários do projeto. Além desses critérios, os custos envolvidos
na coleta de dados também influenciam no tamanho da amostra
que está sendo observada.

CRONOGRAMA DE MEDIÇÃO

Orienta o período de coleta de dados que alimentarão a avaliação


e indica, por exemplo, se haverá medições antes e depois do início
das ações que estão sendo implementadas. Em geral, as avaliações
precisam de um horizonte de tempo mais longo após o início das
intervenções para que possam capturar o efeito das ações — por

305
Guia de Urbanismo Social

exemplo, a depender um projeto pode haver efeitos mais ou menos


imediatos na melhora da qualidade de saúde da população a partir
da implantação de um sistema de infraestrutura de água e esgoto
em uma área antes desassistida.

Portanto, os processos de monitoramento e de avaliação são


complementares e servem como insumo para reflexões sobre
prioridades, obstáculos e estratégias de implementação.

COMO AVALIAR SE A INTERVENÇÃO


ATINGIU OS RESULTADOS ESPERADOS?

Há diversas iniciativas que procuram auxiliar o processo de monitorar e


avaliar intervenções urbanas em territórios de vulnerabilidade social. Aqui
sugerimos alguns materiais e alguns aspectos a serem considerados:

▸ Grau de permanência dos moradores em suas casas e bairros após as


melhorias no território;

▸ Grau de melhoria da qualidade de vida (olhando para indicadores de


educação, saúde, violência, mobilidade urbana etc.);

▸ Grau de utilização dos espaços de lazer e convivência da comunidade;

▸ Dimensão qualitativa: percepção dos moradores a respeito das


intervenções e mudanças no território em que vivem.

306
Capítulo 14 : Tópicos em Monitoramento e Avaliação

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ O Guia de Avaliação de Impacto Socioambiental do Insper Metricis enfatiza o


método de avaliação de impacto fundamentada no "princípio da adicionalidade,
que consiste na avaliação do resultado do grupo que recebeu o investimento
comparando com o resultado de um grupo similar que não recebeu o tratamento. O
método permite controlar outros fatores que afetam o resultado do grupo, obtendo
avaliações mais robustas".

▸ ¿Medellín, cómo vamos? é uma aliança interinstitucional privada cujo objetivo


é acompanhar e analisar a qualidade de vida na cidade e região metropolitana
de Medellín — trabalhando para a "promoção de governos mais eficazes e
transparentes, cidadãos informados, responsáveis e participativos e em alianças
em torno da qualidade de vida na cidade".

▸ O Nexo Políticas Públicas fez uma reportagem a respeito de Equidade e Avaliação


de Políticas Públicas com a fundadora e diretora da Equitable Evaluation Initiative
(Iniciativa de Avaliação Equitativa) sobre a importância de considerar a equidade no
momento de fazer avaliações de políticas públicas.

▸ O Danish Institute for Human Rights disponibiliza online material sobre Diretrizes
e Instrumentos para Avaliação de Impacto em Direitos Humanos (em inglês). As
diretrizes foram originalmente desenvolvidas para negócios de grande escala,
entretanto várias seções são relevantes para outros contextos e podem receber
adaptações para atender projetos menores ou diferentes tipos de atividades,
ou, ainda, serem utilizadas na integração de direitos humanos em avaliações de
impacto socioambiental.

307
Guia de Urbanismo Social

14.2_ URBANISMO SOCIAL


E ESTRATÉGIAS DE
MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO

Os projetos de urbanismo social são instrumentos de planejamento


de políticas públicas que preveem atividades e intervenções
que, por sua vez, devem impactar positivamente a qualidade de
vida nos territórios. Monitorar as entregas previstas em projeto e
avaliar o seu impacto nos territórios é fundamental para garantir
a efetividade das intervenções.

Embora as atividades a serem desenvolvidas possam variar con-


sideravelmente de um bairro para o outro, os resultados de longo
prazo que se obterão nas comunidades são semelhantes. Padronizar
o monitoramento do impacto pode funcionar como uma estratégia
interessante para que o projeto de urbanismo social adquira escala
e para que o impacto de diferentes estratégias de intervenção
possa ser comparável entre diferentes territórios.

O estudo A lupa na cidade: Painel de indicadores de desenvolvi-


mento sustentável de áreas urbanas vulneráveis, desenvolvido pela
Fundação Tide Setubal (2020) com apoio do Insper Metricis, é uma
extensa compilação da literatura disponível sobre o desenvolvi-
mento de regiões em situação de vulnerabilidade. Esse trabalho
consolidou 37 resultados esperados nas diversas áreas de política
pública, que podem ser acompanhados por meio de um painel de 57
indicadores, descritos em detalhes no mesmo estudo. O material,
do modo como está no original ou adaptado, pode servir como
um alicerce robusto para a construção de uma metodologia de
monitoramento e avaliação compartilhada e participativa orientada
para o longo prazo.

Os principais indicadores do urbanismo social são os indicadores


sociais e não os indicadores urbanos. É suficiente apenas construir
espaços públicos ou é necessária a utilização desses espaços,
com a população ocupando-os com atividades ligadas à cultura
local, por exemplo?

308
15_
CASOS REFERENCIAIS

AUTORES

15.1_ a 15.7_ e 15.13_ Gabriela Massuda e


Núcleo de Urbanismo Social;
15.8_ Gabriela Massuda;
15.8.1_ José Brakars (ex-gestor sênior
do BID);
15.8.2_ Sergio Magalhães (UFRJ);
15.9_ Elisabete França (Secretaria de
Habitação, Prefeitura de São Paulo);
15.10_ e 15.11_ Diagonal;
15.12_ Martín Motta e Mariana Poskus
(CAF - Banco de Desenvolvimento da
América Latina);
15.14_ Hubert Klumpner e Klearjos E.
Papanicolaou (Urban Think Thank_next,
Zurique);
15.15_ Roland Krebs e Markus Tomaselli
(Urban Design Lab, Universidade Técnica
de Viena);
15.16_ Gareth Doherty (Harvard Universi-
ty Graduate School of Design);
BOX Parque Novo Santo Amaro — V. Lize-
te M. Rubano e Vigliecca & Associados;
BOX Jardim Pantanal — Simone Gatti
(WRI Brasil/ FICA).
15.1_ Introdução 15.9_ Programa Mananciais, São Paulo

15.2_ Urbanismo Social de Medellín: 15.10_ Ilha de Deus, Recife


Projeto Urbano Integral (PUI)
Nororiental 15.11_ Braços Abertos, Boa Vista

15.3_ Utopias de Iztapalapa, Cidade 15.12_ Barrio 20, Buenos Aires


do México
15.13_ Barrio 31, Buenos Aires
15.4_ Compaz – Centro Comunitário
da Paz, Recife
REFERÊNCIAS INTERNACIONAIS:

15.5_ Territórios e Usinas da Paz,


15.14_ Urbanização como prática de
Estado do Pará
projeto social na América Latina

15.6_ Mais Vida nos Morros, Recife


15.15_Planejamento orientado
para o diálogo e a inclusão social:
15.7_ Programa Urbanismo Social,
o Urban Design Lab na América
São Paulo
Latina e no Caribe

URBANIZAÇÃO DE FAVELAS:
15.16_ “Booxhibition”: imaginando
o futuro
15.8_ Programa Favela-Bairro, Rio
de Janeiro
Guia de Urbanismo Social

15.1_ INTRODUÇÃO

Nos Capítulos 1 e 2, apresentaram-se a explicação e a justificativa do


uso do termo urbanismo social, sua conceituação e aproximações e
complementaridades com os programas de urbanização de favelas.
Urbanismo social não é uma experiência que surge de modo isola-
do na Colômbia. É o resultado de aprendizados, da construção de
conhecimentos e de práticas coletivas que tornaram possíveis a
transformação e a qualificação das favelas na América Latina, cujas
populações há décadas vêm sofrendo com a violência de conflitos, a
pobreza, as desigualdades, as carências de infraestrutura urbana de
todo tipo e de habitação digna. E que, reconhecidamente pelos seus
autores de Medellín, é influenciado pelo caso pioneiro e premiado de
urbanização de favelas, o programa Favela-Bairro, desenvolvido no
Rio de Janeiro na década de 1990. Ou seja, deixa-se claro que ambos
os conceitos — urbanismo social e urbanização de favelas — não
são aqui vistos como excludentes ou objeto de disputa e, sim, como
abordagens complementares e derivados de desenvolvimento em
contextos diversos.

Ainda, lembrando que as definições foram explicadas no Capítulo 2,


neste capítulo apresentamos alguns casos referenciais que já têm
sido publicizados em maior ou menor grau. As experiências práticas,
concretas, trazem sempre as ricas oportunidades de aprendizados,
seja pelos acertos e sucessos do caso, seja pelas suas limitações, as
forças e fraquezas.

A intenção do Guia, recorde-se, é apresentar um cardápio de referências


— conceituais, temáticas, metodológicas e de casos concretos — de
modo útil e prático à comunidade geral, não especialista. Os casos aqui
apresentados, mesmo tendo sido objeto de ampla pesquisa do Núcleo
de Urbanismo Social — pesquisa bibliográfica criteriosa, entrevistas
estruturadas com diversos atores (“stakeholders”) e visitas a campo — e
trazendo contribuições de diferentes colaboradores, aportando seus
importantes relatos derivados de anos de atividade nos diferentes casos
concretos —, não constituem um trabalho acadêmico stricto sensu.

312
Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.2_ URBANISMO SOCIAL DE MEDELLÍN:


O PUI (PROJETO URBANO INTEGRAL) NORORIENTAL

PUI
MEDELLÍN
NORORIENTAL

ÁREA (KM2) 381 1,58

POPULAÇÃO
2.376.337 170.000
(HAB)

Tabela: relação entre a área e a população de Medellín e a área de intervenção do PUI.


Fonte: dados de Medellín: EAFIT, 2017 – Medellín Cómo Vamos; PUI Nororiental:
EDU, 2006.

Mapa: demarcação do território de Medellín e da área de intervenção do PUI (laranja).


Fonte: Google Earth, edição própria.

313
Guia de Urbanismo Social

CONTEXTO

A cidade de Medellín, capital do departamento de Antioquia, na


Colômbia, é dividida em dezesseis comunas e em 249 bairros. Hoje
retratada como uma referência no âmbito do urbanismo social, a
cidade passou por um processo de profundas transformações
políticas, econômicas e sociais na segunda metade do século XX,
apresentando, entre os anos de 1938 e 1964, crescimentos médios
anuais superiores a 6%1, grande parte devido às migrações da
população rural para os centros urbanos.

A acelerada taxa de urbanização superou a capacidade de gestão,


provisão habitacional e planejamento urbano do Estado, comprome-
tendo a ocupação do território com conglomerados informais, altos
índices de desigualdade e exclusão socioeconômica e territorial.
Somando-se a esse cenário, Medellín era, na década de 1980,
marcada por um contexto político instável, caracterizado pela
violência urbana liderada pelo narcotráfico e por grupos armados. A
crise social da metrópole chegou ao seu ápice na década de 1990,
com um aumento de homicídios que tornou Medellín a cidade mais
violenta do mundo2.

Foi a partir desse período que a gestão do Estado concentrou


esforços para retomar o território do controle das milícias, criando
o Conselho Presidencial de Medellín e Região Metropolitana para
a promoção de ações de combate à violência com a recuperação
dos espaços urbanos e de cidadania. A administração pública, junto
com instituições acadêmicas e organizações não governamentais,
se organizou para estudar e implementar programas para melhorar
a condição de vida dos habitantes dos territórios vulneráveis3.
Uma das ações mais significativas em Medellín, que antecede o
conceito de urbanismo social, foi o PRIMED (Programa Integral

1 EDU – URBAM EAFIT (2012). Equipo Proyecto Urbano Integral - PUI - Zona Nororien-
tal y Equipo Proyecto de Consolidación Habitacional de la Quebrada Juan Bobo 2004-
2007, Medellín.

2 Idem.

3 ECHEVERRI, A.; ORSINI, F. Informalidad y urbanismo social en Medellín. In HER-


MELÍ, M.; ECHEVERRI, A; GIRALDO, J. (comp.). Medellín: medio ambiente, urbanismo y
sociedad. Medelliń: Fondo Editorial Universidad EAFIT, 2010.

314
Capítulo 15 : Casos Referenciais

de Mejoramiento de Barrios Subnormales). Financiado pelo banco


alemão KFW, o programa objetivava a melhoria da qualidade de
vida dos habitantes de quinze bairros localizados nas encostas
em três zonas diferentes da cidade, concentrando esforços nos
seguintes pontos para estabelecer mecanismos adequados de
planejamento e gestão:

▸ promoção e participação comunitária na resolução de pro-


blemas do bairro;

▸ melhoria da infraestrutura básica do bairro, serviços públicos,


equipamentos comunitários e espaço público;

▸ melhoria e realocação de residências localizadas em áreas


irrecuperáveis;

▸ legalização da posse da terra urbana;

▸ mitigação do risco geológico4.

As ações conjuntas entre a administração pública, as equipes


técnicas e os moradores construíram uma base de confiança para
que a experiência fosse exitosa, fortalecendo as lideranças locais,
a gestão e o andamento dos projetos. Além disso, houve a capaci-
tação de uma equipe técnica na comunidade. Esses processos e
aprendizados com o programa PRIMED foram fundamentais para
o desenvolvimento das estratégias do urbanismo social iniciadas
na década de 2000.

ARRANJOS REGULATÓRIOS E INSTRUMENTOS DE


IMPLEMENTAÇÃO

Com uma nova Constituição, promulgada na década de 1990, na


Colômbia, a administração pública tornou-se descentralizada, pos-
sibilitando maior autonomia dos territórios. Essa reforma política
permitiu que os governos fossem incentivados a criar Planos de
Desenvolvimento de Ação Local e eleitos popularmente, de acordo
com a gestão pública do período. O primeiro Plano foi elaborado

4 EDU-URBAM EAFIT, apud Montoya et al., 1996.

315
Guia de Urbanismo Social

em 1995, focado nas questões de segurança, convivência e justiça


social, dado o contexto de crise e guerra contra o narcotráfico.

Olhando para o histórico do urbanismo social, o Plano de 2004-2007


representou um importante momento para a sua consolidação.
Ele foi marcado pela participação conjunta de diversos atores,
unindo preocupações ligadas aos conceitos teóricos e espaciais do
território da cidade de Medellín, com o trabalho da administração
pública junto às principais universidades locais, que forneceram
diagnósticos, dados estatísticos, estudos e o uso de ferramentas
científicas que permitiram o melhor direcionamento dos investi-
mentos municipais e público-privados5.

Foi exatamente no período da gestão de 2004-2007 que surgiu o


termo “urbanismo social”, que se apresentou como um conceito
unificador das ações de planejamento e intervenções urbanas
focadas em áreas de maior vulnerabilidade e marginalizadas, como
já comentado no Capítulo 2. Para o caso de Medellín, estabelece-
ram-se três eixos principais de atuação6:

▸ Primeiro: planejamento e ações com projetos específicos para


cada território e executados em simultaneidade, garantindo a
construção da confiança entre Estado e comunidades;

▸ Segundo: gestão social e comunicação pública, garantindo a


sustentabilidade das ações implementadas e o diálogo constante
durante todo o processo de elaboração e execução dos projetos;

▸ Terceiro: gestão física e social de melhor qualidade, com equipes


técnicas capacitadas e equipamentos com arquitetura também de
qualidade, capazes de recuperar e transformar zonas marginalizadas
de maneira duradoura.

5 EAFIT, 2012, op. cit., p. 34-5.

6 Op. cit.
316
Capítulo 15 : Casos Referenciais

O Metrocable (teleférico, robusto elemento de inclusão via mobilidade urbana, sempre integrado aos espaços
públicos e demais elementos do PUI.
Foto: Carlos Leite.

A promoção de acessibilidade aos territórios periféricos — aqui o famoso Comuna 13, que foi um dos lugares
mais violentos do planeta na década de 1990 — é um elemento essencial da retomada dos espaços públicos com
grande vitalidade.
Foto: Murilo Cavalcante.

317
Guia de Urbanismo Social

Os equipamentos públicos âncora são peças de transformação, qualificação e pacificação nos territórios periféricos,
de alta qualidade arquitetônica, presentes nos PUIs. Aqui, a premiada Biblioteca España, em Santo Domingo Savio.
Foto: santiagovm, está licenciado sob CC BY-NC-ND 2.0.

A Biblioteca Parque Tomás Carrasquilla, nas Comunas 6 e 7, com o território do PIU Nororiental ao fundo
Foto: Omar Uran, está licenciado sob CC BY 2.0.

318
Capítulo 15 : Casos Referenciais

As Unidades de Vida Articulada (UVAs), equipamentos públicos multifuncionais nos territórios periféricos, muitas ve-
zes reaproveitando espaços ociosos como reservatórios de água.
Foto: Aline Cardoso.

319
Guia de Urbanismo Social

PROJETO PILOTO: O PUI NORORIENTAL

A Empresa de Desenvolvimento Urbano de Medellín (EDU) desen-


volveu o PUI Nororiental e aponta os seguintes dados:

▸ Período da intervenção: 2004-2011;

▸ Investimento: 144 milhões de pesos (2004-2008);

▸ Bairros beneficiados: catorze;

▸ 125.000 m2 de obras: dezoito parques públicos e equipamentos


como Parque Biblioteca España; Colegio Santo Domingo, Unidad
Deportiva Granizal e Centro de Desarrollo Empresarial Zonal
(CEDEZO);

▸ Contratação de mão de obra local: 2.300 pessoas da comunidade;

▸ Construção do Projeto Piloto de Consolidação Habitacional


Juan Bobo;

▸ Atuação de atores-chave:

→ EDU — Empresa de Desenvolvimento Urbano de Medellín;

→ EAFIT — Escola de Administração, Finanças e Instituto Tecnológico;

→ URBAM — Centro de Estudos Urbanos e Ambientais;

→ AFD — Agência Francesa de Desenvolvimento;

→ Setor Privado, Fundos de Crédito Familiar e ONGs como Área


Metropolitana, Sena, Viviendas de Antioquia — VIVA, Fondo Nacional
de Vivienda, Instituto Colombiano de Bienestar Familiar – ICBF.

Desenvolvido pela EDU, o PUI teve início no governo de 2004-2007,


gestão pioneira do prefeito Sergio Fajardo, e continuou na admi-
nistração seguinte. Ele consiste em um instrumento de intervenção
urbana que abrange as dimensões físicas, sociais e institucionais
de um território e suas especificidades, por meio da criação de
programas e projetos com a população local, com geração de
empregos e fortalecimento de sua economia.

320
Capítulo 15 : Casos Referenciais

O primeiro PUI realizado em Medellín foi desenvolvido na comuna


Nororiental, por ser identificada como a zona da cidade com os mais
baixos índices de qualidade de vida e de desenvolvimento urbano
(IDH), além de apresentar a maior taxa de homicídios registrada
no ano de 2004. Outro fator importante para a seleção da zona,
apontado pelos estudos da EDU e atores envolvidos no planejamento,
foi o projeto do Metrocable1, infraestrutura que permitiria maior
integração territorial e conectaria a “cidade informal” ao sistema
de transporte público, como o metrô. O PUI Nororiental se apoiou
e se estruturou a partir dessas infraestruturas de mobilidade
urbana, pois, para além da questão da acessibilidade, os bairros
e territórios seriam impactados também pelas obras e projetos
públicos de equipamentos comunitários, parques, ruas, calçadas
e passarelas no entorno das estações do teleférico2.

A metodologia de projeto para o PUI Nororiental foi utilizada para


os demais PUIs desenvolvidos na cidade de Medellín, respeitando
a diversidade de condições de cada território em transformação,
suas problemáticas sociais e ambientais. Essa metodologia segue
quatro etapas principais3:

▸ Etapa de planejamento: análises físicas, espaciais e sociais, com


identificação das principais problemáticas do território.

→ Diagnóstico físico: morfologia urbana (topografia, hidrografia,


uso e parcelamento do solo, traçado viário etc.);

→ Diagnóstico social: composição da população e sua caracterização


(nível de escolaridade, saúde pública, segurança pública etc.);

→ Diagnóstico de inserção política e institucional: análises de


programas e políticas estatais e municipais, ações preexistentes em
benefício da população local, secretarias envolvidas e suas atividades.

1 O Metrocable de Medellín é um sistema de transporte público desenvolvido para


áreas com características topográficas mais acentuadas, utilizando-se da tecnolo-
gia de teleféricos.

2 Echeverri e Orsini, 2010, op. cit.

3 EDU, 2012, op.cit.

321
Guia de Urbanismo Social

▸ Etapa de formulação: estratégias e desenhos sobre as inter-


venções a partir de construção e elaboração coletivas entre poder
público, técnicos e comunidades locais.

→ Fase de Desenho/Projeto: para o PUI Nororiental foi elaborado


um Plan Maestro (Plano de Bairro) no qual foram definidas três áreas
de intervenção (Andalucia, Popular e Santo Domingo), baseadas nas
estações do Metrocable como centralidades estratégicas4.

→ Fase de Execução: programação dos processos de priorização,


implementação e construção.

▸ Etapa de gestão: a articulação promovida pela EDU entre todos


os atores envolvidos constitui peça-chave e fundamental para o
desenvolvimento dos PUIs e seu avanço como política pública.

→ Fase de coordenação interinstitucional e intersetorial: o modelo de


gestão construído a partir de uma secretaria privada, no caso a EDU,
estabelecida dentro da governança municipal, garantiu o alinhamento
do projeto político e sua organização, por meio do monitoramento,
acompanhamento e direcionamento dos investimentos e recursos
disponibilizados;

→ Operação: foi desenvolvido e implementado um sistema organiza-


cional pela EDU para garantir a coordenação do planejamento e sua
execução, sendo ele constituído por grupos atuantes em diversas
frentes, tais como:

GRUPO DE ASSESSORIA GRUPO DE GERENCIAMENTO DE GRUPO DE OPERAÇÃO


INSTITUCIONAL PROJETO

Formado por especialistas Gestão dos recursos, qualidade e Grupo interdisciplinar que apoia
em gestão de projetos, com tempo de execução, e supervisão o desenvolvimento do projeto e
coordenação do grupo operacional. das obras. demais atividades.

GRUPO DE APOIO GRUPO DE ASSESSORIA DIRETORIA DE EXECUÇÃO


MUNICIPAL
Supervisão do desempenho da Canal de comunicação entre Gestão de recursos humanos,
operação e a manutenção das a coordenação do projeto e a técnicos e financeiros, para
infraestruturas físicas. administração municipal auxiliando no garantia do cumprimento dos
monitoramento do projeto. objetivos do plano.

4 Empresa de Desarrollo Urbano – EDU. Formulación Proyecto Urbano Integral – PUI


Nororiental. Medellín: EDU, 2006
322
Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ Etapa de Sustentabilidade e Apropriação:

A criação de uma metodologia e o desenvolvimento de estratégias


para a participação comunitária, por meio da comunicação entre
os grupos de trabalho no processo de desenvolvimento do projeto,
junto à preocupação da gestão pública no encaminhamento dos
planos a médio e longo prazo, permitiu uma articulação funda-
mental entre os componentes sociais, físicos e institucionais para
a elaboração e construção do PUI. Segundo a EDU, as experiências
com essa metodologia, a exemplo dos “talleres de imaginarios”
(oficinas de imaginários), tornou-se a melhor forma de garantir
projetos de sucesso, pois é a própria comunidade, consequen-
temente, que define, projeta, constrói, inaugura, cuida e usufrui
dos programas elaborados.

Deve-se à apropriação e à sustentabilidade das transformações


dos territórios impactados o reconhecimento do seu potencial
pelos cidadãos e comunidades que nele habitam. Por meio do
fornecimento de informação e da instrução aos líderes das co-
munidades durante todo o processo é possível criar um senso de
responsabilidade e garantir a continuidade das iniciativas.

No caso de Medellín, criou-se o modelo do Pacto Cidadão (El


Pacto Ciudadano), uma estratégia pedagógica que estabelece
um acordo entre as comunidades e a prefeitura com o intuito de
construir conhecimento sobre apropriação do espaço público e do
uso social que de fato transformam de maneira integral a cidade e
seus territórios, nos mais diversos âmbitos sociais, educacionais,
econômicos, de segurança e de qualidade urbana.

APRENDIZADOS

Os esforços empreendidos nos PUIs em Medellín destacam a


importância de ações de urbanismo social em territórios delimi-
tados, permitindo o desenvolvimento contínuo dos projetos ao
longo do tempo, nos quais a comunidade local sinta sua trans-
formação através da confluência entre programas habitacionais,
de infraestrutura urbana e de qualificação de espaços públicos.

323
Guia de Urbanismo Social

Isso também é visto como uma estratégia de racionalização dos


recursos públicos5.

Aliar apoio e vontade política e promover processos de participação


social revelou-se essencial no desenvolvimento de projetos como os
vistos em Medellín, no caso dos PUIs, garantindo sua continuidade ao
longo das trocas de gestão e gerando maior impacto nos territórios
de ação. Vale destacar também a importância do fortalecimento de
políticas públicas que garantam a preservação do capital social e a
permanência das populações nos espaços qualificados pelas novas
estruturas de educação, saúde, cultura, lazer e transporte, permitindo
que a cidade informal consiga se integrar ao restante do território.

Os principais aprendizados do PUI Nororiental e os resultados ob-


servados por meio da transformação urbana e social em Medellín,
segundo a EDU, a EAFIT e demais atores envolvidos, devem-se a
uma combinação de fatores:

▸ Consolidação de uma administração municipal eficiente aliada a


atores políticos com grande capacidade e entendimento técnico;

▸ Contexto econômico favorável e presença de investimentos e


recursos internos (governo local e nacional) e externos (fundos
internacionais, capital estrangeiro etc.);

▸ Apoio e incentivo à pesquisa e contribuições acadêmicas, dando


visibilidade ao território e fornecendo análises e estudos profundos
e detalhados dos problemas identificados em cada localidade;

▸ Competência e vontade das equipes técnicas envolvidas;

▸ Enfrentamento das desigualdades sociais por meio de projetos


diversificados e programas na construção de habitação, espaços
públicos, equipamentos e transporte;

▸ Fomento à economia local e geração de empregos;

▸ Organização fiscal e gestão adequada dos recursos e transparência


em sua destinação;

5 ECHEVERRI, A.; ORSINI, F., 2010, op. cit.

324
Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ Fornecimento de uma arquitetura de alta qualidade, com a


valorização do ambiente construído e seu entorno;

▸ Garantia da viabilidade administrativa e econômica das inter-


venções após sua conclusão;

▸ Participação ativa das comunidades beneficiadas em todo o


processo: concepção, construção e manutenção;

▸ Articulação entre os meios físico, social e institucional — ou seja,


o desenvolvimento integral do território;

▸ Priorização de intervenções em zonas delimitadas e de menor


escala, para não haver desarticulação e diluição dos impactos
dos projetos;

▸ Realização de intervenções diversificadas, tanto em complexidade


quanto em uso, desde grandes infraestruturas (como o Metrocable)
até obras de pequeno porte em ruas e praças.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Capítulo 02.

▸ PUI Nororiental.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper: Série 3 | Urbanismo


social: conexão Medellín, Recife e São Paulo.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper: Medellín | Projeto


Urbano Integral – PUI Barrio Moravia.

325
Guia de Urbanismo Social

15.3_ UTOPIAS DE IZTAPALAPA,


CIDADE DO MÉXICO

CIDADE DO
IZTAPALAPA
MÉXICO

ÁREA (KM2) 1.495 116

POPULAÇÃO
9.209.944 1.835.486
(HAB)

Tabela: relação entre a área e a população da Cidade do México e a área de inter-


venção do Iztapalapa.
Fonte: dados INEGI, Censo de población y vivienda 2020.

Mapa: demarcação do território da Cidade do México e da área de intervenção do Iz-


tapalapa (laranja).
Fonte: Google Earth, edição própria.

326
Capítulo 15 : Casos Referenciais

CONTEXTO

A Cidade do México, capital do México, é uma das 32 entidades


federais do país, composta por dezesseis demarcações territoriais,
com autonomia política e administrativa, marcando uma governança
descentralizada por meio da Prefeitura de Iztapalapa. O município
de Iztapalapa é a quarta maior demarcação da Cidade do México,
abrangendo uma área de 116 km2, e também a mais populosa, com
1,8 milhão de habitantes1.

Historicamente, o município recebeu equipamentos que degradavam


sua paisagem urbana e social, como lixões e presídios, colocando
o território à margem das políticas sociais e urbanas por um longo
período2. Portanto, Iztapalapa tem sido foco de atenção das entidades
governamentais locais e em nível federal no México por apresentar
alta vulnerabilidade social, persistindo problemas como índices
elevados de pobreza e violência, de acesso à educação, saúde, equi-
pamentos públicos, transporte e, principalmente, às infraestruturas
básicas de saneamento — apenas um quarto dos bairros da localidade
tem fornecimento de água 24 horas por dia.

Segundo relatório da ONU, entre 2015 e 2020, a violência familiar


na cidade registrou um aumento de 47,5%, enquanto crimes como
abuso sexual (141%) e estupro (94%) mais que dobraram3. O ambiente
de insegurança também é influenciado pela presença de grupos
criminosos ligados ao narcotráfico e a armas, o que dificulta e ameaça
a governança local e a gestão da segurança dos territórios afetados.

Em março de 2021, o Departamento de Drogas e Crime (UNODC) da


Organização das Nações Unidas (ONU) realizou em Iztapalapa — e
em mais quatro cidades ao redor do mundo — uma avaliação de
governança e segurança urbana. Essa avaliação funciona como

1 UNODC. Evaluación de la Gobernanza de la Seguridad Urbana. Centro de Exce-


lencia para Información Estadística de Gobierno, Seguridad Pública, Victimización y
Justicia de la Oficina de las Naciones Unidas contra la Droga y el Delito. (2021)

2 Webinário: Utopias em Iztapalapa, México e Programa Braços Abertos, Boa


Vista, Roraima. Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, 2022

3 UNODC (2021). Op. cit.


327
Guia de Urbanismo Social

uma ferramenta para o desenho de políticas públicas de prevenção,


baseada em análises e evidências para melhorar a qualidade de vida
nos territórios que fazem parte da iniciativa. Em sua abordagem são
considerados oito princípios fundamentais de boa governança4:

▸ Promover a participação social;

▸ Garantir o Estado de Direito;

▸ Contar com mecanismos de transparência de governança;

▸ Agir de forma responsável e reativa;

▸ Manter a tomada de decisões orientada pelo consenso;

▸ Atuar de maneira equitativa e inclusiva;

▸ Atuar de modo eficiente;

▸ Garantir a prestação de contas.

Segundo o relatório da ONU5, o objetivo final da Evaluación de la


Gobernanza de la Seguridad Urbana (EGSU) é reverter os fatores
de risco e estabelecer uma governança legítima, reduzir a desigual-
dade e promover a inclusão e resiliência individual e comunitária,
estratégias aliadas aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
(ODS) estabelecidos pela entidade.

Dentro desse contexto, com a atenção voltada aos projetos de


redução de vulnerabilidade social, política e econômica, a Prefeitura
de Iztapalapa, por meio da Direção-Geral de Governo e Proteção ao
Cidadão, executa programas e ações em tal direção, com enfoque
na prevenção ao crime. Foram elaborados dez tipos de projetos na
cidade, apoiados tanto pela Prefeitura de Iztapalapa quanto pelo
governo da Cidade do México e pelo governo federal, dando ênfase
à população mais vulnerável, crianças e mulheres em programas
diversos de reabilitação urbana e cidadã.

4 UNODC (2021). Op. cit.

5 UNODC (2021). Op. cit.


328
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Esses projetos, que vão desde a criação de programas de cidada-


nia à construção de equipamentos públicos e infraestrutura de
transporte (como a linha de teleférico urbano), desempenharam
papéis essenciais para o envolvimento dos habitantes nas ações
de combate à violência e às desigualdades sociais.

As políticas públicas em Iztapalapa foram construídas com apoio


e diálogo junto às comunidades, por meio de assembleias parti-
cipativas na ação chamada “Diálogos por el Bienestar y la Paz en
Iztapalapa”, com reuniões periódicas para o levantamento territorial
das áreas mais inseguras, tendo como resultado o desenvolvimento
de uma Agenda de Desenvolvimento Local. Através do planejamento
e priorização de ações junto à prefeitura, desenvolveu-se uma
estratégia para transformação integral do território de Iztapalapa,
seguindo seis pontos principais de planejamento e gestão6:

▸ Assembleias e ligações comunitárias por rua e quarteirão;

▸ Assembleias semanais de autodiagnóstico comunitário e trei-


namento de ligação;

▸ Elaboração da Agenda de Desenvolvimento Local;

▸ Desenho de ações e projetos, bem como planos de trabalho de


ligação;

▸ Integração e divulgação da Agenda de Desenvolvimento Local;

▸ Execução de ações, obras e projetos.

PROJETO UTOPIAS

O Projeto Utopias – Unidades de Transformación y Organización


para la Inclusión y Armonía Social (Unidades de Transformação e
Organização para Inclusão e Harmonia Social) faz parte de um dos
programas desenvolvidos pela Prefeitura de Iztapalapa chamado
“Iztapalapa se pone guapa” (Iztapalapa fica bonita), com enfoque
no melhoramento do entorno urbano por meio do resgate do

6 UNODC (2021). Op. cit.


329
Guia de Urbanismo Social

espaço e dos equipamentos públicos, com processos de acupuntura


sociourbana para gerar lugares de encontro, bem- estar social e
convivência comunitária7.

As Utopias são, portanto, um espaço para o desenvolvimento comu-


nitário que oferece, de forma gratuita e pública, uma infraestrutura
física com atividades educacionais, culturais, artísticas e de lazer para
a população local. É com esses espaços que se espera alcançar uma
transformação do território e de seu entorno, com impactos positivos
por meio da recuperação do espaço público, da reconstrução do tecido
social, da coesão e envolvimento da comunidade8.

A iniciativa teve início em 2018 e foram projetados quinze espaços


de Utopias em Iztapalapa, sete dos quais haviam sido inaugurados
até março de 2021, e outros seis estão atualmente em construção,
localizados no território seguindo este mapa disponibilizado pela
prefeitura local. Os espaços projetados englobam diversas atividades
e infraestruturas como piscinas, instalações esportivas, ginásios, au-
ditórios, salas de música e dança, além de espaços para atendimento
médico, psicológico e também de apoio jurídico (como atendimento
aos casos e vítimas de violência doméstica).

O território de vulnerabilidade social em Iztapalapa e a inserção das Utopias.


Foto: Raúl Basulto Luviano.

7 (UNODC) 2021.

8 (UNODC) 2021.
330
Capítulo 15 : Casos Referenciais

O território de vulnerabilidade social em Iztapalapa e a inserção das Utopias.


Foto: Raúl Basulto Luviano.

O território de vulnerabilidade social de Iztapalapa, na Cidade do México, e a inserção das Utopias; assim como em Me-
dellín, equipamentos públicos são âncora de programa multifuncional e elementos de referência e vitalidade urbana.
Fotos: Laura Janka.

331
Guia de Urbanismo Social

PROCESSO DE TRABALHO E GESTÃO DAS UTOPIAS

O processo de trabalho para a criação das Utopias considerou


estas etapas principais1:

▸ Fase de formulação: colaboração interna entre diversos setores


da prefeitura na planificação preliminar;

▸ Diagnóstico socioterritorial: análise das características tipoló-


gicas e morfológicas do espaço público para a elaboração dos
projetos de recuperação integral dos territórios, com a atuação
da comunidade por meio de oficinas participativas e diagnósticos
com a população local;

▸ Planificação, criação e desenho: definição de um programa


arquitetônico específico elaborado a partir da base de dados e
análises territoriais coletados na etapa de diagnóstico;

▸ Metamorfose do lugar e difusão pelo território: execução das obras


de maneira simultânea à difusão do novo equipamento pelo território
e pela comunidade, de acordo com cada contexto específico.

Segundo os dados compartilhados pela Prefeitura de Iztapalapa,


foram construídos ao todo 516.000 m2 de espaço público para o
esporte, cultura, bem-estar e convivência social. Toda a parte de
operação e coordenação de atividades é realizada pelo Gabinete
Utópico, dentro da prefeitura, em colaboração com as “equipes
utópicas”, constituídas pelos representantes locais de cada território
e a coordenação-geral de cada unidade.

Os processos participativos são essenciais para a manutenção das


Utopias e garantem que a gestão pública mantenha relação direta
com as necessidades da população.

Considerando todas as atividades gratuitas, as Utopias asseguram,


para além dos recursos municipais, a captação de recursos por meio
de ações de publicidade e locação de lojas comerciais (cafeterias

1 Webinário: Utopias em Iztapalapa, México e Programa Braços Abertos, Boa Vista,


Roraima. Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, 2022.

332
Capítulo 15 : Casos Referenciais

etc.), e contam também com a parceria de universidades para a


realização de atividades e oficinas2.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Projeto UTOPIAS —Unidades de Transformación y Organización para la


Inclusión y Armonía Social.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper — Utopias em


Iztapalapa, México, e Programa Braços Abertos, Boa Vista, Roraima. Laboratório
Arq.Futuro de Cidades do Insper, 2022.

2 Idem.

333
Guia de Urbanismo Social

15.4_ COMPAZ
CENTRO COMUNITÁRIO DA PAZ,
RECIFE

BAIRRO ALTO BAIRRO BAIRRO BAIRRO ILHA


RECIFE
STA. TEREZINHA CORDEIRO CAXANGÁ JOANA BEZERRA

ÁREA (KM2) 218.843 0,306 3,41 2,44 0,87

POPULAÇÃO
1.661.017 7.703 41.164 9.634 12.629
(HAB)

Tabela: relação entre a área e a população de Recife e área de intervenção dos bairros.
Fonte: Recife: IBGE (2021) / Bairros: Prefeitura de Recife (2020).

Mapa: demarcação do território de Recife e da área de intervenção dos bairros (laranja).


Fonte: Google Earth, edição própria.
334
Capítulo 15 : Casos Referenciais

CONTEXTO

Segundo documento elaborado pelo governo de Pernambuco1, o


estado vem enfrentando um cenário de violência grave, intensifi-
cado a partir de 2000. A cidade de Recife apresentou, entre 2000
e 2006, a maior taxa de homicídios entre todas as capitais do país.

Como pauta principal para a gestão do governo em 2007, a temá-


tica da segurança urbana e redução da violência consolidou-se a
partir da formulação do programa Pacto pela Vida2, com políticas
públicas voltadas para a mitigação da criminalidade e da violência
urbana. Seguindo o projeto do governo, em 2013 a prefeitura da
capital pernambucana também lançou o programa Pacto pela
Vida de Recife, inserido no Plano Municipal de Segurança Urbana
e Prevenção da Violência3.

Centro Comunitário da Paz — Compaz

O Compaz foi criado pela Secretaria de Segurança Pública da Cidade


do Recife como parte de uma política pública de prevenção à violência
e à criminalidade por meio da inclusão social e do fortalecimento
comunitário local. Inspirados fortemente na referência de Medellín,
mais especificamente nos equipamentos “bibliotecas-parque”, os Cen-
tros Comunitários da Paz (Compaz) são conhecidos como “Fábricas
de Cidadania” e oferecem à população dos bairros do entorno uma
estrutura completa e de alta qualidade, com atividades esportivas,
piscinas, espaços de lazer e bibliotecas, além de serviços públicos
de atendimento à comunidade (Procon, mediação de conflitos e
Centro de Referência de Assistência Social — CRAS, entre outros)4.

1 Secretaria de Planejamento e Gestão. Coleção de boas práticas de gestão, volu-


me V, “Pacto pela vida”. Recife: Secretaria de Planejamento e Gestão: 2014

2 Prefeitura do Recife. Pacto Pela Vida Recife – Plano municipal de segurança


urbana e prevenção da violência. (s.d.)

3 Prefeitura do Recife. Ofício 259 / 2018-GP. Projeto de Lei Complementar, que


promove a revisão do Plano Diretor do Recife. Recife: Prefeitura do Recife, 2018.

4 Prefeitura do Recife. Recife 500 anos lança estratégias para pensar a cidade a
longo prazo. Recife: Prefeitura do Recife, 2019.
335
Guia de Urbanismo Social

Estabeleceu-se, a partir desses equipamentos, uma rede municipal


de bibliotecas chamada Rede de Bibliotecas pela Paz, um modelo
de ação pautado pelo urbanismo social e sustentado pelo princípio
de transformação social por meio da educação e da cultura, da
democratização dos espaços públicos e do acesso à informação
e ao conhecimento.

De acordo com o Programa Cidades Sustentáveis, o projeto pro-


moveu a participação da população local a partir da distribuição de
1.500 questionários e doze reuniões sequenciais para entender as
necessidades prioritárias do bairro em que o Compaz seria inserido,
discutindo com a comunidade as principais atividades que seriam
implementadas dentro do complexo.

Hoje existem quatro unidades do Compaz em Recife. A primeira,


chamada Eduardo Campos5, foi inaugurada em 2016, no bairro do
Alto Santa Terezinha, zona norte da cidade. A segunda foi o Compaz
Ariano Suassuna, que abriu as portas em 2017, no bairro Cordeiro;
as outras duas unidades foram inauguradas em 2019/20, o Compaz
Miguel Arraes e o Dom Hélder Câmara, nos bairros de Caxangá e
Ilha Joana Bezerra, respectivamente.

Esses grandes equipamentos públicos mostraram seu impacto na


prevenção da violência e da criminalidade, para além das ações de
policiamento. Foram diversos atores envolvidos no desenvolvimento
do projeto:

▸ Prefeitura de Recife;

▸ Secretaria de Governo;

▸ Secretaria Municipal de Segurança Pública;

▸ Secretaria de Assistência Social;

▸ Polícia Militar;

5 FONTE, M. Localização de um centro comunitário (Compaz) na cidade do Recife:


uma aplicação do método FITradeoff. 2018. Dissertação (mestrado) - Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2018.
336
Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ Grupo Fiat;

▸ Grupo Parvi;

▸ Fundação Bernard van Leer.

A criação de áreas de convivência e qualificação do espaço público,


com a possibilidade de a população local exercer plenamente
sua cidadania, mostrou seus impactos e o apoio popular de modo
bastante positivo. O acesso permanente e facilitado ao Compaz,
com horários de funcionamento estendidos – nos dias úteis, das
7 às 22h, e nos finais de semana, das 8 às 12h – , garantiu grande
participação da comunidade e seu uso de maneira intensa (mais de
2 mil atendimentos por dia em 2018 no Compaz Eduardo Campos
e mais de 13 mil pessoas cadastradas para seu usufruto).

Os Compaz em Recife se tornaram rapidamente a maior referência no Brasil ao urbanismo social de Medellín
no que se refere à implantação nos territórios de vulnerabilidade social dos referenciais equipamentos públicos
âncora, com programas diversificados e potencializando a vitalidade urbana das comunidades locais.
Foto: Murilo Cavalcanti.

337
Guia de Urbanismo Social

Festival de circo no Compaz.


Foto: Murilo Cavalcanti.

Compaz Ariano Suassuna.


Foto: Murilo Cavalcanti.
338
Capítulo 15 : Casos Referenciais

RESULTADOS

Segundo dados da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco


(SDS/PE)6, verificou-se que, no raio de um quilômetro do Compaz
Ariano Suassuna, o índice de Crimes Violentos Letais Intencionais
(CVLI) caiu 35% no comparativo de 2018 para 2017.

Já no Compaz Eduardo Campos, o índice de redução de CVLI caiu


27,3% no comparativo entre 2017 e 2016. O bairro do Alto Santa
Terezinha, sede do primeiro Compaz, não registrou nenhum ho-
micídio em 2018.

Para os demais equipamentos, ainda muito recentes, não há dados


disponíveis para avaliação de seus impactos, principalmente devido
ao período da covid-19, quando as unidades tiveram que interromper
seu funcionamento.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Centro Comunitário da Paz – Compaz.

▸ CAVALCANTI, Murilo. Conexão Recife Medellín Compaz –Laboratório de boas


práticas urbanas. Recife: CEPE, 2022.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper – Série 3 | Urbanismo


social: conexão Medellín, Recife e São Paulo.

6 Prefeitura do Recife. Centro Comunitário da Paz — Compaz.


339
Guia de Urbanismo Social

15.5_ TERRITÓRIOS E USINAS DA PAZ,


ESTADO DO PARÁ

PADRE CANAÃ
AMINTAS CABANA- ANTÔNIA PARAUA- JURUNAS/ TERRA
BRUNO DOS GUAMÁ
PINHEIRO GEM CORRÊA PEBAS CONDOR FIRME
SECHI CARAJÁS

ANO DE
2021 2022 2022 2021 2022 2022 2021 2022 2023
INAUGURAÇÃO

Tabela: relação entre a área e a população de Belém e a área de intervenção dos


Territórios e Usinas da Paz.
Fonte: Belém: IBGE, 2021 / Bairros: Censo IBGE, 2010.

Mapa: recorte da região metropolitana de Belém e a inserção das Usinas da Paz (laranja).
Fonte: Google Earth, edição própria.

340
Capítulo 15 : Casos Referenciais

CONTEXTO

No ano de 2019, o governo do Pará instituiu a política de inclusão


social e redução da violência por meio do programa Territórios pela
Paz (TerPaz), com a intenção de criar um conjunto de políticas públi-
cas e projetos com enfoque nos problemas relacionados à violência
urbana e aos territórios com altos índices de vulnerabilidade social.

Como forma de promover a articulação entre os atores governa-


mentais e não governamentais dentro das políticas de promoção
da paz nos territórios, foi criada, no ano de 2020, a Secretaria
Estratégica de Articulação da Cidadania (Seac)1, compondo junto
à Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) as ins-
tâncias institucionais que operam o programa sob uma perspectiva
de gestão integrada e articulada.

A atuação nos Territórios pela Paz foi pautada pelo Plano de Ação
Integrada, baseado em duas etapas de ação. A primeira, intitulada
choque operacional, constitui um conjunto de operações e planos
táticos pelas polícias civil e militar, partindo de um momento de
ação mais incisiva e se diluindo até uma fase de estabilização
e policiamento preventivo. A ideia é fortalecer a relação entre
polícia e comunidade, com a mitigação de confrontos por meio
da estratégia de comunicação permanente em face das ações
externas no interior da comunidade afetada. A segunda etapa é
chamada atuação Integral. Dela participam todas as secretarias,
fundações e órgãos do estado que integram o eixo de políticas de
inclusão social, com execução coordenada pela Seac. Segundo
a apresentação do programa2, os projetos organizam-se em sete
eixos temáticos principais para a promoção do desenvolvimento
territorial, da cidadania participativa e da mediação de conflitos:

▸ Capacitação técnica e profissional, educação básica, arte e cultura;

1 A Seac foi criada pela Lei nº 9.045, em 29 de abril de 2020, como órgão da Admi-
nistração Direta do Poder Executivo.

2 Secretaria Estratégica de Articulação da Cidadania. Apresentação do Programa


TerPaz.
341
Guia de Urbanismo Social

▸ Emprego e renda, microcrédito e empreendedorismo, economia


solidária;

▸ Habitação, regularização fundiária e urbanização;

▸ Saúde, esporte/lazer, assistência social;

▸ Tecnologia e inclusão digital;

▸ Meio ambiente e sustentabilidade;

▸ Mediação de conflitos e prevenção à violência.

Usinas da Paz

Dentre as ações programadas para os TerPaz, o projeto das Usinas


da Paz integra-se ao projeto e funciona como equipamento público
âncora para a transformação dos territórios. A seleção desses
territórios é feita a partir de sua classificação dentro de quatro
critérios principais:

▸ Elevados indicadores de criminalidade e violência;

▸ Polos geradores de criminalidade;

▸ Predisposição local para execução do projeto;

▸ Organização social comunitária mínima.

Encabeçada pelo governo do estado e coordenada pela Seac, a


construção das Usinas da Paz conta com investimentos da ini-
ciativa privada (empresas Vale e Hydro), responsáveis pelo custo
da construção e equipagem das unidades. Foram inauguradas
nove unidades:

▸ UsiPaz Amintas Pinheiro, no bairro Icuí-Guajará, em Ananindeua;

▸ UsiPaz Cabanagem, em Belém;

▸ UsiPaz Antônia Corrêa, no bairro Nova União, em Marituba;

▸ UsiPaz Padre Bruno Sechi, instalada no bairro Bengui;

342
Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ UsiPaz Parauapebas;

▸ Canaã dos Carajás;

▸ UsiPaz Jurunas/Condor;

▸ UsiPaz Terra Firme;

▸ UsiPaz Guamá.

O projeto arquitetônico das Usinas é padronizado e segue uma


programação diversificada no atendimento à comunidade local,
desde serviços públicos de saúde, educação, profissionalização e
empreendedorismo, entre outros, a espaços destinados ao lazer e
às práticas esportivas, como piscinas e quadras.

Usina da Paz do Icuí.


Foto: Marcos Aurélio Lopes.

343
Guia de Urbanismo Social

RESULTADOS

De acordo com dados publicados pelo governo do Pará, os Terri-


tórios pela Paz, três anos após sua criação, apresentam reduções
significativas nos índices de criminalidade na região metropolitana
de Belém. No bairro da Cabanagem, por exemplo, em que foi imple-
mentada uma das unidades das Usinas da Paz, em conjunto com
as demais etapas do Plano de Ação Integrada, houve um registro
de queda de 31% em ocorrências de roubo, num comparativo entre
os anos de 2021 e 20221.

Outro dado disponibilizado pela Secretaria Adjunta de Inteligência


e Análise Criminal (Siac) refere-se à queda nos Crimes Violentos
Letais Intencionais, com reduções consideráveis nos casos anali-
sados entre os períodos de janeiro a junho dos anos 2021 e 20222:

▸ Bairro Bengui: redução de 100% (registro de zero caso em relação


a um caso em 2021);

▸ Cabanagem: redução de 88% (um caso em 2021 para oito casos


em 2022);

▸ Icuí-Guajará: redução de 78% (dois casos em 2022, em compa-


ração aos nove casos em 2021).

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Usinas da Paz.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper – Fortaleza: Rede


Cuca e Belém: Usinas da Cidadania | 08/07.

1 Dados computados pela Secretaria Adjunta de Inteligência e Análise Criminal


(Siac), vinculada à Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Se-
gup). Secretaria Estratégica de Articulação da Cidadania (sd). Bairros contempla-
dos pelo TerPaz registram queda na ocorrência de roubos.

2 Governo do Pará. Programa TerPaz.


344
Guia de Urbanismo Social

15.6_ MAIS VIDA NOS MORROS,


RECIFE

ANO 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022

COMUNIDADES 2 2 4 37 6 4 1

FAMÍLIAS 300 600 1.250 3.450 5.730 958 200

Tabela: comunidades e famílias impactadas pelo programa Mais Vida nos Morros
entre os anos de 2016 e 2022.
Ao todo foram 56 comunidades e 12.488 famílias, beneficiando diretamente cerca de
55 mil pessoas.
Fonte: Programa Mais Vida nos Morros.

Mapa: demarcação do território de Recife e da área de intervenção do Programa Mais


Vida nos Morros (laranja).
Fonte: Google Earth, edição própria.

346
Capítulo 15 : Casos Referenciais

CONTEXTO

Segundo dados do programa Mais Vida nos Morros, aproximada-


mente um terço da população de Recife — isto é, acima de 500 mil
pessoas — vive em áreas de risco, tanto em relação à condição de
deslizamento quanto aos problemas relacionados ao descarte do lixo.

Nesse contexto, a capital pernambucana se coloca como pioneira


em ações de política pública com experiências pautadas pelo
urbanismo social. Desde os projetos do Compaz inaugurados em
2016, a cidade vem desenvolvendo uma metodologia de atuação
nos territórios com alta incidência de vulnerabilidade social.

Lançado em 2015 pela Prefeitura de Recife, o Programa Mais Vida


nos Morros começou como uma ação de prevenção aos desastres
de origem natural agravados pela ação humana, entre os quais
se poderiam incluir os deslizamentos de terra, em áreas de risco,
junto à defesa civil municipal. A capital possui 67% do seu território
ocupado por morros, e em função disso foram necessárias obras
de infraestrutura de contenção e estabilização das encostas. Mas,
para além das questões de infraestrutura básica de preservação e
qualificação dos territórios afetados, o programa consolidou uma
parceria forte entre a comunidade local, a prefeitura, o terceiro
setor e a iniciativa privada1.

Em 2018, o Mais Vida nos Morros foi “acelerado” na Universidade de


Harvard, em parceria com a Fundação Bernard van Leer, por meio do
Programa Urban 95, e começou a redirecionar toda a sua metodologia
para as crianças, em especial as da primeira infância (0 a 6 anos), na
cidade e em seus espaços públicos. A ideia era a de que intervenções
lúdicas, na altura dos 95 centímetros, tamanho médio de uma criança
de até 3 anos, pudessem estimular o desenvolvimento infantil, a partir
justamente do brincar. Era como se a rua fosse uma extensão da
própria casa ou até mesmo da escola, despertando a criatividade, a
curiosidade, a autoconfiança, a capacidade de aprender ou de imaginar.

1 PONZI, Túlio; LEITE, Carlos. Urbanismo Social com as cores do Recife. Revista
Piauí, 2021.

347
Guia de Urbanismo Social

Para atender a população e nortear as ações do Estado em face


dos problemas enfrentados pelas comunidades, criou-se a Secre-
taria Executiva de Inovação Urbana, um subsetor da Secretaria
de Infraestrutura e Serviços Urbanos da Prefeitura de Recife. A
atuação dessa nova secretaria prioriza o atendimento e a escuta
direta da população.

Dados da prefeitura mostraram que, até o final de 2020, o programa


havia atendido 53 comunidades, alcançando diretamente 54 mil
habitantes — com o objetivo de chegar a todas as 545 comunidades
em territórios de vulnerabilidade social da cidade2.

2 Prefeitura de Recife (2020). Mais Vida nos Morros.

348
Capítulo 15 : Casos Referenciais

“Se você pudesse vivenciar uma cidade a partir de 95 cm — a altura de uma criança
de 3 anos —, o que mudaria?” Esse lema do Programa Urban 95 da Fundação Ber-
nard van Leer, parceira da prefeitura no programa Mais Vida nos Morros, ganhou
escala e se tornou uma referência em termos de intervenções com entregas rápi-
das nos territórios de vulnerabilidade social — neste caso, os mais de 50 morros de
Recife —, com foco na geração de espaços públicos e na promoção da vida infantil
na cidade.
Fotos: Edson Holanda.

349
Guia de Urbanismo Social

METODOLOGIA

Diante dos desafios recorrentes relacionados à falta de continuidade


das políticas públicas e demais questões relacionadas à gestão
municipal, o Mais Vida nos Morros e sua metodologia de urbanismo
social se norteiam a partir de três princípios básicos de atuação:

▸ Baixo custo;

▸ Rápida implementação;

▸ Alto impacto.

Dentre os diversos problemas enfrentados, como os de habitação


e de infraestrutura básica urbana, o programa decidiu destacar a
questão dos espaços públicos de convivência e lazer — ruas, vielas
e escadarias —, dando maior atenção à criação de áreas urbanas
de melhor qualidade para o desenvolvimento das crianças das
comunidades socialmente vulneráveis de Recife.

Assim, foi disponibilizada pela prefeitura uma cartilha contendo


o “passo a passo” para implementação do Mais Vida nos Morros,
definindo soluções e intervenções pautadas por dez objetivos
principais, adequados a cada comunidade:

▸ Transformar microvazios urbanos (espaços degradados, vulne-


ráveis ou com acúmulo de lixo) em áreas de lazer e de convivência
ou espaços para as crianças;

▸ Implantar políticas para a diminuição da quantidade de lixo que


vai para os aterros municipais;

▸ Redesenhar e repensar toda a infraestrutura urbana da comuni-


dade (escadarias, calçadas, becos e vielas) sob a perspectiva das
crianças, especialmente as situadas na primeira infância;

▸ Integrar políticas públicas já existentes para a área beneficiada;

▸ Integrar os diferentes órgãos e secretarias do município, além de


parceiros da iniciativa privada, em prol dos territórios beneficiados
pelo programa;
350
Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ Empoderar todos os moradores (adultos, idosos e crianças) a


partir da escuta ativa e da participação nas tomadas de decisão;

▸ Engajar os moradores na transformação da sua comunidade,


exercendo a cidadania ativa;

▸ Promover a sustentabilidade e a resiliência da comunidade a


partir do protagonismo do morador;

▸ Promover uma mudança de comportamento dos moradores em


favor da transformação e da sua preservação posterior;

▸ Reinventar a relação do morador com a sua comunidade, des-


pertando um sentimento de orgulho, autoestima e pertencimento.

RESULTADOS

As ações realizadas na capital pernambucana mostram que o


engajamento junto à população e sua participação nas transfor-
mações da paisagem urbana são o principal pilar que sustenta o
Mais Vida nos Morros. Todas as atividades criadas — pintura das
casas, criação de hortas urbanas, construção de praças a partir de
resíduos recicláveis, limpeza das ruas etc. — foram resultado de
ações conjuntas entre os diversos atores envolvidos: prefeitura,
ONGs (Fundação Bernard van Leer), iniciativa privada (Tintas Coral),
equipe técnica, gestores e, principalmente, a própria comunidade.
!
PARA SABER MAIS, VER: Após a implementação de uma série de projetos, o estudo realizado
▸ Programa Mais Vida pelo programa apontou para a geração de impactos positivos nas
nos Morros.
diferentes áreas de ação: a criação de novos vínculos entre a equipe
▸ PONZI, Túlio; LEITE, técnica e a comunidade (por meio das oficinas, mutirões etc.); uma
Carlos. Urbanismo
Social com as cores do
mudança na percepção da população local em relação à qualidade
Recife, Revista Piauí, dos equipamentos e serviços públicos e, em especial, o aumento
2021.
extremamente significativo do uso dos espaços públicos.
▸ Webinários do
Laboratório Arq.Futuro
de Cidades do Insper:
Recife — Mais Vidas
nos Morros e São Paulo:
Jardim Pantanal | 01/07.

351
Guia de Urbanismo Social

15.7_ PROGRAMA URBANISMO SOCIAL,


SÃO PAULO

DISTRITOS

JARAGUÁ VILA MARIA SÃO MIGUEL


(PINHEIRINHO (PQ. NOVO PAULISTA (JARDIM
CIDADE DE SÃO
D’ÁGUA) MUNDO) LAPENA)
PAULO

ÁREA (KM2) 1.521 27,6 11,8 7,5

POPULAÇÃO
12.396.372 281.824 107.395 93.187
(HAB)

Tabela: relação entre a área e a população de São Paulo e a área de intervenção do


Programa Urbanismo Social.
Fonte: IBGE, 2010.

Mapa: a inserção dos três territórios iniciais do Programa Urbanismo Social (laranja)
na cidade de São Paulo.
Fonte: Google Earth, edição própria.

352
Capítulo 15 : Casos Referenciais

CONTEXTO

O Pacto pelas Cidades Justas surgiu em 2020 de uma ação conjunta


entre diferentes entidades da sociedade civil — Fundação Tide
Setubal, Instituto de Arquitetos do Brasil (IABsp), Instituto BEĨ e
diversas outras — para modelar estratégias de urbanismo social
inspiradas nos princípios de Medellín e também pela experiência
do Compaz, em parceria com a Prefeitura de São Paulo e esta,
que acolheu a iniciativa para promover o programa de Urbanismo
Social da Cidade.

Trata-se, assim, de uma articulação entre a sociedade, a


iniciativa privada e o poder público para criar e implementar
projetos de desenvolvimento e intervenções urbanísticas em
territórios vulneráveis.

O Pacto pelas Cidades Justas é, em essência, um modelo


de governança em que a larga experiência das entidades do
terceiro setor que já atuam em comunidades socialmente
vulneráveis será integrada à atuação das secretarias
do município. A articulação com a prefeitura garante a
centralização das ações, a integração multisetorial das
políticas públicas, a convergência das políticas nos territórios
selecionados e a continuidade do programa ao longo das
próximas gestões.

O Pacto pelas Cidades Justas prevê a pesquisa,


desenvolvimento e implantação coordenados de um extenso
leque de iniciativas, envolvendo saúde, educação, cultura,
habitação, transporte, criação e qualificação de espaços
públicos, sempre sob um modelo de gestão integrado e
articulado com lideranças comunitárias dos territórios em que
os programas serão implantados.

O programa se voltou inicialmente para três áreas periféricas da


cidade de São Paulo — nos entornos dos CEUs (Centros de Edu-
cação Unificados) Pinheirinho d’Água e Parque Novo Mundo e no

353
Guia de Urbanismo Social

território do Jardim Lapena — e tem a meta de expansão gradativa


para outros territórios similares.

São áreas que se enquadram em um contexto de alta vulnerabilidade


social e, portanto, foram o foco da elaboração e desenvolvimento
tanto de diagnósticos participativos com as comunidades locais
como de projetos de integração de políticas setoriais, visando à
redução das desigualdades sociais urbanas. Ou seja, configura-se
um programa de Urbanismo Social — Intervenções Integradas
em Territórios Vulneráveis, tendo como objetivo estratégico a
“implantação de modelo compartilhado de gestão entre a PMSP e
Sociedade Civil visando à melhoria da eficiência e à complementação
das políticas públicas em territórios de alta vulnerabilidade social,
a partir dos conceitos do Urbanismo Social”1.

O Pacto pelas Cidades Justas, em seu conjunto inédito atualmente


com quase trinta instituições do terceiro setor que de alguma
maneira impactam o território em suas diferentes frentes de
atuação, elaborou um Termo de Doação para a Prefeitura, com
toda a metodologia de trabalho, e também utiliza como diretrizes
e referências os marcos legais atuais da cidade, como o Plano Di-
retor Estratégico (PDE), a plataforma de monitoramento do PDE, os
Planos de Ação das Subprefeituras, os Planos de Bairro e as Áreas
de Estruturação Local (AEL); os instrumentos de planejamento e
gestão orçamentária, o Programa de Metas, o PPA (Plano Plurianual),
a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e a LOA (Lei Orçamentária
Anual). Além disso, apoiam-se nas ações e nos investimentos em
políticas sociais e, principalmente, em equipamentos públicos de
grande impacto como os CEUs.

Os princípios metodológicos do trabalho se baseiam em cinco


diretrizes principais, conforme segue2:

1 Idem.

2 Conforme o Diagnóstico participativo para elaboração de Projetos de Integração


de Políticas Setoriais Visando ao DesenvolvimWento local — Produto 5: Relatório fi-
nal, Pacto pelas Cidades Justas, 2020.

354
Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ Priorizar investimentos em áreas em situação de alta vulne-


rabilidade: em um contexto de escassez de recursos disponíveis
e crescentes desigualdades socioeconômicas, a definição de
prioridades para a intervenção pública em territórios de alta vul-
nerabilidade social é imperativa para a mitigação ou redução das
assimetrias no acesso aos serviços urbanos;

▸ Articular territorialmente as ações públicas e da sociedade civil: é


crescente a demanda pela articulação de diferentes políticas públicas
setoriais no território, de modo a evitar a fragmentação das ações
públicas e potencializar os recursos e os resultados como forma
de gerar transformações estruturais nas áreas mais vulneráveis;

▸ Participação comunitária em todas as etapas do processo:


centralidade do território como elemento de identidade cultural
aglutinadora, possibilitando a interdisciplinaridade na formula-
ção, implementação e avaliação de intervenções relacionadas às
diferentes dimensões da vida urbana.

▸ Implementar modelo de governança integrada e compartilhada


na escala local: prevendo a participação da comunidade residente
e da sociedade civil organizada em todas as etapas do projeto, a
possibilidade de desenvolver formas de autogestão ou cogestão
de equipamentos e de construir pontes com diversos setores se
torna mais concreta. Também, deve-se proporcionar permanência
mais longa nos territórios, garantindo a continuidade dos projetos,
mesmo com a alternância do governo, e mais flexibilidade diante
das dinâmicas dos bairros, pela agilidade de readequação das
ações conforme a necessidade.

▸ Avaliar e monitorar impactos das políticas públicas: o impacto das


intervenções no território deve ser, sempre que possível, mensurado
por meio de indicadores. Essa mensuração busca confirmar se as
relações causais entre atividades, resultados e impacto adotadas
no desenho das intervenções se confirmam na realidade. Caso as
intervenções realizadas no território não se traduzam, na prática,
em melhoria na qualidade de vida nos territórios, o planejamento
estabelecido inicialmente deverá ser revisto.

355
Guia de Urbanismo Social

A organização conjunta entre comunidade local, sociedade civil e


poder público foi a chave para a construção de uma metodologia
bastante inovadora para o planejamento de intervenções urbanas para
territórios em situação de vulnerabilidade, por meio de planos de ação
local. O Pacto pelas Cidades Justas apresentou como resultado desses
diagnósticos e planejamento um relatório detalhado e completo para
servir de ferramenta e orientação à prefeitura na implementação de
políticas públicas de transformação nos três territórios citados com
metodologias replicáveis em outros contextos similares.

Atualmente o programa está incluído de modo formal no âmbito


da prefeitura como uma

ação intersecretarial sob a coordenação técnica da SMUL


(Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento) e
institucional da Secretaria de Governo (SGM), sendo que
as secretarias da Educação (SME), Infraestrutura Urbana e
Obras (SIURB), Habitação (SEHAB), Saúde (SMS), Direitos
Humanos e Cidadania (SMDHC), Mobilidade e Trânsito
(SMT) e Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo
(SMDET) também fazem parte da iniciativa. Implantar dez
projetos de Urbanismo Social é a Meta 42 do Programa de
Metas 2021-2024.

Ou seja, há atualmente a expectativa de promoção de mais sete


territórios, além dos três iniciais.

Outra inovação criada pela prefeitura recentemente foi a incorpo-


ração no programa de urbanismo social de duas outras ações, já
existentes, os Territórios Educadores e Territórios CEU:

Ambas as intervenções buscam qualificar o entorno de


equipamentos públicos e educacionais, promover a segurança
viária nas rotas percorridas a pé, incentivar a micromobilidade e
promover o uso e a apropriação de espaços públicos. A diferença
entre eles é o núcleo propagador das intervenções urbanísticas.

356
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Enquanto no primeiro caso as melhorias são feitas no entorno


de um Centro de Educação Unificado (CEU), nos Territórios
Educadores um conjunto de escolas são o ponto de partida
das melhorias, com foco na primeira infância, intervindo nos
percursos percorridos pelas crianças, contribuindo para o seu
desenvolvimento cognitivo e motor.

Nos Territórios Educadores e CEUs as intervenções têm o


objetivo de transformar a experiência de pais, cuidadores,
crianças, adolescentes e de toda a comunidade que vive e circula
pela área de intervenção. Para isso, são implementadas medidas
como: reorganização do sistema viário para oferecer melhores
condições de trânsito e segurança aos pedestres, implantação
de ciclovias e ciclofaixas, reforma e ampliação de calçadas,
melhorias de iluminação pública, arborização e instalação de
mobiliários urbanos, como bancos e playgrounds.

METODOLOGIA

Dentro de um contexto em que as políticas públicas sofrem com a


descontinuidade nas trocas de gestão, a elaboração da metodologia
de projetos de urbanismo social para as áreas selecionadas em
São Paulo apoiou-se numa visão de integração e territorialização
das políticas setoriais. Segundo o Pacto, elas devem somar-se a
propostas de gestão participativa e compartilhada, garantindo
também mecanismos de financiamento para que os projetos se
sustentem e se desenvolvam ao longo dos anos, permitindo que a
população local tenha suporte e confiança no poder público e nos
atores envolvidos na elaboração das propostas.

O diagrama a seguir mostra a metodologia adotada.

357
Guia de Urbanismo Social

DIAGRAMA: METODOLOGIA

DIAGNÓSTICO TÉCNICO E BANCO DE DADOS DE


PARTICIPATIVO ATIVIDADES

3 grupos de ação local 9 temas


36 atividades participativas 33 ações estratégicas
47 indicadores de análise 128 atividades

CARDÁPIO DE AÇÕES
(MACROTEMAS)

PLANO URBANO PROGRAMAS SOCIAIS


GOVERNANÇA
INTEGRADO INTEGRADOS
INTEGRADA
2021-30 2021-30

PRIORIZAÇÃO
(A SER DESENVOLVIDO
A PARTIR DE 2021)

PLANO DE OBSERVATÓRIO AVALIAÇÃO DE


AÇÃO LOCAL IMPACTO
2021-2024
37 indicadores
de resultado

Fonte: Pacto pelas Cidades Justas. Produto 5 - Relatório Final, 2020. op.cit., adaptação: Núcleo de Urbanismo Social.

358
Capítulo 15 : Casos Referenciais

As etapas do trabalho se dividem em três fases:

Fase 1_ Diagnóstico e levantamento

▸ Diagnóstico técnico e participativo: identificação prévia de de-


mandas a partir da coleta de dados e indicadores socioterritoriais
de caráter mais técnico, para subsidiar e complementar o diagnós-
tico participativo junto aos moradores e demais atores envolvidos
(prefeitura, profissionais e técnicos e entidades da sociedade civil),
estabelecendo as agendas prioritárias.

▸ Banco de dados de atividades: em complementação à etapa de


diagnóstico, foi realizado um levantamento das políticas públicas
setoriais — planejadas e/ou implementadas — ou de cada território
analisado para identificação das ações e programas, em anda-
mento ou futuros, elaborados pelas secretarias do setor público
com o objetivo de redução da vulnerabilidade socioespacial e das
desigualdades sobre os serviços e infraestruturas públicas. Os
principais eixos temáticos levantados foram:

→ Mobilidade e infraestrutura;

→ Vulnerabilidades sociais;

→ Acesso a serviços públicos;

→ Qualidade ambiental e habitação;

→ Gestão territorial e governança local.

▸ Cardápio de ações: com o resultado posterior aos diagnósticos


técnico- participativos, somados à base de dados das atividades
identificadas, constituiu-se um conjunto de intervenções estra-
tégicas e atividade, alinhadas aos objetivos pré-selecionados de
cada território. A partir da formulação desse cardápio, foi possível
estabelecer as diretrizes integradas de cada localidade.

359
Guia de Urbanismo Social

Fase 2_ Planejamento

▸ Plano Urbano Integrado (PUI): após a definição do referido


cardápio, a etapa seguinte constituiu a territorialização das ações
de cada área estudada — com a configuração de mapas para cada
objetivo proposto —, que em conjunto formaram o PUI. Para além
das ações localizadas pelos mapas, é realizado um detalhamento
das atividades propostas para cada território, somado ao plane-
jamento estratégico sobre as demandas locais e suas prioridades.

▸ Programas Sociais Integrados: complementares às ações estra-


tégicas planejadas pelo PUI, as políticas públicas devem considerar
a diversidade das problemáticas enfrentadas pelas comunidades.
Dessa maneira, além dos projetos de estruturação urbana e quali-
ficação ambiental dos territórios, existe a preocupação de que as
ações estratégicas dos programas sociais promovam a qualificação
da vida das pessoas que habitam esses territórios, com ações que
vão desde a complementação de renda à segurança alimentar,
inclusão digital para capacitação profissional e empreendedorismo
e toda uma ativação do território por meio de atividades culturais
e de educação.

▸ Governança integrada: a boa governança sustenta-se em três


eixos principais. São eles: (1) planejamento compartilhado; (2) im-
plementação coerente e coordenada; e (3) accountability (prestação
de contas/transparência). A estrutura de governança deve incluir o
poder público, as entidades da sociedade civil e a população residente
nos processos de tomada de decisões e definição das propostas.

Fase 3_ Implementação e avaliação/monitoramento

▸ Planos de Ação: sua elaboração é realizada a partir da priori-


zação das ações propostas nos Planos Urbanos Integrados e nos
Programas Sociais Integrados, para colocar em prática as diretrizes
propostas em um período de tempo de médio prazo. Essas prio-
rizações devem partir das avaliações e consultas com a equipe
técnica, secretarias envolvidas e diretamente nos territórios diante
de três aspectos principais: (1) urgência e gravidade do problema;

360
Capítulo 15 : Casos Referenciais

(2) custo; e (3) oportunidade (se está dentro de um contexto de


implementação facilitada pelas condições gerais que influenciam
no andamento do projeto/programa).

▸ Observatório local e avaliação de impacto: instrumento inovador


para o modelo de governança que organiza entidades da socieda-
de civil junto à população local numa colaboração para avaliar e
monitorar a implementação do urbanismo social nos territórios. As
parcerias com as organizações sem fins lucrativos são elementos-
-chave para a construção dessas estratégias de monitoramento,
com a coleta de dados periódicos e num período de longo prazo,
pautados por parâmetros e indicadores de impacto1.

O PUI 2021-30 do Jardim Lapena e a promoção do urbanismo social criando uma


rede de articulações, rotas de caminhabilidade e conexões de espaços públicos e
equipamentos sociais, incluindo o Galpão ZL (Fundação Tide Setúbal) como referên-
cia. Fonte: Pacto pelas Cidades Justas. Produto 5 - Relatório Final, 2020.

1 O Pacto pelas Cidades Justas utiliza como referência o estudo A lupa na cidade:
painel de indicadores de desenvolvimento sustentável de áreas urbanas vulnerá-
veis, desenvolvido pelo Insper Metricis (Núcleo para Medição de Impacto Socioam-
biental), sob o financiamento da Fundação Tide Setubal e do Itaú Social, 2020.
361
Guia de Urbanismo Social

A seguir pode-se visualizar os PUIs, cenário 2021-30, e as respectivas


ações estratégicas associadas a cada objetivo2

DIAGRAMA: PLANO URBANO INTEGRADO 2021-30

OBJETIVOS AÇÕES ESTRATÉGICAS

1. URBANIZAÇÃO DE ▸ regularização fundiária ▸ melhorias habitacionais


FAVELAS E RECUPERAÇÃO
▸ urbanização complexa ▸ provisão habitacional e moradia
AMBIENTAL
▸ urbanização pontual/gradual provisória

▸ zeladoria e controle urbanos

▸ ruas completas ▸ rede cicloviária


2. QUALIFICAÇÃO DA MOBI-
LIDADE E DE INFRAESTRU- ▸ ruas compartilhadas ▸ rede de drenagem
TURA BÁSICA
▸ ruas de brincar ▸ redes de saneamento básico

3. INTEGRAÇÃO DO SIS- ▸ implantação e manutenção de ▸ ampliação das áreas verdes livres


TEMA DE ÁREAS LIVRES E parques ▸ gestão de resíduos sólidos e
ESPAÇOS PÚBLICOS
▸ qualificação das áreas verdes e educação ambiental
livres existentes

4. ESTRUTURAÇÃO DE ▸ qualificação dos equipamentos ▸ articulação do sistema de


REDE DE EQUIPAMENTOS E
existentes mobilidade
CENTRALIDADES LOCAIS
▸ fomento das vocações regionais ▸ articulação com sistema de áreas
articuladas às centralidades locais livres

5. DESTINAÇÃO DE ÁREAS ▸ identificação de áreas ociosas ▸ implementação do plano de áreas


VAZIAS E OCIOSAS ociosas, em articulação ao plano
▸ elaboração de plano de gestão e
destinação das áreas ociosas urbano integrado

Fonte: Pacto pelas Cidades Justas. Produto 5 - Relatório Final, 2020. Op.cit. Adaptação: Núcleo de Urbanismo
Social.

2 Pacto pelas Cidades Justas. Produto 5 - Relatório Final, 2020. Op. cit.

362
Capítulo 15 : Casos Referenciais

O PUI 2021-30 do Jardim Lapena e a promoção do urbanismo social criando uma


rede de articulações, rotas de caminhabilidade e conexões de espaços públicos e
equipamentos sociais, incluindo o Galpão ZL (Fundação Tide Setúbal) como referên-
cia. Fonte: Stuchi & Leite Projetos.

APLICAÇÃO

Toda a metodologia desenvolvida por meio do estudo elaborado


pelo Pacto pelas Cidades Justas constitui uma ferramenta bastante
detalhada para a implementação de intervenções norteadas pelos
objetivos do urbanismo social. Para os três territórios estudados
foram desenvolvidos Planos Urbanos Integrados através de todo o
processo descrito anteriormente, apoiados pelos Planos Municipais
e projetos específicos de cada região, como o Perímetro de Ação
Integrada do Jardim Japão, Renova SP e Território CEU, no caso
do Novo Mundo; o projeto do Parque Pinheirinho d’Água e Terri-
tório CEU, no caso do Pinheirinho; e o Plano de Bairro, projeto de
caminhabilidade e projeto da praça do mutirão, no Jardim Lapena.

Recentemente, a Prefeitura de São Paulo escolheu o território do


Jardim Lapena, na zona leste da cidade, como o projeto piloto de
Urbanismo Social. Em conjunto com a sociedade, foi construído um
Plano Urbano e Programa Social Integrado com 58 ações propostas
para o território nas áreas de infraestrutura urbana, educação,
saúde, cultura, desenvolvimento econômico, mobilidade e habitação.

363
Guia de Urbanismo Social

PLANO DE BAIRRO DO
JARDIM PANTANAL: UMA
CONSTRUÇÃO COLETIVA EM
PROCESSO

O Plano de Bairro é um instrumento de planeja- respostas e formas de organizar as potencia-


mento urbano que busca identificar as necessi- lidades e desafios da vida cotidiana dos mora-
dades de um determinado território e planejar dores. Mais que um plano, que muitas vezes é
as melhorias necessárias com a participação da “colocado na gaveta” e dispensado pelas futuras
comunidade. O Plano de Bairro integra o Sistema administrações municipais, este foi pautado
de Planejamento do Município de São Paulo, e na construção de um planejamento orgânico,
foi instituído pelo Plano Diretor Municipal em que busca transformações no seu percurso e
2014, através da Lei 16.050, que determinou não apenas no seu produto. Um processo que
sua elaboração com a participação dos morado- busca a emancipação dos atores envolvidos,
res locais e com a participação dos Conselhos colocando-os como agentes responsáveis pela
Participativos Municipais, visando a reserva de transformação do seu território.
recursos municipais e a sua introdução no Plano
O Jardim Pantanal está localizado no extremo
de Metas do município.
leste da cidade de São Paulo, na várzea do Rio
A primeira fase do Plano de Bairro do Jardim Pan- Tietê, no distrito do Jardim Helena, Subprefei-
tanal, São Paulo, foi elaborada entre os anos de tura de São Miguel Paulista. Cerca de onze mil
2020 e 2022, a partir de uma parceria do Instituto pessoas viviam no Jardim Pantanal em 2010,
de Arquitetos do Brasil — departamento de São segundo o Censo do IBGE, mas estima-se que
Paulo (IABsp) e do projeto Urbanizar, do Instituto esse número tenha aumentado bastante com
Alana. Mais que um processo de planejamento, o avanço da ocupação informal. O território é
sua elaboração foi um exercício constante de emblemático por ter enfrentado inundações
escuta e aprendizado, ao buscar a aplicação constantes desde 2009, e há grandes desafios
dos princípios do Urbanismo Social em suas ambientais e urbanos a serem superados. Mas
múltiplas vertentes: a construção um modelo de o cenário está em transformação, com a imple-
governança compartilhada com a comunidade mentação das instalações de infraestrutura
local, a busca por soluções sustentáveis ampara- de água e esgoto pela Sabesp (Companhia de
das na Agenda 2030, a organização urbanística Saneamento Básico do Estado de São Paulo) e
e social do território ancorada na reversão das o processo de regularização fundiária das áreas
desigualdades e na oferta de oportunidades aos informais de parte do território, que acontecem
moradores e trabalhadores locais. de forma paralela à articulação comunitária para
a elaboração do Plano de Bairro.
Esse “pensar junto” como metodologia base
da construção do Plano de Bairro do Jardim Para a elaboração do Plano, foram formados uma
Pantanal tem sido uma busca permanente por série de grupos de trabalho, como meio ambiente,

364
Capítulo 15 : Casos Referenciais

mobilidade e espaços públicos, educação, saúde articulação de decisões com os órgãos que fazem
e apoio às mulheres, que passaram a trabalhar a gestão das áreas da várzea do rio Tietê; a neces-
com as principais demandas do território. Esses sidade de garantir uma área de amortecimento,
grupos, compostos pela comunidade e pelas desocupada e com vegetação de várzea, para
equipes das instituições parceiras, mapearam os respeitar o transbordamento natural do rio; a
lugares de afeto, problemas e desafios a serem prevenção de tipologias residenciais compatíveis
enfrentados, sonhos e desejos, e passaram a com áreas sujeitas a alagamentos; e a realização
debater tecnicamente as propostas e possibi- de projeto de drenagem, com intervenções no
lidades de transformação do Jardim Pantanal. sistema viário e espaços públicos para mitigar
os efeitos dos alagamentos sobre a população.
Para cada ação necessária foram identificados
os caminhos de abordagem no campo da política Os desafios relacionados à mobilidade local e
pública e da organização social da comunidade, ao uso dos espaços públicos, que se articulam
bem como os prazos de implantação, para que de forma direta com a questão ambiental, tam-
até a conclusão da segunda etapa do Plano as bém tiveram protagonismo nos debates e na
demandas do Jardim Pantanal estejam detalha- construção de diretrizes com a comunidade. O
das e pactuadas com a sociedade e com o poder Jardim Helena, onde está localizado o Jardim
público, e possam então ser implementadas. Pantanal, é o distrito com maior número de via-
gens por bicicletas do município de São Paulo,
Enfrentar o impacto das águas sobre o território
segundo a pesquisa Origem e Destino (Pesquisa
do Jardim Pantanal e sobre sua população é
OD, desenvolvido pelo Metrô). A infraestrutura
um dos maiores desafios do Plano de Bairro, e
local, no entanto, é insuficiente para que esses
estamos ainda caminhando para encontrar as
ciclistas, e também os pedestres, se locomovam
melhores soluções e as possibilidades de viabili-
com segurança e conforto, seja pela falta de
zá-las. Realizamos o monitoramento das chuvas
pavimentação e drenagem, seja pela desarticu-
com os moradores, ouvimos famílias e trabalha-
lação com o plano cicloviário municipal e com as
dores para compreender os desafios existentes,
principais redes de transporte coletivo.
conversamos com muitos grupos de pesquisa e
técnicos especializados, nos informamos com O grupo de trabalho de mobilidade, debruça-
engenheiros experientes da Escola Politécnica do sobre estes desafios, desenhou caminhos e
da Universidade de São Paulo e do programa construiu propostas conjuntas, que passam pela
Soluções para Cidades da ABCP (Associação Bra- extensão do sistema cicloviário e suas conexões,
sileira de Cimento Portland), que nos ajudaram a melhorias das ciclovias existentes, ampliação dos
elaborar as primeiras diretrizes preliminares de bicicletários e instalação de paraciclos, implan-
drenagem e mitigação dos efeitos das chuvas. tação de uma ciclorrota turística e ambiental e
Dentre elas está a necessidade de integração também ações de mobilidade relacionadas com a
entre o planejamento das obras de saneamento, necessidade de geração de trabalho e renda para
drenagem e reurbanização e regularização fun- a comunidade, como a implantação do Programa
diária para evitar a sobreposição de soluções; a Delivery Justo como política pública e a inclusão

365
Guia de Urbanismo Social

do Projeto Bike Literária junto às bibliotecas das que busca transformações no percurso. Esse
escolas do Jardim Helena. Projetos pontuais planejamento busca, sobretudo, identificar a
também foram detalhados, como a criação de articulação necessária entre os diversos setores
uma rota segura, pontos de parada e acesso de da sociedade para que ações sejam viabilizadas.
passageiros para os automóveis de aplicativos, O Plano de Bairro, quando consolidado, será
que hoje não acessam o território com receio ferramenta de trabalho e de luta para todos
das enchentes ou da insegurança, e a criação aqueles que o construíram. Acreditamos que o
de estacionamentos comunitários para que os papel não é eterno, mas as ideias são, e a vontade
moradores possam estacionar com segurança de um povo também.
sem adentrar as ruas sujeitas a alagamentos.
Convidamos você a pensar junto conosco cada
Essas são algumas das necessidades dos terri- uma das ações que estão sendo propostas para
tórios que foram trabalhadas com a comunidade o Plano de Bairro do Jardim Pantanal!
para serem transformadas em propostas e po-
lítica públicas. Mensurar as ações, as respon-
sabilidades, os recursos e seus prazos, desde Para conhecer o Plano de Bairro do Jardim Pan-
o início, é fundamental para a consolidação tanal – Fase 1 na íntegra, acesse o link.
de um planejamento orgânico e não estático,

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Pacto pelas Cidades Justas. Diagnóstico participativo para elaboração de projetos


de integração de políticas setoriais visando ao desenvolvimento local — Produto 5:
Relatório final. Pacto pelas Cidades Justas: São Paulo, 2020.

▸ PMSP/Gestão Urbana. Urbanismo Social.

Ver ainda outros dois programas mais


recentes que sofrem alguma influência
do urbanismo social:

▸ Rede CUCA, Fortaleza;

▸ Vida Nova nas Grotas, Alagoas.

366
Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.8_ URBANIZAÇÃO DE FAVELAS:


PROGRAMA FAVELA-BAIRRO,
RIO DE JANEIRO

PROGRAMA PROGRAMA
RIO DE JANEIRO FAVELA-BAIRRO FAVELA-BAIRRO
(FASE I (FASE I

NÚMERO DE
763 70 88
FAVELAS

Tabela: relação entre o número de favelas no Rio de Janeiro e os impactados do


programa Favela-Bairro.
Fonte: IBGE (2010) e a publicação Bairro: dez anos depois.

Mapa: Rio de Janeiro e a área de intervenção do Programa Favela-Bairro (laranja).


Fonte: Google Earth, edição própria.

367
Guia de Urbanismo Social

CONTEXTO E HISTÓRICO DO PROGRAMA

O Programa Favela-Bairro surge dentro de um contexto de refor-


mulação da política habitacional pela prefeitura do Rio de Janeiro,
na década de 1990, com diretrizes elaboradas pelo novo Plano
Diretor (19921), período em que 16% da população da cidade morava
em favelas, aproximadamente 900 mil pessoas, segundo o censo
do IBGE de 19912. Com novo aparato institucional, por meio da
criação da Secretaria Municipal de Habitação (1994), as políticas
habitacionais se direcionaram e se ampliaram para programas de
urbanização de favelas e de regularização dos loteamentos.

Experiências anteriores, como o Projeto Mutirão (1984) e sua inter-


venção em 126 favelas para projetos de saneamento e acessibilidade
foram importantes para o apoio técnico ao Programa Favela-Bairro,
mas a partir deste ampliou-se a concepção de integração da favela
ao restante da cidade, considerando as demais infraestruturas
para um programa de urbanização integral, como equipamentos
públicos, espaços de lazer, iluminação pública, infraestrutura de
mobilidade, abastecimento de água e coleta de esgoto.

Considerado um caso de referência nacional e internacional, o


Programa Favela-Bairro (1993-2008) atendeu dezesseis favelas
utilizando recursos municipais até que, em 1997, passou a receber
investimentos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento)
por intermédio do Programa de Urbanização de Assentamentos
Populares do Rio de Janeiro (Proap-Rio) e ampliou sua atuação para
mais territórios (70 favelas na fase I, e 88 favelas na fase II), incluindo
também processos de regularização de loteamentos irregulares.

1 O Plano Diretor de 1992 atualizou o parcelamento e o uso do solo, com a delimi-


tação e inclusão na malha urbana das Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS).

2 SILVA, M. N.; CARDOSO, A. L.; DENALDI,, R. Urbanização de favelas no Brasil:


trajetórias de políticas municipais. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022.

368
Capítulo 15 : Casos Referenciais

DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA

Segundo o Proap-Rio3, o Programa Favela-Bairro objetiva “com-


plementar ou construir a estrutura urbana principal (saneamento e
democratização de acessos) e oferecer condições ambientais de leitura
da favela como bairro da cidade”, tendo como metas “a integração
social e a potencialização dos atributos internos das comunidades”. A
Prefeitura do Rio de Janeiro acompanhou os projetos do Favela-Bairro
por intermédio do IplanRio (empresa de tecnologia da informação e
comunicação), da Riourbe (Empresa Municipal de Urbanização) e da
Secretaria Municipal de Habitação, porém adotou a terceirização dos
serviços de projetos, execução das obras e seu acompanhamento
técnico. Como previsto, o Programa não construiu unidades habitacio-
nais, uma vez que seu foco era a realização de obras de infraestrutura
(abertura de vias de acesso), obras de saneamento, eliminação das
áreas de risco e implementação de equipamentos públicos (creches,
quadras esportivas e praças). Destacam-se cinco critérios principais
para seleção das áreas de intervenção4:

▸ dimensão da favela entre 500 e 2.500 domicílios;

▸ déficit da infraestrutura (porcentagem de domicílios com serviços


inadequados de água potável e esgotamento sanitário);

▸ carência socioeconômica (média dos fatores: porcentagem de


chefes de família com rendimento até um salário mínimo, porcen-
tagem de domicílios cujos chefes são analfabetos, porcentagem
de domicílios chefiados por mulheres e porcentagem de crianças
de 0 a 4 anos);

▸ graus de facilidade de urbanização (existência de infraestrutura


prévia e do custo e complexidade para implantá-la);

▸ dimensão estratégica (existência de programas complementares


já planejados).

3 Decreto nº 14.332, de 7 de novembro de 1995. Cria o Programa de Urbanização


de Assentamentos Populares do Rio de Janeiro PROAP-RIO, aprova o seu Regula-
mento Operacional e dá outras providências.

4 CARDOSO, Adauto Lucio. O Programa Favela-Bairro: uma avaliação. Rio de Janei-


ro: Universidade Federal do Rio de Janeiro e Instituto de Pesquisas e Planejamento
Regional, 2005.

369
Guia de Urbanismo Social

15.8.1_ FAVELA-BAIRRO — DE PROJETO INOVADOR A


MODELO DE POLÍTICA URBANA

Por que um projeto se torna emblemático


Poucos são os projetos que se tornam largamente conhecidos e
reproduzidos. O Favela-Bairro é um deles. As razões para esse
reconhecimento podem ser atribuídas ao seu pioneirismo, à me-
todologia adotada e aos seus importantes resultados.

Tudo começou em 1995, quando a Prefeitura do Rio de Janeiro e o


Banco Interamericano de Desenvolvimento iniciaram uma colaboração
com o propósito de ampliar a escala de ações destinadas a atender
as comunidades carentes da cidade5. Consistiam em intervenções
pontuais, utilizando parcialmente a mão de obra da própria comunida-
de, destinadas a melhorar as redes de água e os acessos às favelas.
Essas ações se tornaram possíveis graças à mudança na perspectiva
municipal de que as favelas e outras categorias de ocupação urbana
não poderiam mais ser ignoradas, já que aproximadamente 25%
dos domicílios na cidade eram informais: não constavam sequer
dos mapas da cidade, não eram atendidos pelos serviços públicos,
não tinham endereços postais. O reconhecimento dado pelo Plano
Diretor deu a largada para o planejamento de ações sistemáticas
voltadas ao atendimento daquelas comunidades, que passaram a
contar com a parceria com o BID, no que seria o primeiro de três
projetos denominados Favela-Bairro.

Seleção de favelas
Diante da dimensão do problema — de uma população de 5,5 milhões
na época, algo em torno de oitocentos mil se concentravam em
cerca de setecentas favelas, de vários tamanhos e características
geográficas distintas —, o primeiro desafio foi definir um critério
de priorização de tais conglomerados habitacionais, com base em
critérios técnicos. Para isso foi desenvolvido um sistema pontos que
consideraram três variáveis básicas: o déficit de infraestrutura, o
nível de pobreza (utilizando como proxi a percentagem de domicílios
liderados por mulheres) e uma variável estratégica que levava em

5 O Favela-Bairro foi implementado em três etapas, mediante financiamento do


BID e contrapartida municipal, totalizando US$ 900 milhões.

370
Capítulo 15 : Casos Referenciais

conta a proximidade entre as favelas, a fim de evitar contrastes


muito amplos entre comunidades vizinhas que fossem receber
o projeto. Assim, as favelas e os loteamentos irregulares6 foram
ranqueados numa lista de prioridades que prevaleceu durante
todas as fases do programa.

Planejamento prévio e participativo


Um dos aspectos mais importantes do programa foi o planeamento
das intervenções, realizado em consulta com cada comunidade.
Para cada favela foi contratado um estudo urbanístico, no qual eram
diagnosticadas características socioeconômicas das comunidades,
detalhados os déficits existentes de infraestrutura e as ameaças
ambientais, entre outros aspectos. A partir desses diagnósticos era
preparado um plano inicial de intervenção urbana. Esse processo
era efetuado em consulta e com intensa participação da comuni-
dade, especialmente na concepção das opções de localização de
equipamentos sociais, áreas de lazer e outros aspectos de desenho
dos projetos. É importante destacar que, além do plano para as
intervenções de infraestrutura, era elaborado também um para a
execução das ações sociais, visando coordenar as atividades de
vários setores da prefeitura envolvidos na sua execução. Ele era
denominado Plano de Ações Sociais Integradas (PASI).

A meta básica dos projetos era levar água potável e ligação de


esgoto a cada um dos domicílios da comunidade, além de acesso
seguro, seja por vias pavimentadas, seja por escadarias. Incluía
sistema de drenagem pluvial, iluminação pública dos logradouros,
arborização, proteção contra deslizamento de encostas e inundações
e implantação de praças, áreas de lazer e de recreação. Quanto a
equipamentos sociais, cada projeto incluía pelo menos uma creche
por comunidade e a ampliação ou reforma das escolas e postos de
saúde nas vizinhanças, quando necessário.

6 O programa atendeu também a loteamentos irregulares, aqueles que não tinham a


infraestrutura básica e outros requisitos necessários para obter autorização municipal.
Cerca de 20% dos recursos foram destinados à regularização desses loteamentos.
371
Guia de Urbanismo Social

Custo máximo por família


Quando se trabalha com comunidades de diferentes tamanhos e
necessidades de investimento, e ainda se contratam projetos urba-
nos com diferentes firmas de arquitetura/urbanismo, é necessário
estabelecer um critério de investimento básico. No Favela-Bairro foi
utilizado o do custo máximo de investimento por família. Para chegar
a esse parâmetro, foram preparados quatro projetos iniciais, em
comunidades com diferentes características físicas (encostas, áreas
planas etc.). Tais projetos incluíam as alternativas de investimento
de mínimo custo, ou seja, as mais eficientes para alcançar as metas
desejadas em termos de cobertura de infraestrutura e serviços
sociais. Com base nesses projetos, foi calculado o custo máximo
de investimento por família, ou seja, o volume de investimentos
que seria aplicado a cada favela de acordo com sua população,
estabelecendo um parâmetro de orientação para o desenho dos
projetos para todo o programa.

Execução integrada
Uma vez que os planos de intervenção urbanística eram completados
e validados pelas comunidades, a prefeitura efetuava a licitação
para as obras de infraestrutura e eventuais unidades habitacionais.
Um fator importante a destacar foi a orientação de que as obras
em cada favela fossem contratadas com um só empreiteiro, o que
assegurava tanto o planejamento integrado dessas ações como a
coordenação na execução das várias intervenções setoriais (redes
subterrâneas, pavimentação, iluminação pública etc.). As firmas
contratadas instalavam-se fisicamente e eram incentivadas a utilizar
a mão de obra da própria comunidade. Isso facilitava bastante a
sua operação e as relações com a população local.

Reassentamento
Um dos aspectos mais complexos dos projetos de melhoramento de
bairros se refere aos reassentamentos. As intervenções urbanas em
muitos casos requerem a abertura de vias de acesso para os serviços
públicos, como coleta de lixo, manutenção de drenagem ou mesmo
ambulâncias e bombeiros. Muitas vezes, também é necessário
realocar domicílios situados em áreas sujeitas a deslizamento de
terra e outras situações de perigo. Isso implica a necessidade de

372
Capítulo 15 : Casos Referenciais

reassentar famílias e, em certos casos, comércios construídos de


forma irregular, o que frequentemente representa uma dificuldade
para a execução dos projetos. O tratamento dessas questões se
faz com muita informação para as famílias, assegurando que elas
tenham uma alternativa residencial melhor e mais segura que a atual.

Assim, o programa não só construiu vários conjuntos habitacionais,


sempre priorizando a sua localização nas cercanias das favelas de
origem, como também ofereceu a alternativa da “compra assistida”,
que consiste na aquisição de imóveis dentro ou nas proximidades
das comunidades e sua entrega às famílias reassentadas.

Regularização urbanística e fundiária


Para completar o ciclo de regularização das comunidades são
necessários dois estágios. Primeiro, a regularização urbanística,
que significa a incorporação das áreas faveladas (e os loteamentos
irregulares, quando for o caso) aos cadastros da cidade. Isso signi-
fica o reconhecimento das áreas ocupadas como parte da cidade, a
delimitação dos lotes e a identificação e numeração dos domicílios de
cada comunidade. Esse processo veio a ser facilitado pela criação,
por lei federal, das Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS), o que
permitia regularizar áreas com dimensões de vias públicas e lotes
distintos das normas municipais existentes.

A segunda etapa é a regularização fundiária de cada lote, o que


implica a outorga de títulos de propriedade individuais aos seus
ocupantes (ou instrumentos equivalentes, como a concessão de
direito de uso). Tal processo é bastante mais complexo e envolve a
assistência jurídica aos beneficiários para a titulação, a participação
dos cartórios de registro de imóveis e intenso envolvimento dos
beneficiários. Requer a contratação de estudos cartográficos de
cada comunidade, identificação da cadeia de propriedade e reunião
de documentos que permitam identificar a ocupação dos imóveis
por mais de cinco anos, utilizando o instrumento do usucapião
urbano ou outras formas de aquisição de propriedade ou direito de
uso legal. Por tudo isso, os processos são lentos e, com frequência,
ultrapassam o período de execução dos programas.

373
Guia de Urbanismo Social

Avaliação
Várias avaliações foram efetuadas sobre o Favela-Bairro. Uma
das mais completas se baseou nos indicadores desenhados es-
pecificamente no início do programa e utilizou a metodologia
de diferenças-em-diferenças7. Esse método implica medir uma
série de indicadores nas comunidades que tiveram intervenções
do programa e em um grupo de controle, consistindo em favelas
com características similares que não tenham essas intervenções.
Esses indicadores são medidos antes e depois do programa, a
fim de comparar as diferenças entre os que integram cada grupo.
Nessa avaliação foram utilizados indicadores simples, ou seja, a
cobertura de cada um dos serviços e obras implementados pelo pro-
grama (água, esgoto, drenagem, acesso seguro etc.), e indicadores
compostos, em particular os de Integração Urbana (combinando o
acesso a serviços públicos, equipamentos urbanos e conectividade
à cidade), e o Índice de Desenvolvimento Social (acesso a serviços
de saúde, nível educacional, renda familiar etc.). Outro indicador
significativo foi o de valorização imobiliária, que representa um
proxi de benefícios ao refletir o conjunto de atributos externos
aos domicílios, que se traduzem na melhoria da qualidade do seu
entorno e, consequentemente, no aumento seu valor de mercado.

Os resultados dessa e de outras avaliações foram geralmente


positivos (os detalhes ultrapassam o escopo deste capítulo), con-
sagrando a percepção de que os programas, via de regra, trazem
grandes benefícios à qualidade de vida das famílias residentes
nas comunidades e conseguem integrá-las efetivamente ao seu
entorno urbano. As avaliações chamam a atenção, entretanto,
para a necessidade de o governo municipal efetuar a manutenção
adequada da infraestrutura implantada e dar continuidade aos
serviços e projetos sociais introduzidos pelos programas.

Conclusões
A metodologia aplicada ao Favela-Bairro foi sendo aperfeiçoada
e consolidada ao longo de vários projetos financiados pelo BID,

7 Para saber mais, ver DE DUREN, Nora; OSORIO, Rene. Bairro: 10 anos depois.
IABD, 2020.

374
Capítulo 15 : Casos Referenciais

sob o conceito de Programas Integrais de Melhoramento de Bairro


(PIMB). Esses programas foram adotados pela maioria dos países
da América Latina, onde o BID atua, e fora da região, seja por
governos nacionais (Índia, África do Sul etc.), seja por autoridades
locais. São reconhecidos pelo Programa das Nações Unidas para o
Habitat e por outras organizações multilaterais de financiamento
e cooperação como uma forma eficaz de atuação na obtenção de
objetivos urbanos e sociais.

Os PIMB, como o Favela-Bairro, têm demostrado que constituem


estratégias eficazes para resolver não só problemas de urbanização
informal como outros que atingem as comunidades carentes, afinal:

▸ São instrumentos de política urbana, por enfrentar a dualidade


nas condições de urbanização das diferentes partes das cidades,
buscando integrá-las de maneira equitativa; nesse sentido, são
também instrumentos de política habitacional, ao contribuir para a
redução dos déficits qualitativos (carência de infraestrutura básica
dos domicílios), os mais frequentes registrados nos países pobres;

▸ Seus impactos sobre a pobreza traduzem-se na atenção às


necessidades não satisfeitas das comunidades, em termos de
infraestrutura básica, o que melhora a qualidade de vida e valoriza
o patrimônio das famílias pobres residentes nesses territórios;

▸ Refletem também nas condições de salubridade e, consequen-


temente, nos indicadores de saúde da população residente nas
áreas beneficiadas;

▸ Têm impactos ambientais, ao promover a segurança dos bairros e


de seus habitantes mediante a proteção contra eventos climáticos
extremos como inundações e deslizamentos de terra.

Finalmente, cabe ressaltar que alguns dos problemas que afligem


as comunidades carentes não são diretamente solucionados pelos
programas de melhoramento de bairros. A questão da geração de
renda é um deles. Apesar de incluir iniciativas de geração de renda,
os PIMB não são desenhados como programas específicos dessa
natureza. As melhorias nos territórios beneficiados são modos de

375
Guia de Urbanismo Social

facilitar o acesso à educação e ao mercado de trabalho, mas não


asseguram tais resultados. O mesmo ocorre com as situações
de violência (ou sua percepção) nas comunidades, aspectos que,
embora amenizados pela melhoria no entorno urbano e maior
integração ao restante da cidade, requerem ações mais complexas
que as melhorias físicas implementadas pelos PIMB.

15.8.2_ O FAVELA-BAIRRO E A REINVENÇÃO DA


CIDADE

Sabemos que a cidade, como maior artefato da cultura, está em


permanente construção. Mas a cidade do século XXI, quando a
humanidade se tornou majoritariamente urbana, e, no caso brasi-
leiro, quando a quase totalidade da população vive nela, pede uma
nova compreensão sobre suas potencialidades e seus desafios.

O quadro urbano e o urbanismo


As exigências relativas à provisão de infraestruturas e serviços
públicos nas cidades cresceram exponencialmente; a cidade se
coloca no foco do enfrentamento da crise ambiental; tecnologias
de comunicação impactam os modos de interação social; o au-
mento da desigualdade de renda exclui parcelas crescentes da
população do acesso a bens e serviços urbanos; em contraponto,
a explicitação democrática dos direitos de cidadania conformam
uma nova referência a ser atendida. Enfim, há uma realidade que
perpassa países e regiões e que se coloca imperiosamente em face
do urbanismo contemporâneo.

A pandemia de covid-19 demonstrou a interdependência entre a


cidade e os elementos estruturadores do desenvolvimento global.
A ideia prevalecente de que a melhora da vida urbana só decorreria
do crescimento econômico é contestada pela evidência de que
tal aumento pode até mesmo significar mais exclusão e piora dos
indicadores urbanos. A cidade é coprotagonista no amplo campo
formador da vida social neste século, não é mera coadjuvante.
Tratá-la muito bem é condição para o bem-estar geral da sociedade
em seus amplos componentes — econômicos, políticos, culturais
e, indiscutivelmente, ambientais.

376
Capítulo 15 : Casos Referenciais

A cidade do século XXI não tem uma morfologia homogênea;


tampouco resulta de um só ideário urbanístico. Tem variadas
apresentações, formais e informais, legais e irregulares. Ainda
que nas cidades de países desenvolvidos os tempos históricos
tenham conformado modelos próprios de urbanização, mesmo aí
os tempos recentes constroem lugares diversos e em grande parte
em ambientes de segregação social, étnica e econômica. No nosso
caso, a morfologia da cidade brasileira é majoritariamente resultante
do esforço das famílias pobres, em processo de autoconstrução,
em loteamentos irregulares ou clandestinos de periferia, ou em
favelas distribuídas pela mancha ocupada pela cidade.

Assim, a cidade brasileira do século XXI ainda é lugar de alta


carência na oferta de infraestrutura e de serviços públicos. Nisso
se inclui a escassez de Estado em áreas populares, implicando
adicionalmente um fenômeno recente: a dominação territorial
de favelas, loteamentos e conjuntos residenciais populares pela
bandidagem armada, submetendo suas populações e inviabilizando
a vigência da Constituição nesses territórios.

Mas tais áreas populares, em especial as favelas, têm se demons-


trado também lugares de importante resistência político-cultural. E
têm se expressado por diversos modos como parcela fundamental
da vida pública nacional.

Contribuição do Favela-Bairro
É nesse contexto que se pode avaliar o significado e a contribuição
do Programa Favela-Bairro para a democratização da cidade do
Rio de Janeiro. E, por extensão, sua influência em outras cidades,
daqui e do exterior, sendo expressivo o caso da Colômbia, bem
como de outros países da América Latina.

Há muitos estudos e publicações sobre o Favela-Bairro (ver in-


dicações adiante). Contudo, devo registrar que o programa não
nasceu por geração espontânea, pois foi fruto de décadas de luta
de favelados e de parte da sociedade carioca contra a remoção de
favelas. Nasceu também pela revisão epistemológica do Urbanismo.
O reconhecimento das preexistências materiais e culturais das

377
Guia de Urbanismo Social

favelas cariocas foi a pedra fundadora do Programa e, de certo


modo, foi contribuição pioneira ao urbanismo contemporâneo. O
Favela-Bairro teve irmãos. Convém nomear a experiência do projeto
Guarapiranga, em São Paulo, sob condução da arquiteta Elisabete
França, na prefeitura do município (ver adiante).

O objetivo central do Programa Favela-Bairro era dotar as favelas


cariocas das condições de urbanização exigíveis pela cidade con-
temporânea. Essa tarefa se materializou com a implantação das
infraestruturas de água, esgoto, drenagem, iluminação pública,
clara definição dos espaços públicos com abertura e pavimenta-
ção de ruas, praças, caminhos e áreas esportivas, equipamentos
sociais de educação infantil, saúde familiar, geração de trabalho e
renda e garantia dos serviços públicos, inclusive de coleta de lixo
e de controle urbanístico, além de provisão de moradia para as
famílias atingidas com as obras necessárias à urbanização. Foram
significativas a concepção e a promoção dos Postos de Orientação
Urbanística e Social, compostos por técnicos da prefeitura, para
regular a ocupação do solo e oferecer assistência técnica para
melhora e reforma de moradias.

Um caminho inovador
Como as favelas se apresentam com grande variedade morfológica,
não seria desejável a implantação de um modelo preestabelecido;
mas, ao contrário, o caminho foi o da explicitação de uma estrutura
urbana que aflorasse do próprio assentamento e que pudesse ser
concebida em acordo com os próprios moradores. Essa estrutura
deveria buscar a interligação mais clara possível às estruturas
dos bairros do entorno, de modo a criar uma rede urbana inter-
dependente.

Implementação em ampla articulação


O Programa Favela-Bairro foi concebido em 1993, no âmbito da
formulação da Política Habitacional da Cidade do Rio de Janeiro.
Iniciou-se sua implementação logo a seguir, com a criação da
Secretaria de Habitação, da qual fui o titular desde 1993 até fins
do ano 2000. Nesse período, trabalhamos em 155 favelas, com 550
mil habitantes.

378
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Para tanto, foi indispensável o comprometimento de muitas pessoas


e instituições, da Prefeitura do Rio e da sociedade, não apenas
a carioca, bem como das equipes de servidores municipais, dos
escritórios de arquitetura e urbanismo contratados por concursos
públicos organizados pelo IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil),
das empresas construtoras e em especial das lideranças políticas
da cidade e comunitárias das favelas.

Foi fundamental o apoio de instituições de financiamento: o BID,


a partir de dezembro de 1995; a União Europeia, a partir de abril
de 1998; a Caixa Econômica Federal, a partir de julho de 1998.
Elas contribuíram com expertise e com recursos que englobaram
cerca de 50% do investimento, sendo a outra metade decorrente
do orçamento municipal, alcançando o total de R$ 1,5 bilhão nos
programas da Política Habitacional no período.

Também muito importante foi o reconhecimento de personalidades


mundiais, cuja presença significou apoio político necessário à
quebra de arestas no âmbito local. Lembro as visitas da rainha da
Dinamarca, do presidente do Brasil, do primeiro-ministro holandês,
do presidente dos Estados Unidos e do rei do futebol, entre tantos.
O presidente do BID comprometeu-se a levar o Programa aos países
latino-americanos — e o fez.

Desnecessário ressaltar que, em se tratando de administração


pública, o êxito do Favela-Bairro decorreu da determinação e do
apoio dos gestores municipais, tendo à frente os prefeitos Cesar
Maia (1993-1996) e Luiz Paulo Conde (1997-2000).

O poder do projeto
Neste Guia, que ressalta, com justiça, o valor do urbanismo, tenho
que destacar que o processo de projeto arquitetônico-urbanístico
foi condição essencial para o bom trabalho no Favela-Bairro.
Foram elaborados projetos completos e abrangentes de cada
favela, atitude pioneira, com ampla participação das lideranças
locais e dos moradores. Afirmamos, com convicção, que o desenho
arquitetônico-urbanístico tem papel central para a articulação
entre os diversos e eventualmente conflitantes interesses, seja

379
Guia de Urbanismo Social

na comunidade, seja no governo, e que tal articulação potencializa


os esforços de todos.

São exemplos expressivos o Favela-Bairro Parque Royal, na Ilha do


Governador; o Favela-Bairro Fernão Cardim, no bairro de Pilares; o
Favela-Bairro Burity-Congonhas, em Madureira; entre muitos outros.

▸ O projeto do Parque Royal, de autoria do escritório Archi5,


articulou a favela e seu entorno, deu condições para implantar
a estrada Canárias-Tubiacanga, de interesse para toda a Ilha do
Governador e que estava projetada havia décadas sem sucesso;
definiu os limites de ocupação sobre a Baía de Guanabara, com a
eliminação das palafitas e a construção de moradias assistidas;
abriu vias internas à favela, permitindo o acesso público e a criação
e formalização de inúmeras atividades comerciais e de serviços,
um case de sucesso estudado por encomenda do BID; entre os
demais requisitos comuns ao Programa;

▸ O projeto de Fernão Cardim, de PAA-Jáuregui / H. Casé, permitiu


equacionar um grave problema de saneamento e de enchentes da
região, com a construção da canalização do rio que atravessava a
favela; inverteu o acesso à favela, antes nos fundos da área, depois
voltada para a avenida principal do bairro e ruas adjacentes. Ao
visitar Fernão Cardim, constatando a plena integração urbanística
decorrente do projeto, o escritor Millôr Fernandes perguntou: onde
é o limite entre a favela e o bairro?

▸ O projeto Burity-Congonhas/Complexo do Sapê, também do


escritório Archi5, caracterizou-se por ampla articulação com as
favelas lindeiras e com o bairro de Madureira. Em especial, permitiu
a preservação e a ampliação das áreas florestadas a montante,
criando-se um parque de interesse para a região.

Cidade e cidadania
A construção de cidades com maior equidade depende da uni-
versalização das infraestruturas e serviços públicos a partir da
realidade urbana que está posta. A urbanização das favelas é um
dos caminhos, testado, aprovado, e que, infelizmente, sofre pela

380
Capítulo 15 : Casos Referenciais

descontinuidade das políticas públicas. Mas, no nosso caso, é


fator determinante para a inclusão social de milhões de brasileiros
e para a garantia dos direitos de plena cidadania previstos em
nossa Constituição.

Assim, dotar os assentamentos populares dos requisitos sociour-


bano-ambientais exigidos pela vida contemporânea é instrumento
poderoso, e mesmo indispensável, para o próprio desenvolvimento
do país. Ademais, está plenamente demonstrada a viabilidade
técnica, política e econômica da urbanização, como se viu com o
Programa Favela-Bairro.

Reconhecer as preexistências ambientais e culturais, expressas


nas diversas formas de cidade, é compreender a cidade con-
temporânea em sua ampla complexidade e permitir que suas
potencialidades sejam exercidas. Em benefício da garantia da
interação social, da equidade urbana e da defesa do Planeta,
esse movimento pode representar uma reinvenção da cidade.
Felizmente, como sabemos, para isso o Urbanismo contemporâneo
é bom parceiro: sem ser dogmático nem autossuficiente, ele tem
a dimensão da participação cidadã e institucional como base para
o seu melhor desempenho.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Capítulo 2.

▸ CARDOSO, A. L. O Programa Favela-Bairro: uma avaliação. Rio de Janeiro:


Universidade Federal do Rio de Janeiro e Instituto de Pesquisas e Planejamento
Regional, 2005.

▸ CONDE, Luiz Paulo; MAGALHÃES, Sérgio. Favela-Bairro: uma outra história do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Rio Books, 2004.

▸ BRAKARZ, J.; ENGEL, W. Favela-Bairro: scaled up urban development in Brazil.


IADB, 2004.

▸ ROJAS, Edward (ed.). Construindo cidades: requalificação de bairros e qualidade


de vida urbana. IADB, 2010.

▸ JAITMAN, Laura; BRAKARZ, Jose. Evaluation of slum upgrading programs:


literature review and methodological approaches. IADB, 2013.

381
Guia de Urbanismo Social

15.9_
PROGRAMA MANANCIAIS,
SÃO PAULO

ÁREA DE
BACIA
SÃO PAULO PROTEÇÃO DOS BACIA BILLING
GUARAPIRANGA
MANANCIAIS

POPULAÇÃO
12,3 milhões 2,3 milhões 1,16 milhões 1,14 milhões
(HAB)

Fonte: Programa Mananciais, PMSP, 2022

DEMARCAÇÃO FAVELAS

Mapa: São Paulo e as bacias Guarapiranga e Billings (em branco), com as demarcações de favelas (em vermelho).
Fonte: Google Earth, edição própria.

382
Capítulo 15 : Casos Referenciais

A urbanização de favelas passou a integrar as agendas públicas dos


governos municipais a partir dos anos 1980, com ações relevantes
para enfrentar a cristalina realidade brasileira — um país cada vez
mais urbano e com níveis crescentes de precariedade. Programas
como o citado Favela-Bairro, no Rio de Janeiro, Guarapiranga, em
São Paulo, bem como o de Alagados, em Salvador, ganharam natural
destaque, pois propunham uma nova abordagem para a questão
das favelas: sua integração urbanística como suporte básico para
o desenvolvimento social e para as condições de habitabilidade
dos bairros precários. Todos eles tinham como preocupação
central o respeito à cidade construída, suas preexistências, e
aos investimentos realizados pelos mais pobres, mesmo que de
maneira não regular e formal.

Os projetos foram elaborados pelas equipes técnicas como um


constante processo de mediações e readequações, em função das
características de cada assentamento e das reivindicações dos
moradores. A diversidade cultural das comunidades, aliada aos
processos de participação democrática na definição dos rumos
dos planos urbanísticos, contribuíram para garantir a diversidade
das intervenções.

No conjunto dessas intervenções, destacava-se uma diretriz compar-


tilhada à época: a centralidade da qualificação dos espaços públicos,
de modo a assegurar o respeito às preexistências ambientais e
culturais e a diluição das fronteiras urbanísticas simbólicas entre a
área antes marginal e o bairro formal de seu vizinho. Para os mora-
dores, o acesso às qualidades e benefícios reconhecidos, até então
na cidade formal, elevava-os a uma nova condição de cidadania.

Projetos que apresentaram bons resultados na melhoria da quali-


dade de vida dos moradores de favelas, premiados por organismos
nacionais e internacionais, foram sendo abandonados à medida que
um novo programa habitacional se tornava hegemônico no país a
partir da década de 2010 — o Minha Casa Minha Vida. Centrado
na produção habitacional em grande escala, permitindo, em seu
início, ações integradas de urbanização e construção de novas
unidades, o MCMV rapidamente se concentrou apenas na produção

383
Guia de Urbanismo Social

de novos conjuntos habitacionais, não conectados às necessidades


da precariedade urbana brasileira.

Mais recentemente, e também como uma das consequências da


pandemia de covid-19, descortinou-se, para o conjunto da sociedade
brasileira, a triste realidade urbana das favelas: a inexistência
ou precariedade das redes de saneamento básico (quase cem
milhões de moradias), a dificuldade de acesso a água potável (35
milhões de residências) e o adensamento nas habitações, que não
permitiram o tão necessário distanciamento social na fase mais
aguda da doença. Essa precariedade urbana foi acompanhada por
uma enorme crise econômica, que teve como resultado o aumento
dos índices de pobreza no país.

Como resultado, o debate sobre os programas de urbanização


de favelas volta à pauta, agora com formatos que resultam de
um conjunto de revisões e avaliações dos projetos anteriores.
O estudo das experiências clássicas de urbanização de favelas,
como o Favela-Bairro e o Programa Mananciais, de São Paulo (nas
primeiras fases), reforçou a ideia de possibilidades e limites da ação
pública. Muitas são as lições aprendidas com os acertos e erros
dos projetos elencados, que contribuem para o aprimoramento dos
programas atuais e para o aperfeiçoamento das políticas públicas
relacionadas ao tema da habitação.

Diante dos desafios que se apresentam para as cidades no século


XXI, em especial para aqueles que vão trabalhar em programas de
urbanização, listamos aqui algumas recomendações:

▸ Incorporar a questão ambiental como componente central das


intervenções, reconhecendo que o esgotamento dos recursos natu-
rais traz consequências catastróficas para quem vive nas cidades;

▸ Implementar ações multissetoriais baseadas na integração


institucional como uma nova cultura que se impõe às políticas
públicas, de forma a permitir agilidade, complementaridade e
otimização de recursos técnicos e financeiros;

384
Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ Adotar um modelo de gestão transparente, no qual todos os


setores da sociedade tenham acesso à informação a partir da
aceitação dos mais inovadores instrumentos disponíveis, bem
como da implantação de sistemas de monitoramento e avaliação
de resultados;

▸ Implementar um plano de pós-ocupação para garantir a ma-


nutenção das redes, serviços públicos, áreas verdes e parques;

▸ Como etapa final, implementar um plano de regularização


fundiária que garanta o acesso legal à moradia, coroando o longo
processo da urbanização.

Todas essas recomendações têm como pressuposto a participação


dos moradores, de suas lideranças e da sociedade civil, em todas
as etapas do projeto.

Com foco nas lições aprendidas, a Prefeitura de São Paulo retomou


o Programa Mananciais, a partir de 2020, visando concluir contratos
assinados em 2011. Nessa etapa, o Programa Mananciais está implan-
tando obras de urbanização que beneficiaram cerca de 28 mil famílias,
bem como a construção de oito mil novas unidades habitacionais para o
reassentamento dos moradores que se encontram em situação de risco
e em frentes de obras. Também está sendo implantado um conjunto
de parques e espaços públicos ao longo dos córregos que chegam às
represas, bem como ao longo das duas represas da região, de modo a
transformar o território antes precário em áreas de lazer. Respondendo
às demandas da comunidade, uma série de equipamentos públicos
faz parte do programa da urbanização, como creches, unidades de
saúde e unidades de capacitação para o emprego, entre outros.

Parte importante do orçamento municipal vem sendo utilizada para


desenvolver essas intervenções, que recebem aportes dos fundos
municipais Fundurb e FMSAI1, bem como recursos das parcerias com
o governo do estado, por meio da SABESP e da CDHU2.

1 FUNDURB: Fundo de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo; FM-


SAI: Fundo Municipal de Saneamento Ambiental e Infraestrutura instituído junto à
SEHAB (Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo).

2 SABESP: Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo; CDHU:


Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo.

385
Guia de Urbanismo Social

A urbanização de favelas é desenvolvida em várias etapas, que se


integram em diversos momentos. De maneira simplificada, elas
podem ser anunciadas assim:

▸ Levantamentos da área, adotando-se aqui o território da bacia


hidrográfica;

▸ Elaboração do plano urbanístico;

▸ Elaboração de projetos básicos e executivos, compreendendo


todas as disciplinas complementares;

▸ Implantação das obras;

▸ Elaboração do plano de regularização fundiária.

Em cada uma dessas etapas, o trabalho social participa na or-


ganização das comunidades para que sejam protagonistas nas
decisões de projetos.

Na ilustração a seguir há a sistematização das várias etapas de


trabalho que conformam um projeto de urbanização de favelas e
que resumem os esforços em curso das equipes técnicas envolvidas
no desenvolvimento do Programa Mananciais:

386
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Fonte: Programa Mananciais, PMSP, 2022

387
Guia de Urbanismo Social

PROJETO PARQUE CANTINHO DO CÉU

O projeto Parque Cantinho do Céu faz parte do Programa Manan-


ciais da Secretaria Municipal da Habitação da capital paulista,
que teve início na década de 1990, visando ações de urbanização
e regularização fundiária de assentamentos precários (favelas e
loteamentos irregulares), localizados na bacia hidrográfica das
represas Guarapiranga e Billings.

O Cantinho do Céu está localizado às margens da Billings, no extremo


sul do município de São Paulo, no distrito de Grajaú, onde existe
uma comunidade de aproximadamente dez mil famílias (trinta mil
moradores), contexto no qual se encontram habitações e ocupações
irregulares e uma enorme carência de espaços públicos e de infraes-
trutura básica, compreendendo uma área de cerca de 1.500.000 m².

Considerado um projeto emblemático pela extensão de sua inter-


venção e pela estruturação de um planejamento social efetivo, o
desenvolvimento do programa envolveu a população, principalmente
devido à condição de risco de algumas famílias, que acabaram sendo
removidas. Desde sua concepção, o projeto do parque pretendeu
realizar o menor número possível de remoções, concentrando tais
ações apenas em áreas comprometidas ou em Áreas de Preservação
Permanente (APP).

Iniciado em 2008, parte do programa foi concluída no ano de 2012,


e ainda hoje existem etapas de sua expansão em construção, en-
globando infraestruturas como pavimentação, drenagem, parque
linear (com 7 km de extensão) e equipamentos de esporte e lazer
(quadras poliesportivas, playground, anfiteatros e academias ao
ar livre, pistas de skate, píer etc.). Para sua implementação, foram
consideradas sete etapas principais:

▸ Delimitação das áreas de intervenção prioritárias;

▸ Diretrizes para urbanização: manutenção da população;

▸ Desenvolvimento do Projeto Básico: estudo e diagnóstico da


área, propostas de soluções e diretrizes na elaboração de projetos

388
Capítulo 15 : Casos Referenciais

e obras e programa de adequação urbanística, habitacional e


ambiental do território;

▸ Planejamento social;

▸ Lançamento de edital para contratação das obras;

▸ Contratação do projeto executivo pela incorporadora;

▸ Desenvolvimento do projeto e início de obras.

Após sua inauguração, a iniciativa se tornou oficialmente um parque


da cidade de São Paulo. Assim, sua administração, manutenção e
limpeza são realizadas pelo Departamento de Parques e Áreas Verdes
(Depave), da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA).

O desenvolvimento do projeto com a participação da comunidade


local mostrou-se essencial para o reconhecimento dos moradores
sobre seu próprio território. De acordo com o escritório de arquitetura
responsável — Boldarini Arquitetos Associados —, a reaproximação
das pessoas às margens da represa e o reconhecimento daquela
paisagem como familiar foram muito importantes para sua apro-
priação como espaço de lazer, onde antes predominava o abandono.

Como paradigma dos processos de reurbanização de favelas


anteriores à década de 1990, marcados por intensas remoções de
famílias, o Cantinho do Céu se insere em uma política pública de
recuperação urbana de territórios em situação de vulnerabilidade
por meio de melhorias urbanas, infraestrutura básica e equipamen-
tos públicos, reinserindo áreas marginalizados no direito à cidade.

Por suas diversas inovações, com destaque aos espaços públicos


de alta qualidade impontados às margens da represa, o projeto
ganhou o prêmio Future Cities: Planning for the 90 per cent, da
Bienal de Arquitetura de Veneza em 2012.

O desafio que se instala hoje é em relação a manutenção e a ad-


ministração do parque e a sustentação da qualidade do ambiente
construído a longo prazo. Segundo a opinião dos idealizadores
do projeto, publicada na revista Vitruvius, a presença do poder

389
Guia de Urbanismo Social

público na região é condição fundamental para a manutenção da


integração do bairro à cidade propiciada pelo projeto. Portanto,
é necessária uma permanente articulação entre todos os atores
envolvidos na transformação do território, tal como se prevê em
projetos de urbanismo social, com suas estratégias de atuação
integral e participativa, desde o planejamento e o diagnóstico até
os processos de gestão, manutenção e monitoramento.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Boldarini Arquitetos Associados. Cantinho do Céu.

▸ ALVIM, Angélica. Direito à cidade e ao ambiente na metrópole contemporânea: o


projeto “Cantinho do Céu” na represa Billings. São Paulo: Arquitextos, 2011.

▸ Urbanização do Complexo Cantinho do Céu — Boldarini Arquitetura e


Urbanismo.

390
Capítulo 15 : Casos Referenciais

O projeto premiado Cantinho do Céu, parte do Programa Mananciais, desenvolvido pela Sehab da Prefeitura de
São Paulo, dá oportunidade para a comunidade local vivenciar as margens da represa, dentre vários espaços pú-
blicos de alta qualidade promovidos neste território na periferia sul da cidade.
Fotos: Heloísa Takahama.

391
Guia de Urbanismo Social

PARQUE NOVO SANTO AMARO V:


HABITAÇÃO-ESTRUTURA

O projeto Parque Novo Santo Amaro V representa um enfrentamento


da questão das ocupações irregulares na área de mananciais da
cidade de São Paulo com uma proposta que articula diferentes cotas
(alturas), valoriza e cria centralidades e elabora tipologias habitacio-
nais que contribuam para a estruturação de elementos da cidade,
alterando as ocupações inadequadas de fundos de vale e encostas.

Uma das questões iniciais quando do enfrentamento desse trecho


da enorme área de proteção aos mananciais da cidade de São Paulo
ocupada indevidamente de que algumas propostas estruturais
pudessem ser referência para uma ação no território contínuo
daquela região (Subprefeitura do M’Boi-Mirim).

A ocupação irregular espraiou-se e acabou caracterizando, ainda


que sob o viés da pressão econômica, o que Milton Santos1 chamou
de território das “horizontalidades”, dos “lugares contíguos reunidos
por uma continuidade territorial” (o conceito de horizontalidade
está ligado à ideia de resistência. As ocupações não deixam de
ser uma possibilidade nesse sentido).

Justamente por conta de a construção desse território dar-se assim,


como uma “revanche” da população pobre em face dos interesses
econômicos hegemônicos2, é que uma hipótese de estruturação,
mais abrangente e que poderia vir a ser sistêmica deveria ser
perseguida (sempre resguardando o tema da proteção ambiental).

No projeto para o Parque Novo Santo Amaro V, do mesmo modo


como se esboçou no Boulevard da Paz3, levantou-se uma hipótese
nessa direção: edifícios habitacionais seriam pensados como es-
truturas que articulam topografia e vale (as linhas d’água) às vias
e poderiam acontecer ao longo de toda a área a ser urbanizada.

1 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.

2 Idem.

3 Boulevard da Paz é outro projeto do Programa Mananciais, também desenvolvi-


do por Vigliecca & Associados.
392
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Liberariam faixas de proteção ambiental e funcionariam como


suportes às atividades comerciais e de serviços que passariam a
abrigar, além de serem articulações para as conexões de cotas, as
quais surgiriam de suas “vias elevadas”. Uma estrutura-embrião,
que poderia ser entendida como gênese/matriz da ocupação de
um território especial.

O Parque Novo Santo Amaro V constitui um dos desafios mais


emergentes: a ocupação dos mananciais já está reconhecidamente
dada, muito por conta da omissão e permissividade do Estado. Só
na região da Guarapiranga vivem mais de 1 milhão de pessoas.
A reestruturação, que criou condições reais de habitabilidade e
recuperação ambiental, por meio de espaços públicos, acabou se
configurando como um dos desafios no sentido de se converter
em cidade aquela grande mancha espraiada de habitações e ruas.

Sublinhe-se que a área do Parque Novo Santo Amaro tem topografia


acidentada, fundos de vale ocupados, casas autoconstruídas — em
muitos casos em situação de risco —, raros equipamentos públicos
e ligações viárias descontínuas. É de propriedade municipal e foi
ocupada a partir da década de 1980.

As edificações habitacionais, de vários pavimentos, apresentam


uma lógica clara de implantação: confrontam as ruas, ocupam as
encostas em desnível — adaptando-se a elas — e apresentam uma
elevação posterior ao fundo de vale. Essas elevações posteriores
são muito mais precárias do ponto de vista construtivo que as
frontais. As que dão frente para as ruas têm algum tipo de cuidado
construtivo, além de incluírem atividades de comércio e serviço,
conformando uma urbanidade possível àquelas condições.

À medida que vamos nos aproximando das cotas mais baixas, mais
provisórias são as construções e piores as condições sanitárias (o
córrego é um canal de esgoto a céu aberto).

As conexões entre as cotas acontecem tendo-se que vencer todo


o desnível. Para se passar de uma das bordas da área à outra, com
cotas semelhantes, só existia a alternativa de descer até o fundo de

393
Guia de Urbanismo Social

vale e novamente subir a encosta. Dado que alguns dos elementos


urbanos catalisadores, como a escola, por exemplo, situam-se em
uma dessas cotas altas, o trajeto das crianças que moram na borda
oposta acabava se dando de maneira indevida, por entre a área
mais precária e com desafios topográficos significativos.

A referida escola, com sua quadra, um equipamento do Estado,


representava uma das centralidades urbanas existentes por ali. A
outra, um campo de futebol, estava no outro extremo, se considerado
o percurso longitudinal ao longo da linha d’água.

A partir dessas constatações e observações construiu-se uma


formulação de projeto que articulava preexistências — habitacionais,
de equipamentos e de percursos — às novas estruturas propostas.

Para conformação de um partido, considerou-se aquilo que já


apresentava uma interação clara entre a ocupação informal e os
elementos de uma reconhecida urbanidade e introduziram-se
escalas, arquiteturas e espaços públicos que buscaram enfrentar
a ausência de cidade e o território ambientalmente frágil.

Desse modo, muito das casas construídas nas bordas do perímetro


da área, voltadas para as ruas, foram mantidas e as das encostas e
da várzea é que seriam substituídas. Aqui, não parecia mais estar
colocada a hipótese da tipologia do edifício convencional (caixa
de escada, circulação horizontal, unidades habitacionais) como
suficiente ao enfrentamento de área conformada de maneira tão
distante da experiência urbana formal.

Parecia ser necessário que se pensasse não mais exatamente


em uma tipologia convencional, mas em um edifício que pudesse
funcionar como uma “estrutura urbana”. Ou seja, que incluísse no
seu programa, em sua espacialidade, itens que contribuíssem para a
dinâmica da rua, para as transposições de cota, que abrigassem os
equipamentos coletivos e públicos, que configurassem paisagem,
que permitissem unidades habitacionais diversas para os diferentes
arranjos familiares, entre outros aspectos.

394
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Dessa maneira foi projetada a lâmina habitacional: “serpenteando”


a área, ela se dispõe junto às cotas altas, abriga o comércio, onde
toca o térreo, cria frontalidade para o campo de futebol (reposi-
cionado e acrescido de equipamentos complementares), ampara a
área de fundo de vale e funciona como suporte das transposições
transversais, que se dão a partir dos pórticos de acesso ao parque
de fundo de vale. Ou seja, as edificações laminares propostas,
alinhadas às ruas, viabilizam diferentes acessos, dada a topografia,
e incluem uma “via elevada”, resultado, em alguns momentos, da
concordância entre o edifício e uma cota real do terreno. Por isso,
são também pontos de apoio às transposições.

Uma linha de espelhos d’água e uma pista de skate recompuseram


a área de fundo de vale e de nascentes, dada a impossibilidade de
manter o córrego a céu aberto. Alterou-se, dessa forma, a carac-
terística de fundos e de desvalorização da paisagem do córrego.

O grande edifício, que se desdobra pela área tangenciando de modo


diferente as estruturas urbanas preexistentes, coloca a discussão
da escala. Habitação como cotidianidade e habitação como exceção,
monumento. Se considerarmos que a maior porcentagem do tecido
das cidades corresponde à habitação, considerá-la como uma po-
tente estrutura na constituição de lugares de precária urbanidade
parece um recurso desejável. Essa foi a hipótese colocada pelo
projeto para o Parque Novo Santo Amaro.

395
Guia de Urbanismo Social

Foto: Leonardo Finotti.

Cabe-nos, agora, atenção em face dos desdobramentos dessa proposta quando considerado
o tempo histórico, que atribui densidade e sentido à experiência humana nos ambientes
construídos das cidades1.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ RUBANO, Lizete M. (org.). O terceiro território: habitação coletiva e cidade. São


Paulo: Vigliecca & Associados, 2015.

▸ Vigliecca & Associados. Parque Novo Santo Amaro.

▸ Programa Mananciais.

▸ FRANÇA, Elisabete. Favelas em São Paulo (1980-2008): das propostas de


desfavelamento aos projetos de urbanização: a experiência do programa
Guarapiranga. Tese (Doutorado) — FAU-Mackenzie, São Paulo, 2009.

1 RUBANO, Lizete M. (org.). O terceiro território: habitação coletiva e cidade. São Paulo: Vigliecca & Associados, 2015.
396
Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.10_ ILHA DE DEUS,


RECIFE

RECIFE ILHA DE DEUS

ÁREA (KM2) 218 0,052

POPULAÇÃO 1.200
1.537.704
(HAB) (estimada em 2007)

Fonte: Diagonal.

Mapa: Recife e Ilha de Deus (laranja).


Fonte: Google Earth, edição própria.
397
Guia de Urbanismo Social

O exemplo da intervenção Ilha de Deus abrange a maior parte das


dimensões trabalhadas em urbanismo social. Envolveu a participa-
ção da comunidade de modo deliberativo em todos os processos
do trabalho, desde o diagnóstico, definição e acompanhamento
do projeto urbanístico até as obras, a articulação dos programas
sociais e as estratégias de desenvolvimento local.

HISTÓRIA

A história dos aterros dos mangues de Recife remonta à época


do domínio holandês, no século XVII. A ocupação holandesa foi
responsável por várias transformações na então vila, inclusive
urbanísticas, dentre as quais a construção de diques, drenagens,
canais e obras sanitárias. Após a saída dos invasores, o crescimento
de Recife continuou sobre o ambiente do manguezal, sendo o rio
Capibaribe um importante sistema de mobilidade fluvial. Esse
modelo de expansão pela mobilidade fluvial aumentou a demanda
por terras, intensificando os aterros dos mangues.

No início do século XXI, a ocupação das áreas alagadas pela popu-


lação menos favorecida já era visível na paisagem da cidade e, até
mesmo com a política de erradicação dos mocambos, os manguezais
continuavam sendo ocupados. Os moradores expulsos buscavam
reconstruir suas casas em outros manguezais, mais distantes da
vista da política sanitarista. Então, já a partir da década de 1940, o
manguezal do Pina passou a sofrer grande especulação imobiliária
e parte da população de pescadores iniciou a ocupação de suas
margens, incluindo a Ilha de Deus.

Posteriormente, nos anos 1980, o Movimento Popular do Recife e


a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife
apresentaram um projeto de lei denominado Plano de Regularização
das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis), previstas na Lei
de Uso e Ocupação do Solo no Recife (Luos) — Lei nº 14.511/1983.
As organizações conseguiram que a gestão municipal de Recife
inaugurasse o modelo de efetivação e proteção das referidas áreas,
denominadas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis). Assim,
em 1995, a Ilha de Deus passou a fazer parte do Plano Global de

398
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Infraestrutura da Cidade do Recife, transformando-se na Zeis Ilha


de Deus. Em 2001, as Zonas Especiais de Interesse Social foram
incorporadas ao Estatuto da Cidade, tornando-se um importante
instrumento urbanístico para os municípios brasileiros.

PROJETO

Assim como as demais áreas pobres e ribeirinhas da cidade de


Recife, a comunidade da Ilha de Deus surgiu como uma ocupação
espontânea em terras alheias, sem traçado urbano planejado,
infraestrutura básica ou serviços instalados, com a construção
de moradias, em sua maioria, em forma de palafitas localizadas
sobre as águas.

Em janeiro de 2007, o governo do estado de Pernambuco anunciou


as obras de urbanização para o fornecimento de infraestrutura
destinado à comunidade já consolidada da Ilha de Deus, apre-
sentando um projeto piloto para o desenvolvimento da área de
intervenção. O programa, Projeto de urbanização na comunidade
de Ilha de Deus, foi iniciado no mesmo ano, a partir da realização
de um diagnóstico do território, e executado em parceria com a
Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Federal
de Pernambuco (Fade) e pela empresa de consultoria Diagonal, por
meio de contrato com a Secretaria de Planejamento e Gestão do
Estado de Pernambuco (Seplag-PE). Em seguida, entre os anos de
2009 e 2016, a Diagonal assumiu, por meio de licitação, o Processo
de Urbanização Integrado e Participativo da Ilha de Deus e também
o gerenciamento do Plano de Ação Integrado de Investimentos da
Zeis Ilha de Deus.

Atualmente, a Ilha de Deus se consolidou como destino de turismo


criativo e de base comunitária da região metropolitana de Recife,
sendo o trabalho de urbanização lá efetuado um exemplo bem-su-
cedido do que pode ser feito por meio da política pública.

399
Guia de Urbanismo Social

400
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Vistas aéreas da Ilha de Deus antes (a esquerda) e depois (a direita) da intervenção.


Fotos: Diagonal

401
Guia de Urbanismo Social

METODOLOGIA

Localização da Ilha de Deus dentro do território do Recife e do Manguezal do Pina e


o tipo de material das habitações antes da intervenção.
Imagens: JUCÁ, Carolina de Queiroga; DOURADO, Vilma. Ilha de Deus: uma história
de resistência e transformação. São Paulo: Diagonal, 2021.

DIAGNÓSTICO

Realizado por uma equipe de profissionais especializados, o trabalho


foi documentado em sete publicações:

▸ Volume 1: Diagnóstico socioeconômico: apresentou análise da


pesquisa quantitativa censitária e da qualitativa, com um recorte
do perfil socioeconômico e sócio-organizativo da população;

▸ Volume 2: Diagnóstico sócio-organizativo;

▸ Volume 3: Diagnóstico urbanístico-ambiental: trouxe as análises


da oficina “A Voz Comunitária”, realizada com a população local,
focando as características de ocupação e condições de habitabi-
lidade e a relação das pessoas com o meio em que vivem;

402
Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ Volume 4: Mapas temáticos: apresentou quadros georreferen-


ciados resultantes da pesquisa socioeconômica aplicada na Ilha
e levantamentos de campo realizado pela equipe urbanístico-am-
biental e social;

▸ Volume 5: Diagnóstico integrado: forneceu uma análise em


conjunto dos problemas e potencialidades que foram apresentados
nos relatórios anteriores, trazendo também a reunião de diretrizes
norteadoras das ações de intervenção;

▸ Volume 6: Plano de ação integrada de investimentos para a Zeis


Ilha de Deus;

▸ Volume 7: Etapa de escolha da proposta de intervenção urba-


nístico-ambiental: registro da opção pela alternativa que melhor
atendeu as expectativas da maioria das famílias moradoras.

GERENCIAMENTO

O trabalho contemplou os seguintes eixos:

▸ Fiscalização e acompanhamento do projeto executivo e das obras;

▸ Implantação, execução e monitoramento das ações sociais volta-


das para famílias durante a fase de obras e ações sociais focadas
no processo de pós-ocupação e pós-urbanização da intervenção
na Ilha de Deus;

▸ Acompanhamento e monitoramento das ações do Projeto Ambiental;

▸ Implantação, execução e monitoramento das ações focadas em


arranjos produtivos locais e de economia solidária.

As fases foram interpostas e as atividades de engenharia e das


ações socioambientais, sincronizadas. Isso permitia, em determinado
momento do projeto, encontrar famílias em todos os estágios da
intervenção. Vale enfatizar a complexidade e o desafio do projeto,
pois a execução das diversas frentes de obras foi realizada com
as famílias residindo na área.

403
Guia de Urbanismo Social

ORGANIZAÇÃO

O projeto de gerenciamento contemplou três coordenações: a


Coordenação-Geral, a Coordenação Setorial de Obras e Infraes-
trutura e a Coordenação Setorial Social. Sublinhe-se que essas
coordenações trabalhavam de forma matricial, garantindo a gestão
integrada do Projeto.

A Coordenação-Geral ficou responsável pela interlocução com a


Seplag-PE, além de abranger todas as atividades do escopo do
gerenciamento, com o objetivo de integrar e garantir a compatibi-
lidade das etapas do projeto. A Coordenação Setorial de Obras e
Infraestrutura teve a seu encargo o planejamento, acompanhamento
e apoio técnico na execução de todas as atividades de arquitetura
e engenharia realizadas na área. Por fim, a Coordenação Setorial
Social ficou responsável pela relação com a comunidade e seu
entorno, pela interlocução com as diversas secretarias de governo
relacionadas às políticas públicas sociais e pela interlocução com
as entidades sociais locais.

PLANEJAMENTO

A primeira atividade realizada foi a elaboração do Plano de Trabalho


Ajustado pela Equipe de Coordenação. Nesse sentido, foi elaborado
o Plano de Execução, focado no planejamento das ações a serem
desenvolvidas. Foi elaborado também o Plano de Monitoramento e
o Sistema de Informações do Empreendimento, entendido como o
produto da análise das informações existentes, garantindo o controle
da qualidade dos produtos realizado em tempo real e evitando a
propagação de erros em etapas subsequentes.

Além disso, foi elaborado o Plano de Acompanhamento e Orientação


da População, no qual esteve inserido o Plano de Comunicação
Social — nesse último caso, elaborado pela Coordenação-Geral
em conjunto com a Coordenação Setorial Social com o intuito de
criar um canal de comunicação contínuo entre o empreendedor e
a sociedade. Em conjunto, as coordenações montaram um sistema
periódico de revisão e adequação do Plano de Obra e do Plano de

404
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Reassentamento. A Coordenação-Geral e a Coordenação Setorial


de Obras e Infraestrutura ainda executaram a adequação e com-
patibilização do Projeto de Saneamento Integrado (PSI).

Por fim, o Plano de Entrega do Empreendimento mobilizou todos os


atores envolvidos no projeto, tais como as Coordenações Setoriais
da Gerenciadora em articulação com a equipe da Seplag-PE, bem
como algumas instituições parceiras. Esse plano compreendeu
desde a preparação das famílias para a nova condição de moradia
até o momento de sua recepção na entrega dos imóveis.

EXECUÇÃO

A Execução do Gerenciamento de Obra, sob responsabilidade da


Coordenação Setorial de Obras — sempre com interlocução com
a Coordenação Setorial Social —, englobou:

▸ Acompanhamento e fiscalização dos trabalhos da empreiteira:


fiscalização da conformidade das obras com os projetos e o diligen-
ciamento e a verificação dos prazos de execução, com a implantação
de uma rotina de reuniões e visitas periódicas às obras;

▸ Monitoramento das áreas de risco: realizado pela equipe da


Coordenação Setorial de Obras nos locais com esse perfil na
comunidade da Ilha de Deus;

▸ Apoio técnico às remoções e reassentamento das famílias atingi-


das: a fim de atender à solicitação da população para que a remoção
ocorresse em etapas, como forma de garantir a permanência na
comunidade, foi aprovado em assembleia o Plano de Obras, que
dividia a Ilha em três partes: a Área-Piloto, com 27 moradias; a
Área I, com 129 moradias; a Área II, com 116 moradias; e o Conjunto
Habitacional, com 78 moradias.

405
Guia de Urbanismo Social

ENTREGA

A finalização do empreendimento exigiu o apoio técnico de campo para:

▸ Apoio técnico ao recebimento de obras: realizando o controle de


cadastros e as built em campo, como documento de recebimento
de obras;

▸ Apoio técnico de campo ao reassentamento definitivo e à


pós-urbanização e pós-ocupação: realizando a vistoria da regu-
laridade das ocupações das novas unidades habitacionais e dos
equipamentos comunitários, como apoio técnico ao trabalho social
na discussão de problemas de ocupação das novas moradias e na
documentação de suas condições físicas;

▸ Avaliação das condições de conservação e manutenção das


moradias e redes de infraestrutura: deslocamento de equipes de
campo para a área, com o propósito de identificar os problemas de
manutenção e conservação das moradias e seu encaminhamento
adequado aos responsáveis.

406
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Além da construção das unidades habitacionais, o projeto executou


a reconstrução de quatro equipamentos comunitários e públicos já
existentes: Unidade de Saúde da Família (USF), Escola Municipal
Capela Santo Antônio, Centro Educacional Popular Saber Viver e
Espaço Caranguejo Uçá. Na época em que o diagnóstico foi feito,
a comunidade não possuía uma organização sociopolítica estru-
turada em torno de uma associação ou conselho de moradores.
As principais referências para a população eram a ONG Centro
Educacional Saber Viver e a organização Ação Comunitária Caran-
guejo Uçá. O reconhecimento de lideranças e instituições locais
estava relacionado ao envolvimento delas na luta por melhores
condições de vida e de moradia das famílias habitantes e na luta
pela permanência no território.

Tipologias habitacionais antes (à esquerda) e depois (acima) da intervenção.


Fotos: Diagonal.
407
Guia de Urbanismo Social

TRABALHO SOCIAL

O trabalho social desenvolvido junto às famílias da Ilha de Deus


se fundamentou em um dos princípios da Política Nacional de
Habitação (PNH), que pressupõe a gestão, com a participação dos
diferentes segmentos da sociedade, possibilitando governança
social e transparência nas decisões. Nesse sentido, a equipe, ao
considerar a gestão democrática, buscou o compartilhamento de
responsabilidades sociais, para que o morador começasse a ter
a compreensão do seu papel de sujeito do processo, pois quem
vivencia os problemas locais poderá ajudar a solucioná-los de
maneira mais adequada.

A mobilização da população foi feita a partir de visitas domiciliares,


distribuição de panfletos, fixação de cartazes, reuniões, divulgação
via “anuncicleta” e na rádio comunitária. Todo esse processo se deu
por meio da realização de assembleias, tanto de escuta quanto de
debate, e com a formação de grupos temáticos, muitos dos quais
com direito a voz e voto.

Vale destacar que no território a organização sociopolítica se dá por


meio de lideranças informais reconhecidas pela população e orga-
nizadas em grupos comunitários voltados para o desenvolvimento
local. Esses atores sociais são importantes para o desenvolvimento
das atividades que ocorrem dentro da comunidade que construíram.
Também têm protagonismo por serem formadores de opinião,
possuírem o conhecimento da dinâmica local e por facilitarem o
diálogo junto aos moradores.

PLANEJAMENTO

Na fase do Planejamento, a Coordenação Setorial Social ficou


responsável pelo Conhecimento do Contexto Social na Área de
Intervenção, por meio da realização de vistorias, levantamentos e
questionários para atualização cadastral da ocupação da área de
intervenção, identificação das organizações sociais e lideranças,
bem como políticas públicas oferecidas à população, programas
e projetos presentes no local e mobilização e sensibilização da

408
Capítulo 15 : Casos Referenciais

comunidade. Tratou-se, portanto, do referencial para a elaboração


do planejamento do trabalho que seria executado.

EXECUÇÃO

O gerenciamento sob responsabilidade dessa coordenação englobou:

▸ Acompanhamento social das famílias na fase de obras: foram


formadas comissões de moradores com o objetivo de promover
o diálogo entre a população e as equipes executoras do projeto e
estimular a participação popular em determinados níveis decisórios
das obras, a fim de criar um sentimento de pertencimento à inter-
venção urbanística. Compondo a Comissão de Moradores havia a
Comissão de Obra, responsável pelo acompanhamento do processo
de urbanização, por meio de visitas aos canteiros de obras. Também
foi formado o Grupo Referência, que tinha a finalidade de analisar
e discutir casos especiais de atendimento e apontar coletivamente
os principais problemas e desafios enfrentados pelo projeto, além
de identificar possíveis resoluções.

▸ Plantão social: era o espaço de comunicação e informação direta


entre as equipes profissionais e as famílias beneficiárias. Ao longo
de todo o projeto, foram realizados mais de cinco mil atendimentos
individuais.

▸ Negociação e execução das remoções: houve o acompanhamento


da mudança das famílias para moradias provisórias. Foram realizadas
também visitas domiciliares para dar apoio em situações especiais,
como no caso das moradias provisórias distantes da Ilha de Deus, a
fim de mantê-las informadas sobre o projeto. O mesmo foi feito no
caso de moradores que apresentavam dificuldades de locomoção
e de famílias que viviam em estado de vulnerabilidade ou que se
tornaram alvos de situações de risco e violência.

Além disso, foi feito o acompanhamento social das famílias que


apresentaram dificuldades para efetuar a matrícula de seus filhos
em outras creches e escolas por estarem em moradia provisória. O
acompanhamento social consistiu, ainda, em apoiar e orientar aquelas
famílias beneficiárias que decidiram adquirir um novo imóvel em
outros bairros ou cidades.
409
Guia de Urbanismo Social

ENTREGA

Essa etapa tinha o compromisso de viabilizar a realocação das


famílias no próprio território após as intervenções urbanísticas,
com o propósito de mantê-las o mais próximo possível de onde
moravam anteriormente. Envolveu os seguintes processos:

▸ Conhecimento da nova realidade social e urbana local: durante


essa fase a equipe social realizou, periodicamente, o Plantão Iti-
nerante para atendimento social às famílias no próprio território,
com o objetivo de monitorar sua nova situação;

▸ Plano de trabalho social na fase de pós-urbanização e pós-


-ocupação: objetivando manter os vínculos com a vizinhança, a
equipe social realizou reuniões com os moradores para a definição
da localização dos imóveis. Ademais, todos puderam escolher a cor
da fachada de seus imóveis, dentre quatro opções, o que contribuiu
para o sentimento de pertencimento em relação à nova moradia.
Reuniões intituladas “Prepare-se para a mudança” serviram para
orientar sobre como organizar os móveis no dia da mudança e
esclarecer dúvidas em relação à disponibilidade dos transportes
necessários para realizá-la. Na data em questão, as equipes técni-
cas ficavam à disposição no plantão social, esclarecendo dúvidas
e resolvendo pendências que surgiam durante todo o dia. Além
disso, foi aplicada uma pesquisa de interesse, com o objetivo de
conhecer os principais temas de relevância das famílias para a
realização de oficinas socioeducativas que tinham o intuito de
promover o exercício de novos hábitos e costumes. Realizaram-se
também atividades e cursos de educação e capacitação profissional,
que possibilitaram a absorção dos moradores da Ilha de Deus e do
entorno na execução das obras de urbanização, chegando ao pico de
duzentos trabalhadores, representando 50% do pessoal contratado
pela construtora na época. Foi feito ainda o Mapa Falado, no qual
os moradores indicavam não apenas os problemas mas também
refletiam sobre suas soluções e identificavam os responsáveis pelo
encaminhamento das demandas. As famílias foram também instru-
ídas sobre as relações de vizinhança, com incentivo ao diálogo e à
minimização de conflitos, ação reforçada pela distribuição do Manual

410
Capítulo 15 : Casos Referenciais

do Morador. Complementando a estratégia, constituíram-se grupos


de representantes de quadras e foram realizadas reuniões para a
discussão das demandas cotidianas das famílias. A equipe social
também ficou responsável, nessa etapa, pela implantação do Plano
de Desenvolvimento Social e Econômico, cujo objetivo era estimular
e fortalecer instituições, empreendimentos e iniciativas existentes
na comunidade. Foi dado o suporte à formalização das entidades,
além da assessoria para o aprimoramento das atividades e a busca
por meios e recursos para dar apoio financeiro a essas iniciativas.

▸ Organização para a gestão pós-ocupação: nessa etapa, esti-


mulou-se o fortalecimento e a ampliação da base organizativa da
comunidade, trabalhada junto às lideranças constituídas e suas
organizações. Para tanto, desenvolveram-se atividades voltadas para
a formação do Conselho Gestor, grupo no qual seriam discutidos os
problemas coletivos da comunidade. Além disso, foram realizados
treinamentos administrativos para os integrantes das comissões
de moradores. Também se elaborou a construção coletiva das
normas de convivência que iriam compor o Regulamento Interno.

Portanto, a democratização das decisões requer a responsabilidade


conjunta naquilo que é decidido. A tomada de decisão participativa
implica o desenvolvimento de um sentido de coletividade. Assim,
cooperar na execução da ação integrada para a Ilha de Deus trouxe
muitos desafios, mas gerou naqueles moradores um sentido de
coparticipação e de responsabilidade fundamental.

RESULTADOS

O trabalho realizado na Zeis Ilha de Deus de forma compartilhada


significou uma experiência ímpar para todos os agentes envolvidos.
Para o êxito do Projeto de Intervenção Integrada somaram-se os
esforços do governo do Estado, da população local e de seus repre-
sentantes e dos grupos de profissionais (Seplag-PE, Fade, Diagonal,
Colmeia Engenharia e Arquitetura e as Construtoras EngeMaia e
Rocha), comprometidos e alinhados com o mesmo objetivo.

411
Guia de Urbanismo Social

A integração horizontal, com a execução do gerenciamento do


projeto de obras e do processo socioambiental realizados pelas
equipes da Diagonal, permitiu a maximização da eficiência na
condução do projeto, com alinhamento de conceitos, metodologia
e procedimentos. Além disso, a integração da equipe de obras com
a equipe social facilitou a prestação de informações adequadas
sobre as questões tratadas com a população.

Ressalte-se a importância da aceitação dos moradores e dos seus


representantes de se incorporarem ao processo da gestão integrada,
participativa e sistemática de todas as ações planejadas e execu-
tadas na Ilha de Deus. A população abraçou o projeto, debateu e
apontou seus pontos de vista — nem sempre em concordância com
as propostas apresentadas, é verdade — e, dessa maneira, dividiu
com as equipes técnicas e entre vizinhos momentos de conflitos e
negociações. Isso se deu, entretanto, com um coletivo, buscando
o melhor para todos.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Projeto de urbanização na comunidade Ilha de Deus.

▸ JUCÁ, Carolina de Queiroga; DOURADO, Vilma. Ilha de Deus: uma história de


resistência e transformação. São Paulo: Diagonal, 2021.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper – Ilha de Deus, uma


História de Resistência e Transformação.

412
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Acesso antes e depois da intervenção (Fotosnte: Diagonal)

Para saber mais, ver:


• PROJETO DE URBANIZAÇÃO NA COMUNIDADE ILHA DE DEUS
http://www.portais.pe.gov.br/web/seplag/ilha-de-deus
• JUCÁ, Carolina de Queiroga; DOURADO, Vilma. Ilha de Deus: uma história de resistência e
transformação. São Paulo: Diagonal, 2021.
Acesso às moradias antes e depois da intervenção.
• Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper - Ilha de Deus, uma História de
Fotos: Diagonal.
Resistência e Transformação
https://www.insper.edu.br/agenda-de-eventos/ilha-de-deus-uma-historia-de-resistencia-e-transf
ormacao/

57

413
Guia de Urbanismo Social

15.11_ PROGRAMA BRAÇOS ABERTOS,


BOA VISTA

BAIRROS DR. SÍLVIO BOTELHO,


JD. TROPICAL, OLÍMPICO, BAIRRO
BOA VISTA
OPERÁRIO E PINTOLÂNDIA CENTENÁRIO

ÁREA (KM2) 122,00 (2020) 6,00 2,42

POPULAÇÃO
436.491 (2021) 20.251 (2010) 5.497 (2010)
(HAB)

Tabela: relação entre área e população de Boa Vista e Bairros do Programa Braços
Abertos.
Fonte: Diagonal.

Mapa: Boa Vista, Programa Braços Abertos (laranja).


Fonte: Google Earth, edição própria.

414
Capítulo 15 : Casos Referenciais

APRESENTAÇÃO

O caso de Boa Vista (Roraima) reflete um processo de mudança na


gestão pública no intuito de democratizar o orçamento da cidade,
visando atender demandas estruturais e sociais das áreas mais
vulneráveis do município, onde vivia a maior parte de sua população.
A partir de um plano de governo que olhava para as questões sociais,
econômicas e ambientais da cidade e buscava envolver a sociedade
— dando, sobretudo, voz às comunidades mais vulneráveis —, teve
origem uma série de Planos Locais de Ação Integrada em cada
bairro, conectando os projetos e programas setoriais da prefeitura
às demandas locais. Em muitos bairros, as ações setoriais integradas
caracterizam exemplos de urbanismo social, atendendo o caráter de
visão holística dos problemas das comunidades, no espaço e no tempo.

Embora o programa tenha se direcionado a todas as regiões e bairros


da capital, destacam-se duas áreas, predominantemente ocupadas
por famílias de baixa renda, que receberam intervenções abrangentes
que mudaram as condições urbanísticas, sociais e ambientais dessas
localidades, situadas na zona oeste da cidade: o bairro Centenário
e a região composta pelos bairros Jardim Tropical, Doutor Sílvio
Botelho, Olímpico e Pintolândia.

CONTEXTO

Em 2001, a nova gestão da Prefeitura de Boa Vista (Teresa Surita,


2001-2004) propôs a aplicação de metodologia de gestão dialo-
gada orientada ao tratamento das vulnerabilidades sociais, com
a integração de suas secretarias e órgãos e um intenso processo
de participação social em todas as fases, desde o diagnóstico da
realidade e da priorização das ações até o acompanhamento do
processo de implementação.

Na época, a capital de Roraima, com duzentos mil habitantes e


diversos problemas financeiros, urbanísticos, sociais e ambien-
tais, encontrava-se politicamente polarizada após as eleições. A
cidade tinha muitos jovens que não estudavam nem trabalhavam,
desemprego geral, lixo por toda parte, ruas esburacadas e sem

415
Guia de Urbanismo Social

asfalto, trânsito desordenado e violento, falta de iluminação pública,


de saneamento básico e de drenagem, alto índice de crianças na
rua, trabalho infantil, grande quantidade de valas abertas, malária
e dengue, precariedade do sistema de saúde, muita ocupação
irregular e muito desmatamento.

METODOLOGIA

A fim de realizar o plano de governo, com a participação efetiva da


população, foi criada a Secretaria de Gestão Participativa e Cidadania,
considerando o processo de governança com os habitantes da cidade,
organização e levantamento de dados, informações e pesquisas.
Esse modelo de atuação integrado priorizaria quatro dimensões:
socioeconômica, organizativa, urbanístico-ambiental e legal-fiscal.

Iniciou-se, então, a descentralização do trabalho da prefeitura,


oferecendo avanços na intersetorialidade e na ação integrada, para
aproximar a administração da capital à sociedade, com boas práticas
e respostas rápidas nos 48 bairros existentes. Assim, a atuação
municipal foi dividida em três regiões, conforme a figura a seguir:

Regionalização para o Diagnóstico Integrado.


Fonte: Diagonal, 2001.

416
Capítulo 15 : Casos Referenciais

O PROGRAMA BRAÇOS ABERTOS

Para os 180 dias iniciais de governo, foi proposto um programa de


participação intitulado Braços Abertos, envolvendo a população na
elaboração de diagnósticos e planos1. O foco das primeiras ações
realizadas pela prefeitura foi seu alto impacto e baixo custo, com
geração de emprego e renda. Para todas as novas ações eram
feitos projetos-piloto com o objetivo de testar o modelo e capacitar
os funcionários da administração municipal na sua execução. Isso
auxiliava na captação de recursos, pois o piloto demonstrava, em
pequena escala, o que cada ação era capaz de alcançar e, conse-
quentemente, aumentava a credibilidade no trabalho.

A prefeitura, com apoio da consultoria Diagonal, iniciou o processo


participativo realizando a apresentação e a discussão do programa
com a população e desenvolvendo pesquisas socioeconômicas e
sócio-organizativas e vistorias físicas que ofereceriam as bases
para o diagnóstico e a implementação das primeiras ações2.

INÍCIO DO PROJETO

Logo no começo do trabalho em Boa Vista, percebeu-se a precarie-


dade de estudos, pesquisas, dados e informações para que fosse
possível elaborar um diagnóstico integrado. O censo estava muito
desatualizado3 e não havia informações suficientes. A solução foi
desenvolver pesquisas censitárias, a fim de levantar informações
imprescindíveis para a definição de políticas públicas e a tomada
de decisões de investimentos.

O primeiro passo foi ir para a rua, em todos os bairros, a fim de


conversar com a população por meio de reuniões de apresentação
e discussão do Programa Braços Abertos. Foram feitos setenta

1 Com o poder das comunidades para deliberar as decisões.

2 Cabe destacar a importância das consultorias naquela época e ainda hoje na


gestão pública de muitas cidades de médio e grande porte, e em áreas metropolita-
nas, dada a carência de quadros técnicos efetivos das prefeituras.

3 O Censo de 2000, no início do governo (2001), não havia sido disponibilizado pelo
IBGE, e utilizar dados de 1991 não fazia sentido.

417
Guia de Urbanismo Social

encontros, envolvendo 39 bairros, tendo sido entregues 33 mil


convites, de porta em porta. As reuniões contavam sempre com
a participação da prefeita, Teresa Surita, e de uma estrutura com
telão e cadeiras para facilitar a comunicação com a comunidade.
Nelas, era apresentado o programa, com informações como o início
do censo e as visitas dos pesquisadores em cada casa.

PESQUISA CENSITÁRIA

Para viabilizar a estratégia do programa, foram mobilizadas duas


unidades de planejamento: a Unidade de Planejamento 1 tinha a
função de pensar a capital e suas grandes regiões, desenvolven-
do estudos urbanos e ambientais com a prefeitura; já a Unidade
de Planejamento 2 ocupava-se dos bairros e das comunidades,
trabalhando cada local a partir do diagnóstico socioeconômico e
participativo e dos planos locais de ação integrada.

Com base nos estudos complementares realizados nas duas uni-


dades de planejamento foi possível estruturar uma estratégia de
intervenção para a cidade, elaborando planos e projetos específicos
(temáticos e territoriais) e realizando o planejamento operacional
das ações a serem implantadas e monitoradas.

Assim, iniciou-se um trabalho de focalização no território e em seus


moradores, principalmente dos grupos mais vulneráveis. O censo
foi realizado com 70% da população (cerca de 160 mil pessoas),
o que possibilitou localizar os principais problemas do município.
Os funcionários da prefeitura receberam treinamento adequado
para a realização da pesquisa, e o trabalho permitiu a elaboração
de um banco de dados detalhado com georreferenciamento de
todas as informações da cidade. Foram também realizadas pes-
quisas socio-organizativas, mapeadas todas as 147 organizações
sociais, as 106 lideranças informais e os 144 moradores antigos,
levantando-se a história de luta e ocupação de cada bairro.

418
Capítulo 15 : Casos Referenciais

DIAGNÓSTICO

Com as informações completas de Boa Vista em mãos, iniciou-se


o diagnóstico, desenvolvido com base na pesquisa censitária, na
pesquisa qualitativa, em dados secundários e outras fontes.

Desse modo, foram identificados e georreferenciados todos os


problemas da cidade, tais como a existência de 12.844 famílias
na linha de indigência, 11.688 famílias na linha de pobreza, 8.965
pessoas de 15 a 65 anos desempregadas, 3.522 chefes de família
desempregados, 550 crianças de 7 a 14 anos fora da escola, 1.911
jovens de 15 a 21 anos fora da escola e do mercado de trabalho,
9.300 analfabetos, 9.320 imóveis sem banheiro, 13.855 imóveis de
madeira e restos de material, entre muitos outros.

O diagnóstico permitiu ganho de clareza acerca dos núcleos que


deveriam ser priorizados e possibilitou criar mapas para todos os da-
dos levantados. Dessa maneira, adquiriu-se profundo conhecimento
do território e da localização exata de cada problema encontrado.
Ao olhar para o mapa, identificaram-se os bairros onde mais de
70% das famílias estavam em situação de indigência e pobreza,
sabia-se onde havia crianças e jovens fora da escola, conhecia-se a
localização de imóveis sem banheiro, de moradias construídas com
material inadequado e de imóveis com abastecimento de energia
elétrica impróprio. Sabia-se onde viviam as 12.947 crianças de 0 a
3 anos na linha da indigência e pobreza e que, desses total, 11.565
estavam fora da escola.

Esses e muitos outros dados ofereciam absoluta clareza a respeito


das políticas públicas adequadas para cada núcleo.

AÇÕES POR GRUPOS SOCIAIS

Após o diagnóstico, foram realizadas as reuniões para devolução da


pesquisa. A prefeita voltava para os bairros e reportava aos moradores,
em reuniões de apresentação, todos os dados gerados pelo censo,
auxiliando a população a compreender melhor a sua realidade.

419
Guia de Urbanismo Social

Com todas as informações de Boa Vista à disposição, era possível


desenvolver ações efetivas para cada problema. Uma das informações
levantadas no momento das pesquisas eram os tipos de reivindicações
prioritários para cada morador. Nos questionários, toda a população
tinha que informar, em ordem de prioridade, as suas três principais
reivindicações. Dessa leitura, definiam-se as ações a serem imple-
mentadas, estabelecendo os planos locais de ação integrada.

Os planos, por sua vez, eram elaborados por meio da segmentação


de grupos sociais, trabalhando em duas categorias: (i) risco e insa-
lubridade e (ii) degradação e isolamento. Em seguida eram definidas
as estratégias de intervenção, os critérios de priorização das ações,
os recursos orçamentários existentes e os recursos adicionais
a serem captados. Desse processo resultou o planejamento da
agenda de trabalho da prefeitura de 2001 a 2004. Reuniam-se as
secretarias, debatia-se o plano de ação a partir do planejamento
elaborado e traçavam-se as ações por grupos sociais.

A partir de então, os dados levantados com a pesquisa censitária se


tornaram a base para todo o trabalho da administração municipal.
No segundo ano de governo, toda a população queria estar com
seu cadastro atualizado no banco de dados da prefeitura, pois os
habitantes da capital viam na prática as pessoas serem contem-
pladas pelas ações públicas, comprovando que a transformação
social estava acontecendo. Para facilitar essa atualização de dados
constante, foi criado o centro de geoprocessamento.

Alguns dos grupos sociais vulneráveis, em degradação e isolamento,


que foram focalizados no planejamento das atividades, eram os
seguintes: famílias em situação de pobreza e indigência, crianças e
jovens fora da escola na linha de pobreza, chefes de família desempre-
gados, adultos e jovens analfabetos, entre outros. Iniciou-se também
o atendimento a grupos sociais por segmento: jovens de 15 a 18 anos,
terceira idade, pessoas com deficiência e comunidades indígenas.

Para o problema das 12.844 famílias em situação de indigência, por


exemplo, estabeleceu-se como prioritário o fornecimento de cestas
básicas àquelas com renda zero, o fornecimento de vale-alimentação

420
Capítulo 15 : Casos Referenciais

para as que tinham crianças de 0 a 6 anos, o complemento à renda


familiar a crianças/jovens de 6 a 14 anos e o atendimento médico e
nutricional para crianças de 0 a 3 anos. Foi desenvolvido o Programa
Saúde em Casa, que ofereceu assistência médica a 100% das crianças
de famílias em situação de risco. Diversos outros programas foram
sendo criados, como o Bolsa-Escola, o Peti (Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil), o Projeto Crescer (para jovens fora da escola e
do mercado de trabalho) e a Bolsa-Educação. A Secretaria de Gestão
Participativa monitorava cada um deles. Foram trabalhadas ainda
duas ações de massa, abordando problemas muito complexos na
região: violência, drogas e práticas de degradação ambiental.

PRIMEIRAS AÇÕES

Já no primeiro ano de mandato, a Prefeitura de Boa Vista iniciou di-


versas ações de melhorias para a cidade. A Operação Asfalto, a maior
reivindicação da população, construiu 293 ruas e 101 km de asfalto.
A Operação Calçada construiu mais de dez mil metros de calçadas.
O Projeto Arborização realizou o plantio de 32 mil novas árvores. A
Operação Banheiros terminou o ano de 2001 com 460 construídos nas
casas da população e 1.937 projetos aprovados. A Operação Faxina
retirou 160 mil toneladas de lixo das ruas e providenciou uma nova
frota de caminhões e coleta seletiva para a população. O Programa
de Energia Elétrica auxiliou na redução das gambiarras que geravam
risco de vida para os moradores, beneficiando 776 famílias. O aten-
dimento dos programas sociais com bolsa-auxílio foram ampliados,
beneficiando 6.894 crianças e jovens. A prefeitura trabalhou também
em melhorias na educação, com quatro módulos-piloto do Projeto
Estuda, sinalização de trânsito, regularização fundiária, com 367 títulos
concedidos, alfabetização de adultos contemplando 1.400 pessoas
e 15 comunidades indígenas beneficiadas com plantio mecanizado,
fortalecimento do artesanato e atendimento médico pelo Expresso
Saúde. Foram ações realizadas no primeiro ano de mandato, com foco
em entregas rápidas e contínuas para o atendimento de demandas
urgentes das comunidades vulneráveis e do restante da cidade.

Só em 2001, foram gerados de mais de dois mil empregos. Todas


as empreiteiras contratadas pela prefeitura para realizar as obras

421
Guia de Urbanismo Social

tinham contratualmente a obrigação de empregar pessoas da lista


de desempregados, mapeada pela administração municipal.

Havia, por parte da prefeitura, a meta de alcançar o atendimento


total da população. Para isso, calculava-se o orçamento necessário
para atingir esse objetivo e captavam-se recursos federais para
completar o que faltava. Durante todo o mandato, a prefeita se
dirigiu regularmente à população para apresentar os números.

GESTÃO COMPARTILHADA

No início do projeto, a população tinha pouca ou nenhuma partici-


pação comunitária, pois não havia conscientização acerca do papel
de cada cidadão. Os moradores não conheciam os canais para
fazer reivindicações de melhorias e não frequentavam instituições
comunitárias.

A estratégia para organização dos habitantes foi justamente criar


representações por bairro e por setores, nos casos em que havia
recortes territoriais diferenciados na mesma localidade, a fim de ga-
rantir que 1% da população participasse de modo direto das decisões
políticas e 10% da população participassem de forma indireta, com
estímulo a fazerem parte das organizações comunitárias existentes.

Para isso, foi feito um trabalho de mobilização e eleição dos repre-


sentantes dos moradores e grupos sociais organizados, capacitação
dos representantes eleitos, discussão dos planos locais de ação
integrada, priorização das ações e agenda 2001-2004 e assembleias
de aprovação dos planos com a população.

O ano de 2001 — o primeiro de mandato, repita-se — terminou com


todas as assembleias realizadas e todos os planos elaborados e
aprovados com a população. Oitocentos representantes das comu-
nidades elaboraram uma carta de compromisso e responsabilidade
para a gestão compartilhada.

E, então, começou-se a discutir o orçamento participativo para


o ano seguinte, de modo a executar os planos de acordo com as

422
Capítulo 15 : Casos Referenciais

prioridades estabelecidas pela população. Uma parte da verba


municipal era reservada para ser definida e aprovada pelos mo-
radores (orçamento participativo).

A organização da gestão participativa se iniciava com um planeja-


mento, no qual se desenvolviam os planos locais de ação integrada
e planos operativos. Em seguida, realizavam-se a mobilização social,
a construção das ações de massa e a articulação para as ações de
desenvolvimento. Por fim, implantavam-se as ações, avaliando e
monitorando toda a execução.

RESULTADOS

Por meio de uma gestão comprometida com a transformação so-


cial, Boa Vista viu muitos de seus indicadores mudarem. A cidade
apresentou redução dos índices de atos infracionais praticados por
crianças e adolescentes, redução de 35 gangues juvenis/galeras para
cinco grupos remanescentes e redução de 72% no índice de violência
(dados dos três primeiros meses de 2002 em relação aos três últimos).

Em 2004, fez-se uma pesquisa para avaliar o governo. Para 79% da


população da capital de Roraima, a cidade estava melhor do que
em 2001, pois se encontrava mais limpa, mais bonita e estruturada,
mais preocupada com as crianças, adolescentes e idosos, com mais
iluminação pública, mais ruas e avenidas asfaltadas.

A avaliação da administração municipal atingiu nota 10 para 50% dos


habitantes da cidade. A grande maioria dos entrevistados concordava
que a prefeitura estava retirando crianças da rua (89%), trabalhando
para diminuir a violência entre os jovens (85%), investindo em esporte
e lazer (78%), melhorando o atendimento na educação (75%) e ouvindo
mais a população (70%).

Esses resultados positivos possibilitariam a reeleição de Teresa Surita


para a prefeitura e a continuidade de muitas ações e atendimento
de novas demandas. No novo mandato, a estratégia de diagnóstico e
priorização valeu-se do Mapa falado em todos os bairros da cidade
por meio de oficinas participativas.

423
Guia de Urbanismo Social

Na década de 1990, Boa Vista figurava entre os piores indicadores


socioeconômicos e ambientais dentre as capitais brasileiras — e
muito atrás de diversas urbes do centro-sul do Brasil. Atualmente,
está entre as cem melhores cidades do país, ocupando o 1º lugar em
geração de energia limpa pública, no abastecimento e distribuição
de remédios da Rede Remume e entre as capitais nacionais que mais
fizeram investimentos em infraestrutura urbana. Foi considerada
a 3ª capital com melhor situação fiscal do Brasil, a 5ª melhor em
educação pública municipal, a 5ª melhor em qualidade de vida, a
6ª com mais quilômetros de ciclovias por habitante, a 6ª melhor
também para a prática de esportes e a 11ª melhor para criar fi-
lhos. Essa mudança de posição é reflexo das ações participativas

Projeto Reluz.
Foto: Diagonal.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Webinários do
Laboratório Arq.Futuro
de Cidades do Insper —
Utopias, em Iztapalapa,
México, e Programa
Projeto Reluz. Braços Abertos, Boa
Foto: Diagonal. Vista, Roraima.

424
Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.12_ BARRIO 20,


BUENOS AIRES

Mapa: Barrio 21, Buenos Aires.


Fonte: Google Earth, edição própria.

425
Guia de Urbanismo Social

INTRODUÇÃO

A cidade de Buenos Aires tem um déficit de moradia que afeta cerca


de trezentos mil pessoas, das quais uma porcentagem significativa
vive em favelas e assentamentos com condições habitacionais
deficientes em termos de serviços, posse e qualidade material,
entre outros. O Barrio1 20 é a quarta favela mais populosa da ci-
dade, com cerca de trinta mil habitantes, dos quais 75% vivem na
pobreza. O Barrio está localizado na Comuna 8, ao sul da cidade,
em um setor que passou por processos de reforma e investimento
público a partir do desenvolvimento de programas de grande porte.

Embora o Barrio tenha passado por iniciativas anteriores de ur-


banização, desde 2016 o Instituto de Habitação da Cidade (IVC),
juntamente com as organizações sociais da localidade e outros
órgãos estaduais, iniciou um programa que teve como base justa-
mente as experiências prévias do processo de produção social do
Barrio em seus mais de setenta anos de existência. Essa iniciativa
teve a particularidade de consolidar um processo-projeto de gestão
e intervenção participativa que envolveu organizações sociais e
moradores autônomos do Barrio e órgãos estatais em nível local
e nacional, além do CAF — Banco de Desenvolvimento da América
Latina, que financia parte das intervenções de construção habita-
cional e de melhoria do Barrio.

O foco desta seção é descrever as principais características do


processo participativo enfrentado pelo Barrio 20 e as organizações
envolvidas no âmbito do conceito de urbanismo social, bem como
refletir sobre os obstáculos, desafios e lições por meio dos quais o
processo-projeto contribuiu para o desenvolvimento de intervenções
e melhoria urbana na América Latina e no Caribe.

1 Em espanhol, em especial na América Latina, o termo “Barrio” é também usa-


do como sinônimo de favela. Optou-se neste caso por manter a expressão original:
Barrio 20.

426
Capítulo 15 : Casos Referenciais

PARTICIPAÇÃO NO PROCESSO-PROJETO NO BARRIO 20

O processo-projeto do Barrio 20 tem origem em três elementos rele-


vantes: uma comunidade organizada, reflexiva e com experiência em
processos de urbanização; um estado local que priorizou a intervenção
nos barrios populares e destinou recursos para desenvolvê-la; uma
equipe técnica com uma perspectiva participativa que permitisse
articular atores e interesses. Esses três elementos foram combina-
dos no desenvolvimento de um determinado diálogo com as partes
interessadas, cuja prioridade foi estabelecer os principais objetivos
do processo-projeto: a requalificação do Barrio e a implementação
de uma estratégia de tomada de decisão participativa que incluísse
todas as partes interessadas, bem como as diferentes organizações
sociais, cujo trabalho territorial se localizava naquele território. O
modelo de intervenção se ancorou na definição de critérios gerais
de concepão, gestão e implementação de ações assentes na procura
de consenso e na geração de decisões participativas no quadro
de mecanismos de participação especificamente desenhados. A
concepção dos dispositivos levou em conta a função do espaço
de decisão (levantamento, diagnóstico, decisão, informação etc.),
a escala de implementação (Barrio, quarteirão, agregado familiar
etc.) e os atores envolvidos (quantidade, conhecimento do processo,
disponibilidade de tempo, recursos etc.), para citar três dimensões
da questão.

O dispositivo-marco desenhado no início do processo foi a Mesa


de Gestão Participativa (MGP), definida na Lei 5.705, de 2016, cuja
redação se deu no âmbito do referido dispositivo, antes da aprovação
formal de todos os atores envolvidos no consenso (a aprovação no
Legislativo da Cidade de Buenos Aires ocorreu por unanimidade).
Desse dispositivo emergiram dois de importante relevância para a
definição dos aspectos técnicos e para a concepção e execução do
projeto de requalificação: a Mesa Técnica de Gestão Participativa
(MTGP), que visa promover as definições técnicas relacionadas com
os vários aspectos envolvidos no processo; e as Oficinas Definidoras
do Projeto Integral de Reurbanização (PIRU) de Manzanas, que foram
implementadas em cada uma das mais de trinta quadras e setores
do Barrio, com vistas a definir o projeto de intervenção urbana e

427
Guia de Urbanismo Social

arquitetônica em torno da abertura de ruas e passagens, geração


de pátios e pulmões do quarteirão e definição de lotes e casas
(regularização dominial).

O modelo de gestão do processo-projeto implica uma revisão cons-


tante dos dispositivos e sua adaptação metodológica ao contexto
particular de aplicação. Nesse sentido, ao longo dos anos de projeto,
mais de trinta dispositivos foram projetados e implementados, bem
como adaptações e melhorias promovidas pelo diálogo interacional
do MGP. Essa lógica resiliente e adaptável do modelo baseado na
tomada de decisão conjunta possibilitou a redução de conflitos
de curto, médio e longo prazos, uma vez que as imperfeições são
assumidas como coletivas e se modificam justamente a partir de
novas tomadas de decisão coletivas.

O PAPEL DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS

Para realizar as intervenções, o IVC conta com o apoio técnico e


financeiro de diversos atores internacionais, entre eles o CAF. Ele é
implementado por meio de um empréstimo de US$ 100 milhões para
redesenvolvimento, zoneamento e integração urbana, habitacional
e socioeconômica de três assentamentos informais na cidade de
Buenos Aires (Barrio 20, Rodrigo Bueno e Playón de Chacarita).

O apoio financeiro e técnico do CAF foi estruturado tendo em conta


as premissas fundamentais do modelo de intervenção proposto
pelo IVC, com ações estruturadas em três eixos:

▸ Integração habitacional (condições mínimas de habitabilidade,


acesso a serviços públicos e segurança de posse);

▸ Integração urbana (melhoria da mobilidade, disponibilização de


serviços básicos e espaços públicos de qualidade aos assentamentos);

▸ Integração socioeconômica (desenvolvimento produtivo e em-


pregabilidade, desenvolvimento do potencial humano, educação,
saúde e cultura).

428
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Trabalhar em conjunto com organizações de fomento permite não


apenas canalizar recursos financeiros como também contribuir
para a disseminação de experiências e a construção de consen-
sos regionais sobre um modelo de desenvolvimento urbano que
aborde o acesso à moradia e ao hábitat adequado a partir de uma
abordagem ampla e interdisciplinar.

A atuação da CAF está alinhada com as estratégias de intervenção


no processo-projeto previamente definidas e busca viabilizar e cata-
lisar as ações promovidas no âmbito dos dispositivos para fortalecer
a integralidade das atuações e viabilizar programas com foco no
urbanismo social, perspectiva de gênero, diversidade e inclusão,
bem como sustentabilidade no contexto das mudanças climáticas.
Os recursos são utilizados para financiar a construção de casas
e o processo de intervenção existente no barrio, principalmente
com a execução de obras de infraestrutura para serviços públicos.

REFLEXÕES, DESAFIOS E LIÇÕES APRENDIDAS

O caso do Barrio 20 mostra que é possível promover processos


de tomada de decisão por parte das comunidades a partir de
uma diversificação de instrumentos (dispositivos) que permitam
reduzir e canalizar conflitos para fortalecer as estratégias locais de
melhoria da localidade. A experiência indica que a transformação
dos processos deve ser realizada no marco de suas lógicas de
funcionamento, respeitando os critérios e metodologias preesta-
belecidos em conjunto entre a comunidade e o Estado.

Assim, tem sido amplamente reconhecido que os programas de melho-


ria integral abordam questões essencialmente complexas e desafiam
práticas tradicionais, não apenas em políticas públicas mas também
na implementação de apoio técnico e financeiro de organizações
internacionais. Por um lado, os programas desafiam a instalação de
novas formas de trabalho articulado e integrado entre diferentes áreas
(infraestrutura, habitação, equipamentos sociais, gênero e alterações
climáticas, entre outras), que, muitas vezes, não dispõem de canais
institucionais formalizados para um trabalho colaborativo. Por outro
lado, as características intrínsecas dos processos de melhoria do

429
Guia de Urbanismo Social

hábitat informal colocam uma reflexão essencial para as organizações


internacionais quanto aos desafios na estruturação de instrumentos
financeiros, na definição do seu âmbito, no cumprimento dos objetivos
propostos e nos termos de execução planejada.

A participação é um instrumento reconhecido para a promoção de


programas e intervenções. Todavia, ainda há um longo caminho a
percorrer para promover maiores níveis de participação na tomada
de decisões sobre questões substanciais dos processos e para
modificar os padrões institucionais dos órgãos e instituições estatais
que implementam e operacionalizam as intervenções. Para tanto,
é necessário um olhar que ultrapasse o cumprimento das metas
operacionais. É preciso também internalizar a participação social
como eixo estruturante de intervenção para garantir o exercício de
direitos, transparência e sustentabilidade dos processos para as
comunidades envolvidas no curto, médio e longo prazo.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ CAF promueve la inclusión social de 200.000 personas en tres asentamientos de


la Ciudad Autónoma de Buenos Aires.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper — Buenos Aires |


Plano de Intervenção Integral em assentamentos precários — Villa 20.

430
Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.13_ BARRIO 31,


BUENOS AIRES

Mapa: Barrio 31, Buenos Aires.


Fonte: Google Earth, edição própria.

431
Guia de Urbanismo Social

O caso da localidade Padre Carlos Mugica, conhecida como Villa


31, é um projeto emblemático de um Plano Integrado de Barrio
(Favela) em Buenos Aires, na Argentina. Localizado próximo à
zona portuária da cidade, Mugica foi construído e historicamente
habitado por imigrantes e trabalhadores, de modo irregular, a partir
de 1932. Seu território foi se expandindo, de maneira espontânea
e sem planejamento, em uma zona limítrofe às áreas urbanizadas
e "formais" centrais da cidade, chegando atualmente a ocupar 72
hectares (0,72 km2) e abrigando aproximadamente quarenta mil
habitantes. Dado interessante é o fato de sua população majoritária
ser composta por jovens, dentre os quais 50% têm menos de 24
anos e 70%, menos de 35.

Na década de 1970, as políticas públicas de regularização de barrios


informais promoveram ações de remoção das famílias da Villa 31
para outras regiões mais afastadas do centro, o que não resolveu
as problemáticas locais relacionadas à falta de infraestrutura, habi-
tação formal e desenvolvimento socioeconômico, com indicadores
urbanos muito inferiores aos do restante da capital argentina.

No ano de 2015, a Prefeitura da Cidade de Buenos Aires lançou o


Plano de Integração do Barrio Mugica, com intervenções múltiplas
e simultâneas em toda a localidade, considerando como pilares de
atuação a oferta de infraestrutura básica e acesso aos serviços
públicos de água, esgoto, iluminação pública, drenagem etc.;
visando a quatro objetivos principais:

▸ Integração urbana: acesso aos serviços básicos e conectividade


com a cidade formal através do transporte e mobilidade;

▸ Habitação: desenvolvimento de moradias adequadas e seguras


para todos os residentes do Barrio;

▸ Integração social: melhoria do o acesso à educação e saúde


públicas e promoção de atividades culturais junto à comunidade;

▸ Integração econômica e sustentável: oferecimento de capacitação


profissional e de formalização de empresas e empreendedores
no Barrio.

432
Capítulo 15 : Casos Referenciais

A implementação do projeto teve início no ano de 2016, a partir


da criação de uma governança específica dentro da estrutura
da gestão pública da cidade, a Secretaria de Integração Social
e Urbana, responsável pela coordenação e desenvolvimento do
projeto. Liderado pela Prefeitura de Buenos Aires, o financiamento
do Plano de Integração de Barrio também contou com os recursos
e o suporte técnico do Banco Mundial e do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID).

Um dos principais aspectos do Barrio Mugica é seu isolamento físico


devido às barreiras urbanas, tais como os trilhos do trem e a rodovia
elevada, além da zona portuária. Cercado por essas infraestruturas,
um dos maiores desafios encontrados diz respeito à sua integração
à malha urbana viária formal. O projeto de integração do Barrio
permitiu que pela primeira vez na história o sistema de transporte
público formal circulasse por ele, com linhas de ônibus ligando
Mugica ao centro. Além da abertura de novas vias de acesso, a
mobilidade urbana recebeu melhorias, com novos desenhos de
calçadas e ciclovias, modais sustentáveis e ativos.

Os resultados e impactos gerados ao longo dos últimos anos no


Barrio Mugica, as contribuições entregues à população através do
planejamento do Barrio junto à Prefeitura de Buenos Aires foram
exitosas e promoveram melhorias tanto na qualidade do espaço
urbano construído (habitações, escolas, parques, praças) como
no desenvolvimento socioeconômico local, por meio da criação do
Centro de Desarrollo Emprendedor y Laboral (CeDEL) — com a oferta
de cursos de capacitação de empreendedores e microempresas,
dando suporte aos pequenos negócios e permitindo a inclusão dos
moradores em trabalhos formais.

Para garantir a sustentabilidade do projeto de bairro a longo pra-


zo, além do fomento à ativação da economia local e da geração
de renda, a Prefeitura de Buenos Aires criou junto à Assembleia
Legislativa uma estrutura legal e regulatória para a mitigação
de processos de gentrificação, com definições de uso do solo e
regularização fundiária.

433
Guia de Urbanismo Social

Resumidamente, foram entregues em Mugica1:

▸ 17.700 metros lineares de infraestrutura básica (saneamento,


drenagem, pavimentação, iluminação pública, eletricidade e água
potável);

▸ 1.154 novas unidades habitacionais;

▸ 1.732 residências com melhorias em sua estrutura;

▸ Três novas escolas, e uma escola existente foi renovada;

▸ Dois novos centros de atendimento médico, e um centro existente


foi renovado;

▸ 27 espaços públicos renovados;

▸ Um Centro de Desenvolvimento Empresarial e Trabalhista (Centro


de Desarrollo Emprendedor y Laboral – CeDEL).

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ BID, 2019. Workshop internacional B31: Soluciones de habitabilidad en barrios


informales.

1 Urban Sustainability Exchange (USE): New residences of Barrio 31.


434
Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.14_ URBANIZAÇÃO COMO PRÁTICA DE PROJETO


SOCIAL NA AMÉRICA LATINA

Produzir práticas de programas para um planeta em rápida urba-


nização constitui um projeto geracional. Uma pergunta inevitável
que acompanha o desenvolvimento dessas práticas é se elas vão
destruir as qualidades sociais e ambientais das cidades, como
muitos já fizeram antes, ou se há outro caminho a seguir. Com
efeito, podemos conceber imaginários urbanos — motores de tais
práticas — plenos de qualidades derivadas da nossa relação com
a natureza?

GROTÃO — FÁBRICA DE MÚSICA, 2011


FAVELA PARAISÓPOLIS, SÃO PAULO

Fizemos uma parceria com um escritório colaborador local e fecha-


mos um contrato de projeto direto com a Secretaria de Habitação
(Sehab) da Prefeitura de São Paulo. Depois de várias interações
para adaptação do projeto original do “El Sistema” venezuelano aos
requisitos da Orquestra Filarmônica de Paraisópolis e grupos de ci-
dadãos, líderes comunitários e outras partes interessadas, a iniciativa
recebeu o LA Golden Holcim Architecture Award. Comemoramos
a premiação em uma cerimônia no Centro Educacional Unificado
(CEU) do Jardim Parque Morumbi, em Paraisópolis, recebendo a
distinção junto com nossos clientes e moradores da comunidade.

Em Paraisópolis, o problema estava em outro lugar: grandes constru-


toras que administram vultosos orçamentos para vários programas
de urbanização de favelas simultaneamente na cidade estavam
céticas em desenvolver um protótipo diferente em um território
como aquele. Ainda assim, outros fatores impulsionaram o pro-
jeto: o envolvimento com a comunidade levou à implementação
de uma inovadora infraestrutura social e física que conectou o
planejamento urbano pós-desastre — depois um deslizamento de
terra — a aspectos de transporte e infraestrutura verde-azul ou à
integração de demandas culturais. No entanto, fazer tudo isso em
um projeto sobrecarregou os requisitos gerenciais de todas as

435
Guia de Urbanismo Social

partes envolvidas. O tempo tornou-se cada vez mais um problema,


e incorporar as necessidades complexas das pessoas ao processo
tradicional de contratos e de urbanização muitas vezes colocava
a iniciativa no final da linha de produção das construtoras rota-
tivas. Após o encerramento daquela gestão municipal, a equipe
executiva responsável mudou e a nova suspendeu o projeto — a
descontinuidade de políticas públicas, como se sabe, não chega
a ser uma novidade.

Todavia, apesar dos contratempos, continuamos na interação com


a comunidade de Paraisópolis para construir o Grotão – Fábrica
de Música. Estaremos prontos quando chegar a hora, unindo a
paisagem em terraços ao edifício próprio para o projeto, em uma
resposta inteligente às zonas de alto risco que funciona como um
catalisador para um novo espaço público urbano cultural produtivo.

Grotão — Fábrica de Música Paraisópolis.


Foto: Hubert Klumpner.

436
Capítulo 15 : Casos Referenciais

DO MÉTODO DE DESIGN AO DESIGN DE MÉTODO

Nossa prática projetual está firmemente baseada na aproximação


entre sociedade civil, órgãos governamentais locais e multilaterais
e indústria ativa da América Latina e além. Os escritórios regionais
— com equipes circulando entre Zurique, Medellín e Sarajevo — nos
permitiram formar uma família de especialistas experientes e
comprometidos com os projetos.

Suportar as contingências da pandemia nos últimos anos e o cenário


em transformação de mais de dezessete instituições parceiras
públicas e privadas permitiu que a equipe Urban Think Tank_next
(UTT-next) desenvolvesse protótipos para cinco programas inte-
grados de infraestrutura em cidades colombianas. Em resposta à
importância de unir, incorporar e restaurar a interação humana e
natural, todos eles foram integrados aos corredores verdes.

A preocupação com a reconstrução e recuperação da diversidade


urbana é indissociável do apelo urgente à resposta às alterações
climáticas. Em sintonia com referências globais como os ODS (Ob-
jetivos do Desenvolvimento Sustentável, da ONU), os profissionais
devem prevenir ativamente os piores conflitos sociais desenca-
deados pelas mudanças no clima. Enquanto as ilhas de calor, o
aumento do nível do mar e fenômenos relacionados acompanharem
o processo de urbanização, podemos supor que a natureza será
capaz de lidar com eles. O urbanismo social e ambiental baseia-se
na reconciliação da humanidade com a natureza como benefício
compartilhado e patrimônio mundial da diversidade das cidades
latino-americanas. Oferecemos uma visão completa do contexto,
imaginação, implementação da intervenção e impacto do nosso
trabalho, tanto em termos metafóricos quanto absolutos, com-
partilhando as ferramentas, métodos e objetivos de construção
de uma prática latino-americana.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Holcim Foundation Architecture Award — Centro de Acção Social por Música.


Grotao, Paraisopolis Sao Paulo Brazil

437
Guia de Urbanismo Social

15.15_ PLANEJAMENTO ORIENTADO


PARA O DIÁLOGO E A
INCLUSÃO SOCIAL: O URBAN
DESIGN LAB NA AMÉRICA
LATINA E NO CARIBE

A América Latina e o Caribe estão entre as regiões com as maiores


taxas de urbanização do planeta. Até 80% de suas respectivas
populações vivem nas cidades — e a tendência é de crescimento. As
taxas de crescimento, por sua vez, são caracterizadas por um alto
índice de informalidade na produção habitacional. Nesse contexto, o
desenvolvimento urbano espacial é regulamentado por lei em todas
as cidades, porém o planejamento formal não surte efeito no caso
do crescimento informal. São outros mecanismos que controlam o
crescimento espacial — por exemplo, grilagem informal de terras,
mas também expansão planejada nas periferias urbanas.

Para resolver a complexa tarefa de planejar a informalidade (e a


formalidade) da região, nosso grupo de pesquisadores e profissio-
nais montou think tanks locais em mais de vinte cidades da América
Latina e do Caribe, de 2013 a 2019, desenvolvendo ferramentas
de planejamento para projetos sociais urbanos que envolvam e
apoiem os bairros. O chamado Urban Design Lab foi desenvolvido
como parte do Programa de Parceria Acadêmica (APP), uma cola-
boração entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
o Ministério Federal da Fazenda da Áustria (BMF) e o Instituto de
Desenho Urbano da Universidade Técnica de Viena. Desde 2018,
a metodologia do Urban Design Lab também é utilizada em outras
regiões do mundo no contexto de cidades em rápido crescimento.

UM THINK TANK LOCAL QUE CRIA PLANOS DE AÇÃO


LOCAIS INTEGRADOS

Como os urbanistas estão respondendo à rápida transformação das


cidades latino-americanas e caribenhas? Pergunta-se inicialmente
por onde começar com os desafios multifacetados. A resposta:
com a produção de grandes planos de desenvolvimento urbano,
ou melhor, de projetos de pequena escala — vale dizer, em escala

438
Capítulo 15 : Casos Referenciais

humana — para atender às necessidades básicas da população.


O equilíbrio entre “estratégia”, “projeto” e “ação local” é o que
torna interessante o Urban Design Lab. Às vezes uma plataforma
de discussão é necessária para discutir desafios, potenciais e
soluções; enfim, trazer todos para a mesa. Nossa hipótese é
estabelecer um think tank local temporário durante o processo
de planejamento, ou seja, por pelo menos quatro meses. Após
um intenso mapeamento de stakeholders, pretende-se iniciar um
intenso diálogo com a administração local, universidades locais,
empresários, organizações não governamentais e cidadãos, entre
outros, a fim de: a) definir conjuntamente a área de planejamento;
b) definir uma tarefa precisa; c) estabelecer contatos com as partes
interessadas; d) organizar entrevistas, grupos focais e oficinas de
cocriação; e e) continuar a perseguir o projeto como um grupo de
apoio local após a cooperação.

DESAFIOS DA URBANIZAÇÃO NA
AMÉRICA LATINA E NO CARIBE

O trabalho no Urban Design Lab revelou que as cidades de médio


porte são caracterizadas pelo monocentrismo e, em muitos casos,
há apenas um centro histórico. Esse centro histórico é geralmente
caracterizado pela presença de escritórios e usos comerciais, bem
como assentamentos informais com populações empobrecidas. A
maior parte da população costuma viver fora dos centros históricos
nos chamados barrios, que também são bairros residenciais mono-
funcionais. Essas zonas residenciais, escassamente povoadas, das
classes média e alta são pouco conectadas ao transporte público.

Na maioria das cidades de médio porte da América Latina e do


Caribe não surgem novas áreas planejadas de uso misto ou novos
centros. Além disso, a cidade compacta e voltada ao pedestre
está se dissolvendo visivelmente, com os SUVs (carros grandes)
assumindo o controle da paisagem urbana. Isso é particularmente
evidente em cidades caribenhas como Nassau (Bahamas), Santiago
de los Caballeros (República Dominicana) e Montego Bay (Jamaica).
A informalidade e a falta de manutenção caracterizam hoje quase
todas as cidades da América Latina e do Caribe.

439
Guia de Urbanismo Social

FATOS, DADOS E PARTICIPAÇÃO — A NECESSIDADE DE


UMA ABORDAGEM INTEGRADA DE PLANEJAMENTO

Muitas vezes, o planejamento baseado em fatos e dados não é


possível nas cidades latino-americanas. Mesmo nas metrópoles, há
poucos dados disponíveis sobre demografia, estoque de edifícios
etc. Planejar sem dados é um desafio, entretanto técnicas criativas
de participação podem produzir informações úteis para inventário e
análise. A experiência do Urban Design Lab mostra que uma imagem
útil da situação urbana pode ser criada por meio de vários proces-
sos e formatos de participação. Em nossos Laboratórios Urbanos,
chamamos os desafios e problemas de "Tópicos Emergentes" — ou
seja, as questões, desafios e potenciais importantes para a tarefa.
Então, acreditamos que os dados qualitativos possam substituir
os dados quantitativos até certo ponto.

Os resultados do planejamento integrado são promissores, como


mostram as boas práticas na Colômbia, Brasil e Chile. Os exemplos
de sucesso combinam não só aspectos econômicos, culturais e
sociais como também culturais e governamentais com desenhos
urbanos. Parece que a integração desses elementos é um fator-cha-
ve para criar iniciativas exitosas. Os urbanismo social em Medellín
(Colômbia), ou os projetos de teleféricos e academias verticais do
Urban Think Tank em Caracas (Venezuela), os programas integra-
dos do programa Favela-Bairro no Rio de Janeiro ou os projetos
habitacionais do arquiteto Alejandro Aravena, no Chile, podem ser
citados como exemplos de sucesso. Contudo, como se chega lá?

Observamos que os departamentos de planejamento urbano das


cidades latino-americanas de médio porte que colaboraram nos
Laboratórios de Desenho Urbano sofrem de uma escassez crônica
de pessoal, contando geralmente com cinco funcionários, ou até
menos. O planejamento urbano estratégico e integrado está,
portanto, fora de questão. Via de regra, os engenheiros assumem
as tarefas de planejamento urbano e têm trabalho administrativo
suficiente para emitir licenças de construção.

440
Capítulo 15 : Casos Referenciais

UMA OLHADA RÁPIDA NO PROCESSO DE PLANEJAMENTO


INOVADOR

Os resultados de um Laboratório de Desenho Urbano são “Planos


de Ações Integradas” concretos que se inserem no respectivo con-
texto. Ao envolver a população em um processo de planejamento
aberto e público, esses projetos contam com o devido apoio das
partes interessadas, principalmente dos tomadores de decisão e
da população. A implementação harmoniosa é mais provável do
que com outros programas desenvolvidos sem discurso público.
Deixe-nos mostrar como conduzimos e cocriamos em muito pouco
tempo o processo de planejamento.

▸ Criação de um think tank local temporário

Para resolver uma tarefa de planejamento complexa, o estabele-


cimento de um think tank local temporário é fundamental. Ele é
configurado para a duração do processo de planejamento, ou seja,
pelo menos quatro meses. O objetivo é iniciar um diálogo intensivo
com a administração e universidades locais, empresários, ONGs etc.;

▸ O Urban Design Lab transforma as partes interessadas em


codesigners

As partes interessadas são convidadas a participar intensamen-


te do processo de planejamento. O Urban Design Lab utiliza o
conhecimento local de moradores, artistas, cientistas, políticos,
administradores, arquitetos e planejadores locais. O conhecimento
coletivo e local deve ser levado a todas as fases do projeto.

▸ A imprevisibilidade nos processos criativos

“Participação” costuma ser uma palavra da moda e, de fato, muitos


planejadores a confundem com informação do cidadão. Falamos
sobre codesign e coprodução de ideias para criar projetos. É impor-
tante criar soluções “baseadas no local”, não apenas estratégias
vagas. Precisamos de discussões abertas sobre possibilidades,
ações. Essas abordagens são essenciais no processo de planeja-
mento e acabarão por produzir soluções criativas e imprevisíveis.

441
Guia de Urbanismo Social

▸ Colaborações acadêmicas como fator experimental

Um elemento-chave no processo de planejamento cooperativo é


testar novas ideias e abordagens alternativas de planejamento.
Envolver grupos de estudantes locais é perfeito para essas expe-
riências espaciais. Mesmo ideias irrealistas provocam discussão
e diálogo na comunidade. A cidade não pode só testar ideias e
soluções envolvendo o setor acadêmico. Porém, é assim que as uni-
versidades têm oportunidade de chegar ao mundo real e vice-versa.

▸ Crie projetos envolventes voltados para a comunidade

Ao envolver todas as partes interessadas no início do processo de


planejamento, a confiança é criada, as pessoas se sentem ouvidas
e atendidas; elas são questionadas sobre suas opiniões e visões e
objetivos comuns são definidos. Assim, ao envolver a população no
processo de planejamento, os projetos tornam-se mais vinculativos.

▸ A narrativa urbana como instrumento de planejamento

Desenvolver junto à comunidade visões e ideias de projetos pode


fortalecer os valores e as qualidades das iniciativas. Os Urban Design
Labs visam criar um denominador comum na forma de olhares e
propostas de programas. É importante desenvolver uma narrativa
convincente de um projeto que vá além do mero marketing. A
narrativa pode ser usada especificamente para a comunicação de
ideias e é apoiada no processo de planejamento de, por exemplo,
ações de placemaking em espaços públicos ou produções de vídeo.

O NOVO PAPEL DOS URBANISTAS

O papel dos urbanistas é redefinido no processo de planejamento


orientado para o diálogo. Eles mantêm uma visão geral do processo
e atuam como orientadores. Inicialmente, os planejadores ouvem
com atenção, organizam caminhadas e entendem sua posição como
moderadores de um processo cooperativo de projeto. Possíveis
soluções são experimentadas com intervenções de placemaking
e imediatamente colocadas em discussão. Portanto, é necessário
que os planejadores saiam de seu papel passivo e apareçam

442
Capítulo 15 : Casos Referenciais

ativamente como moderadores e projetistas em um processo de


desenvolvimento orientado pela comunidade.

O Urban Design Lab provou ser um método e uma ferramenta


inovadora de participação e inclusão para o desenvolvimento de
novos projetos urbanos integrados. O método também é usado
experimentalmente em Viena para o desenvolvimento de programas
de placemaking e de projetos de espaços públicos. Além disso, foi
adotado para servir em contextos culturais na Ásia, África subsaariana
e Europa Central e Oriental. Em última análise, o método Urban Design
Lab não tem limites. Vemos o futuro do planejamento em diálogo
com as pessoas — aliás, os futuros usuários dos bairros urbanos.

O método de planejamento, a caixa de ferramentas, os relatórios de


campo e todos os projetos urbanos do Urban Design Lab na América
Latina e no Caribe foram documentados e publicados em um livro
abrangente, Urban Design Lab handbook (Berlin: Jovis, 2019), que
será lançado como e-book neste ano de 2023.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ KREBS, Roland, TOMASELLI, Markus (ed.). Urban Design Lab handbook. Berlin:
Jovis, 2019.

443
Guia de Urbanismo Social

15.16_ BOOXHIBITION:
IMAGINANDO O FUTURO

Em 2015, na Harvard University Graduate School of Design (GSD


Harvard), as professoras Martha Schwartz e Virginie Lefebvre
desenvolveram um estúdio de projeto sobre Derry-Londonderry,
a segunda maior cidade da Irlanda do Norte. Doze alunos foram
encarregados de imaginar o futuro de Derry-Londonderry, encon-
trar maneiras de rejuvenescê-la e construir uma ponte sobre o rio
que atravessa a urbe dividida. Posteriormente, os projetos foram
trabalhados em uma cartilha que foi divulgada junto à comunidade
local. Muitos anos depois, altos funcionários do governo municipal
confirmariam que todos os projetos dos estudantes tinham se tor-
nado realidade — de um modo ou de outro. As imagens da cartilha
inspiraram o governo, técnicos e cidadãos a tomar sua própria
iniciativa para moldar o futuro. Visualizar o futuro é uma forma de
moldá-lo e ajudar os outros a imaginá-lo — e moldá-lo também.

Para moldar o futuro, devemos imaginar o futuro. Imaginações


do futuro fundamentadas no presente têm maior probabilidade
de sucesso porque se baseiam no conhecimento e nas práticas
existentes. O futuro, é claro, também conterá o inesperado; nunca
podemos conhecer o desconhecido com certeza. Sabemos que o
desconhecido vai acontecer. E podemos antecipar o desconhecido.
Muito do presente moldará o futuro. Para entender o presente,
devemos saber como as pessoas vivem, trabalham e habitam uma
paisagem. Ao não considerar o futuro, o futuro ainda virá, talvez
mais cedo do que pensamos. Ainda assim, abrimos mão de nosso
poder de criar futuros mais desejáveis. Podemos aterrissar em
futuros menos desejáveis se não reivindicarmos nosso papel na
formação do futuro.

Projetar é, em muitos aspectos, imaginar o futuro. “O Laboratório


de Projeto de Paisagens Críticas” da GSD Harvard adota uma
abordagem centrada nas pessoas — comunidades locais — para o
projeto de paisagens. Como vivem suas vidas, seus valores e dese-
jos, as pessoas são agentes essenciais na formação de paisagens.

444
Capítulo 15 : Casos Referenciais

Também reconhecemos os problemas com maneiras mais formais


de engajamento com as comunidades. As reuniões tradicionais
formais da comunidade podem ser úteis, porém geralmente apenas
arranham a superfície. Elas podem ajudar a cumprir os requisitos
estatutários, em vez de aumentar o conhecimento. No Laboratório,
desenvolvemos maneiras de compartilhar o cotidiano o máximo
possível com as comunidades para entender como as pessoas
vivem suas vidas diariamente.

Por exemplo, em um projeto nas Bahamas, nossos alunos e pes-


quisadores passaram uma semana vivendo entre comunidades
insulares e tentando coletivamente entender melhor seus valores,
esperanças e aspirações. Eles mantiveram anotações, esboços e
desenhos detalhados, refletindo não apenas sobre como as pessoas
interagem com a terra agora, mas também, como as coisas poderiam
ser diferentes no futuro. Estávamos descrevendo e prescrevendo
ao mesmo tempo. No final, produzimos um processo em vez de
um plano. Não houve um relatório final e, sim, várias intervenções
com muitos pontos de entrada — o que chamamos de “caixa de
ferramentas” (design tool-kit). O projeto foi concebido como uma
série de intervenções inter-relacionadas. Alguns dos projetos
foram implementados à medida que avançavam. Construímos doze
galinheiros em três ilhas diferentes nas fases iniciais do projeto, por
exemplo. Então, quando ele foi concluído, já estava em andamento.

Inspirados pelos resultados do estúdio de 2005 e pelo exemplo nas


Bahamas, citado anteriormente, fomos solicitados a concluir um
novo projeto na Irlanda em 2019, Atlas for a City-Region: Imagining
the Post-Brexit Landscapes of the Irish Northwest. Os governos que
patrocinaram o estudo nos disseram que queriam encontrar mais
maneiras de envolver o público no processo de projeto e planeja-
mento. Para tanto, 27 alunos passaram uma semana em fazendas
e aldeias dos dois lados da fronteira. Alguns estavam debruçados
sobre o presente, complementando e desafiando as estatísticas
oficiais por meio de suas observações diárias. Suas conversas no
território foram essenciais para o processo de design e trouxeram
muitos novos insights. Por meio de um estúdio de projeto, outros
doze alunos imaginaram o futuro ao longo de duzentos anos.

445
Guia de Urbanismo Social

Com os resultados, desenvolvemos um “booxhibition”, livro híbrido,


com exposição adaptável, flexível, que pode ser aberto e compar-
tilhado. A mostra pode ser aberta em uma escola, salão de igreja,
espaço comunitário, escritório de governo ou mesa de cozinha. O
formato flexível permite vários momentos de entrada de muitos
constituintes em situações diferentes. Criticamente, o booxhibition
está repleto de imaginações do futuro: porque, se não imaginarmos
o futuro, insista-se, não podemos moldá-lo.

Devemos continuar encontrando maneiras de conversar com diver-


sos públicos, permitindo que sejam ouvidas vozes normalmente
não incluídas no projeto e engajamento, em um processo que
inclui quatro etapas:

▸ Envolver um público diversificado em conversas sobre o futuro;

▸ Imaginar possíveis futuros desejados;

▸ Descrever e visualizar esses possíveis futuros;

▸ Comunicar futuros desejados para inspirar conversas sobre o futuro.

Ao seguir os quatro pontos e compartilhar visões de futuro, podemos


envolver um grupo mais abrangente de coagentes na forma de vários
futuros desejados, lembrando que os projetos referenciados se
encontram em áreas desfavorecidas socialmente e que estávamos
sempre desenvolvendo maneiras de ser mais inclusivos socialmente.

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O território importa. As pessoas importam.
Em um país com tantas desigualdades
sociais, é no uso dos espaços em nossas
cidades que elas se revelam — e demandam
soluções urgentes. Este Guia de Urbanismo
Social apresenta um “cardápio” amplo de
tópicos e temas sobre a pauta ao longo de
seus quinze capítulos — integração e terri-
torialização de políticas públicas, planos de
ação local e questões ligadas a, mulheres
e territórios, saúde, cidades e crianças, go-
vernança e regulação urbana, dentre outros
–, sempre com uma linguagem acessível e
preocupações de ordem prática, visando
contribuir para a melhoria da vida sobretudo
das comunidades mais vulneráveis.

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