Todas as Nossas Primeiras Vezes - Bia R. D. Ramos

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Copyright ©2024 Beatriz Ramos.

TODAS AS NOSSAS PRIMEIRAS VEZES.

Todos os direitos reservados.


Nenhuma reprodução, total ou em partes, desta obra é permitida sem a
autorização prévia da autora.
Esse é um trabalho de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas,
fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Revisão ortográfica: Beatriz Castro.


Design de capa: Emily Dutra.
NOTA DA AUTORA.
Olá!
Primeiro, gostaria de te agradecer pelo interesse por essa história. Todas
as Nossas Primeiras Vezes é um livro muito especial para mim, e eu espero
que a leitura possa ser especial para você também.
Fico muito feliz em te ter por aqui, mas é meu dever alertar que essa
história não é recomendada para menores de 15 anos, por apresentar
linguagem imprópria e conteúdo sexual. Além disso, apesar de, no geral, ser
uma história leve, existem sim alguns gatilhos. São eles: homofobia,
bifobia, relacionamento abusivo (entre pais e filhos), ansiedade e separação
parental. Se você se sentir desconfortável com qualquer um desses pontos,
sugiro que priorize sempre a sua saúde mental.
Acho importante ressaltar que essa é uma história fictícia, e, apesar de
se passar em um lugar real (Rio de Janeiro), algumas ambientações, como o
colégio e a faculdade, não possuem nenhum compromisso com a realidade.
Apesar de inspiradas em locações reais, são imaginadas, e, portanto, não
existem, como endereço físico, fora dessas linhas.
No mais, uma ótima leitura!
Estou ansiosa para que conheça Camila e Andressa. Prepare-se, porque
elas com certeza vão derreter seu coração.

Com carinho,
Bia.
Para todas que já tiveram medo de ser quem são.
Vocês têm vozes, e elas merecem ser ouvidas.
SUMÁRIO
Capítulo Um: contexto.
Parte I: Escola.
Capítulo Dois: Brenda.
Capítulo Três: A festa de aniversário.
Capítulo Quatro: o começo de algo novo.
Capítulo Cinco. Quando meu pai voltou de viagem.
Capítulo Seis. Abençoada seja Andressa Batista.
Capítulo Sete. Mila, eu prometo.
Capítulo Oito. A Resenha.
Capítulo Nove. Fiz uma cena, tal qual Elena Gilbert.
Capítulo Dez. Comportamento heterossexual.
Capítulo Onze. Eram apenas sete da manhã.
Capítulo Doze. Henrique Silva.
Capítulo Treze. Cupido não precisa amar.
Capítulo Quatorze. Eu odeio os bissexuais.
Capítulo Quinze. Coincidências.
Capítulo Dezesseis. A tentação rodeia suas vítimas como um leão faminto.
Capítulo Dezessete. Eu tenho um motivo para gostar tanto de Capitão América.
Capítulo Dezoito. Final de semana das garotas.
Capítulo Dezenove. Nunca vá a uma praia quase particular com a garota que você quer beijar em
segredo.
Capítulo Vinte. Àquilo eu não conseguiria sobreviver.
Capítulo Vinte e um. Mundo de chiclete.
Capítulo Vinte e dois. Em busca do castelo (mas sem a princesa).
Parte II: faculdade.
Capítulo Um. Só para te situar.
Capítulo Dois. Namorada.
Capítulo Três. Até o Zuckerberg me odeia.
Capítulo Quatro. Tirando algumas peças.
Capítulo Cinco. Ninguém precisa saber.
Capítulo Seis. Você devia levar ela para o banheiro.
Capítulo Sete. Nietzsche sempre sabe.
Capítulo Oito. O começo da melhor noite da minha vida.
Capítulo Nove. Apenas natureza humana...
Capítulo Dez. Dane-se o Capitão América.
Capítulo Onze. O bote salva-vidas.
Capítulo Doze. Dá pra parar de fugir de mim?
Capítulo Treze. Faltou sal.
Capítulo Quatorze. Verdade ou desafio.
Capítulo Quinze. Que meus pais nunca leiam esse capítulo.
Capítulo Dezesseis. A gente pode odiar o ex (só não é meu caso).
Capítulo Dezessete. Time Lapse de alguns dias.
Capítulo Dezoito. Amigos próximos.
Capítulo Dezenove. O último aniversário dessa história.
Capítulo Vinte. Talvez, tudo pudesse ficar bem.
Capítulo Vinte e Um. O prelúdio.
Capítulo Vinte e Dois. A flor.
Capítulo Vinte e Três. Era tudo que ele podia fazer.
Capítulo Vinte e Quatro. O fim.
Parte III: Andressa.
Capítulo Um.
Capítulo Dois.
Capítulo Três.
Capítulo Quatro.
Capítulo Cinco.
O que veio depois e antes, de tudo isso.
Parte IV: Camila outra vez.
Capítulo Um (pela terceira vez). De volta para o futuro.
Capítulo Dois. Filha.
Capítulo Três. Últimas vezes.
Epílogo.
CAPÍTULO UM. CONTEXTO.
Eu conheci o amor da minha vida quando eu tinha nove anos de idade.
Renan era o tipo de pessoa fácil por quem se apaixonar. Cabelos pretos,
sorrisos recorrentes e sardas pipocando o nariz pontudo. Era um garoto
inteligente para a sua idade. Articulava bem, sabia conversar sobre coisas
de gente mais velha e estava aprendendo a tocar violão. Ele sabia cozinhar
também, algumas coisas mais simples. Ao longo dos anos, começou a
gostar de inventar receitas, algo que eu nunca tive talento para fazer.
Renan tinha um quarto lotado de objetos verdes. Sim, verdes. Não um
verde cintilante, como o de uma suculenta. Algo mais rústico e másculo,
como musgo. Gostava de animais, especialmente cachorros, e sonhava em
ter um Beagle. Quando tivesse sua “vida resolvida” e seu título de adulto,
dizia que teria um exatamente dessa raça. Era o seu cachorro favorito e eu
sabia disso, assim como sabia que seus dias favoritos eram os de sol e seu
único defeito era odiar pizza.
Renan tinha a minha idade, os olhos da mesma cor que os meus e uma
irmã mais velha chamada Andressa. Eu a chamava de Andy, um apelido
bobo que inventei e que veio de Toy Story (não me orgulho da origem,
apenas do fato). Na época, eu era obcecada por aquele desenho. Espero que
você saiba o que é Toy Story, mas, caso não, é uma história sobre um
menino que tem bonecos. Só que esses bonecos são vivos, e o nome do
“dono” dos bonecos é Andy. Não sei por que, na época, me pareceu
apropriado chamá-la assim. Talvez fosse porque ela era a mais velha de nós
três, talvez porque sua mãe costumava chamá-la de Andinha, e eu só reduzi.
Ou, talvez, fosse o meu subconsciente, me alertando sobre o quanto ela
brincaria comigo durante todos aqueles anos. Independente do motivo, eu
fui a primeira a chamá-la de Andy. Tínhamos essa coisa com primeiras
vezes, grande parte das nossas, pareciam reservadas uma para a outra.
Nossas mães se tornaram amigas porque nossos pais trabalharam juntos
em uma empresa que faliu. A falência os uniu mais do que os dias bons,
afinal, a desgraça mútua é sempre mais efetiva em juntar pessoas; e, depois
que eles sofreram em consonância com a falência precoce, passaram a
marcar jantares em família e a levarem seus filhos e mulheres uns para a
casa dos outros. A amizade entre os dois foi contagiante, afetando suas
esposas. Nossas famílias se tornaram arroz e feijão, até que tivemos que nos
separar.
Andressa e Renan se mudaram para o nordeste; passaram alguns bons
anos lá. Nossas mães mantiveram contato, nossos pais continuaram amigos
e meu irmão e eu, bom, nós éramos crianças. O que significava que
arrumamos novos amigos para brincar de pique-pega e nos esquecemos
daqueles com os quais não conversávamos mais.
Em minha defesa, a época era propícia para isso. Não éramos crianças
tecnológicas como as de hoje, que jogam online e conversam pelo Discord.
Dávamos prioridade aos amigos que estavam por perto; aos que podiam
descer para o play nos finais de semana e que trocavam canetas na escola.
Nossas famílias eram muito amigas, claro, mas Renan era aquele garotinho
bonito que eu me sentia atraída e desengonçada por perto e Andy, bom,
Andy era simplesmente Andy. Ela era... descolada. E, na época, eu era o
oposto disso.
Andressa, Renan e eu nos conhecemos muito novos, mas a amizade não
criou raízes antes de eles se mudarem. Por isso, mesmo que tenhamos sido
apresentados cedo, tudo só começou mesmo bem depois.
Eles voltaram para a cidade quando eu estava no segundo ano do ensino
médio e Renan foi estudar na mesma sala que a minha. Apesar de não
termos sido de fato amigos durante todo esse tempo separados, seu nome
nunca deixou de me causar borboletas no estômago. Foi difícil não me
apaixonar quando ele voltou ainda mais lindo do que partiu.
Retornaram da Bahia para morar em um prédio a duas ruas de distância
do nosso. Dividíamos o carro para ir para a escola, o que nos aproximou de
vez. Foi aí que criamos raízes, Renan e eu.
Tornamo-nos amigos, grandes amigos. Ele passou a se sentar do meu
lado na sala e a comprar pipoca para mim todos os dias na saída. Eu ia para
a sua casa fazer trabalhos em dupla e a gente compartilhava séries e piadas.
Nossas mães tinham a incômoda mania de insinuar que deveríamos
namorar, o que constrangia ambos, por motivos diferentes. Elas diziam que
terminaríamos juntos e que uniríamos de vez as famílias com um belo
matrimônio. Não foi bem assim que aconteceu.
Apesar de negar para todos, eu tinha uma queda secreta por Renan
desde os meus nove anos de idade. Criei raízes profundas até demais e o
problema é que nunca foi recíproco.
Três meses depois que ele retornou para o Rio de Janeiro, ele se
apaixonou por outra garota.
Espera, fica pior.
Ele se apaixonou pela minha melhor amiga!
Mas, para todo problema, existe um lado positivo (às vezes). Foi por
causa do meu primeiro coração partido que Andressa se espreguiçou,
metendo os braços na minha existência. Eu não teria a deixado entrar em
nenhum outro momento, muito menos teria ido pegar água naquele instante.
Eu disse, primeiras vezes, ela sempre estava lá, de alguma forma.
Mas de volta a Renan. Eu descobri da paixão enquanto fazíamos um
trabalho de biologia. Estava na casa dele, sentada sobre os meus joelhos no
tapete de seu quarto (ainda verde e másculo). Tínhamos que colar pares de
cromossomos em um cartaz e, enquanto o fazíamos, ele achou apropriado
perguntar:
— Você acha que meus filhos têm chance de ter olhos azuis? —
Encarei-o com a testa franzida, confusa com a pergunta aleatória e
desconexa.
Ele estava com um sorriso torto no rosto e aquilo me deixava nervosa,
mesmo que eu nunca deixasse transparecer. Engolia o que sentia sem
precisar de um copo d’água desde que ele voltou para a cidade e eu me
tornei expert em fingir não me importar.
Em sua defesa, eu sempre fui muito boa mentindo. Não tinha como ele
saber que ia quebrar meu coração quando dissesse:
— É que a Brenda tem os olhos bem azuis. Talvez neutralize o
cromossomo do castanho, sei lá.
Ele foi sutil, esquisito e levemente equivocado biologicamente, mas
achava que eu já sabia. Bom, não era o caso. Brenda não havia me contado.
Isso porque não acontecia nada de relevante entre os dois. E, nem mesmo
ela, minha melhor amiga, sabia que eu seria capaz de dormir abraçada com
a foto de quem eu afirmava ser só um amigo.
Ninguém sabia que eu gostava de Renan e, meu Deus, eu nunca
imaginei que ele fosse tão emocionado! No fim, descobri, eles só haviam
dado um beijo e ele já falava sobre misturar cromossomos e fazer filhos.
Talvez tivesse sido o efeito Brenda. Sempre acreditei que eles haviam sido
feitos para ficarem juntos. Isso depois que superei meu coração partido,
claro. Naquele momento, não era o caso.
— Espera. Brenda? — Eu me assustei. — Vocês estão... juntos?
Seu rosto ficou profundamente vermelho quando ele se justificou:
— Não juntos, juntos. Quer dizer... Cami, você não sabia? Ela não falou
de mim?
Não, ela não havia falado, mas não foi por mal. Brenda era o oposto de
Renan. Ela sempre foi uma pedra de gelo quando se tratava de homens.
Minha amiga ainda não o considerava importante o suficiente para contar
dele para mim, por isso eu não sabia do beijo — o qual aconteceu em uma
festa, enquanto ela estava ilegalmente bêbada. Mas, bom, Renan estava
sóbrio, e ele nunca foi do tipo que pulava de galho em galho (ou que ia a
festas). Renan sempre gostou de fazer morada e, de alguma forma
impressionante de se testemunhar (e que eu suspeito que tenha a ver com o
tanquinho que ele adquiriu aos dezoito anos), ele foi convencendo Brenda,
pouco a pouco, a adotar seu estilo de vida.
— Ah, falou. — Depois que ele cuspiu na minha cara o fato de que 1)
tinha beijado a minha melhor amiga, 2) ela não tinha me contado e 3) aquilo
tinha o deixado inseguro, senti que precisava mentir, escolhendo poupar os
seus sentimentos quando os meus haviam sido picotados. — É que eu não
achei que era sério.
— Ah. — Ele riu, constrangido, e eu senti minha garganta secar. Que
situação de merda. — Não é mesmo, eu acho... Mas eu tô querendo que
seja. Tudo bem por você?
Não!
— Por que não estaria?
Renan franziu a testa, refletindo por alguns instantes e fazendo uma
careta.
— Sei lá, seus dois melhores amigos. Não é estranho?
Dois melhores amigos.
Aquela sentença foi como uma espada atravessada na minha versão
adolescente, que imaginava estar perdidamente apaixonada pelo garoto
bonito que a dava atenção.
Encarando Renan com os olhos opacos, engoli toda a minha dor,
dizendo:
— Claro que não. Acho que vocês ficam lindos juntos!
Porra, eu devia ter sido atriz. Tinha um talento nato! Até sorri, acredita?
E ele acreditou sem pestanejar que eu estava feliz pelos dois e não em luto
por mim mesma e meu pobre coração despedaçado.
— Obrigada, Cami. — Ele me abraçou de lado, acariciando meus
ombros fraternalmente, como meu pai costumava fazer. Ali jazia,
natimorta, nossa história de amor. — Eu gosto muito dela, sabe?
Assenti, sentindo meu coração pesar sobre o meu estômago. Senti
vontade de vomitar, em cima de seus carinhos fraternais e seu título de
“melhor amigo”. Quis deitar e me encolher, no chão de seu quarto, que
ainda tinha a decoração verde. Aliás, Renan, por que verde? Eu nunca
gostei de verde. Nem um pouco. Devia ter imaginado que não daríamos
certo.
— Sei. — Ri, sem mostrar nenhum dente. — Escuta, eu posso pegar um
pouco de água? Você quer?
— Claro que pode. E não quero não. — Ele me soltou, enfim, de seu
carinho de melhor amigo, dando duas batidinhas em meu ombro. — Valeu,
Camilinha.
— Nada!
Então, me coloquei de pé sem usar as mãos, deixando aquele quarto
como um nadador que acabou de completar sua maratona, submergindo na
borda da piscina em último lugar.
Lembro-me da sensação de ter toda a minha fantasia partida ao meio.
Renan era a ideia de príncipe encantado que me foi ensinada a procurar, e
eu o havia perdido para a minha amiga de olhos azuis.
Eu estava confusa, a sensação era esquisita. Estava triste, havia tido
minha casa de bonecas pisoteada e sentiria falta de ter uma. Eu gostava
muito de gostar de alguém, sempre gostei. O sentimento me deixava mais
leve. Quando fui obrigada a parar de gostar de Renan — algo que fiz por
três meses, 2190 horas e 131400 segundos —, senti como se uma parte de
mim tivesse sido tirada.
Demorei a entender que não se tratava exatamente dele, mas sim do
sentimento. Havia certa magia em estar apaixonada e, do meu jeito
conturbado e silencioso, eu sempre cultivei um pouco desse sentimento. Por
alguém que não era ele, claro.
— Oi, Mila!
Eu não sabia que Andressa estava em casa naquele dia. Ela costumava
nadar nas terças e nas quintas e, geralmente, só chegava quando eu já tinha
ido embora.
Andy era um peixinho desde pequena. Chegamos a fazer aulas de
natação juntas quando ainda éramos crianças, mas eu odiava e, depois de
muita reclamação e choro, consegui convencer minha mãe a me tirar.
Andressa não, ela havia continuado. Sei de algumas competições que
participou e sei que treinava com um profissional. Naquele dia em
específico, no entanto, havia desistido de ir para a piscina. Seu treinador
estava atrasado e ela sentada na mesa que pairava bem ao centro da
cozinha, comendo um pedaço de bolo que sua mãe havia feito para mim.
Tia Diana era minha maior fã. Ela adorava quando eu e Renan tínhamos
trabalho para fazer juntos. Era ela quem nos buscava na escola e, como
trabalhava como dona de casa, os encontros eram sempre no seu
apartamento, onde tínhamos que ficar com as portas abertas, sendo
supervisionados pelos mais velhos. Achavam que íamos nos beijar
loucamente caso fechássemos a porta, porque, na cabeça deles (e na minha),
era isso que meninos e meninas de dezesseis anos faziam. Talvez, de fato
fosse. Mas não a gente (por escolha de Renan).
— Ah, oi, Andy! — Eu me surpreendi por vê-la. — Desculpa. Eu só
vim... pegar água.
Senti a necessidade de me justificar por estar invadindo a sua...
privacidade? Parecia pessoal o fato de estar comendo sozinha e em silêncio
uma fatia de bolo de cenoura. Especialmente quando não trocávamos mais
do que duas palavras desde os nove anos de idade.
— Claro! — exclamou. Estava com os cabelos soltos e as pernas
cruzadas em cima da cadeira. Seu rosto fino me mirava com atenção. Ela
colocou um pedaço na boca antes de perguntar: — Sabe onde fica? A
gelada tá na geladeira. — Interpretou errado minha confusão e apatia. Eu
sabia onde ficava a água, só não sabia mais o que fazer em relação ao seu
irmão.
— Ah, ok. — Sorri, simpática, me encaminhando, levemente
desgovernada, na direção indicada.
Andy esperou que eu passasse ao seu lado para dizer:
— Então. Foi você, não foi? — Parei onde estava, encarando-a confusa.
— Eu o quê?
— Que inventou esse apelido. Andy.
— Hm. Acho que foi. — Fiz-me de sonsa, cruzando meus braços.
Eu não achava, eu tinha certeza. Mas era esquisito que eu me lembrasse
tão bem de algo de nossas infâncias que ela já havia se esquecido.
Eu suspeitava que ela tivesse se esquecido de tudo relacionado a mim.
Coisas irrelevantes somem da nossa memória, e Andressa nunca pareceu ter
tido algum interesse na minha pessoa, até aquele dia.
Eu entrava e saía da casa de Renan todas as semanas e o máximo que
fazíamos era nos cumprimentar com “bom dia”, “tchau”, “até”. Dividíamos
o mesmo carro, pelo amor de Deus, e nem lá interagíamos! Ela estava um
ano na minha frente no colégio, e a gente se esbarrava pouco. Andressa
nunca foi antipática, muito pelo contrário, era conhecida por ser um amor
de pessoa. Só nunca... puxou assunto comigo, e não seria eu quem o faria.
Ela tinha uma energia oposta à minha. Sempre a pegava estirada em algum
canto, com as costas apoiadas em uma posição desleixada, mas
estranhamente confiante. Usava muito preto, branco e roupas largas. Seus
olhos eram pequenos e suas sobrancelhas bem marcadas. Sorria com
constância, mas, quando se mantinha neutra, parecia permanentemente
cansada. Olhos de ressaca, era isso que ela tinha, mesmo quando não bebia,
mas estupidamente cativantes.
— Isso é engraçado — foi o que ela me respondeu, sorrindo.
Desde os dezoito anos, usava os cabelos compridos. Pretos, batiam na
altura de seu cotovelo e cacheavam apenas nas pontas (ela alisava o
comprimento). Eu lembro que, quando éramos menores, eles eram bem
mais curtos, e armados. Mas isso não era relevante, o que veio depois, sim:
— O que é engraçado? — quis saber, confusa pelo fato de Andressa
Batista estar conversando comigo depois de longos três meses me
ignorando.
Estava interessada pelo diálogo, não vou mentir. Andy sempre carregou
um mistério magnético com ela; talvez pelo fato de me evitar. E eu estava
tão interessada no nosso primeiro diálogo depois de anos que quase me
esqueci do ocorrido com Renan. Quase.
Ela deu de ombros.
— Pegou por um tempo, mas todo mundo meio que desistiu do Andy.
Você é a única que ainda me chama assim.
Ah, que ótimo. Primeira oportunidade de interação e eu começava a
chamando por um apelido morto.
— Hm... desculpa? — arrisquei, sem saber se deveria me sentir culpada.
— Quer que eu pare de te chamar de Andy?
— Não, Mila, claro que não. — Sorriu. — Eu gosto. Acho fofo.
— Ah, certo. — Tentei sorrir, um pouco desengonçada, então o silêncio
nos engoliu.
Aquele era um daqueles instantes em que o assunto tinha acabado, não
havia mais o que dizer, só que você ainda precisa compartilhar o mesmo
ambiente que a pessoa com a qual tem zero intimidade.
Eu ainda precisava dar um sentido para a minha peregrinação à cozinha
e pegar o copo d’água, então, tive que fazê-lo com o silêncio incômodo e
desconfortável que se seguiu o nosso diálogo me mordiscando por todas as
beiradas.
O problema é que eu tenho um defeito (não só esse, mas esse é
profundamente irritante), eu falo demais. E sempre tive a necessidade
patológica de preencher qualquer momento de silêncio com alguma
baboseira qualquer. É mais forte que eu. É como se eu fosse inimiga do
bom e velho respiro. Sim, o silêncio me incomoda. O fato de sentir que os
olhos de Andressa me seguiam enquanto eu abria a porta da geladeira e
puxava uma garrafa de água, mas que sua boca se mantivesse lacrada.
Incomodava que ela tivesse aceitado o fim do papo e chamado meu apelido
de “fofo”. Incomodava que compartilhássemos algo pessoal e íntimo
quando não éramos nada íntimas. Era como se tivéssemos um segredo e
história, quando não tínhamos nada além de um grande elefante branco na
sala. Estava me sentindo observada, e exposta. Foi por isso que eu disse:
— Você também é uma das únicas pessoas que me chama de Mila, caso
queira sentir que é recíproco. — Ela arqueou uma de suas sobrancelhas,
surpreendendo-se por eu ter voltado a falar. Aproximei-me e apoiei a
garrafa de água na sua frente, fingindo casualidade: — Quase todo mundo
prefere Cami. Onde ficam os copos mesmo?
Ela sorriu e, quando ela sorria, aquela sensação de que estava cansada e
insatisfeita sumia. Seu rosto inteiro sorria junto. Olhos, testa e bochechas.
— Ali, no armário de cima. — Apontou para um dos armários
suspensos e eu assenti, seguindo a orientação enquanto a escutava
perguntar, para as minhas costas: — E você gosta mais de qual?
Dei de ombros, alcançando os copos.
— Tanto faz pra mim.
— Certo. Vou continuar te chamando de Mila então — concluiu,
enquanto eu me aproximava e me servia um pouco de água. — Para sentir
que é recíproco e tudo mais.
Por algum motivo, aquela frase me fez desistir de derramar a água no
copo, me contentando com três míseros dedos e me afastando dela.
Recíproco.
O jeito como ela disse aquela palavra, me encarando sem nem piscar e
com um sorriso no rosto, foi o começo de tudo que veio a partir de então.
Eu guardei a água na geladeira e me despedi de Andy, voltando para o
quarto e para o drama de Renan. Mas foi como colar uma figurinha
arrancada de novo no mesmo lugar. As coisas pareciam diferentes.
Meu coração partido pareceu singelo quando eu engoli aqueles três
dedos de água e consolidei apelidos com Andressa. Superei fácil Renan e
Brenda, afinal, Andy apareceu, e ela sempre teve mais espaço em meus
pensamentos que qualquer um.
Mas não vamos pular etapas. Você já tem o contexto geral de como tudo
começou. Agora vai ser capaz de entender que todas as vezes em que tudo
deu errado foi por causa dessa estúpida e amaldiçoada reciprocidade, a qual
compartilhamos e perdemos diversas vezes desde que tínhamos dezesseis (e
dezoito) anos de idade.
PARTE I: ESCOLA.
CAPÍTULO DOIS. BRENDA.
Na madrugada em que meu coração foi partido por Renan, eu chorei um
pouquinho. Calma, não foram mares, muito menos rios. Nada comparado
ao que eu aprendi que poderia chorar. Mas, mesmo assim, saíra algo. Uma
garoa singela, nada indolor.
Naquele mesmo dia da confissão, eu inventei que estava com dor de
cabeça e deixei Renan terminar de colar os cromossomos sozinho. Fiquei
em luto logo após, pela morte do meu amor platônico. O luto durou exatos
cinco dias, e foi extremamente difícil conviver com Brenda e Renan
enquanto ele não amansava. Bom, quer dizer, foi especialmente difícil lidar
com Renan. Com Brenda eu resolvi as coisas bem rapidamente.
Minha melhor amiga tinha os cabelos castanhos, pele branca, olhos
azuis (como você bem sabe), lábios pequenos e sempre foi a pessoas mais
extrovertida e atlética que eu conhecia.
Brenda fazia judô desde os sete anos de idade, natação desde os cinco e
qualquer outro esporte imaginável desde... sempre. Sinceramente, eu já
havia perdido a conta de quantos ela já praticara. E o irritante era que ela
era boa em todos.
Brenda estudava na mesma sala que eu desde o quinto ano, mas só
viramos amigas no nono, quando eu fui obrigada a assistir a uma
competição de vôlei do meu irmão mais novo, chamado Gabriel.
Ele puxou toda a energia atlética da família, diga-se de passagem, só
que nunca foi bom como Brenda. Naquele dia do vôlei, aquilo ficou mais
do que claro.
Gabriel era péssimo; e aquela partida, interminável. Por sorte, ou
destino, Brenda se sentou ao meu lado na arquibancada, e tornou tudo
muito mais aprazível quando sussurrou no meu ouvido:
— Tá vendo aquele cara? O número sete?
A pergunta me pegou desprevenida. Encarei-a confusa, dando de cara
com um rosto atento, sedento por respostas. Eu a conhecia da escola, claro.
Estudávamos na mesma sala há anos e ela era uma figura reconhecida por
todos. Só nunca tínhamos conversado antes. Brenda se sentava nas cadeiras
de trás, eu era mais do meio. Trocamos algumas palavras quando tivemos
que fazer um trabalho em grupo juntas, nada além. Eu gostava dela, a
achava divertida, porém, nunca tivemos a oportunidade de interagir. Nossos
grupos de amigos não se misturavam, só que ela sempre foi enxerida
demais para deixar que um empecilho bobo daqueles a impedisse de se
aproximar de qualquer um.
Brenda gostava de fazer novos amigos e (palavras dela) ela sempre
gostou de mim.
Sentada sozinha em uma arquibancada gelada, encarei minha colega de
sala, também sozinha, notando que ela realmente queria que eu respondesse
aquela pergunta. Não tive como não o fazer.
Forcei minhas pálpebras, enxergando um garoto de cabelos pretos errar
um passe. Ou um lance, sei lá. Ele não conseguiu bater na bola!
— Tô — garanti, encarando-a logo em seguida. Ela não me encarava de
volta, apenas gesticulava.
— Caramba, né? Ele é tipo o pior jogador que eu já vi. Desculpa, mas
nossa! Parece que o braço é furado, que nervoso! — A forma como falou
aquilo, séria e analítica, me fez rir. Ela me encarou com a testa franzida. —
Que foi?
— Nada. Só estou feliz que você não tenha falado isso sobre o meu
irmão.
Brenda demorou alguns segundos para processar. Quando o fez, não
tardou a rir.
— Isso seria vergonhoso. Quem é seu irmão?
— O camisa doze, de blusa azul.
Foi sua vez de forçar suas pálpebras para enxergar. Meu irmão não era
difícil de ver. Sempre foi alto para a sua idade. Seus cabelos castanhos, no
mesmo exato tom dos meus, se destacavam na quadra alaranjada e lustrosa.
Brenda o analisou por alguns instantes antes de dizer:
— Ah, ele é esforçado. O sete é só ruim mesmo.
— Vou ter que acreditar em você. — Dei de ombros. — Não entendo
nada de vôlei, tô aqui obrigada. Minha mãe me fez vir, apesar de já ter
fugido pro banheiro três vezes. Quer dizer... — Apontei para o vazio ao
meu lado. — Quatro agora. E, como meu pai ficou preso no trabalho, fiquei
com pena e vim. — Encarei-a e sorri. Sua expressão não era equivalente. —
É importante pro Gabriel. Ele é... como você disse? Esforçado.
Continuei sorrindo, mas ela não. Encarou-me por alguns instantes, de
uma maneira incômoda. Era como se eu tivesse dito uma coisa muito
profunda, quando, na verdade, apenas tagarelava. Na época, ela entendia e
eu não. Havia um fio que nos ligava; um dos que eu não gostaria que
existissem, mas que, em alguns anos, estaria sufocando cada parte de mim.
Brenda estava sentada sozinha naquela arquibancada porque seu primo
estava jogando, e ela conseguiu, depois de muita chantagem, convencer
seus pais a levarem para assistir. No entanto, o passeio em família durou
pouquíssimo tempo. Eles haviam a abandonado antes do fim do primeiro
set, para brigar no estacionamento.
— Camila, né? — Assenti. — Sou Brenda, e vôlei não é nada
complicado. Tipo, tá vendo essa formação? Aquele é o líbero...
Então ela começou a apontar e a me explicar dezenas de coisas
complicadas que eu nunca decorei, nem fiz questão.
Depois daquele dia, viramos amigas.
Ela me convidou para sentar ao seu lado na sala e, quando vimos,
estávamos fazendo todos os trabalhos juntas, lanchávamos na mesma mesa
e conversávamos o dia inteiro. Eu disse, as desgraças são uma das formas
mais fáceis de juntar pessoas. Ficamos unidas como siamesas!, até que nos
separaram à força.
No segundo ano, um golpe baixo nos atingiu: dividiram a nossa turma e
cada uma ficou em uma sala. Sofremos profundamente pela separação, até
que resolvemos aceitar. O coordenador não se comoveu com a nossa
tristeza quando protestamos, havia muitos adolescentes indo reclamar com
ele. Então, eu tive que me conformar em ficar em uma sala separada da
minha melhor amiga. E foi por isso que eu tive espaço para fazer dupla com
Renan, sentar junto com ele, me apaixonar por ele e me aproximar de sua
irmã.
Sim, tudo que aconteceu foi culpa do maldito coordenador que nos
separou.
Eu agradeço a ele todos os dias.
— Vem cá, Cami, o que tá acontecendo? — Depois que se passaram três
dias do meu período de luto, Brenda perdeu a paciência, me encurralando
no colégio, bem no pé da escada que levava até a cantina.
Sua estratégia era boa, estávamos longe de qualquer testemunha, o que
tornava minhas possibilidades de fuga quase nulas. Nem mesmo se eu
tentasse empurrá-la, eu conseguiria passar. Naquele período de nossas
vidas, ela já era faixa preta no judô.
— Como assim?
— Você tá estranha comigo. Faz alguns dias.
— Eu não tô estranha contigo. — Estava sim. Estava monossilábica e
silenciosa, duas coisas que eu definitivamente não era. — Só tô preocupada
com a prova de física.
Ela não cairia naquela mentira com facilidade. Era de Brenda que
estávamos falando.
— É só semana que vem.
— Eu sei, mas você já viu a matéria?
— Camila, você é boa em física.
— Não nessa matéria.
— Tá, não me conta o que houve então. — Revirou os olhos. — Mas
pelo menos me escuta! Eu achei que era coisa da minha cabeça, mas não é.
Renan vem me sondando.
Quase me engasguei com o biscoito que eu mastigava tranquilamente
antes que ela chegasse.
— Ah. — Foi tudo que eu consegui dizer. Ela cruzou os braços,
desconfiada.
— Ele é seu amigo. Sabe por quê?
— Você não sabe? — retruquei, ligeiramente irritada.
Não tinha como fingir que eu não estava chateada. Chateada por ela não
ser capaz de ler a droga da minha mente e entender que, por mais que eu
negasse, eu sentia uma pequena paixãozinha por Renan há anos!
— Deveria? — Sua pergunta era genuína, eu vi em seu rosto. Afinal,
Renan não fora o único beijo da noite, nem o primeiro cara a ficar obcecado
por ela. Brenda demoraria para entender o estilo de vida monogâmico e
emocionado de Renan. Demoraria bastante.
Respirei fundo.
— Brenda — comecei, tocando seus ombros e tentando não ser injusta
com ela. Eu conhecia a minha amiga, e sabia que se ela suspeitasse que
aquilo me machucaria, ela nunca teria feito. — Vocês se beijaram. Não
lembra? — questionei, com um pouco mais de amargor do que eu pretendia,
apesar da minha intenção nobre. Para a minha sorte, ela não notou.
Uma luz se acendeu em seu cérebro. Vi quando ela apertou rebobinar, e
retornou à festa. Ao beijo. Ao momento em que destruiu todas as minhas
chances com o meu “melhor amigo”.
— Ah! — exclamou, encarando-me, ligeiramente chocada. — É
mesmo, teve um beijo. Faz sentido então.
Pois é, Brenda!
Pigarreei, desviando o olhar. Ela não fez por mal, porém, mesmo assim,
era difícil. Eu realmente achava que estava apaixonada por Renan. E quem
poderia me culpar? Eu ainda não sabia com o que a paixão realmente se
parecia.
— Quer dizer, na verdade, não faz sentido não! — Pensou melhor. —
Foi só um beijo, por que ele...
Sua fala foi interrompida pela metade quando um vulto deu de cara com
nós duas.
— Opa. — Andressa surgiu do nada, quase batendo de frente.
Ela virou a esquina equilibrando uma coxinha e um Guaravita,
surpreendendo-se ao nos encontrar ali.
As escadas ficavam vazias na hora do intervalo, quase todo mundo
vegetava em volta da cantina. Eu preferiria estar lá a ter aquele
interrogatório bizarro com a minha melhor amiga, óbvio, mas eu não tinha
escolha.
— Oi, Andressa! — Brenda foi a primeira a falar, chamando a atenção
de Andy, que estava com o cabelo preso em um rabo de cavalo alto e
brincos de argola enormes.
Eu já havia notado antes, mas, naquele instante, me parecia mais claro,
como seu rosto havia mudado com o tempo. Havia afinado, e seus cabelos,
escurecido. Andressa era parecida com Renan, mas não muito. O tom de
pele dele era mais claro e seu queixo mais quadrado. Ele era mais parecido
com o pai. Tio Batista tinha os cabelos lisos e a pele tão branca que meu pai
o chamava (esteriotipicamente, eu sei) de “europeu”. Nascido no Rio de
Janeiro, foi encontrar tia Diana no interior da Bahia, em uma viagem de
férias, quando eles tinham vinte e um anos. Pois é, a história dos dois era
digna de um livro. Apaixonaram-se nas férias, cultivaram um
relacionamento de ponte aérea e se casaram três anos depois que
começaram a namorar. Tia Diana saiu da casa de seus pais para vir morar
com ele no Rio de Janeiro. Tiveram seus dois filhos aqui. Mas, enquanto
Renan sugou muitas características físicas de seu pai, Andressa puxou os
lábios, a delicadeza e a simetria de sua mãe. Tia Diana era negra, de pele
clara. Andy também. Seus cabelos eram da mesma cor dos dela, cacheados
e compridos. Para não dizer que tio Batista passou em branco, ela tinha o
sorriso do pai, além das mesmas pintinhas espalhadas pelo rosto. Tudo nela
parecia conversar bem, e impactar, como uma peça de teatro. Em resumo,
ela já era bonita na adolescência, o quão injusto é isso?
— Você acabou de interromper uma muito particular discussão sobre o
seu irmão — dedurou Brenda, cruzando os braços e a encarando.
Brenda e Andressa se conheciam porque compartilhavam alguns amigos
em comum. Não eram próximas, mas tinham certa intimidade. Saíam juntas
para alguns lugares e se cumprimentavam pelos corredores. No fim, não era
grande coisa, Brenda tinha uma pequena intimidade com quase todo mundo
daquele colégio.
— Quer subir? — Abriu espaço e eu a imitei. Andy sorriu fraco.
— Aham. Mas, antes, você me lembrou. Mila! — Virou-se em minha
direção e eu tive que me segurar para não recuar.
Mila.
Depois daquele dia na cozinha, achei esquisito quando ela me chamou
daquele jeito, mas um esquisito bom. Andy pronunciava meu apelido de
uma forma sonora, animada e cativante. Eu notei que gostava.
— Eu tinha que falar com você.
Desde a conversa que tivemos, tínhamos nos visto pouco. Eu andava
evitando passar mais tempo do que o necessário com Renan, o que diminuía
ainda mais as vezes em que a dava “boa tarde”. Por isso, me surpreendi
com aquilo, me surpreendi bastante. Passamos rápido da fase do “não
conversamos” para “eu tinha que falar com você”.
— Eu? O que foi? — Ela não demorou para dizer:
— Então, é sobre Renan. — Claro que era sobre ele.
Aquilo me murchou um pouco, não vou mentir. Andressa era uma
pessoa interessante, tenho certeza de que todo mundo achava aquilo. O tipo
que atraía atenção, mesmo sem se esforçar. Ela parecia saber exatamente o
que dizer, e como agir, em todas as situações. Eu tagarelava demais,
compartilhava mais do que devia e sempre acabava me arrependendo do
que eu falava. Quase sempre nessa ordem.
— Ele faz aniversário na próxima semana e minha mãe tá organizando
uma festa. É surpresa. Você gostaria de ir?
— Claro!
Não sei por que respondi aquilo tão rápido. Talvez porque eu estivesse
tentando manter meu teatro, e seria estranho se eu não fosse ao aniversário
do meu (precisava começar a dizer isso sem aspas) melhor amigo. Ou talvez
porque eu simplesmente nunca tivesse gostado de dizer não para Andy.
Ela sorriu com a minha resposta.
— Legal! Se você quiser, pode ir também, Brenda.
Ela assentiu com a cabeça.
— Tá bom. Valeu.
Então ficamos em silêncio. As três. Brenda com os braços cruzados,
Andressa com a coxinha na mão e eu engolindo uma vontade absurda de
sair correndo e retirar o que eu disse.
Que merda, eu não queria ir à festa surpresa de Renan! Ainda o estava
evitando! Mas eu me torturava. Tudo porque não conseguia ser sincera e
confessar o que eu realmente sentia.
— Então tá. — Ela suspirou, um pouco desconcertada. Não a culpo,
Brenda estava com uma carranca quilométrica. — Vejo vocês lá! Agora,
preciso mesmo subir. — Abrimos caminho e ela sorriu. — Valeu. — Passou
por nós carregando seu lanche e eu a acompanhei se afastar.
Andressa usava uma camiseta de uniforme dois números acima do seu.
Ficava tão larga que a manga chegava aos seus cotovelos. Sempre me
perguntei como aquilo ficava bem nela quando o que eu mais queria na
época era que o meu uniforme fosse dois números menores. Coisa que,
claro, ninguém deixou.
Ela virou à esquerda e sumiu de vista. Cruzei os braços, voltando a
minha atenção à minha amiga, que me encarava de volta com a testa
franzida.
— Que foi?
Estudou-me por alguns segundos, desconfiada, antes de cruzar os braços
e dizer:
— Nada. Eu acho... — fez mistério por mais alguns instantes até que
resolveu mudar de assunto. — Me escuta, Cami, sobre o que estávamos
falando antes... — Segurei a vontade de revirar os olhos. — Se tiver algum
problema, por menor que seja, nessa história toda com Renan. Promete que
me fala? Eu faço ele parar com essa gracinha dele rapidinho.
Inspirei profundamente, me irritando.
Por que tudo tinha que ser sobre Renan?
Eu não aguentava mais aquele nome, e ainda teria que o ouvir pelo resto
do dia inteiro.
— Tá tudo bem, Brenda. Juro. Eu não sei por que vocês acham que eu
me importaria com isso. Agora chega. Me deixa comer em paz?
Ela pensou por alguns instantes, prolongando o momento por alguns
torturantes segundos, até enfim ceder. Estendeu a palma da mão em minha
direção e eu sorri, compartilhando alguns biscoitos e selando nosso acordo
de paz. No fim, as coisas com Brenda se amansaram muito antes que com
Renan. Com ele, eu só consegui agir normalmente depois que passou sua
festa de aniversário. Muitas coisas mudaram a partir de então.
CAPÍTULO TRÊS. A FESTA
DE ANIVERSÁRIO.
Exatamente uma semana depois de ser convidada para a festa surpresa
de Renan, eu estava batendo na porta de sua casa, vestindo um macaquinho
rosa, carregando um saco de balões em vários tons de verdes e um presente,
que minha mãe havia comprado.
Era um livro. Renan gostava de ler, enquanto eu não lia nada. Minha
mãe fez o favor de passar no shopping, depois de seu trabalho, e comprar
um dos que as vendedoras a recomendaram, uma vez que eu não me
esforcei muito para fazer o mesmo. Não queria ir àquela festa. As coisas
com ele ainda estavam esquisitas e eu continuava o evitando, o máximo que
conseguia.
Renan, diferente de Brenda, não notou a estranheza nos meus atos. Era
desligado o suficiente para acreditar que eu tinha passado uma semana
inteira preocupada com a prova de física (novamente, eu não tinha
dificuldade nenhuma com física) e com dor de cabeça.
Nos momentos em que eu era obrigada a conviver com ele, eu fazia
meu máximo para soar normal. Ele me comprava pipoca na saída e eu
sorria ao me despedir da carona. Felizmente, estávamos em semana de
testes e havia poucas coisas em dupla para me incomodar. A única
preocupação era a maldita festa, que se aproximava rápido e que eu gostaria
de poder evitar.
Brenda não iria comigo, e eu meio que agradecia por isso. Ainda estava
confusa e, mesmo que tentasse negar para mim mesma, guardava caquinhos
de ressentimentos.
Estava melhor do que uma semana antes. Certamente, a fase do luto
havia passado, mas então eu vivenciava algo novo: revanche. Verdade seja
dita, eu ainda não estava pronta para ver os dois juntos no mesmo cômodo.
Especialmente quando eu sabia que era isso que Renan queria. Havia certo
orgulho egoísta em mim, que se alimentava do fato de que Brenda o
esnobava. Era maldoso e injusto, mas eu ainda estava ressentida o suficiente
para me alegrar com isso.
Eu precisava seguir em frente, abrir mão daquela parte de mim que
acreditava estar apaixonada por ele. Renan não sentia o mesmo e eu tinha
que me acostumar com aquilo, só que estava duelando contra a perda. Era
ruim perder todo o sentimento. Como eu já disse antes, eu gostava de estar
apaixonada, e ter que fingir não sentir nada quando eu sentia tudo era
simplesmente desesperador para uma adolescente com tantos hormônios
exacerbados.
Bom, contrariando todo o meu amor próprio, eu fui à festa. Quem abriu
a porta para mim foi tia Diana. Já havia alguns adolescentes jogados pelos
cantos quando cheguei, organizando os últimos detalhes. Renan retornaria
para o apartamento com Andressa e seu pai em alguns minutos. Os dois o
enrolariam no shopping até o horário combinado (clássico de festa surpresa)
e, quando ele chegasse, daria de cara com uma mesa cheia de cupcakes, um
bolo do tamanho da sua cara e meia dúzia de amigos com celulares
apontados para o seu rosto. Eu não queria ter que ser um deles, mas ali
estava eu.
Devia ter dito não. Tenho certeza que se eu não tivesse ido, ele não
sentiria minha falta. Um drama desconexo, ele certamente sentiria, mas era
isso que eu pensava, compulsivamente. Ciúmes. Insuficiência.
— Camilinha! — Tia Diana me cumprimentou, me abraçando. — Achei
que não vinha mais!
— Desculpa, tia. Meu pai atrasou pra chegar em casa. — Outra vez.
Aquela última frase eu não havia dito, só pensado.
Meu pai trabalhou até tarde todos os dias daquela semana, o que me
incomodava, mas enfurecia minha mãe. No dia da festa de Renan, eu estava
tão ansiosa pelo fato de estar ali que não tinha me tocado que um drama
maior que meu amor platônico espreitava as portas da minha casa. O fato de
o meu pai chegar tarde em casa foi o começo de tudo.
— Tudo bem, minha querida. Graças a Deus uma mulher! Não aguento
mais ter que conviver com tanta testosterona! Vem colocar sua bolsa no
quarto dele.
Eu não entrava no quarto de Renan desde o fatídico dia dos
cromossomos. Pensar em pisar outra vez lá me causou um revertério.
— Não precisa, tia! Eu fico... segurando! — Fui rápida demais na
minha resposta, o que a levou a me encarar com a testa franzida. Fui vítima
de seu olhar desconfiado e me desesperei.
Eu sabia que ela notava o distanciamento entre mim e Renan e se, por
acaso, comentasse aquilo com a minha mãe, as insinuações e suposições
começariam, então elas escavariam e descobririam que eu havia sido ferida,
o que significava que eu já havia gostado, o que era o mesmo que o fim do
mundo para mim, naquela ocasião. Foi por isso que eu emendei, comendo
as palavras:
— Eu trouxe balões!
Para o meu alívio, aquilo a fez rir. Ela aceitou o pacote estendido e a
mudança de cenário.
— Obrigada, minha querida! Agradeça sua mãe também. Manda um
beijo pra ela, e fala que eu tô com saudades dela aqui.
Sorri, simpática.
— Pode deixar.
Então eu a ajudei a encher os balões, grudando-os nas paredes e
finalizando os últimos ajustes até que desse o horário.
Seis e vinte e quatro o carro dos Batista entrou na garagem, Andressa
avisou sua mãe que estavam chegando e nós apagamos a luz. Lembro-me
de me esconder, com o peito batucando, ao lado de um menino da nossa
sala. Eu era a única amiga mulher de Renan naquele aniversário, e fui a que
menos fez barulho quando a porta se abriu.
— Surpresa! — O grito em uníssono o assustou. Ele se virou para dar
de cara com o grupinho escondido atrás do sofá. Havia um sorriso enorme
em seu rosto.
— Não brinca! — exclamou, com uma felicidade expansiva que fez
meu coração afundar. — Gente, que isso?
Aproximou-se de nós sem deixar de sorrir. Estava tão genuinamente
animado que eu não consegui não sorrir de volta.
— Camilinha, meu Deus! — Eu fui a primeira que ele abraçou. —
Muito, muito obrigado. Você é foda. Obrigado.
Agradeceu, como se eu tivesse feito algo além de sugerir a cor verde na
toalha de mesa e trazido alguns balões.
Ainda presa em seu abraço, senti meu rosto esquentar e minha garganta
secar, mas, mesmo assim, consegui dizer:
— Feliz aniversário!
Ele riu, afastando-se o suficiente para beijar o topo da minha cabeça.
— Obrigado!
Então cumprimentou os garotos ao meu lado, dando tapas em suas
costas e falando alto. Estava feliz, verdadeiramente feliz, e eu me senti uma
pessoa horrível por não estar retribuindo da mesma forma.
O problema com amores platônicos é que você não precisa de permissão
para sentir, muito menos de consentimento para continuar. Não existem
muitos limites para o que a cabeça pode criar, e é sempre muito mais bonito
que a realidade.
Eu tenho certeza de que nunca teria dado certo com Renan na vida real
(não só por causa do verde), mas era absolutamente incrível tudo que eu
fantasiava na minha mente. O que era injusto com a pessoa que existia fora
dela e com a amizade que construímos. Só que eu tinha dezesseis anos na
época e nada disso me era claro. Eu precisava deixar a paixão unilateral
com Renan diluir, porém, nunca o faria se eu não parasse de pensar nele, me
remoer e...
— Oi, Mila. — Andressa se aproximou de mim quando Renan abraçava
o último garoto da fila, roubando minha atenção de volta para a realidade.
— Que bom que você veio! — Sorriu, com as mãos no bolso.
Eu me esforcei ao máximo para sorrir de volta.
— Ah, oi, Andy! — Mirei seu rosto, notando algo de diferente e
franzindo a testa.
Ela havia colocado um piercing no septo. Uma argola, que ligava uma
narina a outra. Andressa viria a adquirir certo vício por piercings e brincos
e, como para todo o resto, eu estava presente quando ele se iniciou.
— Você não tinha esse piercing antes, tinha? — Resolvi conferir, me
distraindo ao analisar seu rosto.
Eu não era muito boa com fisionomias, Brenda costumava brigar
comigo por isso. Eu nunca notava quando ela cortava o cabelo, não percebi
nem mesmo quando fez sua primeira tatuagem. Mas, bom, aquele piercing
estava no meio do rosto da Andressa. Não tinha como eu não ver. Né?
— Não. — Riu, cruzando os braços. — Furei faz algumas horas. Meu
pai achou horrível, falou para eu tirar. Tem alguma opinião?
Pendi minha cabeça para o lado, deixando que meu olhar percorresse o
novo adorno em seu rosto. Ela se permitiu ser observada com uma pontada
sutil de divertimento nos olhos.
Andy usava uma blusa de banda branca e uma saia jeans escura. As
argolas gigantes se mantinham escondidas nos cachos de seus cabelos. Ela
não havia os alisado naquele dia, e eu os achei muito bonitos daquela
maneira. Era somente para eu opinar sobre o seu piercing, mas eu senti um
formigamento desconfortável se espalhar em meu estômago ao ter sua
atenção tão centrada em mim. Ela me analisava de volta, sei que o fazia, no
entanto tornava aquilo quase casual. Andy exalava autoconfiança e o
piercing (proibido na escola, mas que ela manteve, não sei como) era
apenas mais um símbolo de sua atitude.
— Posso ser sincera? — Ela arqueou uma de suas sobrancelhas.
— Depois dessa pergunta, definitivamente não.
Aquilo me fez rir. A primeira risada sincera desde o começo daquele
dia. Imitei-a e cruzei meus braços, sentindo o cheiro bom que vinha de sua
figura.
O perfume que usava era uma delícia. Deveria perguntar o nome?
— Eu achei lindo. Combina com você.
De fato, combinava. Andressa era o tipo de pessoa que poderia fazer o
que quisesse que continuaria linda, e eu tinha certeza de que ela sabia disso.
Mas a minha resposta não foi suficiente. Ela soltou um riso fraco.
— Tudo bem, Camila, pode ser sincera.
— Eu estou sendo sincera! — garanti, descruzando meus braços para
gesticular e reforçar meu ponto. — Ficou ótimo!
— Certo. — Manteve sua sobrancelha arqueada, em uma expressão
caricatamente desconfiada. Eu sorri.
— Tá. Agora você está implorando por elogios.
— É o que faço, em todas as oportunidades.
— Pois a minha cota de hoje já esgotou.
— Nossa. Bem escassa, eu achei.
— Mas verdadeira, que é tudo o que importa!
Andressa balançou a cabeça, sorrindo.
— Graças a Deus então! — exclamou. — Se doeu para colocar, imagino
que deva ser pior ainda pra tirar.
Mais uma vez, eu ri, me surpreendendo. Não conhecia aquele lado de
Andressa. Um lado descontraído, e que mantinha um diálogo comigo. Na
minha cabeça, Andy continuava sendo a filha da amiga da minha mãe, que
não tinha muita paciência para brincar de Barbie e que quase nunca saía do
quarto quando eu ia. Não imaginava que ela fosse divertida, não conhecia
essa característica dela. Na verdade, eu não conhecia nenhuma delas. Todas
as minhas expectativas eram baseadas em uma criança. Depois, na garota
que usava roupas muito estilosas para a época.
— Eu imagino. — Compadeci com a dor que nunca sentiria,
acompanhando-a em seu sorriso enquanto sentia a descontração esmaecer
conforme o diálogo chegava ao fim.
Eu tenho essa teoria de que a verdadeira intimidade é testada na
quietude. São poucas as pessoas com as quais você consegue ficar
confortável no mais completo silêncio. Naquele ponto, Andressa ainda não
era uma delas. Sua atenção me deixava inquieta.
Sem ter mais o que falar, me senti desconfortável outra vez, encarando o
ambiente ao meu redor e me lembrando de onde estava e porque me sentia
tão pesada sobre aquilo. Andressa me distraiu por alguns segundos, mas eu
despenquei na realidade com força.
Enquanto conversávamos sobre seu mais recente piercing, todos haviam
se dispersado. Renan havia entrado com os amigos, tio Batista e tia Diana
estavam conversando na cozinha e eu fiquei com ela e a mesa do bolo.
— Mila? — Como se notasse que eu havia me perdido para meu drama
mais uma vez, ela roubou novamente minha atenção. Encarei-a levemente
aérea. Ela continuou: — Vou pegar algo pra comer. Tô morrendo de fome.
Você quer?
Toda aquela aproximação amigável me deixou intrigada. Você sabe, já
tínhamos tido dezenas de oportunidades de sermos agradáveis uma com a
outra, mas, por três meses inteiros, foi como se preparássemos terreno.
Havia uma barreira entre nós que demoramos para atravessar. O interesse
repentino de Andressa na minha pessoa era novo, mas eu imaginava que
pudesse gostar. Ainda mais quando isso significava uma desculpa para não
ter que ficar trocando sorrisos e carícias fraternais com Renan. Voltei meu
olhar para ela.
— Quero.
Ela sorriu.
— Beleza. Volto em um instante.
Então sumiu em direção à cozinha, retornando com dois pratos cheios
de salgadinhos e estendendo um em minha direção.
Enquanto ela buscava comida para nós duas, eu havia tomado a
liberdade de me sentar no sofá. Isolada, antissocial e esquisita. O coração
partido havia me transformado em uma uva passa.
— Obrigada! — agradeci, e ela sorriu cristalino em resposta.
Foi aí que eu notei que quando ela sorria daquela maneira, seus olhos
diminuíam de tamanho, virando duas meias-luas. Eu me perguntava se era
assim desde criança. Ia pesquisar nos álbuns quando chegasse em casa.
— Então — começou. — Minha mãe pediu para te avisar que os
convidados estão lá no quarto com o Renan, e que eles estão te chamando
— transmitiu a mensagem de maneira neutra, enquanto apoiava o próprio
prato no seu colo, sentando-se ao meu lado. O cheiro de seu perfume me
alcançou novamente. — Eles estão jogando, algo assim.
Coloquei uma bolinha de queijo na boca sem responder nada.
Ah.
Tudo que eu menos queria naquela noite era ser obrigada a assistir
Renan e seus outros seis amigos jogarem na televisão minúscula que havia
em seu quarto.
Renan. Seis garotos que eu não conversava muito. O mesmo quarto no
qual ele quebrou meu coração. Um jogo de vídeo game que eu não me
importava. Não, sem chance, aquele era o pior cenário que eu poderia
imaginar. Já bastava estar ali, eu não precisava me punir tanto. Encarei
Andressa e ela me parecia muito mais segura que todo o resto. Sim, eu a
estava usando para evitar Renan, mas não era só isso. Ela era
estranhamente... agradável.
— Você vai fazer o quê? — perguntei, surpreendendo-a. Ela deu de
ombros.
— Hm. Nada.
— Quer assistir alguma coisa? — Apontei para a televisão desligada à
nossa frente. — Não tô muito a fim de jogar, não.
Minha sugestão a fez sorrir um daqueles sorrisos que esmagavam seus
olhos.
Ficou mais do que claro que ela gostou da ideia quando estendeu seu
prato na minha direção.
— Segura aqui. Vou pegar o controle. — Debruçou-se na direção do
hack e resgatou-o de debaixo de algumas revistas. Retornando ao sofá,
trocou-o pelos seus salgados. — É todo seu. Me surpreenda.
Eu certamente não a surpreendi ao escolher Capitão América: Guerra
Civil, mas eu gostava da franquia mais do que poderia ser considerado
saudável. Na minha cabeça, ela também gostaria (todos os meus amigos,
incluindo Renan, amavam), só que eu vim a descobrir mais tarde que
Andressa odiava filmes de super-heróis. O que não a impediu de passar
longas duas horas e vinte e oito minutos sentada ao meu lado, acabando
com todas as coxinhas do seu prato só para pedir as minhas e esbarrar no
meu ombro sem querer todas as vezes.
Descobri também, bem depois, que de todos os super-heróis que ela não
gostava, Capitão América era o mais odiado. O que não a impediu de fazer
piadinhas durante o filme e me perguntar coisas bobas como “quem é
essa?”, quando era A Scarlett Johansson na tela.
Nos primeiros minutos, eu me peguei acanhada. Andressa dobrou as
pernas para cima do estofado e deitou a cabeça no encosto. Não consegui
fazer o mesmo, estava travada com sua presença nada convencional e com
tudo que vinha me consumindo aqueles dias. Contudo, na primeira vez que
ela fez um comentário engraçado sobre o Homem de Ferro, eu me permiti
respirar, aproveitando um momento que eu nunca imaginei que vivenciaria,
mas que se mostrava profundamente bem-vindo.
O sofá da casa dos Batista era grande e fofo, mas eu sabia que não era
apenas isso que me deixava relaxada. Havia um senso de conforto na
presença de Andressa, era leve.
Eu a perguntei o que tinha achado do filme quando acabou, ela mentiu
dizendo que havia gostado e eu me senti orgulhosa com aquilo, como se
agradar ela fosse uma vitória particular.
No fim, como você pôde perceber, a festa de aniversário de Renan foi
bem mais interessante do que eu poderia esperar.
Quando chegou a hora dos parabéns e ele me pediu justificativas do
porquê eu não tinha aparecido para jogar, Andressa o deu um empurrão
fraco, respondendo por mim.
— Porque eu sou muito mais legal que vocês.
E eu sorri, Renan sorriu de volta e, por alguns instantes, eu consegui
apreciar o seu sorriso sem me sentir rancorosa ou envenenada. Claro que
quando ele me encarou por detrás da mesa do bolo em meio ao coro de
parabéns, eu senti meu peito tamborilar e morrer, mas só por alguns
instantes. Não me arrependia de ter ido, como imaginei que fosse o fazer.
Na verdade, a festa de Renan havia sido... o começo de algo novo.
CAPÍTULO QUATRO. O
COMEÇO DE ALGO NOVO.
Duas semanas, muitos estudos e testes de física se passaram até que
algo relevante voltasse a acontecer. E com algo relevante entenda:
churrasco de domingo em família.
Meu pai tinha essa mania, ele fazia questão que os almoços de domingo
fossem “especiais”. Teve um domingo, algumas semanas antes, que ele nos
levou para um parque, estendeu uma canga e disse que faríamos um
piquenique. De almoço. Ele organizou tudo e levou três marmitas cheias de
batata para acompanhar os pãezinhos com presunto e queijo que havia
preparado. Gabriel reclamou dos mosquitos, eu me entretive com a
experiência, mas minha mãe estava em uma dieta restritiva, então se negou
a comer qualquer um dos quitutes que ele colocou na sua frente. Lembro
claramente da fala esquisita que um direcionou ao outro: “É só um dia,
Regina”, meu pai disse. “Não é só um dia, Miguel, são vários deles”.
Spoiler: eles não estavam falando sobre as batatas, estavam falando
sobre uma viagem de trabalho que meu pai faria na segunda-feira, dia 5.
Também conhecida como: um dia depois do churrasco de domingo em
família, o qual merece ser contado aqui.
Meu pai ia viajar, ficaria fora um mês inteiro. Era a primeira vez que ele
fazia isso. As coisas iam bem no seu trabalho e ele estava em uma disputa
por um cargo importante. Clássico, mas não menos impactante. Era mais do
que óbvio que minha mãe não gostou da novidade.
Vamos falar um pouquinho sobre a minha mãe. Regina era
fisioterapeuta. Formou-se na faculdade com vinte e um anos de idade, mas
demorou a conseguir exercer sua profissão. Meus pais se conheceram
durante a graduação; estudavam no mesmo campus, em cursos diferentes.
Meu pai fazia administração, usava óculos e era insistente. Regina não
estava atrás de namorados, ou de casamentos. Na verdade, nunca foi o tipo
de mulher que sonhava com nenhuma daquelas coisas. A única coisa que
sempre afirmou querer fora filhos. Bom, cuidado com o que você deseja,
porque ela não soube usar a lei da atração com parcimônia. Eu vim cedo
demais.
Não, minha mãe nunca disse isso, só que eu sabia que era a verdade. Eu
atrasei sua vida. Engravidaram por acidente, no primeiro ano de formada da
minha mãe. Aos vinte e dois anos, ela tinha planos de abrir um consultório
com uma amiga, mas acabou montando um quarto de bebê. Meu pai vinha
de uma família com dinheiro, então, isso não foi problema. O bebê não era
problema. Apesar do susto, todos aceitaram bem a nova realidade. Tiveram
que sacrificar pouco, no final. Quem mais se sacrificou foi minha mãe
(outro clássico, eu sei).
Ela optou por ficar esse primeiro ano comigo, e o segundo e o terceiro
também. Foi só quando eu completei quatro anos que ela se sentiu segura
para me colocar em uma escolinha (ela era contra creches, achava que iam
me deixar cair, ou que eu ia pegar pneumonia, sei lá). Foi só então que ela
conseguiu tentar, pela primeira vez, iniciar sua vida profissional. Começou
atendendo em casa, e conseguiu uma clientela fiel nos primeiros meses.
Meu pai havia acabado de ingressar na empresa na qual conheceu o pai de
Renan (aquela mesma que faliu), e as coisas pareciam bem... até que
engravidaram de novo e minha mãe foi obrigada a retroceder.
As coisas sempre eram mais difíceis para as mães que trabalhavam fora.
Eles já haviam se casado na época, e o dinheiro do meu pai conseguia nos
manter. Ela não precisava trabalhar na rua, não pelo dinheiro. E meu pai
repetia isso insistentemente como se fosse a acalmar e não a fazer se sentir
ainda mais impotente. O problema era que minha mãe gostava de trabalhar
fora e só conseguiu retornar à sua profissão quando, adivinhe, meu irmão
foi para a escola! (Ela nunca superou o lance das creches). Somavam-se
bons anos desde então e, no presente, ela finalmente havia conseguido um
emprego em uma clínica de reabilitação. Não foi fácil encontrá-lo, não era
simples entrar no mercado de trabalho sendo mãe e tendo mais de trinta
anos. Mas ela conseguiu, depois de muitos nãos, e estava feliz, até onde eu
sabia.
Certo, você deve estar se perguntando: para que tanto contexto? Eu
quero saber de Andy! Acredite, eu também gosto de saber e falar sobre ela,
todos os instantes. Mas coisas ruins também aconteceram e tudo isso é
relevante. As coisas foram transcorrendo na minha vida como uma fileira
de dominó sendo derrubada. Quem deu o primeiro peteleco, infelizmente,
foi o meu pai.
O maior problema com a ausência dele por um mês inteiro era o
seguinte: ele nos levava para escola nas segundas e quartas, porque, nesses
dias, a clínica abria mais cedo e minha mãe não conseguia nos dar carona.
Só dois dias, era tudo que ela pedia, em troca de todos os restantes. Quando
meu pai a tirou isso, ela se sentiu traída.
Sua chefe já havia aberto uma exceção para o seu caso. Ela cumpria
menos horas que o restante, não tinha como simplesmente decidir que
passaria a descumprir seu horário porque seu marido considerava o seu
trabalho mais importante que o dela.
Claro, ela podia pedir ajuda para a tia Diana. E, pelo amor de Deus,
poderíamos pegar um ônibus! Mas a questão não era essa. A questão era
que, ao aceitar aquela viagem, ele deixava mais do que claro que os anos se
passaram e mesmo assim ele não se importava com o seu trabalho. Ele
ganhava mais que ela e era ele quem sustentava a casa. O serviço dela...
bom, ela poderia dar um jeito. Se o perdesse, não faria diferença na
contabilidade.
Regina estava ferida porque ele a desrespeitara. Com suas palavras e
também com suas ações. E não havia almoço de domingo em família que
pudesse consertar o rancor acumulado por tantos anos. Nem mesmo um no
qual também havia a família de Andy.
Pois bem, fique feliz, chegamos nesse ponto. Lembra que nossos pais
eram amigos? Lembra que a tia Diana disse para eu falar para a minha mãe
que estava com saudades? A rotina os havia afastado do convívio diário,
mas meu pai ia viajar, e ele os convidou para o nosso churrasco de domingo
para se despedir (e se vangloriar, um pouquinho).
Ele alugou uma churrasqueira no clube no qual éramos sócios (mas
nunca frequentávamos, para não ter que interagir com ninguém), comprou
as carnes e fez os acompanhamentos. Minha mãe não o ajudou com nada,
apenas dirigiu e, na época, não entendi o porquê de nada daquilo. Eu me
incomodei com a distância e frieza entre os dois, mas, sinceramente? Estava
ocupada demais surtando com o fato de que havia um Renan tirando a
camisa na minha frente para de fato me preocupar.
— Você não acha? — perguntou ele, retirando-me do meu transe à
força.
Eu não fazia ideia do que eu precisava dar minha opinião, mas assenti.
Não se engane, Renan ainda era um completo magricela na época. Não
havia nada de estupendo em seu abdômen. Nada além do fato de que eu
nunca tinha visto um homem tirar a camisa na minha frente (além do meu
irmão) antes. E, bom, mesmo sem gominhos (o que eu nunca gostei tanto
assim), ele era bonito. A maldita genética da família Batista, que fazia
questão de esculpir filhos perfeitos sem que ninguém tivesse pedido!
— Acha mesmo? — insistiu, o que fez eu me remexer no balanço.
Ai, porra, com o que eu havia concordado?
Estávamos em uma fase boa, eu e ele. Várias semanas depois do
ocorrido, nunca mais havíamos tocado no assunto Brenda. E, depois de
sermos obrigados a conviver tantas vezes, eu meio que me apaixonei de
novo, esquecendo-me do coração partido e de todo o resto.
Consertei a minha decepção com a boa e velha ilusão, o que era
catastrófico, mas confortável. Eu achava que gostava dele outra vez e o
havia perdoado pelo seu “deslize”. Achava que ainda podíamos dar certo.
Pois é, retornei à estaca zero. Aquela na qual eu nutria uma paixão
platônica, jamais correspondida, e secreta, pelo meu único amigo homem.
Porém, as coisas estavam prestes a mudar.
— Acho — foi o que respondi, e ele suspirou, assentindo em
concordância.
— Sinceramente, Camilinha, eu também.
Nunca soube com o que concordamos naquele instante, tudo que sei é
que ele tinha uma cicatriz na barriga, da vez em que teve apendicite, e que
era extremamente difícil encarar seu rosto quando ele estava seminu na
minha frente.
Tudo que Renan vestia era um short frouxo. Afinal, estávamos em um
clube. Com piscina, e eu em muito contato com os meus hormônios.
— Vamos entrar na água? — Superou o assunto anterior com rapidez,
para a minha sorte, jogando sua camisa branca por cima dos ombros e me
encarando.
Ele estava de pé, parado na minha frente, pronto e animado para entrar
na piscina. Sem noção nenhuma do efeito que causava em mim. Meu irmão
já estava lá desde que chegamos, e meus pais estavam juntos com os de
Renan na frente da churrasqueira. Andy estava sentada em uma cadeira de
plástico próxima a eles, mexendo no celular. Eu e meu amigo estávamos
mais distantes, no parquinho que havia na lateral. Conversávamos
tranquilamente nos balanços, até que ele resolvesse que estava muito calor,
tirasse a camisa, e me fizesse perder todas as minhas faculdades mentais.
— Depois — retruquei. — Tô com fome. — O que era verdade, mas
também uma desculpa. Sentia meu rosto quente, e não era só por causa do
sol.
— Vamos lá roubar carne então — sugeriu, com um sorriso, afastando-
se na direção da churrasqueira e não me dando escolha alguma além de o
seguir.
Renan era alto. Quando éramos crianças, ele era o mais baixo de nós,
mas a puberdade já o havia socado naquele ponto e ele tinha pelo nas
pernas, a altura de uma porta e as costas bonitas. Eu sempre gostei de
costas, essa é uma confissão esquisita sobre mim, e as dele me distraíram
por um bom tempo. Fui as seguindo até que ele se aproximasse de
Andressa.
Ela não havia tirado o piercing do nariz, caso você esteja se
perguntando, e estava tão vestida quanto eu, com uma camiseta preta e short
jeans. A única diferença é que a minha blusa era rosa, e eu não parecia tão
desconectada da realidade.
Andressa estava concentrada em seus dedos, digitando uma mensagem
de texto apressada. Eu assisti de camarote quando seu irmão se aproximou
sorrateiro. Tinha um plano infantil em mente, algo que sempre aflorava
quando estava perto dela.
— Ei. Sai dessa porcaria, sua viciada! — gritou, puxando de súbito, o
celular de suas mãos. Ela reagiu de imediato.
— Para, Renan! — exclamou. — Ei! Me devolve. É sério. — Tentou
impedir, mas ele não a ouviu, sequestrando seu celular às gargalhadas e o
carregando junto consigo enquanto se aproximava de seu pai.
Andressa bufou, aceitando a derrota e largando seus braços sobre suas
coxas. Eu fui abandonada ao seu lado, ouvindo-a confessar ao vento:
— Caralho. Ele é um idiota.
Havia uma travessa cheia de carnes apoiada na mesa à sua frente, o que
me foi tentador. Precisava me afastar um pouco de Renan para conseguir
respirar, então me sentei ao seu lado, roubando uma linguiça enquanto
dizia:
— É mesmo.
Eu estava rindo da situação, porém, ela me encarou com uma irritação
tão genuína que eu fechei a cara imediatamente.
Andressa sempre foi muito expressiva. Sua testa marcava quando ela
estava confusa e seus olhos entregavam coisas que ela não queria dizer.
Eu notei que ela estava diferente naquele dia, afastada. Desde que
chegou, manteve-se jogada na cadeira e grudada em seu celular. Eu
imaginei que, depois de termos sido agradáveis uma com a outra na festa de
Renan, poderíamos interagir mais. Na verdade, estava contado com isso.
Mas parecia que eu havia rebobinado tudo naquele dia. Minha paixão por
Renan e minha falta de interação com sua irmã.
Tudo na minha vida tinha que ser platônico? Sério? Até mesmo as
amizades?
Depois de me encarar verdadeiramente incomodada por ter tido seu
celular roubado, ela inspirou profundamente, fechando os olhos por alguns
instantes e cruzando as pernas por cima da cadeira. Fitei-a confusa.
— Andy, o que foi? — arrisquei, sentindo-me verdadeiramente nervosa
por estar forçando contato com ela. Nas outras vezes, foi ela quem iniciou o
assunto, e em momentos nos quais eu estava bem mais receptiva. Só que ela
parecia preocupada, e eu nunca a havia visto assim antes. Aquilo me
intrigou. — Tá tudo bem?
Minha pergunta a pegou de surpresa, deu para notar. Ela abriu os olhos,
voltando-os em minha direção e soltando todo o ar de uma vez.
— Tá. Não é nada. — Remexeu-se. — Desculpa, é que aconteceu uma
coisa. Com uma amiga.
— Sua amiga tá bem?
— Tá. Mas eu acho que ela me odeia.
Franzi minha testa.
— Por quê?
Andy soltou um sorrisinho.
— É... bom — parou de falar, balançando a cabeça. — É complicado.
Complicado.
Confabulei milhares de coisas que uma amiga poderia fazer para que
você a odiasse. Certamente, beijar seu amor platônico não era uma delas,
porque eu nunca odiei Brenda.
— Você tava conversando com ela, né? — deduzi. Ela assentiu.
— Tava.
— Quer que eu pegue o celular de volta pra você? Eu com certeza sou
capaz.
Aquilo a fez rir.
— É, tenho certeza que você conseguiria, mas acho melhor não. — Deu
de ombros. — Talvez seja um sinal.
— De quê?
— De que é melhor eu deixar ela me odiar.
Uau.
— Nossa! — exclamei. — Eu tô realmente curiosa. O que você fez de
tão terrível, Andressa Batista?
Aproximei-me, sentando-me sobre meus joelhos. Ela riu outra vez e eu
me permiti a acompanhar. Parecia ligeiramente menos tensa, mais próxima
a Andy que me recebeu no dia da festa. Aquilo me motivou a continuar:
— Se você quiser me contar, claro.
Ela jogou as costas no encosto, pendendo de leve sua cabeça e me
encarando. Andressa tinha uma mania incômoda de mirar. Quando ela
falava comigo, olhava nos meus olhos, e fazia com que todo o resto
parecesse no mudo por alguns instantes. Ela era a distração perfeita para
todas as vezes que eu queria fugir de Renan. Naquele instante, eu sequer
lembrava que ele tinha costas!
— Estou aqui.
Fiquei confusa.
— Como assim? — Roubei mais uma carne, entretida com sua história.
— Você tinha combinado de sair com ela?
— Não.
Certo, eu estava muito confusa. Mas parecia que eu não devia estar (??).
Andressa me olhava como se estivesse sendo clara, como se fôssemos
cúmplices. Só que ela escrevia em códigos.
— Qual o problema de estar aqui então?
Ela não me respondeu, apenas desviou o olhar, com um sorriso
melancólico no rosto.
Ficou mais do que claro que ela não queria falar sobre aquele assunto,
então não a pressionei mais. Porém, com aquela escolha altruísta,
entrávamos de novo naquela porcaria de situação. O silêncio constrangedor
de duas pessoas sem intimidade. Aquele que eu não sabia manter.
Não sabia se havia ultrapassado alguma linha com todas aquelas
perguntas, tampouco se havia estragado tudo. Ter um dia de atenção
exclusiva de Andressa foi algo que me agradou. Conversar com ela era
divertido, havia um senso de desconhecido atrelado à sua personalidade,
algo como uma aventura. Então eu precisava testar, para ver se havia
estragado tudo, porque notei naquele instante que aquela possibilidade me
incomodava.
— Você não vai entrar na piscina? — perguntei, como se nada tivesse
acontecido. Ela voltou a me olhar, dando de ombros.
— Sinceramente, Mila? Eu nem trouxe biquíni.
— Podemos ficar na borda então — insisti. — Eu também não tô muito
a fim de molhar meu cabelo. Lavei ontem.
Andressa inspirou profundamente, ponderando enquanto desviava seus
olhos para seus pais e irmão mais à frente. Fiz o mesmo. Renan conversava
com o braço ao redor do ombro de sua mãe, enquanto a minha cortava uma
linguiça. Em algum ponto, meu pai tirou mais algumas da grelha,
aproximando-se para jogá-las na tábua que ela usava. Ao se aproximar, a
deu um beijo na cabeça, sussurrando algo em seu ouvido. Ela sorriu,
cabisbaixa. Um sorriso que combinava com o de Andy. Não era um sorriso
comum, de um dia bom. No entanto, ela não o afastou, o que era positivo.
Era uma trégua, para o que quer que estivesse havendo.
Quando Andressa voltou a falar, as coisas pareciam certas outra vez.
— Pode ser então.
E foi assim que o churrasco de domingo em família terminou. Comigo
sentada na borda da piscina, Andressa do meu lado e meu irmão e Renan
nadando na frente da gente. Engraçado que quando ela estava do meu lado,
ter um garoto seminu nadando crawl não me chamava tanto a atenção. Tudo
que eu pensava era no que ela poderia ter feito para aquela amiga odiar tê-la
ali.
CAPÍTULO CINCO. QUANDO
MEU PAI VOLTOU DE
VIAGEM.
Ter passado um dia agradável na piscina com Renan e Andressa foi bom
por dois motivos: 1) foi um dia agradável com Renan e Andressa na
piscina e 2) deixou minha mãe feliz.
Contei um pouco sobre ela, mas aqui vai uma coisa igualmente
importante: minha mãe adorava a Andressa. Sim, ela gostava de Renan.
Inclusive, gostava dele comigo. Mas ela ADORAVA a Andressa. E ficou
especialmente feliz por nos ver juntas, conversando e “criando laços”, como
ela tão poeticamente eternizou naquele dia. Ter presenciado a nossa
"aproximação" foi quase uma distração perfeita para o fato de que meu pai
tinha viajado algumas horas antes. Por isso, eu permiti que ela tirasse
conclusões e achasse que éramos melhores amigas então, quando eu nem
sabia o que éramos. “Conhecidas de infância que conversavam
descontraidamente quando tinham oportunidade” era um bom palpite.
— Ela é legal, não é? Eu sempre disse! Vocês eram tão amigas...
Não, não éramos. Brincávamos juntas por conveniência e porque nossos
pais obrigavam, mas Andressa nunca gostou das mesmas coisas que eu. Foi
fácil perder o contato uma vez, e parecia estar se tornando fácil de novo.
Naquele dia do churrasco, Andy demorou um tempo, mas se recuperou
da situação com a amiga, voltando a fazer piadas aleatórias sobre a forma
como seu irmão era ignorado pelo meu. Gabriel tinha onze anos de idade, e
uma falta de paciência senil. O pobre do Renan era animado demais para
ele e a interação entre os dois era engraçada de se acompanhar. Estávamos
nos divertindo bastante, com os pés dentro d’água e os joelhos quase se
tocando.
Andy se sentou com as costas curvadas, mas parecia leve como uma
pluma. Contou sobre seu amor pela natação e se lembrou (para a minha
surpresa), que havíamos feito aulas juntas. Pois é, aparentemente, ela não
tinha se esquecido por completo da minha presença em outra fase da sua
vida. Aparentemente, eu não passava tão despercebido assim e aquilo
amansou meu ego, não tenho como negar. Aquilo me fez sorrir. E quando
eu sorria, ela sorria mais. E quanto ela sorria mais, eu também queria o
fazer. Era um ciclo. Um ciclo bobo... inédito, mas, aparentemente,
inevitável.
Andressa fazia jus à fama que tinha. Ela era cativante, e eu entendia
perfeitamente bem porque minha mãe a adorava. Como alguém poderia
sentir o contrário? Que amiga era aquela que a odiava? Eu não conseguia
entender, ela me parecia a pessoa mais fácil de gostar que eu conhecia.
Em resumo, conversamos bastante naquele dia. Sobre natação, escola e
o fato do meu irmão estar crescendo rápido. Ela pegou meu número e me
mandou um “oi” para que eu pudesse salvar o seu. Depois disso, no entanto,
ninguém falou mais nada por um bom tempo. Imergimos em nossas
próprias realidades e preocupações.
O período que meu pai passou fora foi mais tranquilo do que eu
imaginei. Minha mãe não se estressava tanto e Gabriel se mostrou
ineditamente prestativo. Passou a lavar a louça do jantar (antes,
responsabilidade do meu pai) e me cobrava para que eu arrumasse o quarto
que dividíamos. Era como se ele tivesse se sentido o homem da casa. Era
irritante, mas, tirando isso, as coisas correram bem.
Nas segundas e nas quartas (os dias do conflito), tia Diana levava e
buscava a mim, Renan e Gabriel na escola. Acho que não mencionei antes,
mas Andressa não nos acompanhou mais a partir de junho. Estava fazendo
aulas à tarde, em um cursinho disponibilizado na própria escola, para passar
na faculdade.
É, pois é, havia isso nas suas costas. Ela estava no último ano do ensino
médio, e nos encaminhávamos para as férias de meio de ano. O que
significava que ela começaria a estudar com mais esmero (e pressão) a
partir de então, e que não me deu mais tanta abertura por um tempo.
Ficamos afastadas até que julho chegasse.
Dia 5 de julho as coisas na minha casa mudaram. Meu pai voltou de
viagem.
Depois de um mês fora, trouxe uma mala com presentes e um sorriso no
rosto. Estava confiante de que ia conseguir a promoção, a viagem foi um
sucesso, ele estava corado, alegre e renovado. Trouxe com ele um monte de
histórias divertidas, que retirou risadas sinceras minhas e de Gabriel. A
única coisa que se esqueceu de trazer de volta foi a sua boa relação com a
minha mãe.
Naquele mesmo dia, eles brigaram de madrugada. Eu ouvi, e acho que
Gabriel também, apesar de fingir estar dormindo.
A primeira briga foi no dia de sua volta, a outra, no dia seguinte.
Discutiam sempre de madrugada, quando achavam que já estávamos
dormindo e não presenciaríamos o fato de que eles não conseguiam mais
chegar a um consenso. Nós ouvíamos tudo, no entanto e, se não o
fizéssemos, certamente perceberíamos seus comportamentos estranhos
durante o dia. Minha mãe estava estressada e brigava conosco por qualquer
coisa. Meu pai se mantinha mudo. Ia trabalhar e, quando voltava, perdia a
língua, apenas nos dando um beijo de boa noite. Nenhum em minha mãe.
Notávamos o distanciamento, e aquilo estava me corroendo. Claro que
Brenda percebeu.
— Cami, eu odeio quando você esconde as coisas de mim. — Um dia,
quando estávamos lanchando juntas, ela disse, e eu me retraí. — Mas tudo
bem, tome seu tempo. Eu estou aqui para quando precisar.
Fingi que não precisei por um bom tempo. Não queria falar sobre
aquilo, nem mesmo com a minha melhor amiga. Queria esconder e esperar
passar. Mas o problema é que não passava nunca! E foi piorando, até que
chegássemos na fatídica sexta-feira e eles se despedissem com um beijo
para ir para o trabalho.
Sim, é isso mesmo que você leu. Um beijo para ir para o trabalho,
depois de quase uma semana se alfinetando. Foi naquele dia que eu
consegui tomar um fôlego para continuar.
Nem tinha percebido, mas o céu parecia mais cinza e o vento mais
quente. Tudo isso foi consertado em instantes por aquela cena inesperada.
Um beijo. Um sorriso. Eles haviam feito as pazes. Tinha passado. As coisas
iam melhorar!
Eu quis acreditar nisso, e talvez seja por isso que a ideia me tenha
descido com tanta facilidade. Foi como se um peso tivesse sido tirado das
minhas costas, só que não completamente. Sabe quando você carrega uma
mochila pesada e alguém a levanta para te ajudar a levar? Foi mais ou
menos isso que aconteceu. O beijo levantou a mochila, mas ela ainda estava
lá, pronta para me nocautear no pulmão a qualquer instante. E eu sempre
soube, lá no fundo, que uma hora ou outra, ela o faria.
— Camila, aconteceu uma coisa muito estranha agora há pouco. — No
mesmo dia do beijo de café da manhã, Brenda entrou falando no banheiro.
Eu estava lavando as minhas mãos, ainda pensando em como meus pais
tinham feito as pazes e tudo voltaria a ser perfeito, quando ela surgiu, de
súbito.
Nossas salas ficavam lado a lado e, de vez em quando, ela monitorava
os momentos em que eu pedia para ir ao banheiro para ir junto. Matávamos,
pelo menos uma vez na semana, um pouco da aula conversando em frente
ao espelho; até que alguma monitora nos mandasse de voltar para a sala.
Geralmente, Brenda fazia isso quando queria fofocar sobre alguma coisa.
Naquele dia, ela achou um assunto urgente para me interceptar.
— O quê? — quis saber, curiosa, enxugando minhas mãos com o papel.
Para a minha felicidade, ela nunca foi de fazer mistério.
— Então, tem uma galera combinando de se encontrar hoje à noite na
casa do Rafael — fez uma pausa antes de continuar, estalando a língua e se
justificando: — Eu não te convidei porque eu sei que sua mãe não deixa e tá
tudo bem, isso não importa. Eu te amo independente de resenhas idiotas.
Você é mais que tudo isso.
— Certo — interrompi-a com um sorriso no rosto.
Brenda, no começo da nossa amizade, tentou me levar para “o mau
caminho”, como minha mãe tão carinhosamente apelidou a sua vida. Tentou
me enturmar, me convidando para as matinês que ia e para as festas do
pijama que frequentava. E bom, eu queria ir, como toda boa adolescente,
mas Regina nunca deixou.
Lembra que eu disse que ela gostava de Andressa? Era meio que o
contrário com Brenda. Minha mãe não era a sua maior fã desde que ela
recebeu uma advertência da escola por ter ido para a aula bêbada. O que
minha mãe não sabia, no entanto, era que quem a havia dado aquela bebida
(e depois a levado para a escola) havia sido seu pai, em uma tentativa nada
honrável de criar laços com a filha que só fazia questão de ver uma vez a
cada dois meses.
Bom, independente de seus motivos, Brenda tinha uma liberdade
absurda. Uma a qual nunca tive na minha vida. Minha mãe não gostava de
festas com bebidas, nem me permitia ir, por mais que eu pedisse. Minha
melhor amiga sabia disso e, depois de um tempo, para que eu não me
magoasse, ou criasse problemas, parou de me chamar. Estranhamente,
aquilo funcionou. Eu me sentia menos idiota não sabendo.
Até aí, nada novo. Por isso, cruzei os braços.
— E o que tem de estranho nisso? — Ela explicou sem demora:
— Então, quando eu confirmei no grupo que eu ia, Andressa Batista me
chamou no privado para perguntar se você ia também.
Deixei meu queixo cair.
— Quê?
— Pois é! — Gesticulou. — Essa foi a minha exata reação!
Franzi minha testa, sentindo um nó estranho no estômago.
— Ela já perguntou de mim antes?
— Ela nunca perguntou de ninguém antes, Cami. — Deu de ombros. —
Pelo menos, não para mim.
Certo, aquilo era mesmo estranho. Fazia um tempo que eu não
conversava com Andressa. Como eu disse, ela estava estudando, e eu em
meio a uma erupção familiar. Então, nem mesmo quando eu estava disposta
a ir para a sua casa, eu a via. Era no mínimo esquisito que ela perguntasse
de mim. Encarei Brenda por alguns instantes antes de perguntar:
— E o que você respondeu?
— Como assim o que eu respondi? Que não, claro. Mas fica tranquila
que eu não falei pra Andressa do lance da sua mãe nem nada do tipo.
Uma luz se acendeu na minha cabeça. Minha mãe. Andressa. Na mesma
frase. Na mesma situação.
— Andy vai então? — perguntei, deslocadamente. Brenda não estava
acompanhando meu raciocínio.
— Aonde?
— Nessa resenha.
— Vai.
Cruzei meus braços, a encarando. Depois do beijo de bom dia entre
meus pais, o mundo ganhou saturação e eu me sentia capaz de tudo.
— E você acha que vai ser boa?
— Eu acho que sim. A galera é legal e o apartamento dele é enorme.
Tem um visual lindo e... — Parou de falar, desconfiada. — Por quê?
Sorri.
— Eu tive uma ideia.
Brenda percebeu a malícia em meu sorriso, então sorriu de volta,
mesmo sem entender.
— Que ideia, Camila Ferraz?
— Vou tentar uma coisa com a minha mãe. Te aviso se der certo.
CAPÍTULO SEIS.
ABENÇOADA SEJA
ANDRESSA BATISTA.
Deu certo!
Nada surpreendentemente, eu usei Andressa (de novo) para benefício
próprio. Mas, pelo menos, não tinha nenhuma relação com Renan daquela
vez (orgulhe-se de mim). Tinha a ver com a minha vontade repentina de ser
uma delinquente e quebrar as regras. Depois que Brenda me contou, eu
decidi que queria ir naquela resenha, e aquela era a oportunidade perfeita.
Sempre me perguntei o que me esperava naquele tipo de ambiente, me
sentindo "atrasada" por não o frequentar. Tinha a ideia utópica de que era
ali que as coisas realmente aconteciam, e de que eu estava perdendo todas
elas porque minha mãe não me deixava ir. Em sua defesa (e eu vou parar de
defendê-la no futuro), eu tinha dezesseis anos. Era menor de idade e,
tecnicamente, o que faziam nessas resenhas (ingerir bebida alcoólica) era
ilegal para a minha idade. Mas, bom, você sabia que na França é ilegal
batizar um porco com o nome de Napoleão? Isso me leva a perguntar: o que
realmente são as leis?
Sim, essa era a minha desculpa para querer frequentar um lugar com
práticas ilegais. Os porcos franceses.
— Mãe, posso te pedir uma coisa? — foi como eu comecei, assim que
cheguei da escola, com o plano em mente e o coração acelerado.
Então pedi. Pedi pela décima vez para sair em uma noite de sexta-feira
para a casa de um (ela não sabia disso) desconhecido. O único detalhe
diferente daquela vez era que eu mencionei Andy. Aquele era o ponto
chave. Foi aquilo que me salvou. Abençoada seja Andressa Batista.
Regina estava mais compreensiva naquele dia. O beijo de bom-dia
também a causou certo efeito e a sua garota favorita fez o resto do trabalho.
— E você vai com a Andressa? — conferiu, com a sobrancelha
arqueada, depois que eu a pedi.
— Sim! — Mentira número um. Apesar de aparentemente querer (e
pensar naquilo me deixava confusa), Andressa não sabia que eu ia. Ainda.
— E vocês vão como?
Merda.
— De uber! — Mentira número dois. Eu havia acabado de inventar isso.
— E vão voltar como?
— De uber também — Mentira número três.
— E Diana sabe?
— Claro que sabe.
Certo, isso eu não sabia se era mentira ou verdade. Achava que era
verdade. Tia Diana nunca pareceu impedir Andressa de sair para lugar
nenhum e, algumas vezes, até incentivava que eu e Renan saíssemos juntos;
coisa que nunca fazíamos. Renan não gostava muito de festas e eu, você
sabe, não poderia gostar.
— É um lugar tranquilo, mãe. Pelo amor de Deus!
— É na casa de quem mesmo?
— Rafael. É da escola.
— E os pais dele vão estar em casa?
— Claro! — E aí veio a mentira número quatro (ou cinco). Pelo que eu
sabia, Rafael fazia as resenhas propositalmente quando eles viajavam e ele
ficava só com o irmão (um inconsequente de vinte e três anos).
Nossa, eu era uma garota má! Estava eletrizada pela minha capacidade
maligna, mesmo que soubesse que não faria nada demais quando estivesse
lá.
Minha mãe pensou por um tempo. Por um bom tempo. Ponderou todos
os prós e os contras, mas a presença de Andressa era decisiva e o bem
venceu.
— Tudo bem, Camila. — Tive que me segurar para não dar pulinhos de
alegria. — Mas eu quero você de volta em casa antes das duas da manhã.
— Claro, claro!
Então eu fui correndo para o quarto, peguei meu celular e avisei Brenda
que eu iria. Ela não acreditou, me ligando para confirmar o fato de que eu
não havia sido substituída, e me lembrando do meu outro problema.
— Caramba, você só pode estar de brincadeira — riu. — Santa
Andressa!
— Santa Andressa — repeti, ainda incrédula.
Andressa era simplesmente a solução para todos os meus problemas.
Por que eu não havia pensado nisso antes?
— Você vai e volta com ela então? — questionou, do outro lado da
linha, o que me fez travar por alguns instantes. — Ela vai ficar feliz, hein,
tava querendo sua presença... Eu ainda não entendi bem. O que tá
acontecendo entre vocês?
Não escutei sua última pergunta, focando no fato de que, pois é, eu
havia contado para minha mãe que ia e voltaria com Andressa e ela nem
sabia disso. Para o meu azar, Regina era o tipo de mãe que conferiria a
minha história e ela era amiga da mãe de Andressa, o que significava que
poderia facilmente descobrir minha cadeia de mentiras e nunca mais me
deixar sair de casa.
Fiquei desesperada.
— Tenho que falar com ela — disse a Brenda, antes de desligar, abrindo
o aplicativo de mensagens e buscando seu nome.
Salvei como Andy, e, quando entrei na conversa, senti meu coração
acelerar.
A última mensagem havia sido há meses. Um “salvei seu contato”
idiota. Perdi a coragem e larguei o celular. Depois, me repreendi por aquilo.
Que isso? Eu não era do tipo que tinha ansiedade social por mensagem. Eu
tinha amigos online desde a época do Stardoll! Eu era incrível trocando
mensagens. Incomparável.
Camila 14:45h: Oi, Andy. Tudo bem? Aqui é a Camila!!

Mandei, depois bloqueei a tela, esperando ansiosamente pela sua


resposta. Para o bem da minha sanidade mental, ela não demorou nada para
vir.
Andy 14:46h: oie, Mila.
Andy 14:46h: td bem sim, e contigo?

Meu coração acelerou com a expectativa. Escrevi depressa.


Camila 14:48h: Então, do nada, eu sei, mas eu meio que falei pra
minha mãe que vou na casa do Rafael com você hoje kkk (surpresa!!).
Camila 14:49h: Brenda me chamou, disse que você vai e, bom, você
conhece minha mãe. Ela não me deixa sair sozinha com a Brenda, mas
com você foi na mesma hora kkkkk. Você me cobre nessa?
Camila 14:51h: OBS: eu sei que devia ter falado com você antes, mas
foi tudo meio que em cima da hora. Se for te atrapalhar, ta tudo
bem kkkk.

Na verdade, se ela não quisesse me ajudar, não estava tudo bem. Estava
tudo péssimo. Mas eu tinha que me mostrar tranquila em relação àquilo e, lá
no fundo, eu de fato estava. Afinal, era para Andressa que eu estava
pedindo ajuda e eu tinha uma certeza crônica, irresponsável e sem
explicações de que ela não me deixaria na mão.
Andy 15:02h: hahahahaha
Andy 15:02h: atrapalhar pq?
Andy 15:02h: claro, conta comigo

Viu? E eu estava certa.


Camila 15:04h: MUITO OBRIGADA. Você vai e volta como?

Andy 15:06h: uber

Camila 15:06h: GRAÇAS A DEUS. Se importa de dividir?

Andy 15:06h: não


Andy 15:06h: vai ser ótimo, na verdade
Andy 15:08h: 20h ta bom?

Camila 15:08h: Perfeito. Valeu mesmo, te devo uma.

Andy 15:09h: hahahaha vou cobrar

Camila 15:09h: Última coisa: sua mãe sabe que você vai?

Andy 15:12h: sabe

Camila 15:12h: GRAÇAS A DEUS DE NOVO. Você salvou a minha vida!!!!

Andy 15:12h: hahahaa sempre q precisar

Então a conversa acabou e eu fiquei olhando para a tela por alguns


instantes, controlando o ímpeto de aproveitar a oportunidade e perguntar,
sorrateiramente, por que ela havia mandado aquela mensagem para Brenda
antes, querendo saber de mim.
Ok, eu também me perguntava, às vezes, se ela estaria em casa quando
eu ia ver Renan, mas eu nunca tornei isso público. Quando eu pensava,
nunca me pareceu... esquisito. Mas, ao vir dela, por algum motivo, me
pareceu. Passou pela minha cabeça a possibilidade de Brenda ter perdido
parte da história e haver um contexto para aquilo. Sei lá, Brenda podia ter
deixado escapar meu nome! Mas eu possivelmente estava fazendo
tempestade em copo d’água. Tivemos alguns momentos agradáveis no
passado, não era um crime que ela quisesse repeti-los. Eu também queria,
para ser sincera. Tinha vezes que eu enrolava com Renan para ver se ela
chegaria a tempo de me dar tchau. Era lisonjeiro que fosse recíproco. A
verdade é que eu me sentia mais interessante quando estava perto dela.
Achava que poderíamos ser boas amigas, se parássemos de fugir uma da
outra. Não havia nada demais naquela pergunta. O que poderia haver? Era
algo que eu também fazia. Logo, inofensivo.
Bloqueei meu celular e respirei fundo, me pegando profundamente
nervosa.
Eu havia conseguido, iria para uma festa!
Havia convencido minha mãe, conseguido o apoio de Andressa e agora
só viria a pior parte: eu teria que ir.

Entrei em pânico algumas vezes enquanto me arrumava. Marquei com


Andy às oito, mas, desde as cinco, já comecei a tremer.
A iminência do ocorrido me deixava inquieta. Eu não sabia como lidar
com nada daquilo. Nada. Era algo bobo, eu sei, mas eu não tinha
experiência naquele tipo de ambiente. Era o primeiro evento como aquele
que eu frequentava. E quando digo “como aquele”, quero dizer: um que
Brenda iria. Na casa de alguém que eu não fazia ideia quem era para fazer
algo que eu não fazia ideia do que seria.
Decidi vestir, para a minha “grande noite”, uma calça jeans, uma blusa
bonita (azul, lembro que ela era azul), e não fazer muita maquiagem. Não
me recordava de ver Brenda usar tanta, e me peguei com um profundo
medo de "tentar demais". Por isso, pensei no que minha melhor amiga faria
e segui esse mantra por parte da noite. Calma, só parte dela. Brenda usava
pouca maquiagem, mas também se esquecia dos caras que beijava. Eu
nunca cheguei a esse ponto.
— Mãe? — Eu estava pronta.
Eram oito horas e Andy havia me avisado que já estava no Uber, a
caminho da minha casa. Eu carregava meu celular, uma bolsa e uma
expressão atemorizada no rosto quando encontrei com Regina. Ela estava
sentada na sala, sozinha. Gabriel estava jogando no quarto e o barulho do
seu teclado era o único que prensava o vazio. Eu estava arrumada e
cheirosa, tão imersa na minha aventura que não havia notado, até então, a
falta do meu pai.
— Mãe?
Tentei outra vez e ela escondeu o rosto antes de me olhar. Fungou
discretamente, mas eu escutei. Aquilo me paralisou.
Espera. Ela estava chorando?
— Já vai, querida? — perguntou, sorrindo e me encarando, sem
nenhuma vitalidade no olhar. Seu nariz estava vermelho. Ela tentou
disfarçar com uma máscara descolada de calmaria.
É sério? Quem ela achava que enganava desse jeito?
Aparentemente, a mim, já que eu não falei nada.
Não sei o que há comigo, mas eu nunca falei. Nunca intervi, ou tomei
partido. Fico me perguntando se as coisas teriam sido diferentes caso eu
tivesse o feito. Duvido muito que sim.
— Já — respondi, estudando-a, receosa. — Andressa tá a caminho.
— Certo, se divirtam! — exclamou, com a voz rouca e melancólica, e
eu senti meu peito afundar. Aquela imagem da minha mãe chorando
escondida se repetiria na minha cabeça a noite inteira. — E no máximo
duas horas em casa, Camila. Por favor.
Sua súplica foi decisiva. Guarde isso e espere para ver como a noite
acabou.
— Tá bom — disse, sentindo um bolo em minha garganta e uma
sensação esquisita de pesar. Ela notou.
— Tá tudo bem, querida, eu só estou cansada.
— Mãe...
— Vai se distrair. Só... juízo. Sem bebidas e...
Meu celular apitou e ela parou de falar, tomando fôlego. Desbloqueei a
tela para ler, sentindo o ambiente abafado. Era Andressa.
“Já tô aqui embaixo”.
Naquele segundo, eu me questionei se deveria ir ou se deveria ficar.
Seria o certo perguntar o que havia acontecido? Onde estava o meu pai?
Talvez. Mas eu fiquei com medo. Medo de cutucar e achar. Medo de
descobrir a verdade que eu não queria deixar sair.
Eu não queria pensar naquilo, não queria estar vivendo aquela situação.
Por isso, eu fui. Por todo o processo, eu fugi. E disso, eu me arrependo. Mas
se eu errei, ela também o fez. Às vezes, quando eu me culpo por aquele dia,
me lembro do que viria depois e o sentimento ruim toma conta da minha
boca, fazendo com que eu me sinta mais vítima do que algoz. Só que, bom,
todos temos um pouquinho de cada, não?
Dei um beijo na bochecha da minha mãe e saí pela porta da frente,
sentindo que havia uma bigorna nas minhas costas. Lembra da analogia da
mochila? Troque ela por uma arranha-céu inteiro, bem em cima dos meus
pulmões.
Sequer me recordo do percurso entre o elevador e a porta da frente.
Tudo que eu lembro é do sorriso de Andy quando eu abri a porta do carro, e
do resto da noite... eu me lembro de cada detalhe.
CAPÍTULO SETE. MILA, EU
PROMETO.
Andressa usava o mesmo perfume cheiroso do dia do aniversário de
Renan. Não me peça para descrever fragrâncias, eu entendo menos que
nada, mas era um cheiro incisivo e expansivo. Único. Não muito doce, não
muito amadeirado. O tipo de cheiro que eu sempre atrelei a ela. Ele me
recebeu antes mesmo que o motorista.
Dei boa noite aos dois ocupantes do veículo, sentando-me no banco de
trás com a cabeça pesada. A situação com a minha mãe cutucava meu
subconsciente, dividindo espaço com o nervosismo pré-resenha. Em
resumo, eu estava uma bagunça, e tenho certeza que aparentava isso, mas
Andressa sussurrou:
— Você está linda!
Ela deixou um banco de distância entre a gente, só que eu juro que a
imaginei mais perto quando disse aquilo. Desviei o olhar para o seu rosto,
encontrando seus traços intactos. Olhos exprimidos pelo sorriso e o
delineado que sempre usava. Era como se os dias não houvessem passado e
ainda estivéssemos sentadas na borda daquela piscina.
— Nossa, a sua surpresa é muito reconfortante. Você nunca me viu
arrumada decentemente antes, né? — brinquei, à medida que o carro
avançava e eu deixava minha casa, mãe e problemas familiares para trás.
Aproximava-me do desconhecido, e preferia me preocupar com as
delícias que ele traria do que com o bicho-papão em meu apartamento.
Queria aproveitar o tempo com Andressa, tentar me distrair. E consegui, por
um tempo. Minha resposta a fez rir, deixando o clima bem menos sufocante.
— Você implora por elogios também? — retrucou, cruzando os braços.
Lembro bem da roupa que ela usava. Era uma camiseta branca justa,
com um desenho enorme de um olho. Havia alguns brilhos, que destacavam
em seu busto. Eu gostei daquela camiseta, ficava muito bem nela.
— Eu não tive que implorar, na verdade — garanti. — Você me elogiou
por livre e espontânea vontade.
Andressa fez uma careta.
— É. Tem razão. Vou me controlar da próxima vez.
Eu até tentei, mas fui incapaz de não sorrir de volta. Você já sabe como
essa dinâmica funciona, não? Ela sorri, eu sorrio. Desviei o olhar para a rua
e balancei a cabeça.
Estávamos a quinze minutos de distância quando resolvi mandar uma
mensagem para Brenda, para ver se ela já havia chegado. Para a minha
surpresa, ela já tinha me mandado algo antes.
Brenda 20:03h: Amiga, desculpa, mas não vou conseguir ir hoje.
Aproveite por mim, tá bom? Na próxima eu quero ficar grudadinha
contigo. Amo você ❤ . Ps: mandei uma mensagem pra Ana Clara (você
vai conhecer ela, ela é um amor). Vai ser ótimo e ela vai ficar de
olho em você.

Travei por alguns instantes. Preocupada, a respondi:


Camila 20:07h: O que houve?

Brenda 20:07h: Nada.

Camila 20:07: Brenda...

Brenda 20:09h: Nada demais. Só meu pai. Prometo que ta tudo bem, só
não to no clima. Amanhã a gente conversa. Não vou estragar seu
grande momento!!

Senti-me murchar por completo. Estava preocupada com ela, óbvio,


mas também estava preocupada comigo.
Ela queria que eu fosse sozinha a um evento no qual eu não conhecia
ninguém?
Camila 20:09: Não quer conversar?

Brenda 20:10h: Não. Sai do celular. Não vou te responder mais. Te


amo e se cuida.
Brenda 20:10h: Corrigindo: não vou te responder mais sobre MIM, mas
se você tiver alguma fofoca, estarei online.
Brenda 20:11h: Inclusive, me manda sua localização.
Não a obedeci. Não de primeira. De primeira, eu fiquei estática, olhando
para o celular como se ela tivesse acabado de me contar que todos os seus
parentes haviam morrido. Andressa percebeu.
— Camila? O que foi? — Levantei meu olhar para encará-la, em
choque.
— Brenda não vai mais.
Ela arregalou uma sobrancelha.
— Tá tudo bem com ela?
— Sei lá, ela não quis me dar detalhes. — Bufei, me pegando
profundamente frustrada. Eu não conseguia acreditar que aquilo estava
acontecendo! Minha melhor amiga havia me abandonado sozinha na minha
primeira resenha. Uma pela qual eu troquei a minha mãe! — Disse que não
quer estragar o “meu grande momento”. — Andy franziu a testa.
— Como assim grande momento?
Não tive vergonha para explicar, estava muito frustrada para sentir
qualquer coisa além:
— É a minha primeira vez indo a uma resenha. Não ri.
— Eu não ia rir, Mila. — Ela balançou a cabeça, como se considerasse
ultrajante que eu cogitasse aquilo. — Mas você nunca quis ou sua mãe
nunca deixou?
— Segunda opção. — Senti seu olhar sobre mim e tive que retribuir.
Para a minha surpresa, havia um sorriso em seu rosto. Um sorriso
travesso.
— Eu sou seu passe-festa então?
Sem notar, eu sorri em resposta.
Em meu âmago, eu a agradecia muito por estar tratando tudo aquilo
com naturalidade. Eu tinha certa tendência a aumentar toda e qualquer
situação (ainda mais com dezesseis anos). Andressa era meio que um ponto
de equilíbrio.
— Aparentemente, sim.
— Bom. — Deu de ombros. — Pode me usar quando quiser.
Ficamos alguns segundos em silêncio depois daquilo.
Ela notou o duplo sentido de suas palavras, sei que notou, éramos
adolescentes e idiotas. Mas tudo que fez foi soltar um riso frouxo,
desprendendo sua atenção de mim e olhando para frente. Fiz o mesmo,
esperando que a estranheza daquilo diluísse.
Ela não falou com malícia, óbvio que não. Ela não era um cara!
Convenci-me de que aquilo era verdade e segui em frente. Faltando dez
minutos para chegarmos, suspirei.
— Então, eu acho que vou embora. — Ela me encarou surpresa.
— Por quê?
— Brenda não vai — expliquei, como se fosse óbvio. Aparentemente,
para ela não era. Arqueou as sobrancelhas.
— Você tem coragem de dizer na minha cara que eu não sou companhia
boa o suficiente?
— Andy... — Inspirei profundamente. Tudo estava errado naquela noite.
Talvez o carma fosse rápido no meu caso e as mentiras já começassem a me
perseguir, como o padre da minha catequese disse que fariam. — Eu não
conheço ninguém. Você tem seus amigos. Eu me meti na sua noite, mas era
só pra ir e pra voltar. Eu não vou ficar... te atrapalhando.
Fora isso, eu estava com vergonha dela. Havia me convidado para ir à
casa de Rafael, depois, confessei que era proibida de sair e depois que a
minha única companhia da noite não iria, o que significa que ela teria que
ficar de babá. Aquilo era demais. Até mesmo para mim.
— Que mania é essa de achar que você me atrapalha? — foi o que ela
respondeu. — Se soubesse que você queria ir, eu te convidaria para ir
comigo logo de cara.
Encarei-a sem dizer nada, com o fantasma das coisas esquisitas e
codificadas que ela falava pairando à minha esquerda. Eu atribuía milhares
de sentidos a cada frase sua. Talvez fosse por isso que ela me distraísse
tanto. Era um diálogo, mas também um jogo de tabuleiro. Dei de ombros.
— Bom, o irônico é que se você me chamasse em vez de Brenda, minha
mãe deixaria.
— Ok. — Riu. — Vou te chamar sempre a partir de então. — Aquele foi
o momento patético em que eu senti meu rosto corar.
Por sorte, estava escuro dentro do carro e eu acho que ela não notou.
Fiquei surpresa com aquela reação fisiológica, perdendo meu rumo por
alguns instantes. A única pessoa pela qual meu corpo me traía, me expondo
mais que o necessário, era Renan.
— Legal. — Pisquei algumas vezes, me lembrando dos fatos
catastróficos da noite e emendando, tentando atropelar o rubor repentino: —
Mas eu realmente acho que eu iria atrapalhar. Sei lá, eu não conheço seus
amigos.
— Aposto que nem os de Brenda.
Processei por alguns instantes. É, era um bom ponto. Mas o que
Andressa não entendia era que ela não era a minha melhor amiga. O que eu
ia fazer com ela lá?
— Prometo que vai ser divertido. — Notou que não havia me
convencido, então apelou: — Sério, Mila? Sua mãe confia em mim e você
não?
Ao falar de Regina, eu senti o bolo na garganta voltar. Depois de tudo
aquilo, o que eu menos queria era ter que voltar para casa antes do
combinado e enfrentar o que quer que estivesse acontecendo. Eu sempre
engoli, engoli tudo, e as coisas iam parar no meu estômago. Eu sentia
demais o que estava acontecendo, absorvia, escondia e vivia em negação.
Não queria voltar para aquilo. Não podia. Minha casa se tornou apertada e
sufocante. Eu não queria retornar. Pelo menos não ainda. Encarei Andressa.
— Eu tenho que ir embora no máximo até às duas da manhã. — Ela
assentiu.
— Por mim, o horário está ótimo.
— Mesmo? — conferi. Aquilo era muito importante para mim. Era a
única coisa que separava uma mãe chorando por todo o resto, mas
orgulhosa de mim, de uma mãe que choraria também por minha causa. Eu
não queria ser mais um motivo de decepção para ela. Nunca quis. — Até
duas, não duas duas. Antes das duas.
Andressa riu.
— Ok, entendido. Quando você quiser, vamos embora.
— Promete? Não vai ser chato pra você sair antes que...
— Mila, eu prometo — me interrompeu, claramente sem paciência para
me ouvir me considerando um estorvo mais uma vez.
Inspirei profundamente, encarando meu celular e reabrindo a conversa
com Brenda. Ela cumpriu com o que disse e não me respondeu mais. No dia
seguinte, ligaria para ela, e xingaríamos seu pai pelo sábado inteiro. Mas,
naquele momento, resolvi me dar uma chance e a enviei a minha
localização.
Andressa espiou, enxerida, conferindo logo depois:
— Então isso é um: você me convenceu e não vou te abandonar? —
Revirei os olhos.
— É.
Ela gesticulou, animada, aproximando-se de mim e segurando meu
joelho. Acho que até mesmo ela se surpreendeu com aquele gesto, porque
recolheu sua mão com pressa, emendando logo em seguida:
— Vai ser legal. — Pigarreou. — Eu prometo.
Pelo menos aquela parte da promessa ela cumpriu.
CAPÍTULO OITO. A
RESENHA.
Realmente, Brenda estava certa, o apartamento de Rafael era muito
bonito.
Minha memória é meio seletiva e eu não me lembro de detalhes do
saguão, tampouco do elevador, muito menos da decoração. Tudo que
lembro era da sensação de ficar fascinada pelo fato de que seu prédio ficava
em frente à praia. O resto é nebuloso, e dá para entender o porquê. Havia
coisas mais importantes rondando minha cabeça adolescente.
Eu estava indo a uma resenha com Andressa (minha quase amiga
sazonal) ao meu lado. Não conhecia ninguém, não havia Brenda e eu
larguei minha mãe chorando sozinha em casa. As coisas pareciam erradas.
Todas elas. Mas Andy não me deixaria desistir e, por isso, eu entrei.
Foi uma boa escolha.
Eu tinha uma interpretação completamente deturpada de uma resenha.
Pelo menos, de uma resenha na casa de Rafael. Não havia nada de
assustador no que vi, apenas um monte de jovens rindo e conversando, para
todos os lados.
Quem nos atendeu foi o irmão do anfitrião. Um sujeito com barba e
alguns fios de cabelo branco. Não se preocupe, os fios eram precoces. Ele
era o mais velho do recinto, mas só tinha vinte e três anos. Ele abraçou
Andressa assim que a viu.
— E ai, Dessinha? Bem-vinda!
— Oi! — Andressa o cumprimentou, afastando-se rápido do abraço
para apontar em minha direção. — Essa é a Camila.
— Oi. — Acenei, sem graça. Ele me estudou de cima abaixo.
— Camila — testou a palavra, me encarando. Meu coração bateu
acelerado com a expectativa. — Eu já ouvi esse nome antes…
— Isso é porque Brenda fala dela todos os instantes — uma voz
feminina se sobrepôs à dele. Não demorou muito para que ela colocasse
seus cabelos pretos para fora, se apresentando: — Oi, eu sou a Ana.
Responsável por você hoje.
Ana Clara era uma garota alta de rosto redondo. Suas bochechas eram
proeminentes e seus olhos cor de mel. Sua voz era aguda e agradável. Ela
não era da nossa escola, era mais velha. Já estava na faculdade.
— Que bom finalmente te conhecer! — exclamou, desviando do sujeito
e me abraçando, como se, na verdade, suas palavras fossem falácias e nos
conhecêssemos há anos. Achei aquilo engraçado, e estranhamente
reconfortante.
Não me entenda mal, eu era uma pessoa extrovertida, mas apenas
quando estava perto de pessoas mais introvertidas que eu. Não era o caso de
Ana, nem de quase nenhuma daquelas pessoas.
Ao me soltar, ela segurou minha mão, olhando bem no fundo dos meus
olhos e perguntando:
— O que você quer beber?
Andressa interviu.
— Ela é menor de idade.
Ela registrou aquela informação enquanto a encarava.
— Ah, tá. E você, Dessa? Vai querer o quê? — Andressa cruzou os
braços.
— O que vocês compraram?
— Só coisa ruim, sinceramente. — Manteve suas mãos conectadas às
minhas enquanto dava ré lentamente, resmungando: — Eu sempre tenho
que acompanhar, senão eles acabam fazendo merda...
Fui guiada para o lado de dentro como uma criança que está aprendendo
a andar, ouvindo uma música animada (mas não tão alta, ou seríamos
expulsos) de fundo e me sentindo mais uma vez nervosa.
Entramos pela sala da casa de Rafael, encontrando com os ainda poucos
convidados presentes em sua resenha. O teto era alto e o espaço bem
grande. Havia dois sofás cheios de gente, garrafas apoiadas em uma mesa
de centro e algumas estantes cheias de livros.
A música vinha de uma caixa de som próxima à cozinha. Ana só
separou nossas mãos quando chegamos perto dela, dizendo:
— Vou pegar algo menos pior pra Dessa beber. Você quer suco, água,
refri…? — Sorri para ela, tensa.
Sentia que escolher o que beber era uma importante decisão a se tomar e
eu havia acabado de aterrissar. Ainda não sabia onde eu me encaixava, ou
que personalidade deveria ter.
— Por enquanto nada. Obrigada.
Ela assentiu.
— Tá bom! Nossa, você é tão linda! Eu amei sua sobrancelha.
Ninguém nunca havia elogiado minhas sobrancelhas antes, e isso era
simplesmente Ana. Ela era mestre em falar as coisas mais aleatórias que, de
alguma forma, te faziam se sentir a pessoa mais importante do mundo.
Eu nunca havia achado minhas sobrancelhas bonitas antes daquele dia,
mas ela tinha razão, eu tinha um belo par de sobrancelhas!
Depois de me elogiar, ela deu as costas, me abandonando, levemente
vermelha, ao lado de Andressa. Minha companhia da noite mantinha os
braços cruzados e um sorriso em seu rosto. Encarei-a e sorri, mesmo sem
saber do quê.
— Que foi?
— Você fica fofa sem graça. Vem, vou te apresentar o resto do pessoal.
— Fez um gesto, e eu a segui, mastigando o que ela havia acabado de dizer
e engolindo como se não houvesse me causado nada. Se eu já não estivesse
vermelha antes, teria ficado mais.
Mas que merda foi essa?
Ruborizar por causa de Andressa pela segunda vez em um dia me
deixou embaralhada pelo resto da noite.
Brenda me elogiava com constância, porém, com Andy, meu corpo
estava reagindo diferente. Talvez fosse a lua, porque eu nunca ficava sem
graça quando minha melhor amiga me chamava de “gostosa”, ou sentia um
arrepio estranho quando ela tocava meu joelho. Tudo que Andressa fazia,
no entanto, por mais casual que fosse, andava me causando algo esquisito.
Por quê?
Cumprindo com o prometido, e alheia ao meu embaraço, ela me guiou
até um grupinho jogado em um dos sofás. Havia três pessoas entulhadas
umas em cima das outras. Duas meninas e um cara.
— Gente — chamou a atenção de todos com um aceno de mãos, não
demorando muito para apontar outra vez em minha direção. — Essa aqui é
a Camila.
Sorri, constrangida, ao ter três pares de olhos direcionados a mim.
Desculpe, mas eu não vou me demorar muito em todos os amigos de
Andressa que conheci naquela noite, apenas em um deles. O mais
importante deles. Henrique. Ele era o único que eu já tinha visto antes. Era
do colégio, da turma dela. Tinha os olhos castanhos escuros e os cabelos
castanhos claros. Foi com ele que eu vim a perder a minha virgindade.
— Oi.
— Olá.
— Eae.
Os cumprimentos foram muitos. Menos calorosos que os de Ana, mas
eu duvidava que algo pudesse se igualar àquilo. Andy me apresentou cada
um deles por nome. Eu só decorei mesmo o de Henrique.
— Camila? Senta aqui! — Uma das meninas se levantou para que eu
pudesse me sentar, o que foi extremamente gentil de sua parte, mas que eu
descobri logo que não foi um ato altruísta.
Dela eu acho que vale a pena comentar, afinal, ela só se levantou para
que pudesse abraçar Andressa (mesmo que Andy não tivesse se esforçado
para abraçar ninguém). Ela tinha os cabelos cacheados brilhantes e uma
tatuagem de rosa em seu ombro. Seu nome era Gabriela.
— Oi — sussurrou para Andressa, assim que se soltou de seu pescoço, e
minha acompanhante sorriu para ela. Um sorriso que espremeu seus olhos.
— Que bom te ver, Gabi — disse. — Não sabia que você vinha hoje...
— Só tem isso. — Ana surgiu animada, dando um saltinho e
dispersando toda a cena.
Alheia ao abraço caloroso que eu havia acabado de presenciar, estendeu
uma garrafa na direção de Andy. Era vinho. Ela aceitou.
— Valeu — agradeceu, puxando um copo de dentro de sua bolsa e se
servindo. Bebeu um gole antes de voltar seus olhos a mim, aproximando-se
e perguntando: — Você não quer nada mesmo, Mila? Eu pego pra você. Ou
você pode dividir isso aqui comigo.
Sorri. Era bom ter sua atenção em mim de novo. Aprendi naquela noite
que eu era bastante egoísta quando se tratava dela. Algo não muito inédito,
na verdade. Eu era um pouco ciumenta quando se tratava das minhas
amigas. Só era surpreendente que Andressa já tivesse evoluído para esse
posto.
Amigas. Era isso que éramos então? Por algum motivo, me parecia
errado.
— Não, obrigada.
Sobre bebidas alcoólicas, já deixo avisado: eu não bebia na época, nem
bebo hoje. Nunca gostei da ideia do álcool, de perder o controle dos meus
atos. Eu tinha medo de me exceder, de passar mal, de fazer algo que eu não
devia. Não preciso me justificar por isso, eu sei, no entanto, sempre tive que
o fazer. Com exceção de Brenda, todos sempre insistiam, o que era
incômodo e constrangedor. Felizmente, minha mãe estava certa em confiar
em Andressa. Ela não me ofereceu mais nada o resto da noite inteira. Só
Henrique.
Ele, que estava sentado ao meu lado, mas que até então não tinha me
dado muita atenção, fixou seus olhos em mim. Eu me senti imediatamente
encurralada.
— Espera. Agora que eu saquei. Você é a melhor amiga do irmão dela,
né? O Renanzinho.
Segurei o ímpeto de rir.
Renanzinho. Não sabia que ele era chamado assim no círculo de
Andressa. Será que ele sabia?
— Sou.
— Se quiser, eu tenho cerveja aqui. Não vai te dar uma ressaca ferrada
como essa bebida fresca que elas tão bebendo. — Balançou a lata que
equilibrava em mãos. Andressa riu.
— Por favor, Mila, não beba nada que ele te oferecer. Ele é uma
péssima companhia.
Henrique fingiu se ofender, levando uma das mãos ao peito.
— Não escute ela, Mila. — Aproximou-se para sussurrar: — Eu sou
ótimo.
Os pelos da minha nuca se arrepiaram. Um por um.
Encarei Andressa e a encontrei virando o primeiro copo.
Ana se aproximou de mim, pedindo para que a gente se apertasse para
que ela se sentasse ao meu lado. Envolveu o braço sobre os meus ombros e
me perguntou tudo sobre a minha vida. Levaria a sério a função que Brenda
a deu de cuidar de mim, e isso incluía afastar as investidas de Henrique
(foram muitas), desviar quando queriam me oferecer bebida e me entreter a
noite inteira.
Ficamos ali, metade do grupo de pé e metade sentado, por um bom
tempo, e eu fui me acostumando aos poucos com a ideia de que era aquilo,
eu estava em uma resenha e estava sendo ótimo; mesmo sem Brenda.
Andressa foi ficando ainda mais descontraída com o tempo, à medida que a
bebida entrava. Dividiu a garrafa de vinho com Gabi, expondo a todos que
nos conhecíamos desde a infância e enfatizando algumas vezes que eu
ficava bem de azul. Henrique concordou em uma delas, aproximando sua
mão da minha e perguntando:
— Você e Renan tem alguma coisa?
Ele cheirava a cerveja. Vou falar sobre ele depois, se te interessar saber,
mas o básico é que ele era mais velho. Já tinha dezoito anos, e alguns
músculos nos ombros. Eu nunca me senti muito atraída por isso, mas me
sentia por ele. Ou então, pela perspectiva de ter o olhar dele sobre mim.
Você sabe como eu gostava de me apaixonar, e ele era inebriante. Não me
importaria caso ele quisesse tentar alguma coisa.
Contexto: eu já havia beijado antes, apenas uma vez. Foi em uma festa
de quinze anos e, sinceramente, foi esquisito. O menino era tão inexperiente
quanto eu e as coisas não encaixaram tão bem quanto eu imaginava que
com Henrique fariam.
Meus hormônios me deixavam em ebulição. Eu nem me lembrava da
existência de Renan naquela resenha!
— Não temos — disse, e aquilo não me doeu. Não com tanta
intensidade assim.
A perspectiva de um novo romance era mais forte que minha paixão
pelo meu melhor amigo, aparentemente.
Naquela época, era tudo sobre o sentimento. Não me importava muito a
pessoa, só o que ela me fazia sentir.
— Somos só amigos.
— Quer dizer que é solteira então?
— Até onde sei.
— Ótimo, então já pode marcar a data. Você vai casar comigo. — Eu ri
alto. Tão alto que Andy ouviu.
Seu olhar se voltou para nós e eu me senti sendo pega fazendo algo
ilícito. Ela não disse nada, não teve nenhuma reação, porém, eu me senti
profundamente observada. Pigarreei, ignorando Henrique e olhando as
horas no meu celular. Uma e quinze. Pretendia ir embora uma e meia, para
dar tempo de chegar em casa com calma e terminar a noite bem. Sem piorar
as coisas em casa.
Coitada de mim, eu não sei por que fazia planos.
— Sabe... — Com Henrique quieto, voltei a prestar atenção em Gabi.
Ela havia acabado de encerrar o assunto que empolgadamente discutia com
Ana, decidindo: — Eu vou ao banheiro. Quer ir? — Ela negou com a
cabeça, transferindo a pergunta às garotas do grupo.
— Alguém quer? — Neguei, mas Andy se pronunciou:
— Eu quero — disse, enquanto encarava seu copo vazio, como se
tentasse decidir o que fazer com ele. Eu a ajudei.
— Quer que eu segure? — Ela me encarou e, quando nossos olhos se
cruzaram, sorriu com mais intensidade do que a situação pedia. Eu não
sabia se ela estava bêbada ou só feliz.
— Obrigada, Mila.
Seu “Mila” saiu tão açucarado que eu voltei a notá-lo. Ela cantou meu
apelido como quem canta uma serenata, aproximando-se para apoiar seu
copo no meu colo. Eu o envolvi com os meus dedos enquanto ela afastava
os seus.
— Já volto, tá bom?
Assenti e ela foi embora com Gabi, caminhando lado a lado até o
banheiro. Henrique puxou um assunto sobre a escola e eu dei atenção a ele,
não notando quando elas voltaram e foram em direção à cozinha. Eu não
conhecia a casa de Rafael, não sabia que havia uma saída por lá, tampouco
que Gabi era sua vizinha. Eu não sabia que o “já volto” de Andressa seria
tão demorado. Nem que eu terminaria a noite em seu quarto.
CAPÍTULO NOVE. FIZ UMA
CENA, TAL QUAL ELENA
GILBERT.
Calma, não tire conclusões precipitadas. Não foi nada do que você está
pensando (infelizmente). Na verdade, eu fui parar em seu quarto porque
passei a maior vergonha da noite poucos minutos depois daquilo.
Lembra que eu disse que Andressa só cumpriu com uma parte da sua
promessa? Pois bem, a noite foi divertida. Henrique flertou comigo de todas
as maneiras possíveis, Ana era uma das pessoas mais legais que eu já havia
conhecido, Gabi tinha as melhores histórias e Andressa ficava muito
sorridente quando bebia.
Porém, ela também havia me prometido que voltaríamos antes das duas.
E dessa parte ela se esqueceu. Não, não, ela se distraiu.
Haviam se passado vinte minutos desde que elas haviam saído para o
banheiro quando eu comecei a encarar as horas compulsivamente. Ana
percebeu.
— Que foi? — quis saber, enquanto eu bloqueava a tela pela quarta vez
em menos de três minutos.
Eram 1:36hs da madrugada. Na minha imaginação, já estaríamos no
Uber uma hora dessas. Já estaríamos a caminho de casa! Encarei-a,
explicando:
— Eu tenho que ir embora, mas tinha combinado de voltar com a Andy.
— Ela assentiu.
— Elas estão demorando, né? — Franziu sua testa. — Vamos atrás
delas?
— Por favor.
Levantamo-nos juntas, o que pegou Henrique de surpresa.
— Aonde vocês vão?
— Vamos atrás da Dessa — explicou Ana e ele riu. Uma risada longa e
sugestiva.
— Ah, deixem a coitada se divertir!
Se divertir? Franzi minha testa. Se divertir com o quê? Ela se ofereceu
para ir ao banheiro com a Gabriela!
Pois é. Ele foi o primeiro a notar o que ninguém mais via.
— Ela tem que voltar com a Cami — retrucou Ana, depois pediu: —
Guarda meu copo? — Estendeu-o em sua direção, e ele apoiou, solícito, a
palma de sua mão em cima. Não seria Henrique Silva, no entanto, se ele
perdesse a oportunidade.
— Se quiser que eu guarde Camila também, enquanto você a procura...
— sugeriu, provocativamente.
Ana revirou os olhos, puxando uma das almofadas e a arremessando em
seu rosto. Seu gesto ofensivo me fez rir, e a ele também. Ana, por sua vez,
não achou graça. Segurando minha mão, me puxou para longe.
— Esse garoto é um pervertido — murmurou, verdadeiramente
ofendida com aquilo.
Eu dei de ombros. Havia gostado. Henrique era mesmo um pervertido,
mas também era um cara legal. E bonito.
— Eu acho que só tem dois banheiros aqui. Será que elas passaram mal
ou algo do tipo? — Criou teorias enquanto caminhávamos de mãos dadas
pelo apartamento enorme. Aquela possibilidade me deixou nervosa.
Meu Deus, será que tinha acontecido alguma coisa de ruim com elas?
Liguei para Andy e ela não me atendeu. Em nenhuma das vezes.
Procuramos e elas não estavam nos banheiros. Eu olhei as horas. 1:46hs.
Ficamos dez minutos as buscando e eu já estava começando a ficar
preocupada.
Em algum momento, percebemos que tinham muitas pessoas naquela
resenha que começou pequena, e decidimos nos separar para procurar, por
todos os cômodos do apartamento. Nosso ponto de encontro era Henrique.
Porém, quando nos esbarramos de novo, estávamos sem companhia.
Elas não estavam naquela porcaria de casa, Andressa não me atendia,
Gabi não respondia a Ana e eu não chegaria em casa antes das duas da
manhã!
1:57hs minha mãe me mandou uma mensagem.
Mamãe 01:57h: Já está chegando, meu amor?

Engoli em seco.
Meu Deus, eu nem havia saído.
— Vai embora — sugeriu Ana, ao notar a brancura em meu rosto. — Eu
acho elas.
— Eu não vou largar Andressa desaparecida!
Henrique tentou apaziguar:
— Gente, vocês estão surtando à toa. Elas só devem ter ido pra casa da
Gabi.
Encarei-o com a testa franzida.
— Quê? Onde é a casa da Gabi?
— Aqui do lado. Apartamento 1405.
Porra. Por que ele não tinha dito aquilo antes?
Trotei, sem esperar por Ana, em direção à porta pela qual eu havia
chegado, peregrinando pelo corredor atrás do apartamento 1405. Não
precisei o encontrar, contudo, para dar de cara com Andressa. Na verdade,
para trombar de frente com ela.
— Opa. Foi mal — disse, entre risos, se afastando de mim. Estava viva,
saudável e corada. Quis a estapear por isso. — Mila? O que...
— Eu estou te procurando faz pelo menos uns vinte minutos, Andressa!
Onde você estava?
— Eu? — se surpreendeu com a minha recepção nada amigável. — Eu
estava... por aí.
— Por aí?
— Mila? — começou, receosa. Aproximando-se lentamente de mim,
como quem tenta controlar uma fera que acabou de sair da jaula. Suas
sobrancelhas estavam arqueadas. Ela carregava a porcaria de uma expressão
inocente e eu, um hipopótamo na minha garganta. — O que houve?
Percebi que ela realmente não entendia o porquê da minha patética
cena, o que me irritou profundamente.
Ela estava com Gabi, eu sabia disso. Em seu apartamento. Fazendo
sabe-se lá Deus o quê. E, por causa disso, eu não chegaria em casa a tempo.
Ela havia descumprido a promessa mais importante que havia me feito
naquela noite. Havia estragado tudo, mas, bom, ela não tinha obrigação
nenhuma.
Não era sua culpa que eu tivesse me metido na sua noite e estipulado
horários. Tudo bem que ela havia prometido que voltaria comigo antes das
duas, e eu não ia abandoná-la sumida, mas a minha frustração, o verdadeiro
motivo dela, não era culpa sua.
Não era culpa sua que eu estivesse tão esgotada por ficar dias sem
dormir porque meus pais não paravam de discutir. Não era culpa sua que eu
tivesse abandonado minha mãe chorando em casa. Eu estava brava com ela
por ter me trocado por Gabi, por ter se esquecido do nosso combinado e por
me fazer decepcionar minha mãe, mas eu também estava fazendo uma cena
e me senti pior ainda ao notar aquilo.
— Nada — foi o que eu disse, me sentindo uma grande idiota. Quem
era eu para cobrar algo dela? Ela possivelmente me achava a garota mais
surtada do mundo. — Deixa pra lá.
Dei as costas. Ela me seguiu.
— Quê? Mila? — Segurou meu pulso, me forçando a voltar a encará-la.
— O que houve? Você tá brava comigo?
Senti meu celular tremer em meu bolso e deduzi ser minha mãe. Só ela
me mandaria mensagem uma hora dessas. Já deveriam ser duas da manhã e
eu não havia chegado em casa porque Andressa havia sumido. Com a Gabi.
Senti uma vontade súbita de chorar, me esforçando ao máximo para
evitar aquilo.
Pelo amor de Deus, só faltava eu chorar na frente dela.
— Não tô brava — menti. Ela descartou minha mentira com um aceno
de cabeça.
— Óbvio que tá. — Ainda segurava meu pulso e eu sentia seus dedos
como chapas ferventes. Ela ficava mais aberta ao toque físico quando bebia,
vale ressaltar. — O que eu fiz? — suplicava por uma explicação, sentindo-
se culpada por algo que sequer entendia. Eu soltei todo o ar de uma vez. As
lágrimas se aproximavam e o aperto no meu peito se tornava maior.
— Você viu que horas são? — Ela não precisou conferi-las para
entender. Para lembrar. Vi o entendimento tomar conta de seus olhos como
neblina em um dia de sol.
A culpa deixou seu rosto mais opaco e eu me senti horrível por isso. Por
ter me metido na sua noite, feito uma cena e depois a estragado.
— Mila...
— Me desculpa — quase implorei, desvencilhando meu pulso às
pressas. — Desculpa — pedi mais uma vez, me virando de costas. Ela não
desistiu.
— Camila, que isso? Eu que tenho que me desculpar. Eu que esqueci da
droga do horário! — Não respondi nada, caminhando pelo corredor vazio
como estivesse em uma novela das nove.
Não consegui segurar mais, as coisas transbordaram, e as lágrimas
chegaram aos meus olhos junto com uma mensagem no meu bolso traseiro.
Andressa deu uma corridinha em minha direção.
Agora as duas faziam uma cena.
— Mila. Ei? — tentou mais uma vez, se metendo na minha frente. Fui
obrigada a parar de andar e a odiei por aquilo. Desviei o olhar, tentando
disfarçar o estúpido fato de que eles estavam marejados. Andressa me
analisou. — O que realmente está acontecendo?
— Nada. Eu só tô cansada.
— Você não tá cansada, você tá chorando — retrucou, o que me fez
chorar mais. As lágrimas escorreram de maneira dramática. Eu só queria
cavar um buraco, entrar nele, e nunca mais sair.
— Droga, Andy! Eu não estou brava com você, tá bom? Você só tava se
divertindo, em algo que eu me convidei para estar. Não tem nada a ver com
você.
— Tem a ver com o que então? — perguntou, cautelosamente, e eu me
calei.
As lágrimas escorriam pelo meu rosto em uma intensidade que eu não
conseguia controlar. Eu estava exausta. Eu estava arrasada.
— Mila? — abaixou seu tom, me encarando de perto. Tocou meu ombro
e eu gelei. — Por favor, fala comigo. — Encarei-a de volta por alguns
instantes.
Seus olhos me transmitiam uma mistura de serenidade e preocupação.
Eu estava me sentindo um lixo. Eu precisava falar com alguém.
— Eu não quero ir pra casa — confessei o que nem eu mesma entendia.
O que vinha me corroendo por dentro e que eu não queria que se tornasse
real. O que eu escondia de Brenda, e de mim. — Meus pais, eles estão
brigando e eu... Eu prometi pra minha mãe que ia chegar antes das duas. Eu
só não queria... — Dei de ombros. — Decepcionar ela também, sabe?
Então algo esquisito aconteceu. Andressa me abraçou.
Sem me dar espaço para recuar, ela colou seu peito no meu, o que me
paralisou por alguns instantes. Eu nunca a havia abraçado antes.
— Eu não fazia ideia, Camila. Sinto muito — disse, apoiando a cabeça
no meu ombro e tomando conta de todo o meu espaço pessoal.
Senti o cheiro bom do seu perfume, o ardido do álcool e um senso de
cumplicidade que eu necessitava. Aquilo abaixou minha guarda, me
fazendo ceder.
Andressa nunca rejeitou ou minimizou minhas emoções, nem mesmo
quando elas eram barulhentas e aquilo era profundamente significativo para
mim.
Passado o choque, eu me dei por vencida e aceitei o gesto, envolvendo
meus braços em suas costas e afundando meu rosto em seus cabelos. Eles
também eram cheirosos. Deus, como ela conseguia cheirar tão bem no final
de uma resenha?
Cuidadosa, ela apoiou uma das mãos em minha cabeça, acariciando-a
com tanta delicadeza que eu tive que me segurar para não chorar ainda
mais.
Pois é, tomem cuidado. As coisas vão sair. Talvez nos piores momentos
possíveis.
Andressa aproximou sua boca de meu ouvido e sussurrou:
— Vai ficar tudo bem. — E eu acreditei. E eu quis acreditar. Então a
apertei mais.
Eu me sentiria horrível depois. Envergonhada, exposta. Mas aqui vai
uma coisa que aprendi com o tempo: não há vergonha nenhuma em ser
vulnerável. Pelo menos não perto das pessoas certas.
— Andy? — Depois do que me pareceu uma eternidade, eu arrisquei.
— Oi?
— Me desculpa. — Senti o vento quente que saiu de seu sorriso.
— Só se você parar de pedir desculpas.
— Meu Deus, o que houve? — Ouvi a voz de Ana, mas não levantei
minha cabeça para ver.
Já bastava que Andressa tivesse que presenciar toda aquela cena, eu
morreria se existisse uma plateia. Profundamente envergonhada, me
encolhi. Andy me apertou com mais força, respondendo por nós:
— Nada, Ana. Pode deixar que a gente já vai.
Felizmente, Ana entendeu a deixa, voltando para dentro do apartamento
e nos largando sozinhas outra vez. Eu apreciava aquilo. Muito mesmo.
Tentei me soltar, mas ela não deixou, descendo sua mão para as minhas
costas e as afagando com delicadeza. Seu abraço era aconchegante e ela me
forçou a aceitá-lo até que eu conseguisse me acalmar, deixando sair todos
os restos do que ainda era apenas um embrião.
— Deus, eu me sinto uma idiota — confessei, depois que consegui
limitar a tsunami em meus olhos. Andy riu.
— A única idiota dessa história sou eu.
— Eu não queria mesmo estragar sua noite — repeti, desvencilhando-
me rápido, antes que ela tentasse me impedir outra vez.
A consciência retornava e eu me sentia acovardada por toda aquela
situação patética.
Pois é, eu não acredito até hoje que eu chorei no ombro de Andressa
Batista na primeira vez que saímos juntas. Menos ainda que aquilo não a
tenha afastado. Mas a verdade é que se eu me sentia culpada, ela se sentia
mais. Andressa odiava a ideia de ter me feito chorar, mesmo que o choro
não fosse somente sua culpa.
— De verdade, eu tô... uma bagunça — Tentei sorrir, levando uma das
mãos aos olhos. Foi só então que eu me lembrei que eu já estive, em algum
momento daquela porcaria de dia, maquiada.
Puta merda.
— Eu tô toda borrada, não tô? — me preocupei, mas Andy apenas
sorriu, usando seu polegar para limpar o que eu imagino que fosse uma
mancha de rímel (nunca quis saber).
O toque sutil de seu dedo em meu rosto me causou um arrepio. Não sei
como viveria a partir de então, com tanta vergonha dentro de mim.
— Não mais. — Sorriu delicadamente, recolhendo seus braços. Havia
melancolia em seu sorriso e compreensão em seus olhos. — Escuta, eu sou
seu passe-festa, não sou? Então me deixa consertar isso.
Franzi minha testa.
— Como?
— Vamos usar minha arma secreta.
Então ela pediu meu celular emprestado (o dela estava quase
descarregando) e ligou para tia Diana. Enquanto eu ainda fungava,
humilhada, Andy traçou um plano com sua mãe.
A desculpa era que eu havia ido para a casa dela e já havia chegado há
muito tempo. Andressa havia tido uma má digestão (da comida inexistente
que nos serviram naquela resenha) e eu a levei, heroicamente, para casa.
Acabei me esquecendo de avisar, mas ia dormir lá. Minha mãe não gostava
que eu dormisse na casa dos outros, e resmungaria sobre aquilo, mas pelo
menos não saberia da verdade. Pelo menos eu não precisaria voltar para
casa naquele dia. Poderia adiar meu retorno à realidade. Poderia terminar
aquela noite bem. Ao lado da garota com a qual eu havia surtado, claro.
— Sua mãe concordou com essa história sem noção? — perguntei,
enquanto Andressa me devolvia meu celular e me explicava o que eu tinha
que dizer. Sim, a história da indigestão. Sim, era loucura.
— Camila, você conhece nossa querida Diana Batista. — Sorriu. — Ela
já está mandando uma mensagem nesse instante pra sua mãe, contando essa
"história sem noção".
— Ela não vai cair nisso.
— Acredite, minha mãe sabe ser convincente.
— Era mais fácil só… contar a verdade.
Andy franziu a testa, provocando:
— Que eu estraguei tudo?
Cruzei os braços.
— Não essa verdade. — Ela sorriu fraco, depois suspirou.
— Mila, eu fiz a merda, então me deixe resolver.
Guardei o meu celular no meu bolso, sentindo que as lágrimas haviam
secado e que eu gostaria muito de rebobinar aquela parte da noite, mas não
o que veio depois.
— Tá — desisti de lutar contra, notando que Andy não desistiria fácil.
Além do mais, nada poderia ser pior do que já havia sido. — Tudo bem.
— Obrigada! — ironizou, petulante, mas não havia nada de arrogante
em seu rosto. Na verdade, Andressa parecia composta, como se nada tivesse
acontecido. Era sua tentativa de fazer eu me sentir menos patética. Não
estava funcionando. — Agora, precisamos passar em um lugar antes de ir
pra casa. Tudo bem por você?
Arqueei minha sobrancelha.
— Que lugar?
Ela sorriu.
— Você vai gostar.
O "lugar" misterioso de Andressa era o Burger King.
Aquela era sua tentativa louvável de me alimentar, me distrair e me
fazer abrir mão da cara sofrida que eu havia incorporado ao meu rosto.
Depois de tudo que aconteceu, eu me sentia triste, envergonhada e cansada.
Ela estava determinada a mudar aquilo.
— Peguei isso para você! — exclamou, enquanto apoiava a bandeja
com os nossos lanches na mesa à minha frente, pescando uma coroa de
papel. — Vem cá — pediu, debruçando-se para pousá-la na minha cabeça.
Eu me aproximei, encabulada, aceitando o adorno com uma energia
nada equivalente. Ela estava muito feliz para quem terminava a noite
comendo um sanduíche de carne falsa depois que eu molhei sua blusa com
lágrimas.
Deus. Como chegamos àquilo?
— Uau.
Jogou-se na cadeira a minha frente, encarando-me como um pintor,
orgulhoso de sua obra. Eu tinha certeza que eu era um rascunho feito por
um recém-nascido naquele instante.
— Ficou majestosa em você — garantiu, teatralmente, puxando seu
hambúrguer e o desembrulhando. Acompanhei sua movimentação com o
olhar, sem tocar no meu.
Depois que Andy decidiu que eu dormiria na sua casa e me convenceu a
mentir outra vez para a minha mãe, entramos no apartamento de Rafael para
buscar nossas coisas e nos despedir de todos. Andressa me garantiu que
meu rosto não estava inchado, mas eu duvidava da veracidade daquilo.
Afinal, Ana me olhou com tanta pena que eu me senti um cachorro de rua.
Despedimo-nos com um abraço, Henrique bagunçou de leve meu cabelo
e Andressa se manteve ao meu lado, chamando o carro. Fez mistério por
todos os cinco minutos que nos separaram da lanchonete, tratando o fato de
que pedimos um fast food no meio da madrugada como um jantar de gala.
Eu não sabia demonstrar, mas me sentia muito grata por aquilo.
— Andy — foi como eu comecei a falar, assistindo-a morder um pedaço
de seu sanduíche. Ela me encarou enquanto mastigava. Seus cabelos
estavam embaraçados e eu não conseguia acreditar que havia me metido no
meio deles para chorar. Puta que pariu. Continuei: — Eu me sinto uma
completa idiota e acho que nunca mais serei capaz de olhar para a sua cara
de novo quando amanhecer.
Ela engasgou ao tentar rir, me encarando com seus olhos expressivos. O
piercing em seu nariz cintilava graças à luz amarelada que pendia no centro
da nossa mesa. Estava sentada na minha frente, e me chutou sem querer.
— Foi mal… Por que só "quando amanhecer"?
Dei de ombros.
— Porque agora você tá bêbada e eu torcendo muito para que você
tenha amnésia.
— Eu não tô bêbada, Mila. Nem tenho amnésia. Sinto lhe informar.
— Você tá bêbada, sim.
— Não estou, Camila, só estou feliz.
— Depois que eu destruí sua noite?
Ela balançou a cabeça, em negação.
— Pare de ser tão dramática, pelo amor de Deus! Você não destruiu
nada, eu prefiro estar aqui, para ser honesta. Estava morrendo de fome.
Era claro que ela estava mentindo.
— E você quer dizer pra mim que não está bêbada?
Aquilo a fez suspirar.
— Por que é tão difícil de aceitar que eu gosto de passar um tempo com
você?
Então voltamos àquilo. Às coisas que ela dizia e que me afetavam sem
que eu entendesse o porquê. Parece que um abraço em meio a um break
down nível Elena Gilbert não era o suficiente para acabar com aquilo. Puxei
uma batata antes de responder, com sinceridade:
— Porque... sei lá. A gente se fala de mês em mês, em situações nas
quais somos obrigadas a interagir. E porque você estava com os seus
amigos enquanto a gente mal se conhece.
Ela negou com a cabeça.
— Ah, dessa parte eu discordo. Eu te conheço! Por exemplo. — Ajeitou
suas costas antes de continuar. — Eu sei que a sua cor favorita é rosa.
Soltei uma risada sincera.
— Não é não. É azul.
— Droga. — Ela me fitou por alguns incômodos segundos até dizer: —
Você sabe a minha?
Peguei outra batata, só para ter uma desculpa para desviar o olhar
enquanto refletia sobre aquilo. Eu não fazia a menor ideia. A cor que eu
mais a via usar era preto, então, esse foi meu palpite. Quando ela assentiu,
eu arregalei meus olhos, surpresa.
— É sério?
Andy riu.
— Não. Eu só não queria perder no argumento. — Ri de volta, sem
conseguir me segurar. Queria que minha melancolia e vitimismo durassem
mais tempo, mas era impossível com aquela porcaria de garota ali, fazendo
o seu máximo para dissipar meus dias ruins. — É amarelo.
Amarelo era uma boa escolha. Eu gostava desse lance de simbologia de
cores, e amarelo significava “felicidade”. Parecia adequado a ela, por mais
que ela basicamente só usasse cores sóbrias. Pensando bem, acho que cores
favoritas não têm que necessariamente estar na sua paleta de coloração
pessoal.
Eu a encarei por alguns instantes enquanto refletia sobre tudo aquilo
(com tudo aquilo, leia-se: pensava demais sobre um fato idiota como a cor
favorita de alguém) e ela retribuiu. Retribuiu de uma maneira que me
deixou desconfortável, mas corajosa, nas mesmas proporções. Eu me
remexi na cadeira antes de dizer o que eu achava que havia superado, mas
que reverberava na minha cabeça.
— Eu posso te perguntar uma coisa e você vai me prometer que vai
esquecer dela amanhã? Selecione como uma das memórias que a bebida vai
obrigatoriamente varrer.
— Esquecerei por completo.
Inspirei, apoiando meu antebraço na mesa e dizendo:
— Por que você perguntou pra Brenda se eu iria hoje?
Não sei de onde veio aquilo, mas era algo que eu precisava saber. Era
simples, mas vinha me corroendo, assim como todas as coisas simples que
vinham dela. E eu sentia que era o momento certo para perguntar. Havia
boas doses de casualidade e companheirismo entre nós. Eu tinha uma
necessidade doentia de macerar aquilo. Andressa mordeu mais um pedaço
de seu sanduiche antes de me responder.
— Ela te contou isso, foi?
— Contou.
Assentiu, sorrindo sozinha para o seu pão e deixando a pergunta pairar
no ar por alguns instantes.
— O que você achou do Henrique? — Depois do que pareceu uma
eternidade em tratamento de silêncio, foi o que retrucou. Arqueei uma das
minhas sobrancelhas.
— Andressa Batista — a repreendi, tentando soar descontraída. — Por
que você está mudando de assunto? — Ela riu, irônica.
— Porque eu acho que você já sabe a resposta pra sua pergunta.
Aquilo me paralisou.
Eu sabia?
Ela me encarou, estudando a minha reação, e foi a pior possível.
Toda vez que Andressa abria uma brecha, eu a fechava às pressas.
Reticências que se tornavam pontos. Sinais que eu fingia não ver.
Eu senti um frio na barriga significativo. Um daqueles que não era
equivalente a uma vergonha comum, sentida por uma pessoa qualquer. Um
dos que não dava mais para ignorar. O que era aquilo? Por que ela estava
fazendo essas coisas comigo?
Desesperada e profundamente incomodada, fui obrigada a falar a
primeira coisa que passou pela minha cabeça:
— Ah, eu achei Henrique bem bonito, e parece muito gente boa. —
Pigarreei, sentindo como se houvessem espinhos na minha cadeira. — Ele
me pediu em casamento. — Ri, um pouco forçada, e ela riu de volta, mas
seu sorriso foi esvaziando aos poucos.
— É, eu vi. Você não vai comer? — Apontou para o sanduiche intocado
na minha frente. Eu engoli em seco.
— Pode pegar, se quiser.
No fim, ela de fato o pegou. Eu não consegui comer mais nada, me
sentindo remexida. Andressa agiu normal e eu a imitei. No entanto, havia
um desconforto intrínseco às nossas ações, não tinha como negar.
Que resposta era essa que eu sabia?
Foi ali que eu abri o portal, passando a me questionar coisas que nunca
havia de fato me questionado antes. Como o motivo de ter me incomodado
por Andressa estar com Gabi parte da noite ou de gostar tanto de Orange is
The New Black (eu assistia escondida no meu celular, e nunca contei, nem
mesmo a Brenda, que eu o fazia).
Bom, eu viria a descobrir em breve. Depois, ignoraria a verdade por um
bom tempo.
CAPÍTULO DEZ.
COMPORTAMENTO
HETEROSSEXUAL.
Quando chegamos à casa de Andressa, todos estavam dormindo, menos
tia Diana, que nos aguardava (e ao lanche que Andy comprou para ela) com
um sorriso no rosto.
Ela me cumprimentou com um abraço apertado e um beijo no topo da
cabeça, o que me fez sentir uma falta tremenda da minha mãe, além de uma
profunda e dilacerante culpa. Eu estava fugindo dela e da situação com o
meu pai, era uma covarde e não fiz nada para mudar aquilo, apenas fugi
mais.
— Eu deixei toalha no banheiro e os lençóis a postos. Já arrumei a cama
pra vocês. Agora, vou comer isso aqui e dormir, porque estou morta.
Andressa se aproximou dela e a deu um beijo na bochecha. Tia Diana
sempre ficava acordada até que Andressa chegasse em casa. Não a proibia
de sair para nenhum lugar, sua única exigência era que ela não bebesse. Pois
é, Andy era um pouco rebelde nesse quesito, contudo, pelo menos (eu
acho), ela nunca extrapolou. Tanto que eu sabia que ela jamais se esqueceria
das coisas que haviam acontecido naquela noite. Ela não havia bebido o
suficiente para aquilo e realmente não era de ter amnésia.
— Brigadão, mãe. Mesmo.
Era claro que Tia Diana sabia. Que ela bebia, no caso. E eu sei que elas
já discutiram sobre aquilo algumas vezes, mas nunca soube direito como as
linhas eram traçadas e quais eram os limites dos combinados entre as duas.
Tudo que sei é que Andressa tinha a mãe que eu sonhava em ter, porque
nunca estamos satisfeitos com as nossas e porque a minha me decepcionaria
bastante um tempo depois.
— Boa noite, meninas. — Tia Diana, a mãe ideal, que fazia planos com
a gente e permitia que Andressa saísse de casa nos desejou. — Sonhem com
os anjinhos.
Ah, se ela soubesse...
Encaminhamo-nos para o quarto de Andressa e eu me peguei
desconfortável ao perceber que a cama que ela tinha arrumado para nós era
a de Andressa e só. Uma cama de casal para nós duas. Aparentemente, as
regras com Renan não se aplicavam a ela. Afinal, ela fechou a porta sem
pensar duas vezes e nos lacrou sozinhas ali dentro, com uma cama para
dividir.
Vantagens, tinham que haver algumas.
— Você se mexe muito? — questionou, aproximando-se de uma
cômoda no canto e apoiando sua bolsa logo em cima. Eu nunca havia
entrado no quarto da Andressa adolescente e não disfarcei ao analisá-lo.
Ela disse que gostava de amarelo, mas não havia nada dessa cor pelos
cantos. Seu quarto, na verdade, seguia seu guarda-roupa. Era bastante
monocromático. As paredes eram brancas, o armário tinha as portas de
espelho e não havia quadros pendurados, apenas prateleiras. Sua cômoda
era o maior ponto de cor. Eu a reconhecia, costumava ficar no quarto de
Renan quando éramos pequenos. Era de madeira escura e, em cima dela,
havia vários porta-retratos. Encarei-os, me deparando com meia dúzia de
Andressas, em fases diferentes de sua vida. Nossa, não havia uma
minimamente ruim. Ela sempre foi desonestamente linda e eu agradecia
todos os dias por não termos nos “reconectado” quando eu estava passando
pelos meus catastróficos e traumatizantes treze anos.
Em metade das fotos, Andy estava com Renan, ou com seus pais. Em
uma dela, no entanto, estava em um grupo com vários amigos, sentados em
um gramado. Henrique estava na foto, assim como Gabi.
— Caso sim, vou ter que te fazer dormir na sala — continuou a falar,
me encarando com os braços cruzados.
O que estava fazendo com Gabi e por que não quis me contar?
Eu nunca fui a maior fofoqueira da história, mas, da vida de Andy, eu
queria saber. Tudo sobre ela me parecia intrigante.
Engoli em seco, tentando agir com casualidade, como ela fazia,
superando todos os acontecimentos anteriores e fingindo zero
constrangimento por estar em seu quarto me questionando sobre a sua vida
pessoal enquanto estávamos prestes a dividir a mesma cama. O plot
perfeito, eu sei.
— Seria mais educado se você se oferecesse para dormir no sofá —
provoquei em retorno, balançando a cabeça para me livrar dos pensamentos
intrusivos. Não era da minha conta o que ela fazia com Gabi, nem porque
ela estava em um porta-retratos no seu quarto. — Eu sou a visita.
— Mas a cama é minha. — Revirei os olhos e ela sorriu, estendendo o
braço em minha direção. — Ok, é brincadeira. Vou ser uma boa anfitriã. Me
dá aqui — se voluntariou para pegar a minha bolsa.
Meu celular estava silencioso. Aparentemente, minha mãe havia
acreditado na história maluca e ido dormir. Eu sabia que ela não havia
gostado, mas o que importava era que havia funcionado. E só havia
funcionado porque envolvia Andressa e sua mãe. Elas eram terreno neutro.
Pelo menos costumavam ser.
— Posso pôr aqui? — O “aqui” ao qual se referia era em cima da
cômoda, ao lado de suas fotos bonitas. Da foto de Gabi. Assenti.
— Claro.
Virou-se para apoiá-la, em seguida, abriu uma das gavetas e me
estendeu um pijama.
— Mas e ai? — insistiu, enquanto eu o aceitava. Ela havia escolhido o
único azul que tinha.
— E ai o quê?
— Você se mexe ou não? — Sorri.
— Não, Andressa.
— Ótimo. Porque eu sim.
Então ela tomou banho primeiro, retornando com cheiro de morango e
devidamente trocada. Usava uma blusa branca larga de Game of Thrones e
um short curto por debaixo. Toda a sua perna estava à amostra, então não
me culpe por ter que narrar a visão que tive.
Andressa era mais alta que eu apenas alguns centímetros, só que suas
pernas eram esguias, o que a dava a aparência de ser bem maior. Ela tinha
insegurança quanto aquilo, vim a saber no futuro, quanto ao fato de ser (na
sua cabeça) magra demais. Mas eu te confirmo, leitor (e você deve acreditar
na sua narradora), suas pernas finas sempre foram deslumbrantes, assim
como ela.
Eu estava sentada na ponta de sua cama, rolando de um lado para o
outro a tela do meu celular quando ela voltou de banho tomado, pernas de
fora e cabelos presos no topo de cabeça. Usava meias, mesmo que estivesse
calor, e a casualidade de toda aquela situação me deixou desconfortável
mais uma vez.
Pelo amor de Deus, o que estava havendo comigo? Era isso que as
meninas faziam quando dormiam uma na casa da outra? Surtavam por
dividir a mesma cama? Eu não sabia, eu nunca havia experimentado nada
daquilo antes!
— Peguei um sabonete e uma escova de dentes pra você. Estão em cima
da pia, junto com a toalha. — Apontou, sendo uma ótima anfitriã, como
prometido, enquanto eu estava agitada o suficiente para não conseguir
retribuir.
— Tá bom. Minha vez então — disse, ansiando sair dali e respirar.
Entrei no banho e me queimei com a água quente. Andressa deixou o
chuveiro na temperatura perfeita para cozinhar um frango (ela sempre fazia
isso). Mas tudo bem, eu me permiti ser cozida por alguns instantes,
torcendo para que a água me amortecesse, pelo menos por um tempo.
Estava estranhando a mim mesma. Estranhando todos os
acontecimentos, desde o começo daquela noite. Mais especificamente:
minha reação a todos eles.
Perceba que muitas coisas mudaram. Dentre elas: eu estava em sua casa
e, até então, não havia surtado a respeito de Renan. Lembra dele? O amor
da minha vida! Pois é, ele evaporou rápido como veio. Só foi preciso
algumas horas em uma resenha e uma briga terrível entre meus pais.
Deus. Eu precisava de uma boa noite de sono, para acalmar o que havia
fora do lugar. Precisava lidar com as novidades que me estapearam. Afinal,
parte delas, eu escolhi ter. Devia arcar com as consequências dos meus atos,
e a minha estratégia para lidar com isso era fingir casualidade. Sim, esse era
o meu plano sempre. Fingir.
Fingir que eu não estava confusa ao voltar ao quarto carregando a
toalha, sem fazer ideia de qual devia ser seu destino. Fingir que não me
incomodava por ter que me deitar ao lado de Andressa, debaixo da mesma
coberta fina e com a distância de uma régua entre a gente. Fingir que não
havia sentido quando ela esbarrou em mim ao se virar para o seu canto.
Fingir casualidade ao dormir fora (coisa que eu não fazia nunca), com
Renan no quarto ao lado, minha mãe enganada em casa e meu pai sabe-se
Deus onde. Fingir que eu estava bem e normal, quando não me sentiria
assim por um bom tempo.
A minha sorte era que, como você sabe, eu fingia bem. E meu
fingimento digno de Oscar me fez conseguir pegar no sono. Você ansiava
por isso, mesmo sem saber, porque é aí que a parte mais interessante desse
capítulo começa.

Eu vou te poupar da ilusão e do choque. O que vem a partir de agora


aconteceu depois que eu fechei os olhos e entrei em sono REM. Foi um
sonho. Um daqueles realistas, que você não suspeitaria, em três vidas, que
fosse mentira. Um dos que meu subconsciente traiçoeiro reservou
especialmente para me enlouquecer.
No meu sonho, eu estava exatamente onde paramos. Deitada na cama de
Andressa, dividindo o cobertor e o constrangimento, mas havia algo a mais
no ar. Algo que me fazia respirar profundamente. Eu sabia o que estava
prestes a acontecer. No sonho, nós duas sabíamos.
Andressa se remexeu em cima do colchão e, por mais que ele tivesse
balançado, a Camila do sonho se manteve paralisada, aguardando. Estava
com os olhos abertos, preparada para o que viria a seguir.
Ela se aproximou de mim por trás, encaixando as pernas nas minhas em
um gesto íntimo, que não me surpreendeu nem um pouco. Na verdade, me
fez sorrir. Ela montou uma conchinha, mas não a prolongou por muito
tempo. Não havia tempo para enrolação naquele sonho, só para irmos direto
ao ponto.
Andy desistiu do carinho e apoiou sua mão por debaixo da minha
camisa deslizando seus dedos pela minha barriga bem lentamente. Suas
unhas curtas traçaram um percurso retilíneo até chegarem ao meu umbigo.
Ela espalmou a palma ali, me puxando mais para perto. Estávamos tão
coladas que eu sentia cada curva de seu corpo. O calor que saía de nós
tornava quente todo o cômodo. Arfei e ela me presenteou com um beijo em
meu pescoço. Depois outro. E outro.
Seus beijos eram doces, bem direcionados. Ela mordiscou minha pele
enquanto arranhava de leve a minha barriga, e eu deitei meu pescoço para
trás, facilitando o seu caminho até minha boca. Só que ela não me beijou.
Pelo contrário. Ela apoiou os lábios em meus ouvidos, sussurrando:
— Desculpa, Mila, é que eu me mexo muito.
Foi isso que ela disse (e que pareceu estranhamente sexy na ocasião),
antes de simplesmente descer os dedos até a minha calcinha.
Eu não me lembro de mais detalhes, só de me sentir quente como nunca
antes. Cada célula que me compunha vibrava, especialmente quando ela
puxou o tecido para o lado e... eu acordei.
Abri os olhos de uma só vez, com o coração acelerado e uma corrente
forte entre as minhas pernas. O suor molhava meu cabelo, enquanto a
Andressa de verdade se mantinha de costas, estática e bem longe de mim.
Raciocinei aos poucos.
Espera.
Eu havia sonhado que Andressa enfiava a mão...
Pelo amor de Deus!
Coloquei-me sentada de uma só vez, em choque. A consciência aos
poucos tornava os detalhes do sonho nebulosos, mas eu tinha certeza de que
aquela parte havia acontecido. Senti um tremor involuntário. Minha boca
estava seca.
Que porra havia sido aquela?
Levantei-me cuidadosamente, temendo, mais do que tudo, a acordar.
Sentia-me tão confusa e eletrizada que estava desnorteada.
Eu já havia tido sonhos eróticos antes, claro, porém aquele era o
primeiro com uma pessoa real, e não um personagem famoso da televisão.
Querido leitor, aquele era o meu primeiro com uma mulher.
Caminhei a passos rápidos, mas silenciosos, até meu celular, sentindo
que... bom, eu estava desesperada. Envergonhada. Em. Pânico.
Ponderei por alguns segundos antes de entrar no Google. Havia algumas
notificações de mensagem, as quais ignorei sem peso na consciência. O que
tinha para buscar não podia esperar. Abri a guia anônima e digitei, letra por
letra, a seguinte pergunta:

Acabei de ter um sonho erótico com a minha amiga, o que


isso significa? (sou mulher)

A minha internet estava lenta e a resposta demorou a aparecer. Eu sentia


o meu coração batucar na palma da minha mão enquanto aguardava,
morrendo de medo de que Andressa acordasse a qualquer instante e me
pegasse no flagra. Tinha certeza de que qualquer um poderia ler na minha
cara o que havia acabado de acontecer. O que eu havia acabado de fazer no
meu subconsciente. Tinha medo de descobrir algo... perigoso sobre mim
mesma. Por sorte, o Google me acalmou.

“Se você é heterossexual e sonhou que está fazendo sexo


com uma amiga, é sinal de que essa pessoa tem uma qualidade
que você admira e gostaria de ter também. Analise qual
qualidade você admira e tente desenvolvê-la. Você pode,
inclusive, pedir ajuda dela para isso.”

Inspirei todo o ar do quarto de uma só vez, sentindo que, aos poucos, os


meus batimentos voltavam ao seu ritmo ordinário.
Certo, então era normal. Eu admirava algumas características em
Andressa e por isso sonhava que ela estava me dedando! Fazia todo o
sentido!
Com a confirmação de que aquilo era comportamento heterossexual (e
nobre), eu me permiti voltar a encará-la. Péssima ideia, o sonho retornou.
Não só ele, mas os sentimentos também. Mais especificamente: o
sentimento de ter sua mão passeando por mim.
Eu nunca havia refletido sobre aquilo antes daquele sonho. Não com
tanta clareza. Eu nunca havia... me sentido daquela maneira.
Abri a porta e saí do quarto. Estava cedo, mas havia alguém na cozinha.
Era tia Diana. Dei bom dia e entrei no banheiro, abrindo a torneira e
lavando meu rosto.
Pare de exagerar, Camila! Foi só um sonho. Não há nada demais nisso.
Não há nada demais em Andressa. Já passou.
Exceto que não passaria. Pelo resto do dia, toda vez que eu pensasse
nela, me lembraria dos beijos em meu pescoço e em como aquilo havia
feito eu me sentir.
Foi por isso que eu inventei para tia Diana que minha mãe estava me
mandando voltar para casa naquele exato momento e fugi. Fui embora antes
que ela acordasse. Fui embora antes que eu entendesse que aquilo não era
um comportamento heterossexual inocente. Não no meu caso.
CAPÍTULO ONZE. ERAM
APENAS SETE DA MANHÃ.
Faltavam exatos cinco dias para que entrássemos de férias e eu me visse
livre daquele pesadelo chamado escola por duas semanas inteiras. Meus
planos para as férias incluíam colocar todas as minhas séries em dia e
passear no shopping com a Brenda. A gente tinha combinado de “renovar
nossos guarda-roupas”. O que significava que rodaríamos em dezenas de
lojas para, no final, comprarmos um cropped igual a todos os outros que já
tínhamos.
Renan (e Andressa) ia viajar. Ele vinha falando sobre essa viagem por
meses. Iam para a Bahia, encontrar alguns amigos e familiares, e eu estava
muito feliz por isso, porque assim eu poderia evitá-los sem deixar evidente
que estava fazendo isso. Poderia ter duas semanas tranquilas, apenas com
Brenda, minha melhor amiga que não me gerava sonhos eróticos. Eu só
queria paz!, mas aquilo era pedir demais, aparentemente.
— Mila? — Quando o chamado me alcançou, meu primeiro instinto foi
o ignorar.
Eu estava caminhando pelo corredor, indo em direção à minha sala de
aula com a minha mochila e minha cara de sono, junto com a massa de
alunos do segundo ano que passavam pelo mesmo processo. As aulas
começariam em menos de cinco minutos e eu fingi que estava ansiosa para
meu primeiro tempo de química, apressando meus passos. Não funcionou.
Ela deu uma corridinha, tocando de leve meu ombro.
— Mila? — insistiu, e foi impossível continuar a ignorando depois
disso.
Eu me virei para encará-la, trajando minha melhor cara de surpresa e
inocência ao dizer:
— Ah, oi, Andy! O que você tá fazendo por aqui?
Ela também estava com a mochila nas costas, e os cabelos soltos sobre
as alças em seus ombros. Minha pergunta a fez trocar os pés. Estacionamos
no meio do corredor, como pedras em um rio, recebendo algumas encaradas
tortas de alunos que tiveram que desviar. Andy me puxou delicadamente
para o canto antes de falar:
— Eu vim ver... como você está.
Engoli em seco.
Tá bom, já que ela levantou a questão, temos que falar sobre os
acontecimentos esquisitos do final de semana.
Depois que tudo aquilo que aconteceu com a garota que havia acabado
de me encurralar, eu fugi para casa, me preparando emocionalmente para
ser recebida da pior maneira possível. Minhas expectativas eram
baixíssimas. Eu esperava encontrar minha mãe gritando comigo por ter
dormido fora e desrespeitado o toque de recolher. Esperava receber uma
bronca, ficar de castigo. Esperava que meu pai tivesse sumido e a gente
tivesse que mobilizar a vizinhança e colar cartazes com o seu rosto nos
postes. No melhor dos cenários, eu esperava que ele tivesse voltado para
casa, mas que tivessem brigado e ateado fogo no apartamento. No entanto,
tudo que recebi ao abrir a porta foi um cheiro delicioso de queijo na
frigideira e a visão de meu pai despontando da cozinha.
Sim, meu pai. Sim, cozinha. Sim, ele estava na cozinha fazendo o café
da manhã!
Eu contei para você que ele não estava em casa quando eu saí, não foi?
Que eu abandonei minha mãe chorando para aproveitar a minha aventura
com Andy, me sentindo a pior pessoa do mundo por isso (mas, mesmo
assim, o fazendo). E então, eu dava de cara com meu pai, torrando queijo
com o seu pijama dos Minions como se nada daquilo tivesse sido real.
Mas aquilo foi apenas uma amostra grátis. Meu final de semana foi
ótimo, consegue acreditar?
Meus pais estavam se falando pouco, mas não brigaram. Nem entre si e
nem comigo. Eu havia sobrevivido a minha primeira noite fora e eles, a eles
mesmos. Uma trégua foi o que eu e Gabriel tivemos naqueles dois dias. Um
final de semana tranquilo, no qual eu consegui respirar. Alguns dias de paz,
durante os quais eu acreditei (outra vez) que tudo voltaria ao normal. Tudo,
claro, até que Andressa aparecesse na minha frente e trouxesse o maremoto
de volta.
— Ah... — Dei de ombros, me sentindo envergonhada novamente. Por
ter chorado em seu ombro e depois sonhado que ela beijava o meu pescoço.
— Eu tô bem.
— Mesmo? — insistiu, falando baixo.
Seria interessante que eu me aproximasse para ouvi-la bem, mas eu
escolhi ficar do jeito que estava e fazer um tremendo esforço auditivo. Era
mais confortável daquele jeito.
Por mais que eu tentasse ignorar, eu virei uma chave naquela noite, de
uma porta que me levava a um caminho perigoso. Eu comecei a notar os
sinais. Melhor: passei a não conseguir ignorá-los.
Comecei a notar que eu gostava da companhia da Andressa, mas que
também me sentia profundamente inquieta com a droga do seu sorriso
bonito. Ela tinha um efeito diferente de Brenda, ou das minhas outras
amigas mulheres, sobre mim, e eu não gostava daquilo. Não gostava do que
poderia significar. Evitava, com avidez, pensar a respeito, porque a
possibilidade me parecia perigosa. Especialmente depois daquele maldito
sonho. Alguma coisa me dizia que o Google havia cometido um equívoco
(coisa rara) a seu respeito. Foi muito... intenso para ser inocente. Será que
Brenda já havia sonhado algo parecido com alguma amiga? Eu queria
perguntar, mas jamais teria coragem.
— Eu fiquei meio preocupada. Você foi embora correndo, e depois me
respondeu com um emoji...
É, bom... teve isso também.
Alguns minutos depois que eu cheguei em casa e ganhei um pão na
chapa do meu pai, Andy me mandou uma mensagem perguntando se estava
tudo bem e eu a respondi com um joinha.
Sim, eu sei. Foi a coisa mais patética que eu poderia ter feito, mas eu
não conseguia entrar na droga da sua conversa sem me sentir
profundamente culpada por ter confabulado promiscuidades a seu respeito.
Eu me sentia nervosa ao ler seu nome, então só mandei a porra de um
joinha e a ignorei, pelo final de semana inteiro.
Essa era a minha forma de lidar com tudo: ignorar e dissimular. E
funcionara bem com Renan, mas Andy era insistente.
— Desculpa — disse, ajeitando a alça da minha mochila só porque não
sabia o que fazer com as mãos. Ela sorriu fraco.
— Tá tranquilo. Eu só queria conferir se tinha ficado tudo realmente
bem com você. Sua mãe... implicou?
Não.
— Só um pouco.
Andy assentiu, compartilhando o sentimento comigo. Era engraçado, ela
realmente parecia se sentir mal pelo que acontecia com os meus pais. Como
se estivesse acontecendo com ela. Mas isso era uma coisa sua. Andy era o
tipo de pessoa que ouvia e sentia pelos outros, uma característica sua que
sempre me encantou.
Pensando bem seria essa sua qualidade que eu “admirava muito” e que
me fez sonhar que ela enfiava o dedo na minha calcinha?
— E como ela está? — perguntou, receosa. Eu cruzei meus braços.
Ela foi a primeira pessoa para a qual eu contei a situação com os meus
pais. Naquele ponto, nem mesmo Brenda sabia, e eu começava a me sentir
mal por aquilo. Brenda era minha melhor amiga e eu estava escondendo
grandes coisas dela. Coisas que eu sabia que ela entenderia melhor do que
ninguém.
No sábado, eu liguei para ela, e ela me contou que o que havia a
impedido de ir à festa foi outra briga entre seus pais. Eles já haviam se
separado há anos, mas, mesmo assim, se encontravam para discutir.
Geralmente, as brigas eram por causa de sua única filha, para a qual o pai se
esquecia de pagar a pensão e que fingia se importar de vez em quando.
Brenda morava com a mãe, e eu gostava muito dela. Era um pouco
inconsequente, porém um doce. Eu nunca havia conhecido seu pai
pessoalmente, nem gostaria.
— Ela tá bem — fui vaga, sei que fui, mas Andressa respeitou aquilo,
assentindo e cruzando seus braços.
— Certo. Ok. — Sorriu fraco. — Que bom.
— É. — Sorri de volta.
Então ficamos paradas, no canto do corredor, sem ter mais nada a dizer.
Eu esperei que ela virasse as costas e fosse embora, afinal, ela havia me
interceptado, mas ela não fez menção nenhuma de sair. Sentia que queria
dizer mais alguma coisa, só não teve a chance.
Brenda chegou correndo, nos alcançando esbaforida, com a mochila
pendendo em um dos ombros e a blusa torta no pescoço.
— Meu. Deus. — Estava ofegante, e com os olhos inchados. — Eu tô
muito, muito atrasada? Acordei faz tipo dez minutos e tive que voar até essa
merda. Tenho um teste no primeiro tempo e eu não posso perder. Aliás, sua
turma já fez o teste de biologia, né, Cami? Me passa as perguntas que...
Andressa? — Demorou a notar que quem estava parada na minha frente era
a irmã de Renan. Quando o fez, estacionou todo o seu raciocínio. Brenda
tinha as sobrancelhas ralas, mas suas linhas de expressão eram
profundamente marcadas. Ela franziu a testa, encarando-a desconfiada. —
Por que sondas minha melhor amiga no meu corredor?
Andy riu.
— Seu corredor?
— Uhum. — Apontou. — O seu é pro outro lado.
Andressa arregalou seus olhos.
— Caramba, jura? Parece que me perdi. Muito obrigada pelo
direcionamento, Brenda! — ironizou. Ela deu de ombros.
— Estou aqui para ajudar.
Andressa soltou uma gargalhada, balançando a cabeça e me fitando.
Retribui o olhar, sem muita escolha.
— Até, Mila.
Sorri forçadamente.
— Até.
Então ela deu um esbarrão fraco em Brenda antes de ir embora,
caminhando contra a maré em direção ao “seu” corredor, que ficava bem
em frente ao nosso. Quando ela saiu de perto, eu me permiti respirar.
Brenda me encarava com um imenso ponto de interrogação tatuado na sua
testa.
— O que foi isso?
— Nada.
— Nada? — Colocou-se no lugar que antes era de Andy, me
metralhando com dezenas de informação que eu não sei como seu cérebro
conseguia processar às sete da manhã. Eu nem tinha feito o download de
todas as minhas faculdades mentais ainda e já tinha que enfrentar tudo
aquilo. — Primeiro ela quer saber se você vai sair com a gente, depois você
dorme na casa dela e agora vocês ficam de papinho nos corredores?
Balancei minha cabeça.
Brenda sabia de algumas partes do que havia acontecido com Andy.
Sabia que ela havia sumido no final da resenha (Ana a contou aquilo, e eu
não tive como mentir), mas não sabia da cena que eu fiz em seus braços,
muito menos do sonho que eu tive logo depois. Ela não sabia que havíamos
parado no Burger King, nem que eu me sentia profundamente desordenada
quando ela me fitava com aqueles olhos escuros.
— Não estávamos de papinho nos corredores, Brenda — argumentei, na
defensiva. — Ela só queria saber... se minha mãe tinha ficado brava, com
tudo.
— O que não aconteceu, porque você estava com ela. A Santa
Andressa.
— Isso.
Brenda juntou aquela informação no inquérito mental que abria sobre a
gente. Cruzou os braços, me analisando. Analisando toda a situação. Ela
queria fazer direito na faculdade e, sem dúvidas, tinha vocação. Eu me
sentia em um tribunal. Pior: em um no qual ela já sabia de tudo. De todos os
meus sonhos maliciosos, borboletas no estômago e Orange is The New
Black.
Caralho, eu tinha que parar de ver aquela série.
— Ah, achei vocês! — Renan era perfeito em tudo, até mesmo em suas
interrupções.
Ele apareceu do nada, abraçando-me de lado e encarando Brenda com
seus olhos apaixonados.
Já haviam se passado alguns meses desde o desastre com os
cromossomos, mas eu sabia que ele não havia a superado. Tanto que a
primeira mensagem que ele me mandou no sábado de manhã foi:

Renan 8:55h: Como assim você dormiu aqui em casa


e foi embora antes que eu acordasse?

E a segunda:

Renan 9:02h: Ah, você saiu com Andressa. Brenda


também foi?

Encarei-o com um sorriso no rosto. De todas as pessoas com que fui


obrigada a socializar naquela manhã, ele era a primeira que de fato eu
agradecia por ter me abordado naquele corredor. Novamente: como
chegamos àquilo, pelo amor de Deus?!
— Oi de novo! — retribui, sorrindo, aliviada. Brenda se livrou por
alguns instantes de sua feição desconfiada para dizer:
— Ah, oi, Renan.
Ele revezou seu olhar entre nós duas, notando a tensão que havia no ar.
— Tá tudo bem aqui?
Brenda estalou sua língua.
— Na verdade...
— Brenda — a interrompi, antes que ela falasse o que não devia. —
Você não tinha um teste agora?
O pânico tomou conta do seu rosto.
— Puta merda, eu tenho um teste agora! — exclamou, agarrando meus
braços em profundo desespero. — Me passa as respostas, pelo amor de
Deus. Eu não estudei nada.
— Brenda! — me desesperei junto. — Eu não lembro... Acho que tinha
algo sobre ervilhas.
— É teste de quê? — Renan se intrometeu. Eu o respondi:
— Biologia.
— Ah. Eu passo. Eu lembro de algumas coisas.
Deu para ver o quanto aquilo o satisfez. Salvar a donzela em perigo.
Ajudar sua grande paixão a passar em biologia. E eu a entreguei em suas
mãos, torcendo para que ele a distraísse o suficiente para que parasse de me
analisar. Tempos sombrios exigem sacrifícios. Eu sacrifiquei nossa história
de amor naquele instante. Troquei-o fácil quando foi preciso. Aquele amor
era frágil a esse ponto.
— O que caiu? — Brenda o questionou, preocupada. Ele desgrudou de
mim para dizer:
— Cara, caiu muito sobre Mendel... sabe aquela página que tem um
desenho de uma ervilha? — Ela assentiu e eles foram caminhando lado a
lado, discutindo sobre as questões enquanto eu arrastava toda a minha
bagagem emocional para a sala de aula.
Vê-los próximos me causou um pequeno formigamento, nada grave. E
me surpreendeu que nosso corredor me parecesse menos interessante que o
de trás, mesmo que nele houvesse Renan e Brenda interagindo.
Eu não senti aquela coisa maldosa que sentia antes ao vê-los próximos.
Eu não quis que ele tropeçasse, ou que minha amiga o esnobasse. Eu quis...
voltar à noite passada e comer hambúrgueres com Andressa.
Renan deixou Brenda na sua sala e eu a ouvi o agradecer
“profundamente”. Então ele parou em frente a nossa com um sorrisinho
bobo no rosto, me esperando. Eu me juntei a ele calada. Antes de segui-lo
porta adentro, no entanto, dei uma olhada discreta para trás, sem conseguir
me segurar. O corredor do terceiro ano já estava vazio. Andy sumiu por
semanas.
CAPÍTULO DOZE.
HENRIQUE SILVA.
As férias chegaram e com elas pouquíssima tranquilidade. Em inocentes
quinze dias, eu consegui perder minha virgindade e arrumar um pseudo-
namorado. Mas, calma, vamos por partes. Tudo começou no terceiro dia de
liberdade. Eu estava em casa, inofensivamente assistindo à minha nova
série favorita do momento com meu irmão (Stranger Things) quando
chegou uma solicitação para me seguir no Instagram.
Eu quase engasguei com a pipoca que comíamos quando vi o nome e a
foto.
Henrique Silva.
Caso você não se lembre dele, é o garoto que eu conheci na resenha.
Amigo de Andressa. Aquele que disse que íamos casar. Lembra? Pois é, ele
começou pedindo para me seguir, e eu aceitei. Haviam se passado alguns
bons dias desde que ele havia dado incisivamente em cima de mim. E,
sendo bastante sincera, eu já havia até me esquecido de sua existência.
Contudo, estávamos com bastante tempo livre e as coisas escalaram rápido.
Meus pais estavam bem. Passamos uma semana sem brigas e sem
desconfortos. Renan e Andy estavam fora da cidade e Brenda passando
alguns dias na casa dos avós. Eu fiquei sem distração, basicamente, e com
muita coisa acumulada para deixar sair. Henrique foi a forma que eu
encontrei para lidar comigo mesma e com todo o resto que parecia fora do
lugar. O que era irônico, afinal, ele era um pouco “nível avançado”.
Henrique era o garoto mais velho que já havia beijado várias meninas
do colégio e que flertava por pura diversão. No entanto, era
surpreendentemente bom em assunto não relacionados a flertes também, e
eu me deixei levar pela sua conversa mansa.
Conversamos pelo Instagram por dois dias inteiros antes que ele pedisse
meu WhatsApp e passássemos a nos mandar áudios por lá também. Havia
um frio na barriga agradável em fazer aquilo com ele. Mesmo que fosse
inocente, até então, eu mantinha em segredo, o que tornava toda a situação
tentadora. Ele era tentador. O que eu sentia por ele não era como o que eu
sentia por Renan. Com Henrique, era carnal e inconsequente. Uma relação
intrinsecamente ligada à tensão adolescente acumulada. Sem ninguém por
perto para me distrair, tudo aquilo afunilou em sua direção.
Quando Brenda voltou da casa dos avós, já fazia quatro dias que
conversávamos sem parar, e ele me mandou a seguinte pergunta:

Henrique 9:58h: Mas e ai, gata? Quando a gente


vai sair?

Eu telefonei correndo para minha melhor amiga. Precisava


desesperadamente da sua ajuda. Imaginava que minha mãe não fosse me
deixar sair com um cara que eu conhecia fazia quatro dias. Por isso,
precisaria de Brenda. Ela foi relutante, o que me surpreendeu.
— Camila, o Henrique? Você tem certeza? — conferiu, depois que eu
tinha narrado (aos sussurros) todos aqueles acontecimentos, pedindo sua
ajuda para me dar cobertura em mais uma fuga clandestina, dessa vez para
encontrá-lo.
Para coisas banais e inocentes, como ir ao shopping, minha mãe não
tinha problemas em me abandonar com Brenda. Então, meu plano era que
ela me encontrasse lá, mas me deixasse sozinha com Henrique.
Eu estava eletrizada com a possibilidade de encontrá-lo, de beijá-lo e de
tirar o fato de que Andressa não havia me mandado nenhuma mensagem
desde aquele dia no corredor da minha cabeça.
— Por quê? — A ouvi estalar a língua.
— Porque eu acho que você tá carente e pode se arrepender depois.
Revirei meus olhos.
— Me arrepender do quê? É só um encontro rapidinho, Brenda.
— Você tem certeza que é com ele que quer sair?
Aquilo me paralisou por um bom tempo.
Eu me preocupei de imediato. Será que ela sabia de toda a minha
situação complicada (e que eu não sabia mais em que pé andava) com
Renan?
— Não entendi — me fiz de sonsa. — O que isso deveria significar?
Ela demorou a responder.
— Nada. Eu só acho você muita areia pro caminhãozinho dele. Mas se
você está a fim de fazer caridade... — Sorri.
— Você fala isso sobre todos os garotos que eu comento.
— Porque é verdade.
— Brenda. Eu só quero... — Fiz uma pausa, sentindo-me uma estranha
por explanar aquilo em voz alta. A verdade, no caso. Era sempre difícil
falar a verdade. — Beijar na boca. — Aquilo a fez rir, e eu ri de volta,
sentindo meu rosto ruborizar ao implorar: — Você consegue me ajudar,
pelo amor de Deus?
— Tá bom — cedeu. — Marca com ele às três. Te encontro lá.
— Obrigada, obrigada! — Dei saltinhos de alegria, correndo para
mandar uma mensagem. Ele respondeu de imediato.

Henrique 10:27h: Combinado. Tô ansioso pra te


ver ☺

Eu também estava. Muito. E passei o dia inteiro com a ansiedade me


corroendo, até que enfim desse o horário e minha mãe me levasse ao
shopping.
Brenda cumpriu com o combinado e me largou sozinha com ele quando
ele chegou, usando uma camisa arrumadinha e bastante perfume.
Caminhamos para caramba naquele dia, conversando sobre coisas da
vida. Ele investiu algumas vezes até que eu permitisse, sentindo-me nervosa
com o fato de que eu não tinha experiência beijando. No fim, encaixamos
bem, e eu senti borboletas no estômago quando ele desceu a mão pela
minha cintura. Henrique sabia o que estava fazendo, isso eu não posso
negar. Beijamos muitas vezes depois disso, e eu gostei do seu beijo.
Quando minha mãe chegou para me buscar, eu estava radiante. Ela
desconfiou, mas eu só contei que estava me encontrando com um menino
depois que saímos pela segunda vez (outra vez, no shopping, com a ajuda
de Brenda) e demos uma fugidinha rápida para a sua casa.
Os pais de Henrique eram médicos, tinham seus consultórios e só havia
a senhora que arrumava sua casa quando entramos no apartamento. Ele me
levou para o seu quarto sem nenhuma cerimônia. Brenda não sabia onde eu
estava, o que foi muito imprudente da minha parte, mas toda aquela semana
foi um aglomerado de coisas impulsivas e desconectadas... de mim. Durante
aquelas férias, eu fui possuída por uma personalidade à parte. Uma
personalidade que aceitava ser carregada por um Henrique sem blusa e ser
arremessada em sua cama. Tudo enquanto minha mãe achava que eu estava
no shopping com a minha amiga.
Eu estava ansiosa para “perder minha virgindade”, ao mesmo tempo em
que me encontrava profundamente insegura. Era minha primeira vez, e eu
tinha medo de fazer tudo errado. Era minha primeira vez e, na minha
cabeça, ela seria com Renan. Mesmo que, bom, eu quase não tenha me
lembrado dele naquela semana.
— Eu nunca fiz antes, Henrique — o avisei, quando o vi se movimentar
em direção a uma mesinha de canto e puxar uma camisinha do lado de
dentro. Meu peito batia em disparado. Ele sorriu, beijando minha boca mais
uma vez.
— É só relaxar que vai ser ótimo, gata.
Henrique era um convencido, porém estava certo. Foi bom, para uma
primeira vez. Ele foi cuidadoso e delicado, e eu sempre fui grata por ter
sido tão gentil comigo. O que era o mínimo que ele deveria ter feito, na
verdade, mas que, pelas experiências das outras meninas, não era o padrão.
Se eu tiver que ser sincera, eu nunca fui o tipo de garota que sonha com
a sua primeira vez. Na verdade, eu sempre senti uma necessidade horrível e
infundada de “perder a virgindade” o mais rápido possível, simplesmente
para poder me livrar do título de virgem. Eu sentia uma pressão invisível
recair sobre mim, e eu ainda era tão jovem... Fico triste, sinceramente, por
ter vivenciado isso. Fico triste por muitas pessoas se sentirem obrigadas a
fazer coisas com o próprio corpo que não queiram, simplesmente por
pressão social.
Eu transei com Henrique porque eu queria, mas também para acabar
logo com isso, e para provar para mim mesma, de maneira inconsciente,
que eu podia me relacionar sexualmente com homens. De que eu gostava de
homens e, na minha cabeça, isso excluía o fato de que eu poderia ter
segundas intenções com mulheres. Isso tirou de mim a preocupação do
sonho que eu tive com Andressa e tornou menos desesperadora a vontade
que eu tinha de vê-la.
Minha primeira vez foi na cama de Henrique e a minha segunda em seu
carro (sim, ele tinha um carro, seus pais tinham realmente muito dinheiro).
Quando as férias acabaram, a gente estava se encontrando quase todos os
dias e se embolando escondidos em todos os cantos que conseguíamos (no
seu carro, na maior parte das vezes). Contei aos meus pais que estava
saindo com um garoto depois que transamos pela primeira vez e, apesar do
choque, eles quiseram conhecê-lo. Ele tinha dezoito anos, e aquilo os
preocupou, mas Henrique sabia como lidar com a situação. O maldito
ganhou o apreço da minha mãe ao aparecer para o jantar que marcamos na
minha casa de camisa polo e um jarro de flores. No final, ele só precisava
impressionar ela mesmo. Meu pai e meu irmão seguiam as suas ordens, e
Henrique era um bom garoto. De verdade, ele sempre foi. E nós vivemos
uma história corrida e intensa de Lua de Mel por todas as minhas férias.
Mas, bom, Luas de Mel acabam, e férias também.
Eu tive a primeira surpresa quando as aulas recomeçaram. Mais
especificamente, quando tia Diana foi me buscar na minha casa pela manhã.
No fim, ela continuou me levando nas segundas e quartas desde que
meu pai voltou de viagem. Ele foi dispensado de sua única
responsabilidade, podendo chegar mais cedo no trabalho e — palavras dele
— ficar cada vez mais próximo da promoção.
Entrei com Gabriel e sentei no banco de trás, como sempre fazia, dando
de cara com Andy.
Minha estranheza se dava pelo seguinte motivo: ela nunca ia com a
gente. Depois que passou a ficar à tarde no colégio, ia e voltava de carro
com os pais de uma colega da sua turma e eu só a via em situações
extremas como resenhas ou quando ela me encurralava no corredor. Esse
era o primeiro ponto de destoância. O segundo era que, quando ela estava
no carro (raridade), ela nunca ia no banco de trás. Era lei, ela era a irmã
mais velha, então o banco do carona era seu por nascença, e ela sempre me
deixava apenas com a visão de seus cabelos e, esporadicamente, seus
lábios, no retrovisor. Não naquele dia. Ao retornar da Lua de Mel com
Henrique, fui presenteada com todas as partes dela ao meu lado. Tentei não
me incomodar com isso, nem florear muito sobre o fato de que ela estava
linda queimada de sol. Eu tinha um pseudo-namorado homem, havia
superado o constrangimento e... todo o resto que ela me causava.
— Ué — fui incapaz de não expressar minha surpresa em alto em bom
som. — Você vai com a gente hoje?
Gabriel cumprimentou Renan com um toque de mãos, posicionando-se
como uma barreira entre mim e Andressa. Meu amigo se entortou para me
responder.
— Ela perdeu a carona, acordou atrasada — dedurou, soando animado.
Eu o encarei e sorri.
Havia conversado com Renan nos intervalos em que eu não estava com
meu novo ficante e ele havia me mandado dezenas de fotos de seus
passeios. No fim, senti falta de sua companhia diária e me surpreendi
quando o sentimento me pareceu... uma saudade normal. Henrique
consumia boa parte da minha energia e, quando Renan me mandava um oi,
eu não sentia mais meu coração palpitar tão bruscamente.
Ainda não tinha parado para refletir sobre aquilo. Sobre como eu não
sentia mais um vácuo no meu peito quando recebia uma mensagem sua.
Minha paixão por ele foi sendo gradativamente espremida por todo o resto.
— É, pois é — concordou Andressa, e eu tive que encará-la mais uma
vez. Havia algumas trancinhas espalhadas pelos seus cabelos e uma áurea
sorridente ao seu redor. Aquela viagem havia feito bem para ela, ela voltou
mais leve. E decidida. — Desacostumei a acordar cinco da manhã.
— Você nem acorda às cinco, cara — protestou Renan. — Se acordasse,
seria melhor. Ocupa o banheiro por horas e me atrasa todos os dias. Camila
e Biel, vocês acreditam que ela demora tipo trinta minutos para tomar
banho todas as manhãs?
Ah, eu acreditava. Seu cheiro bom não deixava espaço para
argumentações.
Sorri.
— Bom, você sempre tem a opção de acordar mais cedo e ir antes dela.
— Aí. Viu? — Ela sorriu, orgulhosa. — É exatamente o que eu digo.
— Camila — protestou Renan, entortando-se outra vez para trás, com
falsa indignação em seu rosto. — Você deveria estar do meu lado.
— Ela é time meninas — Tia Diana se intrometeu e eu a vi sorrir pelo
retrovisor. — E como você tá bonita hoje, Cami! Você também,
Gabrielzinho — comentou, girando o volante, embicando na rua e me
deixando sem graça.
Eu estava bonita porque havia me arrumado, e eu só havia me arrumado
porque aquela era a primeira vez que eu encontraria Henrique na escola, me
pegando profundamente nervosa em relação àquilo. Como encararíamos
aquela relação em público? Será que ele levaria nossa Lua de Mel a sério?
Será que queria algo mais? Será que eu queria? Estava apavorada com as
possibilidades, mas preciso confessar que fiquei mais tensa ainda quando
Andy concordou com Tia Diana, dizendo:
— Estão mesmo. Como sempre.
Senti meu rosto esquentar, então desviei o meu olhar para a janela,
agradecendo por Gabriel ter tomado o assento do meio. Eu não tinha me
preparado emocionalmente para lidar com ela tão cedo.
— Obrigado — agradeceu Gabriel, educado, me lembrando de ser
também.
— Sim. Obrigada — disse, mantendo minha atenção fixa no caminho
até que o vermelho do meu rosto sumisse e chegássemos à escola.
Gabriel estava no ensino fundamental, então ele pegava um caminho
diferente do nosso, ficando no térreo. Sempre nos abandonava quando
chegávamos às escadas. Geralmente quem as subia era eu e Renan, uma vez
que Andy, repito, não ia conosco desde o semestre passado. Contudo,
naquele dia, os papéis se inverteram. Assim que chegamos à ponta da
escada, Renan travou, ajeitando o cabelo e dizendo:
— Podem ir na frente. Eu vou... comprar uma coisa na cantina antes.
Estranhei sua fala, ele nunca comprava nada na cantina, mas Andressa
sorriu e acatou, continuando o caminho. Achei que seria grosseria não fazer
o mesmo.
Então subimos as escadas em silêncio. Você já sabe como eu me
comporto em situações como aquelas, não sabe? Pois é, eu precisei falar.
Era esquisito que troteássemos degrau por degrau com tantos nadas nos
empurrando em direção ao chão. A gravidade parecia mais pesada em
momentos como aqueles, e eu precisava falar alguma coisa para ser menos
denso.
— Então — puxei assunto quando já chegávamos aos últimos degraus.
Ela me encarou, esperando pelo prosseguimento. — Como foi a viagem?
Seu sorriso atingiu seus olhos.
— Ah, foi ótima. A gente passou um bom tempo com uma parte da
família que quase não encontramos. Por parte de mãe. A família da minha
mãe mora toda lá — explicou, mesmo que não precisasse. Eu sabia bastante
sobre a sua família.
Todos os familiares de tia Diana eram da Bahia. Entretanto, com
exceção daqueles anos que moraram lá, Andressa e Renan passaram grande
parte de suas vidas no Rio de Janeiro. O período que passaram no nordeste,
a mãe de tia Diana estava em tratamento de câncer e, como a filha mais
velha, ela foi para ajudar. No fim, graças a Deus, ela acabou se curando, e
eles retornando para cá, para a minha vida. Fazendo um céu e um inferno
dela.
— Foi realmente muito bom.
Sorri em retorno, analisando-a por alguns instantes.
— Você parece diferente — conclui. Ela franziu a testa.
— Como assim diferente?
— Não sei. Mais... radiante.
Andressa reforçou meu ponto ao sorrir, com ainda mais intensidade.
— Bom, você também. — Engoli em seco. A minha justificativa para
aquilo era simples. Você sabe o que dizem, faz bem para a pele e tudo mais.
Mas qual era a dela? — Como foram as suas férias? — retribuiu.
Intensas. Sem roupa. No carro do seu amigo.
— Ah. Normais.
— Normais? — Riu. — Só isso? — Dei de ombros.
Não, eu não queria falar que havia passado metade dos meus dias com
Henrique. Não... ainda. Ela sorriu.
— Certo, normais então. Com normais imagino que você tenha ficado
assistindo Stranger Things. O que achou da série, a propósito?
Franzi minha testa.
— Como você sabe sobre Stranger Things?
Ela deu de ombros, nada constrangida por ter sido pega.
— Renan me contou.
— Ah. — Ri. — Quer dizer que ele sai contando da minha vida por aí?
Ela sorriu antes de dizer:
— Só quando eu pergunto.
Ótimo, o frio na barriga voltou. Tirou férias, foi sufocado, amordaçado,
queimado vivo, mas voltou.
Então ela tinha perguntado sobre mim. Não havia me mandado
mensagem, ou dado sinal de vida, mas havia perguntado sobre mim.
A primeira coisa que eu pensei foi: ainda bem que eu não havia contado
a Renan sobre Henrique.
— A série é boa — garanti, ao notar que estávamos nos aproximando
dos nossos corredores e que nossos caminhos se oporiam em breve. Outra
vez. — Mas não acabei ainda.
Porque não tive tempo, estava beijando seu amigo!
— Acho que vou começar a ver — concluiu, e eu assenti.
— Depois me diz o que achou.
— Claro! É só pra poder puxar assunto contigo mesmo que eu vou
assistir.
Sorriu depois de dizer aquilo, dobrando a esquina para o seu corredor e
se misturando aos alunos que peregrinavam em direção a sua sala.
Eu disse que ela voltou mais decidida depois das férias. Uma filha da
mãe.
Diminuí a velocidade dos meus passos, tentando, como sempre, arrumar
uma justificativa para as suas palavras. Não existia a possibilidade de
Andressa estar flertando comigo. Zero chance. Eu sabia de algumas fofocas
ao seu respeito, e sabia que ela tinha seus casos com homens. No entanto,
ela certamente falava coisas ambíguas, e deixava tudo esparramado, para
que eu tivesse que catar as peças e organizar a figura.
Só que, porra, Andressa, você deveria saber que eu não faria isso
naquela idade. Pelo contrário! Eu chutava as peças para os lados, escondia
debaixo do tapete e beijava caras na esperança de que eu jamais visse a
porcaria da figura. Na esperança de que eu jamais descobrisse algo que eu
não queria descobrir.
Eu estava amedrontada, profundamente amedrontada. Fora isso, eu não
tinha nenhum conhecimento sobre sexualidade. Todos os meus amigos eram
heterossexuais, meus pais, meu irmão. Os programas que eu assistia, as
novelas e os filmes eram histórias sobre homens e mulheres héteros. No
máximo, existiam coisas sobre homens gays, mas eles eram sempre fadas
madrinhas cheias de purpurina e com uma piada para cada situação. Eu
vivia em uma bolha, e eu só não... pensava sobre. De vez em quando, claro,
eu me pegava curiosa. Como foi o caso de Orange is The New Black (se
você não viu essa série, assista. É bem gay). Mas eu não sei, me parecia
uma coisa distante, estereotipada e... confusa. Eu não precisei pensar sobre
aquilo até que Andy surgisse. Eu achava que o que eu sentia era corriqueiro,
que todo mundo se sentia levemente obcecado por mulheres poderosas,
como a Delegada Heloísa de Salve Jorge (aliás, como isso poderia não ser
verdade?). Eu queria assistir à novela apenas por ela. Na época, eu não
sabia nomear o sentimento, mas ela foi minha primeira grande crush
televisiva. Andressa a minha primeira na vida real. Só não conte isso a ela.
— Olha só quem eu encontrei... — a voz de Henrique chegou antes que
a sua boca, o que era uma situação inédita. Mas ele não poupou língua, se
você quer saber, me pegando de surpresa quando eu estava quase a salvo no
meu corredor.
Sim, ele me beijou. Na frente de todo mundo. Aparentemente, eu tinha a
minha resposta. Ele não tinha problema nenhum em continuar com as
coisas que estávamos fazendo.
— Ei, ei, pode separar — um monitor surgiu gritando e Henrique tirou
as mãos de mim com um sorriso torto no rosto.
Eu me peguei completamente desnorteada com tudo que acontecia.
— Nossa, como você tá linda — disse, me lembrando de que eu havia
colocado aquelas presilhas douradas para ele. Que eu estava ficando com
ele. E que era por ele que eu deveria sentir frio na barriga. — Vai fazer o
que hoje depois da aula? Quer uma caroninha? — ironizou.
Oferecer uma carona era sua maneira sutil de me convidar para transar
com ele. A gente não conseguia mais escapar para a sua casa. Depois que
meus pais souberam que eu estava me encontrando com ele, as regras se
tornaram rígidas e eles vigilantes. Encontramos uma brecha, que era o seu
carro. Mas, bom, seria difícil fazer aquilo depois da aula. Tia Diana ia me
buscar, e ela nunca atrasava.
— Não dá... eu volto com Renan.
Ele riu.
— Ah, Renanzinho. Acho que se eu pedir, ele abre essa exceção.
— Não. — Fui mais rápida do que deveria, me arrependendo logo em
seguida.
Eu não queria que ele falasse com Renan. Não queria que Renan
soubesse. Não queria que ninguém soubesse. Mas seria bem difícil agora
que ele tinha me agarrado na frente de metade do meu ano.
— Minha mãe não vai gostar — tentei corrigir meu erro com uma
desculpa realista. — Ela vai... imaginar o que aconteceu e vai proibir a
gente de se encontrar.
Ele assentiu.
— É, tem razão. — Não podia me tocar, porque o monitor estava perto,
mas poderia me encarar com aqueles olhos cheios de promessas indecentes.
— A gente arruma outro jeito então. Boa aula, Mila. — Beijou minha
bochecha, correndo para longe antes que o monitor pudesse reclamar outra
vez.
Eu me mantive ali por alguns instantes, processando tudo aquilo.
Mila.
Parecia errado quando ele me chamava assim na escola, perto dela. Quis
pedir para ele parar, mas nunca o fiz.
Engraçado, durante todos os dias das minhas férias eu só pensava em
Henrique. Em Henrique sem roupa, beijando minha boca. Mas parecia que
tudo aquilo havia secado. A realidade retornou, bagunçando todo o conto de
fadas. A realidade trouxe Andressa de volta e havia muitas coisas
acontecendo no espacinho que ela ocupava. Era por ela, sempre foi por ela,
mas também era por mim. Era pelo que eu sentia e não conseguia entender.
Pelo que eu sentia e sufocava. Henrique sabia o que queria, ele queria
continuar com a nossa aventura, mas eu não. Pena que eu nunca era sincera
com os meus sentimentos.
CAPÍTULO TREZE. CUPIDO
NÃO PRECISA AMAR.
— Você beijou Henrique Silva no meio do corredor?
Fatalmente e nada surpreendentemente, a fofoca se espalhou rápido, e
chegou aos ouvido de Renan antes mesmo que ele alcançasse nossa sala,
carregando coisa nenhuma da cantina.
Eu estava sentada na minha cadeira, tirando, na tranquilidade
inexistente da minha droga de vida, meu caderno da mochila, quando ele
me abordou com sua grande bomba.
Apesar de não ter lugar marcado nas salas da minha escola, havia uma
disposição esperada de todos os dias. Renan tinha um lugar ao meu lado.
Naquele momento, quis mentir e dizer que ele já estava ocupado.
— O que você foi comprar na cantina? Vento? — resolvi o acusar de
volta, o que foi uma ótima estratégia, porque, aparentemente, sua culpa era
maior que sua curiosidade. Ele engoliu em seco.
— Ok. Você me pegou. — Renan era do tipo que se entregava rápido.
Ele não era capaz de guardar segredos. Meu extremo oposto. — Eu fiquei lá
embaixo esperando. — Abaixou seu tom de voz, sentando-se na cadeira ao
meu lado. Parecia constrangido e humilhado. Eu franzi minha testa.
— Esperando o quê?
— Brenda.
Arregalei uma sobrancelha.
— Brenda? — me surpreendi. Os Batistas realmente tinham voltado
motivados daquelas férias. Meu Deus do céu, o que havia nas águas da
Bahia? — Mas ela não vem hoje...
Era verdade, ela estava doente. Garganta inflamada. Brenda costumava
ter bastante disso. Eu li uma vez que as dores de gargantas estão muito
ligadas ao emocional, o que faz todo sentido. Ela não teve uma
adolescência fácil com seus pais.
— É, eu percebi isso tarde demais. Fiquei lá à toa. — Bufou. — Eu ia...
puxar assunto, sei lá. Ouvi dizer que ela não tá vendo ninguém e achei que
valia a pena tentar me aproximar. Finalmente.
Eu o estudei por alguns segundos; buscando, dentro de mim, o ciúme
que eu costumava sentir quando ele falava da minha melhor amiga no
começo de sua grande e súbita paixão, mas não o encontrei. Nem uma
gotinha dele. Evaporou depois que a droga do meu Sol chegou à minha vida
(e Henrique também, coitado. Ele teve seu papel. Ele era tipo... um pedaço
da Lua).
— Por que você não me perguntou? — Ele deu de ombros.
— Sei lá, porque eu fiquei com vergonha, eu acho.
— De mim?
Uma hipócrita, não? Eu costumava sentir muita vergonha dele.
Especialmente quando ele estava sem camisa. Mas acho que o fato de ter
transado com Henrique me deixou imune a homens pelados (ou seminus).
Eu conseguia aguentar, não era nada tão esquisito assim. Na verdade,
depois de Henrique, várias coisas me pareciam... distantes. Eu sentia que
havia me afastado da casa de bonecas, me afastado daquele sentimento
“infantil”.
Viu. Ele teve seu papel, eu disse!
— Óbvio. — Ele riu. — É patético.
— Patético por quê?
— Porque ela claramente não tá nem aí para mim.
Tá legal, eu senti pena de Renan naquele instante. Pena de verdade. Não
a pena que eu fingi sentir quando ele me contou de sua paixonite pós-beijo,
ou quando ele lastimou o fato de ela não ter ido à sua festa surpresa de
aniversário. Eu sabia como era gostar de alguém que não gostava de você
de volta, e era horrível que ele se sentisse assim. Renan era o cara mais
legal que eu conhecia e Brenda a minha pessoa favorita no mundo. Se eu
não estava destinada a ter um futuro ao lado do meu príncipe, seria egoísmo
torcer para que a minha melhor amiga também não estivesse.
Brenda tinha tantos problemas! Eu jamais conseguiria contar todos em
só um parágrafo. No entanto, mesmo assim, ela era solícita e amigável com
todo mundo. Ela ria, me ajudava e fazia de tudo para estar presente quando
sua vida desmoronava. Eu sempre tive muita sorte por tê-la encontrado,
assim como a Renan. E eu ainda sentia uma pontinha de paixão platônica
por ele, acho que sempre sentiria, mas não era nada comparado à
intensidade de uma verdadeira paixão. Aquilo estava reservado a outra
pessoa, assim como a dele.
— Escuta, Renan. — Virei-me em sua direção no momento exato em
que a professora entrou na sala.
— Bom dia, queridos.
Era aula de história. A minha favorita.
— Bom dia, professora — respondemos, cada um a seu tempo, à
medida que ela apoiava seu material na mesa e ligava o Power Point.
Enquanto a aula não começava, eu me inclinei na direção do meu
amigo, continuando, em um sussurro:
— Eu vou te ajudar com Brenda. — Ele arregalou os olhos, surpreso e
amedrontado com a promessa.
Sorri, para reforçar meu ponto e ele retribuiu. Achei que tínhamos
encerrado o assunto com meu ato caridoso, mas então ele se aproximou,
dizendo:
— Depois que me contar sobre Henrique, eu espero.
O empurrei, sentindo a avalanche de sentimentos me soterrar.
Não, Renan. Eu estava decidida a ser o cupido e ignorar a minha vida
amorosa. Por favor, entenda isso. Cupido não ama, nem precisa refletir
sobre a sua sexualidade.
— Mudei de ideia, tenho uma condição. Só te ajudo se você nunca mais
tocar nesse assunto.
Ele gargalhou alto demais, o que trouxe vários olhares para nossa
direção. Ficamos calados, fingindo prestar atenção no que a professora
começou a projetar. Minutos depois que decretamos o assunto encerrado,
contudo, ele puxou uma caneta do meu estojo, escrevendo, na ponta do meu
caderno.
“Me disseram que foi um beijo cinematográfico”.
Pois é, é isso que se ganha ao continuar amiga de seu amor de infância.
Caiu a ficha ali de que, depois daquelas férias, não existiria mesmo nenhum
rastro de paz na minha existência.
CAPÍTULO QUATORZE. EU
ODEIO OS BISSEXUAIS.
Depois que eu decidi ser cupido, minha vida se tornou mais simples. Eu
estava obcecada com a ideia de fazer Renan e Brenda darem certo,
concentrando (à força) toda a minha energia naquela responsabilidade, o
que significava que não havia espaço para mais nada na minha mente. Nem
tempo para drama de Henrique, muito menos de Andressa. Resolvi
simplificar as coisas. Toda a parte que a envolvia era assustadora, então eu a
escondi de volta na gaveta. Com Henrique, era mais fácil. Ele queria me
beijar, eu gostava do beijo dele, então o beijei, aceitei as piadinhas de
Renan a respeito e empurrei as coisas com a barriga pelos dias que se
seguiram.
Tenho certeza de que Andressa ficou sabendo do nosso
“relacionamento”. Se não por Renan, pelo próprio Henrique, mas, se soube,
não comentou. Não foi para a escola conosco nos dias conseguintes,
acordando a tempo de pegar sua carona e me deixando respirar.
Henrique era um príncipe quando queria, quase tão encantado quanto
Renan. Esperava na porta da escola e segurava minha mão até que o
monitor mandasse a soltar. Desejava boa aula e me mandava mensagem nos
intervalos. Durante a semana, meus pais não me deixavam vê-lo (só
deixavam eu me encontrar com ele nos sábados, eu tinha que focar nos
estudos e tudo mais), então passamos os dias apenas conversando, testando
aquela nova dinâmica. E foi... normal. Cupidos convivem bem com o
normal, no entanto. Cupidos têm coisas mais importantes para se preocupar.
Cupidos resolvem fazer um programa entre amigos, pseudo-namorados e
acabam sendo flechados nas costas quando menos esperam.
— Camila, sério? Eu ainda tenho que cobrir pra vocês? Tem sido
bastante complicada essa dinâmica do seu pseudo-namoro — ironizou
Brenda, quando eu a chamei para ir ao cinema comigo e com Henrique, no
final se semana.
Sim, foi ela quem cunhou o termo e sim, essa era a minha estratégia. Ela
não sabia, mas eu havia combinado com Renan também. Ele ia aparecer
sorrateiramente no mesmo cinema que a gente, eu fingiria surpresa e
colocaria os dois sentados um ao lado do outro. Depois, eu inventaria uma
situação para deixá-los sozinhos. Eles iam se apaixonar e a minha mais
nova missão na Terra teria sido cumprida.
Era genial!
Renan não teve dificuldade em aceitar o plano, somente Brenda.
Quando a chamei para sair comigo e com Henrique, sentada à mesa de
plástico do colégio, com nossos sanduiches na nossa frente, ela revirou os
olhos.
— Por que você não namora logo a Andressa? Assim sua mãe não vai
implicar com nada. Ela a ama de paixão. — Havia bem mais descontração
que crítica em sua fala, mas, mesmo assim, eu paralisei.
Encarei-a séria, deixando evidente que não achei aquilo engraçado. Que
não entendi de onde caralhos aquilo veio. Ela não ligou.
Brenda era uma sacana e sabia disso. O sorriso torto em seu rosto
entregava que ela fazia de propósito.
Essa foi sua primeira cutucada. A segunda veio no dia seguinte, quando
nos encontramos no cinema. Sim, ela aceitou, e me xingou quando viu
Renan, mas eu nem escutei, afinal, Henrique também havia resolvido levar
companhia.
Adivinha quem.
Te dou uma chance.
Pois é. Surreal!
Andressa Batista era sua acompanhante.
Ele era seu próprio inimigo, e não fazia ideia.
— Ela estava surtando de novo com os estudos, aí chamei ela pra vir se
distrair com a gente. Tudo bem? — justificou, me segurando pela cintura
enquanto Andressa cumprimentava Brenda e seu irmão. Renan estava tão
apático e perplexo quanto eu. — Te compenso à noite — prometeu, no pé
do meu ouvido, e eu tremi.
Ah, eu tinha certeza que o faria. No entanto, até que chegasse a noite, eu
o amaldiçoaria e amaria nas mesmas proporções por tê-la levado até ali.
Andressa vestia uma calça jeans larga e uma camiseta preta. Não vinha
mais alisando o cabelo e eu gostava muito daquilo. O delineado em seu
olho estava presente, assim como seu perfume, mas as mãos que seguravam
a alça da bolsa balançavam. Havia uma expressão diferente em seu rosto
quando ela se aproximou de nós, um ligeiro franzir de sobrancelhas. Renan
e Brenda ficaram mais atrás.
Minha amiga estava com o braço cruzado e um bico desde que o viu,
entendendo rapidamente a emboscada. Brenda não gostava de ser obrigada
a fazer as coisas; seu azar era que eu adorava a obrigar, e estava
extremamente motivada.
— Que incrível, saí de casa para Renan querer comer meu fígado —
anunciou Andy, estacionando na nossa frente, mas afunilando toda a sua
irritação no meu pseudo-namorado. Cruzou os braços, largando as alças
para batucar com os dedos em seu antebraço. — Que ideia de merda foi
essa, Henrique?
O maldito riu.
— Ei, não cresça pra cima de mim. Eu também não sabia que isso aqui
era uma armadilha pro garoto. Achei que só viria a Cami e a Bre. Foi mal.
— A culpa é minha — admiti, chamando a atenção dos dois.
O olhar de Andressa recaiu sobre meu rosto e ela descruzou os braços,
parecendo subitamente inofensiva quando mirou em mim.
Ao ser alvo de sua atenção, eu quis me afastar de Henrique. Quis... sei
lá o que eu quis. Quis que ela não soubesse o que já sabia. Não quis que ela
interpretasse... a verdade. Não queria estar tão grudada a ele, mas, ao
mesmo tempo, ele era uma armadura. Ele me impedia de fazer besteira.
Impedia de abrir novamente a gaveta. Eu estava grudada a um homem, ela
não podia me atingir!
— Eu armei em segredo — disse, e Henrique riu mais uma vez.
— Astuta. Mas você podia ter me contado, eu teria poupado a vergonha
com a irmã.
Andressa revirou os olhos.
— Porra. Valeu mesmo, Henri. Me sinto super bem-vinda agora.
— Claro que você é bem-vinda — corrigi-a rapidamente.
Henrique havia dito que a convidara porque ela estava estressada com
os estudos e, mesmo que fosse esquisito o fato de estar ali, eu gostaria que
ela se distraísse e que se sentisse bem-vinda. Ela já havia feito o mesmo
comigo, e a verdade é que sua presença jamais poderia ser ruim. Era
justamente o contrário.
— Viu só? Foi uma ideia ótima — Henrique me apoiou, largando minha
cintura e dizendo: — Vou ao banheiro logo, para não atrapalhar o filme. Já
volto, gatinha.
Então pousou um beijo na minha bochecha, me abandonando sozinha
com Andressa.
Fitei-a e ela não retribuiu. Desviou seu olhar para o chão, cruzando e
descruzando os braços outra vez. Parecia nervosa. Parecia nervosa?
Mais atrás, Renan seguiu Henrique em direção ao banheiro, e Brenda
aproveitou a deixa para pisar firme em minha direção.
Soltava fogo pelas ventas quando estendeu uma nota de vinte reais.
— Eu vou te matar. — Estatelou a nota no meu peito, dramática. —
Compra pipoca pra mim? Pequena.
Envolvi-a com os meus dedos.
— Se eu comprar, você me perdoa? — Não demorou nem um segundo
para dizer:
— Não.
Então se afastou novamente, encontrando uma poltrona e se sentando.
Mais do que imediatamente, pegou o celular e começou a mexer, ranzinza.
Eu não me preocupei com aquilo. Sabia que ela não estava tão brava assim.
Era tudo para manter a postura. Éramos melhores amigas por um motivo, eu
faria o mesmo.
— Parece que eu vou comprar pipoca pra Brenda — arrisquei, voltando
a fitar Andy com um sorriso amarelo. — Quer... ir comigo?
— Quero — respondeu de imediato, depois suspirou. — Acho que eu
vou comprar pro meu irmão também, como um pedido de desculpas —
justificou.
Eu suspeitava que não seria o suficiente, mas, mesmo assim, nos
encaminhamos até a fila. Estava ligeiramente grande, afinal, era sábado e a
semana de lançamento daquele filme. Eu sinceramente não me lembro do
que vimos, só que Andressa parecia profundamente culpada ao dizer:
— Camila, me desculpa mesmo por ter vindo. Eu não fazia ideia de que
isso era um passeio de casais. — Troquei de pé, incomodada. Quis a
corrigir e falar que não era um passeio de casais, mas seria estúpido, porque
era. — Henrique me chamou pra ver um filme, mas eu não sabia que você...
vocês... vinham também.
— Andy, tá tudo bem. De verdade. Na realidade... eu só tô aqui pra
ajudar Renan. Estou armando para ele e pra Brenda. Você sabe que ele é,
tipo, obcecado por ela?
— Sei. — Riu, parecendo, por alguns mínimos segundos, menos tensa.
— Desde o começo do ano.
É, desde o começo do ano. Desde que ele havia quebrado meu coração.
Mas tudo bem, cupidos não se importam com isso.
— Pois é! E eu prometi que ia ajudar ele, só que Brenda é difícil e
desconfiada, então eu tive que criar toda uma situação para que ela aceitasse
vir.
A fila andou um pouco e nós a seguimos. Andy assentiu.
— Entendi.
Então ficou outra vez em silêncio e aquilo me perturbou profundamente.
Ela estava agindo estranho, e era a minha vez de ficar nervosa.
— Você não tá... atrapalhando nada. De verdade mesmo — repeti,
apenas para deixar claro. Vai que ela tivesse dúvidas!
Minha insistência, graças a Deus, a fez sorrir.
— Só um pouquinho, vai.
— Não — repeti. — Não tá.
— Renan discorda. Ele quase me chutou quando me viu.
— Ah, ele vai superar. Brenda também é orgulhosa, não ia rolar nada
hoje, com plateia e sem álcool. Arranjado, então! Mas me diz, o que você
tem feito nesses dias? Faz tempo que a gente não se fala. Começou a ver
Stranger Things? — cuspi tudo de uma vez, comendo algumas sílabas pelo
caminho.
Eu não era muito discreta na minha tentativa de mudar de assunto, mas
a minha incrível vocação rapper pareceu distraí-la. Acho que tinha a ver
com o fato de que teve que repetir minha pergunta dezenas de vezes em sua
cabeça até entender. Tinha vezes que eu realmente falava muito rápido. Era
outro defeito. Espero que você não esteja os contabilizando.
A fila andou mais uma vez. Estava mais rápida do que eu gostaria. Só
mais duas pessoas e chegaria a nossa vez. Eu carregava a nota de vinte e ela
um sorriso murcho. Depois de decodificar minha fala, confessou:
— Ainda não, mas te garanto que você vai ser a primeira a saber quando
eu começar. — Suspirou outra vez. — Foi mal, é que o vestibular tá me
matando lentamente e eu tô sem tempo pra nada — justificou, prestando
atenção na televisão com as opções de pipoca quando a fila andou de novo.
— Você vai querer qual tamanho?
— Ah, eu não quero não.
Ela me encarou com a sobrancelha arqueada.
— Como assim? Você enjoou de pipoca depois de comer todos os dias
por causa do meu irmão sem noção? — Foi minha vez de sorrir.
— Não. É porque pipoca de cinema é inflacionada.
Essa era só uma frase do meu pai que eu repetia, mas que era realidade.
Aquilo era o valor dos meus dois rins e, talvez, do meu pé esquerdo.
Pensando bem, dos meus dois pés. Eu tinha os pés feios e aquela pipoca
era cara. No entanto, aquilo não parecia importar para Andy. Nenhuma das
situações.
— Próximo! — Chegamos à beira do caixa e ela pediu:
— Boa tarde. Três pipocas pequenas, por favor.
— Três? — Ao repetir em voz alta, entendi. — Ah. Andy...
— Quer beber alguma coisa?
— Andressa.
— Você não toma refrigerante, não é? — relembrou, aleatoriamente, e
eu assenti, sem conseguir abrir a boca.
Desconcentrou-me que ela lembrasse daquilo. Eu recusei um copo de
refrigerante na sua frente quando tinha nove anos de idade, nunca depois.
Só que bom, era verdade. Eu não tomava refrigerante, me fazia mal.
Estando certa sobre a minha restrição, ela continuou:
— Quer um suco então? Moça, tem suco de quê?
— Só tem latinha. Ice Tea ou Dell Vale.
— Eu vou te bater, Andressa.
Ela me encarou sorrindo.
— Tá bom, acho que aguento essa gravíssima consequência. — Revirei
os olhos. Ela insistiu: — Ice Tea ou Del Valle?
— O mais barato, moça, por favor — cedi, apenas para sair logo dali e
deixar a pobre moça em paz.
Eu odiava ser indecisa no caixa, esse era o pior tipo de interação social
para mim. Era uma responsabilidade tremenda decidir o que comer, pagar e
não atrapalhar as outras pessoas atrás. Quem você é quando chega a sua vez
no caixa diz muito sobre você. Andressa, por exemplo, era uma cara de
pau!
— Mais alguma coisa? — quis saber a moça, Andy negou, o pedido foi
fechado e ela não me deixou pagar (nem mesmo a pipoca de Brenda).
Juntas, nos encaminhamos para o balcão de vidro ao lado, para esperar
o nosso pedido. O cheiro de pipoca de cinema tomava conta de todo o
ambiente. Eu a encarei, cruzando os braços.
— Essa pipoca não é pra mim, é?
— Óbvio que é. Quem vai ao cinema e não compra pipoca?
— Você, aparentemente.
— Eu não conto. Eu não ligo pra pipoca. Você é obcecada. — Sorri.
— Renan é obcecado. Ele que compra sempre.
— E você nega quando ele compra pra você ou é só comigo?
Era só com ela.
Abri a boca para retrucar, mas não tinha uma resposta boa o suficiente,
então tudo que fiz foi rir, balançando a cabeça e acusando:
— Você ganhou na loteria ou algo parecido?
— Talvez. — Apoiou seu quadril no balcão. — Se eu aparecer
buzinando uma Mercedes você saberá a resposta.
Certo, se tudo aquilo era uma cena para me impressionar, estava
funcionando. Eu esqueci por completo da minha missão cupido. Esqueci
dos meus dramas complexos e de que eu devia ser simpática para que ela se
sentisse bem-vinda e distraída. Quem me distraía era ela!
Aproveitei a desculpa de que precisávamos esperar as pipocas para
puxar assunto.
— Me fala mais sobre o vestibular. Então é isso que está te deixando
assim?
— Assim como? Destruída? Achei que tinha disfarçado melhor as
olheiras...
— Andressa — a repreendi. — Você sabe que nunca está algo diferente
de linda. Pare de implorar elogios para mim.
Acho que exagerei, sempre acabava exagerando perto dela. Eu a achava
a criatura mais bonita que existia no planeta Terra, e acho que deixei isso
mais claro do que gostaria. Para a minha sorte, ela levou na brincadeira,
rindo de volta.
— Você não é nada fácil mesmo, Camila.
— Não. — Pigarreei, voltando a focar no que realmente importava: —
Mas eu quis dizer... ansiosa. Como vão os estudos? Você quer... conversar
sobre? — Acho que ela se surpreendeu por eu notar aquilo.
Inspirou profundamente, demorando um tempo para dizer:
— Ah... eles vão mal. — Então riu, nervosa. — Eu não gosto muito de
estudar, sendo sincera, então todo o processo é ainda mais desgastante. E a
pressão é simplesmente absurda.
Apoiei meu braço em cima do balcão, como ela fazia, com os
chocolates e balas também inflacionados nos encarando de volta.
— Você quer fazer o que de faculdade? — perguntei, notando que nunca
havíamos conversado sobre aquilo antes. Andressa deu de ombros.
— Tudo e nada ao mesmo tempo.
— O que seria tudo?
— Eu achava que queria medicina, só que, sei lá, acho que não é uma
profissão muito compatível com quem acabou de dizer que não gosta de
estudar. Além do mais, eu tenho medo de sangue.
— Uau. Sério?
— Uhum. — Deu de ombros. — É meu único defeito.
Não tive como não rir daquilo. Ela me acompanhou.
Havia parado de balançar seus dedos e trajava novamente sua feição
descontraída, o que sempre me hipnotizava. Andressa tinha os dentes
alinhados, com exceção de um dos caninos. O mais à esquerda. Ele ficava
exposto quando ela sorria daquele jeito. Com sinceridade. Para mim.
Gostava de pensar que ficavam daquele jeito quando sorria para mim.
— E quais são as suas outras opções?
— Jornalismo, publicidade... — começou a enumerar. — Direito,
meteorologia...
— Meteorologia?
— É. — Riu. — Eu gosto dessas coisas. Teve uma época que eu
passava o dia inteiro assistindo “Caçadores de Tempestade”.
— Meu Deus.
— Acredite, eu tenho minha parcela esquisita.
— Nossa! — exclamei, realmente surpresa com aquilo. Não somente
com o fato de ela ter uma “parcela esquisita”. Estava surpresa com várias
coisas daquele diálogo. Verdade era que eu não sabia de nada daquilo, uma
vez que fugia todas as vezes que começávamos a ser minimamente íntimas.
— Eu morro de medo de tempestades — compartilhei, e ela me encarou por
alguns longos segundos antes de dizer:
— É, comprovamos.
— O quê?
— Que ninguém pode ser perfeito. Nem mesmo alguém como você.
Quando tinha dezoito anos, Andressa estava se aperfeiçoando na arte de
ser galanteadora. Adianto que ela evoluiu com o tempo, mas sempre teve
um talento natural.
Desviei o olhar para disfarçar o fato de que ela havia me deixado
desconfortável.
Sério. Fala sério! Aquilo era um flerte, não era? Eu estava ficando
maluca?
Qual a sua, Andressa? O que está fazendo?
Estávamos indo tão bem!
— E a natação? — Ignorei sua última fala propositalmente. Ela notou,
claro, mas apenas sorriu torto. — Você nunca pensou em seguir carreira?
Acho que eu já contei antes sobre a natação. Era algo que eu sabia que
Andressa gostava, e que tinha talento. Seus ombros largos eram a prova de
seu esforço, diga-se de passagem. Mas ela tinha compartilhado comigo,
naquele dia que ficamos na borda da piscina, que teria que parar de nadar
com seu treinador muito em breve, por conta dos estudos. Eu estava sendo
tão egocêntrica em todas as vezes que interagimos que nunca a perguntei
como estava aquilo. O quanto o fato de ter que trocar seu hobby favorito
pelos estudos tinha a afetado. Percebi tarde que a resposta era muito.
— Sinceramente? Não. Eu gosto, óbvio. Só que, sei lá... talvez eu goste
porque eu não tenho obrigações em cima disso. Eu odiava quando tinha
competição por exemplo.
Assenti.
— Você não quer transformar um hobby em um trabalho.
— Sim! É exatamente isso. Faz sentido?
Notei que aquele assunto a deixava insegura. Nunca imaginei que
houvesse alguma coisa no mundo com esse poder.
— Claro que faz. É o mais sensato, na verdade. — Ela assentiu,
confortável por ser entendida, e eu me senti orgulhosa por conseguir a
proporcionar aquilo com uma frase idiota que eu tinha lido no Twitter. —
Mas você tem nadado? Por diversão mesmo. — Negou com a cabeça. —
Talvez você devesse. Não tô dizendo pra você parar de estudar, mas eu acho
que você precisa de momentos assim, sabe? Pra você. O vestibular é
importante, só que, sei lá. Ele não é sua vida inteira.
Andressa me encarou por tanto tempo que eu quase a chacoalhei para
ver se estava viva. Percebi que ela levava minhas palavras em consideração.
Percebi que elas a haviam atingido, de alguma maneira.
— Uau! — foi o que exclamou, depois do que pareceram horas. —
Você é assustadoramente boa nisso. — Aproximou-se para dizer: — Quanto
você cobra por consulta?
Soltei uma risada escandalosa, descolando do balcão para dar um
esbarrão e a forçar a se afastar outra vez. Seu ombro roçou no meu e eu me
separei mais. Quando voltei a falar, tinha ciência que estava desengonçada.
— Ah, cala a boca.
Ela manteve o sorriso tatuado em seu rosto até que um sujeito
aparecesse, apoiando nossas três pipocas (e um suco) no balcão.
Recompomo-nos, aceitando-as e retornando à realidade.
Carregamos os pacotes pelo caminho que nos separava de Brenda.
Minha melhor amiga ainda digitava freneticamente no celular, alheia à
nossa aproximação. Os garotos não haviam voltado e Andy carregava meu
Ice Tea. Nossa conversa foi interrompida antes do tempo, e eu senti a súbita
necessidade de dizer mais uma coisa. Parei de andar de supetão.
— Andy, rapidinho — pedi, e ela me imitou, estacionando também. Eu
abaixei meu tom de voz. — Imagino que deva ser uma droga toda essa
pressão. Mas, sempre que você quiser conversar, estou aqui. — Senti-me
um pouco solícita demais, então tive que completar: — E, para você, eu não
cobro consulta.
Foi uma ótima escolha terminar daquele jeito, afinal, aquilo a fez rir. O
sorriso que esmagava seus olhos. O sorriso mais bonito que eu já tinha visto
na porra da minha vida.
— Obrigada — sussurrou e o clima ao nosso redor pareceu
estranhamente claustrofóbico. Notei que se estivéssemos com as mãos
vazias, as malas sentimentais menos lotadas e com Henrique longe,
poderíamos ter sido sinceras. — Mas pode cobrar, que eu pago.
— Ah é, esqueci que você ganhou na loteria... Tudo bem, vou aceitar a
pipoca como pagamento dessa vez.
— Bom saber.
— O quê?
— Que você aceita outras formas de pagamento que não sejam dinheiro
— disse, então piscou para mim.
Sim, piscou, antes de recomeçar seu caminho e alcançar Brenda.
Eu fui atrás, equilibrando duas pipocas e a minha dignidade (tão
desmilinguida, a coitada).
Uma piscadela. Uma frase com duplo, triplo e quádruplo sentido. Foi
isso que ela abandonou em cima do meu colo. E foi isso que precisou para
tudo voltar. Voltar de vez.
Com a força de um tiro de bazuca, a gaveta foi desintegrada. Cupidos
não poderiam se sentir fisicamente atraídos pelas costas que caminhavam a
sua frente, mas as costas de Andy tinham um desenho bonito, enfatizado
por aquela blusa de alças finas e eu sempre gostei de costas, você sabe. E as
costas dela me atraíam. E ela me atraía.
Deus. Do. Céu.
Meu mundo simplesmente desabou.
Eu me sentia atraída por Andressa?
— Ué. — Quando eu cheguei até Brenda, ela me encarava com a testa
franzida. Eu sentia que o planeta era feito de fogo e me faltava oxigênio
para respirar. — Você comprou pipoca pela primeira vez na história do
cinema? — Debrucei-me para passar a sua, junto com sua nota de vinte.
Em choque, eu estava em choque, mas ela vivia um momento
completamente diferente do meu.
Franziu sua testa ainda mais ao recuperar seu dinheiro.
— E para mim também? Esquece, Camila, eu já disse que não vou te
perdoar tão fácil assim.
Pigarreei, chutando para o canto, pelo menos por alguns instantes,
aquela constatação absurda que havia acabado de roubar metade da minha
expectativa de vida.
Eu me sentia atraída fisicamente por uma mulher?
Como? Mas...
— É, eu sei. — Coloquei-me ereta e apontei para a garota que havia
destruído a minha vida ao meu lado. Seria suspeito se eu não dissesse nada,
então tive que fingir que não havia pedaços da minha muralha se
desintegrando. — Foi Andressa que comprou. Para nós duas.
Brenda afunilou toda a sua atenção em Andy. Eu achava que fosse
humanamente impossível que sua testa se franzisse mais, mas eu juro que
franziu. Sua confusão era tão caricata que até mesmo Andressa riu. Aquilo
a fez destravar, dando de ombros e soltando a segunda provocação do dia.
— Para nós duas não era exatamente o objetivo, né? Mas tudo bem, eu
aceito ser a vela caso isso signifique que eu vá ganhar pipoca de graça.
Puta que me pariu.
Senti o calor tomar conta do meu rosto. Se eu tivesse uma arma comigo,
juro que eu teria atirado em Brenda naquele instante. Andressa riu e eu quis
atirar nela também!
Minha amiga roubou uma pipoca, mastigando lentamente até dar de
ombros e dizer:
— Valeu, Dessa.
— Nada.
Então Henrique chegou por trás, me assustando de propósito. Eu estava
tão em alerta que soltei um grito desproporcional. Ele riu, beijando minha
bochecha e se colocando entre nós. O agradeci muito por aquilo; por ser
uma tão bem-vinda desculpa para meu embaraço.
Foi naquele dia que Brenda resolveu que havia concluído seu inquérito
sobre nós duas e começou a explanar em voz alta suas suposições.
Começou ali e nunca mais parou. Aparentemente, eu soube disfarçar
melhor com Renan. Ela nunca soube que eu já quis beijá-lo, mas soube,
antes mesmo de mim, que eu gostaria de fazer o mesmo com a sua irmã.
A sessão foi profundamente desconfortável.
Eu me sentei afastada de Andressa, Henrique se manteve em sua
posição de barreira entre nós, e minha única vitória foi ter conseguido
colocar Brenda e Renan próximos. No entanto, ela passou o filme inteiro
com a cabeça deitada no meu ombro enquanto o pobre do Renan comia sua
pipoca, sozinho. Falhei na minha missão de cupido, corrompida demais
para executá-la com o cuidado que precisava, e todos foram embora cedo.
Acabou o filme e Renan inventou uma desculpa para disfarçar sua
frustração, levando Andressa junto para um “compromisso em família” que
eu sabia que ele havia acabado de inventar. Eu me senti mal por ele, porém,
não tinha cabeça para interceder naquele instante.
Brenda foi embora logo depois, para permitir que Henrique me levasse
para o seu carro, estacionasse na garagem de seu prédio e cumprisse com
parte das obscenidades que ele me prometeu. Não fomos até o final naquele
dia, tinham pessoas passando e eu me sentia estranha. O sexo com Henrique
era bom, mas não era o que eu queria. Havia um pensamento me
consumindo. Um questionamento. Um desejo, o qual ele não podia saciar.
Eu me sentia quebrada e confusa, e não conseguia retribuir. Depois de
algumas tentativas frustradas, disse que estava cansada e ele me deixou em
casa bem mais cedo que o esperado. Abriu a porta do carro para mim e me
deu um beijo delicado de despedida. Eu me forcei a sorrir antes de entrar no
prédio, acompanhando seu carro sumir na esquina com um bolo na
garganta.
Enquanto eu subia pelo elevador, pensei em Andressa, quis ligar para
ela, saber como estava. Eu quis vê-la, e só de pensar naquela possibilidade
senti aquele inferno de frio na barriga me tomar por inteira. Pela primeira
vez, eu estava sã o suficiente para aceitar reconhecê-lo. Era o mesmo frio na
barriga que eu costumava sentir por Renan. O mesmo que eu senti por
aquele professor lindo que substituiu o meu de física por duas semanas (ele
era muito gato, parabéns). O frio na barriga que eu sentia por homens.
Aquilo me fez travar. Chegou ao meu andar e eu não consegui sair. Alguém
chamou no térreo e eu desci tudo de novo, como uma idiota. Não conhecia
a senhora que entrou, e sorri forçadamente para ela, apertando meu andar
outra vez. Ela desceu antes de mim, certamente imaginando que eu estava
sob o efeito de alguma substância. Só que minha substância era Andressa, e
o fato de que eu sentia uma profunda atração por ela. Eu sentia atração por
uma mulher, o que não fazia nenhum sentido, porque eu não podia ser
lésbica. Henrique era a prova disso. Renan, meu professor e todos os
integrantes da Five Seconds Of Summer também. Suspirei, tentando,
brutalmente, entulhar tudo na gaveta mais uma vez. Porque aquilo me
desesperava. Porque não poderia ser. Porque mudaria por completo a minha
vida e eu não estava pronta.
Meu Deus, não faça isso comigo...
— Escuta, Camila, eu tô bem ciente da sua estratégia de me juntar com
Renan e não me leve a mal, ele é um fofo. Só, sei lá... ele é meio intenso
demais pra mim.
Assim que eu cheguei em casa, tomei um banho frio e telefonei para a
minha melhor amiga. Ela havia me mandado uma mensagem pedindo que
eu o fizesse e achei que seria melhor enfrentá-la do que aos meus
pensamentos.
Aparentemente, ela queria me dar uma bronca pela minha “gracinha” do
dia, só que eu não estava ouvindo muito. A palavra “lésbica” tomava conta
de todo o meu sistema operacional. Eu estava desesperada.
— Não tem dinâmica nenhuma, Brenda — menti na cara de pau,
mesmo que fosse inútil.
Minha mãe também havia pedido para conversar comigo quando eu
saísse do telefone, e eu tinha certeza que ela havia percebido alguma coisa
quando eu cheguei em casa. Felizmente, o que ela percebeu era bem menos
preocupante que a verdade.
Foi naquele dia que ela quis me dar uma aula sobre como evitar ter
filhos e prometeu marcar um ginecologista. O ginecologista, eu aceitei, mas
a parte de fazer filhos foi descartável, porque eu tinha uma ideia
(felizmente). Contei para ela que eu e Henrique já havíamos tido nossa
primeira vez (omiti as outras), e ela levou aquilo com mais tranquilidade do
que eu imaginei. Na verdade, ela estava irreconhecivelmente tranquila em
relação a tudo, e eu sabia que era porque ela havia conversado com os pais
de Henrique. Seu pai era pediatra, sua mãe, um doce e o único medo da
minha que eu engravidasse, o que era irônico. Eu a poupei disso no futuro e
ela nunca me agradeceu.
— Ah não? — Mas, antes que isso acontecesse, eu ainda estava no
telefone com Brenda.
— Não, Bre.
— Tá bom então. — Bufou. — Já que você tem liberdade para se meter
na minha vida amorosa, vou me meter na sua. Você pode me explicar o que
está acontecendo de verdade entre você e a Andressa?
Aquele diálogo ia ser muito importante para mim e eu sabia disso. Por
isso, meu coração começou a acelerar naquele ponto. Brenda era uma
bruxa, eu tenho certeza. Ela sempre sabia o que estava passando na minha
cabeça. Ela via e sentia o cheiro do meu desespero.
— Quê? Não tem nada acontecendo.
— Para de fingir que não vê o quanto ela baba em cima de você. É Mila
pra cá, Andy pra lá, pipoca, papinho do corredor, dormir de conchinha...
— A gente não dormiu de conchinha! — me defendi, abaixando minha
voz logo em seguida. — Além do mais — continuei, casualmente. — Ela
não beija homens? Lembro que você me contou uma vez, de um garoto.
Diminuí consideravelmente meu tom, mas aumentei minha guarda. Eu
sabia, bem lá no fundo, que isso não significava nada, mas aquele era meu
único resguardo. A única coisa que me mantinha segura. Dela e de mim.
— Uhum, mas e dai? — Felizmente e infelizmente, eu sempre tive
Brenda na minha vida. Ela era o palito, eu a mais fiel guardiã da minha
bolha. — Ana Clara também beija uns caras de vez em quando.
Coloquei-me de pé e comecei a peregrinar de um lado para o outro do
meu quarto, com o celular pendurado na minha orelha.
Minha cama e a de Gabriel ficavam praticamente coladas e dividíamos,
além do quarto, o armário (sem duplos sentidos aqui. Gabriel, até então, se
mantém dentro dele. Eu sou a única decepção). Eu tinha uma porta, ele
outra. Na minha, havia alguns adesivos colados. Adesivos cor de rosa. Eu
sempre fui o extremo da “menininha” e, quando eu tinha dezesseis anos e o
TikTok não era tão incipiente, isso era mais uma prova para a minha
ingênua causa. Eu não podia ser lésbica, caralho, eu era feminina! E Andy
também. Lésbicas da vida real andam de caminhão, coçam o saco
inexistente e tem o cabelo curto. Nós não éramos assim.
— E o que tem a Ana?
— Ela é bi. Bissexual — explicou. — Talvez Andressa seja bi.
Parei de andar instantaneamente.
Bissexuais. Os em cima do muro, como minha mãe diria.
Bissexualidade era algo novo para mim, bastante novo. Claro que eu já
havia escutado a palavra, já havia visto o B na sigla “LGBTQIAP+” (já
havia visto Orange is The New Black), mas era... distante. Sabe quando
você descobre que tem uma falha tectônica na Califórnia que vai dividir o
estado no meio em algum momento, mas não se importa porque é nos
Estados Unidos? Era mais ou menos assim. Bissexuais poderiam ser reais,
mas eram a falha de San Andreas da minha narrativa. Eram as placas que se
separam e dividem duas vidas completamente diferentes. Duas Camilas.
Eram a solução dos meus problemas, mas também o que destruiria toda a
minha imensa pilha de negação. Por isso, eu gostaria de jamais tê-los
conhecido.
— Você já viu Andressa beijando... mulheres? — perguntei, em um
sussurro, sentindo meu coração bater na palma da minha mão enquanto
esperava pela resposta. Sentia meu rosto, e todo o resto, quentes. Voltei a
caminhar de um lado para o outro.
— Não, mas ela com certeza quer beijar você. Não é possível que você
não tenha visto a secada que ela deu em você hoje.
— Brenda — a repreendi de imediato. Aquela frase fez todo o meu
corpo tremer, me tranquilizando e me desesperando, quase que nas mesmas
proporções.
Era estranho que alguém explanasse com tanta naturalidade coisas que
eu não conseguia dizer nem na intimidade do meu próprio peito. Coisas que
eu não conseguia admitir.
Então eu não estava maluca. Então existia a possibilidade de ela...
querer me beijar? De ser... recíproco?
Ah, meu Deus, cala a boca, Camila! Não poderia ser recíproco porque
não havia nada da minha parte. Eu não queria beijar ela! Eu não poderia
querer beijar mulheres. Eu não queria aquilo para a minha vida. Como eu ia
contar para os meus pais? Para os meus avós? Eles nunca mais olhariam na
minha cara. Meu Deus...
— Para com isso — quase implorei, para ela e para mim. Senti que
meus olhos se encheram de lágrimas e sei que ela notou o desespero em
meu timbre. — Eu tô... com o Henrique.
Ele era a minha garantia. Ele era a minha armadura. Eu precisava dele,
desesperadamente.
— Certo. Claro. Me desculpa, Cami...
— Não, tá tudo bem. — Não estava. Na verdade, eu estava tremendo.
— Eu só acho que você tá maluca. Não temos nada e ela não baba por mim.
Além disso, sei lá, não sei se acredito muito nessa coisa de bissexualidade.
Acho que é meio que uma desculpa, sabe? Medo da reação dos pais e tudo
mais. — Fiz o meu máximo para disfarçar o tremor em minha voz, usando
o único mecanismo de defesa que me sobrava: bifobia.
Quem tinha medo da reação dos pais era eu, não a Ana. Mas eu odiava
os bissexuais com todas as minhas forças naquele momento. Como eles
podiam? Que tal cuidarem das próprias vidas? Que tal não me fazerem
questionar toda a minha? Eu não queria aquilo. Eu não queria ter que me
sentir em pânico toda vez que encarava Andressa. Gostaria de nunca mais
vê-la. Ao mesmo tempo, pensar naquela possibilidade me doía.
Fisicamente. Meu peito se enroscava sobre si mesmo e eu queria chorar.
Porra de bissexuais do inferno. Estão vendo o que vocês fizeram com a
minha vida?
— E eu nem te contei o que Henrique fez hoje no carro...
Ela ouviu pacientemente enquanto eu fingia me entusiasmar com o que
fizemos, me respeitando e mudando de assunto. Mas eu nunca fui capaz de
fazer o mesmo.
Quando desligamos, eu fiquei um tempo olhando para a parede,
esperando que meu peito se acalmasse antes de remendar minha pobre
gavetinha e esconder tudo aquilo lá dentro outra vez. Engoli meu choro,
determinada a explodir cada bissexual que eu encontrasse pela frente.
Começando por mim.
CAPÍTULO QUINZE.
COINCIDÊNCIAS.
Tive que dar uma pausa na minha autodescoberta nos dias que se
seguiram àquele porque meu pai foi promovido.
Um dia depois de eu declarar meu ódio pelos bissexuais, entender que
eu me sentia fisicamente atraída por Andressa e logo depois invalidar a
sexualidade alheia (e a minha), eu almoçava, junto com meus pais e
Gabriel, na mesa da cozinha.
Vesti o meu melhor traje heterossexual — ou o que eu achava que isso
significava — naquele dia. Estava por completo de rosa, com uma faixa de
florzinhas no cabelo, os modos de uma princesa da Disney e devo ter falado
sobre o meu namorado homem no mínimo cinco vezes. Para mim, não havia
a menor possibilidade de alguém suspeitar dos meus pensamentos libertinos
a respeito da irmã do meu melhor amigo daquele jeito. Nem mesmo eu. Eu
estava realmente me esforçando. Nisso, eu admiro a Camila de dezesseis
anos, ela era bastante esforçada.
Era domingo e, nesses dias, sempre havia algo novo. Pois bem, daquela
vez, meu pai fez lasanha para contar da promoção; e a novidade pairou
como um relâmpago cortando ao meio o nosso apartamento.
Ele havia conseguido. Depois de meses saindo do trabalho mais tarde,
fazendo viagens e discutindo com a minha mãe, havia conseguido. Era algo
bom, certo? Pelo menos, eu imaginava que sim, e todos nós o
parabenizamos quando contou, até mesmo Regina. Só que, bom, não era tão
simples assim.
Acho que a promoção a relembrou de tudo, além de vir junto com mais
ausência. Foi um recomeço para o pesadelo. Depois de um período de hiato,
as discussões foram sugadas novamente para dentro e, daquela vez, vieram
para ficar.
Não havia mais horário.
Na segunda, eles discutiram no café da manhã, antes mesmo que eu
fosse para a escola. Na terça, assim que meu pai voltou do trabalho. Na
quarta... bom, na quarta, eles nem olharam para a cara um do outro.
Aquilo me preocupava. Eu me sentia ansiosa 24 horas por dia. Ficava
em alerta, como se, a qualquer momento, algo pior pudesse acontecer e
minha família simplesmente se desintegrasse. Meu relacionamento com eles
se tornou impessoal e robótico. Eu tinha medo de falar qualquer coisa e
piorar a situação. Eu escondi ainda mais o que cogitei sentir por Andressa
com medo de que isso piorasse tudo. Eu queria a mandar uma mensagem e
saber se ainda estava preocupada com os estudos. Eu queria alguma
desculpa para fala com ela, mas eu a evitei. Eu evitei contato com qualquer
um, até mesmo com Brenda.
Meus pais não compartilhavam nada com a gente, aquela foi a estratégia
que eles resolveram usar, e que foi uma das piores possíveis. Eu me sentia
retraída, enquanto Gabriel externava demais. Ele estava reativo. Na terça-
feira, depois que meu pai optou por comer sozinho na sala e nós tivemos
que compartilhar um miojo com minha mãe na cozinha, ele explodiu.
Recusou-se a lavar a louça e bateu a porta. Meu pai brigou com ele, o que
piorou a situação. Meu irmão nunca havia tido esse tipo de comportamento.
Ele era calado e introspectivo. As brigas o fizeram libertar algum tipo de
personalidade explosiva que eu desconhecia até então, e eu me preocupava
também com isso. Sentia que era meu papel cuidar dele, mas ele me
afastava, sem nunca falar sobre o motivo. Ninguém ali conversava a
respeito, potencializando tudo.
A madrugada de terça foi horrível. Gabriel levou uma bronca pelo seu
comportamento e, pela primeira vez, eu fechei a porta do nosso quarto para
dormirmos. Costumávamos mantê-la aberta, no entanto, eu não via mais
motivos para aquilo. Para quê? Para ouvir meus pais discutindo? Eu não
queria mais. Tentei nos afastar, pelo menos um pouco, mas não foi o
suficiente. Eu não consegui dormir. Rolei e rolei pelo colchão até que,
próximo das duas da manhã, desisti de tentar pegar no sono, pescando meu
celular e rolando até chegar ao nome dela.
Andy.
Abri nossa conversa. A última mensagem havia sido na segunda-feira.
Ela me mandou um:
Andy 22:17: comecei a ver stranger things,
aguarde feedbacks.

E eu gostaria de ter retribuído, mas simplesmente não a respondi.


Sentir palpitações ao ler seu nome era errado. Pensar tanto sobre ela era
errado. Eu me sentia errada, e ainda havia toda a situação com os meus pais,
a qual me deixava resumidamente triste. Era muita coisa para sentir ao
mesmo tempo. Sinceramente, eu tive que escolher prioridades e o armário
era convidativo.
Tentei agir normalmente na escola, dissimulando para todos que eu
conhecia e me afundando em pelo menos dois dos testes que tivemos
naquela semana. Eu adorava história, mas não havia conseguido estudar
nada, muito menos prestar atenção no conteúdo. Então eu tinha certeza que
havia acabado de tirar o primeiro zero da minha vida. Em química, se
passou o mesmo.
Eu era uma boa atriz, na maior parte do tempo. Henrique acreditou,
Renan também, mas era óbvio que eu não conseguiria mais esconder aquilo
de Brenda. Foi na quarta-feira que eu contei para ela. Apesar de notar,
desde o primeiro instante, que eu estava estranha, ela respeitou o meu
tempo. E, mesmo tendo ficado mais vigilante do que nunca, não me
pressionou para ser sincera. Foi só quando eu precisei ser que conversamos.
Contá-la foi a melhor escolha que eu fiz.
Brenda entendia o que eu estava passando, ela sabia como doía, como
maltratava, como era assustador. No dia que a confessei, durante o nosso
intervalo, ela segurou a minha mão, e não a soltou nunca mais.
Sinceramente, eu não teria aguentado tudo aquilo se não tivesse a sua
ajuda. Foi difícil e eu não queria que fosse real. Eu queria continuar em
negação, mas as coisas eram diferentes daquela vez e eu sabia que não ia
passar. Não teria beijinho no café da manhã, não teria volta. Minha família
ia mal e contar ou não para a minha melhor amiga não influenciaria em
nada nisso. Na verdade, influenciaria apenas na minha forma de lidar com a
realidade. Eu não precisava escolher sofrer todas as vezes. Eu podia me dar
a chance de ser sincera, de respirar. A Camila de dezesseis anos começou a
acordar para aquilo, mas só se aperfeiçoaria naquela arte muito tempo
depois.
Depois de tudo isso, chegou a quinta-feira. Sexta, eu teria prova de
matemática, não sabia nada da matéria e ainda não tinha conseguido
estudar. Eu estava triste, profundamente triste. Só havia eu e Dona Cristal
em casa (Dona Cristal era nossa secretária). Meu irmão estava no curso de
inglês e eu a um segundo de jogar meu livro pela janela e chorar
compulsivamente quando Brenda me ligou.
Eu disse. Uma bruxa.
Atendi com a voz embargada. Ela me deu uma ordem:
— Sai de casa.
— Quê?
— Em casa, você só vai ficar remoendo e chorando. Sai de casa. Vai
estudar na rua. Vocês não são sócios de um clube? Bota um biquíni,
aproveita que tá um calor do caramba e vai pegar um bronzeado enquanto
você estuda na beira da piscina. — Suspirou. — Nossa, que ideia incrível!
Se eu não estivesse menstruada e de castigo, eu me convidaria para ir
contigo.
Parte de sua fala me desconcentrou.
— Espera, quê? Você tá de castigo?
Isso era inédito. Brenda nunca tinha ficado de castigo antes. A surpresa
daquilo claramente fazia morada nela também. Ela riu.
— Tô, você acredita? Eu fui mal em geografia de novo e minha mãe leu
em alguma revista para “bons pais” que ela devia começar a me punir
pelos meus atos caso quisesse que eu fosse melhor na escola.
Eu não sabia de nada daquilo. Tudo que eu pensava e falava, era sobre a
minha vida. E, até quando eu fazia algo indulgente, havia segundas
intenções. Caramba, hein, Camila, espero que você tenha melhorado.
— Deus, Brenda. Então você tá de castigo e mal em geografia?
— Pra caralho. Aparentemente eu sou incapaz de entender relevo.
Como isso pode ser tão difícil? É tipo formato de chão. Eu me sinto burra.
Dei de ombros, tendo que aproveitar a oportunidade. Eu estava triste,
abalada, mas não morta. Estava sendo uma amiga terrível, então precisava
de um ato de bom grado para entrar no céu. Ou isso ou eu teria que comprar
um espaço com aquele cara que me deu um folheto uma vez. Eu estava indo
mal em tudo. Especialmente então que havia descoberto que existia uma
possibilidade de eu querer enfiar minha língua na boca de Andy.
Depois de alguns dias batucando aquela possibilidade na minha mente,
eu cheguei a uma conclusão: se fosse verdade. Se eu quisesse... beijar
Andressa que, pelo menos, ninguém soubesse. Eu poderia viver assim, com
esse segredo. Somente com ele. Eu era mestre em esconder as coisas e
aquilo era algo que eu sentiria, sufocaria, negaria e ignoraria, até que
parasse de existir.
Às vezes, era algo com ela, não com todas as mulheres, e ela sairia da
minha vida em algum ponto. Não havia nada que nos ligasse tão
profundamente assim e eu poderia a evitar. Eu poderia fazer o sentimento
morrer e continuar me relacionando com homens. Continuar certa.
Continuar bem.
Contudo, mesmo que eu só continuasse a desejá-la em pensamento, isso
já era grave.
Certa vez, quando eu tinha dez anos, eu confessei ao padre que havia
pensado em empurrar meu irmão da escada porque ele havia mastigado a
cabeça da minha Barbie. Não era um lance tão alto assim, deixando claro e,
na minha cabeça, ele não ia morrer por causa daquilo. Era só uma retaliação
justa, dadas as circunstâncias. Mas eu não havia o empurrado, obviamente,
então estávamos bem. Eu ainda era uma boa menina, porque eu pensei e
não agi. Só que ele me disse que o pecado também poderia estar em nossos
pensamentos e me fez pedir perdão por ter querido assassinar meu irmão (o
que, deixando claro: não era meu objetivo). Conclusão: eu estava fodida,
porque nos meus pensamentos, mesmo que eu tentasse evitar, só havia
Andressa, e minhas dívidas estavam aumentando. Eu teria que subornar
alguém para entrar no céu, certamente. Ou juntar meus dois melhores
amigos e montar uma família tradicional! Talvez assim eu pudesse pegar
carona quando eles fossem para o paraíso.
— Bom — comecei, nada discreta. — Você sabia que a matéria
preferida do Renan é geografia?
Ouvi-a rir. Não. Na verdade, ela gargalhou.
— Ah. É mesmo, Camila? Que coincidência! — ironizou e eu assenti.
— Uhum. Eu posso tipo... falar com ele, pra te dar umas aulas
particulares. O que acha?
Ela riu outra vez, por um longo período de tempo, até que enfim
respondesse:
— Certo, Cami. Tá bom.
— Quê?
— Se isso for te fazer feliz, eu topo as aulas. Além do mais, eu não
posso reprovar por causa de relevo. Eu juro que eu me mato se isso
acontecer.
Eu não estava preparada para aquilo. Joguei o assunto
despretensiosamente e sem expectativas. Eu não esperava que depois do
cinema e daquele telefonema desesperador (não vamos falar sobre ele), ela
fosse cooperar. Eu não imaginei que minha operação cupido ainda pudesse
dar certo. Mas, aparentemente, Brenda faria qualquer coisa por mim, até
mesmo estudar com Renan (não que isso fosse um sacrifício tão grande
assim).
— Brenda. É sério mesmo? — resolvi garantir. — Meus pais estão
brigando, eu tô triste e vulnerável e seria muita maldade sua caso você
estivesse brincando com uma das poucas coisas que ainda me fazem sorrir.
Eu não precisava estar a vendo para saber que revirou os olhos.
— Pelo amor de Deus, Camila, escreva um livro para dar um sentido
para todo esse drama! Sim, é sério. Passa meu número pra ele e fala pra
ele me chamar. Só que tem uma condição.
Claro que haveria uma condição. Estava bom demais para ser verdade.
— Qual?
— Você vai me prometer que vai ao clube hoje, mesmo que não goste de
encontrar pessoas conhecidas quando está de biquíni. Hoje é quinta e não
vai ter ninguém lá! Você tem que sair de casa e parar de pensar nas coisas
que te deixam “triste e vulnerável”.
Eu odiava a forma como ela conseguia estar certa em tudo.
O fato de eu me remoer por causa do que acontecia na minha vida não
ia mudar os fatos, só ia me doer mais. Por isso, eu cedi. Pela minha
operação cupido, claro, mas também por mim. Eu estava cansada de me
sentir mal. Eu queria... respirar um pouco. Pegar um sol. Não tirar mais um
zero (!!!). A sua ideia era realmente boa.
— Tá bom. — Suspirei. — Eu prometo. — Ouvia-a bater palminhas do
outro lado da linha, então completei: — Mas você precisa ser gentil com o
Renan quando ele falar contigo. Ele é sensível.
Ela riu.
— Aí, Cami, eu já não posso prometer nada.
CAPÍTULO DEZESSEIS. A
TENTAÇÃO RODEIA SUAS
VÍTIMAS COMO UM LEÃO
FAMINTO.
Acho que não comentei antes, mas estávamos no meio de agosto. O que
significa que estávamos no inverno. Só que isso não existe no Rio de
Janeiro, e a utopia de casaquinhos de tricô e vento fresco se transfigura em
sol quente e chinelos assando os dedos.
Estava quente. Quente o suficiente para que as minhas bochechas
ficassem vermelhas só de caminhar o curto percurso que separava meu
apartamento do clube.
Corri para não chegar tarde e voltar para casa antes que escurecesse
(ordens da minha mãe). Eu a havia avisado que ia ao clube estudar, e ela
adorou a ideia de dar algum sentido à mensalidade. Eu também estava
adorando, até que enfim passasse pela porcaria da catraca.
Tudo que levei comigo foi meu livro de matemática, estojo, toalha e
celular. Enfiei-os em uma bolsa feia que eu costumava carregar para a praia
(nas raras vezes que ia), coloquei um biquíni, um vestido laranja por cima e
não raspei as minhas pernas. Esse foi meu primeiro arrependimento quando
a vi. O que era idiota, Andressa nunca se importaria se eu havia raspado as
minhas pernas ou não, mas eu ainda achava que isso era grande coisa. O
segundo arrependimento foi simplesmente ter ido. Ter saído da droga da
minha casa. Ter escutado Brenda e ousado achar que eu poderia ter um dia
de sossego.
Talvez meus pais fossem menos assustadores para mim que Andressa,
submergindo da borda da piscina com um maiô azul escuro e aquelas toucas
feias de natação.
Sim, Andressa também estava lá. Eu a reconheci facilmente, e até tentei
fugir, mas você sabe como funciona o carma. Ele não dá trégua. Nem ela.
Vou tentar explicar um pouco da planta daquele lugar, para você
entender porque eu evitava frequentá-lo e porque fui incapaz de fugir de
Andressa quando seus olhos trombaram em mim.
Quando você chegava, havia uma recepção pequena, com uma moça
atrás de um vidro e uma catraca, onde sócios colocavam o dedo. Ao passar
pela catraca, você alcançava um restaurante (fechado às três da tarde) e,
logo na frente dele (à direita de quem entrava), estava a primeira das duas
piscinas. A maior delas. Bem grande, na verdade. Com raias, aqueles
cotocos dos quais os nadadores pulam de cima (não sei o nome) e uma
profundidade assustadora que me fazia chorar quando eu era obrigada a
enfrentar nas minhas finadas aulas de natação.
Na frente dela, ficava a piscina infantil. Em ambos os lados, havia
mesas, espreguiçadeiras e guarda-sóis. Meu objetivo era me sentar debaixo
de algum deles e observar a água, os pássaros e aquele belo dia ensolarado.
Não consegui.
Brenda acertou em uma única coisa: nas quintas à tarde, o clube ficava
vazio. O que deveria ser bom para mim, foi o que me condenou. Não foi
nem um pouco difícil prestar atenção na única pessoa que nadava na piscina
funda. Menos difícil ainda para ela me pegar no flagra com minha bolsa
brega, meu vestido chamativo e minha expressão desesperada, fugindo para
o banheiro.
Eu achei que ia dar tempo de me esconder antes que ela recuperasse o
fôlego, a visão e saísse da água, mas eu estava errada.
Entrei no banheiro e ele cheirava a eucalipto. Seguia a tendência do
clube inteiro e estava vazio. O banheiro, na verdade, era um vestiário, e era
enorme. Na direita, ficavam os boxes com chuveiros; na esquerda, os com
vasos sanitários. No meio, havia um banco comprido, revestido com o
mesmo piso do chão. Tá, mas dane-se o piso! Eu não estava acreditando
que aquilo estava acontecendo.
Não fazia sentido.
Por que ela estava ali? Eu nem me lembrava de que ela era sócia!
A tentação realmente rodeia suas pobres vítimas, como um leão
faminto.
— Mila?
Ela me seguiu.
Não, ela não apenas me reconheceu, com as pernas cabeludas e a cara
de desespero. Ela me seguiu até a droga do banheiro. Escutei seu chamado,
tendo a atitude mais madura de todas logo em sequência.
Corri até uma das cabines e me tranquei do lado de dentro, torcendo
para que eu me desintegrasse. Juro que até prendi a minha respiração. Eu
estava nesse nível de desespero. Esse era o tanto que eu queria evitá-la.
Gastei muita energia naquela empreitada, em vão.
Escutei seus passos quando entrou, e torci, orei, fiz tudo que você pode
imaginar para que ela adentrasse o vestiário, o visse vazio e desistisse.
Sim, Andressa, você está maluca, tendo alucinações. Eu nunca estive
aqui. Eu sou produto da sua mente!
Escutei os passos, depois, o silêncio. Fiquei um tempo segurando minha
bolsa e desconfiança dentro daquela cabine até que me convencesse de que
estava a salvo e a destrancasse.
Para que, meu bom Deus? Se o Senhor odeia tanto os gays, por que
você não a tirou dali?
— Jesus! — Eu estava muito religiosa naqueles dias. Era a culpa. O
medo. Andressa.
Ela estava sentada nos bancos que eu comentei antes, com os cabelos
presos em um rabo de cavalo baixo, a touca que usava antes em mãos e um
sorriso torto em seu rosto. Ela havia me esperado sair e eu a odiava.
— Boa... tarde?
Tentei não me afetar pelo fato de que ela usava nada além de um maiô.
Nem uma toalha ela se atreveu a pegar. Veio com tudo que tinha, afinal,
fazia questão de estar ali e me fazer bambear na minha árdua tarefa de
esconder que era exatamente isso que eu queria.
— Você tá fugindo de mim ou algo parecido?
Meu peito bateu mais rápido. Eu caminhei até a bancada com as pias,
lavando minhas mãos enquanto negava.
— Quê? Claro que não! Por quê?
Vi quando ela se virou para me enxergar melhor pelo reflexo do
espelho. Sorria enquanto dizia:
— Porque você não me responde mais e literalmente se trancou dentro
de uma cabine quando me ouviu te chamar.
— Não, eu não fiz isso! — Virei para encará-la e engoli em seco.
Ela mantinha, no rosto, um sorriso travesso. O sorriso de quem foi
responsável por uma confissão obscena. O sorriso de quem sabia o que
estava fazendo e que se divertia com o meu desespero. Não adiantaria
mentir, eu fui bem óbvia. Então, achei melhor confessar:
— Tá. Tudo bem. Eu tô mesmo te evitando. — Ela assentiu e eu
emendei, para não deixar tão claro assim os verdadeiros motivos: — Mas eu
tô evitando todo mundo, se serve de consolo.
Aquilo a fez cruzar os braços, livrando-se daquele sorriso petulante.
— Por quê?
Porque meus pais estão brigando novamente, meu irmão está agressivo
e eu acho que quero sentar no seu colo e beijar sua boca.
— Longa história.
Ela deu de ombros, sorrindo outra vez.
— Tô com tempo.
Apoiei meu traseiro na bancada, cruzando os braços e acusando:
— Tempo? Você não deveria estar em aula, Andressa?
É, ela deveria. O que ela não deveria, em hipótese alguma, era estar ali,
me maltratando daquela maneira. Eu achei que estava segura no clube, mas
não estava. Eu não estava mais segura em lugar nenhum!
“Ela com certeza quer beijar você”.
A frase de Brenda repetia em minha cabeça em looping. Será? Será que
ela era mesmo... bissexual?
— Eu tenho aula todos os dias — argumentou. — Um dia a menos não
vai fazer tanta diferença assim.
Tentei não sorrir, mas foi meio difícil. Aquela era a coisa mais absurda
que eu já havia ouvido para justificar uma falta na minha vida. E o pior é
que eu sabia que, para ela, fazia total sentido.
— Eu não acho que exista lógica nesse pensamento.
— Poucas coisas são verdadeiramente lógicas no mundo. Além do mais,
uma menina bonita uma vez me disse que eu tinha que tirar um tempo para
mim.
Menina bonita.
Andressa era má. Ela maltratava pobres garotas indefesas e não só por
isso (mas em adição) também não entraria no céu.
— Talvez você tenha interpretado errado as palavras dela. — Fingi que
não ouvi o “menina bonita” ali, arremessado na droga da minha cara. — Ela
não estava te incentivando a matar aula.
— É só um dia, Camila. Eu precisava de um dia. Mas e você? O que te
trouxe aqui?
Suspirei, resolvendo que, pelo menos com aquela parte, dava para ser
sincera:
— Eu preciso estudar matemática. Em casa... não tava dando.
Meu coração se espremeu um pouquinho quando eu me lembrei do
motivo. Meus pais brigando. Meu irmão batendo a porta.
— Você não quer conversar sobre? — Encarei-a em silêncio por alguns
segundos.
Eu havia aprendido, naquele ponto, que sua aparência cansada era na
verdade mais falsa que o desinteresse de Brenda em Renan. Ela nunca
estava de fato entediada. Ela notava as coisas, e se importava com elas.
Antes de surtar porque eu achava suas costas, rosto e tudo lindo, eu gastava
mais tempo encantada pela forma como ela me via. Andy foi a primeira
pessoa para a qual eu contei sobre meus pais e eu o fiz porque era simples
contar as coisas para ela. Ela era minha própria religião, com cultos em
salas escondidas e preces sussurradas. Ela me parecia tão certa que era
errado. A coisa mais errada que eu quis na minha vida. Eu sempre me
esforcei para entregar o que esperavam de mim, mas aquilo era o inverso.
Era pegar anos de bom comportamento e triturar no liquidificador. Era
terrível!, ao mesmo tempo que era a coisa mais instigante que eu já tive
acesso em toda a minha vida.
Sim, eu queria conversar com ela. Sobre tudo.
— Meus pais... eles voltaram a brigar — confessei, inspirando
profundamente e me encolhendo, sem nem perceber.
Aquilo retirou de seu rosto aquela faceta sacana e descontraída,
trazendo pesar e compreensão aos seus olhos. Sei que ela também se
lembrou daquela madrugada na qual teve que me segurar para que a minha
própria correnteza não me arrastasse para longe.
— Mila... — Deu duas batidinhas no espaço ao seu lado. — Senta aqui
e me conta tudo que quiser contar.
E foi exatamente o que eu fiz. Quem eu queria enganar? Eu faria tudo
que ela me pedisse. Engoli as palpitações que ela me causava enquanto meu
esôfago se feria com tudo que vomitei em seu colo.
Contei cada detalhe. Cada briga. Cada sentimento.
Quando eu repassasse aquela cena na minha cabeça antes de dormir, me
arrependeria por ter sido tão transparente, mas apenas por costume. Eu
sempre achava que estava incomodando quando falava sobre os meus
problemas. Eu sempre achava que era demais, no pior sentido da palavra.
— E agora... — foi como terminei, sentindo-me diminuída. —... meu
pai não tem falado muito com a gente. Está mais distante e eu fico com
medo de... sei lá. Ele nunca mais voltar. Ele... vai ser bobo o que eu vou
falar agora, mas fico com medo dele nos abandonar.
— Mila, jamais pense isso, tá bom? — garantiu, gesticulando.
Estava sentada de frente para mim. Eu mantinha meus pés apoiados no
chão e minha bolsa em meu colo, enquanto ela havia dobrado uma perna
para cima do banco para me encarar, como a um filme.
— Pais às vezes precisam de um tempo. Pais brigam, mas vocês nunca
deixarão de ser filhos deles. Seu pai nunca vai te abandonar.
— Mas e se eles... se separarem? — Eu me sentia idiota falando aquilo.
Eu me sentia criança. Mas, bom, eu era metade disso ainda e aquele era
exatamente o ponto que mais me desesperava.
— Não existe ex-pai. — Sorriu fraco e eu tive que fazer o mesmo. — E
mesmo que isso aconteça. Mesmo que um divórcio aconteça. — Encolhi-
me com o sonar da palavra, e ela tocou meus ombros, me trazendo de volta
com o choque de seus dedos. Malditos desfibriladores ambulantes, era isso
que eles eram. — Nós duas conhecemos seu pai, e é claro que ele nunca vai
abandonar você e Gabriel.
Não completou, porque nem poderia, mas o que minha mente regurgitou
naquela hora foi: "ele não é como o pai de Brenda".
Notei de onde vinha meu medo. Da experiência da minha melhor amiga.
Eu havia tido conversa parecida com ela e ela me disse que eu precisava
parar de temer o divórcio, porque, às vezes, isso seria o melhor dos
cenários. Seria o fim das brigas! Mas me parecia errado que ela dissesse
isso quando o divórcio a fez perder seu pai. Eu amava meu pai e não queria
que ele fosse embora. Eu não queria me tornar um número em seu extrato
bancário. Uma obrigação. Eu queria continuar sendo sua filha. Eu o queria
em casa quando eu chegasse do colégio, queria os nossos almoços de
domingo e queria minha família junta. Eu não queria perder nenhum dos
dois, nunca quis isso. Mas, bom, divórcio não significava isso, e meu pai
não era o de Brenda.
— Obrigada — sussurrei para Andy, sentindo-me totalmente exposta e
derretida, mas não esparramada. Havia certa racionalidade no meu
desabamento. Certa... aceitação.
Ela sorriu, delicadamente.
— Não se preocupe com o seu pai. De verdade. Às vezes, pais precisam
de um tempo. Olhe o meu, por exemplo. De volta!
Franzi minha testa.
Com aquela confissão desatenta, ela mudou todo o rumo do meu dia. E
o dela também.
— Espera. O seu? — Renan não havia me contado nada relacionado aos
seus pais e aquilo me pegou de surpresa. Eles estavam brigando também?
Aquela possibilidade me desesperou. Não. Não eles. — O que aconteceu?
Andressa ficou um tempo estática. Remexeu-se sobre o banco e
encolheu as pernas, abraçando-as e soltando um riso fraco antes de dizer:
— Oh.
Uma única vogal (eu acresci o "H" aqui para ficar mais bonitinho). Seus
lábios penderam em formado de “O”, e assim ficaram. Eu caí na real de
imediato.
— Desculpa. — Sorri, constrangida. — Esquece que eu perguntei.
— Não, tá tudo bem! É que eu contei uma coisa pra eles, e eles
precisaram de um tempo pra processar. Na verdade, meu pai precisou de
um tempo para processar. Ele ficou... distante, por quase uma semana.
— Caramba. O que você disse a eles? — Puta merda, hein, Camila? —
Droga — balancei a cabeça. — Desculpa de novo. Você não precisa me
contar — disse, e ela de fato não precisava, mas o fez, sem pensar duas
vezes.
— Eu disse a eles que eu gosto de meninas. Também. Apenas. Ainda
não sei direito, mas estou... descobrindo.
Foi a minha vez de travar.
Senti como se meu peito tivesse sido arrancado para fora.
Sinceramente? Eu esqueci que eu tinha pais. Sinceramente? Tive
vontade de largá-la ali, com seu maiô molhado e me trancar no meu quarto,
para nunca mais sair. Mais sinceramente ainda? Eu me perguntei. Eu me
perguntei aquilo que todo mundo odeia que se pergunte. Eu me perguntei se
Brenda poderia estar certa. Eu me perguntei se existia aquela ínfima
possibilidade. Uma chance absurda, de ela gostar de meninas, claro, no
plural, mas também, de mim.
“Ela com certeza quer beijar você”.
Aquela possibilidade nunca me pareceu tão perto. Pensar naquilo me
causou um arrepio intenso. O banheiro pareceu mais apertado e ela,
radioativa.
Eu vou ser sincera com você, eu sempre soube que aquilo poderia ser
verdade. Eu me negava a admitir, mas sentia aquela droga de adrenalina
conjunta, que nos puxava uma em direção à outra e que trazia visões muito
vívidas de sua mão apertando minha cintura.
Eu sabia, mas não podia confessar, porque existe uma diferença muito
grande entre fantasiar coisas erradas em sua cabeça sozinha e fantasiar em
conjunto.
Reciprocidade. Era isso que não poderia existir caso eu quisesse me
sentir segura. Caso eu quisesse sobreviver às minhas próprias convicções, e
às da minha família.
— Ah — foi tudo que eu consegui dizer. Foi tudo que saiu. Diante de
um dos momentos de maior vulnerabilidade de Andressa, tudo que eu fiz
foi dizer “ah”.
Ela estalou a língua em resposta.
— Ai, cara, foi mal. — Desviou o olhar para um ponto aleatório do
vestiário. O mais distante de mim possível. Notei que ela se acanhou e me
odiei por aquilo. — Isso é... estranho.
— Estranho? Não! Claro que não — fui rápida. Quase desesperada, na
verdade. — Eu só... Desculpa. Eu só não estava esperando por essa
reviravolta.
O que era parcialmente mentira. Brenda havia tentado me preparar para
aquilo; só não havia funcionado. Nunca imaginei que ela fosse facilitar
tanto assim a minha vida, acabando com a minha necessidade de deduzir se
ela pegava mulheres ao se sentar na minha frente e me contar que sim,
gostava delas, e estava se descobrindo.
Minha reação a fez rir. Um sorriso fraco, cheio de ar, seguido de um
balançar de ombros. Foi naquele ponto que ela voltou a me olhar. Acho que
consegui consertar um pouco da minha porcaria de primeira reação com
aquela frase. Só um pouco.
— Ninguém estava, eu acho.
Engoli em seco, sentindo que meu coração batia com velocidade. Era
ela quem estava se assumindo, mas era eu quem parecia prestes a implodir.
Bom, era uma situação espelho na verdade. Tinha medo de soluçar e
soltar sem querer um “eu também!”.
Inspirei profundamente, não mexendo um único músculo antes de
perguntar:
— O que seus amigos disseram?
— Bom... — Andy riu outra vez, mantendo suas pernas encolhidas, mas
apoiando seu queixo em seus joelhos. Ela me encarou por debaixo, com os
olhos avermelhados pelo cloro. Era nosso dia de trocar confissões,
aparentemente. Lidaríamos com as consequências disso depois. — Na
verdade, você foi a primeira pessoa fora da minha família para quem eu
contei.
Ah.
— Desculpa. — Eu amava aquela palavra. Andressa franziu a testa.
— Pelo quê?
— Eu te pressionei.
A maldita riu outra vez.
— Você não me pressionou, Mila. Eu não ia falar se eu não quisesse. Eu
quis te contar. — Suspirou. — Mas vamos voltar ao assunto que importa...
— Não! — gritei.
Literalmente, gritei, o que a assustou. Inspirei profundamente, tentando
controlar minhas emoções (todas incendiadas) antes de continuar:
— Por favor, não. Eu quero esquecer que eu tenho pais por alguns
minutos. Alguns anos, se possível. — Dei de ombros, fingindo que não
estava tão eletrizada assim pela sua confissão. — Você quer falar mais
sobre... sua... — tomei cuidado para usar a palavra certa. — Descoberta?
Andressa riu.
— Não sei. Você quer saber de mais alguma coisa sobre ela?
Hoje, olhando de fora, fica evidente para mim que ela fazia de
propósito. Estava confortável, enquanto eu pisava em ovos, e aquilo a
divertia, porque ela sabia o que significava. Porque ela já tinha estado no
meu lugar. Mas, na ocasião, eu estava tão nervosa que não notei.
— Ah. Sei lá. Hm... — Fiz um suspense desnecessário, apenas para não
parecer tão certa. Porém, eu sabia o que queria perguntar desde o início: —
Como você... descobriu?
— Eu sempre soube, na verdade. Mas era uma coisa grande para se lidar
e eu fui jogando para debaixo do tapete. — Assenti, com mais veemência
do que meu teatro hétero pedia. — Só que cada vez mais veio se tornando...
mais claro. E difícil de ignorar. — Ela me encarou de cima abaixo quando
disse aquilo. Atenção: ela me encarou de cima abaixo quando disse aquilo.
— Então, viajamos. Agora nas férias, — continuou, e eu foquei em sua
narrativa e não na direção dos seus olhos. — E eu encontrei com um primo
meu que literalmente se assumiu gay para toda a nossa família. No meio de
um jantar.
— Uau! — exclamei.
Assumir-se em um jantar de família. Eu não conseguia cogitar aquela
possibilidade. Só de pensar, eu tinha uns dez tipos de derrames diferentes.
— Pois é, ele é meu herói. Até mandei estampar uma camiseta com a
cara dele — riu, e eu tive que a acompanhar. — Mas enfim... sei lá. Aquilo
foi importante para mim, de alguma forma. Eu conversei bastante com ele.
E ele me ajudou a aceitar os fatos, basicamente.
— Quais são os fatos?
— Que eu gosto pra caralho de beijar mulheres e não queria ter que
ficar escondendo isso, sabe?
Sei!
Quer dizer, acho que sei.
Nossa, eu sei?
Tremi.
Bom, isso me levava a outra questão...
— Hm. — Eu me remexi. — Então você beijou mulheres antes de
chegar a uma conclusão?
Sim, eu perguntei isso. Sim, ela me respondeu.
— Já venho experimentando há um tempo, sim. Mas eu já sabia bem
antes disso, só ficava encontrando justificativas. — Tá legal, eu odiava a
forma como ela me refletia naquele instante. Tanto que fiquei calada. Ela
notou minha apatia, obviamente. — Tem mais alguma pergunta a respeito,
Camila Ferraz? — Arqueou, provocativamente, uma de suas sobrancelhas.
Foi aí que eu percebi que talvez, muito provavelmente, eu estivesse
extrapolando.
— Desculpa — repeti. — Estou sendo intrometida, né?
— Não. E se você pedir desculpa mais uma vez, eu juro que nunca mais
falo contigo.
Sorri fraco antes de provocar:
— Eu deveria me importar com essa consequência?
Não esperava que ela fosse responder à altura, só que ela sempre fazia.
— Eu tenho certeza que você se importa.
Franzi minha testa.
— Você é bastante convencida.
— E você bastante fácil de se ler.
Não, eu não sou. Não, você não sabe de nada. Calada, Andressa. Volte
para a sua piscina porque o momento passou e eu preciso voltar a te evitar.
Com ainda mais veemência agora.
— Então. Eu realmente tenho que estudar matemática — disse,
aleatoriamente. Ela não se assustou com a mudança de rumo.
De alguma forma, sincronizávamos bem, desde o princípio. Poucas
coisas que eu fazia eram realmente surpresa para ela. E era tão dolorido,
porque, quando estávamos juntas, eu não conseguia entender como aquilo
poderia ser tão errado. Quando estávamos juntas eu quase... aceitava. Mas o
problema era quando ela não estava por perto. O problema era o resto do
tempo inteiro.
— Fica tranquila, você vai se sair bem.
— Não, não vou.
Eu realmente não ia. Eu não sabia porcaria nenhuma de matemática e
não conseguiria mais me concentrar depois de tudo aquilo.
— Ok — riu, enquanto eu colocava a alça da bolsa no ombro, em uma
atitude clara de quem está prestes a ir embora. Ela não teve outra escolha
além de aceitar a minha fuga, outra vez. — Então você vai simplesmente...
sobreviver a esse fracasso!
— Acho que saberemos no futuro... Andy? — Eu queria sair daquele
vestiário o mais rápido possível, mas não poderia simplesmente virar as
costas para tudo que foi dito. Eu não era tão insensível assim. — Obrigada
— a agradeci, já de pé. Ela sorriu cristalino.
— Obrigada você também, por não tornar as coisas estranhas.
— Não tem motivo para ser estranho — garanti, mas acho que não
passei muita convicção ao me enrolar com a alça da minha bolsa. Andressa
sorriu com mais intensidade. Eu acenei, pigarreando. — Até mais.
— Até mais, Mila.
Então eu saí daquele banheiro e voltei para casa. Não havia nenhuma
possibilidade de eu ficar sentada em uma mesa assistindo Andressa só de
maiô de um lado para o outro. Não existia a menor possibilidade de
esquecer tudo aquilo que me foi dito. Pais brigam, pais ficam bem,
Andressa gostava de garotas “também” “apenas” e, diante de todos os
acontecimentos, eu obviamente não consegui achar espaço para me
importar com a porcaria do seno de 180°.
CAPÍTULO DEZESSETE. EU
TENHO UM MOTIVO PARA
GOSTAR TANTO DE
CAPITÃO AMÉRICA.
Vamos dar um pequeno salto temporal a partir de agora, tudo bem? O
mês de agosto foi um mês complicado para mim. Fui terrível nos testes de
quase todas as matérias, o que me deixou pendurada para as avaliações no
final do mês e de castigo por duas semanas.
O meu castigo incluía: não poder ver Henrique, não poder sair com
Brenda, não poder ir para a casa de Renan, muito menos dormir tarde por
causa de uma série de televisão. Basicamente, me tornei uma prisioneira, e
aceitei o meu lugar na cela, porque eu realmente estava preocupada com as
minhas notas e o medo de reprovar bateu forte. Desculpe o palavreado, mas
eu estudei para um caralho naqueles dias!
Meus dias se resumiam a acordar, ir para a escola, voltar para casa,
estudar, estudar e estudar. Eu buscava por uma privacidade inexistente em
uma realidade onde eu dividia o quarto com o meu irmão, telefonando para
Brenda somente para repassarmos a matéria.
Estávamos focadas em aprender o suficiente para irmos, pelo menos,
para a recuperação. Não tínhamos esperanças de escapar dela; mesmo que
ela tivesse ido melhor no segundo teste de geografia que teve. Afinal, ela
realmente estudou com Renan.
Não me pergunte, eu não sei de todos os detalhes. Quando a questionei,
ela disse que não teve nada demais, que eles só se encontraram depois do
horário na escola (eu me lembrava desse dia, voltei sozinha com tia Diana e
Gabriel) e estudaram na biblioteca. Não houve troca de olhares ou o
despertar de uma paixão avassaladora. Bom, pelo menos ela afirmou que
isso não havia acontecido, mas Renan estava radiante desde então.
Eu acho que, de fato, Brenda se provou muito difícil, porém eu tenho
certeza de que aquele estudo mudou alguma coisa. Afinal, eu os flagrava
conversando pelo WhatsApp e sorrindo um para o outro nos corredores, o
que nunca havia acontecido antes. Brenda negava quando eu insinuava
qualquer coisa, então eu evitava, mas assistia nos bastidores as coisas
caminharem a passos lentos. Era agradável assistir algo que fosse para
frente, quando toda a minha vida parecia em retrocesso.
Eu estava com Henrique. Não havíamos oficializado ainda, no entanto,
ele era basicamente meu namorado, sem o pseudo na frente. Beijávamo-nos
em toda oportunidade que tínhamos e ele me garantiu (sem que eu tivesse
pedido), que não estava ficando com mais ninguém além de mim. O que
significava que, bom, éramos exclusivos, uma vez que eu também mantinha
meus lábios bem distantes de qualquer pessoa com sorriso fácil, cabelos
castanhos e um metro e setenta.
Andressa estava em quarentena na minha cabeça. Escondida em uma
partezinha que eu só acessava quando queria me torturar. Parei de assistir
Orange is The New Black e não sei se ela terminou Stranger Things.
Parecia mais retraída depois do que me contou no banheiro. Vimo-nos e
interagimos muito pouco, o que foi ótimo para o meu plano de esquecê-la.
Eu me sentia mais confiante de que as coisas poderiam voltar ao normal.
Pelo menos, em relação a isso. Em relação a todo o resto, eu já havia
perdido as esperanças.
Meus pais continuavam com aquela maldita rotina de discussões e
tratamento de silêncio. Suportavam um ao outro, essa era a verdade, e foi
surpreendente a quantidade de tempo que conseguiram empurrar as coisas
daquele jeito. Chegamos até setembro habitando a mesma casa. Mas, antes
disso, aconteceu uma coisa importante: eu fiz aniversário.
Sim, eu sou leonina, nasci no último dia do signo, enquanto Henrique
era canceriano. Eu li em algum lugar que aquela não era uma combinação
tão boa assim. Leão se dava melhor com Aquário (Andressa era aquariana).
Acontece que Leão e Aquário são opostos complementares. O que é
poético, não acha? Só que isso tudo é pseudociência. Zero semelhança com
a realidade. Eu não fiquei nem um pouco feliz ao ler que “Leão e Aquário
podem formar uma relação cheia de energia e excitação”. Não mudou em
nada a minha vida, claro que não.
Dia 22 de agosto caiu em uma segunda-feira. Exatamente uma semana
antes da semana de provas. Eu estava de castigo e fadada a ter um
aniversário terrível, mas não foi o que aconteceu.
Sempre sou sincera (com você), então vou confessar: eu gosto muito de
aniversários. Gosto do fato de que há um dia exclusivo no ano para todos
me dizerem o quanto eu sou especial. Eu gosto de atenção, e recebi muita
naquele dia.
— Aqui está a aniversariante mais atrasada de hoje! — Foi como Renan
me recebeu, saindo do carro para me dar um abraço apertado.
Pois é, eu estava atrasada. Fui dormir tarde estudando e não acordei
com o despertador. Tive trinta minutos para me arrumar para o meu grande
dia. Trinta que se tornaram dez, uma vez que meus pais e irmão decidiram
fazer um café da manhã especial para mim.
Eles prepararam tudo enquanto eu ainda dormia. Meu pai fez pão na
chapa, minha mãe vitamina de abacate e Gabriel alguns origamis de
coração, os quais guardo até hoje. Aquilo foi profundamente significativo.
Ter os três sentados na mesma mesa, convivendo, foi impactante. Chorei
um pouco quando acabamos de comer, não vou negar. Chorei porque eu
queria aquilo de volta e porque sabia que não iria ter. Chorei, molhei meu
rosto e desisti de passar base, enfrentando o meu aniversário com gloss e
rímel. Não era o que eu imaginava, e eu não estava me sentido a garota
mais linda do mundo, mas era meu aniversário e todo mundo disse que eu
era, então eu acreditei.
— Desculpa pelo atraso — disse, me desvencilhando do abraço e
sorrindo para ele. — Tivemos um café da manhã “especial”.
Renan sorriu fraco. Eu o havia contado uma parte do que acontecia na
minha casa. Não fui tão detalhista quanto fui com Brenda (e Andressa), mas
ele ainda era meu amigo e eu ainda queria que ele soubesse. Então ele se
alegrou com aquele café da manhã tanto quanto eu.
— Hoje é seu dia, Camilinha. Demore o tempo que precisar. Aqui, seu
presente.
Ele me deu um caixinha em formato de coração. Havia um par de
brincos do lado de dentro. Brincos prateados, que eram os que eu mais
usava. Eu o agradeci com outro abraço antes que entrássemos de vez no
carro.
Sinceramente, eu sentia falta da época em que minha paixão por Renan
era a minha maior preocupação. Era uma paixão aceitável, e ovacionada.
Ser hétero era bem mais fácil, e eu juro que tentei recuperar aquilo naquele
instante. Vamos, Camila, leoninos também se dão bem com taurinos. Ele é
bonito, charmoso e incrível. Ame-o de novo. Esqueça a sua irmã!
Mas era impossível esquecer Andressa. Aquela porcaria de garota tinha
uma única motivação na vida: destruir a minha.
Quando chegamos ao colégio, ela estava parada, com as costas estiradas
na parede, logo depois das catracas. Diminuí um pouco a velocidade
quando a vi, subitamente me arrependendo por não ter me arrumado só
mais um pouquinho. Não estava bonita o suficiente para passar na frente da
garota mais gata do Rio de Janeiro. Pensei em dar ré, mas Renan falou:
— Ih, alá a Andressa! Ela queria falar contigo. — Então me puxou pelo
braço e basicamente me arrastou até que chegássemos nela.
Andy notou nossa aproximação bem cedo, me deixando sem escapatória
ao sorrir em nossa direção. Estava sem maquiagem naquele dia, mas as
argolas haviam voltado, e havia um piercing novo em sua orelha. Isso
acontecia todas as vezes que parávamos de nos ver. Ela sempre voltava com
algo novo. Às vezes, eram piercings. Às vezes, ela pulava de dentro do
armário direto para cima de mim.
— Oi — nos cumprimentou. Eu sorri fraco.
— Oi.
Quando eu já estava 100% a mercê de sua gravidade, Renan me largou,
dizendo:
— Bom, eu vou na frente. Te vejo na sala, Camilinha.
Havia algo esquisito na sua fala e, se tivesse a ver com Brenda, ele ia se
frustrar novamente, porque minha amiga havia dormido no pai e, quando
isso acontecia, ela atrasava o primeiro tempo. Mas, bom, não havia sido por
causa de Brenda que ele me largou sozinha com sua irmã. Havia sido
porque ela tinha pedido.
— Então, hoje é seu aniversário! — Felizmente, ela não deixou que o
silêncio esquisito se estendesse por muito tempo. Não fui obrigada a
quebrá-lo com alguma fala patética. Inspirei profundamente, tentando soar
normal e agradável ao brincar:
— É. O Facebook te avisou?
— Não, Renan.
— Ah, é — sorri. — Esqueci que ele é o porta-voz da minha vida. —
Ela sorriu de volta.
— A minha mais fiel fonte de informações. — Sua mochila estava
largada em seus pés. Ela se abaixou para resgatá-la enquanto dizia: — Bom.
Parabéns! — Havia um pouco de timidez em seu cumprimento, e aquilo me
deixou ainda mais envergonhada.
Se ela se sentia tímida, imagine eu!
— Obrigada — respondi, a assistindo enquanto ela abria o zíper e
cavoucava o interior.
Era esquisito pensar que na última vez que havíamos nos visto ela tinha
me contado que gostava de garotas e eu, que meus pais estavam brigando.
Era esquisito pensar que me agradava profundamente o fato de que ela tinha
me dado parabéns. Eu almejava por isso, torcia, em segredo, e ela nunca me
decepcionava.
— Eu sei que hoje vai ter um monte de gente te dando parabéns, por
isso eu quis te parabenizar logo. — Continuou remexendo a mochila, até
finalmente encontrar o que buscava, retirando um pacotinho prateado do
lado de dentro. — E te dar isso. — Prendi minha respiração. Ela o estendeu
em minha direção, com um sorriso acanhado. — Eu não sou boa com
presentes. Na verdade, eu sou terrível. Mas eu meio que lembrei de você
quando vi isso. Então... bom, enfim. Espero que goste.
Aceitei o pacote retangular com um gosto esquisito na boca.
— Andy, não precisava! — garanti, enquanto toda a minha
movimentação sugeria o contrário.
Tateei o embrulho, curiosa. Tinha um formato sugestivo, mas não ousei
chutar. Hoje eu sei que ela o havia embalado, porque aquele embrulho era a
cara de Andressa. Ela usou um saquinho feito para um presente menor,
superando aquele empecilho ao abri-lo pelas laterais e emendar dois
saquinhos com durex.
Abri-o com delicadeza, tentando não estragar seu árduo trabalho
enquanto sentia seu olhar ansioso sobre mim. Empurrei o plástico para o
lado de dei de cara com uma caixinha de DVD. Era um filme. Capitão
América, Guerra Civil.
Sorri sem nem notar.
Caso você não se recorde, aquele foi o primeiro filme que assistimos
juntas, sentadas naquele sofá confortável durante a festa de aniversário de
Renan. A primeira vez que realmente interagimos, depois de tanto tempo
convivendo no mesmo planeta. Ela se lembrou daquilo. Ela se lembrou de
mim.
— Caramba! — Encarei-a sorrindo.
Não me preocupei em diminuir a minha euforia e fingir que eu não
havia gostado tanto assim da surpresa. Aquele foi o melhor presente que eu
ganhei, e eu não soube disfarçar. Superou até mesmo o vestido lindo que
Brenda me deu!
— Ainda vendem DVD?
Ela riu.
— Surpreendentemente, sim.
Voltei meu olhar novamente para o presente, virando-o de um lado para
o outro. Capitão América e Tony Stark se encaravam em uma postura
ofensiva na capa enquanto Andressa me fitava de uma forma
completamente diferente. Um misto de alívio e admiração tornavam seus
olhos ainda mais brilhantes.
— Andy, eu amei — garanti, com sinceridade. — Muito obrigada
mesmo. Mas realmente, não precisava.
— Claro que precisava — retrucou, apoiando a mochila na sua frente e
voltando a se recostar. Tirou um tempo para me estudar antes de perguntar:
— Você vai fazer alguma coisa hoje à noite, pra comemorar?
Eu guardava, abobada, o presente na minha mochila quando ela fez
aquela pergunta. Estava dispersa e em transe, demorei para raciocinar.
— Quê?
— Nada. — Ela perdeu a coragem. Mas, para o seu azar, eu havia
ouvido sua pergunta.
— Se eu vou fazer algo para comemorar?
Eu fazia muito daquilo. Falava “que” antes que meu cérebro
processasse, forçando as pessoas a repetirem algo que eu já ouvira e que só
precisava de um tempo para digerir ou, simplesmente, decodificar.
Foi o caso daquela frase.
Pois é, Andy, dessa vez eu te peguei.
— É — riu. — Isso.
Tive um tempo, mas, mesmo assim, não entendi o que ela de fato queria
com aquela pergunta.
— Não, eu tô de castigo.
Ela assentiu duas vezes com a cabeça, desviando seu olhar para as
catracas e mudando completamente de expressão.
— Seu namorado tá vindo. — Demorei alguns segundos para me
lembrar de quem ela estava falando.
Virei meu rosto para encarar o mesmo que ela e dei de cara com
Henrique, entrando na escola como se fosse seu dono. Mascava um chiclete
com a mesma intensidade que eu mascava meus sentimentos.
Nossa, como eu gostaria que ele tivesse se atrasado um pouco! Só um
pouquinho...
— Eu vou deixar vocês a sós. — Encarei-a sem falar nada. Ela sorriu
fraco. — Feliz aniversário, Mila.
— Obrigada...
Quase não esperou que eu terminasse de falar para ir embora, deixando
para trás seu perfume e aquele maldito formigamento em meu estômago.
Assisti-a se afastar com o DVD pesando junto com os meus livros.
Quando chegasse em casa, eu assistiria aquele filme umas três vezes
seguidas. Colocaria o DVD dentro do meu armário, ao lado da minha
caixinha de coisas aleatórias, distante de qualquer um. Eu o colocaria em
um altar, o qual só eu tinha acesso. O qual só eu entendia o significado.
Sim, eu achava que ia superá-la daquele jeito.
— E a namorada mais linda do mundo faz aniversário hoje! — foi como
Henrique me cumprimentou, me pegando no colo e me carregando para o
lado de dentro.
Ele me deu uma pulseira caríssima com berloques e eu o agradeci com
um beijo discreto e uma falsa vontade de dormir com ele (privada pelo meu
castigo).
No fim, meu aniversário acabou com um saldo de dezenas de
felicitações. À noite, minha mãe chegou em casa com um bolo para
cantarmos parabéns. Fui mimada, amada e iludida, por todos ao meu redor.
Posso dizer que fui feliz no meu aniversário de dezessete anos. Foi um
dia especial. Depois dele, demorei para ter outros.
CAPÍTULO DEZOITO. FINAL
DE SEMANA DAS GAROTAS.
Eu fiquei de recuperação em três matérias, porém, consegui tirar notas
boas nas provas e me sentir mais confiante para o último bimestre. Ele
começou animado, com feriado, pais brigando e um mês inteiro de inferno
na Terra.
Eu não quero falar sobre setembro e outubro, foram meses péssimos
para mim e para Gabriel. Tão ruins que eu acho que bloqueei parte das
memórias. Eu me lembro pouco das circunstâncias que levaram meu irmão
a fugir de casa, por exemplo. Menos ainda do terror que foi até que o
buscássemos na casa de um amiguinho, do outro lado da cidade.
As coisas com os meus pais estavam se tornando insustentáveis. Era
uma montanha-russa. Dias com brigas, dias em paz. Uma semana de trégua
para duas verdadeiramente no purgatório. Tente viver em uma casa dessas
por dois meses inteiros e veja o que acontece com a sua cabeça. Aquilo
fodeu comigo, de uma forma que reverbera até hoje. Eu não tinha mais
neurônios, paciência ou força de vontade para fazer nada fora da minha
rotina. Eu vivia no automático. Escola, Henrique, Brenda, Renan. Vivia
cansada, e com dor de cabeça. Na verdade, eu sobrevivia, e meus pais
também. Eles estavam adiando o inevitável, tentando remendar uma fratura
exposta com band-aid, até que enfim acontecesse toda aquela situação com
Gabriel.
Resumidamente, em uma quarta-feira, como outra qualquer. Meus pais
brigaram no café da manhã e, logo em seguida, tia Diana nos deixou na
escola. Na hora de nos buscar, contudo, meu irmão não estava mais lá.

Andy 13:22: oi, eu fiquei sabendo do seu irmão.


Andy 13:22h: mila, fique tranquila, ele deve
estar na casa de algum amigo. Tem o contato de
algum?
Como sempre, Andressa estava certa. Ela ficou sabendo de toda a
movimentação desesperada que envolveu escola, seus pais, seu irmão e
quase, por muito pouco, a polícia, e me mandou uma mensagem no meio da
sua aula.
Minha mãe telefonou para a de seu amiguinho mais próximo,
conseguindo achá-lo. Como Gabriel foi parar do outro lado da cidade? Eu
nunca soube. Como Gabriel saiu da escola sem ninguém ver? Nunca soube
também. Como iríamos sobreviver àquilo? Bom, essa eu sabia: não o
faríamos.

Camila 20:47h: Andy, olá! Eu não consegui te


responder antes porque hoje foi horrível, caótico
e tudo de ruim que você possa imaginar. Gabriel
estava mesmo na casa de um amigo e já foi
resgatado. Obrigada pela preocupação
Camila 20:49h: E desculpa.

Foi só quando Gabriel já estava são e salvo em casa (sendo interrogado


no nosso quarto pelos causadores daquilo) que eu a respondi. Vínhamos
conversando esporadicamente por mensagem nessas semanas nebulosas.
Geralmente, sobre coisas rasas, que de maneira nenhuma chegavam à
profundidade que podíamos, e queríamos, ir.
Bom, eu estava realmente sem tempo para forçar aquilo. Estava sem
energia, e Andressa obviamente respeitou isso. Não tenha dúvidas: ela
sempre fazia tudo certo. Seria muito mais simples se ela fosse uma idiota,
mas ela nunca facilitou. Eu queria ter algo de ruim para falar dela,
realmente queria, mas não tenho. Nem naquela época, quando não tínhamos
nada, nem hoje, quando tudo que tínhamos acabou.

Andy 21:20h: q bom q deu tudo certo.


Andy 21:20h: sinto muito por essa merda de
situação.
Andy 21:21h: e para de pedir desculpas!!!!!!

— Filha, arrume suas malas.


Foi assim que minha mãe entrou no meu quarto, no dia 28 de outubro.
Dois dias depois da fuga do meu irmão. A reação drástica de Gabriel foi a
gota d’água.
— Nós vamos passar o final de semana em Búzios! Final de semana das
garotas! — Havia algo muito assustador e quebrado em sua entonação. Sua
animação era forçada e maníaca. Algo como quando o vilão do filme
gargalha, antes de se jogar da ponte.
Certamente tinha a ver com o fato de que ela havia acabado de sair do
telefone com o advogado.
É, eu escutei. É, eu sabia o que aquilo significava. É, ela estava
represando, e ainda assim, eu não me meti. Eu falei que eu permaneci
neutra todo esse tempo. Eu não minto (não para você)!
— Como assim das garotas? — foi o que eu perguntei, confusa. —
Meu pai e Biel...
— Vão ficar. Nós garotas vamos viajar, para espairecer. Diana ofereceu
a casa.
Ela só se esqueceu de me contar que tia Diana não havia só oferecido a
casa de praia que os Batistas tinham, como iria conosco, no nosso final de
semana das garotas. Garotas. Ga-ro-tas. Infelizmente (facilitaria muito a
minha vida se esse não fosse o caso), Andressa também era uma.
E foi assim que eu acabei dentro de um carro, com tia Diana no volante,
minha mãe no banco do carona e Andressa cheirando melhor que um
campo de rosas do meu lado.
Eu não estava nem um pouco a fim de ir. Não havia clima, e o fato da
minha mãe forçar um me descia mal. Mas, bom, você sabe o que acontecia
comigo. Dane-se o que eu realmente queria. Se alguém me mandasse,
pedisse ou até sugerisse que eu deveria fazer alguma coisa, eu faria. Eu
nunca soube dizer não. Muito menos para a minha mãe.
Foi um verdadeiro pesadelo. Um pesadelo o motivo daquela viagem e
um pesadelo ter que dissimular por um dia inteiro, na frente delas, tudo que
eu tinha acumulado.
Contudo, eu sobrevivi. Parcialmente.
É isso, estou respirando fundo. Vamos lá, chegamos ao grande dia.
Eu já havia ido à casa de praia dos Batistas antes, mas eu tinha nove
anos na ocasião. O que significava que eu não me lembrava de muita coisa
quando estacionamos, depois de horas de trânsito, no quintal.
Era uma casa pequena, aconchegante, com as paredes externas laranjas,
os portais de madeira e uma proximidade preocupante com a praia. Digo
preocupante porque eu sou uma pessimista por natureza. Eu tinha certeza
que haveria um maremoto enquanto dormíssemos e eu morreria da forma
que eu mais temia: afogada e sem nunca ter tido coragem para fazer o que
eu verdadeiramente queria. Sim, eu tinha medo de morrer antes de concluir
todas as minhas experiências de vida, o que não significava que eu teria
pressa para realizá-las.
O sol em Búzios estava absurdamente quente. Em um nível que eu
sentia minha pele torrar só ao sair do carro para levar as coisas para dentro.
Não levamos muita roupa, só íamos passar uma noite, mas tia Diana meio
que exagerou nos mantimentos. Ela encheu duas caixas térmicas com água,
bebidas, pães e outros itens (dispensáveis) como geleia de cupuaçu (?).
Minha mãe me mandou carregar uma das caixas enquanto entrava com
Diana e começava a organizar o lado de dentro, o que era uma tarefa um
pouco impossível para a pessoa mais sedentária do mundo.
— Quer uma ajudinha aí? — Andressa se ofereceu, ansiosa para salvar
a fracote que era incapaz de levantar, debaixo de sol quente, uma caixa
térmica que pesava metade do seu peso.
Porra de caixa.
Eu a encarei suando.
Andy usava uma viseira que sombreava metade do seu rosto, deixando
seu sorriso de fora. Já havia ajudado a levar a primeira caixa pesada para
dentro, juntando esforços com sua mãe. Eu inspirei profundamente.
Se havíamos trocado três palavras durante toda a viagem de carro, foi
muito. Enquanto elas conversavam sobre dezenas de assuntos diferentes, eu
coloquei o fone de ouvido e fiquei encarando a paisagem desfocada passar
ao meu lado. Não estava no clima. Para nada daquilo.
— Sua mãe trouxe tijolo? — perguntei, soando um pouco mais ácida do
que eu gostaria. — Vamos reformar?
Andressa riu.
— Ela sempre exagera na comida — compartilhou, se posicionando ao
meu lado, debaixo da frágil sombra que a mala aberta fazia. — Mas melhor
prevenir que remediar, não?
Suspirei.
Não sei se concordava com aquilo. Havia mercados em Búzios, não era
como se estivéssemos indo acampar no meio da selva. Seria plenamente
possível ir até lá e comprar uma geleia de cupuaçu, caso aquilo se tornasse
necessário. Mas, bom, eu não tinha energia, nem vontade, de continuar
aquela discussão. Minha mãe estava em contato com um advogado. Era
real. Tudo aquilo ia acabar.
— Pega desse lado — instruí, a ignorando ao ser consumida por todos
os sentimentos nocivos que me tornavam cada vez mais oca.
Brenda me preparou para aquele divórcio. Na verdade, me fez ansiar
por ele. Porém, quando tudo parecia estar prestes a se tornar real, eu não
sentia alívio, eu sentia medo. Eu queria minha família de volta.
Andressa guardou seu sorriso e posicionou sua mão onde eu mandei.
Levantamos a caixa juntas e fomos trotando a passos miúdos para o lado de
dentro.
A sala da casa era pequena, conjugada com a cozinha. Havia um sofá
azul retrátil atrapalhando o caminho; acima dele, um ventilador de teto e, à
sua frente, um painel de madeira com dezenas de bugigangas, porta-retratos
e uma televisão.
A parede pela metade que separava a sala da cozinha era também uma
bancada, com pedra de mármore em cima. Nossas mães haviam entulhado
dezenas de coisas lá, se revezando para colocá-las dentro da geladeira. Eu e
Andy nos esforçamos para fornecer a elas o restante dos mantimentos,
largando a caixa ao lado da mesinha redonda da cozinha.
Ajeitei minhas costas, ofegante. O suor escorria pelo meu pescoço e eu
me sentia inquieta. Regina se voltou em minha direção, decidida a não me
dar um segundo de descanso.
— Camila, leva suas coisas lá pra dentro.
— Eu pensei no quarto azul pra você e sua mãe — completou Tia
Diana. — Vê o que você acha, querida. Ai, Rê, sabe o que eu lembrei
agora? De quando Renan se recusava a dormir nele por causa do quadro que
meu pai pintou. Ele tinha pavor daquele quadro! — relembrou, o que
retirou uma gargalhada sincera da minha mãe.
Eu não a via rir assim há meses.
Precisei sair dali.
Sem dizer nada, caminhei em direção à minha mochila, abandonada em
cima do sofá. Estava tão leve quanto uma almofada. Não coloquei quase
nada lá dentro, afinal, eu nem queria estar ali!
Senti o olhar de Andressa sobre mim até que eu finalmente adentrasse o
corredor e sumisse de sua vista. Acatei mais uma ordem da minha mãe,
abandonando a mochila no primeiro quarto com paredes azuis que
encontrei, aproveitando o momento de privacidade para me trancar no
banheiro que havia logo em frente.
Seria educado se eu me oferecesse para ajudá-las na arrumação da
cozinha. E, em um dia normal, eu certamente o faria. Mas aquele não era
um dia normal, e eu estava exausta.
Abri a torneira e lavei meu rosto, tateando meu pescoço e tentando
controlar as lágrimas que tomavam conta dos meus olhos.
Eu queria estar em casa com o meu pai.
Quando eles se separassem, quem ficaria com a casa? Quem ficaria
comigo e com Gabriel? Eu tinha dezessete anos, ainda teria que ficar com
alguém. Eu queria ficar com os dois.
Não teve jeito, eu chorei.
Sentei na privada e deixei que as lágrimas saíssem.
Pelo menos, acabariam as brigas. Pelo menos, acabariam as
discussões!
Só que não era isso que eu queria.
Eu estava disposta a aguentar as brigas por mais tempo, caso isso
significasse meus pais no mesmo ambiente.
Não, eu não fazia ideia do que estava manifestando, mas eu era uma
adolescente, e era dos meus pais que eu estava falando. A gente nunca
espera que algo assim vá acontecer na nossa casa.
Fiquei alguns minutos ali, chorando no banheiro, enquanto o dia
cintilava azul do outro lado do basculante. Só consegui me controlar depois
que escutei passos próximos e me lembrei de que, se não saísse dali logo,
ficaria suspeito.
Lavei meu rosto mais uma vez, encarando meu nariz vermelho no
espelho e agradecendo o fato de que eu não estava tão inchada assim.
Esperei até que a vermelhidão diminuísse para abrir a porta.
Voltei ao quarto e remexi minha mochila, sentindo o quadro que tia
Diana havia mencionado me espiar. Ele era enorme, e ficava em frente às
duas camas de solteiro que havia ali.
Tá certo, dou razão ao mini Renan, aquele quadro era um pouco
assustador. Era uma pintura agressiva, e solitária. Uma mulher carregando
uma vela por um caminho de terra, enquanto uma vegetação densa e escura
a encurralava pelos dois lados. Havia algo incômodo naquela gravura.
Porém, quando paro para refletir sobre ela hoje, não acho que era o desenho
que assustava, mas as cores escolhidas para compô-lo. O cinza, o verde
escuro, o vermelho. Se você me der licença para ser filosófica, acho que é
meio assim com a vida também. Às vezes, o cenário é bem menos
assustador do que escolhemos o pintar.
Depois de recuperar meu celular, eu abandonei o quarto, tomando
coragem e me encaminhando, outra vez, para a sala/cozinha. As três ainda
estavam lá, terminando de organizar as louças.
Andressa estava em cima de uma cadeira, guardando um copo na última
prateleira de um dos armários suspensos. Ela desviou o olhar para mim
assim que cheguei.
Usava um short jeans e uma camiseta branca. Havia tirado a viseira, e
eu conseguia enxergar seus olhos com clareza naquele ponto. Conferi antes
de ir, e sabia que minha cara de choro estava bem discreta, no entanto,
mesmo assim, ela me fitou como se eu fosse o enigma mais óbvio de todos,
e eu me senti completamente exposta.
Evitei seus olhos, caminhando até a bancada de mármore para
perguntar, atrasada:
— Hm, vocês precisam de ajuda?
Foi tia Diana quem respondeu:
— Não, não, Camilinha. Já acabamos.
Andressa desceu da cadeira em um pulo.
— O que significa que eu estou liberada também?
Sua mãe riu.
— Já enxugou e guardou todos os copos?
Ela assentiu, enquanto (ai, caralho) caminhava em minha direção.
— Uhum.
— Já abriu todas as janelas e fechou o carro?
Alcançou, sem demora, a bancada, apoiando seu antebraço a
centímetros do meu.
— Uhum.
Evitei a olhar, mas sabia que ela mantinha sua atenção voltada a mim.
Sua presença próxima me deixou nervosa. Minha mãe estava distraída,
lavando alguns pratos, mas estava ali. Eu não poderia dar nenhuma bola
fora. Nada que a levasse a suspeitar que eu já havia duvidado da minha
sexualidade.
Eu não estava mais pensando com frequência sobre aquilo, sobre toda a
questão de bissexualidade e tudo mais. Você sabe, eu estava ocupada. No
entanto, não é preciso pensar para sentir; e bastou um segundo ao lado de
Andressa para que todo o meu trabalho de meses fosse para o espaço.
Afastei discretamente dela enquanto tia Diana dizia:
— Bom, então. Liberada também!
— Uhul! — Sorriu, me encarando misteriosamente por alguns segundos
até redirecionar a encarada à minha mãe e perguntar: — Tia Regina, o que
você acha de eu levar sua filha à praia?
Travei.
Minha mãe a encarou, depois, a mim.
Eu estava reagindo de maneira desproporcional a tudo aquilo, sei disso.
Não havia nada demais acontecendo ali, apenas duas pessoas paradas uma
ao lado da outra cogitando ir à praia. Duas garotas, em seu final de semana
de garotas, enquanto uma delas tinha um namorado. Havia poucas provas
que me incriminassem, mas ser criminosa era novidade para mim. E era
exatamente assim que eu me sentia em relação a Andy: criminosa.
Morrendo de medo de ser pega.
— Eu acho uma ótima ideia. Camila?
Pigarreei. Praia. Eu e Andressa. Sozinhas.
— Hm. Eu não sei...
— Se você ficar, elas vão te botar para trabalhar — argumentou Andy,
atrevida, dando de ombros logo depois. — Eu iria comigo.
Tive que a encarar depois disso, e foi uma ideia terrível, porque eu não
havia me afastado o suficiente. Ela estava perto demais e estava quente.
Muito quente. E minha mãe estava ali. Minha mãe. Sua mãe, Camila!
— Tá bom — cedi.
Cedi porque eu sabia que ela insistiria até que eu aceitasse e,
aparentemente, eu não seria capaz de ficar no mesmo ambiente que ela sem
deixar evidente que eu estava triste, mas também no meu período fértil.
— Eu só vou... trocar de roupa.
Se eu tivesse saído correndo teria sido menos esquisito. Caminhei como
se tivesse uma placa com “EU TALVEZ ACHE ANDRESSA ATRAENTE”
pregada bem na minha testa. Mas aquele não era o caso. Felizmente,
ninguém tinha como adivinhar meus pensamentos. Na verdade, quase
ninguém fazia questão. Minha mãe estava tentando se distrair do seu
casamento em ruínas, tia Diana estava focada em possibilitar aquilo e Andy,
bom, eu nunca tinha certeza de onde sua mente estava, mas os
acontecimentos me levaram a supor que ela era a única que sempre esteve
realmente focada em mim. Quase nas mesmas proporções que eu estive
focada nela, por todo esse tempo.
CAPÍTULO DEZENOVE.
NUNCA VÁ A UMA PRAIA
QUASE PARTICULAR COM A
GAROTA QUE VOCÊ QUER
BEIJAR EM SEGREDO.
Caminhamos menos de dez minutos até que chegássemos à praia. A
areia estava quente, não havia uma nuvem no céu e o mar batia fraco.
Tinham poucas pessoas na areia, e poucas também no mar. Apesar de ser
final de semana, era baixa temporada, e nós estávamos tão sozinhas que
parecia que havíamos acabado de desembarcar em uma praia particular.
Apoiamos nossas cadeiras a uma distância segura do mar e Andy tentou
abrir o guarda-sol enquanto eu passava o protetor. Eu já estava vermelha, e
havíamos acabado de chegar. Odiava ter puxado a genética da minha mãe.
— Você acha que tem uma probabilidade muito grande dele despencar
na gente? — arriscou, depois de um tempo de batalha, me forçando a
encarar o guarda-sol capenga.
Os Batistas não costumavam ir àquela casa com tanta frequência, o que
refletia nas cadeiras (que não deitavam mais) e no aro que prendia o guarda-
sol na areia (completamente enferrujado).
Andy fez o que pôde, coitada, abrindo-o o máximo que deu e o
deixando o mais reto possível. Para a nossa sorte, não estava ventando tanto
e, talvez, ele demorasse um pouco para se desintegrar.
— Uma possibilidade quase tão grande quanto a de você pegar tétano
— retruquei, assistindo-a abandonar o guarda-sol torto, se sentar na cadeira
ao meu lado e espalhar um pouco de protetor no seu rosto.
— Ok — riu, limpando sua mão em seu short. — Então acho que hoje é
oficialmente meu último dia de vida.
— Tem um lado bom. Pelo menos você está passando ele na praia!
— Verdade.
Voltou seu olhar para mim e eu desviei o meu, encarando o mar à nossa
frente e divagando mais do que eu gostaria.
Eu estava me esforçando para ser engraçada e descontraída, mas era
tarefa difícil. Sentia a tensão endurecer meu pescoço e me segurava para
não chorar outra vez.
Gabriel, tadinho do meu irmão, ele fugiu de casa! Aquilo era um
absurdo, pelo amor de Deus! Eu sentia, além de tudo, raiva dos meus pais,
por fazerem aquilo com ele.
Acho que fui pouco sutil na minha mudança de humor. Andy suspirou.
— Você não vai se dar um final de semana de descanso? — Era claro
que ela sabia o que estava se passando. Sua mãe a havia contado os fatos, e
ela sabia ler as marcas que eles provocavam em mim.
— Estou tentando — insisti. Um pouco para ela, um pouco para mim.
Eu estava fazendo o meu melhor, Andressa, valorize. Eu estava em uma
praia com você. Não era o bastante?
— Discordo. — Aparentemente, não. — Tentar seria você levantar
dessa cadeira e entrar no mar comigo.
Fui obrigada a encará-la depois daquilo. Se era isso que ela esperava de
mim, ela estava ferrada.
— Andy. Vou colocar toda a nossa quase amizade sazonal em xeque
agora, está preparada?
Ela sorriu, remexendo-se antes de dizer:
— Manda.
— Eu odeio nadar — confessei. — Saí da natação porque água funda
me dá desespero e eu tenho menos coragem ainda de entrar no mar.
Aquela confissão realmente a pegou de surpresa.
— Sério? Eu lembro que você gostava, quando a gente vinha.
— Pois é, eu gostava, mas me tornei uma medrosa com os anos. Acho
que a última vez que entrei no mar, eu tinha doze anos. Tomei um caixote,
quase fiquei pelada e desisti.
Andressa riu, balançando a cabeça. Encarou o mar por alguns instantes,
depois, cravou suas irises escuras em mim.
— Você confia em mim?
Eu sabia o caminho que ela queria seguir e tentei a impedir.
— Andressa...
— O mar está calmo! Olha lá — apontou. — Piscininha.
— Você tem ciência de que essas coisas mudam em segundos, né?
— Também não é assim.
— Não tem nenhum salva-vidas por perto, caso eu me afogue.
— Tem eu!
Fui incapaz de não rir.
— Você é muito convencida mesmo, Andressa Batista.
Ela deu de ombros, insistindo:
— Confia ou não confia?
Obviamente, eu confiava. Obviamente, eu pagaria um preço alto por
aquilo.
— Andy... — tentei, uma última vez, mas não havia firmeza no meu
olhar. Ainda mais com ela, me fitando com a expectativa transbordante. Um
cachorrinho esperando para receber seu petisco. Como resistir àquilo?
Além do mais, eu não tinha exatamente trauma de mar, eu só o
respeitava, como deveria ser feito. Meu avô sempre dizia: mar é
temperamental e eu saí da aula de natação, então eu com certeza não
sobreviveria se fosse arrastada até o fundo. Todavia, o mar estava realmente
calmo naquele dia. Ondas espaçadas, baixas, enquanto o sol não dava
trégua. Estava um calor do caramba também, e eu tinha que pelo menos
molhar meus pés.
Gabriel aproveitaria a oportunidade se estivesse ali. Se nossos pais não
estivessem prestes a se separar. Se nossa vida não estivesse uma merda.
Ok.
Ela havia vencido.
Dane-se.
Eu não ia me afogar no raso! E, se o fizesse, quem sabe meus pais
passariam a prestar atenção em mim, desistindo de se separar. Talvez um
afogamento os unisse outra vez!
Sim, eu realmente pensei nisso. Fiz dezessete anos, mas não ganhei
raciocínio.
— Tá bom, você venceu. — O sorriso que alcançou seu rosto fez valer a
pena ter cedido. Fez valer a pena qualquer coisa que pudesse vir em
seguida.
Fiquei de pé, desafivelando meu short. Andy deixou seu olhar cair em
meus dedos. Quando percebeu aquilo, desviou a atenção, concentrando-se
em suas próprias mãos e me largando confusa, mas com um sorriso no
rosto.
Retirei a blusa pela cabeça, guardando-a na bolsa e ajeitando a
cortininha do meu biquíni. Quando me coloquei novamente ereta, encarei
Andressa, e o desconforto bateu de leve. Ok, eu estava só de biquíni. Ok,
ela estava igual.
Seu biquíni era amarelo, com detalhes em branco nas alças. Acho que
aquela foi a única vez que eu vi os braços de Andy vazios daquele jeito.
— Não deixe eu me afogar. — Pigarreei, me afastando dela e me
impedindo de ter a atitude grosseira de examiná-la de cima abaixo.
— Jamais — retrucou, me seguindo enquanto eu caminhava em direção
à água.
O choque térmico dos meus pés com aquelas marolas congelantes
arrepiou todos os pelos do meu corpo. Ou então foi Andy, segurando de
súbito meu pulso.
— Você sabe da regra básica, né?
Virei para encará-la.
— Não. Qual é?
— Se vier uma onda, você afunda. — Visualizei uma onda enorme me
esbofeteando e meu coração acelerou. — De resto... — Soltou meu pulso e
ofertou sua palma a mim. — É só não soltar a minha mão.
Aquela instrução me fez me lembrar do meu pai, e eu sorri,
melancolicamente. Ele costumava fazer aquilo comigo: me dar a mão para
entrar na água, e eu adorava. Verdadeiramente, eu amava estar no mar, mas
eu ainda não sabia de muitas coisas, e o saber meio que estraga tudo, né? O
aumento de consciência que veio com o tempo me tornou cautelosa (ao
extremo) e, consequentemente, muito mais propensa a sentir medo. Eu tinha
medo de muitas coisas, sempre tive. Minha mãe me protegeu demais, me
impediu de enfrentar grande parte dos fantasmas que eu deveria ter
enfrentado e, com isso, eu me tornei uma adolescente com medo de entrar
no mar. Com medo da separação dos meus pais. Com medo de como isso
afetaria o meu irmão e com mais medo ainda de Andressa e sua mão
estendida.
Aquilo era uma péssima ideia, não era? Possivelmente. Só que eu estava
cansada de sentir medo. Eu estava cansada de tudo, menos dela.
Apoiei minha mão sobre a sua, e ela envolveu seus dedos nos meus. Sua
mão era macia e seus dedos compridos. Ela apertou.
— Preparada para enfrentar nada além de marolas e água gelada?
Sorri.
— Não.
Mesmo assim, entramos. Uma onda pequena quebrou nos nossos pés e,
antes que outra se formasse, Andy me guiou para dentro.
A água estava congelante e eu bati o queixo, mas Andressa disse que a
melhor estratégia para aquele empecilho era entrar de cabeça. “Depois o
corpo acostuma”, garantiu, e eu não retruquei, a especialista em água era
ela. No entanto, meu corpo demorou a se acostumar. Tanto que eu achei que
ia morrer de hipotermia. Pisei em conchas e resmunguei, mas tive pouco
tempo para reclamar mais quando chegamos a uma parte funda, onde não
havia nada além do balanço da água e o silêncio do mar.
Inspirei profundamente, me orgulhando por ter conseguido.
A água batia em meus ombros e o barulho das ondas era como um
poema, recitado ao pé do meu ouvido. Eu quis simplesmente ficar ali. Para
sempre. Onde não havia pais brigando, notas baixas ou dúvidas quanto a
minha sexualidade. Eu queria afundar minha cabeça e engolir aquele
sentimento. Trazer para dentro o sal, o oceano e a certeza de que eu poderia
enfrentar medos. Que eu poderia sobreviver a ondas fortes e pedregulhos na
sola do meu pé. Eu poderia sobreviver. Eu poderia tentar.
Andressa ainda segurava a minha mão, sem necessidade alguma, e eu
não fiz menção nenhuma de quebrar aquela corrente. Ela disse para eu não
soltar, não foi? Era uma das regras básicas e eu seguia regras.
Estávamos em silêncio, cada uma em sua mente, conectadas por uma
espécie de cabo (nossos braços), que nos forçava a permanecer perto,
mesmo que não tão perto assim. E era aconchegante. E era... tranquilo.
Inspirei profundamente. Tranquilo. Há quanto tempo eu não tinha algo
assim?
Senti as lágrimas chegarem aos meus olhos, então afundei.
Quando levantei, a vontade de chorar foi completamente amortecida
pelo frio. Andressa riu da expressão em meu rosto e eu ri de volta. Meu
cabelo grudou em meu rosto e, em vez de eu mesma tirá-lo, deixei que
Andy tivesse o trabalho. Afinal, ela estava aprisionando minha mão direita
e eu sou destra. Era tipo um dever seu me salvar naquele ponto.
— Você entrou no mar — pontuou, enquanto poupava meus olhos do
frio, cabelo e sal que os inativavam. Recuperei a visão e, quando a encarei,
notei que havia satisfação em seus olhos.
Ela me parabenizava por aquele feito como uma mãe, que assistia a seu
filho ganhar um prêmio Nobel. Dei de ombros. Apesar de ser um pouco
bobo, me era agradável ser motivo de orgulho para ela.
— Tive ajuda.
— Você não precisa de ajuda, Mila — garantiu. — Você consegue
enfrentar bem mais coisas do que imagina.
Não sei quando a dei permissão para ser motivacional comigo, mas eu
também já havia sido motivacional com ela, então eu meio que tive que
aceitar. Eu meio que gostei. Dá um desconto, eu estava afetada pelo mar. Eu
estava afetada por ela, então sorri, deixando que a marola me levasse um
pouco mais para perto antes de dizer:
— Você também.
Afastei-me de novo, o máximo que nossos dedos unidos permitiram, e
deitei minha cabeça para trás, ficando um tempo daquele jeito, olhando o
céu, sentindo o mar, com as mãos unidas às de Andressa.
“É só não soltar a minha mão”. Deus sabe que eu não queria fazer
aquilo nunca mais.
Acho que ficamos uns vinte minutos dentro d’água. Tanto tempo que
meus pés estavam enrugados e murchos. Certamente, o frio havia passado,
mas o tempo também, e já estava na hora de sairmos. Eu começava a sentir
câimbras, e comentei que precisava descansar um pouco. Acho que
Andressa ficaria mais. Na verdade, acho que ela moraria ali, se fosse
possível, mas aceitou sair comigo. E foi aí que fomos surpreendidas.
As coisas estavam bonitas e calmas demais para serem verdade.
Eu tinha razão quando disse que o mar muda em segundos e ela tinha
razão em dizer que, ao vir uma onda, era só mergulhar. Mas eu fui pega de
surpresa, me desesperei e acho que criei mais coragem do que devia
naqueles minutos à deriva. Tentei enfrentar a onda de frente (vendo em
retrocesso, ela nem era tão grande assim, eu tinha algum tipo de
argumento), e fui arremessada longe.
Um bolo de água, cabelo, areia e muita humilhação foi o que se seguiu
aquilo. Eu engoli metade do Oceano Atlântico e carreguei toda a areia de
Búzios comigo. Foi patético, mas durou pouco.
Andressa fez seu trabalho direito, e me içou antes que eu pudesse
entender o que havia acontecido.
Ela me tirou de dentro d’água e me colocou de pé à sua frente. Soltou
minha mão para segurar meus ombros e me manter ereta. Minhas vias
aéreas estavam em chamas e o mundo ainda parecia feito de bolhas quando
eu comecei a raciocinar.
Andressa me fitava, com uma mistura de diversão e preocupação em
seus olhos. Eu senti um vento gelado onde não devia. Quis morrer.
— Ai. Meu. Deus. Meu peito tá de fora? — foi a primeira coisa que eu
perguntei, o que retirou por completo o toque de preocupação em seu rosto,
o afogando no mais cristalino entretenimento.
— Você realmente quer que eu olhe? — Não foi só aquela sugestão
maliciosa, foi a forma como ela a falou. Despreocupada, concisa e sem
pestanejar.
Senti todo o sangue do meu corpo se acumular no meu rosto. Acho que
nunca fiquei tão vermelha na minha vida inteira. Tranquilidade, foi isso que
eu senti antes, né? Pois ela acabou!
Você me paga, Andressa.
— Ai! — foi isso que eu respondi, ou uma variação igualmente tosca.
Eu ainda estava um pouco revirada, não me culpe. Meu cérebro foi
chacoalhado pelo mar. Você não pode me criticar por nada que eu fiz a
partir daquele instante.
Virei de costas para ela, sentindo seu olhar sob a minha nuca e minha
bochecha em chamas. Conferi. Meu peito não estava de fora. Pelo menos
isso. Uma vitória.
— Ei. Você tá bem? — quis saber, finalmente, ela e, para o seu azar, eu
estava ótima. Pronta para trucidá-la! Esperei alguns segundos, até que o
avermelhado se desconcentrasse antes de virar e a dar um empurrão.
Que ótimo. Eu havia levado um caixote na frente de Andressa. Óbvio
que isso havia acontecido.
— Eu nunca mais confio em você, Andressa Batista! Tem areia dentro
de mim — afirmei, tentando soar convicta e irredutível, mas a infeliz ria, e
eu também.
— Mas você não se afogou! Foi isso que eu prometi.
Apontei em sua direção, sentindo minha garganta arder por causa da
água que eu engoli. Eu não tinha argumentos, então só repeti:
— Nunca. Mais.
Andy ignorou meu dedo apontado, dizendo:
— Seu sorriso é lindo, sabia? — E, com isso, ela deu largada em uma
corrida de cavalos em meu peito.
Tentei soar como se não tivesse sido afetada pelo comentário ao
retrucar, o mais rápido que consegui:
— Já me disseram. — Ela assentiu.
— Ok. Posso tentar de novo então?
Ai puta que me pariu.
O mar que me deu um caixote e ela que se sentia no direito de balançar
comigo?
Outra vez, não foi só a frase, foi o jeito que ela escolheu deixá-la sair.
Se havia um objetivo para a comunicação verbal humana, naquele
momento, ele se perdeu. Eu perdi toda a minha capacidade de falar quando
ela deu um passo em minha direção, sem pedir licença, sem preparar
terreno, sem me dar a oportunidade de sair correndo.
Seus cabelos estavam encharcados e mais escuros do que nunca. Sua
pele cintilava debaixo do sol quente e suas sobrancelhas estavam
bagunçadas. Eu entendia perfeitamente bem porque sua cor favorita era
amarelo. Aquela cor havia sido inventada para ela. O contraste do seu
biquíni com sua pele era desleal. Eu fiz meu máximo para não olhar, mas
não teve jeito, eu reparei. Reparei como ela ficava linda de amarelo.
Reparei como ela ficava linda com aquele biquíni. Reparei nas lascas de
luxúria que havia em seu olhar.
— Andy...
— Posso? — sussurrou. E estava perto. E cheirava a sal. E eu estava em
pânico.
Tela azul. Tela preta. Tela de todas as cores do arco-íris.
— Pode o quê? — consegui dizer, com muito custo. Muito custo
mesmo. Eu sentia como se todas as conchas da areia estivessem na verdade
entaladas na minha garganta. Mas, talvez, eu estivesse surtando à toa.
Talvez...
Andressa deu um passo microscópico na minha direção e eu
simplesmente me tornei espuma.
A água batia nos nossos tornozelos. Não havia testemunhas e eu sentia
meu coração batucar nas minhas orelhas. Se algo acontecesse ali, ninguém
saberia, e aquilo era muito tentador.
Ela levantou um de seus braços, usando-o para afastar o cabelo que
estava grudado em meu pescoço. Seus dedos roçaram de leve e de propósito
na minha pele e eu juro que eu suspirei.
Não, eu não estava surtando à toa. Andressa encarava a minha boca. E,
por Deus, eu fazia o mesmo com a dela.
Céus. Então era isso mesmo? Brenda estava certa?
Eu acho que você sabe que estava.
Andressa queria me beijar, e estava aproveitando a oportunidade para
testar se eu queria o mesmo. Era isso que ela fazia naquele momento: me
tratava como um objeto de estudo, e eu entregava todas as resoluções de
bandeja. E o fingimento? E a discrição? E o sufocar até morrer? E o
namorado? Nada disso me veio à cabeça. Andressa tinha passe livre, e
notava isso. Se tinha alguma dúvida até aquele instante, não tinha como
restar mais.
A brisa, o som do mar, as batidas do meu peito, tudo parecia integrado.
Unido. Esqueci que eu havia acabado de engolir água, tudo que eu engolia
era sua presença. Ela estava perto, e eu conseguia enxergar que tinha uma
pintinha minúscula ao lado dos seus lábios. E eles eram tão bem
desenhados. Tão convidativos. E eles se enroscavam em mim, na minha
mente, e eu me sentia sedenta. Eu nunca quis tanto alguma coisa quanto eu
queria aquilo.
Então, foda-se. Era isso. Bissexual ou não. Lésbica ou não. (Panssexual
ou não, eu ainda não conhecia esse termo). Qualquer coisa ou não, eu
queria beijar Andressa. Desesperadamente. Tanto que eu não conseguia
respirar.
Ela tinha sua resposta, eu não precisava falar nada, mas ela não se
mexeu. Aquilo me frustrou.
— Pode — insisti, apressadamente, tentando retirar dela alguma
reação.
Eu não tinha certeza com o que estava concordando, mas notei que tinha
certeza do que eu queria. Foi preciso um caixote, dezenove capítulos e
quase um ano inteiro, para que eu conseguisse admitir para mim mesma,
com todas as palavras, sem “talvez”. Beijar Andressa era o que queria. E eu
acho que ela queria o mesmo. Afinal, ela chegou a se aproximar e ia
arriscar me tocar, mas aí uma gaivota enviada diretamente pelo Satanás! (ou
pela minha mãe mesmo) nos sobrevoou, quase batendo com as asas na
minha cara.
O susto me fez raciocinar. O susto me fez afastar. O susto quebrou o
feitiço.
Sim, uma gaivota me trouxe de volta para a realidade. Sim, eu também
fico puta quando lembro que isso aconteceu. Mas foi bom, era um sinal,
porque aquilo era errado.
Meu Deus do céu.
Racionalizei o que poderia ter acontecido se aquela ave não tivesse me
trazido de volta à realidade, dando um passo para trás, com o peito batendo
acelerado.
O que eu estava fazendo? Trocando olhares e... tensão quando eu tinha
um namorado.
Pois é, eu nem me lembrava de que ele existia, mas ele estava lá. Ele era
real, ele gostava de mim e eu não era daquele jeito.
Eu me afastei bruscamente, ignorando sua expressão ambígua enquanto
dava as costas e caminhava, pálida, em direção às nossas cadeiras. Sentia
que havia areia dentro de mim. Não só fisicamente, mas metaforicamente
também. Eu pesava e fazia barulho.
Não podia fazer aquilo. Não naquelas circunstâncias. Não com
Henrique. Ele não merecia. Não merecia que eu passasse metade do meu
tempo desejando outra pessoa, menos ainda que eu a beijasse. Ele não
merecia que eu tentasse, mas não conseguisse, me afastar daquilo. Que eu
suprimisse com tanta força que aquele único beijo passasse a se tornar uma
necessidade. Dormir, comer, beijar Andressa, tudo parecia igualmente vital
para mim. E eu tenho certeza que se ela tentasse, eu a deixaria ter me
beijado naquele momento. Eu queria a beijar. Eu...
— Bom, eu ia dizer que seus olhos são lindos também. Mas, pensando
bem, acho que isso também já deve ser de conhecimento público.
Foi como ela chegou, sentando-se ao meu lado. Não se engane, ela não
queria despistar o momento com aquilo, ela queria jogar mais lenha na
fogueira. Ela queria me ver queimar. Eu havia a mostrado o quão fácil seria
aquilo e conseguia ver que ela estava ansiosa para tentar de novo. De
verdade daquela vez. E, caramba, me dê um desconto, eu era apenas uma
garota pós-caixote, eu não teria forças para resistir. Eu tremia só de pensar
na possibilidade!
Pigarrei, me ajeitando na cadeira.
Havíamos acabado de chegar naquele lugar e eu ainda precisaria
enfrentar horas com aquela garota sem beijá-la. Aquilo estava se tornando
muito perigoso. Muito difícil. Especialmente quando eu havia me deixado
ser lida. Quando eu havia encarado a droga da sua boca. Quando eu havia
comprovado todas as teorias de Brenda.
Andy queria me beijar e eu queria beijá-la de volta. Era assim que
romances de novela e tragédias Shakesperianas começavam.
Não a respondi, encarando o mar na minha frente com a consciência
pesada.
Tá legal. Estava na hora. Aquilo foi longe demais. Eu precisava
conversar com Henrique.
CAPÍTULO VINTE. ÀQUILO
EU NÃO CONSEGUIRIA
SOBREVIVER.
Se você acha que aquela viagem já rendeu tudo que poderia, sinto te
decepcionar, temos mais dois capítulos para finalizar os acontecimentos do
“final de semana das garotas” com chave de ouro.
Retornamos para a casa na hora do almoço.
Andressa estava alegre e próxima, enquanto eu estava fechada, mas
profundamente decidida.
Almoçamos com as nossas mães, sentadas à mesa da cozinha, e eu
passei a maior parte do tempo quieta. Estava um pouco introspectiva
demais para perceber que minha mãe também estava calada. Na verdade,
ok, eu percebi, sim, mas atribuí aquilo a todos os acontecimentos anteriores.
Nunca passou pela minha cabeça o verdadeiro motivo.
Andy se incomodou com a minha falta de reação, eu notei o grande
ponto de interrogação em seus olhos, mas não me atrevi a compartilhar
outro momento a sós com ela até que tivesse a oportunidade de pegar meu
celular e abrir a minha conversa com Henrique. Eu sabia o que deveria
fazer.
Depois do almoço, me voluntariei para lavar a louça (já que eu não
tinha feito nada antes), enquanto tia Diana e Andressa iam ao mercado
comprar manteiga. Pois é, ela levou duas caixas enormes com suco de
melancia e geleia de cupuaçu, mas esqueceu da manteiga. Eu amo tia
Diana, sério. Acho que ela devia comandar essa história a partir desse
ponto. Eu honestamente não queria ter que narrar o que veio a seguir. Mas
vamos lá: eu fiquei sozinha na casa com a minha mãe e me tranquei no
quarto azul até que tomasse coragem.
Inspirei profundamente algumas vezes, com o celular à espreita.
Henrique havia me desejado boa viagem, e eu havia respondido, depois,
quase beijei a sua amiga.
Eu me sentia péssima. Eu precisava consertar aquilo. Consertar alguma
coisa.
Pesquei o celular e digitei, lentamente, palavra por palavra:

Camila 13:21h: Oi. A gente precisa conversar.


Sinto muito, mas temos que dar um tempo.

Digitei, reli umas doze vezes, e senti meu peito esvaziar.


Eu gostava de Henrique, tinha um carinho enorme por ele, no entanto,
as coisas nunca haviam evoluído para algo além disso. No começo, era
intenso, só que aquela intensidade não se sustentou. Nunca teve espaço para
crescer, na verdade. Eu nunca fui inteiramente sua namorada, enquanto ele
fez de tudo para ser o meu. Tudo que ele era para mim, era conveniente. O
que era injusto e maldoso. Precisava aproveitar aquela lufada (rara) de
coragem para ser uma pessoa decente. Eu conversaria melhor com ele
quando chegasse em casa, mas, por ora, enviei a mensagem.
Senti algo esquisito assim que as duas flechinhas apareceram, indicando
que ele havia recebido e que não havia mais como eu voltar atrás (na época
não dava para apagar as mensagens do WhatsApp, era um mundo muito
hostil). Eu nunca tinha tido um relacionamento antes, nunca havia tido que
terminar, mas me doeu menos do que eu imaginei que faria.
Havia algo como uma sensação de dever cumprido atrelada àquela
mensagem. Eu estava o libertando. De mim, da minha confusão e da minha
necessidade absurda por outra pessoa. Pedir um tempo a Henrique me doeu
muito menos do que o que veio a seguir.
Ele demorou para ler, e eu abandonei meu celular no quarto enquanto a
resposta não chegava. Fui tentar ser produtiva, para amansar a ansiedade,
mas, quando cheguei à sala, dei de cara com a minha mãe, sentada na mesa
da cozinha aos prantos.
Os flashbacks foram intensos. Lembrei-me das poucas vezes que a vi
chorar. Lembrei-me dos motivos. Meu estômago afundou tanto que chegou
ao centro da Terra.
— Mãe? Meu Deus! O que houve? — Ela levantou o olhar para me
encarar. Seu rosto estava inchado.
Eu me parecia com a minha mãe, todos diziam isso. Olhos castanhos,
pele branca, cabelos lisos. Não tínhamos o mesmo nariz, contudo, nem as
mesmas convicções.
— Ah, querida...
— Mãe? O que aconteceu? — repeti, com muito medo da sua resposta.
Ela fez um gesto, estalando a língua antes de dissertar:
— Diana me contou uma coisa hoje. Sobre a Andressinha.
Meu coração parou de bater por alguns segundos.
— Quê? O que houve com ela?
— Ai — fez mistério, mas não por muito tempo. — Aparentemente,
filha, Andressa é... gay.
Ela sussurrou aquela última palavra, como se fosse uma heresia dizê-la.
Como se ela fosse alérgica e aquilo a coçasse, profundamente. Eu demorei
um tempo para conseguir reagir.
— Ah. Você está chorando por causa disso? Por... quê?
— Ai, porque eu gosto tanto dela...
Eu realmente não estava acompanhando. Minha mãe estava chorando
porque Andressa “era gay”? Poderia ser cômico, se não fosse exatamente o
contrário.
— E... o que que tem? — arrisquei, o que foi uma péssima ideia.
— Você já sabia disso, Camila? — Havia tanto julgamento em seu olhar
que eu parei de respirar.
Senti que traí Andressa quando disse aquilo, mas fui incapaz de ser
verdadeira:
— Não.
Aquilo a acalmou, porém me destruiu. Acalmou eu não saber que
Andressa beijava meninas, porque essa era a sua forma de se convencer de
que eu não teria aceitado ficar tão próxima a ela se soubesse.
Foi como se ela me jogasse um balde de água fria.
Travei. Por completo.
Pois é, minha mãe era (e é) homofóbica. Eu já sabia disso, claro que
sabia. Ela não gostava de assistir selinhos gays nas novelas, reclamava
quando havia um casal do mesmo gênero segurando as mãos na rua e fazia
piadinhas sobre qualquer coisa similar a isso. Entretanto, eu nunca imaginei
que chegaria a esse ponto. Eu nunca... esperei aquela reação. Minha mãe
chorou quando soube que Andressa gostava de garotas e eu não conseguia
imaginar o que faria caso soubesse que o mesmo se passava comigo.
— Tadinha da Diana...
Eu tenho que admitir que senti raiva de tia Diana naquele momento. Por
que ela foi contar aquilo para a minha mãe? Era particular de Andy, não
era?
Descobri no futuro que Andressa saiu do armário rapidamente depois
que falou comigo. Se eu fui a primeira fora de sua família a saber, minha
mãe foi mais ou menos a última. Para ela, aquilo não tinha relevância. Para
mim, era tudo que importava.
Eu nunca quis decepcionar a minha mãe. Eu nunca quis que ela
chorasse por minha causa. Eu nunca quis a chatear, ou a perder, e era isso
que parecia claro para mim naquele instante. Eu a perderia se aceitasse a
verdade. Eu a perderia se continuasse com aquele plano kamikaze. Era
aceitar meus sentimentos ou a deixar feliz. Eu não poderia ter as duas
coisas.
— Tia Diana... reclamou de algo?
— Não, você sabe como Diana é. Pra ela tá tudo bem essas coisas —
havia deboche na sua fala. Havia amargura. — Mas Andressa vai sofrer
muito, Camila. Aqui na Terra, e... Deus me perdoe, no inferno também. Isso
tá errado, ela tá desviada. Ela... que decepção. Espero que essa fase rebelde
passe logo. Espero que ela abra os olhos e volte ao normal.
Foi a minha vez de segurar o choro. Eu me senti abocanhada, ofendida.
Por Andressa, e por mim. No entanto, eu não disse nada.
Guardo muito rancor da minha mãe, por ter cuspido em mim sua grande
aula de homofobia; mas também guardo rancor de mim, por não tê-la
defendido. Eu sei que se os papéis fossem invertidos, Andy jamais deixaria
que alguém falasse de mim daquela maneira. Porém, todas as minhas
expectativas foram trucidadas naquela tarde, e tudo que eu fiz foi assentir,
retornando ao quarto e me trancando outra vez lá dentro.
Meu celular apitou. Henrique havia respondido.

Henrique 13:30h: Se é o que vc quer...


Henique 13:32h: Eu fiz alguma coisa?

Então eu não consegui mais. Eu caí no choro. Eu tive tudo roubado.


Toda a minha coragem, toda a minha certeza, todos os mínimos minutos de
euforia e de tranquilidade. Minha mãe choraria se soubesse as coisas que eu
pensava, se soubesse o que eu quase fiz, se me conhecesse. Minha mãe
sofreria ao descobrir quem eu era.
“Você consegue enfrentar bem mais coisas do que imagina”.
Não aquilo, Andy. Desculpe, mas àquilo eu não conseguiria sobreviver.
CAPÍTULO VINTE E UM.
MUNDO DE CHICLETE.
Desculpe pelo capítulo anterior, é um pouco complicado para eu me
lembrar disso. Doeu bastante escrevê-lo, assim como me dói bastante falar
sobre a minha mãe, até hoje. É terrível dar de cara com os fatos. É terrível
entender que a pessoa que você mais ama no mundo tem condições para te
amar de volta. E, quando você foi ensinada a viver para os seus pais, não é
apenas terrível, é dilacerante.
Depois de todo aquele processo, eu voltei a sentir medo e vergonha do
que eu sentia, e não é justo ter que passar por isso. Ter que se assumir, se
odiar, pedir licença para ser quem você é. Algumas pessoas passam por essa
situação, eu passei, e aquilo não me fez mais forte, mais capaz; não
construiu caráter ou qualquer coisa do tipo, foi apenas cruel. Isso me causou
um trauma absurdo e me fez recuar e viver nas sombras, por um bom
tempo. Eu queria ter me afogado naquele mar, para não ter que passar por
aquilo. Porém, eu passei, e tive que fingir que nada havia sido dito ou
quebrado quando Andressa e tia Diana chegaram, uns trinta minutos depois.
Eu não estava na sala quando elas pararam o carro, e não vi onde minha
mãe havia enfiado sua cara de choro. No entanto, pelo restante do dia, tive
que assisti-la evitar Andressa (discretamente).
Foi uma merda. Sua atitude me acovardou completamente e, depois de
quase beijar a irmã do meu melhor amigo, eu passei o dia a evitando.
Fomos à praia outra vez. Dessa vez, nós quatro, e eu me deitei em cima
da canga, encarando o céu azul, sem vontade alguma de me levantar. Nunca
mais.
Minha mãe ficou lendo um livro ao meu lado, enquanto Andressa
brincou com a sua dentro d'água. Em algum ponto, elas até tentaram me
levar para lá de novo, contudo, eu recusei. Lembro que minha atitude fez
Andy buscar, coitada, alguma explicação para o meu súbito tratamento de
silêncio, mas que eu apenas virei o rosto e me deitei outra vez.
O dia correu rápido depois que eu fingi dormir na areia da praia, para
que assim ninguém me perturbasse. Foi uma ideia idiota, porque eu fiquei
tão queimada que não consegui nem tomar banho direito.
Não respondi Henrique, não retribuí as encaradas confusas de Andressa.
Tudo que fiz foi colocar uma roupa fresca e viver no automático, até que o
dia chegasse ao fim.
Pesadelo, que porra de pesadelo foi tudo aquilo.
Minha mãe, pelo menos, não foi grosseira com Andy. Ela nunca foi do
tipo que ataca de frente, só da que fala por trás, e eu acho que ela evitava
fazer aquilo com Andressa porque gostava muito da sua mãe. Diana sempre
esteve ao lado da minha, e Regina tratou aquele causo como se fosse um
velório. Ela não sentia raiva, apenas pena, pela situação. Como se Andy
tivesse morrido e ela evitasse tocar no assunto para não trazer de volta o
luto. Eu, sinceramente, não sabia o que era pior.
— Então, camarão — foi como a falecida começou, quando fomos
largadas sozinhas na sala. Passei um dia inteiro evitando ouvi-la, encará-la
ou simplesmente respirar perto dela, mas, quando ela falou aquilo, eu
suspirei.
Camarão. Era porque eu estava tão vermelha que era preocupante. Não
cheguei a ter insolação, mas foi quase. Esse é o preço que se paga ao tentar
fugir dos seus problemas.
Fitei-a e parecia que haviam se passado anos desde que entramos
naquele mar.
Depois que voltamos da praia, jantamos. Logo após, elas resolveram
assistir a um filme. Sentamos as quatro no sofá. Eu em uma ponta,
Andressa em outra, e ficamos assim por longas e infinitas horas, até que o
filme acabasse e tia Diana e minha mãe resolvessem ir dormir.
Minha mãe se virou para mim antes de sumir pelo corredor, soltando um
“não vá dormir tarde, hein, Camila”, que eu sabia que era menos uma
instrução pelo bem do meu sono e mais uma indireta para que eu saísse de
perto de Andressa. Bom, se ela esperava que eu fosse a obedecer, estava
enganada. Eu assenti, mas me mantive sentada. Andressa também.
— Você tá com sono? — continuou, depois de um bom tempo em
silêncio.
Lembra que eu falei que eu sempre tinha a necessidade de preencher o
silêncio? Não senti vontade naquele momento. Eu não sentia vontade de
nada, só de me deitar naquele sofá e ser sugada pela espuma.
Neguei com a cabeça.
— Quer... assistir a alguma coisa?
Voltei meu olhar em sua direção. Eu estava com as pernas encolhidas e
a expressão vazia. Sei que ela interpretou minha apatia e meu retrocesso
apenas como uma resposta ao que acontecia com os meus pais. Sei que ela
queria me animar, e eu me sentia tão... incapaz de retribuir.
Como ser sincera em uma situação com aquela? Como falar: então,
lembra quando eu te dei a maior moral do mundo na praia? É meio que
perigoso, então esquece! Minha mãe é homofóbica, eu acho que terminei
com o meu namorado faz menos de vinte e quatro horas e preciso deixar de
querer te beijar. Então, por favor, para de me olhar desse jeito. Para de me
fazer querer destruir todos os restos que eu ainda tenho. Para de ter tanto
efeito sobre mim, caralho!
— Não sei. Acho que devo ir pra cama... — Notei que aquilo a
decepcionou, mas ela assentiu, compreensiva. Ela sempre era
compreensiva, e aquilo me fez querer chorar outra vez.
Não é como se fosse um interruptor. Não é como se eu pudesse
simplesmente decidir que não sentiria mais atração por Andressa e pronto,
acabou. Mesmo que aquele sentimento ferisse minha mãe, era parte de
mim. Era algo que eu tentei, tentaria, mas que nunca seria capaz de abafar.
— Tudo bem. — Ela me deu permissão para sair, e eu simplesmente
não consegui.
Fiquei sentada e quieta na ponta do sofá.
Sabe quando você é criança e brinca de “o chão é lava”? Eu sentia que
tudo era lava, menos aquele canto. Então, foi ali que eu fiquei. Apesar de
ser contraditório, apesar de tudo, era sempre perto dela que eu me sentia
segura.
Andressa me estudou por um longo tempo até que dissesse:
— Sabe, eu nunca terminei Stranger Things — confessou,
aleatoriamente e eu apreciei profundamente aquele gesto.
Ela incessantemente tentava me trazer de volta quando eu ia muito
fundo no meu poço de amargura, e sempre conseguia.
Sorri fraco, incapaz de ser grosseira com ela. Pelo menos isso eu fiz.
— Nem eu.
— O quê? — se surpreendeu. — Sério?
Dei de ombros.
— Sério. — Ela arriscou:
— Quer acabar... agora?
Bom, eu não queria dormir, isso era um fato. Sabia que ia rolar na cama,
e rolar doía, porque eu estava totalmente queimada de sol. Também não
queria pensar a respeito de nada, porque pensar também era algo que doía.
E era uma droga refletir sobre como se eu não tivesse ido parar na cozinha
naquele instante, tudo seria diferente. Eu ainda estaria decidida a me dar
uma chance. A dar uma chance àquela garota. Um detalhe e tudo teria sido
bom. Mas não foi, e eu tive que me contentar em assistir a dois episódios
tão distante dela quanto o Brasil está da porcaria da Austrália.
Eu queria que ela estivesse mais perto, queria voltar para o antes, no
entanto, não era algo que eu poderia externar mais. Não era algo que eu
poderia sentir, por isso eu não fiz nenhum movimento que pudesse sugerir
que eu queria que ela me tocasse por quase duas horas inteiras. Então, o
segundo episódio acabou e eu senti minha barriga roncar.
Virei para perguntar:
— Quer sorvete?
Ela havia comprado um pote enorme com tia Diana, quando foram ao
mercado à tarde. Era para comermos depois do jantar, mas acabamos
esquecendo. Eu achei que aquele era um bom momento para trazê-lo de
volta. Para meu azar, contudo, Andy havia esmaecido, e não me respondeu.
Quando começamos a série, ela estava animada, mas eu a assisti
murchar aos poucos. Ela recebeu uma mensagem, nos primeiros minutos do
segundo episódio, uma mensagem que a fez se fechar.
Eu conheço agora os sinais e sua forma de reagir, só que aquela era a
primeira vez que aquilo acontecia perto de mim, e eu ainda não sabia o que
fazer, ou como a ajudar a controlar antes que escalasse.
— Andy? — insisti, finalmente conseguindo sua atenção. Ela piscou
algumas vezes, levemente aérea.
— Oi?
— Você quer sorvete? — repeti, e notei que ela tentou sorrir, sem
sucesso.
Aquilo era novidade. Eu nunca vi Andressa ser incapaz de sorrir antes.
Era tipo, algo que ela fazia o tempo inteiro!
— Claro — respondeu, enfim, e eu enfrentei, com a testa franzida, o
chão feito de lava para ir até a cozinha.
O que havia com ela?
Arrumei um espaço para me preocupar com aquela postura deslocada e
súbita, abrindo o congelador e a encarando no fundo.
Ela cruzou as pernas e ficou olhando para um ponto fixo da televisão. O
relógio marcava duas e trinta da madrugada, e ela inspirava e expirava com
avidez. Eu me esforcei para achar duas colheres e retornar para perto. Acho
que foi uma boa escolha. Quando retornei, eu vi. Ela tentou esconder,
enroscando uma na outra, mas suas mãos tremiam, e parte de seus braços
também. Ajoelhei-me na sua frente, apoiando o pote de sorvete do meu lado
e tocando, de leve, seu joelho.
— Andy? — Ela voltou seu olhar para mim.
— Hm?
— O que houve?
— Nada.
— Andressa. Você está nervosa, né?
Eu conhecia alguns dos sintomas. Brenda tinha ansiedade, e teve uma
crise comigo uma vez, dentro de um ônibus cheio. Estávamos voltando do
shopping (foi uma das poucas vezes que minha mãe me deixou voltar
sozinha), e o calor, combinado com aquela quantidade absurda de pessoas
habitando o mesmo espaço a deixou mal. Fomos parar no hospital. Brenda
dizia que não conseguia respirar e nós tivemos que descer e pegar um taxi
até um pronto-socorro. Eu estava tão nervosa quanto ela. Não conhecia
aquilo e achei que ela estava morrendo. Mas a médica mediu sua saturação
e estava tudo normal, era “apenas ansiedade”.
Apenas.
Use essa palavra perto de Brenda e receba um tapa. Não era apenas
ansiedade, era tudo que ela trazia junto. Ansiedade costumava ser muito
banalizada e diminuída. Felizmente, as coisas estavam mudando.
— Sim — conseguiu confessar, depois que eu incitei.
Sua respiração estava desregrada, e ela fazia seu máximo para disfarçar.
Como se aquilo fosse ridículo e ela se envergonhasse por estar vivenciando
na minha frente.
Uma curiosidade: você sabia que existem pessoas que têm mais medo
de perder sua autonomia do que de morrer? Em algum ponto da história,
desistimos de viver em comunidade. Nós nos isolamos, abrimos mão de nos
ajudar e de pedir ajuda. Mas a verdade é que somos dependentes de todos
que estão ao nosso redor. Sabe aquele discurso de que nascemos sozinhos e
morremos sozinhos? Isso é baboseira. Sempre há alguém ao nosso redor,
nos fornecendo, nos ajudando, nos trazendo de volta. Precisamos de
pessoas. Eu precisei de Andressa metade daqueles meses, por exemplo. Não
havia nada de errado no fato de ela também precisar de mim, de vez em
quando.
— Às vezes, quando eu fico nervosa, eu começo a tremer… Mila, eu…
Eu me apressei em segurar seus dedos.
— Tá tudo bem. É assim mesmo. Já vai passar — garanti, apalpando
sua mão com delicadeza. — Me diz: por que você está nervosa?
Ela inspirou profundamente, demorando um tempo para dizer:
— Porque o Enem é semana que vem.
Meu Deus. Eu havia esquecido completamente daquele detalhe!
Andressa estudou o ano inteiro para aquela prova e era minimamente
desumano que algumas horas em cima de uma cadeira fossem tão decisivas.
Particularmente, eu nunca concordei com esse sistema. Tudo que ele fazia
era deixar as pessoas daquele jeito.
— Só que eu tava bem, sabe? — continuou. — O dia estava ótimo, até
que me mandaram uma lista de exercícios. E eu devia estar resolvendo ela,
porque todos os candidatos da porra do mundo estão resolvendo, mas eu
estou aqui! — exclamou, depois se arrependeu, me encarando preocupada.
— Eu não quis dizer que você tá me atrapalhando.
Até mesmo em uma situação com aquelas, Andressa se preocupava com
a possibilidade de eu imaginar aquilo. Ela se preocupava comigo. Acariciei
o nó de seus dedos, me ajeitando sobre os meus pés.
— Andy, fica tranquila. — Sorri. — Eu sei.
Ela tentou sorrir de volta, e apesar de tremer feito uma britadeira, ela
conseguiu.
— O que mais está te preocupando? — insisti. Ela continuou:
— Esses tremores. Eu tipo, entendo a parada. Sei que eu não vou
morrer, porque eu não morri das outras vezes, mas a sensação é tão ruim. E
parece que não vai passar nunca…
— Olha pra mim — pedi, e ela obedeceu. Seus olhos cravaram nos
meus e havia tanta fragilidade em suas pupilas que eu quis simplesmente a
abraçar e nunca mais soltar.
Eu sempre me surpreendia quando enxergava vulnerabilidade em
Andressa. Na minha cabeça, eu havia construído um altar para ela, e ela
ocupava o topo. Imaculada, sem problemas, sem medos. Aquela ilusão, no
entanto, não era somente minha culpa. Era isso que ela tentava me mostrar.
Foram poucas vezes que Andy me permitiu cuidar dela. Ela não se deixava
parecer “atingível”. Odiava super-heróis, mas tentava se comportar como
um. Certa vez, eu argumentei exatamente isso, e havia muita verdade,
profissionalismo e aprendizado no meu argumento, porém ela o descartou
com um movimento de cabeça, dizendo: “eu me comporto assim porque sei
que você gosta desses caras”.
Se você quer encontrar um defeito para ela, anote esse: Andressa não
cedia, não desistia, mesmo quando não restava mais nada para encontrar no
fim do pacote. Ela tratava os problemas dos outros como verdadeiros e os
seus como bobagens. Ela não se cuidava, nem deixava que cuidassem dela.
Ah, e ela flertava comigo, em todas as oportunidades.
— Vai passar. Te prometo que vai. Como posso ajudar a ir embora mais
rápido?
Eu não sabia o que fazer naqueles casos. Sabia reconhecê-los, o que era
algo, mas não sabia como reagir. Achei melhor pedir orientação do que
ficar a assistindo sofrer.
Ela suspirou, respirando profundamente antes de dizer:
— Eu não sei. Fale comigo sobre… Capitão América.
— Capitão América?
— É. Aquele que te dei. Você ama aquele filme bobo, não ama? — Sua
voz estava trêmula.
— Desculpa. Bobo? — me ofendi. — Andressa, esse filme gerou
discussões!
Ela sorriu de canto.
— Ótimo. Me conte sobre elas.
— Certo. Você tá ouvindo, né? Preste muita atenção, porque é bem
sério.
Nenhuma de nós tinha a menor ideia do que estava fazendo com aquela
distração forçada, no entanto, parecia estar funcionando. Ela teve que
respirar para dizer: “estou ouvindo”, e sua respiração pareceu um pouco
mais suave.
— Certo, vamos lá. Esse filme “bobo” explora toda a ideia de
responsabilização pelos seus atos. Todo esse lance de liberdade, segurança,
controle do governo e como isso respinga na independência e na liberdade.
Além disso, fala muito sobre vingança, perdão. Cara, tipo...
Eu me perdi e tive que parar para pensar. Verdade era que eu não
entendia com profundidade grande parte desses conceitos.
O que não me impediu de tentar defender a minha franquia favorita e
distrair Andressa, obviamente.
Minha falta de aprofundamento, no entanto, não passou despercebida
por ela, a fazendo sorrir com mais intensidade. Eu meio que permiti aquilo,
dadas as circunstâncias. Só não consegui me concentrar mais nos meus
argumentos. Droga de sorriso bonito.
— É mais que um filme de super-herói, Andressa — resumi. — Respire
fundo. — Ela obedeceu, então eu continuei: — Não é bobo. Ele é sobre a
mídia, sobre diferentes perspectivas, sobre governo...
— Certo, entendi — retrucou, com as mãos grudadas às minhas. — É
um grande manifesto.
Assenti.
— Gigantesco. Mudou vidas!
— A minha, com certeza ele mudou.
Até hoje não sei se ela pensou o mesmo que eu quando disse aquilo,
mas posso dizer que eu pensei. Aquele filme com certeza mudou a minha
vida. E não foi porque ele separou os Vingadores, ou “levantou discussões”.
Foi porque ele me trouxe Andressa.
— Então não é bobo — insisti, acusando-a logo em seguida: — E eu
achei que você tivesse gostado. Você disse que gostou quando assistimos!
— É. Eu meio que menti. — Eu me ofendi outra vez.
Sim, foi naquele momento que descobri a verdade mais obscura de
Andressa: ela odiava a Marvel.
— Eu não acredito que você mentiu pra mim! Por quê?
— Ah, Camila, você realmente se importa com isso? Foi uma mentira
louvável, pelo bem da nossa... Como que você chamou mesmo? — Riu
fraco antes de lembrar: — Quase amizade sazonal.
Senti meu rosto ruborizar. Deus, ela decorava (e satirizava) cada
detalhe.
— Ah, cala a boca.
Andy riu, estacionando sua descontração de súbito e inspirando
profundamente. Ela me encarou por longos segundos antes de soltar todo o
ar de seus pulmões.
Inspirou e expirou algumas dúzias de vezes, progredindo
gradativamente, e eu assisti enquanto ela tentava se acalmar.
Só tive coragem de separar nossos dedos quando os dela se tornaram
estáticos outra vez.
— Eu vou pegar um copo de água pra você, tá bom? — Assentiu e eu
caminhei novamente em direção à cozinha.
Demorei a achar os copos, mantendo-a na mira por todo aquele tempo.
Ela ficou quieta onde estava e bebeu a água devagar quando eu a dei.
Sentei-me de novo ao seu lado, esperando, até que voltasse seus olhos em
minha direção.
— Tá melhor? — perguntei, me oferecendo para pegar o copo vazio de
suas mãos.
Ela assentiu, e aquilo me gerou um alívio tremendo. Acho que quase
equivalente ao que ela sentia. Eu nunca havia tido uma crise como aquelas,
mas imaginava que não deveria ser agradável. Brenda chorava bastante
quando acabava, mas Andressa apenas... me fitou.
— Eu acho que isso é ansiedade, Andy — arrisquei, virando-me para
me sentar de frente a ela. Ela deu de ombros.
— Talvez sim.
— Quando começou?
— Os tremores? Faz uns meses. Desde que eu iniciei no cursinho, na
verdade. Mas nunca foi tão intenso. Essa semana eu meio que tive umas três
dessas. E porra, é ruim demais.
— Você teve três essa semana? — me surpreendi. — Meu Deus, Andy.
Por que você não me falou antes?
— Porque você já tem muita coisa na sua cabeça, Camila.
Eu odiava quando ela fazia isso. Quando me poupava, se punindo. Eu
queria que ela compartilhasse aquelas coisas comigo, o que era meio que o
equivalente a querer que chovesse dinheiro. Eu não a dava abertura
nenhuma. Estava afundada em um lamaçal de autopiedade e preocupações,
e não deixava ninguém chegar perto. Especialmente ela.
— Mas você contou pros seus pais, pelo menos?
— Não. E não conta também, nem pro Renan. Por favor — pediu. Na
verdade, ela implorou. — É só até essa prova idiota passar. Semana que
vem eu estarei nova em folha.
Balancei a cabeça.
— Não vou contar se você não quiser, mas, Andy...
— Por favor — repetiu, e eu não tive escolha. Eu não contei. Para
ninguém.
Olhando em retrocesso, acho que isso teria a ajudado, mas como eu
poderia passar por cima de um pedido daqueles?
Inspirei profundamente, apoiando o copo vazio na minha coxa, o braço
no encosto e perguntando:
— É só o Enem que está te preocupando?
— Eu acho que sim. Eu também... — pensou antes de confessar: — Eu
tô com um pouco de medo de acontecer de novo. Essa coisa idiota. Durante
a prova.
— Não vai — garanti, mesmo sabendo que não era o suficiente. Eu não
era vidente, nem poderia decidir algo como aquilo. — E se acontecer. O que
não vai — me aproximei, dobrando as pernas para cima do encosto e
dizendo: — Você vai respirar fundo e refletir sobre que lado você está.
Capitão América ou Homem de Ferro. — Andressa sorriu, esmagando os
olhos, e o meu peito, com aquele simples gesto. — Reflita bem a respeito,
porque isso é muito relevante. Depois que tudo tiver dado certo, eu quero
saber a sua escolha.
Ela balançou a cabeça, desviando o olhar sem deixar de sorrir, e eu
estudei seu perfil por mais tempo do que eu gostaria. Por mais tempo do
que eu poderia.
Minha mãe estava dormindo a apenas alguns metros, eu havia ignorado
meu (ex?) namorado o dia inteiro, meus pais estavam brigando e Andressa
havia acabado de controlar o que eu acho que foi uma crise branda de
ansiedade. Eram muitos fatores contra. Eram muitos sinais, e ela sempre
ignorava todos.
— Mila? — Quando voltou seu olhar para mim, eu senti tudo de novo.
A necessidade, o desejo.
O jeito como ela disse “Mila” me atingiu. Como um relâmpago,
espalhando eletricidade por cada pedacinho do meu corpo. Eu tentava me
blindar, mas não conseguia. Eu era alumínio de cima abaixo.
— Oi?
Foi aí que eu notei que estava muito perto dela, com meus joelhos quase
tocando sua coxa e minhas costas curvadas em sua direção. Não fiz nada
para mudar aquele cenário, contudo. Eu estava petrificada pelos seus olhos.
— Já te disseram antes que o seu queixo é bonito? — tentou outra vez.
Foi adorável e eu não tive nenhuma reação além de rir.
Andy virou sem pudor a ampulheta para o lado contrário, mudando
completamente o rumo daquela noite. Levando-nos de volta ao passado.
Àquilo.
— Deus. Para com isso!
— Mas ele é muito bonito mesmo, Camila. — Dobrou sua perna para
cima do estofado, posicionando-se de frente para mim enquanto continuava:
— Essa entradinha…
Então apoiou um de seus dedos na maldita entrada que eu tinha no
queixo, e eu me tornei rocha outra vez.
Abri a boca para retrucar, mas não consegui. Não quando ela deixou que
a mão inocente que tocou meu queixo despencasse sobre a minha perna. Eu
estava com um short minúsculo, o que significava que ela derrubou sua mão
na minha coxa.
Guardou seu sorriso, olhando bem no fundo dos meus olhos, e eu
simplesmente perdi toda a minha capacidade cognitiva.
— Ai — reclamei, desconsertada. — Eu tô ardendo, Andressa! —
Pateticamente, aquele foi a minha desculpa. Pateticamente, eu tentei ser
engraçada, em um momento como aqueles. Ela não tirou os olhos de mim
para responder:
— Uhum. — Não havia compreensão naquela parte do diálogo. Ela
estava muito concentrada para aquilo.
Andy tirou sua mão das minhas coxas, mas só porque ela tinha outro
destino para ela. Ela a apoiou no meu rosto.
Foi a minha vez de hiperventilar.
Andressa, pelo amor de Deus, o sorvete vai derreter...
Ela ainda estava receosa, acho até que um pouco nervosa, então não fez
nada de primeira. Tudo que fez foi deixar que seus dedos escorregassem até
o meu pescoço, mantendo apenas o dedão em minha bochecha e a
acariciando delicadamente. Todos os pelos do meu corpo se arrepiaram.
Ali eu já havia me esquecido de tudo. Mãe. Ex-namorado. Pecados.
Inferno. Ali, o mundo era feito de chiclete e eu poderia mastigar quais eu
quisesse, sem consequências. Ali, o fato de eu beijar Andressa não mudaria
em nada, não me tornaria menos pessoa, não me transfiguraria em uma
besta a ser abatida.
Ali, com os seus dedos na minha pele, valeria a pena ser jogada na
fogueira, caso chegássemos a isso. Valeria a pena ter pedido um tempo para
Henrique, ter me queimado inteira de sol e ter enfrentado meu medo de mar.
Ela me admirou por um tempo, e eu a admirei de volta. Ela sorriu, e eu
a imitei, mas então seus dedos caminharam até a minha nuca, ela se
aproximou mais e perdemos por completo a sintonia.
Eu senti o calor de sua respiração e prendi a minha. Eu senti seu cheiro
e o grudei em mim. Eu olhei para a sua boca, para a promessa que ela
trazia, e me lembrei de Gabriel.
O problema era que todas aquelas fantasias só viviam ali, naquele
momento. O problema era que o mundo real era uma droga, e haveria
represália se eu fosse muito longe. Haveria sofrimento. Mais sofrimento
ainda.
Mesmo que todos os meus neurônios estivessem de acordo naquele
instante, e quiséssemos beijar Andressa mais do que queríamos fazer
sinapses, eu ainda fazia parte do mundo real.
Como eu conseguiria conviver comigo mesma depois de comprovar que
eu realmente gostava daquilo? Como eu conseguiria sobreviver se minha
mãe descobrisse? Ela ia ficar brava, chorar, descontar em todos, minar
ainda mais sua relação com o meu pai e meu irmão teria qual reação? Ele se
jogaria da janela?
Eu não poderia ser a responsável por mais uma pancada na minha
família. Eu não queria fazer minha mãe sofrer ainda mais. Eu acreditava
que se eu evitasse, se eu não me entregasse aos meus desejos
“pecaminosos”, eu seria nobre. Eu salvaria o dia. Eu seria como a porra do
Capitão América!
Eu queria muito poder viver naquele mundo de chiclete. Queria poder
me entregar para Andressa. Queria que ela me colocasse dentro de sua boca
e me mordesse, até que o gosto acabasse. Queria que ela roçasse com
aqueles dedos em cada parte do meu corpo. Eu queria aquela garota, e eu
quase consegui tê-la. Quase.
Andy se debruçou na minha direção. Foi para valer daquela vez. Sem
gaivotas, sem interrupções, sem dúvidas. A única responsável por acabar
com tudo fui eu.
Seus lábios chegaram próximos dos meus. Centímetros. Milímetros. O
que tiver abaixo disso. Então eu desviei. Eu virei o rosto, e ela abaixou o
seu.
Senti sua mão pesar sobre a minha nuca, senti toda a minha pele arder, e
certamente, não era mais por causa do sol. Eu sentia culpa, pesar, medo e
uma vontade absurda de retroceder.
— Andy... — sussurrei e ela balançou a cabeça, negando não sei o quê.
Talvez, toda aquela merda de situação. — Me desculpa — me desesperei,
tentei remediar alguma coisa, mas ela voltou a me encarar, e não havia
irritação em seus olhos, apenas... melancolia.
Sua mão ainda estava presa a mim, então ela inspirou profundamente,
debruçando-se uma última vez para me dar um beijo na bochecha. Eu o
recebi com os olhos fechados. Ela sussurrou:
— Para de pedir desculpas.
Então recolheu sua mão, postura e todo o resto, sentando-se direito no
sofá e se afastando de mim.
Seu beijo ficou carimbado na minha pele por muito tempo. Depois dele,
ficamos em silêncio, deixando que o momento nos embalsamasse. Não
vimos mais nenhum episódio naquela noite, nem tomamos o sorvete, que
quase virou água. Fomos para as nossas camas e fingimos dormir. No dia
seguinte, retornamos ao mundo real, às nossas vidas, abandonando tudo
aquilo para trás. Toda a fantasia. Todos os quases.
Então pronto, conseguimos. É aqui que acaba o final de semana das
garotas. Com tudo ainda mais confuso e quebrado do que quando começou.
CAPÍTULO VINTE E DOIS.
EM BUSCA DO CASTELO
(MAS SEM A PRINCESA).
Duas semanas depois, eu estava cheia de gel no cabelo e com uma
maquiagem escandalosa, tocando a campainha na casa de Renan segurando
uma gravata azul.
Aquele infeliz havia perdido a sua (como alguém perde uma gravata?) e
seu pai não tinha nenhuma azul para substituir. Por algum motivo, ir de azul
era muito importante para ele. A única cor proibida era vermelho, porque
era a cor dos formandos, o que o deixava com, sei lá, todo o restante do
círculo cromático disponível! Ele podia ir de roxo, rosa, amarelo, verde (!),
mas ele queria a porra do azul, e meu pai tinha uma sobrando, então,
separamos para ele, entramos no carro e ele me deixou no seu apartamento.
Eu subi para entregar a gravata, sabendo, bem no fundo, que aquilo era
arriscado, mas confiando o suficiente nas minhas preces para enfrentar
aquela situação.
Péssima ideia.
Ele abriu a porta para mim depois que eu toquei a campainha,
esbaforido.
— Camila, você é literalmente a melhor amiga da história. — Pegou a
gravata da minha mão e me deu um abraço engessado, para não amassar o
paletó que já vestia.
Cheirava bem e estava com os cabelos penteados para trás. Eu tive que
apreciar aquele garoto bonito por alguns instantes. Um protótipo de homem,
vestido daquele jeito. Como minha mãe diria: um pedaço de mau caminho!
Não sabia se alguém o percorria; afinal, não sabia se ele e Brenda ainda
estavam conversando. Minha amiga e eu tínhamos uma coisa em comum:
escondíamos bem onde estava nosso coração.
Segunda-feira pós-viagem, Brenda me encurralou no banheiro e me
obrigou a contar em detalhes o que havia acontecido em 24 horas com a
“garota que baba por você” e eu simplesmente não contei nada. Falei que
passamos um dia agradável na praia e que assistimos a Stranger Things,
porque era basicamente disso que eu queria me lembrar daquele final de
semana. Porque era disso que eu podia me lembrar.
— Nossa... — Depois que eu menti, Brenda suspirou. — Eu esperava
mais atitude da Andressa, sinceramente.
Então voltamos para as nossas salas, o intervalo chegou e nunca mais
tocamos no assunto. Ela fez o favor de parar de falar de Andressa e eu me
senti coagida a fazer o mesmo com Renan.
— Já te disse que você é incrível hoje? Inclusive, você tá linda! — O
que deveria ser meu marido perfeito me elogiou, e eu senti um rubor miúdo
em meu rosto.
— Obrigada. Você também não está nada mal. Mas pra que esse
desespero todo? — Cruzei os braços. — Até parece que é você que vai se
formar.
— Pois é. Fala isso pra minha mãe! Ela quase me matou por causa da
gravata. Não quer entrar?
— Ah, não, valeu. Meu pai tá me esperando lá embaixo e...
— Mila?
Sua voz me alcançou como um tiro no escuro.
Eu sabia que eu não deveria ter ido. Por mais que fazer isso fosse
apenas adiar o inevitável, eu ainda estava disposta a fazê-lo. Adiar por dias,
horas, minutos, segundos, que fosse. Eu estava disposta a não encontrar
com Andressa, até que fosse estritamente necessário. Mas esse é o preço
que se paga por quase beijar a irmã do seu melhor amigo. É basicamente
impossível a evitar por muito tempo.
— Oi.
Não havia a menor possibilidade de aquilo ser coincidência. De ela ter
resolvido fazer o longo percurso do seu quarto até a sala com aquele vestido
deslumbrante exatamente nos poucos segundos em que eu estive parada na
porta. Era culpa minha, eu toquei a campainha em vez de bater. Devia ter
sido mais silenciosa na minha chegada. Talvez menos presente. Devia ter
jogado a gravata no capacho da porta e saído correndo, ou simplesmente
deixado Renan sem aquela droga de ornamento azul. Mas eu acho que, no
fundo, eu meio que esperava que ela abrisse a porta para mim. Eu meio que
queria vê-la.
— Oi — tive que responder. Primeiro, porque eu tinha educação e,
segundo, porque ninguém poderia saber o que havia acontecido naquela
casa de praia. Para isso, eu precisaria conviver com Andressa normalmente.
Teria que usar todos os meus dons para a dramaturgia com mais força do
que nunca. Especialmente quando ela estava... daquele jeito.
Andy já estava pronta para sair e eu juro que fiquei sem ar.
Seu vestido era vermelho (como deveria ser o de todas as formandas),
mas em um tom tão escuro que, dependendo da luz, parecia vinho. Ele era
justo, e marcava toda a sua silhueta, delineando sua cintura e deixando uma
de suas pernas à amostra, graças à fenda. Andy sempre teve pouco busto e
aquele decote em V valorizava aquilo como nenhum outro. Eu fiquei um
tempo parada a olhando, refletindo sobre como poderia existir uma criatura
tão linda nesse mundo. Refletindo sobre como uma criatura como aquela
quis me beijar?
— Já que você está aqui — disse, aparentemente, sem nenhuma
pretensão. — Pode me ajudar com uma coisa? É rapidinho.
Troquei olhares com Renan. Ele parecia confuso com seu pedido. Bom,
Renan, imagina eu!
— Hm. Claro?
Para ela, eu nunca conseguia falar não.
Acabei entrando, receosa, e a porta foi fechada atrás de mim. Renan
correu para o seu quarto, para ajeitar a gravata, e tio Batista me deu boa
noite quando eu passei por ele, seguindo a figura enfeitada de Andressa até
o seu quarto.
Apesar de não haver nada de esquisito ou anormal naquela situação, eu
estava profundamente deslocada. Eu me sentia uma intrusa no ninho. Tinha
a ver com o fato de que eu havia me envolvido mais do que devia com um
dos habitantes, claro. Tinha a ver com muitas coisas além.
Quando chegamos ao seu quarto, toquei na maçaneta, por puro instinto,
mas ela me impediu:
— Mila? A porta... — começou, então sorriu de canto. — Não podemos
fechar. Regras novas desde que eles souberam das minhas... preferências.
Ah. Uau.
Os pais de Andressa realmente haviam abraçado a causa. Verdadeiros
aliados! E o que eu senti naquele momento foi a boa e velha inveja. Inveja
porque ela podia caminhar livremente, enquanto eu estava para sempre
enclausurada. Um pássaro na gaiola. Sem resenhas, sem festinhas, sem
aliados.
— Ah — exclamei, soltando a maçaneta e cruzando meus braços. —
Isso é legal, eu acho.
— É. — Sorriu outra vez. — Acho que é.
Deixei a porta aberta e ela caminhou até a cômoda escura. Aquela
fatídica cômoda, com fotos e memórias pousadas em cima. Encarar seu
quarto me trouxe lembranças não muito favoráveis para a minha causa. Isso
me fez lembrar do sonho que eu tive com ela, e de tudo que havia
acontecido depois.
Quando eu conseguiria me livrar daquilo? Daquela sensação de perda?
— Nossa, Camila, você está... — Ela pensou melhor no que ia dizer, sei
que pensou, e que bom por isso. Aparentemente, o beijo recusado a havia
feito recuar e aquilo me alegrou e me entristeceu nas mesmas proporções.
Travou por um tempo, até que resolveu resumir: — Uau.
Aquilo era mentira. Eu não estava “uau”. Ainda vestia calças jeans,
enquanto meu rosto estava plastificado de maquiagem. Parecia uma boneca
no corpo de outra. Mas eu não ia discutir aquela merda com ela,
obviamente. Apenas aceitei.
— Obrigada. Você também.
Da minha parte, no entanto, não havia mentira alguma. Seu penteado
era um rabo de cavalo baixo, com apenas duas mechas cacheadas caindo em
seu rosto. Estonteante, era assim que estava. Extraordinária. Fascinante.
Impossível de parar de olhar...
— Você pode... se sentar, se quiser.
Na cama dela, ela queria que eu me sentasse na cama dela. A mesma
que dividimos uma única vez e que foi o suficiente para que eu abrisse as
comportas do inferno na minha vida!
— Não, obrigada. — Inspirei profundamente. — Eu preciso ir. Meu pai
tá me esperando lá embaixo.
— Ah, claro! Desculpa, eu não quero te atrasar.
— Andressa. A formatura é sua.
Sorri ao ter que relembrar daquilo e aquele foi o primeiro momento em
que ela realmente sorriu em resposta, soltando uma grande quantidade de
ar. Estava mais nervosa do que eu poderia imaginar.
Sim, eu consegui aquele feito. Consegui deixar alguém como Andressa
insegura. Parabéns para mim!
Duas semanas haviam se passado desde que a gente se viu pessoalmente
uma última vez. Foi tempo suficiente para que o queimado do meu corpo
sumisse, mas não para que as coisas parecessem distantes.
Novembro foi agitado. Andressa esteve ocupada com o Enem e, logo
depois, com a sua formatura. Estávamos prontas (eu, pela metade), para
essa segunda ocasião. Com a primeira, eu sabia, ela havia ido bem.
Pensei muito se deveria mandar aquela mensagem no sábado, às oito da
manhã, algumas horas antes do “Exame Nacional do Ensino Médio”. Era
relativamente perigoso, mas eu não conseguiria simplesmente não o fazer.
Perguntei a Renan algumas vezes durante a semana o que ela estava
fazendo e ele disse que estudando, estudando, estudando. Fiz meu máximo
para soar casual ao incluí-la na conversa, por isso, não podia questionar
tanto quanto eu gostaria. Na verdade, o que eu queria mesmo era direcionar
aquelas perguntas a ela, mas não tive coragem, então, continuei o usando
(se ela o usava para saber notícias minhas, eu tinha o direito de fazer o
mesmo) até que chegasse o sábado e bom... não tivesse mais jeito. Sabia
que ela já tinha acordado, porque seu irmão sempre acordava cedo e ele me
disse que estavam tomando café da manhã juntos, então respirei fundo e
enviei:

Camila 08:03h: Bom dia!! Como você tá?


Camila 08:04h: Passando pra te desejar boa sorte
mais tarde. Você vai se sair bem, sei disso.
Camila 08:05h: Nada vai acontecer, estarei aqui
torcendo por você.

Eu tinha digitado “beijos”, mas apaguei. Aquela palavra era meio que
um gatilho quando vinha atrelada a ela. Meu coração bateu acelerado até
que ela respondesse.

Andy 08:07h: obg! de vdd.


Andy 08:10h: será q a gente pode conversar
depois q essa prova passar?

Camila 08:20h: Claro.

Não conversamos. Renan me contou que ela estava confiante com o


resultado da prova e eu me contentei com aquela notícia, evitando aquela
“conversa” sem tanto peso na consciência. Bom, no fim, não foi só culpa
minha, eu estive meio ocupada esses dias. Meus pais também quiseram
conversar. E se sentaram comigo e com meu irmão na quarta-feira.
Foi a primeira vez que eles resolveram tratar tudo como adultos e serem
honestos comigo e com Gabriel. Também foi quando eles anunciaram que
tentariam mais uma vez. Surpreendentemente, nem eu nem meu irmão nos
alegramos com aquela notícia.
— Nós sabemos que estávamos fazendo errado e nós sentimos muito
pelo que fizemos vocês passarem nesses últimos meses — disse meu pai, e
eu me surpreendi. Era papel da minha mãe recitar os discursos, mas ela se
manteve calada o tempo inteiro. — Só que nós nos amamos e não queremos
que as coisas acabem desse jeito. A mãe de vocês e eu estamos juntos há
dezoito anos. Não vamos deixar que as coisas acabem tão facilmente.
Facilmente?
Porra, eles estavam discutindo fazia meses!
Simplesmente, estavam em negação, ou então, tinham esperanças de
que o amor fosse a fórmula secreta para casamentos duradouros. Spoiler:
não é. O amor é importante, claro, mas também a compreensão mútua. O
ceder. O escutar. Eles não se ouviam, então gritavam. Eles não cediam,
então brigavam para ocupar o mesmo espaço. O que era fisicamente
impossível.
Encarei meu irmão, e ele cruzou os braços. Não disse nada, não teve
reação. Gabriel tinha doze anos de idade na época, mas parecia já ter
atingido a maioridade. Naquela madrugada, no entanto, ele me cutucou e
pediu:
— Posso juntar minha cama na sua?
Então dormimos próximos, quase abraçados, e eu peguei no sono
sentindo meu peito apertado. Mandei uma mensagem para Brenda contando
tudo assim que acordei e ela me entregou uma caixa de bombom no
intervalo, com uma mensagem colada na parte debaixo:
“Esse é aquele momento do filme em que a mocinha enfrenta umas
merdas grandes para depois ir morar em um castelo. Respira fundo,
mocinha, coisas boas chegarão”.
E esse era meu mantra desde então. Grandes merdas precedem castelos.
Momentos nebulosos como aqueles são estratégias para tornar a narrativa
mais interessante. Por exemplo, toda a minha situação com a Andressa.
Seria muito fácil se eu simplesmente tivesse a beijado naquela noite, mas
será que seria mais interessante?
(Sim. Mas vamos fingir que não, para que eu não me sinta ainda pior).
— É. Tem razão. — Depois que eu a lembrei de que estávamos a
caminho da sua formatura, Andressa abaixou o olhar por alguns instantes,
dizendo: — Você vai com o Henri, né?
Pois é, esqueci (propositalmente) de te contar essa parte. Eu iria para a
formatura de Andressa porque Henrique havia me convidado. Afinal, ele ia
se formar também e nós éramos namorados.
Não, eu não tive coragem de ir em frente com nada do que comecei
naquela casa de praia. Não fui consistente e nós não demos um tempo.
Conversamos na segunda, logo que voltei de viagem, ele estava triste e eu
não queria magoá-lo. Eu fui uma idiota covarde. Pedi um tempo a ele sem
nenhum motivo aparente, por mensagem, e me senti péssima por isso.
Muito piores, contudo, eram os motivos que me fizeram voltar atrás.
Henrique me era útil. É horrível dizer isso, mas ele era perfeito para tudo
que eu precisava. Ele me dava carinho quando eu estava carente, ele me
tratava como uma princesa quando eu me sentia um lixo, ele fazia os olhos
da minha mãe brilharem tanto que ofuscavam a verdade. Ele era minha
máscara, e eu continuei a usando, de maneira egoísta e cruel quando os
meus poucos segundos de coragem diluíram.
— Sim — assenti, fazendo pouco caso. — Tinha espaço na mesa dele,
aí ele me chamou.
Andressa assentiu duas vezes com a cabeça, sorrindo fraco antes de
dizer:
— Legal.
Então ficou em silêncio. Um silêncio cheio de coisas entaladas. Um
silêncio amargo e escorregadio. Eu odiava quando ela fazia aquilo; jogava
uma palavra qualquer e se recolhia, me abandonando em um limbo de
pensamentos intrusivos.
Andressa nunca falou do meu relacionamento com Henrique com
amargura. Não sei como se sentia a respeito. Eu era muito insegura para
imaginar que pudesse haver ciúmes e sabia que raiva passava longe. Minha
teoria é que ela sempre entendeu o que se passava e simplesmente esperou
até que acabássemos. No entanto, apesar de ser um assunto escorregadio
para mim, não era Henrique que pesava o ambiente naquele dia. Éramos
nós duas, e eu odiava o que havíamos nos tornado.
— Você queria ajuda no quê? — Pigarreei, próxima da porta, ansiosa
para ir embora, mas sem vontade nenhuma de fazer aquilo, ao mesmo
tempo. Ela suspirou.
— Em nada — confessou, sem pensar duas vezes. — Eu só queria te
trazer até aqui porque eu estou te devendo um pedido de desculpas. Pelo
que aconteceu na casa de praia. — Prendi minha respiração.
Pelos quase beijos, ela quis dizer, mas teve a delicadeza de não usar
aquelas palavras. Evitávamos aquele vocabulário quando estávamos
sozinhas em um quarto (de porta aberta!).
— Eu não queria que as coisas ficassem esquisitas entre a gente, mas
sinto que ultrapassei todas as linhas. Eu fui uma imbecil e fiz merda. Com
você e com o Henri. Me desculpa mesmo.
A forma como ela tomou toda a culpa para si me deixou indigesta. Não
foi ela, fomos nós. Éramos adolescentes idiotas e fizemos besteira. Eu a dei
todas as condições possíveis. Não a afastei, até o último instante. Mas como
dizer isso sem que ela soubesse de toda a verdade? Sem entregar o que
realmente havia acontecido? Se ela soubesse, eu tenho certeza que não teria
me deixado ir. Ela teria tentado me ajudar, com a minha mãe e com a minha
autodescoberta. E posso ser sincera? Ela teria conseguido. Ela teria me
poupado muita coisa. Mas eu não queria me descobrir mais. Eu não queria
pensar sobre sexualidade, eu queria viver em paz, chegar logo no castelo, e
Andressa me separaria dele. Eu havia testado sua resiliência, bastava dar
munição que ela atirava. Só que eu não podia arriscar ser atingida outra vez.
Eu precisava seguir em frente. Precisava tirar ela, e minha possível atração
por garotas, da minha vida. Era o certo a se fazer. Para todo mundo. Ainda
mais naquele momento, que meus pais queriam tentar de novo.
— Tá tudo bem — foi o que eu respondi. Foi só o que eu respondi, sem
convicção nenhuma nas minhas palavras.
Não estava tudo bem. Entortamos naquela noite, ultrapassamos (nós
duas), todas as linhas, e as coisas se tornaram, sim, esquisitas entre nós.
Não tinha como voltar atrás naquilo, desculpas não eram poções mágicas.
Não quando eu ainda tinha que me segurar para não olhar para a sua boca
enquanto ela falava, mesmo que eu insistisse em ter um namorado.
Eu nunca quis ser amiga de Andressa, eu sempre quis que ela tirasse a
minha roupa. Não aceitava isso naquela idade, mas aceito hoje. Sua
amizade não era o suficiente para mim, acho que era por isso que eu sempre
evitei chamá-la desse jeito. Não queria ser sua amiga e, como não podíamos
ir além, precisávamos nos afastar.
— Ok. — Ela aceitou o meu “tá tudo bem” frouxo e sorriu. Um sorriso
melancólico, que não alcançou seus olhos, nem a mim. — Acho que te vejo
daqui a pouco então. Você tem com quem ir?
— Sim. Meu pai vai me levar e eu volto com os pais do Henrique.
— Ok. Qualquer coisa, estamos aqui.
— Tá bom. Obrigada.
Eu queria dizer muitas coisas além. Eu queria me sentar ao seu lado e
ouvir sobre como havia sido a sua prova, se ela teve mais crises, se ela se
sentia mais forte. Eu queria que ela me contasse sobre a natação e sobre as
vezes que ganhou aquelas medalhas penduradas em um preguinho perto do
seu armário. Eu queria ficar ali, perto dela, sentindo o cheiro de seu
perfume e inalando tudo relacionado à sua existência, mas uma coisa
levaria à outra e eu não tinha coragem. E eu não podia. Então eu inspirei
profundamente, perguntando:
— Estou liberada? — Ela riu.
— Está.
Encarei-a uma última vez. Era um pouco dramático, mas eu sabia que
quando saísse por aquela porta, não poderia olhar para trás. Deixaria tudo
ali, naquele quarto, e seguiria minha vida. Pelo menos, tentaria seguir. No
próximo ano, seria a minha vez. Eu teria que decidir meu futuro, enquanto
ela estaria longe, construindo o dela.
Esbarrei com Andy algumas vezes durante a sua festa formatura, e a
assisti se divertir a uma distância segura. Fiz isso, mas fui firme e decidida.
Acho que ela se orgulharia disso, se soubesse.
Esconder tudo de novo na gaveta foi uma das coisas mais difíceis que
eu já fiz na vida. Bloqueei por completo aquele sentimento, joguei no lixo
todo o meu progresso. Foi horrível.
Andressa nunca soube o quão custoso foi para eu virar as costas para ela
naquela noite. O quão trabalhoso foi sufocar tudo o que eu sentia por
garotas e dissimular para todo mundo, quando eu já tinha uma boa noção de
que aquele sentimento era real.
Ela nunca soube daquelas coisas, não por um bom tempo. Afinal, depois
daquele dia, eu ficaria um ano inteiro sem vê-la.
— Boa formatura, Andy — disse, antes de deixar o seu quarto, e ela
respondeu:
— Obrigada.
PARTE II: FACULDADE.
CAPÍTULO UM. SÓ PARA TE
SITUAR.
Se tem uma coisa que sempre me assustou, foi o tempo.
Eu não tive muitos hobbies na minha adolescência além de assistir
filmes e séries. Minha personalidade foi moldada pelas dezenas de mãos
que me apalpavam, e eu permiti. Nunca fui certeira nos meus gostos, ou
admiti certas coisas em voz alta. Eu nunca me dei ao trabalho de me
entender ou, minimamente, me aceitar. Foi difícil, portanto, quando chegou
a minha vez de escolher. Escolher quem eu queria ser, com quem eu queria
estar, que faculdade fazer, qual seria o meu futuro. Quando o tempo passou,
a escola acabou e eu tive que escolher as cenas dos meus próximos
capítulos, notei que tinha um medo crônico de tomar decisões.
Até a faculdade, existe certa disciplina e esquematização no transcorrer
do tempo, então ele parece assustador, mas não tanto. Crianças frequentam
escolas (você não precisa decidir isso, decidem por você). Depois,
adolescentes vão para a faculdade (isso é meio que obrigatório em casas
como a minha), então, novamente, não havia decisão a respeito. A grande
decisão estava somente no curso e, para mim, isso já foi enorme. Eu não me
sentia preparada para a vida quase-jovem-adulta, só que isso não importa
muito. O tempo passa, e você tem que passar com ele. Não há respiro, só
vai!
Meus pais, felizmente, não me pressionaram tanto com a escolha do
curso — estavam um pouco ocupados se separando na época —, porém, eu
entendia que havia certa expectativa na filha mais velha, “dedicada” e
“boazinha”.
Eu não tinha muitos hobbies, você sabe, mas eu gostava de algumas
coisas. Gostava de cinema, por exemplo. No entanto, esse não era um curso
que dava dinheiro se você não tivesse familiares na área (meu pai disse), e
eu gosto de dinheiro (ele completou), então talvez (só sugeriu, não impôs
nada), eu devesse escolher algo mais rentável. Pensei em medicina, porque
todo mundo pensa em medicina em algum momento da sua vida, e ele não
teceu comentários a respeito, apenas Brenda, que olhou para a minha cara e
disse: para de ser doida, Camila, medicina não tem nada a ver com você.
Acho que ela me conhecia melhor do que eu mesma, e fico feliz pelo balde
de água fria, porque eu realmente seria muito infeliz sendo médica (nada
contra, tenho até amigos que são). Então, eu entrei em uma crise existencial
por metade do ano, uma que envolveu choro no ombro de Henrique, choro
no ombro de Renan, de Brenda e a leitura de um artigo de trinta páginas
sobre a filosofia do tempo.
O lance com o tempo é que ele é tudo e nada ao mesmo tempo.
Dimensional, universal, mas subjetivo. Afinal, existem três grandes que o
comandam, o presente, o passado e o futuro. Existem os relógios, os
cronômetros, os fuso-horários. Pessoas têm a mesma quantidade de horas
no dia, mas... será que têm mesmo? Existem privilégios que te permitem
viver mais horas que os outros, mesmo que seu relógio corra no mesmo
ritmo. Eu sempre tive grande parte desses privilégios, por exemplo, e tive
tempo para me preocupar com o tempo.
Aparentemente, não era para existir discussão a respeito disso. Todo
mundo tem um celular com horas programadas, calendários, planners
caríssimos. Acabou. É isso. Só que havia Einstein e a distorção no tecido do
espaço-tempo, então tudo se torna fluido, porque até mesmo o que parece
invariável, na verdade, é completamente subjetivo.
Vou tentar ser mais clara. Pensar nesse tipo de coisa, Brenda diria que é
pedir para enlouquecer, e eu não quero enlouquecer, nem deixar ninguém
louco, só que eu acho que existe muita verdade no fato de que a passagem
do tempo é direcionada, a vida esgotável, mas também, que o tempo nunca
passa igual.
Por exemplo: durante todas as vezes em que eu reassisti Capitão
América naquele ano, as horas passaram rápido demais. Eu também não
esbarrei com a grandeza que pode existir dentro de 60 segundos quando
estava com Brenda, tentando não queimar o bolo que fizemos para o
aniversário do meu irmão. Ou quando eu estava comendo coxinha às seis da
manhã no carro de Renan. No entanto, aquela conversa “rápida” que meus
pais tiveram com o advogado na sala do meu apartamento durou o
equivalente a meses.
Pois é, no fim (finja surpresa), eles se separaram! Meus esforços não
foram o suficiente e, depois de mais quatro meses “tentando mais uma vez”,
eles seguiram caminhos diferentes. Separaram-se bem antes dos papéis (o
que demorou para acontecer, a justiça é realmente inimiga do tempo) e as
minhas dúvidas a respeito do funcionamento de um divórcio foram sanadas
com rapidez. O apartamento que vivíamos estava no nome do meu pai, mas
ele jamais nos expulsaria dele. Foi ele quem saiu, e os três meses que
transcorreram esse dia foram tão grandes quanto três anos inteiros.
Assinaram o divórcio algumas semanas depois do meu aniversário, o
que foi um pouco insensível da parte deles, já que eu fiz dezoito anos e fui
considerada “legalmente capaz de tomar minhas próprias decisões”. O que
significava que eu poderia “escolher com qual pai ficar” ou simplesmente
“não ficar com nenhum”. Essa droga foi brutal. Você sabe, meu maior medo
sempre foi perder algum deles, e eu demorei o equivalente aos meus dezoito
anos inteiros para parar de chorar a respeito.
Caso você esteja curioso, eles entraram em um acordo de guarda-
compartilhada com Gabriel. Ele ficou com a minha mãe, e me pediu para
ficar com ele. Então, eu fiquei.
Depois que finalmente se separaram, Gabriel voltou a ir bem na escola e
a dar bom dia para os porteiros. Para mim, não foi tão simples assim. O
divórcio foi muito difícil antes, durante e depois. Meu ano foi tão longo que
eu me sentia uns trinta anos mais velha quando dezembro chegou.
Felizmente, Henrique esteve presente durante todo esse processo.
Nós namoramos por todo esse tempo. Ele ficou ao meu lado, me deu
apoio, me deu casa, quando a minha ficava muito inóspita e eu precisava de
um lugar seguro para sofrer. Ele me cedeu aquela droga de disfarce, me
entreteve, me distraiu. Foi por isso que o tempo passou mais devagar
quando eu estava paralisada no banco do carona do seu carro, escutando-o
me explicar porque aquilo era uma decisão madura da nossa parte. Porque
não funcionaríamos à distância. Porque ele estava terminando comigo.
Henrique não havia passado na faculdade de primeira. Ele tentava
medicina, seguindo a tradição da família (eu disse que tenho amigos que
são médicos), e fez um ano de cursinho antes de conseguir passar para uma
federal (seu sonho), em João Pessoa. Só para te lembrar: eu morava no Rio
de Janeiro, e havia entrado para uma faculdade daqui.
— Você não quer nem tentar, Henrique? É sério? — argumentei, depois
que ele afirmou que relacionamentos à distância nunca funcionavam e que
ele me amava, mas que ficaria anos em outra ponta do país e que não
poderia “me prender” por tanto tempo.
“Me prender”.
Ele usou exatamente essas palavras, o que me deixou irritada, porque eu
sabia que quem o prendia era eu. Ele estava projetando.
Henrique, desde que acabou nossa “Lua de Mel”, virou meu amigo
(com benefícios), e eu tenho certeza que ele sentia o mesmo. Ele
obviamente notou o esmaecer do nosso namoro, só era educado demais para
ser sincero. Preferia se iludir, e a mim, dando um final “maduro” para um
fruto que já havia maturado e caído podre há muito tempo.
Meu (aparentemente) ex-namorado suspirou, segurando minhas mãos.
— Eu acho que isso só vai nos quebrar e esgotar. Eu não quero que a
gente acabe quebrado. Eu não quero que as coisas acabem mal entre a
gente, Camila. Somos, acima de tudo, amigos, não somos? Acho que é
melhor assim.
E se ele achava, estava achado, né? Não tem como você obrigar alguém
a continuar namorando contigo.
Então terminamos. No dia primeiro de fevereiro. Um dia antes da sua
mudança para a Paraíba e um mês e alguns dias de distância da “recepção
de calouros” na minha nova faculdade. Tive tempo de sobra para chorar.
Senti falta de Henrique depois que ele foi embora, óbvio que senti, e
tive que me segurar para não mandar uma mensagem humilhante de “por
favor, vamos voltar!!!!”. Perdê-lo foi perder também a magia de se estar em
um relacionamento, de ter um cafuné no final do dia, de ter alguém para
suprir a carência. Eu me senti ainda mais sozinha e vulnerável. Afinal, ele
era minha armadura e eu estava represando.
Sei o que você quer saber e te conto daqui a pouco. Antes, me deixa te
situar. Um ano inteiro se passou desde aquela formatura e, nesse meio
tempo, eu havia terminado o colégio e me matriculado no curso de
psicologia. Passei na primeira tentativa, e estava tão ansiosa quanto poderia
para começar.
Existem controvérsias a respeito do que me levou a escolher esse curso,
mas hoje eu sei que foi o certo para mim. Minha escolha foi covarde. Fiz
alguns testes vocacionais e todos apontaram para essa carreira. Então, eu
fui. Aqueles testes tomaram a decisão por mim. Assim como Gabriel tinha
orquestrado como eu, uma pessoa “legalmente capaz de tomar minhas
decisões”, me comportaria depois do divórcio. Assim como Brenda tinha
tomado a decisão sobre a roupa que eu usaria no primeiro dia. Assim como
Henrique havia finalmente colocado um ponto final no nosso
relacionamento.
Minha vida era uma série de frouxidões, eu sou a pessoa mais covarde
que você vai conhecer, mas a faculdade melhorou um pouco disso em mim.
Eu tive que sair da minha bolha e enfrentar alguns fantasmas. Alguns deles,
cruelmente bonitos.
Então, foi isso. Depois de muito choro, eu decidi que queria ser
psicóloga.
“É uma profissão bonita”, minha mãe falou. Meu pai não teve opiniões
a respeito (o que era positivo). Meu irmão riu, perguntando se assim eu
conseguiria “me tratar” e Brenda e Renan disseram que combinava comigo.
Estávamos todos de acordo, o que era importante para mim. Além disso, eu
não precisaria enfrentar mais um ano de estudos e perguntas como “já
entrou na faculdade?” “qual você vai fazer?” “nossa, mas você não passou
ainda? Meu filho de dez anos já está terminando medicina em Harvard”.
Pois é, eu passei, porra. Agora, me deixem em paz!
Eu queria fugir das cobranças, o que era uma postura ingênua, porque se
existe uma coisa que nem mesmo Einstein seria capaz de negar a existência,
é da presença de fofoqueiros opinando sobre cada etapa da sua vida.
E foi assim que eu despenquei em psicologia.
Eu não pensei muito sobre como o meu prédio era perto do dela.
Quer falar um pouquinho sobre ela? Então vamos fundo.
Vai parecer insano, mas eu não via Andressa pessoalmente desde a sua
formatura no colégio. Tudo que eu sabia sobre ela era resultado de fofocas.
Fofocas que eu pesquisava (confesso), ou que provinham de Renan, uma
vez que minha mãe parou de falar sobre ela depois que... bom, você sabe.
Eu sabia que ela havia passado na faculdade. Estava cursando, já faziam
dois períodos, Comunicação Social. Um curso que eu não fazia a menor
ideia de como a estava tratando.
Meu ano foi turbulento. Teve divórcio, estudo e muito choro. A gente
não se viu, mas Andy me mandou exatamente três mensagens. Uma quando
meu pai saiu de casa, outra quando eu fiz aniversário e a última quando eles
assinaram o divórcio. Eu a mandei umas também, a parabenizando em seu
aniversário e quando ela passou na faculdade e foi… basicamente isso. Nós
nos respondemos e nos comunicamos como as desconhecidas que
costumávamos ser e ali estávamos nós. Um ano depois. Com muitas coisas
vencidas, mas nada finalizadas.
Tudo mudou quando meu curso começou.
Eu não participei da “recepção de calouros”. Sinceramente, não
percorreria metade da cidade para ser humilhada. Foi uma experiência que
eu perdi por puro preconceito e que me fez falta no primeiro dia de aula,
quando minha mãe me deixou na porta do campus e eu não fazia a menor
ideia do que fazer a seguir.
A faculdade é uma fábrica de construção de caráter, disso eu não tenho
dúvidas. O meu começou a ser construído assim que eu me perdi naquele
mar de pessoas que não estavam nem um pouco preocupadas comigo. Uma
novidade incômoda para uma leonina, mas que se tornaria positiva com o
tempo. O fato de ninguém se importar com o que eu fazia se tornaria
libertador. No começo, contudo, me assustou. A faculdade não era em nada
parecida com o colégio particular que eu estudei toda a minha vida. Em
nada mesmo.

Camila 09:02h: Já estou profundamente


arrependida de estar aqui. Eu não faço a menor
ideia de pra onde ir. Vou embora!!!!

Parei debaixo de uma árvore, segurando uma agenda como se ela fosse
um escudo e mandando uma mensagem desesperada para Brenda.
Minha melhor amiga não havia passado naquele ano, e teve que
enfrentar um ano de cursinho para tentar uma faculdade pública (estava fora
de cogitação sua mãe pagar uma particular). Por isso, estava estudando,
assim como Renan (que ainda não tinha certeza do que queria), já fazia
algumas semanas. Ela estava sendo responsável, enquanto eu surtava
debaixo de sol quente.

Brenda 09:07h: Vou resolver isso. Me manda sua


localização.

Obedeci, mesmo sem entender, e foi assim que Ana Clara retornou para
a minha vida. Sim, a garota que elogiou minhas sobrancelhas e “cuidou de
mim” na primeira e única resenha que eu frequentei na minha adolescência.
O mundo, às vezes, é muito pequeno, e ela calhou de ser minha veterana.
Dez minutos depois que eu mandei minha localização, ela veio ao meu
resgate.
— Camila! — Seu abraço caloroso continuava o mesmo. — Eu estou
tão feliz que esteja aqui! Estou tão feliz que tenha escolhido esse curso!
Brenda me disse que você tá perdida, mas fica tranquila, já, já você se
acostuma. Vem, vou te mostrar a sala.
Segurou minha mão e me guiou por um labirinto a céu aberto até um
prédio bege, cheio de janelas de madeira. A primeira coisa que notei era que
quase todos os edifícios daquele campus tinham uma arquitetura clássica,
dessas que se espera encontrar em museus, misturada com parafernálias
modernas, como canos de ar condicionado. Aquele era o caso do prédio de
psicologia. O adentramos, e meu destino final era uma grande e abafada
sala. Já havia quatro pessoas sentadas nela quando eu entrei, todas tão sem
graça e deslocadas quanto eu. Felizmente, eu tinha Ana. Ela tornou toda a
minha adaptação muito mais simples.
Minha primeira aula da faculdade inteira era de sociologia. Eu odiava a
grade do primeiro semestre, mas os resumos de Ana me salvaram quando
eu estava em desespero, ou simplesmente... ocupada demais para estudar.
— Você não veio na recepção dos calouros, né, sua sem graça? —
brigou comigo com seu jeitinho doce, sentando-se na cadeira da minha
frente e sorrindo.
Ana Clara estava um pouco diferente da última vez que nos
encontramos. Seus cabelos estavam mais curtos e seu rosto mais ovalado.
Sua receptividade, no entanto, se mantinha intacta. Ela sempre me tratou
como se fôssemos melhores amigas e, talvez por isso, eu sempre me senti
profundamente à vontade ao seu lado.
— Mas pelo menos na calourada você vai, né?
— Não sei... — retruquei, ainda profundamente sem jeito. — Eu não
sou muito de festas.
Na verdade, minha mãe não era e, como você sabe, eu a obedecia.
— Ah, mas nessa você precisa ir. É tipo um rito de passagem! Você já
perdeu o trote! — argumentou, levando aquilo mais a sério do que
necessitava.
Acontece que aquilo era realmente importante para Ana. Ela fazia parte
da organização da calourada, da recepção de calouros e de tudo mais que
pudesse se enfiar. Atlética, monitoria. Se fosse possível, ela estaria
coordenando aquela faculdade. Ana tinha facilidade em interagir com
pessoas e talento em tudo que se propunha a fazer. As amigas de Brenda
eram muito parecidas com ela, eu era o único patinho feio.
— Vai ser na sexta. Começa às seis, só um pouco depois do seu último
tempo. Você tem anatomia, eu acho. Confere aí. — Conferi e era verdade.
Como ela decorou aquela merda? Eu nunca decorei minha grade. Até o
fim do semestre, tinha que olhar que aula eu teria no dia seguinte, para
pegar as folhas certas do fichário.
— Eu tô na organização desde cedo e você pode ficar comigo assim que
sua aula acabar. A gente tá se esforçando e vai ser muito boa mesmo, Cami!
Você pode ficar só um pouco, não precisa ir embora tarde! — Ela me olhou
com olhos de cachorrinho abandonado. — Vamos? Por favor, por favor.
De primeira, eu disse que ia pensar, só que era mentira. Eu sabia que
não iria. Porém, a semana foi passando e eu fui amolecendo.
Passei os dias me esforçando para me realocar naquele novo ambiente
(meu primeiro impacto foi quando eu descobri que eu não precisava pedir
para ir ao banheiro. Bastava levantar e sair!), começando a interagir e a
fazer amigos. Naquele primeiro semestre, minha turma se tornou um órgão
unificado e todos iam naquela calourada. Foi aquele consenso que me
pressionou. Eu me senti tentada, induzida, curiosa, então, na sexta-feira,
mandei uma mensagem pra Brenda, quando faltava uma hora para o meu
tempo acabar.
Já naquela primeira semana, minha rotina com a minha mãe começou a
ser inconveniente. Ela não me deixava pegar ônibus (ônibus eram
perigosos, tinham assaltos). Então, ela me levou e me buscou de carro todos
os dias — menos na sexta. Na sexta, eu perguntei a Brenda o que deveria
fazer.
Ela conhecia minha mãe, me conhecia, e sabia dos prós e contras da
minha presença naquela festa. Só que se ela me conhecia, eu a conhecia em
retorno e sabia qual seria sua resposta. Quando mandei aquela mensagem,
eu já estava cedendo; sua fala foi apenas a desculpa que eu precisava. Eu
necessitava que alguém tomasse a decisão por mim, e ela sempre estava
disposta a assumir esse papel.

Brenda 16:22h: Óbvio que você vai. Só sair antes


das oito, pegar um uber e falar pra sua mãe que
estava em aula!
Foi exatamente o que eu fiz. Foi meu primeiro experimento
universitário. Começamos então, de verdade, a segunda parte dessa história.
Se formos fazer uma analogia com todo o conceito subjetivo do tempo,
meu semestre passou voando, até que tudo deu errado, e ele simplesmente
estagnou. Ficou preso no lodo do espaço-tempo. Sucumbiu.
CAPÍTULO DOIS.
NAMORADA.
Meu pai saiu de casa muito tempo antes de assinar o divórcio. Lembro
bem das duas datas, ficaram marcadas no calendário, como aniversários e
feriados de fim de ano. Eu forcei uma piada quando notei aquilo. Disse a
Renan que quando chegasse dia dez de maio do ano seguinte, deveríamos
fazer uma festa para “o dia em que meu pai decidiu deixar seu próprio
apartamento”, com uma fotografia do casamento dos dois rasgada no topo
do bolo. Ele não riu. Eu, em contrapartida, dei uma gargalhada sinistra.
Depois, o abracei forte e chorei.
Pois é, o divórcio acabou sendo bastante traumático pelos motivos
óbvios, mas também porque minha mãe sempre teve o dom de dificultar as
coisas.
Tenho vontade de marcar outra data no calendário, só que não o faço
porque não tenho certeza de quando aconteceu. Não sei ao certo quando foi
que minha mãe decidiu que havíamos nos tornado crianças outra vez.
Depois que ficamos morando somente com ela, Regina se tornou mais
vigilante, controladora e desesperada do que costumava ser.
O fato de me levar e me buscar na faculdade era um exemplo de sua
necessidade de nos proteger. Era como se ela tentasse nos manter perto,
com medo de perder mais alguém. Eu entendia seus motivos, deve ser
traumático enfrentar um divórcio, depois de tanto tempo casada; e havia
questões financeiras envolvidas, as quais eu nunca precisei me meter. Só
que se ela estava traumatizada e cansada, eu também estava. E eu precisava
respirar. Foi basicamente por isso que eu adquiri uma necessidade
patológica de mentir para a minha mãe.
Eu treinei minha vida inteira, e me aperfeiçoei durante aquele ano
turbulento, na arte de dissimular. Foi um caminho natural me tornar uma
grande mentirosa depois de anos sendo a pessoa mais sonsa, covarde e
falaciosa da humanidade. Eu era boa naquilo. Perigosamente boa. E,
sinceramente, cheguei a um ponto em que parei de sentir remorso.
Depois do que aconteceu naquela casa de praia, eu tentei levar as coisas
com indiferença, mas, por mais que eu negasse, minha relação com minha
mãe nunca mais foi a mesma. Eu guardava uma mágoa gigantesca e sentia
que toda vez que mentia para ela, estava exercendo um direito. Era justiça,
mas um esporte solitário, uma vez que ela não sabia que estava sendo
atingida, muito menos entendia o motivo de tanta raiva. Para mim, no
entanto, era algo. Eu precisava de algo. De qualquer coisa. Eu estava
desesperada, e por isso precisava mentir. E, por isso, passei a mentir
demais.
Um exemplo das mentiras que contei foi com meu ex-namorado.
Durante o ano que passou, eu dissimulei constantemente para conseguir
transar com Henrique. Falava que estava com Renan, que estava no colégio,
no clube, no shopping, com meu pai. Falava que estava estudando, quando
estava pelada, me esforçando ao máximo para me esquecer de todas as
porcarias que aconteciam dentro e fora de mim.
Outro exemplo de mentira bem-sucedida foi a que eu contei para ir
naquela festa de calouros idiota. Eu mandei uma mensagem exatamente
como Brenda narrou. Menti, falando que minha aula ia durar até mais tarde
e que ela não precisava se preocupar, pois eu pegaria um Uber. Ela fez um
pequeno escândalo. Falou que era um absurdo que as aulas acabassem tão
tarde. Falou que eu tinha que reclamar, tomar cuidado com os motoristas de
aplicativo e mandar a minha localização assim que entrasse no carro.
Sinceramente, eu não lembro se mandei.
— Vem que eu quero te apresentar alguém.
No dia da festa, Ana foi me buscar na minha sala, temendo que se não o
fizesse, eu fosse sair correndo. Ao me encontrar, enlaçou seus braços nos
meus, me carregando por metade da faculdade.
Durante toda aquela primeira semana, Ana Clara fez seu máximo para
facilitar minha vida. Almoçou comigo, me ensinou como pegar as cópias
certas na xerox, me mostrou os melhores lugares para dormir, os melhores
livros que eu poderia pegar de cada disciplina e me emprestou grande parte
das suas anotações.
Ana sempre usava combinações de vestidos e sapatos coloridos. Era
gorda, branca, tinha os cílios enormes e conversava com todo mundo que
encontrava pela frente. Ela estava terminando a faculdade e me abandonaria
no fim daquele meu primeiro semestre. Eu tive seis meses com ela, no
entanto, e ela conseguiu fazer algumas mágicas antes que terminasse sua
graduação.
Depois de um tempo percorrendo a universidade em busca da calourada,
paramos ao lado de um aglomerado de pessoas. Estavam ao redor de uma
mesa, separando coisas e delegando funções. Não havia música ainda,
somente caixas de bebidas, por todo o gramado. A festa seria ao ar livre, em
um pedaço com pouco asfalto na lateral do campus. O dia amanheceu
nublado e uma das preocupações era que começasse a chover no meio da
festa. Como todo bom jovem, eles não tinham se preparado para aquela
situação.
Eu me sentia deslocada, nervosa e cronicamente assustada, mas Ana fez
tudo parecer cotidiano ao me apresentar a cada um.
Fui muito bem recebida, abracei pessoas as quais nunca mais veria na
vida e me sentei em uma cadeira de plástico ao lado de uma veterana de
biblioteconomia. Ela contava o dinheiro que havia dentro de uma caixinha.
A festa começaria em algumas horas, e eles estavam agitados. Depois de
me “enturmar”, Ana me deu sua mochila para que eu segurasse, pedindo:
— Fica aí um instante. Eu vou buscar ela. — Fez mistério e me
abandonou.
Eu não sabia quem ela queria me apresentar, e esperei por um bom
tempo para descobrir. Tanto que a garota que contava o dinheiro acabou de
contar, amarrou as notas com elásticos e carregou a caixa pelo gramado,
sumindo de vista.
Aos poucos, todos seguiram o mesmo caminho. Foram abandonando
aquela mesa em pares, e eu fiquei sozinha. Só não fui embora em
consideração a Ana. Ela queria me apresentar a alguém, o mínimo que eu
poderia fazer era esperar para ser apresentada. Além disso, eu estava com a
sua mochila.
Pensando a respeito, acho que aquilo foi uma estratégia. Ana Clara era
inteligente.
Apesar de eu me sentir inadequada, ansiosa (era minha primeira festa
universitária, eu tinha muitas expectativas) e levemente entediada, a noite
estava agradável. O fim da tarde trouxe brisa fresca, só pecando nas
estrelas. Não havia muito isso de céu estrelado na cidade grande, muito
menos quando o tempo estava fechado. Brenda me dizia que esse era um
dos motivos pelos quais gostava tanto de visitar os avôs. Os pais de sua mãe
moravam no interior de Minas Gerais, e lá realmente havia algo além de
escuro no céu.
Bom, os meus avós paternos eram de São Paulo capital e os meus
maternos haviam morrido antes de eu nascer. O que significava que eu só
veria estrelas mesmo, se fosse ao planetário.
Abandonada debaixo daquele céu sem graça, peguei meu celular. Não
tinha absolutamente nada para ver ali, mas eu fiquei o encarando para não
parecer tão sozinha. Respondi uma mensagem antiga de Renan, sobre um
vídeo que ele havia me mandado no Instagram, depois, fiquei descendo e
subindo meu WhatsApp pelo que pareceram horas, até que eu a ouvi.
— Mila?
Uma brisa com cheiro de perfume varreu o ambiente.
Levantei meus olhos e dei de cara com Andressa Batista, parada do
outro lado da mesa, com os braços cruzados.
Como explicar o que eu senti naquele instante?
Eu tomei um susto, isso com certeza. Sua voz era a última que eu
esperaria escutar. Sua materialização estava tão distante da minha realidade
que era como se ela tivesse se tornado um mito.
— Andy? — Minha sentença saiu incerta, mesmo que eu não tivesse
nenhuma dúvida de quem se tratava.
Nossos olhares se cruzaram e ficamos imóveis por um momento. Acho
que nenhuma das duas sabia muito bem o que fazer a seguir. Reagimos em
completa oposição.
Eu quis levantar, correr o diâmetro inteiro do planeta, depois, me ejetar
dele. Andressa, por sua vez, apenas sorriu. Um remexido de animação e
melancolia se enroscava em seus dentes pequenos. Ela era familiar, mas tão
difusa, que eu tive que processar sua existência por alguns segundos.
A escaneei e ela estava diferente. Tinha adicionado um segundo
piercing ao seu nariz, uma argolinha, agora na lateral. Seus cabelos
continuavam compridos, assim como os meus, mas nunca estiveram tão
armados. Suas sobrancelhas pareciam mais grossas, suas bochechas menos
proeminentes e seus braços estavam cheios de tatuagens.
Tatuagem era algo proibido no nosso colégio, e hoje eu sei que isso foi a
única coisa que a impediu de fazer aquela mulher em seu tríceps, as
borboletas em seu pulso e... todo o resto, antes.
Ok, acho que te passei a descrição errada. Eu estava exagerando um
pouco. Ela não tinha tido tanto tempo (e dinheiro) para se encher de
tatuagens, mas eu contei cinco naquela primeira vista, apenas em seus
braços.
Andressa sempre foi bonita, você sabe, mas caralho!, ela havia atingido
níveis inaceitáveis! Com vinte anos, ela era linda o suficiente para ser
considerado ofensivo para o resto da sociedade.
Nossa.
— Oi, Camila — disse, enfim, com um sorriso nervoso brincando em
seus lábios.
Havia muitas coisas novas para absorver em sua aparência. Coisas que
eu precisaria de um tempo para apreciar, mas algo que nunca mudou foi o
seu sorriso. Andressa ainda tinha aquele sorriso caloroso e doce que
espremia seus olhos e iluminava seu rosto.
Um ano inteiro havia se passado. Um ano desde a conversa estranha em
seu apartamento; e o que eu havia feito por todo ele? O de sempre. Meu
modus operandi você já conhece: eu finjo, minto e ignoro. Foi exatamente
isso que eu fiz, por todos aqueles infinitos dias. Eu fingi que não sentia
mais nada quando ela me mandou aquelas mensagens impessoais. Fingi que
não sonhei centenas de vezes com o que poderia ter acontecido caso aquela
maldita gaivota não tivesse nos interrompido. Fingi que, porque eu tinha um
namorado, era definitivamente heterossexual, e passei aquele ano inteiro
fingindo que acreditava naquilo. Mentindo. Mentindo para a minha mãe,
para o meu pai, meu irmão, meus amigos, Henrique, a moça que arrumava
minha casa, meus professores, minha avó e para qualquer um que
respirasse; incluindo eu mesma. No entanto, eu sabia que, para Andressa, eu
não conseguiria mentir.
— Você entrou para psicologia, certo? — Depois que eu fiquei uma
eternidade calada, ela quis saber, e eu assenti, sem conseguir articular uma
palavra sequer. — Que legal, Mila. Combina pra caralho com você. —
Tentei disfarçar um sorriso tímido. Ela continuou: — Você tá fazendo o que
aqui? Esperando pela calourada? — Tudo que fiz foi confirmar. Os papéis
pareciam invertidos. Pela primeira vez na história, eu estava muda. — Foi a
Ana que te chamou, né? Notei pela mochila discreta que você tá segurando.
Não sei se isso é uma coisa de atleta (não é meu lugar de fala) ou se é só
uma coisa de Andressa, mas ela nunca foi capaz de desistir de algo que
queria. Essa era uma característica interessante, louvável. Persistência,
determinação, as pessoas valorizam essas coisas, mas o que as pessoas não
veem é o quanto elas podem ser irritantes. Especialmente quando o
objetivo da vez é destruir a barreira de desconforto que havia entre nós.
Só para você entender de onde veio aquilo: a mochila de Ana Clara era
laranja. Esse fator, por si só, já corroborava com aquela fala, mas não era só
isso. Ana carregava o equivalente a uma tonelada de chaveiros coloridos e
fofinhos acoplados a cada zíper. Sua mochila era uma alegoria de Escola de
Samba!
Tentei me segurar, mas fui incapaz de disfarçar um sorrisinho. Minha
reação a deu munição para continuar.
— Só não consegue ser mais escandalosa do que a que você usava na
escola.
Ah, filha da mãe.
Às vezes eu me surpreendo com a facilidade com a qual ela conseguia
as coisas comigo. Eu sempre fui muito previsível ou ela que sabia me
decifrar bem? Prefiro acreditar na segunda opção. É menos patética.
— Para a sua informação, eu comprei uma nova.
Depois daquela afronta, eu tive que me defender. Defender minha
mochila, minha honra. Até porque aquilo era um exagero, minha mochila
da escola definitivamente não se comparava à de Ana Clara. Ela era rosa?
Sim. Porém um rosa escuro e muito profissional. Andressa arregalou
teatralmente os olhos.
— Ah, é? Eu preciso ver isso. Cadê?
Eu me contorci para puxar a minha mochila, sem notar que estava
fazendo exatamente o que ela queria.
Eu não refleti sobre o quão rapidamente cedi às provocações da única
pessoa no mundo que eu precisava evitar caso quisesse continuar no
armário. Eu mostrei a ela a porra da mochila. Estava escuro, e eu tenho
certeza que ela não conseguiu a enxergar bem, mas, definitivamente, não
era mais colorida. Não por completo. Minha mochila era preta, adulta, com
apenas detalhes em bolinhas cor de rosa.
Andy mergulhou seus olhos alguns mínimos segundos no objeto antes
de voltá-los a mim.
Fato era que ela não dava a mínima para a minha mochila. Nem eu.
Prendi a respiração quando ela voltou a me encarar.
Ah, pronto! Controle essa merda, Camila! Vocês só — quase — se
beijaram, um ano antes. Nem houve beijo. Não houve nada. Não há nada.
Apenas duas conhecidas de infância se reencontrando em uma nova etapa
de suas vidas!
— Você mudou, Camila Ferraz — pontuou, com mais intensidade do
que a situação pedia.
Eu sabia que ela não estava mais falando sobre a mochila idiota, então
desviei o olhar para conseguir retrucar:
— Você também.
Sorriu fraco.
— Não esperava te encontrar aqui. — Sua surpresa era recíproca.
Eu fiquei tão perturbada com as novidades daquela primeira semana que
havia me esquecido da principal delas: Andy vagava aqueles mesmos
caminhos que eu. Andy conhecia Ana, e eu repensei todas as minhas
decisões de vida ao notar que aquilo poderia voltar a se tornar corriqueiro.
Andressa esbarrando comigo em uma festa. Andressa cheia de tatuagens,
em qualquer lugar onde meus olhos poderiam enxergar...
— Nem eu — disse, com a voz mais rouca que o normal. — Você veio
pra organização? — perguntei, um pouco alarmada com aquela
possibilidade.
Aquilo seria um desastre. Sei que ela notou a mesma coisa.
— Ah, não! — foi rápida. — Não mesmo. — Riu. — Essas coisas não
são pra mim. Eu só vim dar um oi pra Ana e roubar umas bebidas.
— Ah, certo — disse, arriscando um sorriso, o qual eu tenho certeza que
saiu completamente desgovernado. Andy retribuiu, cruzando os braços e
questionando:
— Como você tá?
Tive que me concentrar bastante para conseguir mentir:
— Tô bem.
Ela assentiu, sorrindo fraco, e eu me remexi.
Vamos, Camila, diga alguma coisa. Ela está esperando. Não seja uma
idiota.
— Hm. Você tá... bem também?
— Uhum. Tudo tranquilo.
— Que bom.
A parti daí, não havia mais jeito.
Nós nos esforçamos pelo tempo que conseguimos, porém esgotamos os
nossos repertórios. Depois que o assunto escorreu e eu não fiz menção
nenhuma de ajudá-la a recuperá-lo, Andy guardou seu sorriso, respirou
fundo e pediu:
— Fala pra Ana que eu tive que ir?
— Embora? — me surpreendi, sentindo um aperto no peito.
Ela não ia roubar bebidas? Falar com ela? Ficar... um pouco?
— É. — Aparentemente, não mais.
Não tinha como eu ler sua mente e entender o que aquela mudança
repentina de planos significava, mas eu sabia o que significava para mim.
Eu não queria que ela fosse embora.
Sabe quando você espera um ano inteiro para sair aquela temporada da
sua série favorita e eles te entregam um episódio por semana? Foi mais ou
menos isso que eu senti. Nunca confessaria, mas, desde que coloquei um
pause nossa “quase amizade sazonal”, eu ansiei por aquele reencontro. Não
deveria, mas queria prolongá-lo. Só mais um pouquinho... e foi exatamente
por isso que eu respondi:
— Falo.
Permiti que ela fosse embora, novamente, o que a fez sorrir fraco.
— Valeu. Foi bom te ver, Mila.
— Foi bom te ver também.
Então ela deu as costas, caminhando pelo gramado e sumindo quase na
mesma direção em que Ana apareceu.
Minha veterana ressurgiu de mãos dadas com uma menina baixa, de
cabelos curtos, tingidos de vermelho, e uma blusa do Red Hot Chili
Peppers. Aproximou-se de mim com a testa franzida, voltando sua atenção
para o vulto que havia acabado se afastar.
— Aquela era Andressa? — foi a primeira coisa que me perguntou, e eu
tive que inspirar profundamente para responder:
— Era.
— Ela foi embora?
— Foi. — Fiz pouco caso, descruzando minhas pernas e a encarando.
— Pediu pra eu te avisar.
— Ué. Ela disse por quê?
— Não.
— Certo. — Manteve sua testa franzida por mais algum tempo, só
voltando para a realidade porque a garota ao seu lado pigarreou,
recordando-a de sua presença. — Ah! — exclamou, metamorfoseando por
completo a sua expressão e sorrindo mais que seus lábios permitiam. —
Valeu por esperar. Eu fui buscar essa pessoa linda pra você conhecer. —
Voltei meu olhar para a garota ao seu lado e ela sorriu timidamente. Tinha a
pele branca e usava uma calça estampada. — Essa é Jéssica. Minha
namorada.
O universo pareceu no mudo por alguns instantes.
Espera. Quê?!?!
Namorada?
Eu nunca havia conhecido uma “namorada” que namorava outra
“namorada” antes. E, por alguns instantes, não soube como reagir.
Sinceramente, dois golpes na minha “heterossexualidade” em um dia só
era um pouco de covardia.
Cumprimentei Jéssica com um sorriso tenso, me sentindo
profundamente desconfortável.
Sim, Brenda já havia me contado, muito tempo antes, que Ana era
bissexual, mas eu nunca havia refletido a respeito; muito menos imaginado
que ela me apresentaria sua namorada na minha primeira semana de
faculdade.
Como ela tinha... coragem?
As namoradas se sentaram lado a lado, mantendo-se intimamente
grudadas, e eu me remexi, inquieta. Segurando aquela mochila laranja, senti
meu estômago começar a doer. Eu não sabia colocar em palavras o que eu
senti naquele momento, mas hoje sei. Foi inveja.
— Gente eu... — Umedeci meu lábio. — Preciso ir...
Pareceram confusas com o meu anúncio, mas não protestaram. Foi
sorte, porque eu comecei a chorar antes mesmo que meu Uber chegasse.
Impressionante como a minha vida se tornou um filme. Assim que eu
entrei no banco de passageiro e dei boa noite ao motorista, algumas gotas
de chuva mancharam o vidro.
Choveu todo o caminho de volta.
CAPÍTULO TRÊS. ATÉ O
ZUCKERBERG ME ODEIA.
Eu nunca me senti tão vazia quanto no dia em que meus pais se
sentaram comigo e com Gabriel e anunciaram que meu pai ia “ficar um
tempo fora”.
O anúncio foi feito com cuidado, meu pai beijou nossas testas, prometeu
que seria temporário e saiu pela porta da frente. Tudo que levou foi um
sorriso nublado e duas malas de rodinhas. Ele deixou muita coisa para trás,
as quais nunca voltou para buscar. Depois daquele dia, ele nunca mais
retornou para o apartamento.
Essa situação aconteceu no ano anterior, mas eu ainda sentia um
cutucão no peito ao me lembrar.
Meu pai foi morar em um apartamento distante do nosso. Era maior,
tinha três quartos, e ele montou um para mim e outro para o Gabriel. Eu
nunca havia tido um quarto só para mim antes, e não me alegrei em
conquistar um naquelas circunstâncias.
Eu estava entulhada. Os dramas da minha adolescência eram pesados e
eu sentia que havia sido gradativamente achatada, por cada um deles.
Depois de um ano sendo esmagada, era uma latinha pisoteada e sem rótulo.
Quando meu pai saiu de casa, eu comecei a chorar muito. Muito
mesmo. Mais do que eu imaginei que alguém pudesse chorar. Fazia parte da
minha rotina e eu me tornei expert em disfarçar olhos inchados com gelo.
Brenda notava, Henrique notava e era tão constante que até mesmo Renan
me perguntou se eu estava precisando conversar. Eu estava, mas não queria.
Não podia. Porque não era apenas a separação, não era apenas o meu quarto
novo, não eram apenas as dúvidas sobre a faculdade ou a minha mãe,
controlando cada um dos meus passos, era o que eu escondia de todos. Era
a minha grande mentira. Ela me parecia igualmente pesada, ou até mais.
Para você ter noção, eu estava tão desesperada que conquistei um novo
medo: o medo de tomar anestesia.
Desde o começo do ano, passei a ter crises de gastrite. Eu passava muito
mal, faltava aula, vomitava e ficava dias sem querer comer. As coisas
escalaram tanto que minha mãe me levou ao médico e ele pediu uma
endoscopia. Aquilo foi desesperador para mim. O exame, muito mais que
uma possível doença. Eu estava com medo; não por causa do tubo enfiado
na minha garganta, mas porque eu já tinha ouvido relatos de que você
poderia falar mais do que devia graças à injeção. Saber que isso poderia
acontecer era o equivalente à morte para mim, uma vez que eu não poderia
me dar o luxo de ser sincera quando escondia o pior segredo da
humanidade!
Em uma das únicas vezes que me impus com dezessete anos, eu me
recusei a fazer a endoscopia, tendo uma briga feia com a minha mãe por
causa disso. Meu pai teve que interceder. Na época, ainda morávamos
juntos, e ele disse: “por favor, Regina, ela já é grandinha, pode decidir o que
é melhor pra ela”. Eu não tenho certeza se eu realmente poderia (veja bem,
eu não queria fazer um exame importante porque estava com medo de sair
do armário durante ele); no entanto, apreciei o gesto. Minha mãe, não. Ela
odiou a forma como ele falou, odiou a minha “infantilidade”, mas, no fim,
teve que ceder. Apesar de suspeitar que essa fosse a sua vontade, não tinha
como ela me amarrar em uma cadeira e me obrigar a fazer aquela porcaria
de exame (na verdade, até tinha, só que eu acho que isso é ilegal).
Portanto, eu nunca fiz a endoscopia. Não corri o risco de ser sincera e a
gastrite me deu uma trégua.
Eu não sabia na época, porém fica de ensinamento: existe a
possibilidade (incômoda) de realizar aquele exame sem a anestesia (ou seja,
sem correr o risco de admitir que eu já quis fazer coisas indecentes com a
irmã do meu melhor amigo). Mas eu ignorei essa possibilidade também.
Afinal, eu não precisava sofrer com nada daquilo. Eu tinha internet!, e eu
me diagnostiquei pelo Google. Acho que o que tenho é gastrite nervosa. Ela
volta às vezes, quando algo intenso acontece. Como encontrar Andressa nos
meus primeiros minutos em uma pré-festa universitária e ser apresentada à
“namorada” de Ana Clara um pouco depois.
Na manhã que se seguiu aqueles acontecimentos, eu acordei com
pontadas intensas no meu estômago.
— Camila? Tá tudo bem?
Minha mãe estava tomando café da manhã na cozinha quando eu entrei.
Era sábado, oito da manhã. Eu trajava meu pijama de nuvens e meus olhos
inchados. Ela comia alguns ovos mexidos, lendo as notícias no seu celular.
Meu irmão ainda estava dormindo enquanto eu mentia:
— Uhum. Só dormi mal.
Aprendi rápido que não poderia compartilhar com ela o fato de que meu
estômago queimava como se eu tivesse engolido ácido. Não se eu quisesse
me manter longe de uma endoscopia.
Infelizmente, minha mentira da noite anterior não havia servido para
nada. Fui embora muito antes das oito, chorando após ser nocauteada.
Graças a Deus era sábado e eu poderia passar o dia inteiro na cama, sem ter
que conviver e, consequentemente, mentir, para mais ninguém. Eu estava
sem energia para aquilo.
— Vou fazer um ovinho para você. — Minha mãe se voluntariou, mas
eu neguei. Só de pensar em comer, meu estômago iniciou um motim.
— Não tô com fome agora. — Parei próxima à dispensa. — Acho que
vou tomar só um... chá.
— Aconteceu alguma coisa, Camila? — questionou, desconfiada.
Afinal, eu não era a maior fã de chás.
Suspirei.
— Não, mãe. Só tô cansada. — Abri a porta da dispensa para não ter
que encará-a. — Foi uma semana longa e eu não consegui dormir nada.
— Bem-vinda à vida adulta, filha. — Bloqueou a tela de seu celular e se
colocou de pé. — Vai deitar, eu faço o chá para você — ordenou,
aproximando-se de mim.
— Não precisa...
— Precisa sim, Camila. O chá nem fica mais aí. Vai logo, você não sabe
fazer e vai se queimar.
Por algum motivo, aquilo me irritou. Profundamente. Murmurei:
— Eu consigo fazer a droga de um chá sozinha.
— Quê?
Minhas palavras saíram enroladas, e meu tom tão diminuto quanto a
minha ousadia. Minha mãe não ouviu, muito menos entendeu, minha
grandíssima indisciplina.
Eu bufei.
— Só falei tá bom. Obrigada, mãe.
Cedi, retornando ao quarto, completamente atordoada e... brava?
Gabriel estava apagado na cama ao lado da minha. Eu me deitei debaixo
das cobertas e fiquei um tempo assim, até que escutasse os passos próximos
e fechasse os olhos, fingindo já ter pegado no sono.
Regina abandonou a xícara na mesinha entre as camas, apoiando uma
mão carinhosa em meu ombro e sussurrando:
— Seu chá está pronto. Só espera esfriar um pouco. — Deixou o quarto
e eu apertei minhas pálpebras, como quem aperta uma toalha ensopada.
Sentia tantas coisas que é até difícil enumerar.
Além de todas as questões envolvendo a minha sexualidade eu também
engoli, por todo aquele tempo, as marcas de um fim de adolescência regado
por brigas. O divórcio foi o clímax de algo muito ruim que se estendeu por
muito tempo. Eu me sentia incapaz, injustiçada e culpada, em relação a tudo
e a todos.
Não se surpreenda: eu menti para você mais acima. Sei exatamente
porque a sugestão carinhosa da minha mãe me irritou tanto. Era porque eu
passei a odiar a forma como ela me tratava. Ela disse “vida adulta”, certo?
Mas que porra de adulta eu era quando eu não conseguia fazer nada por
conta própria? Nos meus sonhos de infância, quando eu tivesse dezoito
anos, as coisas seriam diferentes. Eu seria independente, livre. Só que não
havia nada de mágico em aniversários, e é minimamente insuportável como
a mudança está em nossas mãos e não em um número na identidade.
Um ano havia se passado e eu estava magoada. Sentia como se minha
casa não fosse mais meu lar, não sabia qual era o meu lugar no mundo ou
quem eu queria ser. Sei que isso é uma crise normal da idade, sei que todos
passam por isso, mas sei também que ter vivido com pais brigando gera
cicatrizes profundas. Entendo como aquela Camila (tão próxima de mim,
mas, também, tão distante) estava traumatizada e triste.
Ter encontrado Andressa na noite anterior havia tirado da dormência
muitas coisas. Tudo foi expelido. Uma erupção de sentimentos, que
culminavam em uma máxima: eu queria vê-la de novo, e eu sentia que não
podia. Eu sentia que eu não podia fazer nada. E que merda de adulta eu era
então? Quem eu era?
Tentei me desintoxicar de Andressa naquele ano como se ela fosse a
minha cocaína. Para você ter uma ideia, eu tive que mudar o meu shampoo.
Usávamos o mesmo e, toda vez que eu tomava banho, eu me lembrava dela,
e das minhas dúvidas, e dos meus medos. E eu queria chorar. E eu só sabia
chorar. E eu não aguentava mais isso!
Demorei um tempo até conseguir me arrastar em direção ao chá. Meu
estômago ainda estava revirado e eu fui bebendo de gole em gole, até que
só sobrasse as ervas no fundo e silêncio. Deitei e tentei dormir. Para a
minha própria surpresa, consegui. Cochilei por algumas horas e acordei
com meu celular tremendo debaixo do meu travesseiro.
Despertei com uma mensagem de Brenda brilhando na tela.

Brenda 11:25h: Amiga, será que a gente pode


desmarcar nosso shopping hoje à tarde? Preciso
ajudar um amigo. Ele tá mal em química.
Brenda 11:27h: Não fica brava comigo. Vamos
marcar pro próx sábado? O que acha?

Ainda estava sonolenta quando respondi, profundamente grata por ela


ter desmarcado o compromisso que eu havia me esquecido que existia.

Camila 11:34h: Sem problemas. Bons estudos.

Então joguei o celular para o lado e voltei a dormir. Estava tão aérea que
não parei para refletir sobre a parte do “amigo”, nem... nada além.
Fugi dos meus pensamentos por mais algumas horas, acordando com
um Gabriel irritado, arremessando um travesseiro na minha cabeça.
— Você morreu?
Lembro-me de quando ele costumava ter voz de criança. Não era mais o
caso. Ele estava crescendo e seu tom engrossando de uma maneira
engraçada. Ele desafinava com constância, e se sentia constrangido todas as
vezes. Seu “morreu” saiu esquisito e, se eu tivesse um pouco mais de
forças, teria caçoado dele por isso.
— A gente vai almoçar. Levanta.
Obedeci, lavando meu rosto e agradecendo o fato do meu estômago ter
voltado a gostar de mim. Consegui almoçar e não senti mais enjoo até o
final do dia, o que era um grande avanço.
Viu? Eu nunca precisei de endoscopia!
Naquele sábado, minha mãe ficou resolvendo coisas do trabalho e
Gabriel (como de costume) jogando no computador. Brenda, Renan e até
mesmo Ana estavam calados. Então, eu aproveitei para passar o dia inteiro
deitada na minha cama, assistindo séries duvidosas no meu celular.
Tudo que eu queria era que meu cérebro virasse mousse. Não queria
pensar em nada, e consegui esse grande feito, até que eu enjoasse da série
que estava acompanhando e resolvesse, ingenuamente, entrar no Instagram.
Pior ideia da minha vida.
“Se algo pode dar errado, vai dar errado” é o que diz a Lei de Murphy e
é o que sempre acontecia comigo. Como ousam dizer que não existe
comprovação para essa lei quando existe esse fato: a primeira foto que
apareceu no meu feed era de @dessa.batista.
Porra. Caralho. Deus, por quê?
Acho que até mesmo o Zuckerberg tinha adquirido problemas pessoais
comigo naquele ponto.
Prendi minha respiração.
Andy era “low profile”, não tinha o costume de aparecer nas redes
sociais. O que é sexy, eu sei, e que também tornava toda aquela postagem
surpreendente. Eu tive que parar para ver.
Era uma foto dela.
Estava sentada na borda de uma piscina. Seus pés estavam dentro
d’água, enquanto ela mantinha seu tronco inclinado para trás. Uma de suas
mãos protegia seu rosto do sol, sombreando seus olhos, enquanto a outra,
apoiava o peso de seu corpo.
A foto foi tirada no final do dia, dava para notar pela tonalidade dourada
que a lapidava. Mas quem se importa com a saturação quando havia uma
Andressa de biquíni passando pelo seu feed às cinco e vinte e sete de um
sábado?
Eu juro que meus lábios secaram.
Fiquei mais tempo do que devia estacionada naquele momento.
Andressa estava com os cabelos presos em um coque e seus cachos
caíam com desleixo, para todos os lados. Usava um biquíni totalmente
amarelo. A parte de cima era um top, a debaixo pequena o suficiente para
que eu conseguisse notar que ela tinha feito uma tatuagem na bacia
também. Dei zoom com cuidado, tentando enxergar o que era, sem sucesso.
Arrastei meu zoom para o lado, fazendo o mesmo com a tatuagem de seu
ombro, de seu antebraço, na pequena cicatriz que havia no seu joelho, na
costura de seu biquíni, nas alças, em seus dedos, em seus olhos, em seu
pescoço, mãos e, quando me dei conta, havia uma boca enorme tomando
conta da tela do meu celular.
Soltei todo o ar de uma vez, liberando o zoom com o peito batendo mais
rápido.
Se você me perguntar, eu sei descrever cada detalhe daquela foto. Eu
passei horas ali.
Sei que ela estava linda, que amarelo continuava sendo a cor perfeita
para contrastar com seus cabelos e que dava para enxergar seus olhos em
meia lua, por causa do sorriso, mesmo que ela os sombreasse. Sei que seu
canino esquerdo nunca havia sido desentortado e sei que o pior de tudo
estava na legenda.
Andressa nunca se dava o trabalho de colocar uma legenda em suas
fotos. E, das cinco fotos que ela tinha em seu feed (pouquíssimas recentes),
apenas duas tinham emojis.
No entanto, daquela vez, na sua foto de biquíni amarelo, postada às
nove e trinta de sexta, havia uma frase completa.

Não, minha cor favorita não é preto e eu também tenho uma


parcela escandalosa.

Franzi minha testa, relendo-a algumas vezes e tentando encontrar um


erro na minha decodificação linguística. Contudo, em todas elas, as palavras
continuaram as mesmas.
Meu estômago fez um barulho alto.
Ok. Vamos lá. Diga o que você acha dessa situação. Seria prepotência
minha imaginar que aquilo havia sido para mim?
Segue os fatos: aquela foto foi postada no dia que nos reencontramos.
Ela usava um biquíni amarelo, muito similar ao que usou naquele dia na
praia; usou a palavra “escandalosa” na sua sentença, a mesma que usou no
dia anterior para me referir à mochila de Ana. Além disso, falou da sua cor
favorita. Eu já havia errado uma vez. Eu havia dito que era preto!
Terminei de resumir aquelas evidências me sentindo uma idiota.
Pareciam robustas e frágeis para mim, ao mesmo tempo, pareciam
perigosas. Desnecessárias.
Processei por mais alguns instantes, com a figura de Andressa me
encarando de volta. Porra de mulher bonita. Eu me senti profundamente
insegura e foi a minha falta de confiança que bateu o martelo.
Ok. Era óbvio que aquilo não era para mim. Um encontro depois de um
ano e eu já estava ficando obcecada! Criando coisas. Bloqueei a tela às
pressas, sentindo meu coração trotar.
Preciso esquecer essa garota. Preciso deixar isso pra lá.
Eu odiava cada detalhe daquilo. Odiava minha falta de vocação para ser
adulta. Odiava o fato do meu mantra do esquecimento ser balela. Odiava
como eu estava profundamente feliz com a possibilidade daquela foto ser
para mim. Odiava ter amado, mais do que tudo que aconteceu no meu ano,
encontrá-la na véspera. Odiava que tudo tivesse dado errado. Odiava o
mundo!
Voltei para a minha série, me forçando a esquecer de tudo aquilo, mas
falhando miseravelmente.
Aquela raiva borbulhante voltou a tomar conta de mim.
Por que o fato de eu me sentir bem seria motivo de tanto desgosto para
Regina? Uma pergunta que me acompanhou por todo aquele tempo. Por
que tinha que ser assim? Por que eu não podia simplesmente... fazer as
coisas que eu queria?
Eu só queria poder viver a minha vida da forma que eu gostaria. Só isso.
Mas, para alguém que estava acostumado a se dobrar para caber nas
expectativas da minha mãe, era natural que eu sentisse que estava pedindo
demais.
CAPÍTULO QUATRO.
TIRANDO ALGUMAS PEÇAS.
Apesar de ser controverso e polêmico dizer isso, eu sempre gostei da
comida que era servida no bandejão. Até mesmo do ovo. Não me culpe, a
pessoa que melhor cozinhava na minha casa era meu pai; o que significa
que não foi só minha vitalidade que decaiu depois que ele se mudou, mas
meus almoços também. Os únicos dias que eu ainda tinha algum tipo de
requinte culinário na minha vida eram aos domingos, afinal, eu me esforcei
para manter o costume de fazê-los “especiais”. Era o dia que eu ia para o
novo apartamento do meu pai.
No final, Andy estava certa e não existe isso de ex-pai. Os pais que se
apoiam nessa narrativa estão errados (como o pai de Brenda).
Depois que se mudou, meu pai passou a mandar mensagens para mim e
para Gabriel todos os dias, nos paparicando e nos vendo nos finais de
semana. Quase todos os domingos, eu ia para a sua casa e almoçava com
ele. Gabriel me acompanhava de vez em quando (ele nunca gostou da
tradição e ficou verdadeiramente feliz quando ela acabou) e minha mãe...
bom, ela nunca foi, mas eu não esperaria algo diferente. Eles terminaram
pacificamente, não amigos.
No começo, foi estranho e triste. Comer somente com a presença do
meu pai parecia insuficiente. Viver em um apartamento sem ele parecia
insuficiente. Ir para aquela casa era insuficiente. Mas, com o tempo, eu fui
me acostumando. Tive que me acostumar. Não era o que eu queria, nunca
me senti confortável, mas foi se tornando menos impossível. Ele era o elo
descomplicado da minha família, e nós criamos algo como uma rotina
nossa, com uma torta e filme de sobremesa.
Sendo bastante sincera, era mais fácil para mim estar ali do que perto de
Regina, e eu aceitava a comodidade na ânsia de que fosse se tornando
menos estranho.
Dizem que o tempo cura tudo. Esperava que curasse também, a quebra
de deslumbramento que veio com as brigas que eu tive que presenciar na
minha adolescência.
A verdade é que meus dois pais haviam me decepcionado (por motivos
diferentes). E eu ainda não havia conseguido me livrar da sensação de que
algo entre nós havia sido... bagunçado.
Eu não gostava de nutrir algo negativo pelo meu pai (por menor que
fosse), e sempre tentava abafar aquele sentimento. Quando almoçávamos
juntos, eu fazia meu máximo para me livrar do incômodo, e me surpreendia
com a quantidade de vezes em que eu verdadeiramente conseguia desligar
todas as minhas emoções e me divertir ao seu lado. Meu pai era um cara
divertido, no final das contas. Sempre foi. E com ele as coisas eram menos
rígidas. Eu precisava de algo menos rígido na minha vida e, por isso, eu
fingia que tudo estava bem.
Eu ainda estava começando a abrir meus olhos para como essa postura
“fugitiva” nunca resultava em algo saudável. Em uma parte de mim, eu
notava que precisávamos conversar sobre o que havia passado, porém, tudo
que eu fazia era empurrar esse confronto para o futuro. Queria deixar o
problema para uma versão menos desesperada e dolorida minha resolver.
Naquele ponto, eu tinha muitas coisas pesando, e tinha medo de estragar a
única que, apesar de dúbia, me fazia bem.
No fim, eu sempre acabava esbarrando naquele meu velho amigo: o
medo. Sofri mais do que deveria por causa dele.
Bom, mas se as coisas com o meu pai pareciam um pouco fora do lugar,
com Regina elas estavam de ponta cabeça!
Demorei a conseguir olhar para a cara dela outra vez. O fato de o meu
pai ter cozinhado carne assada no domingo me ajudou a me acalmar e,
quando a segunda chegou, eu já estava quase recuperada da ira que o
sábado me trouxe.
Com quase recuperada, quero dizer: eu já conseguia voltar a me atolar
naquela tonelada de mentiras que me tornavam agradável. Eu conseguia
voltar à minha rotina entediante e maquiada. Ou, pelo menos, era isso que
eu achava.
Voltando ao assunto inicial: eu realmente gostava da comida que era
servida no bandejão da minha faculdade. Especialmente quando eles tinham
a empatia de me servir um pedaço grande de carne. Ana, geralmente, tinha
uma opinião divergente.
— Tá cru, Cami. Tá muito cru. Não come, vamos pegar alguma doença
— orientou, espetando e revirando o pedaço de bife que havia no seu prato.
Eu fiz uma careta.
— Não tá tão cru assim — argumentei, franzindo a testa.
Estava cru sim. Caso tivéssemos um bom médico e um desfibrilador em
mãos, acho que seria possível reviver aquele pobre animal.
— Óbvio que tá — reforçou, e eu tive que ceder.
Por que eu estava defendendo um cozinheiro desconhecido quando
aquela carne claramente nunca foi levada ao fogo?
Suspirei.
— Se estivesse cru, acho que daria para cortar mais fácil.
Resolvi concluir aquele assunto com uma ironia, me esforçando ao
máximo para parecer despreocupada. Minha piada foi boa, eu acho. Pelo
menos fez Ana rir, e eu me esforcei para acompanhar.
Certo, vou reformular: eu normalmente gostava da comida do bandejão.
Naquele dia, eles não tinham acertado. Nem um pouquinho. A única coisa
boa naquele almoço era que eu tinha companhia.
Ana Clara havia chegado à faculdade pela manhã. Tinha uma reunião
com seu orientador (ela estava escrevendo sua monografia) e resolveu ficar
mais um pouco, para me acompanhar. Não me ache antissocial, eu havia
feito alguns amigos na minha turma, mas, no geral, preferia estar com ela.
Ana Clara me lembrava Brenda e, nossa, eu sentia muita falta da minha
melhor amiga. Demoraria a me acostumar com o fato de que ela não fazia
mais parte da minha rotina. Assim como havia demorado a me familiarizar
com a saudade que sentia de Renan, Henrique e até mesmo de Andressa.
Terminar ciclos é sempre complicado. Começar novos também. Eu era meio
que resistente às duas situações.
— Me conta — pedi, depois que superamos o assunto “bife”, tentando
me livrar do redemoinho da melancolia. — Como foi a reunião?
Só foi preciso perguntar uma vez. Se havia uma pessoa que falava mais
do que eu, essa pessoa era Ana Clara. Depois que eu incitei, ela tagarelou
por cinco minutos sobre como estava surtando com as modificações em sua
monografia e que levaria para a sua psicóloga o fato de que, aparentemente,
ela não sabia aceitar críticas. Seu monólogo foi ótimo para mim, me
distraiu. Ela tinha muito carisma e, enquanto reclamava, eu me sentia
imersa em sua vida, como em um reality show. Ana era uma daquelas
pessoas que, caso tivesse um programa de televisão, eu certamente
assistiria.
— Mas vê se eu tô doida. — Largou os talheres para gesticular, depois
dos seus longos minutos de desabafo. — Ele me mandou trocar “de novo”
por “novamente”. — Ficou em silêncio por alguns instantes, a indignação
enroscando no meu garfo cheio. Eu não sabia o que ela esperava que eu
respondesse, então fiquei quieta. Quando ficou evidente que eu não entendi
a deixa, ela exclamou: — É a mesma exata coisa, porra!
Não precisei retrucar.
— Na verdade, de novo é muito coloquial, mô. — Jéssica surgiu do
nada, brotando nas suas costas e pousando um beijo em sua bochecha. Se eu
já estivesse com a boca cheia, teria engasgado. — Para de reclamar do
Marcus, ele está ali pra te ajudar — completou, apoiando sua bandeja cheia
na mesa e se sentando, casualmente, na cadeira vazia ao seu lado. Minha
veterana revirou os olhos, nem um pouco surpresa com a sua chegada.
Aparentemente, ela havia convidado sua “namorada” para almoçar com
a gente. Aparentemente, aquilo fazia parte de sua rotina.
Que ótimo. Era só o que me faltava.
— Para de defender ele só porque ele é seu professor favorito —
retrucou Ana, debruçando-se em sua direção para depositar um selinho em
seus lábios. — Oi, meu bem.
— Oi, meu amor.
Encarei meu prato e meu bife cru.
Aquela demonstração de carinho me fez ruborizar.
Felizmente, Ana e Jéssica nunca me perguntaram o que houve naquela
noite. O porquê de eu ter saído correndo e não ter ficado na calourada. No
entanto, acho que elas sempre imaginaram os motivos. Eu era uma boa
mentirosa, mas minha bochecha descontrolavelmente vermelha não.
— Oi, Camila! — Apesar de eu estar me comportando como uma
idiota, Jéssica me cumprimentou, e eu fui obrigada a retribuir.
— Oi.
— Amor, olha esse caralha de bife!
Ana me salvou, chamando sua atenção, então as duas iniciaram um
diálogo aleatório sobre os benefícios do vegetarianismo (Jéssica era
vegetariana) e como o bandejão era um aliado da causa. O que era uma
piada, caso você não tenha pegado, por causa da carne crua, que afastaria os
carnívoros. Elas estavam alegres e era uma discussão divertida. No entanto,
durante toda a troca de argumentos, eu fiquei calada.
Ficar em silêncio era algo inédito para mim e, se Ana me conhecesse há
mais tempo, teria estranhado.
Vamos à interpretação dos fatos: eu estava nervosa. Em alerta. Estava
com medo por elas, e até mesmo por mim. Eu ficava muito preocupada com
o fato de que duas mulheres estavam trocando “carícias” em público, mas
era incrível notar como ninguém surtava como eu.
O bandejão da minha universidade tinha dois andares. E as mesas
compridas, incrivelmente, estavam sempre cheias. Naquele dia, dividíamos
a nossa com um grupo 100% desconhecido à esquerda.
Meu primeiro pensamento foi: caralho, eles devem estar chocados com
aquelas duas! Porém, quando os encarei, notei que não davam a mínima.
Espera, é sério? Tipo, cadê o choro?
Perceber que não havia lágrima alguma rolando, que as pessoas estavam
ocupadas vivendo a sua vida, comendo o seu bife cru e lidando com suas
próprias preocupações foi impactante para mim. Em níveis estratosféricos.
— Cami. — Ana, em algum momento, se esforçou para me incluir no
assunto, confundindo meu incômodo com timidez. Tive que piscar algumas
vezes para voltar ao mundo real. — Sabia que no curso da Jeh eles também
têm uma aula com o Marcus, meu orientador? Você vai conhecer ele, ele vai
te dar aula no futuro!
— Ah, é? — consegui dizer, engolindo com brutalidade o pedaço de
carne que eu coloquei na boca. Estava em um estágio autodestrutivo,
aparentemente. — Que... maneiro.
— Né?
— Eu adoro ele!
— Você adora todo mundo, Jeh.
— Tá, isso é verdade.
Riram outra vez e eu continuei a mastigar meu bife semi-vivo.
Em nenhum momento elas prestaram atenção ou se incomodaram com a
minha falta de jeito. Ana e Jéssica basicamente me obrigaram a engolir a
normalidade daquilo. Se eu quisesse estar com elas, precisaria aceitar seu
relacionamento. Precisaria entender que não havia nada demais naquilo. Ou
eu parava de me incomodar com o fato de que eram “namoradas”, ou ia
embora.
Essa postura me fascinou, porque eu notei que era assim que eu sempre
quis ser. Destemida, com personalidade. Elas tinham voz, faziam as coisas
sozinhas. Tenho certeza que elas fariam aquela porra de chá. Tenho certeza
que elas conversariam com o seu pai sobre o que as incomodavam, que
parariam de drama e mandariam uma mensagem para a garota que não saía
da sua cabeça. Afinal, elas faziam o que elas queriam. E por isso riam,
enquanto eu tinha que segurar o choro a cada doze horas.
Meu constrangimento a respeito da palavra “namorada” não era meu.
Aquele... incômodo não era meu.
Notar aquilo me fez levantar o olhar.
Jéssica usava roupas tão escandalosas quanto as de Ana, porém, seu
exagero estava nas estampas. Ela gostava de combiná-las. Não sei como
ficava bom, mas eu juro que ficava. Fazia Letras, descobri naquele dia,
assim como descobri que era muita boa tocando saxofone e que ela e Ana
namoravam há mais de sete meses. Conheceram-se em uma festa
universitária, graças a um amigo em comum. Ela era a primeira namorada
da minha veterana. Ana não era a sua, mas Jéssica dizia que depois dela,
não teria mais nenhuma.
— Que lindo, amor. — Ana se derreteu depois que ela cantarolou
aquilo, puxando sua mão e pousando um beijo delicado em seu dorso.
Senti que meu rosto corou outra vez.
— Viu? Depois dessa você nunca mais pode dizer que eu não sou
romântica.
— Ah, eu posso sim. — Ela me encarou. — Não se engane, ela não é
nada romântica.
— Ei! — protestou Jéssica. — Eu sou romântica pra caralho. Escuta
essa, Cami. Teve uma vez que eu fiz uma almofada com... — Seu celular
apitou. Estava pousado ao lado de seu prato e fez um escândalo quando
recebeu uma mensagem. Aquilo nos distraiu, cortando o assunto pela
metade.
Ana riu.
— Cara, você precisa deixar essa coisa no silencioso, como qualquer ser
humano normal.
— Se eu deixar no silencioso, nunca mais vou te responder. — Era um
ótimo argumento. Tão bom que Ana desistiu.
— Tá, esquece o que eu disse. Nunca deixe no silencioso então.
Jéssica soltou uma risada, e foi nesse momento que eu percebi que
também havia um sorriso no meu rosto.
Ana Clara e Jéssica foram o primeiro casal sáfico que eu conheci na
minha vida. Foi um choque, mas foi importante. Elas foram importantes, e
eu estava começando a me familiarizar com aquela dinâmica quando a
bomba foi arremessada.
— Ah, é a Dessa — anunciou Jéssica, como quem anuncia que o dia
está ensolarado. — Ela já tá chegando.
Chegando?
Chagando aonde?
Aqui?
Naquele momento eu finalmente engasguei.
Anote isso: é perigoso pronunciar certos nomes enquanto você está
almoçando. Perigoso para caramba.
“Dessa” estava chegando?
Quem foi que decidiu que isso estava tudo bem?
O arroz foi parar diretamente no meu pulmão e eu tossi sem nenhuma
classe, tendo que beber todo o meu suco para conseguir voltar a respirar.
Ana e Jéssica me encararam, alarmadas.
— Eita porra. Foi direto? — Jéssica apoiou o celular na mesa.
Completamente alheia ao fato de que havia acabado de quase me assassinar
com as suas palavras.
— Foi — tossi. — Totalmente.
— Ai, pobrezinha. Toma. Bebe o meu! — Ana se preocupou,
estendendo seu suco em minha direção. Tive que o aceitar.
Bebi tudo de uma vez, virando-o como quem vira um shot de tequila
(não que eu saiba como se vira tequila, eu só vi muitos filmes). Funcionou.
Depois que a comida desceu, fiquei paralisada por alguns segundos,
tentando retornar à vida e processar o fato de que Andressa estava
chegando.
Como que me sentia em relação àquilo?
Era o que eu queria, obviamente. Esperá-la e cumprimentá-la seria o
que pessoas maduras fariam. Era o que Ana e Jéssica fariam. Mas não era o
que eu podia fazer. Eu não era madura. Eu não estava pronta. Errei ao dizer
que estava recuperada. Errei em relação a tudo! Eu não tinha mais
namorado, mas eu ainda tinha mãe!
Tinha que dar o fora dali.
Encarei meu prato, arquitetando em segundos os passos que eu tomaria
a seguir.
— Desceu? — quis saber Ana, ainda com uma expressão preocupada.
Eu assenti.
— Desceu, obrigada. — Devolvi seu copo vazio, tendo que perguntar,
mesmo contra a minha vontade: — Quer que eu pegue mais suco pra você?
Ela negou.
Graças a Deus.
— Ok — pigarreei, encarando-a com a minha melhor expressão
confusa. — Que horas são?
Jéssica ligou a tela de seu celular para me responder:
— Meio dia e um.
— Meu Deus! — Arregalei meus olhos. — Eu tô muito atrasada!
Marquei de encontrar com um menino da minha turma antes da aula, pra
passar algumas coisas da matéria e me esqueci completamente. Vocês... me
dão licença?
— Claro, gatinha! — respondeu Ana e Jéssica a acompanhou.
— Vai lá.
Sorri amarelo, colocando-me de pé em um pulo. Meu plano era fingir
que minha pressa e afobamento tinham uma causa completamente diferente
do meu medo de me deparar com Andy outra vez.
Nunca convenci ninguém.
— Beleza. Até mais, gente — me despedi, colocando minha mochila o
mais rápido que consegui sobre meus ombros enquanto corria para fora
dali.
Equilibrando minha bandeja com mais maestria do que equilibrava
meus sentimentos, joguei, com peso na consciência, o resto da minha
comida fora.
Pois é, Andressa me fazia ter atitudes grosseiras e questionáveis como
essa. Veja como eu tinha motivos para continuar fugindo!
Felizmente, fui ágil e perspicaz e não nos encontramos naquele dia, nem
no dia seguinte, ou no próximo, ou no próximo. No entanto, aqueles dias
sem Andressa me trouxeram outras coisas. Tão significativas quanto.
Na quinta, veio a segunda delas.
Apenas alguns dias depois do acontecimento no bandejão, eu resolvi me
aventurar e fazer um caminho novo para chegar na minha sala. Uma colega
de turma havia me contado sobre um atalho que agilizava a chegada ao
nosso prédio. Ela havia me explicado que eu tinha que contornar o prédio
de Letras e passar pela lateral do de Ciências Contábeis. Atravessando-o
pela lateral, eu economizava patéticos dois minutos, além de conseguir um
pouco de sombra nos dias mais quentes.
Apesar da vantagem absurda (dois minutos), aquele atalho era
pouquíssimo movimentado, uma vez que escondia um matagal malcuidado
que arranhava as panturrilhas. Era vazio, recluso. Eu pensei: por que não
experimentar?
Posso te citar dezenas de motivos. Um deles, eu descobriria sem
nenhuma demora.
Foi um grande choque.
Imagine a cena: eu, minha mochila de bolinhas e um short jeans,
adentrando a lateral silenciosa do prédio de Ciências Contábeis e dando de
cara com duas garotas basicamente se fundindo com os tijolos descascados.
Apesar da imagem clara, eu demorei a entender que havia duas pessoas
ali quando elas estavam tão violentamente abocanhando uma à outra.
Sim, tinham duas garotas se pegando pesado na parede que
correspondia ao inocente prédio de Ciências Contábeis. Uma delas tinha os
cabelos cacheados, enquanto a outra tatuava a parede com fios escuros e
lisos. As mãos da garota cacheada passeavam pela sua vítima, deliciando-a
em um ato íntimo e provocante em meio a um matagal público às duas da
tarde! Sei que isso é meio que desrespeitoso, mas eu acabei flagrando
alguns casais durante a minha trajetória. Jovens são idiotas. Eu sou idiota.
Minha boca secou. Meu peito deu pinote.
Honestamente, a promessa de economizar dois minutos valera a pena?
De certa forma, sim.
Elas não faziam muito barulho, mas eu conseguia escutar o pesar de
suas respirações. Beijavam bonito. Sabe aquele beijo de cinema? Foi mais
ou menos isso que eu presenciei. Pernas entrelaçadas, peitos colados, mãos
ciganas, que apertavam e não faziam morada em lugar nenhum. Eu podia
simpatizar com aquilo. Se estivesse naquela posição, acho que eu também
não conseguiria manter meus dedos quietos. Acho que não conseguiria me
manter de pé.
Puta que pariu. Eu estava me colocando naquela posição. Mais
especificamente: na posição da garota espremida contra a parede. Mais
especificamente ainda: com alguém de cabelos cacheados e sorrisos fáceis
prensada contra mim.
Um sentimento esquisito me tornou rocha. Eu me peguei trêmula, sem
ar.
Eu te descrevi tudo isso, mas não imagine que eu sou uma pervertida. O
que narrei, do reconhecimento do terreno à corrente de adrenalina que
percorreu meu corpo inteiro, aconteceu em menos de um segundo. Eu não
fiquei as assistindo, como um maníaco faria. Eu cheguei, as vi, entrei em
pânico e não demorei a exclamar:
— Ai meu Deus!
As assustei, forçando-as a se separarem. Pares de olhos castanhos e
lábios borrados miraram meu rosto e eu quis virar pó. O susto e o
constrangimento de toda aquela situação me fizeram suar. Ou eu quis
acreditar que esse era o motivo.
— Jesus. — Não sabia o que fazer, ou onde enfiar minha cara. Estava
desgovernada e vermelha, como um tomate que despenca do pé.
Elas estavam uma bagunça, mas não pareciam nem um pouco irritadas,
ou envergonhadas, por terem sido pegas. Pelo contrário, ficou mais do que
claro que acharam aquilo engraçado. Uma reação que me deixou ainda
mais envergonhada, acionando alguma coisa dentro de mim.
— Me... desculpa.
Virei e as ouvi rir, enquanto eu caminhava meu trilho da vergonha de
volta ao caminho civilizado de sempre.
Meu peito batia tão rápido que dava pena. A vergonha me comia por
dentro, mas não era só ela. Não era apenas o constrangimento de ter pegado
duas pessoas em um momento íntimo, havia algo além.
Aquela situação me traumatizou, não vou mentir. Eu jamais pegaria um
atalho naquela faculdade de novo. Contudo, foi mais uma pecinha sendo
retirada do grande quebra-cabeça que eu cultivei por anos.
Obviamente, não é como se eu houvesse descoberto na faculdade que
havia gays no mundo real; não é isso. Mas aquelas duas situações foram
como um... despertar de consciência. Como se eu finalmente estivesse em
uma posição sã em relação ao fato de que eu não era a única. De que o que
eu sentia não era tão grave assim. Eu me senti... menos sozinha.
Por causa da péssima experiência com a minha mãe, minhas suposições
eram as de que ninguém me aceitaria caso eu fosse sincera. Só que isso
nunca foi verdade. Se Ana e Jéssica podiam se chamar de namoradas, se
aquelas garotas podiam estar juntas em plena luz do dia, por que eu
precisava ter tanto medo?
Eu não gostava da ideia de ser desgostada, por qualquer motivo que
fosse. Minha sexualidade, obviamente, também esbarrava na minha
necessidade de agradar a todos. Ver que eu poderia ser apreciada por
alguém, mesmo se beijasse uma garota, foi algo importante para mim.
Descriminalizou algo nada criminoso que eu achava equivalente a um
assassinato.
Nem todo mundo era como a minha mãe, e as pessoas certas não me
odiariam caso eu fosse sincera.
Ok, não deturpe minhas palavras. Não estou dizendo que as coisas
seriam fáceis. Preconceito existe, e é uma merda. O mundo ainda é
profundamente homofóbico e eu o odeio grande parte do tempo (não só por
isso). Mas o que eu notei naquele instante é que não existem só algozes
vivendo nele. As pessoas certas não se importam com o fato de que você
sente atração por alguém no mesmo sexo. As pessoas certas existem.
Aquilo foi como... o engasgo de segunda! Como um grão de arroz que
segue o tubo errado e vai parar na droga do meu pulmão. Para o bem da
minha saúde, eu tinha que o tirar de lá.
Havia acabado de alcançar os primeiros degraus do meu prédio quando
recebi uma mensagem.
Era Brenda.

Brenda 14:10h: Oi amor da minha vidaaaaaa.


Marcado pra esse sáb nosso passeio? Juro que não
vou furar de novo. To morrendo de sdds

As pessoas certas não me odiariam caso eu fosse sincera.

Camila 14:11h: Combinado!


CAPÍTULO CINCO.
NINGUÉM PRECISA SABER.
Eu estava atrasada e Brenda me mataria por isso, mas, em minha defesa,
eu ainda não havia me adaptado aos meus novos horários. Não havia
entendido que minhas horas normais de estudo não seriam suficientes para
o conteúdo que eu havia tido em duas semanas de faculdade. Os filmes me
levavam a acreditar que eu teria festas, drogas e bebidas, quando tudo que
me foi entregue foram muitas doses de estresse.
Cheguei a começar os estudos, abrindo as cinquenta páginas do Power
Point de uma das disciplinas e iniciando meu resumo. No entanto, quando
vi, meus pulsos estavam em processo de falecimento e já era uma da tarde.
Eu deveria ter saído de casa quinze minutos antes. Minha sorte era que eu
encontraria com Brenda, e nenhuma de nós duas tinha o costume de chegar
no horário.
No fim, meu atraso não interferiu em muita coisa. Pior seria se eu
tivesse desmarcado. Essa era a minha vontade, sendo bastante sincera.
Porém, já havíamos cancelado uma vez, quebrando nossa promessa de nos
atualizar sobre cada nova etapa de nossa vida em “tempo real”, e eu fiz um
esforço.
Foi uma ótima escolha.
Toda a minha preguiça se esvaiu quando eu a encontrei sentada na praça
de alimentação.
Deus. Eu sentia muita falta daquela garota que estava sempre com roupa
de academia. Sentia falta da minha rotina do colégio, ao mesmo tempo em
que estava bastante orgulhosa por termos conseguido chegar até ali. Brenda
e eu nunca nos afastamos. Honramos com nossas palavras e nos
atualizamos a respeito de tudo. Depois daquele dia, tudo mesmo.
Não sei se ela viveu o mesmo processo de engasgo que eu, mas
trocamos confissões impactantes naquele almoço casual. Como a que veio a
seguir:
— Então, agora, eu tenho aula de matemática quase a manhã inteira nas
terças! — comentou, depois de me atualizar sobre a sua nova rotina de
estudos. Eu fiz uma careta.
Brenda odiava matemática.
— Nossa. Meus pêsames.
— Obrigada! — Bufou, cortando seu bife com raiva (esse estava bem
cozido). — E eu tenho que estudar a tarde toda também, é um inferno. Só
chego em casa de noite.
— Você estuda sozinha?
Minha pergunta foi inocente, juro que foi. Eu queria saber se ela estava
estudando sozinha ou tinha algum monitor, sei lá. Jamais imaginei o que
viria a seguir.
— Pois é. — Riu. — Então. Eu meio que preciso te confessar uma
coisa. — Franzi minha testa.
A conversa mudou de tom bruscamente.
— O que houve?
Fez mistério, algo inédito. Eu sabia que algo impactante estava se
aproximando antes que ela dissesse:
— Não estou estudando sozinha. — Mais suspense. — Estou estudando
com o seu melhor amigo.
Larguei meu garfo no canto do meu prato para encará-la boquiaberta.
Estávamos almoçando churrasco, era basicamente a única coisa que ela
comia. Brenda tinha o que chamam de “paladar infantil”. Odiava qualquer
coisa que não tivesse batata frita e comeu uma depressa logo depois que
abandonou aquela dinamite em cima da mesa.
— Quê? — me surpreendi. — Renan?
— Você já tem novos melhores amigos na faculdade? — Só tive tempo
de revirar os olhos antes que ela emendasse: — Eu sei que ele vai te contar
em algum momento, porque ele é incapaz de manter as coisas pra ele.
Então... sei lá, quis te contar antes.
Eu estava realmente surpresa com aquela revelação.
Óbvio que eu sabia que eles estavam estudando no mesmo cursinho,
mas, antes de isso acontecer, enfrentamos a mesma divisão de turmas, com
Brenda separada de nós dois, e as coisas foram basicamente... as mesmas.
Renan continuava a encará-la com corações nos olhos enquanto ela
beijava o canalha que conheceu no vôlei.
Brenda o afastava, dentre outros motivos (os quais eu não conseguia
entender, francamente), porque tinha medo de compromisso. E, bom, ela
tinha razões para tal. As coisas com os meus pais aconteceram de maneira
muito mais branda quando comparado com os dela e mesmo assim, eu
adquiri certo receio a respeito de casamentos. Imagino o que ela deveria
sentir!
Brenda nunca teve um exemplo de relacionamento de sucesso na sua
família. Seus tios eram separados, sua prima só arrumava namoros
complicados e a família por parte de pai era basicamente inexistente. As
únicas pessoas que conseguiram sustentar um relacionamento a dois foram
seus avós maternos; seus exemplos e oásis.
Eu conhecia a sua história de vida, seus traumas e medos. Por isso,
mesmo que tivesse começado todo aquele movimento cupido no segundo
ano, eu a respeitei e parei de forçar no terceiro. Eu não faria algo que a
deixasse desconfortável, muito menos Renan. Então eles conversavam,
interagiam, mas não se tocavam, nem comentavam sobre algo além. Não
comigo, pelo menos.
Sim, eu estive um pouco distante, isso também aconteceu. Com
Henrique, meus pais se divorciando e a minha tonelada de mentiras e
rancores, talvez eu tenha perdido algumas pequenas coisas. Talvez por isso
tenha me soado tão súbita toda aquela situação.
— Calma. Vocês estão estudando, estudando ou...
— Estudando, Camila. Estamos focados nos nossos futuros. — Assenti,
processando aquela informação.
Tentei imaginar Brenda e Renan estudando. Juntos.
Ai meu Deus, ele devia estar surtando!
— Mas... rolou alguma coisa?
— Não, Camila — foi firme.
— Tá bom. — Tive que engolir minha euforia. — Tá bom.
Não comentamos mais sobre o assunto pelo restante do almoço, só que
eu sabia que algo estava acontecendo, e isso me deixou com um sorrisinho
besta e infantil de canto.
Você já sabe toda a situação Renan-Brenda. Sabe como eu já me senti a
respeito, e eu preciso dizer que um ano, um divórcio, um namorado e
Andressa foram mais do que suficiente para que eu verdadeiramente
passasse a torcer pelos dois. Sem segundas intenções.
Renan sempre teria um espacinho especial no meu coração, mas aquilo
não era mais toda a minha vida (nem um quinto dela, na verdade), e eu
realmente acreditava que ele seria uma boa pessoa para Brenda. Eu queria,
mais do que tudo, que ela fosse feliz. Brenda merecia alguém como ele, que
cuidaria bem de seu coração. Ela nunca teve alguém que o fizesse.
— Então. Como foi a tal da “calourada”? Você nem me contou. —
Depois que me distraiu com sua novidade impactante ela mudou,
estrategicamente, de assunto, bebendo os últimos goles de seu refrigerante
enquanto eu ainda estava na metade do meu prato. Demorei um pouco para
responder.
— Eu saí mais cedo. E soube que choveu.
De primeira, foi tudo que eu disse, mas aí eu senti. Senti o arranhar nos
meus pulmões. O grão de arroz entalado. As mentiras, tão corrosivas.
“As pessoas certas não me odiariam caso eu fosse sincera”.
Encarando minha melhor amiga, a pessoa que eu mais confiava no
mundo, eu me lembrei dos acontecimentos da semana e fiz algo que a
Camila de dezesseis anos jamais faria. Eu respirei fundo e joguei verde:
— Mas deu tempo de conhecer a namorada da Ana.
Mastiguei em silêncio, sentindo meu coração bater na palma das minhas
mãos.
— Ah, a Jeh? Ela é uma gracinha, né?
— É. Uhum.
No fundo, eu sempre soube que Brenda não teria problemas com a
sexualidade alheia, só que a falta de segurança era intensa, e eu precisava
conferir.
Durante grande parte da minha adolescência, eu criei suposições
sozinha. Eu tive medo de perguntar coisas que eram importantes para a
minha autodescoberta, tive medo da minha melhor amiga, mesmo que ela já
tivesse me dado sinais de que não seria como a minha mãe. Eu deduzi que
não tinha aliados, mas estava começando a me convencer de que isso não
era necessariamente verdade.
Certo, era agora ou nunca.
Eu sempre me senti confortável e acolhida ao lado de Brenda, mas
nunca antes pronta para questionar:
— Bre? Posso te perguntar uma coisa? — comecei, receosa, rolando os
grãos de feijão do meu prato de um lado para o outro.
Não a encarei, mas a escutei dizer:
— Claro.
Respirei fundo.
— Pode ser um pouco estranho, mas... — Inspirei profundamente outra
vez. — Hm. Você já se sentiu... atraída por uma garota?
Tentei soar casual, só que falhei. Sentia que não havia sangue no meu
rosto. Não tive coragem de levantar meu olhar para encará-la, mas sabia
que ela estava com a testa franzida quando perguntou:
— De querer pegar?
Senti meu rosto ruborizar.
— É.
— Cara. Acho que não.
Certo, então não era um comportamento heterossexual mesmo.
— Ok — foi tudo que eu disse.
Suspirei, focando minha atenção naquele feijão e passando um bom
tempo assim.
Meu peito batia rápido.
Nossa, eu estava tão exausta. Exausta de tentar, de falhar, de me sentir
mal. Mentir era extenuante e eu queria poder ser sincera pelo menos com a
minha melhor amiga. Eu precisava disso.
— Bre. Eu acho que eu já.
Minha frase saiu tão baixa que eu tenho certeza que ela não a ouviu
inteira. Sorte a minha que ela não precisaria entender minha confissão para
saber do que eu falava.
— Obrigada por me contar, Cami — disse. — Mas eu meio que já
sabia.
Tive que a encarar depois daquilo e me deparei com um sorriso largo.
Foi como se eu tivesse retirado parte dos destroços daquele arranha-céu
vitalício que havia em minhas costas. Encontrei tanta compreensão em seus
olhos que me senti motivada a continuar:
— Tipo, eu acho que já, mas eu não tenho certeza, certeza. — Ela
franziu a testa.
— Como assim?
— Eu nunca fiz nada com uma garota — sussurrei. Estávamos no meio
do shopping e eu não queria que todos soubessem daquilo, somente ela.
Ela assentiu.
— E você acha que precisa testar antes de chegar a uma conclusão.
Brenda lia minha mente como ninguém. Graças a Deus por isso, porque
eu já havia fritado todos os meus neurônios com aquela confissão. Não seria
capaz de articular mais nenhuma frase coerente.
— Isso.
Só para deixar claro: não é necessário, de forma alguma, “testar” a sua
sexualidade. Mas eu ainda estava em busca de desculpas e Brenda ainda
adorava acabar com todas elas. Ela refletiu criteriosamente por algum
tempo antes de sugerir:
— Sabe o que eu fiz quando eu queria beijar na boca pela primeira vez e
estava com medo?
— O quê?
— Eu fui a uma festa na qual ninguém me conhecia e beijei um garoto
aleatório. Sem testemunhas, sem história para contar. Foi bem menos
assustador e eu acabei com tudo ali.
Franzi minha testa.
— Você tá dizendo que eu tenho que beijar uma desconhecida e nunca
mais a ver?
— Sim. — Sorriu. — É exatamente isso que eu estou dizendo
— Brenda... — Ri, entrando em pânico só de pensar naquela
possibilidade. — Eu não vou beijar mulher nenhuma.
Ela inspirou profundamente.
— Você realmente quer passar o resto da sua vida sem ter
experimentado?
Não.
A resposta para aquilo era definitivamente não!!! Mas eu ainda tinha
muito medo. Medo de gostar. Medo de tentar. Medo da reação dos meus
familiares...
Ela notou isso. Notou a palidez no meu rosto e disse algo que mudou
por completo o rumo dessa história.
— Cami? — Levantei meu olhar para encará-la. — Você não vai
conseguir tirar isso da sua cabeça até que vá até o final. — Fiz uma careta e
ela tentou mais uma vez: — Escuta, ninguém precisa saber. Você é maior de
idade, a vida é sua. Você precisa experimentar e tirar suas próprias
conclusões. — Então repetiu: — Ninguém precisa saber.
Ninguém precisa saber.
Aquele foi um momento eureca para mim. Havia muito conforto no
anonimato, no desconhecido, na penumbra. Havia muito aconchego naquela
sentença, então eu fiz morada.
Ninguém precisa saber.
Brenda me deu o passo a passo, implementou as regras. Eu gostava de
regras. Então, tudo que eu fiz, a partir desse momento, foi segui-las.
CAPÍTULO SEIS. VOCÊ
DEVIA LEVAR ELA PARA O
BANHEIRO.
Depois de duas semanas e três dias de faculdade eu precisei recorrer aos
resumos de Ana Clara. Uma coisa que aprendi rápido: universidade é sobre
comunidade. O mais próximo que encontrei na minha vida de um
formigueiro (no melhor sentido da palavra). E, com a ajuda da minha turma
e da minha — autodenominada — anja, eu consegui passar nas primeiras
avaliações. Mas, antes que isso acontecesse, eu estava no banheiro com ela,
escovando os dentes.
Sim, Ana se tornou parte fundamental e constante da minha nova rotina
universitária. Enquanto ela não havia se formado, nossos almoços eram
sempre juntos. Às vezes, Jéssica nos acompanhava.
No começo, confesso, eu ainda tinha dificuldade em falar “ei, Ana, sua
namorada disse isso”, mas, depois de um tempo, aquilo saiu como um “bom
dia” da minha boca. A palavra namorada perdeu seu fator surpresa, então
não havia mais susto ao pronunciá-la. Pelo menos não quando eu estava
perto delas.
Quando eu estava perto delas, eu me sentia segura. Ana costumava
brincar que eram minhas madrinhas e eu acho que foram mais ou menos
isso mesmo. Elas, assim como Brenda, foram essenciais no período antes.
Antes da minha segunda festa universitária. Antes de tudo que aconteceu lá.
Guardei meu celular no bolso enquanto me debruçava para cuspir.
Havia o colocado no modo avião porque estava acabando sua bateria; e só
estava acabando a bateria porque Brenda e Renan não tiveram aula no
cursinho naquele dia, e me mandaram mensagem a manhã inteira.
Não tenho atualizações para dar a respeito daqueles dois. Infelizmente,
nada havia acontecido ainda.
Depois daquele dia do shopping, eu voltei amortecida para casa, como
você pode imaginar, e só consegui sondar meu amigo para descobrir o que
estava acontecendo perto das nove da noite.
Ele me respondeu rápido, mas foi superficial.

Renan 21:03: Aaaaaa, ela te contou isso?


Renan 21:03: Pois é, tamo estudando. Ela é
incrível em português, quim e... tudo.
Renan 21:04h: Tenho até começado a escrever
frase com vírgula agora KKKKK, notou?????
Renan 21:07: O q mais ela falou?

Nada. Brenda não me disse mais nada. E com ele, não foi muito
diferente.
Minha amiga me criticava, falava que eu precisava ter mais atitude no
que diz respeito à minha vida amorosa. Pois bem, guarde esse
acontecimento e me diga: não é o sujo falando do mal lavado?
— Então, você vai? — quis saber minha anja, madrinha e veterana,
guardando sua escova em seu nécessaire e me devolvendo minha pasta de
dente.
Ela nunca se lembrava de incluir uma em sua mochila, mas eu não a
censurava por isso. Ela estava escrevendo TCC. Existe um tipo de
imunidade imputada nesse fato. Qualquer ação que ela tomasse era
completamente justificada.
— Talvez.
Talvez nada. Outra vez, eu sabia que não iria. Só não disse a verdade
para evitar que ela continuasse me enchendo de links e motivos pelos quais
eu deveria ter aquela “experiência”.
O evento sobre o qual falávamos era uma festa que ia acontecer na
sexta-feira, organizada por algumas atléticas. Segundo Ana, as festas
organizadas pelas atléticas eram boas, e eu deveria ir. Ela havia começado a
me sondar sobre o assunto no começo da semana, e tentado me convencer
aos poucos. Fui convencida, mas ainda não havia recebido o combustível
necessário para fazer aquela besteira.
Não eram necessários, na verdade, muitos argumentos. Eu queria ir.
Minha primeira festa havia acabado antes mesmo de começar e eu ainda
mantinha viva aquela ansiedade atrelada ao desconhecido. Contudo, não
teria como mentir para a minha mãe e falar que teria aula daquela vez. Que
aula do meu turno duraria até meia noite? Eu precisaria falar a verdade e
aquilo era algo que eu jamais consegui fazer. Especialmente com ela.
— Oba! — exclamou Ana, animada, puxando um rímel (sim, ela tinha
um rímel, mas não uma pasta de dentes). — Mas a Dessa vai também. Tudo
bem por você?
Travei por alguns instantes.
De onde havia vindo aquilo?
Aquela era a primeira vez que ela me perguntava sobre Andressa e,
curiosamente, não me pareceu mais seguro pedir minha permissão para
chamá-la do que simplesmente arremessá-la na minha frente.
Eu me fiz de sonsa.
— Ué. Por que não estaria?
Ana não me respondeu nada, nem sei se escutou o que eu disse. Estava
debruçada sobre a pia, com a boca aberta, atacando seus cílios com tinta
preta. Depois que maquiou um de seus olhos, soltou uma risadinha,
confessando:
— Eu já te contei que a Jéssica tinha ciúmes dela no início?
Não havia nenhum contexto para aquilo, assim como metade das coisas
que ela falava. Então me esforcei para compreendê-la.
— De quem? Da Andressa?
— É — riu. — Eu fui meio bocuda também. Não devia ter contado para
ela o que rolou entre a gente tão cedo. Mas não foi nada demais! Eu não
sabia que Jéssica era ciumenta. Ela demorou para querer dar alguma moral
pra Dessa depois disso, mas o engraçado é que hoje ela me trocaria por ela.
Veja só que irônico: eu fui o elo de ligação!
Ana demorou a dizer tudo aquilo, fazendo algumas pausas para ajeitar o
rímel. Seu suspense combinou bem com o teor de sua frase. Foi uma
incrível pancada.
— Espera. Você e Andressa já... ficaram? — perguntei, receosa, sem
realmente querer ouvir aquela resposta.
O problema era que Ana Clara não tinha muito tato. Sincericídio, já
ouviu o termo? Deve ter sido cunhado inspirado nela.
— Já. Mas faz um tempo do caralho. Eu nem conhecia a Jeh ainda!
Acho que foi na calourada dela. Foi no banheiro — riu. — A gente tava
meio bêbada, mas olha... sua amiguinha de infância tem uns truques bem
legais.
Eu juro que eu tentei disfarçar, mas minha boca secou. Meu estômago
embrulhou e eu tive que desviar o olhar. Ciúme, foi o que eu senti, quando
eu tinha zero direito.
Ana percebeu que eu fiquei apática, então desviou sua atenção do
espelho para o meu rosto, me analisando por alguns instantes até rir.
— Ah, saquei.
Pisquei algumas vezes.
— O quê?
— A gente achava que era por causa de ressentimento que vocês
ficavam se evitando. Mas não é. — Deu de ombros. — É tesão.
Senti meu rosto ficar roxo.
— Ana!
— Não fique brava comigo — se defendeu, completamente alheia ao
meu embaraço. — Faz um bom tempo, e foi só uma rapidinha.
Eu não precisava saber disso. Eu definitivamente não precisava saber
disso.
— Eu não ficaria... brava com você.
Ela riu. Riu por um bom tempo, até que cruzou seus braços e concluiu:
— Eu gostei muito de saber disso. Ela é gata pra caralho, você é gata
pra caralho. Acho que seriam um casal tão lindo!
— Ana!
— Tá bom, tá bom. Desculpa!
Fingi estar muito concentrada guardando as minhas coisas dentro da
minha mochila enquanto sentia o constrangimento esquentar meu corpo
inteiro.
— Pode deixar que eu não vou comentar mais, mas ela vai estar na
festa. E, conselho de amiga: você devia levar ela pro banheiro.
Quis sair correndo e nunca mais trocar nenhuma palavra com Ana Clara
a partir daquele instante; mas, surpreendentemente, eu não fiz isso. Pelo
contrário. Eu simplesmente larguei meus braços ao lado do meu corpo e
comecei a rir.
Havia algo muito revigorante, e igualmente desesperador, no fato de que
eu havia confessado para Brenda, dias antes, que eu sentia atração por
garotas. Era como se eu estivesse deixando sair a conta-gotas, a forma mais
indolor para alguém como eu.
Eu poderia ter insistido e negado. Fingido que não, eu não sentia
“tesão” por uma garota. Não, eu não sentia ciúmes. Não, eu não ficaria
imaginando agora, compulsivamente, como seria uma “rapidinha” com
Andy dentro de um banheiro. Eu podia ser a mentirosa de sempre, só que eu
não senti vontade de fazer aquilo. Não com Ana.
Então saímos do banheiro, e tinham duas gotinhas agora. Duas pessoas
que sabiam (em parte) da coisa mais obscura e desesperadora que eu
guardava em mim. E, olha que insano, eu ainda não havia entrado em
combustão! Pelo contrário. Eu não me sentia tão aliviada há muito tempo.
Havia algo forte em verbalizar ou, simplesmente, não negar minha
identidade para outras pessoas. Era como se eu tivesse passado finalmente a
me aceitar e a me... conhecer. Eu me sentia mais forte, mais capaz. Que
sentimento perigoso aquele. Fazia eu me sentir capacitada e tentada a seguir
alguns conselhos.
CAPÍTULO SETE.
NIETZSCHE SEMPRE SABE.
Sexta-feira, 5 de abril. Aquela data ficou eternizada em mim, como uma
tatuagem.
Era o dia da festa das atléticas. Tinha um tema, do qual não me recordo;
afinal, isso não faz nenhuma diferença. Temas não eram nada além de
desculpas para reunir jovens embriagados em um ambiente apertado.
Não que eu achasse ruim. Por favor, continuem. Só não contem muito
comigo.
Era a segunda festa que acontecia desde que eu havia começado as
minhas aulas. A segunda que eu faltaria. E eu estava me sentindo,
resumidamente, excluída.
Ana Clara ainda não sabia que eu nunca havia planejado ir, então, vinha
me mandando mensagens de voz animadas sobre a roupa que vestiria e as
fofocas que ficou sabendo com a organização. Tudo aquilo me deixava
ainda mais frustrada.
Rebobinamos e eu tinha dezesseis anos outra vez, proibida de ir a
qualquer lugar porque minha mãe não gostava. Eu a entendia na época.
Naquele momento, não a entendia mais. Aquilo ficou ainda mais evidente
depois daquele dia.
Uma coisa que eu aprendi é que, em geral, existem alguns caminhos que
uma pessoa reprimida pode seguir. Em algum momento, viver uma vida de
mentiras e ressentimentos vai te corroer ou, então, te fazer explodir.
Nietzsche abordou essa questão de repressão de desejos e de emoções,
argumentando que reprimir impulsos naturais pode levar a uma explosão de
ressentimento ou a uma autonegação prejudicial. Sartre também já afirmou
que somos responsáveis por nossas escolhas e que viver de acordo com as
expectativas dos outros nos impede de realizar nosso potencial pleno.
Sei disso hoje, depois que tudo desmoronou. Se soubesse antes, teria
evitado algumas situações, como a que aconteceu naquela fatídica manhã de
sexta. Mas o determinismo também afirma que erros podem ser vistos como
parte do processo natural de causa e efeito. De certa forma, minhas ações
me levaram àquele clímax. De certa forma, eu não as condeno.
Acordei mais cedo do que precisaria naquela manhã. Cedo o suficiente
para ver Gabriel saindo para a escola. Como todos os filhos de tia Diana
tinham terminado o ensino médio, ela não dividia mais o carro com a minha
mãe, e meu irmão passou a ir e a voltar de van.
A rotina era a seguinte: Regina descia com ele e, quando subia,
preparava meu café. Costumávamos sair às sete. Ela me deixava na
faculdade, com mais de uma hora de antecedência, e ia direto para o seu
trabalho.
Como era esperado, no entanto, depois de alguns dias de teste, tornou-se
impossível conciliar nossos horários, e ela havia parado de me levar e
buscar. Já que pegar ônibus ainda estava fora de cogitação (gravíssimo, aos
seus olhos), Uber foi a solução encontrada. E, depois de vários dias com
aquele novo meio de locomoção, eu meio que me acostumei.
Era muito melhor para mim. Ter que chegar antes, ou esperar depois do
horário, sempre foi uma chatice! O que ela fez de errado foi ter me dado um
gostinho do que seria não precisar enfrentar esse ritual. No fim, é
impossível sentir falta do que nunca se conheceu antes, mas tão impossível
quanto voltar atrás quando se começa a se ter o que sempre quis.
Depois que tomamos café, eu ameacei me levantar e abrir meu
notebook. Acordei cedo, e meus planos envolviam aproveitar o tempo extra
continuando um filme até que desse o horário de pegar o carro. Porém, ela
me impediu de sair da mesa com a seguinte frase:
— Que Uber, Camila? A gente tá gastando muito com isso. Você vai
voltar a ir comigo.
E eu simplesmente paralisei.
Fiquei um tempo processando e mastigando o que tudo aquilo
significava até conseguir abrir a boca outra vez.
— Mãe...
— Preciso sair às sete em ponto, para não atrasar...
— Mãe...
— O trânsito tem estado cada vez pior. Outro dia peguei um
engarrafamento de trinta minutos...
— Mãe — tive que repetir três vezes até que ela se dispusesse a me
escutar. Já estava arrumada, tomando seu café em um copo de requeijão.
Naquela casa, eu era a única que usava xícaras para coisas quentes. Gabriel
dizia que eu era fresca, eu digo apenas que utilizo a louça de maneira
correta. — Não precisa me levar, obrigada.
Comecei suave. Ela franziu a testa.
— Não tem aula hoje?
— Tem. Mas... eu posso pegar um ônibus.
Regina demorou uma eternidade para dizer:
— Pra quê? De carro é mais confortável.
Certo. Ser suave não estava funcionando.
— Eu não quero ficar esperando horas, mãe — argumentei. Meu tom de
voz neutro. Minha fala parcimoniosa e passiva... — Eu chego cedo pra
caralho e...
— Camila. Que boca suja! — Travei.
Não havia notado que soltei um palavrão, e me senti imediatamente
culpada.
Acho que aquele foi o primeiro palavreado “chulo” que verbalizei (em
voz alta) perto dela. Teve efeito. Ela largou seu café, me encarando com
rigidez.
— Quero conhecer essa tal de Ana Clara. Você falou que ela é amiga de
Brenda?
Realmente, o palavrão era culpa de Ana Clara (e Jéssica), elas
embutiam um em cada sentença, e eu acabei pegando a mania, mas aquilo
era desnecessário. A forma como ela falou, com raspas de maledicência,
como se Ana fosse uma pessoa horrível porque falava palavrões (??), me
espetou. Ela sempre foi assim com Brenda, e eu sempre deixei. Ela foi
assim com Andy, e eu nunca a defendi...
Inspirei profundamente.
— Mãe — comecei, sentindo o calor da rebelião e da mágoa, mas me
esforçando para me manter respeitosa. — Por favor, não precisa me levar
hoje.
Regina descartou minha fala como quem descarta uma ideia
inconveniente, um incômodo temporário, uma farpa no dedo! Seu olhar
revelava que aquela reação não seria tolerada por muito tempo. Que ela a
desaprovava.
Quem ela achava que era para desaprovar algo?
— Camila, pare de besteira.
Eu, milagrosamente, não cedi.
— Mãe. Não.
— Por que não?
— Porque eu chego muito cedo!
— Você pode aproveitar pra estudar.
— Eu não consigo estudar na rua.
— Camila, você está saindo com algum garoto?
Hoje eu rio disso, porque ela não poderia estar mais errada. Mas, na
época, aquilo me cutucou lá no fundo.
— Não.
— Camila, você terminou com Henrique agorinha!
“Agorinha”.
Já fazia meses. E, se eu o conhecesse bem, sabia que já devia ter beijado
metade da faculdade naquele meio tempo (e eu o conhecia bem).
— Não tem garoto nenhum, mãe — insisti e, talvez, essa fosse a
primeira verdade que eu a contava em muito tempo.
— Então por que eu não posso te levar?
— Porque eu não quero.
Ela demorou a processar o que eu havia dito. Tanto que eu imaginei
que, pela primeira vez na vida, ela estivesse me escutando.
Não poderia estar mais enganada.
Ela pegou seu copo de café, bebendo o último gole antes de dizer:
— Vai se arrumar logo, Camila. Tenho que sair daqui a pouco.
Aquela situação não era tão grave assim. Francamente? Eu já havia
aguentado coisas muito piores. Só que eu me sentia diferente. Eu estava
vivenciando as consequências de ter me limitado por tanto tempo, lidando
com o fato de que meu mundo havia se expandido, desafrouxado e que eu
estava mudando.
Eu estive lotada, por todo esse tempo. E eu explodi.
— Não. Eu vou de Uber, mãe. E volto também. Não precisa me esperar,
tenho uma festa pra ir. — Então me coloquei de pé e trotei, dramaticamente,
em direção ao meu quarto.
Hoje, eu me sinto uma idiota narrando isso. Foi uma rebeldia besta, mas
enorme na ocasião. Aquilo era algo sério, foi a primeira vez que eu impus
minha vontade daquela maneira. A primeira vez que eu consegui falar o que
eu verdadeiramente queria.
Meu peito batia forte enquanto eu a escutava gritar para as minhas
costas:
— Festa? Que festa, Camila?
Não a expliquei. Eu me tranquei no quarto e fiquei lá até que ela fosse
obrigada a sair para trabalhar. Uma atitude infantil, eu sei. Amadureci um
pouco tarde.
Regina bateu algumas vezes, tentou me fazer sair com a voz mansa.
Não foi o suficiente. Eu estava borbulhando e ela atrasada.
— A gente conversa mais tarde.
Foi o que prometeu, e que me soou muito como uma ameaça. Não
gostei daquilo. Mas, para ser justa, eu não gostava de nada do que ela fazia
há um bom tempo.
Eu estava furiosa, e foi aquela briga boba que me trouxe ele. O
combustível, que eu precisava para mudar por completo a minha vida, havia
acabado de ser derramado, inteirinho, em cima de mim.
CAPÍTULO OITO. O COMEÇO
DA MELHOR NOITE DA
MINHA VIDA.
Graças à minha covardia e meu medo do mundo, eu sempre fui o tipo de
pessoa que evitava conflitos. Isso explica muitas coisas que aconteceram
comigo. Explica a minha fuga épica de qualquer fragmento de Andressa,
por exemplo. Assim como o fato de que a primeira vez que eu bati a porta
na cara da minha mãe, eu tinha dezoito anos de idade.
Ser uma boa garota tem seu preço, e eu o paguei naquele dia. O Uber foi
trinta reais.
Regina tinha certa razão ao dizer que estávamos gastando muito com
aquele meio de transporte, mas a solução que eu queria para aquilo não era
voltar a depender dela. Talvez eu tivesse mesmo sido contaminada pelas
minhas novas amizades, porque eu queria autonomia. Eu precisava disso.
Eu precisava... me encontrar. E passei o dia inteiro remoendo e mastigando
essa necessidade.
O sentimento de ter discutido com ela era parecido com o que as
mentiras me causavam. Doía, mas era uma reparação.
No fim, o que tivemos foi uma briga idiota, que não teria muitos
desdobramentos para Regina. A gente conversaria no dia seguinte, meu pai
seria incluído e se voluntaria para pagar o Uber (por que ninguém cogitava
a porcaria do ônibus?). Chegaríamos a um denominador em comum, algo
como um acordo, e minha mãe voltaria a viver sua vida como se nada
tivesse acontecido. Ela tinha muita facilidade em fazer aquilo. Eu não.
Para mim, aquela discussão foi o estopim de uma realidade
completamente nova. Uma na qual eu não me importava nem um pouco
com Uber, ônibus ou nada disso. Mas, antes que chegássemos nesse nível,
eu ainda estava puta com ela, assistindo emburrada, já fazia quarenta
minutos, minha segunda e última aula do dia. Anatomia.
Argh. Como Regina consegue ser tão irritante?
Argh. Como Anatomia consegue ser tão chato?
Argh. Como que o mundo consegue ser tão injusto?
Ana Clara não tinha reunião, nem aula, naquele dia, então não pisou na
faculdade tão cedo. Foi sorte sua, porque eu estava sendo uma péssima
companhia.
Eram três da tarde quando ela me mandou uma mensagem, dizendo que
chegaria com Jéssica às quatro. A festa estava marcada para começar às
seis. Até lá, ela me convidou para o que denominava de “esquenta”.
Eu ainda não estava familiarizada com o termo, e não sei se todos os
“esquentas” são assim, mas, para Ana Clara, aquilo significava se sentar em
literalmente qualquer lugar e beber. Minha aula acabou mais cedo naquele
dia, então eu aceitei participar. Sem a parte das bebidas, claro, só com as
companhias. Qualquer coisa que me fizesse esquecer minha mãe.
Minhas “madrinhas” estavam me esperando na porta do prédio quando
eu saí, carregando um casaco nos braços e uma faceta amarga.
Atrasei um pouco o início do esquenta de três pessoas. Eram quatro e
quinze quando Ana envolveu os braços ao redor do meu pescoço e disse:
— Se prepare, gatinha. Hoje vai ser a melhor noite da sua vida.
Ana Clara sempre exagerava, e eu raramente levava suas hipérboles a
sério. Mas, daquela vez, preciso confessar. Ela meio que acertou.

Não vou me estender muito nos momentos antes da festa porque: 1) eu


não me lembro bem, estava profundamente consumida pela raiva, e acho
que passei todo o tempo remoendo e 2) você não vai querer saber das horas
que passei sentada no cimento quando o que vinha depois envolvia
Andressa.
Sim, depois de dias distante, ela finalmente retornou para a minha vida.
Quando o relógio de pulso de Jéssica marcou cinco e vinte e quatro, elas
não tinham mais criatividade para o “esquenta”. A clareira de cimento a céu
aberto que encontramos começou a parecer monótona e mudamos de
cenário.
Jéssica nos levou para o seu prédio. A maior parte das aulas do período
integral já havia acabado e buscamos por uma sala na qual não haveria nada
no noturno para nos largarmos em cima das cadeiras. As minhas duas
companhias já estavam ligeiramente bêbadas naquele ponto, contudo,
mesmo assim, Jéssica saiu para comprar mais bebidas.
Haviam acabado com duas garrafas. Ana pediu mais três, então, seu
celular apitou. Estávamos só nós duas quando ela leu a mensagem,
cruzando suas pernas e dizendo:
— Dessa saiu da aula agora. Posso chamar ela pra vir pra cá ou corre o
risco de vocês se agarrarem na minha frente?
Eu estava com a cabeça deitada sobre a mesa, azeda e entediada. Tudo
aquilo foi para o espaço com aquela pergunta.
— Ana! — Eu me coloquei ereta de uma só vez.
Por mais que eu negasse, eu gostava quando ela fazia aquilo. Quando
sugeria coisas entre mim e Andressa. Eu sentia um frio na barriga aliciante.
E, apesar de meu rosto se tornar vermelho quase que instantaneamente, eu
sempre sorria. Até mesmo em momentos como aquele.
— Para com isso — pedi, sem convicção nenhuma.
Ana tomava o cuidado de guardar as piadinhas para os momentos em
que estávamos sozinhas, o que era um dos detalhes que sempre me fazia me
sentir segura ao seu lado.
— É uma pergunta séria — insistiu. — Chamo?
Dei de ombros.
— Pode chamar, se quiser.
— Você quer?
Boa pergunta.
Eu queria?
Não via Andressa desde a minha calourada fracassada, e parecia que já
haviam se passado alguns anos desde então.
As coisas estavam diferentes.
Por fora, eu era a mesma Camila. Olhos castanhos, cabelo em corte reto,
pernas flácidas. Por dentro, no entanto, sentia que me tornava alguém
diferente. Existia outra pessoa ali, que esperneava e queria sair. Uma pessoa
que eu começava a permitir que visse a luz do sol. Isso ficou evidente para
mim depois que eu contei a Brenda a verdade e, logo depois, briguei com a
minha mãe por causa da merda de um Uber. Isso ficou evidente quando eu
notei que ter sido sincera, naquelas duas situações, me levou até ali. Ao
instante em que eu estava parada em uma sala vazia com Ana Clara,
esperando para uma festa. Ao instante em que eu fazia uma coisa que eu
queria.
Tinha a minha resposta.
— Pode ser.
Então ela digitou alguma coisa no celular e eu não tive certeza do que
aconteceria até que a porta se abrisse e trouxesse Andressa.
Meu coração deu aquele saltinho idiota de sempre. Eu me ajeitei em
cima da cadeira, me arrependendo por ter estado tão irritada que não havia
me dado o trabalho de repassar o desodorante.
Caralho, será que eu estava fedendo? Será que eu estava... feia? Isso
me pareceu muito mais grave do que bater a porta na cara da minha mãe.
Muito mais grave do que Renan e Brenda me escondendo seus “estudos”.
Andressa sorriu assim que me viu e eu retribuí, sem nem notar.
Por algum motivo, minha vida e a dessa criatura deslumbrante
continuavam se esbarrando. Jéssica se tornou uma de suas melhores amigas
naquela universidade, enquanto Ana foi a minha. Insistíamos em
compartilhar pessoas e isso tornava todo o processo de evitar a avalanche
que me engolia quando estávamos próximas profundamente complicado.
No meu ponto de vista, isso é algo que eu passei a chamar de maldição
do armário. Ele estava cansado de mim (igual você, imagino) e queria me
arremessar para longe de qualquer jeito. Andy era a melhor das iscas.
Aquela semana foi intensa, mas não ache que eu me esqueci, por um
segundo sequer, da promessa de que ela estaria naquela festa. Eu não
premeditei nada do que aconteceu, mas ela sempre foi um dos motivos
pelos quais eu queria estar lá. Era difícil evitar a pessoa que você mais
queria por perto. E eu fugia dela, óbvio. Fiz isso por um ano, fiz isso
naquelas semanas inteiras, mas, no fundo (bem no fundo mesmo), todas as
vezes que eu virei as costas, eu meio que quis que ela corresse atrás de
mim.
Andressa adentrou a sala em silêncio, aproximando-se de nós e tendo
que tomar uma decisão. Uma que não a pareceu nem um pouco difícil.
Ana estava mais perto da porta, mas ela passou direto por ela, jogando
sua mochila na cadeira vazia ao meu lado. Demorou um tempo para se
ajeitar, remexendo-se e esparramando seu perfume. Ela ainda usava o
mesmo da nossa adolescência. Notar aquilo me agradou mais que metade
das coisas daquela semana.
— Cadê a Jeh? — Foi só quando ela se acomodou de vez que
perguntou.
Não a encarei, sentindo-me pressionada. Tudo que havia entre nós era o
braço da minha mesa (e a minha mãe).
— Foi comprar mais bebida — Ana a explicou. — Já começamos sem
você.
— Porra. Vou ter que correr atrás do prejuízo então — brincou. Em
seguida, se virou para mim. — E você, Mila? Vai beber alguma coisa? —
Sua pergunta saiu doce, quase tímida, e nossa, eu quase me esqueci do
quanto eu gostava de quando ela me chamava de Mila.
Depois de alguns meses namorando Henrique, fui obrigada a me
acostumar com o fato de que ele também preferia aquele apelido. Nunca foi
agradável de ouvir, no entanto. Sempre me fazia me lembrar dela. Mila
nunca pareceu lírico quando era ele que me chamava assim. Com Andy, era
diferente. Eu poderia passar horas escutando aquilo. Era desleal. Eu me
pergunto se ela sabia o poder que tinha sobre mim.
— Não.
Ela sorriu.
— Ok.
Às vezes, eu me esquecia de que ela não havia presenciado aquilo:
minha chegada ao mundo dos quase-jovem-adultos. Não que tivesse
perdido muita coisa. Meu aniversário de dezoito anos foi triste, bem no
meio da separação dos meus pais e com Brenda com catapora (sim,
catapora!). Além disso, a maioridade não me trouxe nada de novo. Eu
escutava as mesmas músicas, via os mesmos filmes e ainda mantinha as
mesmas convicções a respeito do álcool. As coisas estavam mudando aos
poucos.
Ficamos em silêncio e Andressa resolveu conferir as horas em seu
celular. Vi também. Eram cinco e quarenta, estava quase, e eu comecei a
sentir a adrenalina de estar fazendo algo “errado”.
Tá, eu realmente iria naquela festa. Eu realmente havia batido a porta
na cara da minha mãe. Eu realmente estava desobedecendo. Eu realmente
estava sentada ao lado de Andressa!
Como se sentisse que seu nome percorria as dobras do meu cérebro,
Andy bloqueou a tela e voltou seus olhos para mim, fazendo eu me
esquecer de tudo que eu pensava antes.
Se ser desobediente me trazia aqueles olhos, eu me perguntava porque
não tinha sido antes.
Aquela era a primeira vez que nos enxergávamos com calma depois de
um ano e ela o aproveitou como pôde. Seus olhos passearam pelo meu rosto
e eu me senti profundamente exposta.
Já havíamos vivenciado aquele momento do reconhecimento antes, mas
era óbvio que havia um tempero diferente daquela vez. Enxergar piercings
novos não me surpreendia. Enxergar aqueles olhos escuros muito menos.
Eu conhecia bastante do rosto de Andressa e, apesar de ele ter mudado um
pouco naquele tempo, ainda era o rosto dela. Aqueles braços tatuados, ainda
eram os seus, aqueles lábios desenhados ainda a pertenciam e aquelas mãos
esguias ainda eram as suas.
Refleti, desoladamente, sobre como suas unhas nunca deixaram de ser
curtas. Refleti sobre como eu as senti roçarem (sem querer) em mim, menos
vezes do que eu gostaria.
“A gente achava que era por causa de ressentimento que vocês ficavam
se evitando. Mas não é. É tesão”.
Eu me remexi de súbito. Andy sorriu.
— O que foi?
— Nada. — Pigarreei, nervosa. Ainda bem que as pessoas não podiam
ler mentes. Ainda bem mesmo. — Ia te perguntar a mesma coisa, na
verdade.
Ela deu de ombros.
— Nada também. Só estou feliz, que esteja aqui.
— Estamos! — gritou Ana, reforçando sua presença. E, sendo bastante
sincera, eu tinha mesmo me esquecido de que ela estava lá.
Ok, eu estava começando a perder o controle.
Andy nunca esteve tão próxima desde... bom, você sabe, e eu me
encontrava em um profundo grau de hipnose. Um ano depois e ela me
causava os mesmos efeitos.
“Você realmente quer passar o resto da sua vida sem ter
experimentado?”.
— Ih, escutem essa — anunciou Ana, me trazendo de volta para o
mundo real. — O DJ cancelou, mas parece que eles já arrumaram um novo.
Aposto que deve ser só uma caixa de som.
— Tá vendo o que acontece quando você não participa da organização?
— comentou Andressa, o que a fez estalar os dedos, orgulhosa.
— Né? É só deixar eles sozinhos que eles fazem merda.
Então mergulhou de novo no universo tecnológico em suas mãos e eu
me apressei em falar a primeira coisa que me veio à cabeça.
— Bom. Espero que com DJ ou não, a festa seja realmente boa.
Meu objetivo com aquilo era incluir Ana Clara em um assunto banal e
me esquivar daqueles pensamentos a respeito de Andressa. Para o meu azar,
no entanto, eu sempre escolhia as piores frases possíveis para quebrar o
desconforto. Andy se virou ainda mais na minha direção para dizer:
— Ah, não — riu. — Ana te vendeu essa festa como algo bom? Escuta,
Mila, deixa eu te preparar: essas festas da atlética são insalubres.
— Quê? — Escutei minha veterana rir. Andy deu de ombros.
— Mas você vai amar! — Ela me dirigiu um sorriso singelo e cheio de
reticências antes de completar: — Prometo.
Certo. Essa infeliz aprendeu com seus erros. Ela cumpriu com a
promessa daquela vez.
CAPÍTULO NOVE. APENAS
NATUREZA HUMANA...
Jéssica comprou bem mais que três garrafas de bebida. Ela chegou com
a mochila cheia e tivemos que dividir o peso para conseguir carregá-las até
o mesmo descampado que havíamos nos sentado mais cedo.
Já estava começando a escurecer e o local a ficar mais movimentado. O
turno da noite sempre parecia mais responsável, contudo, e elas se
aproveitaram daquilo para se sentar em roda e compartilhar o que quer que
fosse que estavam bebendo naquele dia.
Eu estava acanhada, mas estranhamente enérgica, enquanto elas
colocavam tudo para dentro. Descobri que era uma tradição das três, beber
antes de ir, porque as bebidas que vendiam nas festas eram mais caras e,
verdade seja dita, elas precisavam de um pouco de incentivo para estarem
lá.
Vou falar a minha opinião: sempre achei as festas de faculdade
superestimadas. Especialmente se você é como eu e as enfrenta sóbrio.
Insalubre era uma definição exagerada, mas não tão distante assim da
realidade. Não que eu não gostasse de ir. Eu gostava, pela companhia. O
ambiente, no entanto, era um pouco claustrofóbico. Naquele dia, por
exemplo, havia álcool e pessoas em todos os lugares que eu me dispunha a
olhar.
Elas beberam devagar, e chegamos uns trinta minutos depois das seis.
Ainda não estava cheio, mas o lugar era apertado o suficiente para causar
essa impressão. Um corredor a céu aberto, uma caixa de som (Ana estava
certa, o DJ foi substituído pela máquina, como todos nós seremos um dia) e
muitas pessoas. Eu já disse pessoas? Pois havia muitas. Ana agarrou minha
mão, formando uma corrente com o restante das meninas até que
achássemos uma clareira para nos estabelecer.
Tivemos sorte e ficamos em um ótimo lugar. Perto da caixa de som, e
das paredes.
Quando estacionamos, tocava uma música que eu não conhecia. Senti
meu peito bater mais rápido. Muito mais rápido. Eu me perguntava se
minha mãe já havia chegado em casa. Se já havia notado que eu falava sério
mais cedo. Se me odiaria por aquilo. Ana segurou minha mão.
— Dança comigo? — perguntou, sem esperar pela minha resposta para
começar a rebolar em cima de mim.
Não que ela precisasse disso para ter aquele tipo de atitude, mas vale
ressaltar que ela já estava extremamente bêbada naquele ponto.
— Ana. — Segurei sua cintura quando ela cambaleou de leve, virando
em minha direção com as bochechas coradas. — Acho que chega de
bebidas pra você.
— Ai, você é tão linda, Cami. — Ignorou por completo o que eu disse,
repetindo o que me falava com constância. Eu ameacei sorrir, então ela
envolveu o braço ao redor do meu pescoço, aproximando-se do meu ouvido
para dizer: — Dessa não para de olhar.
Aquela sugestão fez todos os pelos do meu corpo se arrepiarem.
Não tinha como eu saber daquilo por contra própria, uma vez que, desde
que saímos daquela sala vazia, eu estava evitando encará-la.
Não se engane, eu comecei a quebrar algumas barreiras, mas aquela
ainda era muito pesada e, definitivamente, não fazia parte das regras de
Brenda.
Eu queria beijar mulheres? Testar? Ótimo. Uma desconhecida e tchau.
Andressa não servia para isso, de forma alguma.
— Tá desconfortável? — Ainda pendurada em meu pescoço, Ana se
preocupou. — Se quiser ir embora me fala, tá bom?
Sorri fraco.
— Tá bom.
Por mais que eu estivesse profundamente desconfortável, eu não fui, e
ela se manteve grudada em mim, me forçando a me movimentar no ritmo.
Pouco a pouco, comecei a deixar evaporar, junto com o suor, as dezenas de
coisas que me assombravam, chegando a algo que se assemelhava com uma
dança.
A música trocou e foi ovacionada. Era mais animada. O tipo de funk
perfeito para se ouvir no almoço de família. Bem ao lado da minha mãe.
Continuamos a dançar.
Era engraçado como a realidade que eu estava vivendo era
completamente diferente da que eu estava acostumada. O terreno era
imparcial, diverso, divertido. Eu estava distante de todos que eu conhecia,
do mundo que eu conhecia, o que significava que eu poderia dançar aquela
música. Que eu poderia ser... quem eu quisesse ser. Que constatação
perigosa.
Mantive meu foco em Ana, evitando, a todo custo, esbarrar meus olhos
em Andressa.
Sei hoje, por relatos dela mesma, que tudo que fez, desde que chegou,
foi se manter estirada na parede ao lado de Jéssica. Dividiam as bebidas que
sobravam, e era preocupante que ela continuasse bebendo em silêncio
enquanto Ana me forçava a desfilar na sua frente.
Continuamos a dançar até que a música mudou. Ana Clara a reconheceu
nos primeiros segundos, dando um gritinho e apontando na direção de
Jéssica.
— Amor, amor! Olha o que tá tocando!
Jéssica sorriu.
— Sua música. Arrasa!
Então Ana começou a gritar as estrofes e eu fui meio que coagida a fitar
Andy.
Que erro... ela me encarava de volta.
Seus olhos eram duas bolas de fogo. Eu não sabia o que se passava pela
sua cabeça, mas havia um sorriso pousado no canto de seu rosto.
Você já entendeu que quando ela bebia, ela se tornava ainda mais
sorridente e... adepta ao toque físico, não?
Desviei meu olhar, o que não foi o suficiente. Eu sentia que estava
sendo observada.
Continuamos a dançar.
Ana agarrou meu braço e cantou alto, dividindo o refrão com uma
garota que estava ao nosso lado. Sem que eu notasse, nossos grupos haviam
mesclado, e formamos algo como uma roda. Felizmente, eu fiquei bem
distante de Andressa nessa nova disposição. Infelizmente, isso durou pouco.
Quando a música adorada por Ana Clara acabou, ela pousou a mão no
meu ombro e gritou, ofegante:
— Cami. Eu vou ao banheiro, tá bom?
Assenti, então ela virou as costas.
— Espera. — Eu a segurei. — Você vai sozinha?
— Uhum.
Óbvio que aquilo não ia acontecer. Eu não ia deixar uma garota bêbada
andando por um campus escuro, sozinha.
Inspirei profundamente antes de guiá-la, contra a minha vontade, na
direção da sua namorada. E Andressa.
— Gente — anunciei, sentindo o forte cheiro de bebida que exalava de
onde elas haviam criado raízes. Mantive meu olhar fixo em Jéssica. — Ana
quer ir ao banheiro, eu...
— Deixa que eu cuido dessa criatura.
Minha intenção era me oferecer para levá-la, só que sua namorada foi
mais rápida.
Aproximou-se de Ana e a puxou pela cintura. Instantaneamente, a
“criatura” envolveu os braços ao redor de seu pescoço, em uma postura
ligeiramente possessiva. Ficou mais do que claro com quem ela preferia ir.
Eu não tive nem como argumentar.
— Por favor, cuide sim — miou, então elas nos pouparam do resto da
cena ao se afastarem.
Até hoje não sei se fizeram de propósito, mas o ambiente pareceu bem
mais sufocante quando eu fui abandonada sozinha com Andressa.
Sozinha era modo de falar, óbvio, havia dezenas de pessoas ao nosso
redor. Só que isso nunca importou quando eu estava perto dela.
— Ei, Mila. Desculpa se é estranho, mas eu posso te perguntar uma
coisa? — questionou Andy, segundos depois que fomos abandonadas. Era
evidente que ela estava esperando uma oportunidade para me abordar desde
que saímos daquela sala. Eu tentei adiar pelo máximo de tempo que
consegui. — O que tá havendo?
Preciso confessar que aquilo não era o que eu estava esperando. Foi
surpreendente o suficiente para me obrigar a encará-la.
— Quê? Como assim?
Ela deu de ombros.
A blusa que usava era preta e curta. Metade de sua barriga estava para
fora e metade de mim também.
Eu estava fazendo um péssimo trabalho em esconder que a estava
evitando; e outro pior ainda em omitir que estava preocupada com o que
havia acontecido com a minha mãe.
— Eu não sei. Você parece... irritada com alguma coisa. — A música
alta atrapalhava um pouco todo o lance de dialogar, mas ela não parecia se
importar com aquilo.
— De onde você tirou isso? — Eu me coloquei na defensiva, o que não
foi tão bom assim para a minha causa. Ela suspirou.
— Não faço a menor ideia, Camila. Só parece que... aconteceu alguma
coisa. — Sua expressão era séria, quase desconfiada. — Você tá... bem?
Bem definitivamente não seria a palavra que eu usaria para me definir
naquele momento da minha vida.
— Tô. Só tô um pouco deslocada.
— Mesmo? — Assenti fraco. — Tem certeza que é só isso?
— Tenho. — Como eu sabia que ela não acreditaria naquilo, emendei:
— E eu também tô sóbria, caso tenha se esquecido.
Assim como ela sabia que provocações funcionavam comigo, eu sabia
que sarcasmo funcionava com ela.
— Ah. — Consegui trazer seu sorriso de volta. — Esse erro eu nunca
cometo.
Balançou seu copo e tomou outro gole.
Seu cérebro embriagado aceitou minha desculpa com facilidade, e esse
era um dos motivos pelos quais eu amava a Andressa bêbada. Ela era
menos insistente. Em contrapartida, se tornava muito... como colocar isso
em palavras sem soar agressivo?
Cafajeste.
É, cafajeste é um bom termo.
— Sabe, Mila — recomeçou, depois de alguns bons segundos em
silêncio, delineando a borda de seu copo com um de seus dedos. Sim, eu
notei aquilo. Sim, eu fiquei encarando, por mais tempo do que deveria. —
Eu tava aqui refletindo sobre como você nunca me contou qual você
escolheria.
— Como assim?
Sorriu.
— Capitão América ou Homem de Ferro.
Pois é. É perigoso compartilhar memórias positivas com alguém, porque
a nostalgia é algo extasiante.
Preciso confessar que eu ainda tinha o DVD que ela me deu no meu
aniversário de dezessete anos. Ele e o embrulho de presente. Era uma das
únicas coisas que eu jamais havia movido de lugar. Nem pretendia. Até
hoje, nunca o fiz.
Senti meu peito dobrar um pouquinho mais. Vinha fazendo origamis
com ele desde que minha vida virou de ponta cabeça. De dobra em dobra,
eu ia me tornando menor, na esperança de alcançar uma silhueta inteira de
algo que eu desconhecia. Suspirei antes de retrucar:
— Você também nunca me contou qual você escolheria.
Ela deu de ombros.
— Acho que não tivemos oportunidade. Deu meio que tudo errado com
a nossa quase amizade sazonal. — A forma como ela disse aquilo foi tão
melodramática que até eu, a rainha do drama, me senti tentada a ironizar.
— Meu Deus, Andressa! — exclamei, sem conseguir guardar meu
sorriso. Ela retribuiu.
Sempre foi e sempre será assim com a gente. Nossa forma geométrica é
um círculo. E quer saber uma curiosidade sobre eles? Círculo não têm
começo, nem fim. Qualquer ponto é equidistante do centro. Eles são
infinitos, contínuos, sem interrupções. Pelo menos, deveriam ser.
— Você realmente decorou esse termo?
Voltar ao passado, contra todas as expectativas, era um sentimento
agridoce.
— Claro que sim. Não é sempre que você é colocada em uma categoria
como essa.
— Cacete! Para com isso.
Jogou suas costas na parede antes de completar:
— Você xinga agora? — Ser pega no flagra por ela era um sentimento
completamente diferente do que ser pega no flagra pela minha mãe. Era
instigante.
Ela estava tão bonita com aquela camiseta que eu tenho certeza que
todo mundo naquela festa já havia se apaixonado por ela no mínimo uma
dúzia de vezes.
— Me diz: tem mais alguma coisa nova que devo aprender sobre você?
Dei de ombros, me sentindo, repentinamente, um pouco menos sóbria.
— Algumas.
Ela assentiu lentamente antes de completar:
— Ok. Quando pretende me mostrar?
Andressa tinha uma facilidade absurda em brincar com as palavras. Ela
sabia deslizar entre significados, inflamar nas entrelinhas, sem nunca
afirmar nada. Não explicitamente. Não com todas as letras. Ela sabia
transformar o diálogo em um jogo de insinuações e, de certa forma, aquilo
era muito mais efetivo.
Meu. Deus.
Não tinha mesmo como eu continuar ali sem fazer alguma besteira.
Engoli em seco, sentindo o pânico me consumir.
— Preciso... ir ao banheiro. — Foi a minha vez de pegá-la
desprevenida.
— Oi?
— Ba-nhei-ro — repeti, pausadamente, mas não com calma. Não havia
nada calmo dentro de mim. — Vou atrás delas.
Andy notou que havia me espantado tarde demais.
— Mila... Espera.
Não esperei. Pelo contrário, apressei meus passos, tentando me
camuflar no meio daquele bando de gente e me afastar o máximo possível.
Meu peito batia desgovernado. Eu me sentia ofegante. Eu me sentia
eletrizada.
As coisas escalaram rapidamente e eu entrei em pânico. Pânico de
verdade.
Claro que eu me lembrei da minha mãe chorando e da cicatriz escarlate
que aquilo causou em mim. Claro que eu me lembrei do meu medo, e então
o medo se transformou em raiva, e em culpa, e em vergonha, e em...
— Ai. Me desculpa! — Antes que eu fosse sugada pelo espiral de
autodestruição de sempre, recebi um esbarrão completamente aleatório e
desgovernado de um garoto sem camisa.
Ele saltava animado (e embriagado até a raiz dos cabelos), para todos os
cantos, e eu estava tão engolida pela tempestade que não o vi. Entrei direto
na reta dos seus pulos em revés, quase sendo nocauteada pelos seus
cotovelos.
Desequilibrei de leve, mas a pior parte não era essa. A pior parte era que
ele estava saltando com a droga de uma lata de cerveja em mãos e,
obviamente, derrubou grande parte dela em cima de mim.
— Seu idiota! — Escutei alguém exclamar. Ele foi empurrado para
longe e então uma garota muito alta, com os cabelos muito pretos e os olhos
de um castanho intenso surgiu na minha frente. — Você se machucou?
Pigarrei, raciocinando aos poucos e notando que havia cerveja
escorrendo por todo o meu braço direito.
Puta que pariu. As coisas só pioravam.
Quis simplesmente me encolher e começar a chorar, ao som de
Ludmila.
— Não... eu...
— Aqui. — Tomou as rédeas e puxou a manga do casaco rosa que tinha
amarrado na cintura, estendendo-a na minha direção. — Posso te ajudar
com isso? — perguntou, tentando vencer a música com a sua voz.
Isso, supus, era a cerveja que escorria.
Humilhada e sem escolha, assenti, então ela arrastou com delicadeza o
tecido pelo meu braço e eu enrijeci com o seu toque.
Não era para existir, mas havia certa tensão ali. Nos seus olhos, no seu
rosto, nos seus cabelos trançados. Não era uma tensão descarada ou
indecente. Não era nem um pouco incisiva, mas me deixou paralisada.
Acho que era o ambiente, os acontecimentos, Andressa. Ela me deixava
daquela maneira. Ela me deixava na beira do precipício, pronta para pular.
Daquela vez, no entanto, não era ela quem estava segurando a rede lá
embaixo.
A desconhecida carregava, ela mesma, uma lata de cerveja em uma das
mãos, além de uma tatuagem enorme de sereia em seu antebraço. Negra de
pele retinta, tinha os lábios grossos, a voz mansa e usava uma calça jeans
clara.
— Que bagunça! — exclamou, soltando um sorrisinho contido.
Eu retribuí o sorriso; em seguida, inspirei profundamente, encarando o
ambiente ao meu redor.
De maneira inconsciente, tracei uma reta e fui parar na outra ponta da
festa, perigosamente distante de qualquer conhecida. Espiei por cima de
alguns ombros. Nenhum sinal de Andressa.
— Pronto — anunciou a garota, afastando seus dedos de mim e
encarando seu trabalho com orgulho. — Acho que deu pra salvar um pouco.
Molhou um tantinho da sua blusa, nada demais. Muito bonita, aliás. — Deu
de ombros. — Não a blusa.
Quê?
Levou a lata à boca e bebeu um gole sem tirar os olhos de mim. Sua
atenção era predatória.
Ah.
Então a tensão que eu sentia não era coisa da minha cabeça. Aquela
estranha estava dando em cima de mim; e aquele era, sinceramente, o pior
momento para aquilo. Eu me sentia um tornado. Eu me sentia entupida. Eu
me sentia... tentada.
— Obrigada — consegui dizer. Ela sorriu.
— Desculpa por ele, quando bebe se transforma em um idiota. — Deu
um passo minúsculo em minha direção. — Mas, me conta, você é de que
curso?
— Psicologia.
— Quê?
— Psicologia — repeti. Ela balançou a cabeça.
— Não tô te ouvindo muito bem...
Ela tinha lábia, você precisa concordar com isso. Afinal, aquilo era uma
grande mentira. No ponto onde estava, a música não soava tão alta assim.
— Qual curso?
Insistiu, se aproximando mais.
Mais um passo.
Meu peito parou de bater.
— Psicologia — respondi, pela terceira vez, sendo obrigada a sorrir
quando ela franziu sua testa.
— Que barulheira aqui, não? — disse, enquanto apoiava uma das mãos
no meu ombro. Senti seu toque e me arrepiei, mas não fiz absolutamente
nada para afastá-la. Foi o sinal que ela precisava.
Dizem que quando você está prestes a morrer, a sua vida inteira passa
na sua frente. Talvez isso signifique que aquela experiência foi uma quase
morte para mim. Ou a morte de uma parte minha.
Eu vi tudo correr na minha frente, como um filme em acelerado, então
puxei o controle das mãos de quem quer que estivesse fazendo aquela
tortura comigo e desliguei.
Estava no outro extremo da festa universitária, ninguém me conhecia
ali. Ninguém me veria, ou seria capaz de me reconhecer. Eu era padrão o
suficiente para ser confundida com outras dezenas de garotas.
Aquela era a oportunidade perfeita. Era a minha chance. Quem sabe
quando eu teria outra?
Não fiz nada para convencê-la do contrário, então a desconhecida
chegou mais perto. Tão perto que eu senti o calor de seu hálito. Tinha um
leve cheiro de hortelã, misturado com muita cerveja. Ou então aquilo era
minha culpa. Nunca vou saber. Especialmente porque ela foi rápida.
— Repete só mais uma vez — pediu, mesmo que eu jamais tenha tido a
oportunidade de repetir.
Ela colou sua boca na minha com uma leveza que eu nunca havia
experimentado antes.
Era alta, e eu tive que ficar na ponta do pé. Nada muito grave. Nada que
tenha atrapalhado a minha experiência. Pelo contrário. Foi um caminho
natural que eu entrelaçasse meu braço em seu pescoço, natural quando ela
escorregou sua língua para dentro da minha boca e mais natural ainda
quando eu retribuí.
Eu achei que fosse me parecer mais esquisito o fato de que não havia
pelo facial, ou um peitoral menos “preenchido”. Porém, não. Era tão bom
quanto.
Eu nunca havia feito uma coisa dessas, nem mesmo com homens. Beijar
alguém que eu não sabia o nome era todo um terreno novo para mim. Beijar
a primeira garota da minha vida porque eu estava fugindo de Andressa e
tomei um banho de cerveja no processo definitivamente não fazia parte da
minha rotina. Depois que ela se separou de mim, contudo, percebi que
poderia sim se encaixar, em algum cantinho. Percebi que eu estava sorrindo.
Ela quis saber:
— Qual seu nome?
Sentia que meu rosto estava quente.
Uma desconhecida. Um beijo.
— Desculpa. Eu... tenho que ir.
Ela assentiu, entendendo a deixa. A cerveja ainda continuava intacta em
sua mão.
— Tá certo. Liberada então. — Esfregou o polegar ao lado dos seus
lábios antes de dizer. — Prazer em te conhecer.
— Prazer. Também. Muito. Por tudo. Obrigada.
Falei tudo embolado e fora de ordem antes de sair cambaleando para
longe. Minha respiração estava entrecortada e eu via o mundo girando em
câmera lenta.
Basicamente corri para longe daquela muvuca, puxando meu celular do
meu bolso (felizmente, eu era uma viciada que nunca se separava dele) e
me afastando o suficiente para escutar o “pi, pi, pi” da linha.
Chamou duas vezes antes que ela atendesse.
— Alô?
— Brenda?! — gritei, como se minha vida dependesse disso.
— Oi. Oi, Cami, nossa! Ta um barulhão ai. Onde você tá?
— Tô numa festa.
— Quê? Que festa?
Passei o dia inteiro sem falar com ela, então ela não fazia ideia de que
em menos de doze horas eu havia discutido com a minha mãe, ido para uma
festa universitária e, depois, assinado a minha sentença.
— Na faculdade.
— E tá tudo bem? Você tá sozinha?
— Não, a Andressa, Ana e Jéssica estão aqui. Eu... Brenda, eu acabei de
beijar uma garota.
Foi só quando eu verbalizei aquilo que a ficha caiu.
Senti o mundo girar.
Jesus Cristo. Eu havia beijado uma mulher.
Socorro!?
A adrenalina se misturava com a culpa que se misturava com a
vergonha que se misturava com a euforia. Acima de tudo, no entanto, havia
algo muito perigoso correndo nas minhas veias. Coragem.
— O quê? — Sua voz afinou. — Espera. Que garota? — Apressou-se.
— De que garota estamos falando?
— Uma desconhecida — arrisquei, receosa. — Você me disse para
beijar uma estranha...
— É. Uma estranha — corrigiu-se rápido, ao notar que eu havia me
acovardado. Minhas emoções estavam todas misturadas. Eu estava no mais
profundo e completo estado de choque. — Perfeito. Isso mesmo! E como
foi?
Fiquei alguns segundos refletindo a respeito. As implicações daquilo
martelando na minha nuca. Eu não tinha mais como mentir. As últimas
desculpas que inventei para me manter distante da verdade foram enfiadas
nos confins da Terra depois que eu provei os lábios de uma mulher e senti
como se tivéssemos alcançado a paz mundial. Sem conflitos. Sem guerras.
Quem poderia pensar em armas quando havia bocas como aquela para se
beijar? Eu gostei de beijar aquela garota. Tanto quanto eu gostava de beijar
garotos.
— Bom? — arrisquei, me arrependendo assim que ouviu seu gritinho
animado. — Bre...
— Calma, Camila Ferraz. Não surte ainda. Aproveite.
— Aproveitar o quê?
— Me escuta com muita atenção. Tá me ouvindo bem, né?
— Tô.
— Sabe o que você vai fazer agora? Nesse instante.
— O quê?
— Você vai voltar pra aquela festa, aproveitar essa adrenalina e beijar
a garota que você realmente quer beijar.
Fiquei alguns bons segundos em silêncio depois daquilo.
— Bre... eu... — Suspirei. — Não sei se ela ainda quer. A gente não
conversa direito faz um ano.
— Você acredita em mim, não acredita?
— Claro que sim.
— Então vai lá e beija ela, porque ela quer.
Meu peito batia na velocidade de uma britadeira. Eu sentia a palpitação
como cutucões, na capinha do meu celular. Minha mão estava tão suada.
É isso, eu não tinha mais escusas. Não tinha mais para onde correr. Mais
de duzentas páginas, acho que é o suficiente.
— Brenda...
— Sem pensar, Camila. Vai logo!
Essa foi a última orientação que me passou. Depois disso, desligou o
celular. Tinha confiança o suficiente em seu regime para não precisar falar
duas vezes.
Coloquei meu telefone no bolso e voltei para a festa.
CAPÍTULO DEZ. DANE-SE O
CAPITÃO AMÉRICA.
A multidão é um borrão na minha mente, assim como grande parte do
caminho refeito naquela noite.
Não fazia a menor ideia de para onde estava indo quando me inseri
novamente naquele mar de pessoas. Minha orientação espacial era patética.
No banco do carona, eu era capaz de errar caminhos com o GPS em mãos.
Obviamente, não conseguiria reencontrar com a garota que abandonei
covardemente no meio de tantas outras. Obviamente, me perdi, e passei
algo próximo a dez minutos andando em círculos.
Estava tão nervosa, que minha pálpebra palpitava, e eu nem me
preocupei com o fato de que estava vagando sozinha na minha primeira
festa universitária. Que relevância tinha aquilo quando eu havia acabado de
beijar uma mulher? Quando Brenda havia me dado uma missão impossível
logo depois? Uma missão que, aparentemente, eu estava pensando em
realizar.
Procurei por todos os cantos. Por todas as paredes cheias de casais. Por
todos os grupos dançantes. Por todos os sorrisos. Sem sucesso.
Imaginei que aquilo pudesse ser um sinal, uma oportunidade para não ir
tão longe. Mas, se tivesse sido, acho que teria durado mais tempo, porque
eu ainda tinha bastante adrenalina acumulada quando aqueles fios de
cabelos escuros pularam na minha vista.
Ela carregava quatro mochilas nos ombros, além de uma garrafa
abraçada, como um recém-nascido. Vagava, assim como eu, sozinha e com
dificuldade, tendo que pedir licença para passar com sua tonelada de
bagagens. Não pensei muito antes de gritar:
— Andy?
O chamado alto certamente chegou aos seus ouvidos. Ela desviou o
olhar, tentando encontrar sua origem, sem sucesso. Dei uma corridinha
idiota, pedindo licença a um sujeito para me aproximar.
— Andy! — tentei de novo e, dessa vez, ela acertou a direção.
Nossos olhos trombaram e eu senti meu lábio secar.
Ainda não havia me acostumado com aquela versão nova de Andressa.
Parecia ainda mais confiante, mais ousada, mais bonita. Seus dois piercings
me perseguiram enquanto ela trotava em minha direção. Tudo nela era
ritmado e profundamente intimidador.
Seria mais simples se eu tivesse me aproximado. Ela enfrentou uma
maratona para conseguir chegar perto de mim, com todas aquelas coisas nas
costas. Entretanto, em minha defesa, ela era a atleta. Ela tinha o gene da
persistência. Eu acredito que certas coisas podem ser adquiridas, mas
também acredito em talento natural. Era isso que ela tinha, enquanto eu, não
conseguia mexer um músculo.
— Oi — foi o máximo que eu me dispus fazer, assim que ela despencou
na minha frente.
— Mila, porra! — esbravejou. — Cacete. Eu tava preocupada.
Primeiro, teve seu momento de surto, depois, inspirou profundamente,
afrouxando seus olhos e segurando de leve meu pulso. Uma garantia.
— Onde elas estão?
— Elas quem?
Andressa me encarou como se eu estivesse maluca. E eu estava mesmo.
Insana. O nervosismo me fazia suar. Sequer me ofereci para pegar a minha
mochila de volta. Deixei que ela carregasse tudo. Inclusive minha sanidade.
— Ana e Jéssica.
— Ah.
Foi aí que eu lembrei que havia dito que ia me encontrar com elas.
Pois bem, Andy, como te contar isso? Eu desviei um pouco a rota.
— Não faço a menor ideia — admiti. — Escuta. Será que a gente
pode... conversar? Um instantinho.
A música cuspiu um grave no instante exato.
— Quê?
Era um sinal. Tinha que ser. Andressa me encarava com aquele par de
olhos de jabuticaba. Seu rosto era uma escultura. Ela era... demais. Murchei
de leve.
— Deixa pra lá.
— Quê?
— Deixa. Pra. Lá — gritei. Ela perdeu a paciência.
— Mila, pera aí. Eu não tô ouvindo nada. Vem cá. — Aproveitou que
seus dedos envolviam meu pulso e me carregou junto a si enquanto abria
caminho em meio à multidão.
Eu não tive forças para lutar contra.
Sentia que era guiada para o abatedouro, mas era só o prédio de
Estatística. Lá, estava quase silencioso. Só eu, ela, o eco da música e da
festa à nossa direita.
A lua estava cheia, lembro-me disso com uma clareza inacreditável,
assim como me lembro de como foi sentir os dedos de Andressa
escorregarem para longe do meu pulso. A falta que eu senti de seu toque era
quase doentia.
— Pronto — disse, desdobrando-se para apoiar aquela quantidade
absurda de mochilas (e garrafa) aos nossos pés.
Ana e Jéssica também sumiram, abandonando-a sozinha com todos os
nossos pertences.
— Pode falar — pediu, e eu a encarei.
Ah é, eu disse que queria falar com ela. Só que eu não tinha nada para
falar!
Ok, tá. Eu sei. Tinham muitas coisas que precisávamos conversar,
nenhuma das quais eu queria abordar naquele instante, contudo.
Na verdade, com Andressa parada a centímetros de mim, eu não queria
abordar mais nada.
Perdi todos os respingos de coragem que tinha quando me peguei
paralisada na lateral de um prédio com aquela tentação em calças largas na
minha frente.
Deus. O que eu estava pensando?
Aquela garota não era como a desconhecida. Ela era tudo que eu
pensava, todos aqueles meses. Ela havia sido o início de tudo e, se um dia
eu já senti a vontade de beijá-la como uma necessidade fisiológica, o tempo
afastada havia transformado aquilo em algo maior. Uma questão de vida ou
morte. Era tão intenso quanto respirar. Eu me assustava querer alguém tanto
assim. Assustava que esse alguém fosse ela.
— Eu esqueci.
Ela franziu a testa.
Conseguia enxergar o suficiente do seu rosto para notar que estava
verdadeiramente desorientada (não a culpo).
Havia postes de luzes próximos e algumas salas estavam acesas, nada
muito incipiente. A penumbra era convidativa, uma meia luz programada.
Como se tivessem montado um palco para aquele momento.
— Camila, você bebeu? — perguntou, me analisando. — Você tá
cheirando a cerveja.
Ela não estava acompanhando a montanha-russa que eu nos obrigava a
embarcar, dificultando algo que era tão simples. Era só um beijo, mas eu
sentia como se fosse a porra de um meteoro, prestes a despencar em cima
do meu dedo mindinho.
Dei de ombros.
— Longa história. Eu tava caminhando, até que esbarrei em um cara e
ele derramou metade da lata dele em cima de mim. Depois, eu... — fiz uma
pausa. — Eu só... — Inspirei profundamente. — Acho que devíamos
procurar as meninas...
— Camila. Espera. — Dessa vez, ela conseguiu se colocar na minha
frente antes que eu saísse correndo.
Travei, com nada além de dois palmos separando o que deveria ser o
meu rosto e o dela. Algo como uma nuvem de energia salpicou no espaço,
descendo direto pela minha garganta e fazendo metade do meu corpo suar.
Ela me encarou sem nem piscar. Não usava nenhuma maquiagem
naquele dia, porém, as linhas que barravam suas írises pareciam mais
expressivas. Era fácil enxergar a desvergonha que a consumia. Aquela era a
cena depois do pause. No roteiro, não havia mais espaço para fugas.
Ela me cercou sem me tocar, então deixou que seus olhos pendessem
em direção à minha boca.
“Vai lá e beija ela, porque ela quer”.
Um suspiro separou o momento em que ela manteve os braços
inofensivamente ao lado do seu corpo e o que ela levou uma de suas mãos
ao meu rosto, friccionando delicadamente o dedão na pele ao lado dos meus
lábios.
— Tem batom na sua boca — disse, sem sorrir. As vezes em que
Andressa não sorria eram perigosas. Potencialmente assassinas. A partir
dali, hiperventilar passou a ser a única forma de levar algum volume de
oxigênio ao meu pulmão. — E eu não acho que seja seu.
— Quê?! — Arregalei meus olhos, sentindo quando o rubor tomou
conta do meu rosto.
Levei todos os meus dedos à minha boca, limpando o que eu não via,
mas que havia me entregado.
Minha reação a fez rir. Ou então foi toda aquela situação idiota. Não sei.
Tudo que sei é que, depois que eu me banhei em vergonha e desespero,
Andressa recolheu seu braço, insistindo:
— O que você queria falar comigo?
— Eu esqueci.
— Esqueceu?
— Completamente.
Ela assentiu, nada convencida, mantendo o olhar fixo no meu rosto.
Meu Deus, eu era uma ingrata! A pessoa mais atraente do planeta Terra
havia acabado de escorregar seu dedo pelo meu rosto e eu cogitava fugir e
chorar. Eu me sentia como uma criança que corre de um saco de presentes.
— Tem certeza? — foi sua última tentativa. De alguma forma, eu sabia
daquilo. Sabia que ela estava começando a se convencer que eu não queria
nada com ela e não suportei aquela ideia. Não suportei mesmo.
— Não — confessei, tão baixo que a noite quase levou.
Quase.
Felizmente, ela ouviu, e deu um passo em minha direção.
Um palmo então. Era apenas isso que havia entre a gente. Nada mais
que um sopro. Nada mais que um ano completo.
— Andy...
— Camila — me interrompeu, e sua voz soou grave. Seu
comportamento era grave. Eu conseguia sentir o desejo, como se ele tivesse
uma fragrância. Era compatível, familiar, era o cheiro dela. A direção dos
seus olhos era sacana. Sentia a eletricidade de suas mãos, quase rapando em
minha coxa. — Vou ser sincera e clara, porque isso deixou de ser novidade
há muito tempo. Eu quero muito beijar você, nesse exato momento. — Sua
facilidade em confessar aquilo era como uma injeção de luxúria.
Um suspiro ficou preso na ponta da minha garganta. Eu passei a sentir
calor. Calor para um caralho.
— Só que eu preciso que você seja sincera comigo também —
continuou, em um tom que mediava o sussurro e o berro. — Você quer que
eu me afaste? — Eu não tinha raciocínio. Fiquei estagnada. Dezenas de
coisas colidiram em mim, me tornando muda. — Camila?
Não! Não não não não não não.
Eu não disse nada. Ela suspirou.
— Mila, desculpa, eu...
— Não.
Se alguém além de você me perguntasse o que aconteceu naquele
instante, eu diria que foi um escorregão. Mas que escorregão era esse, tão
arquitetado?
Um segundo de coragem. É só isso que é necessário para mudar a sua
vida inteira.
Engraçado como esse tipo de coisa funciona. Como somos literalmente
capazes de fazer o que quisermos. É só... fazer. Acho que eu nunca tinha
percebido isso antes daquele dia.
Depois que eu arremessei meu “não” no minúsculo vale entre nós duas,
Andy esperou alguns segundos, para que eu tivesse tempo de me arrepender
e sair correndo, como sempre fazia. E eu vou ser sincera com você, eu me
arrependia de muitas coisas. Eu me arrependia por ter gritado com a minha
mãe mais cedo, me arrependia por ter sido uma péssima namorada para
Henrique, me arrependia por nunca a ter defendido, me arrependia por ter
pintado minha unha de bege (cor péssima, nunca mais), mas nunca daquilo.
Nunca dela.
Fitei-a.
— Não. — Nem eu reconhecia a certeza que havia na minha voz. — Eu
não quero que você se afaste. — Suspirei. — Por favor.
Existem alguns compostos químicos que aproximados promovem uma
série de reações em cadeia, com reações violentas, ou até mesmo explosões.
É meio que inevitável e instantâneo. Eles não têm culpa, é como as coisas
são. Acho que você já sabe o que eu vou falar a seguir: Andy e eu éramos
exatamente como sódio e água. Ela me tocou e eu entrei em combustão.
Sua pressa era irmã da minha. Só foi preciso um sinal verde (capenga) e
ela avançou, segurando meu pescoço e me puxando até sua boca.
Senti o calor de sua pele se misturar à minha, embolando-se em todo o
novelo de sentimentos.
Não sei onde coloquei minha mão, ou a minha vergonha. Quando vi, ela
estava me empurrando em direção à parede, e eu adorei viver aquela
fatídica situação com ela.
Esbarrei as costas no concreto, sentindo cada pedaço seu se juntar a
mim. Seu peito, sua barriga, suas coxas. Sua mão em meu pescoço, tão
certeira. Tudo nela era macio e quente. Ela sorriu fraco antes de deslizar sua
língua para dentro da minha boca e eu simplesmente derreti.
Não conseguiria lutar a partir daquele ponto. Andressa poderia fazer o
que quisesse comigo. Aquele prédio poderia cair nas nossas cabeças, e eu
ainda faria meu máximo para manter suas mãos em mim.
Sentia borbulhas em lugares que eu nem sabia que existiam. Eu me
esqueci do preço do dólar, do que Freud falaria dos degraus que me levaram
a esse ponto, me esqueci de todo o resto do mundo. Meu universo tinha um
metro e setenta e, sem ele, eu não conseguiria mais me manter de pé.
Demorei um pouco para entender as normas em um beijo com uma
garota. Ainda era novidade para mim, segurar em uma cintura, mas eu não
tive outra escolha, e notei que não ter escolha era foda pra caralho!
Arrastei minha unha em sua pele exposta e ela gostou, me prensando
ainda mais contra aquele prédio. O atrito de nós duas era capaz de gerar
faíscas. Minha pulsação acelerada nocauteava seu peito enquanto ela
explorava cada pedacinho de mim. Mordiscou meu lábio antes de
abandonar minha boca, brincando com o seu toque e espalhando
eletricidade por todo o meu corpo. A puxei para mais perto e ela pousou um
beijo no meu pescoço, outro no meu queixo, outro no pé da minha orelha.
Tudo antes de atingir, com ainda mais veemência, a minha boca.
Eu arfei.
Caralho, que indecência!
Não a fiz parar.
Tudo que foi aprisionado por todos aqueles anos estava sendo
derramado e eu a permiti lamber. Cada. Gota. Até que perdesse o fôlego,
arrastando seus dedos até meu queixo e separando nossas bocas.
Andressa tinha muito gosto de vodca naquele dia. Infelizmente, eu teria
que testar seu beijo outras vezes para ter certeza que tudo que ela me fez
sentir não era, sei lá, efeito de todo aquele álcool.
— Homem de Ferro — soltou, aleatoriamente, com um sorriso
encantador em seu rosto.
Suas bochechas estavam levemente coradas. Ela estava ofegante. Eu
também estava. E confusa. E completamente descabelada.
— Quê?
Continuou sorrindo, apoiando ambas as mãos em minhas bochechas e
segurando meu rosto como quem segura uma bola de cristal. Seus toques se
tornaram subitamente suaves. Eu sinceramente não sabia de qual eu gostava
mais.
— Minha escolha, é homem de ferro — explicou. — O Capitão
América é tipo o pior de todos os heróis.
Sim, foi aquilo que Andressa falou depois do nosso primeiro beijo. E,
contra todas as expectativas, eu comecei a rir. Sentia uma leveza tão
profunda que agradeci por ela manter seus dedos em mim. Tinha medo de
que, se me soltasse, eu pudesse sair voando. Como aquele padre dos balões.
Só que sem o padre.
— Nossa, eu discordo. Discordo demais.
Ela pendeu de leve sua cabeça para o lado. O sorriso tatuado em seu
rosto.
— Por quê?
Era sério que ela estava se importando com aquilo em um momento
como aquele? Era sério que ela estava falando de Capitão América
enquanto me prensava contra uma parede e sua perna esquerda estava no
meio das minhas?
— Andy?
— Hm?
— Dane-se o Capitão América. Eu tenho zero capacidade para pensar
em qualquer argumento agora.
A infeliz riu.
— Uau. Se eu soubesse que era só te beijar para te fazer mandar o
Capitão América à merda, teria feito isso antes.
Senti um formigamento intenso na ponta do meu estômago. Senti
vontade de rir, de beijá-la outra vez e de sair correndo.
— Você pode só... parar de falar e me beijar de novo?
Felizmente (para você), das três opções, eu escolhi somente a do meio.
Felizmente (para mim), nosso regime era meio que uma ditadura
compartilhada. Ela fazia o que eu mandava. Eu seguia todos os seus rastros,
como em João e Maria.
Andy desceu uma de suas mãos para os meus lábios, brincando com
eles por alguns segundos antes de dizer:
— Sempre que quiser. — Então se inclinou em minha direção e me
beijou mais uma vez.
Porra, que beijo.
Aquele segundo encontro de línguas foi menos desesperado, o que eu
arrisco dizer que me sentenciou de vez.
A forma como Andressa sabia guiar era injusta. Sua respiração se
misturava à minha, em um sussurro audível e delicado. Cada movimento
era cuidadosamente explorado, uma dança afrodisíaca. Tomei coragem
daquela segunda vez e mergulhei minhas mãos em seu rosto, sentindo a
textura de sua pele. Ela bagunçou meu cabelo, alcançou minha cintura e me
forçou a me aproximar mais (como se isso fosse possível).
O beijo foi se aprofundando aos poucos, uma caça ao tesouro.
Paleontólogas em um novo terreno. Uma descoberta mútua. O tempo
desacelerou, tudo se resumia àquele momento. Enquanto ela me beijava,
não havia mais nada. Nada mesmo.
Demorou para que alguma de nós duas ameaçasse nos separar. Fui eu
que tive que tomar a iniciativa, sentindo câimbras emocionais e físicas.
Minha ideia era morar naquele beijo para o resto da minha vida, mas, como
era impossível, tive que pedir espaço para respirar.
Nós nos separamos e havia um sorriso tímido pairando em ambos os
nossos rostos. Acho que foi só aí que a consciência me atingiu.
Meu Deus, eu havia acabado de beijar Andressa Batista.
Andressa. Batista.
Duas. Vezes.
Jesus Cristo!
Fui tomada por uma onda súbita de vergonha. Senti meu rosto adquirir
um tom escarlate e, pateticamente, o escondi em seu peito.
Eu não fazia a menor ideia de como me comportar depois de um beijo
daqueles. Um beijo em uma garota. O melhor beijo da minha vida.
— O que é isso? — Escutei-a rir. — Você tá se escondendo? — Pousou
uma mão em meus cabelos e os acariciou.
Assenti. Outro risinho.
— Ok, entendi. — Então beijou o topo da minha cabeça, afagando de
leve meus braços antes de me afastar, com delicadeza, de seu peito.
Fui obrigada a retornar à vida e a mirar seu rosto. Dei de frente com seu
sorriso e sorri em retorno. O feitiço era forte demais. Se tivesse sido me
dada uma oportunidade, eu teria a beijado de novo, e de novo, e de novo,
mas ela sabia a hora de parar, e manteve sua boca longe da minha enquanto
colocava uma mecha do meu cabelo para trás da minha orelha. Uma
etiqueta padrão depois de me desmantelar, a qual eu me ofenderia se ela não
seguisse.
— Por mais que eu odeie isso... acho que temos que ir. Tô um pouco
preocupada com as meninas — anunciou, se afastando. E eu quis tanto
puxá-la em minha direção outra vez...
Não tive a chance.
Ela deu um passo para trás, debruçando-se para recolher todas as
mochilas. Sim, todas. Até mesmo a minha, ela fez questão de carregar. Não
sei se estava tentando me mostrar o quanto seus ombros eram fortes, mas
não precisava daquilo. Eu havia sentido.
— Vem. — Depois que acomodou tudo de novo em suas costas, se
virou para mim. A garrafa entre seus dedos. Sentia falta de quando era eu.
— Vamos achar Ana Clara e Jéssica.
Ainda em transe, assenti. Então caminhamos, lado a lado, em direção ao
banheiro. Nenhuma das duas falou nada no caminho, muito menos quando
encontramos Ana Clara, abraçada a uma lixeira, e Jéssica, fazendo carinho
em seu cabelo.
— Ela vomitou — explicou. — Fica triste quando vomita.
E foi exatamente assim que a minha grande noite de sexta-feira
terminou. Com Ana Clara abraçada a uma lixeira e um sorriso bobo
costurado no canto do meu rosto.
CAPÍTULO ONZE. O BOTE
SALVA-VIDAS.
Eu não tinha bebido, mas acordei com ressaca.
Eu me perguntava se as salivas alcoólicas que ingeri poderiam ter me
afetado de alguma maneira, mas pesquisei no Google e a resposta é não. O
que eu tinha era dificuldade para acreditar que a noite anterior havia
acontecido. Estava vivenciando as fases do luto, resultado da morte da
minha antiga personalidade. O primeiro sintoma dele era a negação.
Acordei amortecida, com dor de cabeça e o estômago ligeiramente
embrulhado. Minha mãe estava na cozinha (como todas as manhãs) e a
bronca continuou ali mesmo.
Cheguei em casa um pouco antes das onze da noite, cheirando a cerveja,
cigarro e coisas que eu não sabia o que era. Minha mãe começou com a
gritaria naquele mesmo instante. Eu ouvi tudo em silêncio, assenti e fui
dormir. Quando acordei, veio a segunda parte da discussão. Para sua sorte
(ou azar, não sei), eu tive as mesmas exatas reações. Assenti, ouvi e, no
final, pedi desculpas. Não sei dizer, contudo, se estava verdadeiramente
arrependida ou se era apenas para que finalizássemos aquele assunto logo.
Algumas horas depois, ligaríamos para o meu pai e chegaríamos naquele
consenso que comentei, sobre o Uber. Antes disso, eu tomei um copo
grande de café e resolvi estudar.
Deixei meu celular no modo avião e ignorei todo e qualquer sentimento,
ou pensamento, que tentava entrar. Fiz isso a manhã inteira. Almocei como
se nada tivesse acontecido e, depois do almoço, fui à farmácia para comprar
um remédio de espinha para meu irmão. Minha mãe disse que ia, mas eu
me voluntariei, ansiando sair de casa e respirar um pouco de vida que não
fosse a minha. Era sábado e estava quente. Coloquei meu short jeans de
sempre e desci pelo elevador de serviço. Dois passos na calçada e eu ouvi
uma buzina.
Quando você passa um ano com alguém, começa a reconhecer algumas
coisas bobas. Como o cheiro do perfume, a cadência dos passos e a buzina
do carro.
Havia muitos HB20 rondando a cidade, disso eu sei. Foi costume que
me fez virar em sua direção. A familiaridade do toque guiou meus olhos até
ele, e eu estava certa em mirá-lo.
Um carro acompanhava meus passos, com um rapaz muito familiar no
banco do motorista. Deixei meu queixo cair.
— Henri?
Meses antes, Henrique havia terminado o nosso namoro. Meses antes,
havíamos decidido manter as coisas amigáveis entre a gente. Meses antes,
ele se mudou para João Pessoa.
Ele parou o carro, então eu tive que parar também, tapando meus olhos
do sol com as mãos e me aproximando.
— O que...
— Quer carona para algum lugar, ex-namorada mais gata do mundo? —
O sorriso em seu rosto era o mesmo de sempre. Seus dentes grandes e
branquíssimos refletiam o mormaço que queimava o capô de seu carro.
Era Henrique Silva, não restavam dúvidas.
As memórias da minha “antiga vida” (sim, eu trato meu beijo com
Andressa como o nascimento de Jesus Cristo – “a.a.” e “d.a.”) retornaram
com força.
Não cheguei a te contar antes, mas eu também tive um baile de
formatura quando terminei a escola. Foi ao mesmo tempo um dos melhores
e um dos piores dias da minha vida.
Esse tipo de evento é caro, e programado, então, os preparativos se
iniciaram bem antes de tudo desmoronar. Meus pais começaram a pagar
meu baile quando ainda estavam “tentando outra vez”. Foram duas
realidades completamente diferentes. Quando começaram os preparativos,
eu ainda jantava com o meu pai diariamente. Quando chegou o grande dia,
tive que encontrar com ele no local; como se ele fosse um desconhecido,
que não podia mais pisar no apartamento que foi seu por dezessete anos.
Minha formatura foi o primeiro grande evento no qual os dois se
encontrariam como "pais separados" e eu não estava nem um pouco pronta
para aquilo. Carregar aquele ingresso para o baile de formatura era como
carregar os vestígios da minha família.
Além disso, eu comparei, a todo instante, a minha formatura com a de
Andressa, aspirando encontrá-la em cada canto que eu olhava. Não
aconteceria (Renan não quis pagar o baile) e eu estava pronta para desistir
quando Henrique me convenceu a ir. Ele sabia que eu me arrependeria
depois se não fosse, então planejou toda a noite nos mínimos detalhes.
Meu ex-namorado vivia em um mundo paralelo, isso é um fato, mas, às
vezes, eu ficava feliz por ser incluída nele. Na sua cabeça, éramos
protagonistas de um desses seriados norte-americanos e ele fez questão de
montar uma cena no dia da minha formatura.
Combinou com Brenda e chegou ao meu prédio com ela no banco de
trás de uma limusine. Sim, uma limusine. Era de um tom de rosa horrível,
mas ele estava se esforçando.
Desceu do carro vestindo um terno impecavelmente estruturado e os
cabelos penteados com gel. Carregava um buquê enorme de flores
vermelhas e se ajoelhou na minha frente para me entregar.
Eu estava paralisada na calçada em frente ao meu prédio, com minha
mãe fotografando, Gabriel rindo e dezenas de fofoqueiros espiando o
momento em que eu jurei que ele fosse me pedir em casamento.
Suei frio, mas ele apenas me passou o buquê, nenhuma aliança. Nada
além de um sorriso e uma promessa:
— Nós estamos aqui.
Abriu a porta da limusine para mim e eu fui basicamente puxada para o
lado de dentro pela minha melhor amiga. Brenda estava linda, com seu
vestido verde oliva (vê-la naquele tom seria demais para Renan) e uma
garrafa de champanhe entre seus dedos. Eles me mimaram a noite inteira.
Henrique fez questão de ficar ao meu lado na mesa, intercedendo e
desviando qualquer conversa desconfortável que meus pais iniciavam.
Quando o clima pesou, ele me obrigou a ir para a pista de dança, não me
dando espaço para me entristecer.
Ele fez o seu máximo para que a minha noite fosse perfeita, o que era
apenas um exemplo das coisas gentis que fez por mim, todo aquele tempo.
Naquele instante, d.a., com ele dentro daquele carro e o sol torrando
meus ombros, ficou mais do que claro como eu tinha sido a pior namorada
para o melhor deles.
— O que você tá fazendo aqui? — perguntei, ainda perplexa com o fato
de que ele estava no Rio de Janeiro.
Ele deu de ombros.
— Se você usasse seu celular, saberia. É aniversário do meu velho
amanhã. Vim pro grande banquete. Você tá convidada, inclusive.
Henrique foi para mim algo como um bote salva-vidas, em muitos
aspectos. Eu confiava nele, e tive muito medo de perder isso quando o
nosso relacionamento chegou ao fim. Obviamente, as coisas esfriaram com
esse fatídico acontecimento, mas não nos tornaram estranhos.
Acho que eu me levei muito a sério ao acreditar que ele esteve
perdidamente apaixonado por mim por todo esse tempo. Nosso amor
sempre foi de amigos, e eu tive muito medo de que sua mudança tivesse
levado isso embora. Felizmente, não o fez.
— Ah — exclamei. — Obrigada pelo convite, eu...
Uma buzina alta cortou minha fala pela metade.
Um sujeito foi obrigado a parar atrás do carro dele (que bloqueava
metade da rua) e começou a xingá-lo.
Henrique colocou a cabeça para fora, respondendo-o com o dedo do
meio, como se tivesse algum tipo de direito. Era ele quem estava
completamente errado, mas esse era Henrique Silva. O dono do mundo.
— Depois dá uma olhada no seu celular, Camila — pediu. — Vou ter
que sair ou esse merda não vai parar de buzinar. Mas tenta ir. Meu velho
ficou todo feliz quando eu disse que ia te chamar. Não quer carona mesmo
não?
Neguei com a cabeça.
— Obrigada. Eu só vou na farmácia. Mas vai lá logo, você tá fechando
a rua.
— Ah, eles esperam! — Riu, mas engatou a marcha. — Te vejo
amanhã, hein? Pedimos bolinha de queijo exclusivamente para você.
Então deu partida e arrancou, como se estivesse em um autódromo. O
pobre do carro balançou no asfalto, pedindo socorro, e eu me peguei
suspirando.
Henrique era um péssimo motorista, e seu carro tinha um dos lados
amassado da vez em que ele parou errado no cruzamento e uma senhora de
setenta e cinco anos bateu atrás. Eu estava com ele na ocasião, aconteceu
mais ou menos em junho do ano anterior. Parecia tanto tempo antes...
Eu mal reconhecia a Camila que tremia naquele banco do carona,
assistindo seu namorado de fachada resolver tudo pelo retrovisor. Ela estava
desesperada por causa de uma batida besta, que quase nem chacoalhou o
carro.
Aquela Camila tinha medo do mundo inteiro. Aquela Camila jamais
teria deixado que Andressa a esmagasse contra uma parede duas vezes.
Aquela Camila... não poderia retornar.
Comprei a pomada e voltei para casa, buscando meu celular e o
encarando por alguns longos minutos antes de finalmente tomar coragem e
o ligar.
Dezenas de mensagens chegaram de uma vez. A primeira que eu abri
foi a de Henrique.

Henrique 00:07h: Eae querida ex, tô no Rio essa


semana e tenho uma missão pra vc.
Henrique 00:09h: É aniversário do meu pai
domingo e ele vai fazer uma festinha só pros
amigos próximos e ex-namoradas do seu filho
favorito.

Um adendo: Henrique era filho único.

Henrique 00:14h: Enfim, vc não tem desculpa pra


não ir. Vai ser um almoço. 11h no play do meu
prédio. Você sabe onde é, mas posso te buscar
qualquer coisa.
Henrique 00:14h: Te vejo lá?

Não respondi nada, passando para a conversa com Brenda.

Brenda 22:10h: Beijou ou não beijou?


Brenda 22:24h: Camila??????
Brenda 22:35h: ??????
Ligação perdida de Brenda 22:36h.
Ligação perdida de Brenda 22:42h.
Brenda 22:42h: CAMILA FERRAZ, ME ATENDA AGORA
MESMO.
Brenda 23:00h: ????????????????
Brenda 08:01: Vou te matar.
Apesar de toda a construção, e de ela ter sido a responsável indireta pelo
acontecido, eu não tive coragem de confessar o que havia feito.
Contá-la tornaria tudo real, e eu me peguei com um intenso medo do
que tornar real poderia significar. Na minha cabeça, caso isso acontecesse,
eu perderia aquele sentimento bom, que há muito eu não via tão forte dentro
de mim. Se eu tornasse real, minha mãe saberia e, se ela soubesse, tudo
estava arruinado.
Eu fiquei com medo do que aquele simples (mas nada simples) beijo
poderia gerar. Eu não imaginava ter forças para aguentar mais uma erupção
familiar. Então, mesmo que minha consciência pesasse, mesmo que eu não
quisesse trazer a Camila a.a. de volta, eu cedi aos velhos costumes. Eu não
a respondi. Depois, eu fiz pior.
Saí de sua conversa e fiquei encarando por horas o nome de Andy.
Claro que ele foi o primeiro que eu quis clicar, mas eu me torturei até
que tivesse coragem suficiente para ler:

Andy 23:02h: oie


Andy 23:02h: vc chegou em casa bem?

Foi só isso que ela mandou. E “uhum” foi tudo que eu escolhi
responder.
Meu coração batia totalmente errado, eu conseguia sentir. Assim como
ainda sentia o calor de sua mão em meu pescoço e sua língua, grudada na
minha.
Na noite anterior, eu cheguei em casa eufórica.
Havia algo de tão leve assoprando dentro de mim que eu me sentia
flutuando sobre o meu colchão. Eu me sentia livre. Eu me sentia... eu. Eu de
verdade.
Não conseguia parar de reprisar aqueles beijos e, em cada uma das
vezes, meu rosto ficava vermelho e eu sentia uma necessidade absurda de
sorrir. Beijar mulheres foi incrível para mim. Foi mágico. Beijar Andressa
foi fascinante. Depois daqueles beijos, eu passei a acreditar que unicórnios
e sereias existiam. Passei a enxergar o mundo lotado de purpurina, tirei a
minha prova. Eu definitivamente não era heterossexual, e enxergar aquilo
com clareza trazia muitas coisas positivas, mas também muito pesar.
No sábado, eu pulei algumas etapas do luto, indo direto para a quarta
delas: tristeza.
Apesar de todos os sentimentos positivos, eu me peguei profundamente
angustiada. Estava com medo do que aceitar a minha não-
heterossexualidade significaria. Afinal, eu sabia o que minha mãe achava
do que eu fiz, e esse dilema ainda me gerava muita culpa.
Certos ciclos são mais difíceis de quebrar do que outros. Eu vivi a
minha vida inteira em função da minha mãe, não era simples fazer algo que
eu sabia que ela desaprovava. Não era simples ir contra ela dessa maneira.
O que meus instintos me mandavam fazer, surpreendentemente, era
jogar tudo para o alto e beijar aquela garota de novo. Mas o combustível
havia acabado, e eu me peguei caindo no mesmo redemoinho tóxico de
sempre.
Eu me preocupava demais com o que minha mãe ia pensar. Eu me
sentia presa a ela. Era como se houvesse uma mola acoplada ao meu
tornozelo. E eu até podia ousar ir mais longe, só que, de alguma forma, eu
sempre retornava.
Eu estava começando a enxergar, tardiamente, a existência de vida fora
do planeta Regina. Porém, ainda parecia cedo dizer que eu havia adquirido
resistência para suportar essa nova gravidade.
Você sabe, eu nunca fui corajosa como Andressa. Se eu pudesse roubar
sua personalidade, acredite, eu roubaria. Eu roubaria tudo daquela mulher.
Mas o que eu tinha disponível em mãos era uma Camila que estava
finalmente começando a se conhecer, e que ainda não conseguia suportar a
possibilidade de ferir a sua mãe.
As pessoas certas não me odiariam caso eu fosse sincera. Disso, eu
tinha certeza. O problema era que eu nunca havia considerado Regina uma
delas.
Bloqueei a tela do meu celular. Meu peito martelava e eu o abandonei
outra vez, tentando enfrentar o resto do meu dia longe. Antes de dormir, no
entanto, encarei novamente a mensagem de Henrique. A lembrança daquele
relacionamento trazia à tona uma versão minha que eu, honestamente, não
gostaria de reviver, mas também trazia ele. E ele era meu bote salva-vidas,
lembra?
A perspectiva de reencontrar rostos conhecidos brilhou para mim como
uma oportunidade para desviar o foco do turbilhão emocional que eu estava
vivendo.
Foi por isso que eu aceitei o convite.
Buscava uma distração. Buscava sair de perto da minha mãe.
Ir àquele aniversário era uma maneira de adiar, ainda que
temporariamente, a confrontação com meus próprios sentimentos. Algo que
eu amava fazer, e que ainda não havia me conformado que nunca dava
certo.
Fingir que não aconteceu não muda fatos. E ir ao aniversário do meu
ex-sogro porque eu havia beijado a melhor amiga do seu filho não era nem
de longe o melhor dos cenários.
Especialmente depois que eu me deparei com a sua lista de convidados.
CAPÍTULO DOZE. DÁ PRA
PARAR DE FUGIR DE MIM?
A primeira vez que eu realmente conversei com os pais de Henrique foi
quando estávamos retornando do seu baile de formatura e eu estava sentada
no banco de trás de seu carro, sendo levada para casa. Henrique estava
apagado no meu peito, bêbado até a alma. Felizmente, seus pais não podiam
brigar com ele a respeito quando Pia (minha ex-sogra) estava quase igual.
Na casa de Henrique, seu pai era o único cronicamente sóbrio (como eu).
Seu Silva não bebia, e era do tipo que dirigia com calma, atento a todas as
placas. E acontecimentos.
Eu estava brutalmente cansada naquela noite. Física e emocionalmente.
A paisagem da cidade passava pelo vidro lateral com pressa, e tudo que eu
sentia era pesar, pelo que havia deixado para trás.
Acariciava os fios macios de Henrique enquanto sentia as lágrimas
escorrendo pela minha bochecha.
Na minha cabeça adolescente, seria impossível alguém notar que eu
chorava quando estava tão escuro. Na minha cabeça, seria impossível que
alguém percebesse o que eu estava sentindo, mas então Seu Silva cortou o
silêncio com a seguinte sentença:
— Ano que vem é você, hein, Camila? Se formando, prestando
vestibular...
Eu me ajeitei no banco, surpresa com a sua fala. Antes daquele dia, eu
me sentia profundamente constrangida todas as vezes que interagia com a
família do meu namorado. Eles eram tão ocupados, tão... incríveis! Era
intimidador, e continuou sendo, até que eu passasse a ser convidada para
muitos almoços em família (desculpas para que eu pudesse me afastar da
minha).
Os pais de Henrique me trataram como uma filha quando meu mundo
começou a desmoronar. Perdi a conta das vezes que fugi para a sua casa. E,
em todas elas, eles me acolheram. A primeira foi naquela madrugada.
— É. Pois é. — Pigarreei, sem jeito, afastando minha mão de Henrique.
Era sempre constrangedor trocar carícias com ele quando seus pais
estavam por perto.
— Você já sabe o que quer fazer? — questionou e eu suspirei. Odiava
aquela pergunta.
— Não. Nem ideia.
— Ah, isso é normal! — exclamou, e eu enxerguei um sorriso muito
parecido com o de Henrique pelo retrovisor. — Vocês são muito jovens para
essas coisas. Não acha, Pia?
Ela assentiu. Seus cabelos escuros despencando do coque que ela um
dia havia usado.
— Com certeza! — Ela se virou para me encarar. O cinto de segurança
limitava seus movimentos, mas seus olhos embriagados me acharam. Eu
torci para que a maquiagem pesada fosse suficiente para disfarçar minha
cara de choro. — Sabe, Camila, Henrique só decidiu que queria ser médico
semana passada.
Seu Silva assentiu, deslocadamente nostálgico.
— Você lembra o que ele dizia que queria quando tinha sete anos, Pia?
— Sim! Escute essa, Camila, é muito bonitinha! Quando a gente
perguntava pro Henri de sete anos o que ele queria ser quando crescer, ele
travava o maxilar em um sorrisinho adorável e respondia: feliz, mamãe.
Meu peito apertou por alguns segundos.
— Feliz — repetiu Seu Silva. — Eu acho que as crianças realmente
sabem muito mais que nós. A vida é curta para não procurarmos essa tal de
felicidade — Então buscou o meu olhar pelo retrovisor e disse: — Está tudo
bem se você não tiver se encontrado com a sua ainda, Camila.
Por alguns instantes depois disso, o silêncio reinou. Seu olhar
permanecia compassivo, mas era como se ele pudesse enxergar o que eu
pensava. Minha felicidade, ele parecia saber, estava muito longe daquele
veículo.
As luzes da cidade passaram por nós até que ele quebrasse o silêncio
uma última vez:
— Sabe, Camila, a vida é cheia de surpresas.
Guarde as palavras do Seu Silva, porque ele nunca esteve errado em
nada do que disse naquele dia.
Certamente, a vida era um grande bolo estomacal de surpresas.
Imprevistos são as coisas mais previstas com as quais podemos contar.
Quase nada acontece como o planejado. O que não significa que
imprevistos sejam sempre ruins.
Eu estava animada para reencontrar com os pais de Henrique quando
minha mãe me deixou na portaria de seu prédio. Entre nós, o clima estava
esquisito. Eu estava morrendo de medo de que ela pudesse ler em meu rosto
o que eu havia feito; enquanto ela estava monossilábica, possivelmente
desapontada com o meu comportamento de sexta (e ela nem sabia o que
verdadeiramente havia acontecido). Eu sempre me irritava quando ela fazia
bico, então entrei sem nem me despedir.
O porteiro do prédio de Henrique já me conhecia o suficiente para não
se dar ao trabalho de me explicar como chegar ao play. Subi pelo elevador
me sentindo agitada. Não tive tempo de comprar um presente (nem saberia
o que levar), então tudo que eu carreguei comigo para aquele almoço de
aniversário foi uma bolsa transpassada preta e uma mente confusa.
Eu tinha um pouco mais de noção de moda nessa época (graças a Deus)
e escolhi um vestido esverdeado, que ia até meu tornozelo. Foi difícil
garimpar, metade das minhas roupas já não me agradavam mais.
Não pensei em desistir de ir nenhum segundo, todavia. Era muito mais
fácil para eu enfrentar Henrique e meus ex-sogros do que o fato de que eu
havia beijado mulheres (no plural, sendo uma delas ANDRESSA). Contudo,
minha coragem tinha prazo de validade. Quando a porta se abriu, a
sensação de “ok, isso é minimamente estranho” me alcançou.
A ex-namorada do seu filho no seu aniversário. Isso é socialmente
aceitável? Isso é normal?
Eu sempre tendi a crer que não existe amizade com o ex (ou com sua
família), mas acho que com Henrique nada nunca seguiu como o planejado.
— Camila! — Pia me viu antes que eu pudesse a ver.
Seus cabelos lisos estavam, como de costume, presos em um coque, e
seus dedos acoplados a uma taça cheia. Ela me abraçou.
— Que bom que você veio!
Sorri, um pouco forçada.
— Obrigada pelo convite.
— Imagine! Estávamos com saudades. Como está seu irmão, e sua
mãe? Seu pai? — começou a me interrogar conforme me guiava,
delicadamente, festa adentro.
Mais de dez mesas, forradas com uma toalha branca, ocupavam o
espaço. Havia algumas crianças correndo pelos cantos, uma música
ambiente calma e garçons, servindo petiscos e bebidas.
O dia estava ensolarado e os raios de sol entravam pelos vidros
lacrados. Pia me guiou até Seu Silva, e eu o parabenizei com um aperto de
mãos.
Aquele era um almoço imponente, havia bastantes convidados.
“Amigos próximos”, Henrique dissera. Era surpreendente que alguém
tivesse tantos amigos assim.
— Cadê Henri, amor? — perguntou Pia, depois que eu o parabenizei e
menti, falando que estava tudo “tranquilo” na minha vida. Ele apontou para
a nossa esquerda.
— Tá sentado ali.
O play do prédio de Henrique era climatizado (óbvio que era), e o ar
condicionado estava forte; mas não foi por isso que os meus pelos se
arrepiaram. Foi porque, assim que nossas atenções foram guiadas a uma das
mesas mais próximas à parede, eu enxerguei. Sentada ao lado do meu
queridíssimo ex-namorado, estava Andressa Batista.
Por que eu não suspeitei que aquilo fosse acontecer?
Se os pais de Henrique trataram com tanto zelo a ex-namorada de seu
filho, era mais que óbvio que fariam o mesmo com a sua amiga de anos.
Minha vontade, naquele instante, era de fingir um desmaio; só não fiz
isso porque ia chamar ainda mais atenção.
— Obrigada. Vem, Camila, vou te levar até ele.
Então Pia me guiou em direção ao que eu evitei encarar o sábado
inteiro.
Puta que me pariu. Eu não tinha capacidade física, tampouco mental,
para lidar com Andressa depois daquele beijo. Ainda mais na frente do meu
ex!
Jesus Cristo.
Caminhei como quem caminha para a forca, sentindo que aquele
maldito percurso durou vidas. Quando chegamos próximas aos dois, eu já
tinha oitenta e quatro anos, três netos e dor nas costas por causa da minha
péssima postura durante a minha juventude.
— Olha quem eu trouxe! — Foi a forma como ela me anunciou, e que
combinou bem com a situação.
Um tributo de Jogos Vorazes sendo apresentado ao público, era assim
que eu me sentia. Aquela mesa era o equivalente à arena. Não via a hora de
alguém chegar por trás e enfiar um arpão no meu peito, me poupando
daquela droga de tortura!
Henrique se levantou.
— Eae! Eu tava achando que você não vinha mais! — Então me
abraçou e eu fui obrigada a encarar Andy sobre seus ombros.
Ela retribuiu minha encarada em silêncio. Seus olhos derraparam sobre
mim, atritando como patins em uma pista de gelo, e eu me senti por
completo escorregadia.
Havia um sorrisinho minúsculo pousado no canto de seus lábios. Notá-
los era perigoso, me fazia me lembrar de sua textura. Fazia me lembrar de
como estivemos tão próximas. Senti minha garganta secar.
— Licença, garotada — pediu Pia, assim que seu filho me soltou,
pousando uma de suas mãos em meu ombro e dizendo: — Muito bom te
ver, minha querida.
Fiz meu máximo para sorrir em resposta.
— Muito bom te ver também, tia.
Então se afastou e eu me peguei na maior cilada da minha vida.
Existe uma regra social que diz: se você abraçou um, tem que abraçar
todos. Henrique havia acabado de me dar um abraço caloroso, existia certa
pressão para que eu me locomovesse na direção de Andressa e pelo menos a
cumprimentasse com dois beijos no rosto. Contudo, fui incapaz de agradar a
sociedade naquele momento (e naqueles dias).
Eu a ignorei por completo, ou pelo menos tentei, simplesmente puxando
uma cadeira e me sentando depressa.
Sentia um bolo na minha garganta. Sentia meu peito acelerado. Sentia
toda a sua atenção voltada para mim.
— Oi, Mila — fez questão de dizer, com aquela droga de cadência
cativante em seu tom.
Engoli em seco, tentando não pensar em como na última vez que ela
veio com “Mila” para cima de mim, eu havia permitido que ela me
empurrasse contra uma parede.
Ai, Deus, isso não podia acontecer de novo. Não, Camila, você não
precisa de mais drama na sua vida. Vocês já concluíram o que precisavam.
Já se beijaram. Chega! Sua mãe não gostaria disso...
— Oi.
Henrique, como de costume, se sentou entre nós.
Não compartilhávamos a mesa redonda com mais ninguém. Além de
celulares, havia alguns copos vazios em cima dela. Andressa teve a audácia
de puxar o prato de salgadinhos no centro e o empurrar em minha direção.
— Ei — chamou minha atenção e eu respirei bem fundo antes de
encará-la. — Guardamos pra você.
Vai soar repetitivo se eu disser que ela estava linda naquele dia? Pois ela
estava.
Usava uma blusa de mangas, que tapava um pedaço do tigre que tinha
tatuado em seu antebraço esquerdo. Não havia uma coisa que me
desagradasse em seu rosto. O cheiro de seu perfume era incipiente e
familiar. Ela usava uma maquiagem leve, suas pintinhas estavam todas à
amostra e seu delineado clássico estava de volta. Andressa não costumava
usar gloss, mas havia uma fina camada de batom em seus lábios. A cor era
puxada para o marrom. Ela tinha habilidade até para fazer aquilo. Não
havia um borrado, o arco do cupido estava bem marcado, a boca parecia
macia, e convidativa e... meu Deus do céu, eu estava começando a
hiperventilar.
— Na verdade, eu guardei — provocou Henrique. — Dessa queria
comer tudo.
Andy revirou os olhos.
— Eu obviamente ia buscar mais.
— Isso é mentira. Você é egoísta.
Ela pendeu de leve a cabeça para o lado antes de dizer:
— Discordo. Eu posso ser generosa, depende da motivação. Opiniões,
Camila?
Ah, eu tinha muitas opiniões. Ela foi bastante generosa naquela sexta,
por exemplo, quando enfiou a língua na minha boca e generosamente me
fez arfar.
Os salgadinhos ficaram abandonados na mesa. Tudo que eu disse foi:
— Preciso ir ao banheiro.
(Eu não era muito criativa nas minhas desculpas).
Henrique assentiu.
— Fica ali atrás, perto da cozinha. Mas quer ir lá em casa? Mônica tá lá,
é só bater. Esse aqui é minúsculo.
Na casa dele. Ótimo! Mais longe ainda de Andressa.
— Certo. Obrigada.
Eu me coloquei de pé de uma só vez, refazendo todo o caminho até o
elevador.
Não havia ar condicionado no mundo que pudesse abaixar minha
temperatura naquele momento.
Entrei rápido e apertei o doze.
O prédio de Henrique tinha duas características importantes: a primeira
delas é que ele era muito alto. Tinha dezesseis andares e escadas largas com
portas corta-fogo (algo que não existia no meu — o terror dos bombeiros).
A segunda é que seus elevadores eram antigos e demoravam a obedecer aos
comandos dos botões.
A porta demorou tanto para fechar que Andressa teve espaço de sobra
para impedi-la.
Quando só restava uma fresta entre a minha liberdade e aquela situação
perigosa, um braço surgiu do lado de dentro, travando minha fuga.
A porta sanfonada revelou a figura de Andressa como quem revela o
galã em um filme de Hollywood. Seus cabelos e seu perfume preenchendo
todo o ambiente. Ela se colocou para dentro e eu paralisei, com meu peito
dando solavancos. Não disse nada, apenas estacionou ali, me deixando
completamente engasgada.
A porta se fechou e nos lacrou, sozinhas. Senti como se eu tivesse sido
confinada em um forno.
Esperei que ela dissesse alguma coisa. Qualquer coisa. Mas ela não fez
nada, então passamos pelo quinto andar.
Eu me sentia consciente de cada minúsculo movimento que aquela
porcaria de garota fazia ao meu lado. Ela cruzou os braços e encarou o
mesmo que eu: a porta metálica. O silêncio que se instaurou era capaz de
derrubar aquele elevador no fosso, tamanho era o seu peso.
— O que você tá fazendo? — Não aguentei.
Ela sorriu.
— Subindo pro doze. Você?
Maldita.
— Andressa...
— É isso que vamos fazer mesmo então, né? — me interrompeu, e
havia uma miúda pontada de decepção no seu tom. — Você vai me ignorar
por mais um ano.
Não disse nada até que o elevador aterrissasse e me permitisse sair.
Caminhei até o apartamento de Henrique e bati na porta. Mônica, a
moça que limpava a sua casa, a abriu para mim, me cumprimentando com
um abraço, me permitindo entrar. Não olhei para trás até que chegasse ao
banheiro.
Conhecia o caminho e tudo que havia dentro daquele apartamento,
inclusive a minha perseguidora.
Tranquei a porta e soltei todo o ar de uma vez. Meu sangue fervia.
Precisei de uns minutos para respirar.
Dei um tempo antes de sair, e torci para que ela tivesse ido embora, mas
era claro que não iria.
Abri a porta e ali estava, diante de mim, a última pessoa que deveria
estar na minha frente em uma ocasião como aquelas. Que merda. Eu não
conseguia mais esconder o quanto a queria. Meu corpo não me obedecia
mais. Eu não era capaz de mentir para ela, e mentir era a porra do meu
superpoder!
— Você quer usar o banheiro? — fui irônica. Ela foi mais.
— Não, não. Obrigada. Tô bem aqui.
Seus braços estavam cruzados. Seus olhos me atravessavam.
— Ok.
Passei por ela e ela veio atrás de mim.
Repetimos os passos e saímos (depois de nos despedir de Mônica), pela
sala de estar. Alcançando o corredor, apertei o botão para chamar o
elevador. Foi só aí que ela notou que eu realmente estava fazendo aquilo.
Eu realmente estava correndo mais uma vez.
— Mila, é sério mesmo? Você não vai nem olhar na minha cara? —
Umedeci meus lábios, mantendo meu olhar fixo no vazio.
Não posso, não posso.
Ela se aproximou. Bastante. Não nos tocávamos, mas por muito pouco.
Ter ciência daquilo era o que precisava para fazer meu sangue correr ao
contrário.
— Camila. Dá pra você parar de fugir de mim?
Fui incapaz de não voltar meus olhos para o seu rosto depois daquilo,
esbarrando em sua própria melancolia.
Algo dentro de mim derreteu.
O peso da tensão entre nós se tornou concreto. Havia uma redoma ao
nosso redor, que nos tornava sedentas. Cada pontinho racional do meu
corpo gritava para que eu resistisse, mantivesse a distância. No entanto, eu
não tinha forças para obedecer.
Não posso. Era o que eu tentava me convencer, mas uma voz interna
sussurrava que, talvez, eu pudesse sim. Por que não?
Porque sua mãe não vai gostar, sua idiota! Minha dependência ecoava.
Era o que os velhos hábitos tentavam me convencer. Mas, convenhamos, e
daí? Aquilo era o que eu gostaria. E isso tinha que ter algum peso, não
tinha?
— A gente pode pelo menos... conversar?
Nossos olhares se encontraram e eu fui sugada.
Conversar?
Porra, Andressa. Eu não queria conversar naquele momento.
Seu rosto era uma constelação. Ela parecia processar muitas coisas ao
mesmo tempo, enquanto eu parei de processar tudo.
Tomei uma decisão impulsiva.
Graças a Henrique, eu conhecia o suficiente daquele prédio para agarrar
seu pulso e a puxar em direção à enorme e pesada porta a alguns passos de
distância da gente.
Até hoje eu não sei quem abriu aquela porta corta-fogo, mas tenho
certeza que fui eu que a empurrei em direção à parede daquela vez.
Não esperei nem mesmo a porta terminar de bater para beijá-la.
A necessidade quase primitiva de tê-la, tenho certeza, estava no meu
DNA. Eu fui programada para desejar Andressa Batista e era sufocante ter
estado distante de sua boca por tanto tempo.
Foi difícil me saciar. Eu a apertei com força, deslizando nossos corpos
pela parede. Ela retribuiu à altura, passeando com sua mão pelas minhas
costas inteiras e fazendo eu me arrepender por ter escolhido um vestido tão
coberto.
Não sentia que estava perto o suficiente. Eu queria ir mais fundo. Mais
contato. O máximo que desse. Acho que fui faminta demais. Andy salvou
nossas vidas.
— Mila... — Escutei-a rir, interrompendo o beijo e segurando meus
braços. — A gente vai cair da escada — sussurrou, e o calor de suas
palavras me devolveu o raciocínio. Pelo menos, parte dele.
Abri os olhos e enxerguei os degraus, a centímetros de distância dos
nossos pés. Uma luz havia se acendido com a nossa movimentação. Estava
quente e abafado do lado de dentro. Estávamos no meio das escadas, onde
qualquer um que descesse, ou subisse, poderia nos ver. E contar para a
minha mãe.
Meu. Deus.
Fui puxada outra vez pela mola, e a culpa chegou empurrando.
Era claro que o que ela gostava importava. Ela era a minha mãe! Onde
eu estava com a cabeça?
— Andy... — Senti o desespero tomar conta do meu corpo.
— Camila — Segurou meu rosto com delicadeza. Todo o alvoroço
animalesco evaporou. Tudo que eu enxergava era preocupação em seus
olhos. — Me explica o que está havendo?
Inspirei profundamente, tentando me controlar.
— Me desculpa — pedi, gesticulando. — A gente não pode continuar
fazendo isso.
Ela franziu a testa.
— Por que não?
— Porque... eu não consigo.
— Não consegue o quê?
Mirei-a por alguns longuíssimos instantes. Depois de um ano completo
e de quase a engolir viva, senti a necessidade de ser sincera.
— Eu nunca te contei o que houve naquela casa de praia.
Andressa ajeitou suas costas de imediato. Entendia que o que vinha a
seguir não era simples, então deixou que seus dedos escorregassem até
meus ombros. Acho que estava tentando me encorajar a continuar. Ela
queria ouvir quase tanto quanto eu queria falar.
Adiamos aquela conversa por um ano. Na verdade, adiamos tudo por
um ano e eu “conhecia” Andressa desde os meus nove anos de idade, mas
acho que nunca me abri para a oportunidade de conhecê-la, de fato.
Nem a mim mesma.
— Pode falar, se quiser — sussurrou e eu a encarei.
Engraçado como segundos antes o clima era completamente diferente.
Engraçado como eu sempre queria falar tudo para ela.
— Naquela viagem, sua mãe contou para a minha que você gostava de
garotas. E quando minha mãe soube disso... — Desviei o olhar,
envergonhada por um comportamento que não era meu. — Bom, ela
chorou.
Eu esperava qualquer reação naquele momento. Esperava que ela fosse
ficar brava. Esperava que se sentisse ofendida. Esperava que me soltasse ou
que xingasse minha mãe. Eu esperava qualquer coisa diferente, mas o que
Andressa fez foi começar a rir.
Aquilo me pegou completamente desprevenida.
— Por que você tá rindo? — perguntei, ofendida. Espantada. — Para
com isso.
— Céus. Desculpa — pediu, ao notar que eu não achava aquilo nada
engraçado. — Desculpa, Mila. Desculpa — repetiu, e deu para notar o
quanto ela se esforçou para engolir o riso e dizer: — Ela chorou?
— Chorou!
— Por quê?
Suspirei.
— Porque ela disse que você era como uma filha pra ela e que você ia
sofrer com isso na Terra, e no Inferno.
Arregalou seus olhos.
— Caralho.
— É.
Balançou a cabeça. A comicidade da situação sendo dissolvida de vez
em seu estômago.
— Eu notei que alguma coisa tinha acontecido, eu só não sabia que... —
começou a dizer, porém nunca terminou. Suspirou, deixando que as
palavras evaporassem. — Você podia ter me contado.
Certamente, eu poderia. Mas quem se comunica bem com dezessete
anos de idade e uma situação dessas nas suas costas?
— Não consegui. — Dei de ombros. — E é essa então, a grande
revelação. Minha mãe é preconceituosa pra caralho. Surpresa!
Andressa me encarou como se eu fosse um passarinho que havia
acabado de cair do ninho.
— Oh, Mila, eu sinto muito. É uma situação horrível e...
— Andy — a interrompi. — Tá tudo bem. — Obviamente, não estava,
eu só não queria mais falar sobre aquilo. — Foi ótimo... o que fizemos.
Muito bom. Eu só não posso... — Inspirei profundamente. — Continuar. —
Afastei seus dedos. — Eu estou... morrendo de medo.
— De mim?
Respirei fundo.
— Sim.
— Mila — sussurrou. — Sou apenas eu.
Apenas.
Deus, ela era tudo.
— Ela não sabe e eu não consigo contar, Andressa.
— Camila, olhe para mim.
Ela me segurou outra vez, me forçando a encará-la. Trombei com sua
expressão compenetrada e suspirei.
— Pra que você quer contar? — perguntou.
— Como assim?
— Tá tudo bem por mim.
— Tudo bem o quê?
Ela deu um sorriso de canto, seguido de um dar de ombros. Franzi
minha testa.
— Andy...
— Antes que você arrume mais uma desculpa, posso falar?
Seria péssimo ouvi-la argumentar, porque eu sabia que eu cederia, só
que eu não fiz nada para impedi-la.
— Cada um tem seu tempo. Você não precisa fazer nada que você não
queira. Você não precisa sair falando por aí. Não conte para sua mãe. Ou
para ninguém. Foda-se.
— Andy...
— Ninguém tem nada a ver com isso, Camila. A gente pode manter
entre nós. Eu te dou a minha palavra que ninguém vai saber.
Prendi minha respiração.
Ela não estava sugerindo que a gente continuasse se pegando em
segredo, estava?
Nossos olhos se cruzaram e ficamos em silêncio. Ela se manteve
irredutivelmente séria.
Porra, era exatamente isso que ela estava sugerindo.
— Andy, quê? Você tá brincando, né? Isso é uma péssima ideia. Eu
agradeço se puder não contar o que já aconteceu, mas, se a gente
continuar... vão acabar descobrindo — pontuei, ainda não convencida. Ela
soltou um sorriso sacana.
— Não se a gente fizer tudo direitinho.
— Andy...
— Me dá uma chance — pediu, me encarando fixamente. Sua expressão
misturava, sem precisar de receita, uma dualidade gigantesca de inocência e
sordidez. — Por favor.
Me dá uma chance.
Como quatro palavras podem ser o estopim de uma decisão tão imbecil?
Andressa acertou, como de costume, nas palavras que escolheu usar.
Deus sabe que tudo que eu mais queria era dar uma chance para aquela
garota. Vinte, se fossem necessárias. Mas ela só me pediu uma, e eu dei.
Quer dizer, não era uma ideia tão ruim assim, era? Eu estava sendo
muito emocionada? Não é como se a gente estivesse fugindo para as colinas
para se casar em segredo. Eram só alguns beijos. Minha mãe não precisava
saber quem eu beijava, pelo amor de Deus! Minha mãe nunca saberia disso.
— Andressa. Tudo bem mesmo se a gente não... contar pra ninguém? —
conferi, em um sussurro.
Ela sorriu.
— Claro que sim.
Então foi ali que decidimos.
Não precisamos assinar termos, ou juntar testemunhas. Concordamos,
fizemos um pacto. Eu não pensei a longo prazo na época. Mas, diz para
mim, como eu poderia? Aquela era a chance de ouro. Era a única forma de
ter tudo que eu sempre quis, e eu me agarrei naquela oportunidade com
unhas e dentes. Eu torci, do fundo do meu coração, para que funcionasse.
— Andy?
— Hm?
— Me desculpa.
— Pelo quê?
— Eu não te defendi aquele dia. Da minha mãe.
Aquilo estava entalado tão fundo que foi difícil deixar sair cada uma
daquelas palavras. Andressa suspirou.
— Queria poder ter te defendido também — disse e eu senti, bem lá
dentro.
Uma coisa triste foi que eu sempre esperei por esse resgate.
Eu era a mocinha que caía da ponte, que era raptada pelo vilão, que era
feita de refém. Eu era uma vítima, esperando alguém me resgatar da minha
poça de desalento.
Uma coisa que aquela Camila estava começando a aprender é que
super-heróis não existem longe dos filmes. Andressa não poderia estar em
todos os lugares ao mesmo tempo e o que acontecia na minha vida,
dependia de mim. Ninguém ia me salvar. E, por mais que tentassem,
ninguém poderia viver minha vida no meu lugar. O que eu fiz, naquele
instante, foi escolher vivê-la, parcialmente, como eu gostaria.
Andy notou que eu divaguei, então arrastou delicadamente o dedão pela
minha bochecha, pousando-o na minha boca e me trazendo de volta ao
dizer:
— Tá legal, chegou a hora. Preciso te contar que tem batom na sua boca
de novo. Só que, dessa vez, graças a Deus, a culpa é minha.
Ela obteve sucesso na sua empreitada (não surpreendentemente). Fui
incapaz de não sorrir depois daquilo, e o clima se tornou menos denso.
Andy validou minha reação deslizando suas mãos até meu pescoço.
— Posso limpar pra você?
Dei uma espiada no lance de escada ao nosso redor. Estávamos
sozinhas.
— Pode.
Então ela me beijou e, mesmo que não tivesse pedido, eu pensei em
assinar a papelada e adotar seu sobrenome naquele exato momento. A
suavidade de seus lábios contra os meus era uma das canções mais bonitas.
Eu me deixei imergir, envolvendo meus braços em seu pescoço e
sentindo cada centímetro da pessoa que mais me assustava e me acalmava
no mundo. A ambiguidade da atração é engraçada, os sintomas são muito
parecidos com os da ansiedade. Eu sempre tive a mente ansiosa,
completamente viciada em Andressa.
“São só alguns beijos”.
“Ninguém precisa saber”.
Engajamos mais que o esperado no beijo, e ela me empurrou para longe
da escadaria. Estacionamos próximas à porta e eu sorri, sentindo que ela
fazia o mesmo.
Eu estive fugindo por tanto tempo. Fugindo do respiro, de Andy, de
mim. Tê-la me parecia mentira. Não podia ser de verdade. Nada daquilo.
Eu nunca imaginei que eu fosse verdadeiramente capaz de beijá-la, mas
eu consegui. Eu consegui pra caralho.
E aquelas semanas, me recordo com pesar, foram as melhores semanas
da minha vida.
CAPÍTULO TREZE. FALTOU
SAL.
Ajeitei a gola do meu casaco, sentindo o ar condicionado mais forte do
que deveria. O Uber demorou a aceitar minha corrida e eu cheguei tarde
para a minha aula, pegando um lugar terrível. Minha cadeira estava
posicionada exatamente embaixo da saída de vento, e o sopro congelante
que batia na minha nuca congelava meu corpo inteiro.
Eu já não aguentava mais estar ali. Era segunda-feira e eu estava presa
na minha primeira aula: sociologia.
O começo da semana costumava ser caótico para mim no que diz
respeito a responsabilidades acadêmicas.
Na segunda, eu tinha aula de manhã e à tarde, e os professores sempre
chegavam no horário. Eu me irritava profundamente com o fato de que eles
nunca cancelavam aquelas aulas. Contava com isso todos os dias. Era o que
me fazia levantar na cama: a certeza de que pelo menos uma aula eu não
teria.
Naquele dia, não tive sorte.
Eram dez e vinte e oito e eu estava na faculdade.
As segundas me eram muito insuportáveis também, pois eram dias nos
quais Ana Clara não tinha nada para fazer ali. Nas semanas anteriores, ela
marcou reuniões com seu orientador, então acabamos nos encontrando com
mais frequência. Só que grande parte das alterações já haviam sido feitas e,
na semana após aquela festa universitária (d.a.), ela aproveitou todo o
tempo que tinha para ficar em casa escrevendo seu texto.
O único ponto positivo disso é que eu precisaria omitir
(presencialmente) sobre o que havia acontecido para menos gente. E que eu
tinha muito tempo livre para fantasiar.
No domingo, depois que eu e Andressa terminamos aquela pouca
vergonha nas escadas, tivemos que retornar para a festa, e fizemos o nosso
máximo para disfarçar o fato de que ela estava usando a porcaria de um
batom com uma fixação incrível.
— Fodeu, Mila, vamos ter que ficar por aqui mais umas três horas. No
mínimo. — Havíamos trocado de lugar e, de alguma forma, eram as minhas
costas que encostavam na parede. Ela apoiou um dos braços ao lado do meu
rosto, encarando minha boca com muita indecência. — Estou pensando em
uma solução. Talvez saia com mais algumas tentativas.
Dei um tapa fraco em seu ombro.
— Andressa. Para.
Ela riu e eu senti que meu rosto ficou vermelho.
— Dá um jeito na sua cara também! Tá terrível — inqueri, e ela
continuou a sorrir, enquanto eu me esforçava para parecer composta outra
vez.
Depois desse desastre, ela aprendeu, e eu também. Sem batom quando
estávamos por perto. Era uma das regras do nosso “disfarce”. A segunda era
não nos encarar muito quando em público. A gente não lidava bem com
esse tipo de coisa. Então, sem troca de olhares e definitivamente sem toques
acidentais! Um metro de distância, no mínimo. Foi isso que nunca
dissemos, mas estipulamos. E eu era bem melhor seguindo regras do que
ela.
Felizmente, meu ex-namorado se sentou mais inclinado na minha
direção quando voltamos, e tudo que ele falou foi:
— Vocês demoraram, então já peguei pra vocês. Sei lá se vão passar de
novo. — Fomos recebidas com um pratinho de macarrão cada, e comemos
em silêncio.
Não sei se Henrique notou alguma coisa naquele dia, só sei que levamos
a sério nosso pacto e nenhuma de nós duas contou nada para ele.
Tivemos a oportunidade de colocar os assuntos em dia naquela manhã,
mas eu confesso que não prestei muita atenção nos relatos do meu ex. Não
quando bem no meu campo de visão, havia Andy.
Droga, eu só conseguia pensar nela.
Sonhei com ela naquela madrugada, enquanto dormia e sonhei com ela
pela manhã, quando estava acordada. Francamente, eu estava obcecada. E a
obsessão te leva para caminhos extremos, como os que eu persegui naquela
semana.
Enquanto eu estava na aula de sociologia, já haviam se passado muitas
horas desde que havíamos nos visto pela última vez (menos de vinte e
quatro horas). O que significava que eu estava contando os segundos para
beijá-la de novo. Sem coragem, no entanto, para tomar a iniciativa.
Eu estava elétrica. Tanto que todas as vezes que uma notificação
aparecia na minha tela, eu sentia meu peito palpitar.
Depois que deixamos aquele aniversário, eu esperei para ver se ela ia
me mandar alguma mensagem. Sinceramente, eu não sabia o que dizer. Não
sabia se aquilo havia sido o suficiente para ela, se ela se arrependia, se
queria parar. Eu não queria parar.
Não entendia como beijar alguém sem compromisso (e em segredo)
funcionava. Não tive muitos casos amorosos, você sabe e, com Henrique,
eu não precisei de nada daquilo. A pressão era bem menor, justamente
porque o mundo não colapsaria se Regina descobrisse, e eu não sentia uma
necessidade tão grande de estar com ele. Com Andressa, eu sentia tudo em
um nível absurdo. Era sufocante, as expectativas eram muitas... só que ela
não me mandou nada. Não até que a manhã chegasse e eu recebesse a
notícia.
Não tive coragem de encaminhar nenhuma mensagem, mas mandei para
o seu irmão. Tentei não soar suspeita ao rodeá-lo com perguntas sobre
Andressa e seu retorno para casa. Ela tinha chegado bem, era tudo que eu
sabia. Depois disso, ele simplesmente parou de me responder.
Renan não era do tipo que sumia do WhatsApp, então eu me preocupei
quando ele passou a me ignorar, sendo obrigada a tentar localizá-lo com
Brenda.
Normalmente, eu não teria problema nenhum em mandar uma
mensagem para a minha melhor amiga (obviamente). No entanto, eu a
estava evitando desde que me esquivei da responsabilidade. Em minha
defesa, era temporário. Eu planejava contá-la! Algum dia.
Após deixá-la sem resposta o sábado inteiro (e metade do domingo), eu
finalmente a respondi com um: “A gente conversa pessoalmente” e ela,
mais do que instantaneamente me replicou com: “Ok. Quando?”.
Marcamos para o próximo sábado, e foi o suficiente. Ela não tocou mais
no assunto, acho que notou que eu estava vivendo um conflito.
“Ninguém precisa saber”. Confesso que estava na dúvida se aquela
máxima se aplicava a ela, mesmo estando inclinada a achar que não. Pensei
em abordar o assunto algumas vezes, só que ela não sabia onde Renan
estava, e eu escolhi lidar com um problema de cada vez.
Liguei para ele, sem sucesso. Fui dormir e, quando acordei, o mandei o
equivalente a dez “ois”, até que ele enfim explicasse:

Renan 10:29h: Cami, mil desculpas. Minha vó


sofreu um acidente ontem
Renan 10:29h: Ela caiu da escada.
Renan 10:29h: A gnt ficou meio que em função
disso, nem me lembrei de entrar aqui

Senti que meu coração parou de bater.

Camila 10:29h: QUE???? COMO ELA ESTÁ?


Camila 10:35h: RENAN????

Renan 10:37h: Ela tá bem. Ela não caiu tipo


ROLANDO degraus ABAIXO, ela só tombou pro lado.
Levamos um susto, mas ela só torceu o pulso

Camila 10:38h: Jesus, Renan! Que susto! Tadinha


☹. Ela tá bem mesmo, né?

Renan 10:40h: Ta sim, mas meus pais vão dar uma


passada lá. Até pra aproveitar pra ver como estão
as coisas.
Renan 10:41h: Eles conseguiram uma passagem em
conta. Vão na quarta e voltam sexta.

Camila 10:42h: Fico muito feliz em saber que sua


vó tá bem
Camila 10:42h: E que seus pais vão lá!
Camila 10:43h: Se precisar de qualquer coisa me
chama, tá bom? Fiquei preocupada.

Renan 10:52h: Desculpa


Renan 10:52h: Dessa disse que ia te avisar, mas
acho que ela esqueceu. Ela fica nervosa com essas
coisas
Renan 10:54h: Enfim. Obg!!!

Camila 10:55h: Nem precisa agradecer. Vai me


dando notícias

Renan 10:57h: Pode deixar. Sdds <3

Camila 10:58h: Saudadesss <3 <3

Troquei de conversa rapidamente, permutando de vez meu caderno e


caneta pelo meu celular.
Dane-se que eu precisava passar naquela disciplina. Existia prova final
para isso!
“Dessa disse que ia te avisar, mas acho que ela esqueceu. Ela fica
nervosa com essas coisas”.
Entrei na minha conversa com Andressa e conferi. Ela realmente não
tinha me mandado nada.
Droga, eu devia ter imaginado que alguma coisa havia acontecido.
Andy não faria tudo aquilo para depois sumir.
Tomei coragem e digitei:

Camila 10:57h: Oi, Andy!!! Renan me contou o que


houve com sua avó. Você tá bem?

Ela demorou o equivalente a uma vida para me responder. O professor


já estava no penúltimo slide quando ela disse:

Andy 11:22h: oi
Andy 11:22h: to bem sim
Andy 11:26h: desculpa n ter te mandado nada
antes
Andy 11:28h: foi meio caótico até que alguém nos
confirmasse q ela estava bem
Retruquei depressa.

Camila 11:29h: E ela tá né?

Andy 11:30h: tá! td tranquilo agra


Andy 11:31h: obg pela preocupação

Camila 11:32h: Imagina...


Camila 11:34h: Você ta na faculdade hoje?

Andy 11:35h: n
Andy 11:37h: n fui

Camila 11:38h: Tá sozinha em casa?

Andy 11:40h: talvez


Andy 11:41h: pq?
Andy 11:41h: quer vir aqui conferir?

Meu coração martelou.


Levantei meu olhar por puro reflexo. Não tinha ninguém bisbilhotando
minhas mensagens, mas eu abaixei o brilho da tela, por garantia.
As coisas mudaram de cenário bem mais rápido do que eu imaginei que
fariam.
Minha pergunta não era maliciosa, sei que ela sabia disso. Andressa só
gostava de me provocar, e era muito boa desviando do assunto. Eu estava
enfeitiçada o suficiente para ser feita de boba. Aceitei a mudança de rumo
sem pensar duas vezes.
Senti quando a adrenalina passou a correr pelas minhas veias, tentando
disfarçar um sorriso enquanto a respondia:

Camila 11:43h: Tô em aula

Andy 11:44h: se n estivesse, vc viria?

Óbvio.

Camila 11:45h: Talvez


Andy 11:45h: quando vc n tem aula essa semana?

Camila 11:46h: Tenho aula todos os dias

Andy 11:47h: tem alguma disciplina q vc n gosta?

Camila 11:47h: Todas

Andy 11:47h: KKKKKKKKK


Andy 11:47h: certo
Andy 11:50h: o q vc tem na quarta então?

Meu peito começou a bater mais forte.


Eu tinha muita sorte que ela tinha iniciativa. Se dependesse de mim, não
haveria livro nenhum para escrever sobre nós.
Literalmente.

Andy 11:50h: meus pais vão viajar, então n vai


ter ninguém aqui
Andy 11:52h: acho que vc sabe disso, mas Renan
tem aula o dia todo

Continuou a argumentar e eu a respirar cada vez com mais dificuldade.

Andy 11:54h: sei q vc jamais mataria aula kkkk


então podemos sei lá, almoçar juntas. O q vc acha?

Bloqueei o celular para conseguir respirar.


Ok, certo, estávamos fazendo isso. Estávamos conversando sobre nos
encontrar. Na sua casa.
Meu sangue borbulhou e eu me senti profundamente envergonhada.
Eufórica. Desesperada.
Eu não tinha dúvidas, contudo. Eu queria ir.
Ela me mandou outra coisa e eu abri para ler.

Andy 11:57h: obs IMPORTANTE: n precisa ser aqui


em casa!! Foi só o gancho q encontrei
Andy 11:57h: n sou como esses caras
Andy 11:58h: só queria te ver...
Andy 11:59h: obs IMPORTANTE 2: se vc quiser tb,
óbvio

Eu me peguei sorrindo para a droga de uma tela.


Porra, ela era adorável.
E eu também queria vê-la; mais do que teria coragem de confessar.

Camila 12:02h: Pode ser na sua casa, se não for


atrapalhar

A casa de Andressa, apesar de tudo, era um lugar seguro para mim. Era
onde eu havia passado metade dos meus dias do ensino médio e, se eu
tivesse que escolher um lugar para encontrá-la, certamente seria lá. Um
ambiente familiar, aconchegante e sem ninguém para nos flagrar, e contar
para a minha mãe.

Andy 12:04h: vc sabe que nunca atrapalha


Andy 12:05h: então... combinado?

Engoli em seco.

Camila 12:05h: Que horas?

Andy 12:06h: q hrs acaba a sua aula?

Camila 12:07h: Geralmente, umas onze e pouca

Andy 12:08h: então, meio dia?

Ao mesmo tempo em que eu digitei tudo aquilo desesperada, havia uma


forte sensação de ousadia atrelada a cada letrinha.
Era perfeito! Minha mãe nunca iria suspeitar do que estava
acontecendo. Ela imaginaria que eu estivesse na faculdade, enquanto eu
encontraria, finalmente, com Andressa outra vez.
Tirando o medo de ser descoberta por Regina, não havia nada que não
me fizesse apertar enter. Meus medos não eram páreos para a vontade de
vê-la. Em segredo. Sozinhas.

Camila 12:09h: Ok.

Andy 12:10h: ok!! até quarta!

Misericórdia, estava acontecendo.


Entrei em um pânico controlado, então abandonei o celular, rabiscando
um monte de bolinhas no topo das minhas anotações da aula (duas linhas).
Somente a expectativa de chegar perto dela de novo já me deixava em
borbulhas. Somente a promessa de vê-la, em alguns dias, me deixou
abobalhada e cintilante.
As horas até que chegasse o grande dia foram perturbadoramente
longas.
Eu não dormi a madrugada que o antecedeu inteira. Meu pai vinha me
enchendo o saco para fazer autoescola, e aquela situação era a prova de que
eu não tinha emocional para aquilo. A perspectiva de ter um encontro com
Andressa já me deixou com insônia, imagina o DETRAN!
Bom, aquilo era um encontro, não era? Eu lidei como um, e não tinha
como estar preparada para aquilo. Não tinha uma roupa bonita o suficiente.
Não tinha uma personalidade interessante o suficiente.
Eu me lembro de exatas duas palavras que minha professora de
“Introdução à metodologia científica” falou naquele dia. A manhã passou
inteirinha como um borrão e eu sentia meus dedos tremerem enquanto
esperava pelo Uber.
O apartamento dos Batista ficava perigosamente próximo do meu e eu
juro que corri no minúsculo caminho entre o carro e a sua portaria.
Fazia bons meses que eu não pisava ali, e eu não conhecia aquele novo
porteiro. Senti minha garganta secar enquanto ele interfonava para seu
apartamento, me anunciando.
— Pode ir lá. — Não demorou a permitir a minha entrada, e eu quase o
perguntei “Sério, moço? Tem certeza?”.
Minhas pernas tremeram enquanto eu o obedecia.
Era muito esquisito subir aquele elevador para vê-la. Andy nunca foi a
pessoa que me convidou para estar ali, apesar de já ter sido o motivo de eu
ter frequentado aquele apartamento algumas vezes. Na época em que eu
estava descobrindo meus sentimentos, eu constantemente encarava seu
quarto, de portas fechadas, ansiosa por qualquer migalha que ela pudesse
me dar. As coisas não haviam mudado tanto assim.
Hesitei por um instante antes de tocar a campainha. Meu coração
pulsava rápido, uma mistura de nervosismo e excitação o preenchia.
Procurei pelo meu reflexo na maçaneta e ajeitei, o máximo possível, o
meu cabelo. Eu já tinha o arrumado umas dez vezes dentro do Uber, mas o
que custava arrumar de novo?
Respirei fundo.
Ok, coragem, Camila. Chegamos até aqui!
Apertei.
Dois segundos depois, a ouvi gritar:
— Já vou! — Ouvi seus passos apressados do outro lado, então a porta
se abriu e eu travei.
Andy surgiu de short e blusa largos. Os pés descalços tornavam as
coisas mais corriqueiras. Revivi flashes da última vez que interagimos
dentro daquelas quatro paredes. Ela com aquele seu vestido deslumbrante,
eu com a minha confusão e incertezas.
Um ano se passou. Tudo parecia tão diferente.
— Oi — me cumprimentou, e seu oi veio acompanhado por um sorriso
tímido.
Seu cabelo estava solto e seu rosto lavado. Trouxe, junto com ela, um
forte cheiro de sabonete.
— Oi — respondi, sentindo um calor suave subir pelo meu rosto.
O constrangimento me fez engolir em seco.
Ficamos alguns segundos estáticas.
Certo. E agora? Começávamos a nos beijar loucamente?
Meu sonho sempre foi viver aquele momento de filme, no qual o casal
está tão sedento pelo outro que não consegue esperar entrar em casa. O
arrancar das roupas no corredor sempre me intrigou.
Contudo, aparentemente, a vida era mesmo muito diferente dos filmes,
porque Andressa não fez movimento nenhum para me beijar. Pelo contrário.
Ela recuou um pouco antes de dizer:
— Entra, fica à vontade. — Abriu espaço que eu passasse e eu notei que
não era a única desconfortável ali.
— Licença.
Pisei para o lado de dentro, me debruçando para tirar os sapatos antes de
me afastar da soleira da porta. Sabia que tia Diana não gostava que
entrássemos com tênis e eu não a trairia, mesmo sabendo que ela não estaria
ali. Mesmo sabendo que estaríamos sozinhas...
— Aqui — falou Andy, assim que fechou a porta. — Pode me dar isso.
— Quê? — Coloquei-me ereta de uma só vez, desgovernada o
suficiente para pecar na minha já reduzida noção de espaço.
Tenho certeza que dei uma pancada forte em seu rosto com aquela droga
de mochila.
— Jesus! — Fiquei roxa de vergonha. — Desculpa, desculpa —
implorei, me virando, com aquela casca de tartaruga gigantesca, para dar de
cara com Andy e um sorriso largo em seu rosto.
— Tá tudo bem. — Acho que ela mentiu. Acho que eu a acertei. Mas,
independentemente disso, ela estava sorrindo. — Eu só ia pegar sua
mochila — explicou, e eu enxergava um misto de diversão e desvergonha
em seu rosto.
Invejo a facilidade que ela tinha em superar o constrangimento. Acho
que a pancada a libertou. O meu grau de embaraço, no entanto, era tão
grande que eu jamais seria capaz de colocar em palavras.
— Ah. — Sorri. — Claro. — Eu me desvencilhei da droga da mochila.
— Aqui.
A passei para os seus dedos. Ela sorriu.
— Vou colocar no meu quarto.
— Ok. Obrigada.
— Já volto.
— Ok.
— Fica aí rapidão.
— Ok.
“Não fuja”, acho que era o que ela realmente queria dizer. E bom, pela
primeira vez, eu não fugi. Pelo contrário. Pequei por excesso na direção
contrária e não mexi um único músculo. Até que ela resolvesse voltar, eu
fiquei plantada, feito uma idiota, na frente do meu sapato.
Quando ela reapareceu, trouxe de volta minha capacidade de
movimento, uma nuvem de eletricidade e uma pergunta:
— Tá com fome?
Não. Eu estava tão tensa que não sentia nada. Mas eu estava ali para
almoçar, e ficar envergonhada em pé seria bem pior do que ficar
envergonhada sentada. Foi por isso que eu respondi:
— Uhum.
Ela abriu um sorriso largo.
— Espero que você goste. Me empenhei.
Marchou em direção à cozinha e eu a segui, cruzando meus braços.
— Espera. Você cozinhou?
— A sua surpresa me ofende, Camila — retrucou, enquanto eu
adentrava de vez na cozinha e me deparava com uma toalha azul estendida
em cima da mesa.
Nunca tinha visto aquela toalha antes, muito menos aqueles copos
bonitos e desenhados que estavam dispostos em cima dela.
— Eu sei cozinhar muitas coisas incríveis.
Quando a alcancei, ela abria um dos armários suspensos, me estendendo
um prato.
— Tipo o quê?
— Tipo massas.
— Massas? — provoquei. — Você quis dizer macarrão?
Caminhou até o fogão, abrindo a tampa de uma das panelas e
exclamando:
— E frango!
— Uau.
Deu de ombros.
— É basicamente tudo que você precisa para sobreviver.
— Não. — Ri. — Não é não. Nem arroz você sabe?
Deu um passo em minha direção, fazendo um gesto com a mão.
— Posso te servir?
Pois é, ela mandou essa.
Não tenha dúvidas: Andressa era o equivalente exato ao termo em
inglês "gentleman". Com o bônus de não ser um "man" (brincadeira).
Passei o prato para as suas mãos, ainda acanhada.
— Obrigada.
Ela abriu a panela de macarrão e um cheiro maravilhoso de manjericão
tomou conta da cozinha. Parte do meu apetite voltou. A culpa foi metade do
macarrão e metade da conversa esquisita, mas descontraída, que estávamos
tendo.
Preciso confessar que eu estava muito preocupada com a possibilidade
de não conseguirmos conversar absolutamente nada, o clima ficar estranho
e eu ter todas as minhas expectativas para o meu primeiro encontro com
uma garota destroçadas.
Devia ter imaginado que com Andressa as coisas nunca seriam assim.
— Eu erro o sal do arroz — retornou ao assunto quando me devolveu o
prato cheio.
Estava me sentindo um pouco menos travada naquele ponto, então
tomei a liberdade de apoiá-lo na mesa. E me sentar.
— A quantidade de colheres é sempre a mesma quantidade de xícaras
de arroz que você colocou.
Meu pai havia me ensinado esse truque, mas, se eu tivesse que ser
sincera, sabia mais da teoria que da prática. Eu estava julgando Andy por
esporte, nem frango eu sabia fazer.
— E se eu me esquecer quantas xícaras eu coloquei?
Perguntou, de costas para mim, enquanto servia a si mesma.
O short que usava era largo, mas curto o suficiente para deixar aparente
uma parte considerável das suas coxas. Não vou cometer o mesmo erro de
antes e gastar um parágrafo inteiro descrevendo suas pernas. Mas saiba que
eu as notei. E que elas continuavam fabulosas.
— Andressa... — Ri. — Quem esquece isso?
— Quem não esquece?
— Todo mundo?
Terminou de se servir e se aproximou.
A mesa da cozinha da casa dos Batista tinha quatro cadeiras. Ela se
sentou na que estava posicionada à minha frente. Havia um sorriso
descontraído em seu rosto quando falou:
— Você deveria experimentar meu macarrão antes de julgar minhas
habilidades culinárias.
Soltei uma risada baixa, agarrando meu garfo e cedendo.
Querida Andressa, não sei se você sabe, mas macarrão é uma péssima
escolha para esse tipo de ocasião. Especialmente espaguete. Fiz meu
máximo para não passar vergonha enquanto o enroscava no garfo e levava a
boca. Foi trabalhoso, especialmente porque ela me assistiu comer, com a
ansiedade transbordando de suas pupilas.
Mastiguei em silêncio, sustentando o mistério de propósito. Depois que
engoli, ela perdeu a paciência.
— E aí?
Dei de ombros.
— Faltou sal.
— Quê? Sério?
Ri da expressão que tomou conta do seu rosto.
— Não. Tô brincando. — E eu estava mesmo. Nunca conte para ela,
mas Andy fazia o melhor macarrão que eu já comi na minha vida. — Tá
maravilhoso.
Seu sorriso alcançou as nuvens.
— Eu sei fazer mais uma coisa.
— O quê?
— Limonada. — Tive que rir, e minha risada mudou algo em seu rosto.
Seus olhos pareciam mais brilhantes quando ela ofereceu: — Quer?
— Quero. — Balancei a cabeça, novamente tímida. Caía a ficha de que
Andressa havia preparado tudo aquilo para mim. — Obrigada.
Então me serviu outra vez, pescando uma jarra cheia da geladeira e se
posicionando ao meu lado. Debruçou-se em minha direção e, enquanto o
líquido derramava no copo, me encarou. Algumas mechas de cabelo caindo
na frente de seu sorriso. Senti meu coração dar uma cambalhota.
Eu estava muito feliz por ter conseguido chegar até ali.
— Mas me fala. Que horas você tem que voltar pra sua aula? — O
almoço passou voando e, depois que acabamos de comer, Andressa quis
saber dos meus planos vespertinos.
Dei de ombros.
Ainda havia muito macarrão na panela e muitas coisas que eu gostaria
de fazer antes de sair dali.
Não calei a boca nenhum instante durante aquele almoço, e ela me
ouviu tagarelar com uma paciência louvável. Eu estava nervosa e, quando
eu ficava nervosa, eu falava mais do que o normal. Andressa, no entanto,
sempre parecia interessada em meus monólogos. E eu meio que me sentia
na obrigação de compensá-la por aquilo.
— Tô achando que não vou.
Ela me fitou por alguns segundos antes de soltar:
— Mila...
— Eu tenho aula todos os dias. Um dia a menos não vai fazer tanta
diferença assim.
Não demorou nem um segundo para que reconhecesse aquelas
sentenças toscas, e parte disso era mérito meu. Eu parafraseei perfeitamente
a desculpa que ela usou comigo naquele dia no banheiro do clube.
— Ha ha — ironizou. — Ótima estratégia usar as minhas palavras, de
séculos atrás, contra mim.
— Não acha que existe lógica?
— Acho — disse, então suspirou. — Mas não quero que você faça
coisas que você não quer. A gente pode marcar outro dia e...
— Andy — a interrompi, sem nenhuma vontade de ficar ouvindo
palestras sobre como eu deveria comparecer a minha aula de Filosofia.
Droga, eu tinha me programado para aquilo! Uma colega de turma ia
gravar o áudio da aula para mim. Eu ainda era responsável. Eu só,
obviamente, não ia contar isso para ela. Eu queria que ela achasse que eu
era uma rebelde agora.
— O que eu quero é ver um filme. Você toparia assistir alguma coisa
comigo?
Soltou todo o ar de uma vez. Era raro, mas eu posso dizer que daquela
vez, eu a assisti desistir.
— Claro que sim — cedeu, então me fitou. — O que você quer ver?
Sorri fraco. Uma ideia travessa passou pela minha cabeça.
— Você já assistiu Homem Aranha?
CAPÍTULO QUATORZE.
VERDADE OU DESAFIO.
Nunca duvide da força de vontade de uma mulher quando ela está
motivada. Naquele dia, eu estava com muita sorte, afinal, Andressa estava
extremamente empenhada em me agradar.
Ela colocou Homem Aranha para assistirmos na televisão grande que
havia na sua sala. Sim, Homem Aranha (o do Tom Holland). Sem
pestanejar. Esse é o nível que se chega depois de tanto tempo em
abstinência.
O sofá macio e grande da sala de estar dos Batista continuava o mesmo
de quando toda essa história começou. Daquela vez, seguindo a tradição,
ela também fez questão de se sentar respeitosamente distante. E, apesar de
aspirar que tivesse se posicionado mais perto, eu segui o seu ritmo.
Imaginava que ela devesse ter mais experiência em tudo aquilo que eu.
Acho que nunca cogitei a possibilidade de ser diferente para ela também, o
que estávamos vivendo.
Estávamos silenciosamente agitadas. Eu conseguia notar que aquilo era
esquisito e, como sempre, o silêncio me incomodou.
Era natural que estivéssemos quietas, afinal, estávamos vendo um filme.
Mas eu não sugeri Homem Aranha porque eu queria assistir. O que eu
queria era uma desculpa para que Andy pudesse passar o braço ao redor do
meu pescoço e depois... me beijar loucamente.
Infelizmente, ela não fez isso por um bom tempo. Um espaço muito
grande de tempo. Tão grande que eu tive que dizer:
— Você sente que você aproveitou a sua adolescência, Andy?
Sim, eu escolhi quebrar a quietude com aquela pergunta aleatória, mas,
em minha defesa, havia um contexto. Vou tentar explicar. Nós ficamos em
silêncio por trinta minutos completos. Eu, com os pés grudados no tapete,
Andressa, com as pernas abraçadas, encarando aquele filme com uma
atenção que ela jamais o daria se não estivesse tentando me impressionar.
Sustentamos aquela coisa estranha até que chegássemos na cena em que o
Peter e o Ned, seu melhor amigo, vão a uma festa, e aquilo ativou uma
memória em mim. Aquilo me deixou, deslocadamente, nostálgica.
A conversa sobre o tempo que tivemos, no primeiro capítulo dessa
parte, me alcançou mais uma vez.
Eu sei que ainda era jovem, mas os anos estavam passando e eu
começava a refletir sobre coisas mais profundas, como o fato de que eu
sempre fui uma adolescente tranquila. Eu era obediente, cautelosa,
responsável. A típica filha boazinha, que nunca deu trabalho para os pais.
Ver o Peter Parker em uma festa na escola me fez lembrar como eu não
frequentei quase nenhuma, e em como Andressa foi adolescente junto
comigo, mas nossas experiências não pareciam equiparáveis. Eu não tinha
histórias malucas para contar. Sim, eu ainda poderia testar algumas coisas,
mas, conforme o tempo vai passando, a paciência para “fazer merda” vai se
esvaindo. Você perde a desculpa, passa a ser responsabilizado, e perde o
interesse. O que eu sentia, resumidamente, é que eu havia deixado de viver
as coisas nos períodos certos. Parecia que o timing havia passado. Eu sentia,
em muitos momentos, que estava imersa em algo como uma adolescência
tardia. Era um pouco dúbio, porque eu queria assumir as responsabilidades
da vida adulta, mas eu também guardava em mim uma vontade boba de me
divertir. Eu não tinha usufruído muito da minha adolescência e naquele
momento, eu já tinha que ser metade adulta; mesmo que para isso, eu
também não tivesse vocação.
— Como assim? — Um diálogo entre o Peter Parker e seu interesse
romântico parafraseou a surpresa de Andressa.
Dava para ver claramente em seu rosto o quanto ela estava aliviada por
eu ter puxado assunto (mesmo que fosse aquele). Estava quase mais
incomodada que eu com o fato de que estávamos sentadas lado a lado em
um apartamento completamente vazio sem fazer ou falar absolutamente
nada.
— Ah, sei lá. — Dei de ombros. — Eu sinto que eu não aproveitei a
minha adolescência, não como eu gostaria.
Ela arqueou uma de suas sobrancelhas, visivelmente interessada. Eu
gostava da forma como ela sempre parecia se interessar, por tudo que eu
dizia. Ela sabia fazer qualquer assunto render. Ela era capaz de conversar
sobre tudo.
— O que você gostaria de ter feito que você não fez?
— Não sei. — Eu me remexi, virando um pouco mais em sua direção.
— Coisas intensas como... ir a festas, beijar desconhecidos, ter namoros
fracassados, chorar por causa de One Direction, jogar esses jogos bestas que
envolvem bebida, fumar maconha...
Andressa gargalhou.
— Meu Deus, Camila, você quer fumar maconha?
— Não. — Senti que ruborizei um pouco. — Foi só um exemplo.
— A Jéssica consegue arrumar maconha para você, se você quiser.
— Eu não quero maconha, Andressa. — Meu coração começou a bater
rápido. — Eu só quis dizer que eu sinto que não fiz nada de... insano na
minha vida, e ser muito certinha é um pouco cansativo, às vezes.
Ela finalmente guardou o seu sorriso, virando-se por completo na minha
direção. Apoiou um dos cotovelos no encosto do sofá e deixou o peso de
sua cabeça cair em sua mão. Ela me fitou a fundo por alguns segundos antes
de dizer:
— Você ainda pode fazer algumas dessas coisas. Você está vivendo o
momento para elas, na verdade.
— É, eu sei. Mas sei lá... eu achei que a faculdade fosse ser uma
loucura. Só que é meio que normal. A coisa mais maluca que eu fiz naquele
lugar foi te beijar. — Aquilo levou um sorriso travesso para o seu rosto. Eu
me forcei a ignorá-lo ao dizer: — Eu me sinto... sem graça demais? Ai, pelo
amor de Deus, me diz que você já se sentiu assim!
Ela sorriu, mas não me respondeu.
Aconteceu alguma coisa interessante no filme. A trilha sonora era épica.
Porém, nenhuma das duas estava mais interessada naquela desculpa.
Antes que eu pudesse decifrar o que a sua encarada significava, ela se
levantou, dizendo:
— Espera um pouco. Eu já volto.
Então foi até a cozinha, e eu jurei que voltaria com um baseado (o qual
eu jamais colocaria na boca), mas tudo que trouxe junto foi uma garrafa de
plástico metade cheia.
— O que é isso?
Ela se ajoelhou no tapete à minha frente, tapando o rosto do Homem
Aranha com os seus cabelos e deitando a garrafa de lado.
— Isso é o jogo mais idiota que eu jogava na minha adolescência —
explicou. — As regras são as seguintes: vamos girar a garrafa e, quando ela
parar, a pessoa para quem a boca estiver apontando pergunta e a que estiver
do lado oposto responde.
Sorri fraco, reconhecendo.
— Você quer jogar verdade ou desafio comigo?
Ela deu de ombros, me encarando por debaixo.
— Se você quiser.
Meu peito bateu mais forte. Senti meu sangue borbulhar. Eu pedi um
clichê, e ela tinha me entregado o melhor deles.
Eu nunca havia brincado de verdade ou desafio antes, e havia algo de
muito tentador em fazer aquilo sozinha em um apartamento com ela.
Uma euforia boba e delinquente me abocanhou.
Ela estava me cedendo uma cena jovem empolgante, e era óbvio que eu
queria vivenciá-la. O filme ainda discursava sozinho no fundo quando eu
falei:
— Pode começar. — Então desci do sofá e sentei, com as pernas
cruzadas, à sua frente. A garrafa entre nós era como a agulha de uma
bússola. — Gira.
Ela sorriu antes de me obedecer.
Girou forte, e a garrafa teve dificuldade em vencer o atrito com o tapete.
Nada muito preocupante. Nada que a impedisse de parar com a boca virada
para mim, e o grande fardo de ser a primeira a responder todo em cima de
Andressa.
Meus lábios secaram de imediato. Engoli em seco.
Era empolgante estar fazendo aquilo. Era... divertido.
— Verdade ou desafio, Andressa?
Ela sorriu.
— Verdade.
Pensei por alguns instantes.
Apesar de nunca ter jogado, eu entendia como se jogava esse jogo. Você
devia aproveitar a oportunidade para perguntar o que você realmente queria
saber, há algum tempo...
— Algumas semanas atrás você postou uma foto no Instagram, usando
um biquíni amarelo. Estava em uma piscina, o cabelo preso, enfim. A
minha pergunta é: aquela legenda era para mim?
Ela se surpreendeu com a minha fala. Acho que não esperava que eu
fosse ser tão direta. Contudo, ela já devia ter entendido, pelo meu relato
triste de uma adolescente certinha, que eu não sabia brincar.
— Nossa. Ok, você me pegou. — Riu, ligeiramente constrangida. —
Uhum. Era pra você, sim — confirmou, e eu senti um formigamento no
meu estômago.
— Eu sabia! — exclamei. Um terço de mim estava empolgado por estar
certo, os outros pedaços, eletrizados com o que aquela verdade significava.
Caramba, eu não era maluca! Ela me mandou uma indireta depois do
nosso primeiro reencontro na faculdade!
Uau.
Talvez eu tenha me precipitado fazendo daquela a minha primeira
pergunta, porém, Andy não sabia no que tinha se metido. Eu havia acabado
de começar.
Sorri, notando que eu ia gostar muito daquele jogo. Ela sorriu em
retorno.
— Tá, vamos de novo. — Apressou-se em girar a garrafa e, dessa vez,
caiu em mim.
Meus pelos se arrepiaram com a expectativa.
— Verdade ou desafio, Camila?
— Desafio.
— Porra. Ok. Hm... — Refletiu por alguns segundos, até que enfim
decidisse: — Você vai colocar as duas mãos para trás do seu corpo, e não
vai poder as tirar daí, até o fim do jogo.
Eu a mirei, com um sorriso incrédulo.
— É sério?
Ela assentiu, sem se afetar.
— Seríssimo.
Revirei os olhos antes de cumprir com o seu desafio. Entrelacei meus
dedos atrás das minhas costas, e ali os deixei. Fiquei sem mãos, então
Andressa girou a garrafa pela terceira vez. Caiu nela.
— Verdade ou desafio, Andy?
— Verdade.
Sorri.
Eu me descobri boa naquele jogo bem rápido. Não precisava pensar
muito para encurralá-la.
— Quando você começou a ter segundas intenções comigo?
Apesar de ser vergonhoso perguntar isso, eu vinha refletindo a respeito,
e achei que seria o momento ideal para questioná-la. Precisava saber se
estava maluca ao imaginar que, desde aquela maldita resenha que
frequentamos juntas, havia uma centelha crescente entre nós. Eu não estava
sendo egocêntrica (demais) ao fazer aquela foto fantástica ser sobre mim.
Talvez, também não estivesse inventando isso. Minha curiosidade
arranhava. Ela não demorou muito para dizer:
— Sinceramente? Não houve um segundo que eu não tive segundas
intenções com você.
Ok, eu não estava esperando por essa resposta.
Aquela confissão me desestabilizou um pouco.
Não havia nada no seu rosto que me levasse a crer que foi um exagero,
ou uma mentira. E pensar que Andy quis me beijar desde sempre foi
lisonjeiro. Foi... (não serei modesta, desculpe) triunfante. Eu me senti a
pessoa mais desejável do mundo e minha barriga entrou em combustão.
Fingi que não.
— Ah. Então foi por isso que do nada você começou a ser legal comigo,
depois daqueles meses em tratamento de silêncio?
— Tratamento de silêncio?
— É. Todos os meses que antecederam aquele dia na cozinha, foram
meses de silêncio. — Ela riu.
— Mila, isso é um exagero.
— Não é não. Você simplesmente apagava a minha existência. Você
não falava nada comigo além de bom dia.
— Isso não é verdade...
— É sim, Andressa. Você passou meses me ignorando.
— Deus, Mila! — Riu, colocando-se ereta. — Eu não passei meses te
ignorando. Eu passei meses tentando ignorar o fato de que eu queria beijar a
melhor amiga do meu irmão.
Silêncio.
Meu peito deu uma cambalhota. Depois outra. Depois outra.
Sustentei o olhar que ela me deu, inofensivo, mas nada inocente. Depois
de alguns segundos muda, deixei escapar uma risada sem graça e ela a
capturou com seus olhos.
O ambiente ao redor de nós congelou. Pigarreei.
— Roda você, por favor. Eu não tenho mãos — pedi, me pegando
ligeiramente rouca. Acho que eu estava indo um pouco longe demais com
aquelas perguntas. Notar isso não me fez recuar.
Andy obedeceu. A garrafa girou, girou, então caiu em mim.
— Verdade ou desafio?
— Desafio.
— Nossa, Camila. Você é alérgica a verdade ou algo do tipo? — Dei de
ombros. — Tá bom, mas se cair em você de novo, tem que escolher
verdade.
— Por quê?
— Porque são as regras. Não pode repetir mais do que duas vezes
seguidas.
Eu não sabia se aquela regra existia, mas, sinceramente, não queria ter
que procurar. Era mais interessante dizer:
— Certo. Então isso significa que o seu próximo tem que ser desafio.
— Estou ciente. Mas primeiro, o seu. — Ela me mirou. Seus olhos
passeando pelo meu rosto. Havia uma faísca em seu olhar, e aquilo me
provocou um arrepio. Eu fui sentindo meus pelos se arrepiarem, pouco a
pouco, até que ela dissesse: — Quero que você me mostre a última
conversa que você teve no WhatsApp.
Que balde de água fria! Não aguentei.
— Meu Deus, Andressa, que desafios são esses?
Ela gargalhou, cruzando os braços.
— Você tem melhores?
— Com certeza.
— Tá bom, então. Nem vou girar a garrafa. Qual o meu desafio?
— Não quer que eu faça o meu?
— Não. Estou curiosa para saber o que você quer que eu faça.
Dei de ombros.
— Eu quero que você tire uma peça de roupa.
A facilidade com a qual eu disse aquilo surpreendeu até mesmo a mim.
Eu me sentia perigosamente à vontade perto de Andressa. Eu me sentia
constantemente em ebulição. Eu não sabia mesmo jogar aquele jogo.
— Ah. É assim que você quer jogar? — Sorriu torto. — Ok, entendido.
Então pode escolher. Qual peça eu devo tirar?
Eu me arrependi um pouco da minha decisão depois daquilo. Caiu a
ficha ali do que eu realmente a havia desafiado a fazer. Meu ventre entrou
em chamas. Eu amarelei.
— Não sei...
— Se você não escolher uma minha, eu vou escolher uma sua.
Parei de respirar por alguns instantes.
— Não é assim que o jogo funciona.
— Tem certeza que não? — provocou. — Você nunca jogou antes...
Ela estava inventando regras, e isso me incomodaria em um dia normal.
Mas, bom, sua ameaça surtiu efeito. Eu me obriguei a tomar uma decisão
antes que acabasse pelada.
— Você tá usando sutiã?
— Tô.
— Então o sutiã.
Andressa sorriu, sacana.
Eu fui pelo caminho mais seguro. Ela tinha poucas peças para tirar, e a
camisa larga me protegeria da indecência que eu solicitei. Não que eu não
quisesse recebê-la. Na verdade, eu só pedi porque eu queria para caralho.
Mas eu fiquei com vergonha. Por pouco tempo.
Andressa gostou mais do meu tipo de jogo que do dela, e conseguiu
fazer daquele processo a coisa mais aliciante da minha existência.
Levou ambas as mãos para debaixo de sua própria blusa, mantendo seus
olhos costurados aos meus enquanto tateava o fecho.
Engoli em seco.
Não conseguia enxergar nada que acontecia nas suas costas, e minha
imaginação foi à loucura. Eu sempre fui uma pessoa criativa, e consegui
sentir aqueles dedos, demorando-se mais do que o necessário naquele
fecho, como se eles estivessem em mim.
Ela soltou o sutiã, retirando as alças, uma por uma, pelos seus braços.
Fui tendo vislumbres recortados da peça, até que ela a puxasse pela
barra da blusa e eu enxergasse por completo a renda preta.
Minha garganta secou.
Ela era tão delicadamente ousada. Ela era tão... tentadora.
O balançou na nossa frente.
— O que faço com ele agora, Mila?
— Pode... — pigarreei. — Ficar.
Riu.
— Tá bom. — Então o apoiou ao lado do seu corpo e deslizou
novamente seu olhar para mim.
Fui paralisada pelo choque de suas pupilas.
Meus braços ainda estavam grudados nas minhas costas quando ela,
sem sutiã e sem vergonha, debruçou-se outra vez na direção da garrafa,
rodando-a sem pena.
A boca apontou em sua direção. Ela não perdeu nenhum segundo.
— Parece que alguém vai ter que dizer a verdade — provocou, me
encarando com um sorriso torto.
Dei de ombros, esperando pelo impacto. No entanto, tudo que ela quis
saber, foi:
— Qual o seu maior medo?
Aquilo me pegou completamente desprevenida.
Acho que nenhuma de nós sabia brincar daquela porcaria. Eu a pedia
para tirar a roupa. Ela me perguntava sobre o meu maior medo.
— Nossa! — exclamei. — Sério?
Assentiu.
Porra, Andy, você podia ter me questionado, sei lá, sobre a minha
primeira transa, meu fetiche mais esquisito, mas você quis saber isso. Você
quis levar a sério. E eu levei.
— Minha mãe. — Apesar de ter de um teor completamente divergente,
aquela resposta foi tão espontânea quanto o desafio que eu lancei na rodada
anterior.
Saiu antes que eu pudesse pensar a respeito.
De certo modo, eu só estava jogando conforme as regras. Eu precisava
dizer a verdade, e eu disse. A coisa que eu mais tinha medo no mundo era
da minha mãe. Não sei se já tinha me dado conta disso antes daquele dia.
Minha resposta fez a expressão de Andressa mudar. Tenho certeza que a
minha também mudou.
Pesei o clima. Pesei para caralho.
Tá vendo por que eu não gostava de falar a verdade?
Eu me desesperei.
— Roda — pedi, ansiosa para dissipar a intensidade do que eu havia
acabado de dizer. — Por favor.
Andressa me respeitou.
Sem dizer nada, girou a garrafa. Ela parou com o fundo voltado para
mim.
— Você de novo, Camila. Verdade ou desafio?
— Ah, não. Roda direito! Eu acabei de ir!
Eu me esforcei para tornar o clima leve e esquecer o que eu a havia
confessado. Ela me ajudou.
— Que foi? Tá ansiosa pra me fazer tirar outra peça de roupa?
— Talvez. Roda até cair em você, eu já cansei de responder.
Depois de uma verdade. Uma já foi o suficiente.
— Ok. — Ela não protestou, manipulando o jogo e virando-a na direção
contrária, com a boca apontada para mim.
Sorri fraco, aliviada.
Acho que era por isso que era tão fácil ser sincera com ela. Ela nunca
me deixava desconfortável. Ela sempre sabia exatamente como agir.
— Verdade ou desafio, Andy?
— Verdade.
— Ué — tive que provocar. — O que foi? Está com medo de ter que
tirar outra peça de roupa?
— Na sua frente? Nunca. Não precisamos nem de jogo pra isso.
Certo, o efeito que ela me causava era mesmo muito mais forte que o
constrangimento. Senti pontadas nos lugares errados. Esqueci por completo
da minha mãe, de medos e de jogos de adolescente. Comecei a ansiar que
aquele jogo acabasse logo. Que fôssemos para o próximo...
Ela sorriu, provocativamente.
— Tá difícil pensar em uma pergunta dessa vez?
Maldita.
Fiz o meu máximo para desviar dos pensamentos libertinos e retrucar:
— Com quantas pessoas você já ficou?
— Com quantas eu já fiquei? Na vida toda? — Assenti. — Porra. Eu sei
lá.
— Meu Deus, você perdeu a conta?
— Não. Calma — se corrigiu. — Só preciso pensar.
Misericórdia.
— Mudei de ideia. Quero trocar minha pergunta. Pode?
— Não — riu. — Mas eu vou te deixar fazer isso, porque você fica
linda com ciúmes.
Demorei muito mais do que o esperado para pensar em outra pergunta
depois que ela falou que eu ficava linda quando estava com ciúmes.
Enquanto eu tentava raciocinar, sem nenhuma vocação para isso, ela
tombou sua cabeça de leve para o lado, me estudando.
— Você sabe com quantas você ficou, Mila?
Óbvio. Foram quatro. Duas garotas, meu ex namorado e o garoto do
meu primeiro beijo (que durou menos de cinco segundos).
— Não — menti. — Tenho que pensar também. Foram tantas.
Ela sorriu.
— Essa é uma das suas fantasias não realizadas da adolescência, né?
“Beijar desconhecidos”. Ainda dá tempo, mas não sei se recomendo.
Também é legal beijar conhecidos, sabe? Especialmente aqueles de longa
data...
“Beijar conhecidos”.
Não provoque apenas, Andressa, termine.
— Certo. Eu não sei o que perguntar. Pode ir você. — Cedi minha vez,
nervosa com o que ela estava fazendo.
Ela sorriu, orgulhosa.
— Tá. — Nem pensou em discutir. Sequer girou a garrafa antes de
dizer: — Verdade ou desafio?
— Desafio.
Estávamos fazendo tudo errado, e aquilo era exatamente o que eu
precisava para a minha fantasia jovem “inconsequente”.
A satisfação que tomou conta de seu rosto tinha cheiro e gosto de
pecado.
Não disse nada antes de se aproximar de mim.
Colocou-se de joelhos, pescando a garrafa e a balançando. Havia o
equivalente a um copo de água ali dentro. Mais do que precisaríamos, com
certeza.
— Eu vou derramar um pouco disso em você — explicou, casualmente.
— Depois, eu vou limpar.
Um arrepio intenso desceu por toda a minha espinha.
— Vou ser boazinha e deixar você escolher o lugar. Me diz, Mila.
Onde?
Gelei.
Ok, era minha culpa. Eu havia pedido por isso. Ela só queria ver as
minhas conversas do WhatsApp enquanto eu a mandei ficar sem sutiã.
Precisaria aguentar a retaliação.
— Qualquer um? — questionei, notando que minha garganta estava
ressecada.
Ela assentiu. Inspirei profundamente.
Eu podia fazer algo muito errado, ou algo não tão errado assim.
Ainda não tínhamos tanta intimidade para optar pela primeira opção,
então eu só tive coragem de descer a alça da minha camiseta, deixando meu
ombro de fora e apontando para o ponto que dividia o pescoço e meu ombro
esquerdo.
Andy se aproximou sobre os seus joelhos. Havia um sorriso malicioso
em seus lábios quando ela afastou algumas mexas do meu cabelo que
atrapalhavam seu caminho. Com uma só mão, desenroscou a tampa da
garrafa, derramando, delicadamente, aquela água exatamente onde eu pedi.
Acho que eu já estava muito quente naquele momento, porque o gelado
do líquido me deu um choque. Arfei, agarrando seu braço por puro reflexo.
A água escorreu e Andressa riu.
— Camila. Mãos para trás até acabar o jogo. Lembra? — me
repreendeu. — Eu já te dei uma brecha.
Soltei um som esquisito com a garganta. Uma mistura de indignação e
excitação. De primeira, não quis obedecer, mas então ela segurou um dos
meus pulsos, guiando-o até as minhas costas, e eu jamais faria algo para
contrariá-la depois daquilo.
Seu rosto ficou a centímetros do meu e foi bastante difícil não roubar, só
um trago, da sua boca. Meu pulso palpitava sobre seus dedos. Ela me
encarou.
— Mãos aqui — orientou, guiando meu outro braço também para as
minhas costas e sorrindo um de seus sorrisos mais sacanas. Obedeci, e ela
me compensou por isso acariciando de leve meu rosto. — Se quiser parar, é
só dizer. — Então se afastou outra vez, voltando toda a sua atenção para o
concentrado que escorria pelo meu braço.
Caso você ainda tenha alguma dúvida: não, eu não quis parar nem um
pouco quando ela lambeu meu braço inteiro.
Foi basicamente impossível me manter composta enquanto ela percorria
a trilha congelada com a sua boca, paralisando no meu pescoço e sugando o
que ainda restava. Sua língua na minha pele, seus braços, apoiados cada um
de um lado do meu corpo. Seu cheiro delicioso, e meus pulsos,
figurativamente algemados para trás. Aquele era um dos melhores
momentos da minha vida. Só seria melhor se ela nunca tivesse parado.
Suspirei, sentindo um formigamento delicioso por toda a sua rota. Ela
havia acabado de afastar sua boca quando eu questionei:
— Você vai escolher desafio agora? — Arranhei meu próprio pulso. O
fato de me manter daquele jeito, sem mãos e sem sua língua em mim, era
uma punição das mais terríveis. Ela arqueou uma de suas sobrancelhas.
— Ah, é a minha vez?
— É. — Foda-se que ninguém havia girado a garrafa. Estávamos
fazendo errado desde o início.
Ela acatou minha imposição absurda.
— Ok. Desafio então.
— Permissão para mexer meus braços?
— Permissão concedida. Por trinta segundos.
Eu os usei com sabedoria. Puxei, às pressas, a garrafa de seus dedos,
derramando uma quantidade completamente insana e desnecessária de água
congelante no meu decote. Fiz uma bagunça, incapaz de ser sexy. O gelado
da água me arrepiou por inteira, molhando minha camisa e escorrendo até...
sei lá, meu umbigo.
— Ai merda, isso tá gelado pra caralho! — Dei uns saltinhos contidos.
— Você podia ter pegado uma garrafa fora da geladeira, Andy. Meu Deus!
— Comecei a rir, esbarrando com os seus olhos.
Ela me encarava de uma maneira engraçada. Havia uma pontada sutil de
admiração em suas pupilas. O Peter Parker passou atrás de seus cabelos,
mas era como se as câmeras estivessem em mim.
— É pra eu limpar? — quis saber e eu assenti. Ela sorriu. — Mila,
nunca tenha dúvidas. Não tem nada de sem graça em você.
Então cumpriu com o seu desafio antes que eu pudesse me derreter com
o que havia acabado de dizer.
Coloquei meus braços para trás assim que senti sua língua no meu colo.
Jamais arriscaria interromper aquilo por desobediência. Jamais arriscaria
interromper aquilo por qualquer motivo que fosse.
Quase não conseguia respirar enquanto ela sugava cada gotinha daquela
água derramada. Não foi tão ousada quanto eu gostaria, sequer cogitando
seguir a trilha até minha barriga. Ela seguiu a direção contrária, tomando
minha boca com a sua.
Tudo bem, não a fiz parar. Foi ótimo também. Mais que ótimo, na
verdade. Foi ali que finalmente conseguimos. Finalizamos tudo aquilo nos
beijando loucamente.
Aquele era mesmo o meu dia de sorte.
Ela me agarrou, e eu, completamente imobilizada e eufórica, tive que
saber:
— Andy?
— Hm?
— O jogo acabou, né?
Escutei-a rir antes de responder:
— Sim, linda. Pode usar as mãos.
Linda. Ela me chamou de linda. Graças a Deus eu podia usar as mãos!
Foi tão inebriante segurar seu rosto quanto senti-la segurar o meu. Seu
beijo deixou meu corpo em chamas. Começamos no chão, mas, quando eu
me dei conta, estávamos de volta ao sofá, e eu não sabia mais que parte era
minha e que parte era dela.
Se um dia me dissessem que eu rolaria naquelas almofadas com aquela
Batista, eu jamais teria acreditado. Mas ali estávamos nós, e não haveria
outro lugar no mundo que eu preferisse estar.
Aquilo era tão bom. Eu me sentia livre perto dela. Eu me sentia viva.
Andressa deslizou os dedos de maneira delicada pelos meus cabelos
antes de alcançar minhas costas. Descolou meu corpo do encosto e me
guiou para baixo.
Ela me fez deitar de costas e se posicionou em cima de mim. Senti o
peso de seu corpo e o encaixe de sua bacia. Seu peito roçava no meu, suas
mãos tracejavam o contorno da minha barriga. Eu estava prestes a suspirar
quando ela abandonou minha boca.
Tive poucos segundos para sentir falta de seus lábios antes que ela
pousasse um beijo exploratório no meu queixo. Eu me remexi e ela desceu
mais, largando uma trilha de labaredas pelo meu pescoço até dar de cara
com a gola da minha camiseta. Não existia mais um centímetro do meu
corpo que não estivesse latejando quando ela a afastou delicadamente para
baixo, pousando um último beijo no espaço entre meus seios. Ainda estava
molhado ali, mas eu me sentia tão quente que, em segundos, a água que eu
derramei evaporou.
Apertei a almofada mais próxima. Foi o suficiente para ela. Ela voltou
sedenta para a minha boca, e eu a recebi de volta com muito apreço. Seus
dedos apertando minha cintura, o beijo se tornando ofegante, desgrenhado.
Cada respiração mais intensa do que a anterior. Cada toque menos pudico.
Sentia o sangue pulsar em minhas orelhas. Eu estava usando uma camiseta
justa. Lentamente, ela foi invadindo o espaço debaixo dela com seus dedos.
O calor de sua pele contrastava com o gelado de seus anéis. Meu peito
batia rápido, bombeando meio litro de excitação e nervosismo, em seu mais
puro estágio. As coisas estavam evoluindo e eu senti minha garganta secar.
Ok, o jogo havia acabado. Isso era real, e era mais uma linha para se
ultrapassar. Uma das grandes. Era vencer mais uma fase. E não se engane,
eu queria. Eu queria mais do que tudo. Mas, mesmo assim, me peguei
enrijecendo.
— Andy... — Eu me odiei por interromper aquele beijo, mas precisava
avisar.
Andressa abriu os olhos de imediato.
— Oi?
Ela me fitou e eu pigarreei, sentindo o rubor tomar conta do meu rosto
enquanto confessava, em um sussurro quase inaudível:
— Eu nunca... fiz com uma garota antes.
Eu me senti mais exposta a contando aquilo do que se já estivesse
completamente sem roupa. No entanto, minha vergonha não durou muito
tempo.
Diante da minha confissão, Andressa sorriu fraco, cúmplice, acariciando
meu rosto com tanta delicadeza que eu me senti de porcelana. Havia uma
quantidade tão grande de zelo e carinho em seus olhos que eu tive certeza
de que não poderia ter vivido aquele momento com alguém melhor. Ela
validou, compreendeu e acolheu meu receio. Ela o transformou em algo
diferente. Ela me deixou confortável.
— Mila, nós não precisamos fazer nada...
— Não — fui rápida. — Eu quero — garanti, com uma certeza que
vencia qualquer outra que já tive na vida. — Eu quero — repeti, mirando
aquele rosto lindo. — Por favor.
Não gostaria de estar com nenhuma outra pessoa. Não queria mudar
nada daquele momento. Eu queria que minha primeira vez fosse com ela,
não haveria ninguém que eu confiasse mais para aquilo. Ninguém que
pudesse fazer eu me sentir mais segura.
— Você tem certeza? — insistiu. — Eu juro que não te chamei aqui pra
isso. Eu...
Puxei-a pela blusa e a interrompi com um beijo.
Seu gosto era tão bom.
— Eu tenho certeza — garanti, cortando o contato com sua boca para
me aventurar por dentro de sua camiseta.
Sentir as suas costas com a ponta dos meus dedos estava no top três
experiências mais fantásticas que eu já tive na minha existência. Ocupava,
com louvor, o terceiro lugar. O segundo, eu não conseguia me decidir, entre
todas as vezes que estivemos juntas. O primeiro... bom, o primeiro
aconteceria em poucos minutos.
— Só não espere muito conhecimento da minha parte — foi o que eu
pateticamente disse, encontrando um abrigo seguro para os meus dedos em
sua cintura. — Mas eu sou esforçada — garanti, o que a fez rir, pousando
um último beijo em meus lábios antes de se colocar de pé, estendendo uma
das mãos em minha direção.
— Vem.
— Pra onde?
— Pra outro lugar que não seja esse sofá desconfortável.
Pendi a cabeça para o lado. Meu peito batendo rápido.
— Eu estou achando ele bastante confortável.
— Não será por muito tempo. — Sorriu, balançando a mão estendida e
me incitando a segurá-la. — Confia em mim.
Era fato sacramentado que eu confiava, então não tive outra escolha
além de colocar tudo que ela havia derramado para dentro e segurar sua
mão. Aceitei ser guiada até seu quarto, descalça, descabelada e com meia
tonelada de tensão acumulada. Abandonamos o jogo, as verdades e a
garrafa para trás. E eu aceitei, profundamente grata, tudo que veio a seguir.
CAPÍTULO QUINZE. QUE
MEUS PAIS NUNCA LEIAM
ESSE CAPÍTULO.
Foi muito estranho adentrar o ambiente que eu considerava sagrado com
meus dedos entrelaçados aos de Andressa e meu pescoço ainda marcado
pelos seus beijos.
Seu quarto estava quase idêntico às únicas vezes que eu estive ali antes.
As prateleiras, as medalhas, a cômoda com as fotografias.
Assim que passamos pelo batente, ela soltou minha mão, caminhando
em direção à mesinha ao lado de sua cama e acendendo um abajur.
Uma luz amarelada sombreou seu rosto e me fez suspirar. As cortinas
estavam todas fechadas, impedindo que a claridade do dia atrapalhasse.
Fui abandonada ao lado da porta, e me peguei buscando a maçaneta, por
puro costume. A nostalgia me enovelou.
— Andy? Posso fechar a porta dessa vez? — perguntei, enquanto ela
caminhava novamente para perto de mim.
Paralisou em frente à cômoda, então sorriu.
— Por favor.
Puxei-a, nos afastando de vez do mundo.
— Tranco?
— Com certeza.
Rodei o pino e, quando voltei meu olhar para ela outra vez, senti minha
barriga congelar.
Andressa estava usando meia dúzia de anéis naquele dia, e começou a
retirá-los, um por um, pousando-os ao lado das fotografias.
Aquilo foi a coisa mais despretensiosamente sexy que eu tive o prazer
de vivenciar na minha vida.
Ca-ra-lho.
A antecipação varreu minhas tripas.
Ironicamente, foram as palavras de Ana Clara que consumiram minha
mente naquele instante.
“Sua amiga de infância tem uns truques bem legais”. Eu estava
visceralmente ansiosa para experimentar.
Senti meu pulso acelerar, um tanto que achei que ia ter um infarto.
Ok, estava acontecendo.
Ela me levou para o seu quarto para fazer o que eu tinha pedido. O que
eu esperava, há mais de um ano. Eu não conseguia respirar, estava nervosa,
então disse a primeira coisa que passou na minha cabeça:
— Sabia que eu tive um sonho erótico com você uma vez? — Poderia
ter parado por aí, mas não parei. — Nessa mesma cama. — Apontei para o
lençol cinza esticadíssimo. — Depois que dormimos juntas.
Minha confissão pairou no ar como uma bomba nuclear.
Primeiro o choque, depois o barulho.
Puta que pariu.
Puta que pariu, Camila!
Explique para mim: por que eu precisava contar isso para ela? O jogo
havia acabado, eu não precisava mais ser sincera. Mas eu fui. Com Andy,
eu não conseguia fazer diferente. E, independente dos motivos, foi uma
ótima escolha. Pude ver o quanto ela gostou de saber.
Arqueou uma de suas sobrancelhas. Uma risadinha irônica escapou de
seus lábios.
— Ah, é?
Então deu dois passos em minha direção. Passos largos, robustos,
certeiros. Suas mãos alcançaram minha cintura e ela me puxou em sua
direção. Nossos peitos colidiram e eu suspirei, aliviada por estarmos
voltando àquilo. Muito mais seguro que me deixar com o silêncio.
— O que acha de me contar como foi?
Engoli em seco.
O quarto estava escuro. Sua silhueta era recortada pela penumbra
produzida pelo único abajur. Eu conseguia enxergar perfeitamente bem o
volume de seus cabelos, a circunferência de seus ombros, seus lábios, tão
próximos...
— Eu não lembro muito bem...
— Ok. — Manteve minha cintura aprisionada com uma das mãos,
enquanto com a outra, tirava o cabelo do meu rosto. — Deixa eu refrescar
sua memória — pediu, desistindo de jogar limpo. Sem cabelo no rosto, sem
qualquer tipo de pudor. — Começava assim? — questionou, enfiando de
vez sua mão debaixo da minha blusa e traçando uma rota retilínea desde o
topo da minha espinha, até o cós do meu short.
Seu toque era como fio desencapado. Ela fez aquilo três vezes antes que
eu cedesse.
— Na verdade... — Entrei no seu jogo, abraçando-a pelo pescoço
enquanto ela encontrava o fecho do meu sutiã, enroscando seus dedos nele e
o abrindo. — Não — confessei. — Estávamos deitadas.
— Porra. — Riu, com seus olhos permanentemente entrelaçados aos
meus. — Esse já foi o começo?
— Uhum. — Encontrei espaço para sorrir também. — Não há tempo a
perder.
— Bom, se você diz.
Então ela me apertou com ainda mais força e me carregou até a ponta
do seu colchão. Soltei um gritinho quando me empurrou, despencando em
cima de mim. Um emaranhado de sorrisos e cabelos ocupou todo o meu
campo de visão.
Em um segundo, eu estava rindo, relembrando o fato de que sua cama
era extremamente confortável. No outro, a ouvia dizer:
— Você tem certeza mesmo, né?
Como ela tinha a audácia de perguntar aquilo enquanto estava
montada em cima de mim?
— Se você me perguntar mais uma vez, eu juro que vou embora.
— Não. Você não vai, não. — Ela me apertou, em uma postura
possessiva que eu nunca havia presenciado antes. Gostei muito daquilo.
— Ótimo. Então me faça ficar.
Aproximou o rosto do meu, e eu jurei que ia me beijar, mas então seus
lábios alcançaram meu ouvido e ela sussurrou:
— Como quiser.
Depois disso, iniciamos o meu top 1 momentos mais incríveis da minha
vida, com Andressa me beijando, enquanto tirava a minha blusa.
Caralho.
Por quantos meses eu fantasiei aquilo? Pelo menos tive a decência de
contar apenas sobre um dos sonhos eróticos que tive com ela. A verdade é
que foram vários.
Meu sutiã já estava quase na minha cintura quando ela o retirou do
nosso caminho. O arremessou para longe, e eu me senti levemente sem
graça quando ficou parada, me encarando. Os olhos quase incrédulos,
passeando pelo meu corpo.
— Deus. Você é a coisa mais linda que eu já vi na minha vida —
escutei-a murmurar, antes de desistir de espiar a distância e distribuir
centenas de beijos no meu ombro, pescoço, queixo.
Fui incapaz de frear um suspiro, deitando a cabeça para o lado e a
puxando pelas costas. Sua camiseta roçava em meu peito e sua virilha na
minha. Ela dedilhou minha barriga inteira antes que decidisse levar ambas
as mãos até meus seios, apertando-os e preparando terreno para que
finalmente chegasse com a sua língua.
Passou bastante tempo ali, o que foi cruel e inebriante.
Ana não mentiu, seus truques eram ótimos.
Naquele ponto, eu já estava entregue. Todos os centímetros da minha
pele em chamas. Não haveria outro lugar para a sua boca longe de mim. Eu
nunca mais permitiria. Eu precisava de mais.
— Andy — murmurei, sentindo minha alma ser sugada e desmantelada
pelos desenhos que ela fazia com a língua. Meu chamado a fez estacionar,
poupando meus mamilos e sorrindo.
— Eu gosto muito quando você me chama assim — confessou, levando
sua boca até a minha e me beijando como se as nossas vidas dependessem
disso.
Até certo ponto, acho que elas realmente dependiam.
O beijo se estendeu molhado até que ela levasse as mãos ao meu zíper e
finalmente o arrastasse para baixo.
Arfei com a expectativa, sentindo o pulsar tão intenso quanto uma
tempestade de relâmpagos.
Ela travou.
— Mila? Preciso que você me diga até onde posso ir — sussurrou. —
Se você se sentir desconfortável, em qualquer momento, preciso que me
avise.
— Andy...
— Promete? — Até tentei, mas não consegui dizer nada. Meu cérebro
era uma ameba gigante, nada além. — Camila?
Inspirei profundamente, buscando seus olhos. Ela falava sério naquele
ponto. Realmente se preocupava com aquilo e, por isso, eu me esforcei para
retribuir.
— Prometo — garanti.
Então tomei a iniciativa de agarrar meu short e o puxar para baixo,
facilitando seu serviço.
Fiz a melhor escolha da minha vida naquele dia e usei a minha calcinha
mais bonita.
Vermelha. Minúscula.
Ela disse mais cedo que não havia me chamado para aquilo, só que nós
duas sabíamos que tinha, sim. E minha calcinha de renda comprovava que
eu tinha aceitado o convite pelo mesmo motivo.
Eu quis aquilo por tanto tempo…
Eu tive tanto medo...
Não naquele instante.
Naquele instante, serei gráfica, eu estava pingando de desejo.
Não existia nada fora daquelas quatro paredes. Nada além dela.
Levantei meu quadril, me contorcendo para conseguir me livrar daquele
jeans pesado. Quando me joguei de volta no colchão, senti o lençol quente
na minha coxa e o corpo de Andy como labaredas, por cima.
Notei que ela engoliu em seco. Enxergava a depravação que escorria de
seus olhos, mas ela não ousou os desviar do meu rosto até que eu dissesse:
— Vá em frente.
Foi como se tivesse levantado a bandeira e dado a largada a uma
corrida. Nunca a vi ser tão ágil quanto naquele instante. Um segundo e suas
mãos inteiras estavam espalmadas na minha bunda.
Meu corpo todo tremeu quando ela se encaixou em cima de mim, me
beijando enquanto seus dedos passeavam por toda a parte interna da minha
coxa. Ela explorou cada centímetro, arrastando com as unhas próximo, mas
nunca no centro, me provocando, até que eu simplesmente não aguentasse
mais.
Apertei-a com força, ofegando na sua boca. Ela sorriu, convencida.
— Caralho, Mila — exclamou, arrastando-se mais para baixo e
passeando casualmente com os dedos por cima da minha calcinha. Naquele
ponto ela já estava, nada discretamente, encharcada. — Isso tudo é pra
mim?
— Não — minha voz saiu rouca. — Eu estava pensando no Chris Evans
por todo esse tempo.
Andressa me puniu pela minha resposta petulante (e mentirosa) ao
investir de leve, mas não concluir nada. Uma de suas mãos se manteve ali,
me alisando, enquanto a outra voltou a atormentar meus mamilos.
Andy era completamente insana. Sabia que ela não era, nem de perto,
ruim, mas era nisso que eu acreditava naquele momento. Só podia ser um
ato de ruindade fazer questão de me provocar daquele jeito. Ela era lasciva,
quente. A forma como me desmontava era quase metódica.
Quando me beijou outra vez, seu beijo era faminto. A língua molhada,
entrando e saindo, os dedos incansáveis. Ela fez graça por mais alguns
instantes, até que encontrou o ponto exato, e o fez pulsar, com uma barreira
de tecido tornando o atrito ainda mais forte.
Puta. Que. Pariu.
Enfiei as minhas unhas no colchão, para não ter a atitude hostil de
cravá-la nas suas costas. Eu era boazinha. Nunca achei que Andressa
pudesse ser tão melhor.
— Como estamos do sonho, Mila? Próximas? — Afastou-se da minha
boca para me perguntar. Paralisando, para a minha total infelicidade, com
todos os seus ataques.
Tive um segundo para respirar, mas não consegui puxar ar nenhum,
muito menos respondê-la. Eu me encontrava em outra dimensão. A infeliz
insistiu:
— Camila? Me conte como termina seu sonho.
— Eu... — acabou por aí.
Não sabia falar mais. Estava amortecida e estalando, por inteiro.
— Vamos, Camila. Você consegue — provocou, com suas palavras e
com seus dedos, retomando mais um movimento interessantíssimo por cima
do tecido. Do lado errado dele.
Porra, Andressa.
Abri meus olhos.
Certo, era isso que ela queria? Então vamos lá.
Com a respiração entrecortada, busquei seus dedos, os arrastando e os
abandonando exatamente onde eu os queria. O lugar que era seu, por
direito. Ela o ocupou com maestria.
Seus olhos estavam cravados nos meus quando ela empurrou a calcinha
para o lado, me dando enfim uma conclusão digna para aquela cena.
Todos os pelos que ainda não estavam arrepiados se tornaram mini
agulhas. Graças a Deus não tinha ninguém em casa, porque eu descobri que
poderia ser muito barulhenta.
Ela foi aumentando o ritmo e a quantidade de dedos, e eu joguei minha
cabeça para trás, deixando-a fazer todo o serviço. Usou grande parte de seu
arsenal naquele dia. Língua, dedos, palavras. Juntos e separados. Era
multidisciplinar, e não economizava nem um pouco em sua ousadia.
Não consegui segurar por muito mais tempo. Agarrei o lençol enquanto
me debatia e derretia, por completo.
Eu vi estrelas. Meteoros. A porra de saturno.
Levei um dos braços ao rosto, tentando recuperar a minha capacidade
de respirar quando ela se deitou ao meu lado. Seu cheiro impregnado na
colcha. Estava certa em buscar um colchão para aquilo, eu teria despencado
no chão se não tivéssemos tanto espaço.
Minha dificuldade para recuperar o movimento das minhas pernas e
de... todo o resto, a preocupou.
— Ei. Tá tudo bem? — perguntou, apoiando uma mão delicada no meu
rosto.
Afastei meu próprio braço para encará-la, jogada ao meu lado. Bonita
como o crepúsculo.
Inspirei profundamente, juntando forças e apoiando o peso do meu
corpo sobre os meus cotovelos. Flagrei quando ela despencou seus olhos
nos meus peitos, mas recuperei sua atenção ao dizer:
— Não. — Dei um tempo para se inquietar com o que eu havia dito
antes de esclarecer: — Afinal, você ainda está completamente vestida.
O sorriso que tomou conta de seu rosto era imoral de centenas de jeitos
diferentes. Retribuí.
— Quer me ajudar a resolver isso?
Dei de ombros.
— Acho que posso tentar.
Ela se debruçou de leve para trás, me encarando em desafio.
— Fique à vontade.
E eu fiquei. Estava mais do que à vontade, na verdade. Eu estava
completamente embebedada pelo seu feitiço.
Não pensei duas vezes antes de agarrar a barra de sua camisa,
encarando-a nos olhos enquanto a arrastava pela sua cabeça.
Ela balançou os cabelos e eu prendi a respiração.
Deus. Ela conseguia ser ainda mais perfeita do que eu tinha imaginado.
Não podia acreditar que eu tinha tudo aquilo a um palmo de mim. Que
eu poderia tocá-la!
Matei minha curiosidade e enxerguei de perto a tatuagem em sua bacia.
Era uma palavra. “Home”. Abaixo dela, havia uma ondinha.
Deixei minha atenção vagar pelos seus braços, absorvendo cada
desenho em tinta, cada marca de nascença, cada detalhe. Ela tinha três
pintinhas próximas à sua clavícula, alguns pelinhos despontando abaixo do
umbigo e a cintura perfeitamente delineada. Ela era bonita de uma forma
onírica. Poderia imaginar dezenas de quadros com a perfeição do seu corpo
ilustrada. Ela era a musa ideal, e eu exporia cada um dos desenhos de seu
corpo nu na minha sala. Queria todos para mim. A queria para mim.
Fiquei mais tempo do que devia a observando. Passeei com minha
incredulidade por cada centímetro de pele exposta e, no meio da minha
inspeção, esbarrei sem querer com seus olhos, notando que ela aguardava,
pacientemente, que eu terminasse de apreciá-la. Sorri ao ser pega no flagra,
me debruçando para beijar seu ombro. Era uma sensação completamente
única sentir o sabor da sua pele. Era doce, macia. Suas mãos foram parar no
meu cabelo, então eu sorri mais uma vez. Nunca me peguei sendo tão
idiotamente emocionada. Nunca me senti tão conectada a alguém.
Ainda tinha dificuldade em acreditar que aquilo era de verdade. Aquele
momento, aquela mulher. Mas Andressa me provou que era bastante
concreta ao voltar a punir minhas costas com seus dedos.
Fui trazida de volta para a realidade de imediato. Acesa, como um palito
de fósforo.
Relembrei das minhas obrigações, puxando seu short para baixo. Ela me
ajudou a tirar sua calcinha, então me empurrou de leve, arrancando a minha
e se mantendo por cima.
Naquele dia, não estava muito inclinada a me deixar explorar, ou
assumir o controle. Pelo contrário. Ela queria me mostrar grande parte do
que ela era capaz de fazer. Acho que para me provar que eu fui uma idiota
ao fugir daquela porra de paraíso por tanto tempo.
Conseguiu.
Ela estragou minha vida.
Acho que nada nem ninguém seria melhor que aquilo. Andy tornou
quase impossível superá-la.
Não consegui apreciá-la mais. Ela sentou em cima de mim, me
obrigando a ficar deitada enquanto descia, lambendo meu pescoço, meus
peitos, minha barriga e, finalmente, o centro das minhas pernas.
Para ela, parecia muito fácil acertar todos os meus pontos. Era
dinâmico, era a melhor coisa que eu já havia experimentado.
Repetimos aquele ritual umas três vezes, e em cada uma delas, eu me
encharcava e desmantelava mais, sem nunca me cansar. Não o suficiente
para pedi-la para parar.
Se não estivéssemos no apartamento que ela morava com seus pais. Se
não estivéssemos mantendo aquela... relação (?) em sigilo, teríamos ficado
ali para os restos das nossas vidas, não tenho dúvidas disso.
Eu só levantei daquela cama e vesti minha roupa porque já eram cinco
da tarde e Renan poderia voltar para casa a qualquer instante. O que
significava que eu precisava dar o fora dali.
Tive que me apoiar na cômoda para vestir meu short. Minhas pernas
estavam bambas.
Pai, que o senhor nunca leia isso, mas Andressa havia acabado comigo
(no melhor dos sentidos).
Vestindo somente sua blusa, ela arrancou o lençol.
Graças a Deus mesmo fomos parar ali. O estrago seria irremediável se
tivéssemos passado aquela tarde no sofá de sua sala.
— Fica tranquila — anunciou, ao notar que eu encarava tensa o bolo de
roupa de cama que ela jogou no chão. — Eu levo pra lavanderia. Quando
minha mãe notar a falta deles, já vão estar de volta na gaveta, cheirando a
rosas. — Ri, partida ao meio. Metade de mim estava constrangida, a outra
abobalhada.
— Você tem prática — ironizei, e ela riu, aproximando-se para abrir
uma das gavetas da mesma cômoda que me sustentava de pé.
Puxou um lençol novo do lado de dentro.
— Vou levar isso como um elogio.
— É quase um. — Escutei-a rir enquanto reorganizava sua cama.
Havíamos feito uma bagunça e tanto, e eu gostaria de poder ajudá-la a
ajeitar, mas, honestamente, eu não tinha forças.
Meu celular apitou.

Renan 17:12h: Indo pra casa agoraaa


Renan 17:12h: Pq?

— Renan está vindo pra casa — anunciei, em voz alta. — Tenho que...
ir.
Ela assentiu, apalpando seus travesseiros.
— Ok.
Inspirei profundamente, encarando a sua camiseta subir
provocativamente conforme ela se movimentava.
Mordi meus lábios.
Apesar de termos ficado horas ali, eu ainda não estava satisfeita. Eu
sempre estive certa ao entender que uma dose de Andressa não seria o
suficiente para me saciar. Eu precisava da garrafa inteira. De várias delas.
Foda-se. Eu havia experimentado uma vez, e eu queria mais.
— Andy? — Ela me encarou. Os cabelos bagunçados, os lábios
inchados, a blusa comprida, cobrindo tudo e nada ao mesmo tempo. Inspirei
profundamente. — Você tem alguma coisa pra fazer amanhã?
Sorriu, e o quarto se tornou subitamente claro. Ajeitou sua coluna,
colocando-se ereta e respondendo:
— Nadinha.
Respirei fundo mais uma vez.
— Que tal a gente... marcar alguma coisa?
O sorriso em seu rosto era tão delicado e sincero que eu cogitei ignorar
a volta de Renan e a beijar de novo. E de novo. E de novo.
— Eu adoraria.
Sorri fraco em resposta.
— Ok. — Abaixei meu olhar, sentindo quando meu rosto ruborizou de
leve. — Vou pensar em algum lugar... reservado.
— Meus pais só voltam sexta — opinou. — Eu posso fazer macarrão
com molho branco dessa vez, se você gostar.
— Eu gosto.
Ela sorriu.
— Então... combinado?
— Combinado.
E foi assim que tudo se iniciou.
Depois daquele dia, seria incrivelmente complicado aguentar mais de
setenta e duas horas inteiras sem beijá-la. Era arriscado, era delicado, era
tudo que eu precisava.
Eu nunca me senti tão cintilante. Tão… capaz.
Antes de ir embora, naquele primeiro dia, lembro claramente de fechar
meus olhos e pedir, com todas as minhas forças:
Por favor, meu Deus, não tire esse sentimento de mim nunca mais.
CAPÍTULO DEZESSEIS. A
GENTE PODE ODIAR O EX
(SÓ NÃO É MEU CASO).
Fui para a casa de Andressa novamente na quinta-feira, e repetimos
grande parte dos acontecimentos do dia anterior — tirando o
constrangimento no sofá, o jogo clichê e o filme reprisando a tarde inteira,
sozinho.
Fomos direto ao ponto, estávamos mais treinadas e um pouco mais à
vontade para poupar os preparativos.
Mais uma roupa de cama para a lavanderia!
Eu me perguntei se seria educado da minha parte me oferecer para pagar
metade dos custos daquilo, mas verdade seja dita: eu não tinha uma fonte de
renda própria e minha mesada estava sendo minada nos carros que eu
pegava para vê-la. Achei justo que ela arcasse com a bagunça.
Andy estava ainda mais carinhosa naquele segundo dia, e altruísta. Ela
me deixou experimentar coisas nela, e eu gostei bastante do que fizemos, só
que sua complacência durou pouco. Ela me deitou de lado e me provou que
estava ainda mais certeira. Era autodidata no que dizia respeito ao meu
corpo. Eu não precisava falar nada, ela entendia, e eu passei a entendê-la
também.
Saí de sua casa mais radiante que no dia anterior.
Nas quintas, eu costumava ter aula à tarde, mas meu professor cancelou.
Não faltei nada para estar ali, e também não contei para ninguém onde
verdadeiramente fui. Para todos que não se chamassem Andressa Batista e
tivessem um fôlego absurdo (obrigada, natação), eu estava na faculdade.
Estava jogando tudo para o alto e vivendo no meu mundo de chiclete.
Fazia tudo que meu eu mais jovem se recusou a fazer. Corria riscos, em prol
de uma necessidade.
Foram essas as marcas da minha explosão. Foi assim que eu lidei com
tudo. Transformei Andy em mais uma das minhas mentiras.
Naquela quinta-feira, desci o prédio, por precaução, pelas escadas,
percebendo que eu tinha um bom instinto para ser uma fugitiva. Podem me
chamar para roubar um banco se precisarem, eu sou ótima arrumando
desculpas, dissimulando e me esquivando de olhares. Eu sou ótima
fingindo. Ele sabia bem.

Henrique 16:31h: Cami, boa tarde!!


Henrique 16:32h: Escuta, vc ta em casa? É q eu
notei q tem um pijama seu no meu ap aqui do rio
até hj. Posso passar na sua casa pra te entregar?
Henrique 16:33h: Vou embora amanhã cedinho e
acho q não consigo outra hra

Eu estava esperando meu Uber quando recebi aquela mensagem (sim,


eu conseguia ir andando até a minha casa, mas tinha medo da minha mãe
me ver), e o nome de Henrique ressoou por alguns instantes. Não só seu
nome, mas toda a bagagem, a qual eu arrastava junto.
Estava me sentindo culpada desde que trombei com ele por coincidência
na frente da minha casa e o ignorei por completo na festa de aniversário do
seu pai.
A história, você já conhece. Namoramos, e ele foi incrível para mim,
enquanto eu não consegui sentir nada em retorno. Eu me forcei, por muito
tempo, a retribuir. Tentei muito me fazer amá-lo, porém, eu nunca consegui.
E, se fosse só essa a história, estava tudo bem. Renan também nunca me
olhou com maldade e superamos aquele assunto. Mas, com Henrique, eu fui
injusta. Eu o usei, por meses, apenas para evitar o que estava acontecendo
naquele exato momento. Eu quase o traí!
Não me parecia certo que nunca tivéssemos conversado sobre isso. Não
me parecia certo continuar me esquivando. Não me parecia possível
continuar qualquer coisa que fosse com Andressa (e eu queria muito
continuar qualquer coisa que fosse com Andressa) sem finalizar aquela
parte.
Inspirei profundamente, digitando:
Camila 16:40h: Tô indo pra casa agora. Te aviso
quando chegar! Consegue passar lá umas 17h?

Henrique 16:43h: Consigo! Te vejo já já

Chegamos quase juntos.


Ele no seu carro preto, eu no meu Uber sem ar condicionado.
Não foi preciso nem subir. Ele estacionou em frente à minha portaria e
eu me aproximei de seu carro. Desceu para me entregar o pijama com o fim
da tarde tornando seus olhos mais claros.
Com o tecido fofinho entre os meus dedos, me convenci de que era a
minha vez de entregar para ele o que ainda havia comigo. Respirei fundo,
dizendo:
— Henri, eu preciso te contar uma coisa — foi como eu resolvi
começar.
Ele estava usando seu cabelo bem mais curto depois que entrou na
faculdade. Teve que raspar para o trote e acho que gostou do novo visual.
Ele me perguntou, naquele dia do almoço de aniversário, o que eu tinha
achado, e eu provoquei falando que havia perdido todo o seu mínimo
encanto. Andy concordou comigo, mas nós duas sabíamos que aquilo era
uma mentira. Henrique ficava bonito de todas as formas.
— Naquela viagem pra casa de praia — continuei, sentindo meu peito
ligeiramente acelerado. — Aquela quando meus pais estavam brigando,
meu irmão fugiu de casa e eu passei um final de semana com Andressa em
Búzios. Lembra?
— Lembro. — Cruzou seus braços, me encarando em silêncio. Tive que
desviar o olhar.
— Bom, a gente quase... se beijou. Eu e Andressa — confessei, sem ter
coragem de mirá-lo nos olhos.
No fim, eram algumas dúzias de confissões as quais eu o confiava
naquele instante, e minhas mãos suavam compulsivamente sobre o pijama.
A brisa de fim de tarde balançou minha saia. Tudo que ele disse foi:
— É, eu sei.
— O quê?!? — Levantei meu olhar surpresa. Ele mantinha uma
expressão neutra. — Espera. Você já sabia?
— Uhum.
— Como?
— A Dessa me contou.
— Ela te... contou? Quando?
— Logo depois que aconteceu. Ela ficou culpada pra caralho, disse que
fez merda, que tentou te beijar e que você a afastou.
Arregalei meus olhos. Aquilo era realmente inesperado. Henrique
sempre soube o que havia acontecido, e nunca me falou nada?
— E você fez o quê?
— Fiquei puto com ela, obviamente. Ficamos até alguns meses sem nos
falar. — As coisas foram se encaixando pouco a pouco na minha mente.
Na formatura dos dois, Henrique bebeu mais do que eu jamais o vi
beber na vida. Ficou ultra bêbado e voltou para casa apagado, murmurando
coisas como “amo você, não se esqueça disso”.
Eu não entendi, ou tive cabeça para ligar os pontos na época, mas fui
plenamente capaz de evitar Andy toda aquela madrugada porque seu irmão
odiava dançar e Henrique simplesmente não queria ficar com ela.
Eu nunca imaginei que a causa fosse aquela. Eu nunca imaginei que ele
pudesse saber.
— Mas já estamos bem de novo — garantiu. — Eu meio que entendo
ela, é impossível não querer te beijar pelo menos uma vez na vida.
— Henrique!
— Apenas fatos, querida ex, apenas fatos... — Balancei minha cabeça,
descartando seu humor ácido.
Essa era a sua forma de lidar com qualquer situação tensa: ele fazia
piadas. Mas nenhuma delas seria capaz de me fazer rir naquele momento.
Andressa havia contado para ele. Ele sempre soube. Nunca me
confrontou. Só ficou puto com ela. Pararam de se falar.
Repeti aquela descoberta algumas vezes, apática.
Tentei compreender como eu me sentia, me surpreendendo ao notar que
eu não estava brava com ela, por ter contado. Ou com ele, por ter engolido
tudo e, de certa forma, dissimulado comigo por um ano. O que eu sentia era
frustração. Estava frustrada comigo mesma, por não ter tido a coragem de
ser a pessoa que era sincera. Eu era a sua namorada. Eu o devia isso. Eu,
indiretamente, a deixei levar toda a culpa, bagunçando com uma amizade
que eu sabia ser importante para ambos.
Ser covarde às vezes também significa ferir pessoas.
— Me desculpe, Henrique. Por tudo. Por tudo mesmo. — Eu sabia que
desculpas não consertavam coisa alguma, mas me desculpar era
basicamente tudo que eu podia fazer. — Não é só culpa da Andressa o que
aconteceu. Na verdade, a responsabilidade é minha. Eu fui uma péssima
namorada.
Ele deu de ombros.
— Sei lá, sabe. Uma péssima namorada não faria aquele negócio... com
as mãos...
— Henrique!
— Tô brincando, tô brincando! — Riu. — Mas você não foi uma
péssima namorada, Camila.
— Fui. E você não precisa ser legal comigo. A gente pode odiar o ex.
— Se um dia você me odiar, eu vou ficar puto.
— Cara... — Suspirei. — Eu não tenho nem como pensar nessa
possibilidade! — exclamei, sentindo as memórias a.a. retornarem com
força.
Os meses que eu passei ao lado de Henrique foram os piores meses da
minha vida. Não por sua causa, claro. Na verdade, se não fosse por ele, eu
não sei como eu teria aguentado.
Suspirei.
Foram meses ruins, mas eles haviam passado. O que eu precisava fazer
era deixá-los ir.
— Obrigada. — Senti meu peito apertar. — Por tudo.
Henrique estalou a língua, depois me abraçou.
— Você me promete que vai ficar bem, Camila?
— Uhum. Você também?
— Óbvio. Escuta, seus pais te amam, tá? — De alguma forma, ele sabia
que eu precisava ouvir aquilo. — Nada nunca vai mudar isso.
Apertei-o com mais força, como se aquela certeza pudesse ser
transferida para mim por difusão. Não disse nada, não consegui, então ele
quebrou o vazio:
— Posso te falar só mais uma coisa? — perguntou, ainda sem me soltar.
— Claro.
— Eu imagino que tenha uma razão para você estar me contando isso
agora. E, se estiver rolando alguma coisa entre você e a Dessa, acho que
prefiro não saber. Não agora. Ainda é um pouco esquisito...
— Claro... Henri...
Ele me soltou.
— Você deveria ir para João Pessoa me visitar um dia — disse,
finalizando aquele assunto. Aquele capítulo. Havia um sorriso melancólico
em seu rosto. Assenti.
— Eu vou tentar.
Mais um sorriso nebuloso.
— Fica bem — pediu, e eu sorri em resposta.
— Você também.
Então ele foi embora, e eu subi o elevador com o pijama em mãos e o
gosto agridoce daquela despedida na ponta da minha língua.
Conseguimos.
Era a primeira vez que eu sentia que aquele término estava
definitivamente selado. Que o que vivemos estava devidamente engavetado;
arquivado no pretérito de uma maneira ordenada. Um pedaço de história,
que ficou para trás.
Esbarrar com a maturidade de Henrique em relação a tudo aquilo me fez
querer ser daquele jeito também. Parar de correr de qualquer confronto, ou
percalço, que me alcançava. Eu não precisava acumular todos os problemas
para a Camila do futuro. Eu já era plenamente capaz de resolver as coisas
que me tornavam embaçada. Eu não era, nem precisava ser, sempre a
vítima.
O telefone vibrou. Era uma mensagem de Brenda. Ela me contava,
descontraída, e ao mesmo tempo ácida, sobre como seu pai a havia
mandado uma mensagem “carinhosa” naquela manhã.

Brenda 17:09h: Enquete, o que ele vai fazer em


seguida: 1) Vai me pedir dinheiro? ou 2) Vai me
negar dinheiro?

Camila 17:10h: As duas opções!

Brenda 17:11h: Você é sábia, minha amiga.


Brenda 17:12h: Eae, novidades desses dias?

Inspirei profundamente.
Camila 17:14h: Sim
Camila 17:14h: Na verdade, eu preciso te contar
uma coisa..
Camila 17:15h: Eu beijei Andressa naquele dia da
festa
Camila 17:15h: E depois na festa do pai do
Henrique
Camila 17:15h: E depois a gente transou
Camila 17:15h: Várias vezes
Camila 17:15h: E foi o melhor sexo da minha vida
Camila 17:15h: Todos eles
Camila 17:15h: Depois, eu encontrei com Henrique
e contei pra ele que a gente quase se beijou
naquela casa de praia
Camila 17:16h: Aliás, pois é. Você também não
sabia disso!
Camila 17:16h: A gente quase se beijou naquela
vez que fomos pra Búzios, e eu tentei confessar
isso pro Henrique hoje, mas ele já sabia
Camila 17:17h: Andressa contou pra ele, e ele me
abraçou e me devolveu meu pijama
Camila 17:19h: É isso. Boa tarde. Amo você

Brenda 17:20h: ME ATENDE. AGORA.


CAPÍTULO DEZESSETE.
TIME LAPSE DE ALGUNS
DIAS.
Se a minha vida fosse um filme, esse capítulo se iniciaria com uma
montagem, ao som de The Weeknd, de duas atrizes se embolando em
diversos cenários diferentes. Imagino os recortes, os figurinos e a
sonoplastia. Teria que ser algo igualmente íntimo e divertido, que fizesse
jus às três semanas que se seguiram àquela quinta-feira.
Como eu suspeitava, depois que transamos pela primeira vez, eu fiquei
completamente viciada em Andressa. Tanto que a gente não conseguia
passar dois dias sem se agarrar em algum canto qualquer. Seus beijos
começaram a fazer parte da minha rotina e, no começo, o fator "proibido"
tornou tudo ainda mais excitante.
Eram só alguns amassos escondidos. O que tínhamos era só físico, eu
me convencia, mesmo que, às vezes, passássemos um bom tempo apenas
conversando. Andressa sabia de muitas coisas inteligentes e eu me pegava
questionando o que uma garota como aquelas fazia comigo.
Nossos encontros eram os mais escondidos possíveis e, na minha
cabeça, estávamos obtendo muito sucesso na nossa empreitada. Afinal,
minha mãe não desconfiou de nada.
Três semanas se passaram e, durante elas, vivemos alguns momentos
interessantes, os quais eu incluiria na minha montagem. Por exemplo, a vez
em que estávamos no meio de um beijo, em um canto reservado da
faculdade, e eu tive que perguntar sobre sua “rapidinha” com Ana Clara. Na
ocasião, ela começou a rir.
— Cara, eu não acredito que ela te contou isso!
— Contou — assenti, com meu braço ao redor de seu pescoço e alguns
quilos de ciúmes entalado.
Sim, eu estava com ciúmes de Andressa. A pessoa que eu “só beijava”.
— Então, de quem eu conheço, você ficou com a Ana. Alguém mais?
— Mila, se você está entrando nesse mundo, precisa entender que
beijaremos muitas bocas conhecidas. — Pousou um selinho na ponta do
meu nariz. — Ou em comum.
Parei por alguns instantes, fitando-a com muito medo no olhar.
— Você já beijou Henrique?
— Não. Ele não. Graças a Deus.
Continuei com meus olhos arregalados. Ainda não estava a salvo.
— E uma garota de tranças, com tatuagem de sereia no antebraço? —
Pensou por um tempo.
— Alta pra caramba, olhos pretos e voz mansa?
— Andressa. Não...
Começou a rir.
— Mila, sinto muito, mas você foi começar logo pela Priscila! Ela é da
minha turma em três matérias.
— E você precisa beijar as pessoas da sua turma? Faz parte da grade
curricular?
— Uhum. Estou criando a minha rede de contatos.
Aquilo fez meu estômago borbulhar, sem que eu conseguisse me
controlar. Eu não pensei muito antes de dizer:
— Hm. Que tal você parar de beijar pessoas da sua turma? — Não me
atentei às consequências da minha pergunta. Não antes que ela já tivesse
sido jorrada, e Andy respondesse:
— Feito.
— Fácil assim?
— A única difícil aqui é você, Camila.
Infelizmente, não era mentira.
Taylor Swift já disse uma vez. “Eu sou o problema”. E eu era. Um
problemão!
Depois disso, entrei em pânico e a beijei, fugindo da responsabilidade
que havia acabado de me enfiar. A lufada de maturidade que inalei de
Henrique durou pouco tempo, no fim. Nunca mais conversamos sobre o
assunto. Não sei se ela parou de beijar pessoas da sua turma, não quis saber.
As duas possibilidades me assustavam.
Fora essa vez, também gostaria de incluir na montagem aquela em que
Renan quase nos pegou no flagra.
Eu tinha ido para a sua casa levar umas anotações antigas que usamos
na escola. Sempre fui o tipo de pessoa que se dava muito bem com
resumos, então eu tinha um material interessante. Ele faria um uso bem
melhor deles do que as prateleiras entulhadas do meu armário.
Combinamos, e ali estava eu.
Foi engraçado entrar na sua casa depois de tudo que havia acontecido
com Andressa.
Minha vida havia dado um giro de 180 graus, e eu estava gostando
muito daquilo; apesar de recordar com nostalgia da época em que passava
minhas tardes ali. A frequência com a qual nos víamos pessoalmente havia
diminuído muito, e retornar para entregar aqueles resumos foi como voltar
no tempo.
Naquele dia em específico, tia Diana não estava em casa. Havia acabado
de sair para ir ao mercado. Eu a encontrei descendo no elevador e nos
cumprimentamos com dois beijinhos e muito cinismo (da minha parte).
Renan me recebeu com um sorriso enorme, pegando a bolsa pesada dos
meus ombros e me convidando para ficar um pouco. Eu aceitei o convite,
me sentando na sua cama e o ouvindo falar por horas sobre o maldito jogo
que estava viciado.
Havíamos “crescido”, e agora nos era permitido (somente por tia Diana,
minha mãe jamais faria algo parecido) ficar sozinhos em casa, no seu
quarto. O tapete verde, acredite ou não, ainda existia, e eu me surpreendi
muito ao perceber que aquele fator não me era nem mais um pouco
estimulante (estou falando de Renan, não do tapete, não houve uma época
na qual eu não detestei aquele tapete). A totalidade da minha atração
doentia pelo meu melhor amigo tinha sido sugada pela outra Batista.
Que confusão!
Em algum ponto, o assunto Brenda surgiu entre nós, e foi a sua vez de
me contar que estavam indo à academia juntos na hora do almoço. Eu já
sabia daquilo, minha amiga havia me contado, no mesmo dia em que eu a
contei tudo. Só que era sempre mais engraçado vê-lo falar aquele tipo de
coisa. Brenda não emitia muita emoção em sua fala, enquanto ele faltava
babar. Renan deixava óbvio que ele nunca havia superado ela, e essa era
mais uma característica que tínhamos em comum. Éramos incapazes de tirar
da cabeça certas garotas da nossa época de escola.
— Ei, Renan, quer água? Posso pegar um pouco? — era sempre a
mesma pergunta, para a mesma resposta.
— Óbvio.
Então eu fui.
As fotos penduradas no corredor ainda eram as mesmas, mas a toalha
em cima da mesa da cozinha não era nem um pouco parecida com a que
Andy escolheu para os nossos almoços.
Busquei um copo que havia no escorredor e sorri sozinha.
Tenho quase certeza que ela comprou aqueles copos para nos servir. Tia
Diana odiava louça desenhada e, depois daqueles dias, eu nunca mais os vi.
Seria a cara de Andressa, preparar as coisas daquele jeito. Ela dizia que não
era muito romântica, mas eu discordo. Os detalhes me chamavam mais
atenção do que os grandes gestos, e ela sempre pensou em todos eles.
— Buh. — O susto da ocasião foi proporcional.
Dei um salto ao sentir uma mão na minha cintura, me virando para dar
de cara com ela. Sim, ela mesma. Aquela sobre a qual eu não paro de falar!
Andressa.
— Meu Deus! O que você está fazendo aqui? — sussurrei. — Não era
pra estar em aula?
Ela ignorou minha pergunta, me prensando contra a bancada e tomando
a minha boca com a sua. Uma atitude calculada e perigosa. Ela me beijou
até que eu perdesse o raciocínio. E foi só quando eu já estava
completamente vulnerável que respondeu:
— Eu tinha, mas o professor faltou. — Então tentou me beijar outra
vez, e eu virei meu rosto.
— Andy. — Sorri, sentindo sua mão passear pelas minhas costas.
Embaixo da minha blusa. — Meu Deus, não podemos fazer isso aqui —
insisti, metade alarmada, metade eufórica. Meu cérebro só funcionava de
um lado. — Seu irmão tá em casa...
Ela assentiu, mas não entendeu.
— É só você não fazer barulho — cochichou, antes de descer seus
dedos até a minha coxa.
Senti as fagulhas pipocarem por todo o meu corpo.
— Andy...
— Consegue ficar quietinha pra mim, Mila? — Mordi com força meus
lábios.
Não. Seria impossível que eu “ficasse quietinha” com ela arrastando
suas unhas a centímetros da minha calcinha! Beijou meu pescoço,
murmurando:
— Eu adoro quando você usa saia. Facilita tanto meu trabalho...
— Andressa! — Impedi que terminasse de avançar na direção que
queria, segurando seus dedos e a fitando. — O professor faltou ou você
resolveu que ele ia faltar? — questionei, desmantelando parte do clima.
Ótimo. Era esse meu objetivo mesmo!
Essa garota é maluca? No meio da sua cozinha?
(Vou fingir que eu não queria aquela imoralidade tanto quanto ela).
Beijou de leve meu pescoço antes de responder:
— Faz diferença?
Assenti, com o peso do seu corpo no meu.
— Muita.
Andressa andava faltando metade das suas aulas, e aquilo não era
apenas culpa minha.
Notei que nos últimos dias ela parecia inquieta, desligada, então sondei
Jéssica a respeito. Ela me confessou que Andy vinha matando uma
quantidade expressiva de aulas desde o fim do semestre anterior, e eu
comecei a prestar atenção naquilo; mas foi um pouco tarde. As coisas foram
escalando e piorando com rapidez.
Na verdade, não, isso é uma mentira.
Pareceu assim para mim, porque eu havia acabado de desembarcar, mas
as coisas escalaram durante anos. Sua reação presente era apenas reflexo de
sua vida inteira.
— Ele faltou — disse. — Juro.
— Jura mesmo?
Mais um beijo no meu pescoço.
— Juro.
— Camila? — Uma voz intrusa penetrou no nosso diálogo. — Onde
você tá?
Andressa o escutou antes de mim, afastando-se às pressas.
Foi um bom instinto, somado a um ótimo reflexo. O problema é que ela
me deixou mole com suas carícias e, quando me soltou, eu estava
despreparada. Meu braço pendeu e o copo, que eu esqueci que segurava,
encontrou o chão. Os estilhaços fizeram um barulho bizarramente alto.
Renan apressou os passos.
— O que houve? — Chegou à cozinha com os olhos arregalados, quase
ofegante.
Deixei que Andressa respondesse por mim.
— Camila derrubou o copo — explicou, como se não fosse óbvio,
estacionada ao meu lado com a melhor faceta inocente possível.
Engoli em seco, encarando meu amigo. Ele revezava o olhar entre nós
duas, visivelmente confuso.
Porra, Andressa. Porra!
— Eu derrubei o copo — ratifiquei, pateticamente, como se isso fosse
ajudar em alguma coisa.
Ele franziu a testa, apontando na direção de sua irmã.
— E você tá fazendo o que aqui? Nem sabia que tava em casa!
— Vim beber água, ué. Acabei de chegar. Agora, para de falar e vem
ajudar a limpar essa bagunça que sua visita fez — provocou, abaixando-se
para começar a catar os cacos.
Eu me ajoelhei para ajudar, me segurando para não a socar durante todo
o processo. Só quis agredi-la um pouco menos quando ela se aproximou de
mim e sussurrou:
— Você se machucou?
A preocupação genuína que havia em seus olhos era uma gracinha.
Dei de ombros, tendo que disfarçar a risada quando seu irmão se
aproximou com uma vassoura e realmente nos ajudou a recolher o vidro
fragmentado.
Não, eu não tinha me machucado com o copo. E, depois desse dia, eu e
Andy tivemos um breve hiato. Os primeiros testes e trabalhos estavam
começando a se acumular e fomos obrigadas a dar atenção à faculdade. Para
mim, foi estressante, mas passou. Para ela, não.
Eu não tinha noção da verdadeira dimensão daquilo, ela nunca quis me
dizer. Notei as faltas nas aulas, notei as mensagens concisas que ela me
enviou durante aquele período. Notei que estava esquisita, mas só soube o
que estava acontecendo quando as coisas já haviam escalado outra vez.
Andressa sumiu por um dia inteiro e Renan me ligou.
— Oi, Cami. Talvez isso seja estranho, mas, sei lá, vai que você tem
alguma recomendação...
Ele não seria a primeira pessoa a imaginar que eu sabia “consertar” toda
e qualquer questão emocional porque estudava psicologia. Deus, eu não
conseguia dar jeito nem na minha vida! Mas não me irritei com o fato de
ele imaginar que eu soubesse o que fazer. Pelo contrário. Agradeci por ele
ter me telefonado, acho que ela nunca o faria.
Renan só queria saber minha opinião. Queria entender se o que ela
estava sentindo poderia ser ansiedade, mas eu acabei caminhando até a sua
casa. Já estava escuro e minha mãe resmungou sobre aquilo. Eu a deixei
falando sozinha. Disse que Renan precisava da minha ajuda e toquei a
campainha da sua casa. Foi tia Diana que atendeu, surpreendendo-se ao dar
de cara comigo, uma hora daquelas.
— Querida, tá tudo bem?
— Tá sim, tia. — Mordi meus lábios. — Hm, Renan tá em casa?
— Ei, Cami, entra aí! — Ele surgiu para me resgatar. Sorri para ela.
— Licença.
Então me guiou até o quarto de Andressa, me abandonando lá. Era um
pouco engraçada a forma como ele estava lidando com aquilo. Como se eu
fosse uma espécie de curandeira milagrosa. Aceitei os termos. Tudo que eu
queria era vê-la, não pensei muito no resto.
Andressa estava deitada de barriga para baixo quando eu cheguei. O
quarto escuro e os lençóis amassados. Engraçado como aquele ambiente se
tornou familiar para mim tão rapidamente.
Eu me aproximei, sentando na ponta da sua cama.
— Andy? O que está havendo?
Ela levou um susto.
— O que... — virou-se para me encarar, surpreendendo-se. — Mila? O
que você tá fazendo aqui?
Dei de ombros, forçando uma piadinha.
— Ah, eu moro aqui perto, pensei em vir te dar um oi.
Ela inspirou profundamente, sem se dar o trabalho de tirar a cabeça do
travesseiro. Manteve sua expressão neutra.
— Renan te ligou, né?
Diferente da primeira vez em que ela teve uma crise próxima a mim,
daquela ela foi obrigada a contar o que estava acontecendo aos seus
familiares. Passou mal na frente deles, então não teve como omitir. Foi a
partir daí que ela finalmente conseguiu ajuda. Quando foi obrigada a pedir.
— Ligou. — Não vi motivos para mentir sobre aquilo. — O que você tá
sentindo?
Deu de ombros, fechando os olhos.
— Tava tonta.
— Desde quando?
— Desde... essa manhã. Não consegui levantar da cama. Perdi duas
provas.
Arremessou aquela informação com uma falsa falta de relevância
profundamente incômoda.
— Andy...
— Me desculpa. Eu não queria preocupar ninguém. Você não precisava
ter vindo até aqui.
— Está dizendo que não queria me ver? — provoquei e ela suspirou.
— Nesses termos, não. Passei o dia deitada e nem tive a chance de me
arrumar. — Ela se precaveu e falou baixo, mas, mesmo assim, eu conferi.
Não tinha ninguém nos espionando da porta. Aquilo fez eu me sentir
segura o suficiente para retrucar:
— Eu também não me arrumei.
— Você é linda por natureza, Camila, e isso é meio que uma tortura.
Meus pais estão em casa, e você não sabe ser silenciosa...
— Andressa. — Ri, mesmo contrariada, e vermelha. — Você está
mudando de assunto — alertei e ela fechou os olhos outra vez.
Demorou um tempo para dizer:
— Fomos na emergência mais cedo — confessou. — O médico disse
que, clinicamente, eu não pareço ter nada. Me deu um remédio, acho que
era um calmante, pediu alguns exames e tudo mais, mas o que me
recomendou foi “descansar e tentar não me estressar tanto”. Ótima
recomendação. Sinto que meus problemas foram todos resolvidos agora!
Sorri fraco.
Eu amava seu sarcasmo, mas não gostava nada daquela situação.
Meu primeiro instinto foi querer segurar suas mãos, porém, a droga da
porta estava aberta, e eu fiquei com medo de alguém nos ver (e contar para
a minha mãe).
Aquele sentimento absurdo me incomodou. Profundamente.
O fator “secreto” poderia ser afrodisíaco no começo, mas o aroma
estava começando a desgastar.
— A gente nunca mais conversou sobre isso, mas... você ainda tem
aqueles tremores?
Andy demorou um tempo para assentir.
— Essa porra é ansiedade, né?
— Eu acho que sim. Acho que você tem que fazer os exames, conferir
se tem alguma coisa física, passar por um profissional, mas... — Suspirei.
— Eu acho que sim.
Ela fechou os olhos uma terceira vez.
— Eu odeio essa merda, Camila. Eu perdi duas provas hoje! Por
besteira.
— Não é besteira — fui rápida. — Andy, não é besteira. — Eu me
aproximei um pouco. O máximo que dava. — Você quer conversar comigo
sobre alguma coisa? — incitei. — O que você acha que pode estar te...
engatilhando dessa vez?
— Não sei o que pode ser.
— Por que você tem faltado tantas aulas? — questionei e ela travou.
Abriu os olhos para me encarar, surpresa com a minha colocação. Ali, eu já
sabia que havia acertado em cheio.
— Sei lá.
— Você tá feliz com o seu curso?
Ela se remexeu.
— Porra, Camila.
— O que foi?
— Não sei se gosto dessa sua versão psicóloga.
— Você costumava gostar.
— Mudei de ideia.
— Por que eu estou certa? — provoquei e ela sorriu. Seus sorrisos eram
sempre uma colherada de júbilo, em qualquer ocasião. — Você me disse
uma vez que estava indecisa sobre o que queria. O que te fez escolher esse
curso?
— Sinceramente? Eu passei pra ele. — Achei que fosse completar com
mais alguma coisa, mas foi só isso.
Minha vez de me remexer.
— Nada mais?
— Ah, eu achei que podia ser legal também.
— Não é?
— Sei lá.
— Você já pensou em mudar?
— Não.
— Por que não?
— Porque eu já fiz um semestre inteiro e... — parou de falar de súbito,
cerrando suas pálpebras. Eu me preocupei.
— O que houve?
— Fiquei tonta de novo.
Toquei fraternalmente seu ombro.
Minha vontade era deitar ao seu lado e a abraçar forte, só que eu não
podia fazer isso. Meu medo de ser pega era maior que o meu instinto de
protegê-la. Isso nunca se alterou. Isso eu nunca superei.
Três semanas, foi esse o tempo que durou o nosso conto de fadas.
Escondê-la de todos deixou de ser divertido rápido.
Minha boca estava seca e minha mente confusa quando eu pedi, à
distância:
— Respira fundo. — Ela obedeceu.
Assisti seu peito subir e descer algumas vezes, notando que meu próprio
coração estava diminuído.
Deus. Odiava vê-la daquele jeito. Odiava não conseguir a ajudar.
Quando ainda estávamos no colégio, eu tentei fazer o mesmo com
Brenda, quando ela teve uma crise forte. Os gatilhos das duas eram
diferentes. Minha amiga costumava ter crises depois que seus pais
brigavam. Em uma delas, havíamos acabado de chegar à escola. Seus
sintomas não seguiam muitos padrões, mas quase sempre vinham acoplados
a tonturas e palpitações.
Brenda foi a um psiquiatra pela primeira vez no meio do ano anterior,
complementando seu tratamento com uma psicóloga, e eu sei como isso foi
um ato de altruísmo gigantesco de sua mãe. Ela teve que economizar para
conseguir pagar as consultas, e valeu a pena. Brenda estava muito melhor.
Sua qualidade de vida era outra depois que ela começou a levar sua
ansiedade a sério e a tratá-la.
Sei que foi difícil, financeiramente falando, mas elas conseguiram.
Infelizmente, saúde mental ainda podia ser um artigo de luxo, e nem todos
têm esse privilégio. As coisas estão melhorando nesse aspecto, e eu tenho
esperança de que chegaremos a um ideal. No entanto, no caso de Andy, o
problema nunca foi financeiro. Ela poderia arcar com esse privilégio, se
estivesse disposta a aceitar receber ajuda, pelo menos uma vez na sua vida.
— Vai passar, tá bom? — garanti, acariciando seu braço e assistindo
enquanto ela retomava e perdia o controle da sua respiração. — Eu tô aqui
— sussurrei, junto com mais algumas instruções (as quais Brenda havia me
ensinado que funcionavam com ela).
Respirar, sentir seu corpo, focar no presente.
Tudo ia ficar bem.
Tudo ia passar.
Sempre passava. E a prova disso era que, depois de alguns minutos, ela
conseguiu se controlar outra vez.
Sua respiração foi se acalmando, de pouquinho a pouquinho, e eu deixei
que o silêncio que se instaurou depois de seu progresso durasse uma mini
eternidade até dizer:
— Homem de Ferro, né? — Sorri, mesmo que ela não estivesse vendo.
Continuar aquele assunto meio que se tornou nosso código oficial para
quando queríamos forçar uma distração.
— Tem pessoas que dizem que um playboy defende o outro.
Consegui o que queria com aquilo; Andressa riu, e eu senti meu peito
inflar outra vez.
Ela soltou uma risada sonora, cheia de ar, e ficou claro para mim que
havia jogado muita coisa para fora naquele instante.
Isso, Andy, deixe ir.
— Eu não acredito que você teve a audácia de vir até o meu
apartamento para me chamar de playboy. — Dei de ombros, satisfeita por
Capitão América sempre dar certo.
— Mentira não é.
— Pelo menos... — Inspirou uma última vez. — Playboys são o seu
tipo.
Eu não tinha como negar aquilo. Minha lista minúscula de
relacionamentos incluía Henrique e suas idas constantes à praia da Barra.
Sem argumentos para me defender, resolvi contra-atacar:
— Uhum. E qual seria o seu? — Deu de ombros.
— Gosto de loiras.
Transfigurei meu carinho em um empurrão fraco.
Ela estava me provocando, estava funcionando e eu daria tudo para
beijá-la naquele instante e a fazer se esquecer de qualquer loira que
existisse no mundo. Refletir sobre como eu não poderia me fez suspirar, me
pondo subitamente soturna.
— Andy, você me promete uma coisa? — Ela acompanhou minha
mudança de humor.
— O quê?
— Promete que nunca mais vai esconder isso de mim? Promete que vai
fazer esses exames, e buscar ajuda?
— Muitas coisas para prometer de uma só vez.
— Ah, fica tranquila, é só dizer “prometo” uma vez que já engloba
tudo. — Ela sorriu.
— Tá bom.
— Promete? — insisti.
— Prometo.
Sorri fraco.
O peso da realidade tornava os degraus que subíamos maiores. Naquele
instante, não havia nada fora do lugar quando se tratava da gente, mas eu
me peguei deslocadamente inquieta. Pensaria melhor sobre as implicações
disso depois, contudo, desde ali, já não me parecia ok assistir a garota que
me tratava como a pessoa mais especial do mundo ter uma crise ao meu
lado sem poder sussurrar em seu ouvido, que tudo ficaria bem.
Desde que começamos com aquele combinado, nunca fez diferença para
mim que Renan soubesse. Ou os pais de Andy, ou nossos colegas de
faculdade, muito menos Ana Clara. Afinal, eu sabia que eles tratariam
aquilo com a naturalidade que merecia. A única pessoa que me desesperava
era a minha mãe. Meu medo era que alguém contasse para ela; ou deixasse
escapar, sem querer. E eu vinha tentando, mas não conseguia, me livrar
dessa droga de sentimento.
Eu estava feliz. De um jeito singular e repentino. Andy fazia eu me
sentir a adulta que eu tanto queria ser, mas também trazia de volta a
adrenalina boba adolescente que eu sentia falta. Ela conseguia se superar,
em tudo que eu poderia sonhar, e eu estava, resumidamente, alegre. O que
eu queria, era que Andy também se sentisse assim. Eu queria que aquela
garota ficasse bem. Eu só queria que ela melhorasse.
Espero que você entenda que foi por isso que eu fiz o que fiz, no final
de tudo isso.
CAPÍTULO DEZOITO.
AMIGOS PRÓXIMOS.
Você pode acreditar que astrologia é baboseira, mas só até conhecer
Brenda. Nascida no dia 30 de abril, Brenda era a pessoa mais pragmática,
teimosa e ciumenta que eu conhecia. Basicamente, a personificação do seu
signo. Pesquise no Google “taurina” e encontre uma fotografia da minha
melhor amiga na primeira página.
Correspondendo ao estereótipo atrelado ao seu signo, Brenda também
gostava muito de comer, e de fazer aniversário. Levava a ocasião muito a
sério e, rancorosa, anotava o nome de todos que não a deram parabéns.
No ano anterior, Brenda havia comemorado seu dia em um karaokê. Foi
caótico. Fui com Henrique, mas ele bebeu, e tivemos que abandonar seu
carro na rua, voltando para casa no mesmo Uber que outros dois amigos
dela (os quais estavam chapados).
Tinha muita gente naquele aniversário, o local que ela escolheu era
extremamente barulhento e foi uma experiência... única.
Felizmente, naquele ano, minha amiga estava menos inclinada a grandes
eventos. Não precisei aturar seus muitos amigos, ela marcou com poucas
pessoas em um bar.
Era meio de semana e eu sabia que teria problemas para convencer
minha mãe a me deixar ir. Ela nunca havia superado seu desconforto em
relação à minha melhor amiga (o que era irritante em centenas de níveis
diferentes). No ano anterior, Henrique havia sido o meu fator de
convencimento. Mas agora que eu estava solteira e Andressa fora
“corrompida”, eu não tinha mais nenhum.
Ainda bem que Brenda conhecia minha mãe o suficiente para abandonar
no meu colo, meu mais novo passe-festa.
— Deixa eu ver se eu entendi direito — repeti, pendurada no telefone
enquanto pintava as minhas unhas do pé (Brenda era a única pessoa que eu
aceitava que ainda me ligasse). — Você fará uma festa apenas para “amigos
próximos” e chamou o Renan? — Ri, sugestivamente. — Vocês são amigos
próximos agora?
— Cala a boca, Camila — se irritou. — Eu só te contei porque achei
que ele podia amansar as coisas com a sua mãe, já que o seu ex,
queridinho dela, não está mais entre nós e você não pode mais usar sua
atual com essa finalidade.
— Bre... — Senti meu peito bater um pouco mais rápido. — Para de
chamar ela assim — retruquei, em um sussurro. Ela riu.
— Quer que eu chame como? Sua parceira de colchão?
Revirei os olhos.
— Eu odeio ter te contado.
— Não, você não odeia. Inclusive, você vai amar saber que ela também
foi convidada para o grande evento.
— O quê? — Borrei o meu dedão. — Desde quando ela faz parte da sua
lista de amigos próximos?
— Chamei por sua causa.
— Ué.
— Vai me dizer que não gostou? Fiz pelo bem da sua saúde! Você disse
que estava em abstinência depois de uma semana sem sexo. — É oficial, eu
precisava parar de contar as coisas para ela.
Depois de semanas intensas, eu e Andy estávamos vivenciando nosso
segundo hiato. Dessa vez, mais consciente e menos influenciado pelas
circunstâncias. Haviam se passado dias desde que ela passou mal, e as
coisas esfriaram um pouco. Não que eu a cobrasse o contrário. Jamais. Ela
estava se recuperando.
Depois daquela noite, ela teve o quadro de tontura mais uma vez.
Conseguiu a segunda chamada das provas que perdeu e se atolou com
os estudos e com a cobrança. Ela se cobrava demais. Ela era tão teimosa!
Fez as provas, mas, quando as terminou, me mandou uma mensagem.
Estava basicamente deitada, com a cabeça jogada na mesa quando a
encontrei em uma sala do seu prédio. Estava vazio ali, silencioso e eu a dei
uma bronca.
— Andy, você precisa aprender a ceder — foi o que eu disse.
Ela já estava recuperada da recente crise, vale ressaltar. Sua crise foi
antes da prova. Quando ela a finalizou, estava apenas cansada, e precisando
ouvir algumas coisas.
— Você precisa aprender que tá tudo bem mudar de caminho.
— Desistir?
Era engraçado como éramos opostos quando se tratava dessa questão.
A minha maior habilidade era fugir, quando as coisas se tornavam um
pouco mais complicadas. Andy não era capaz de dar as costas para nada.
Não conseguia abrir mão de se sentir ansiosa a todo instante, muito menos
daquele maldito curso que ela claramente não queria mais cursar (ela nunca
me disse isso com todas as palavras, mas não era tão difícil assim de
enxergar).
— Não é desistir — argumentei, porém, ela arqueou uma das
sobrancelhas e eu pensei melhor. — Tá, talvez, de certa maneira, seja
desistir. Mas qual o problema com isso? Qual o problema de mudar de
ideia? Meu Deus, você está levando como se isso fosse o fim da sua vida!
Você tem vinte anos, Andressa. E, mesmo se não tivesse! Nunca é tarde
para recalcular a rota e fazer algo que realmente te deixa feliz. Você tem
esse privilégio, seus pais conseguem te ajudar. Por que você não tenta?
Ela suspirou.
— Eu já comecei, Mila. Preciso terminar.
A ansiedade é uma doença cíclica e, sem tratamento, com tendência a
piora. Ela cumpriu com parte da promessa que me fez naquela noite e me
atualizou sobre como estava se sentindo. Sabia que, depois que as provas
passaram, sua tontura tinha melhorado, mas também sabia que poderia
voltar. Comentei isso com ela e recebi um “não se preocupe, tá tudo certo”
como resposta. Eu tinha minhas suspeitas, portanto, de que ela não
cumpriria com tudo que me prometeu.
Uma coisa que aprendi ser muito comum em pacientes com ansiedade é
que eles tendem a buscar ajuda quando estão em crise, mas, quando ela vai
embora, deixam para depois. O problema é que, como qualquer doença,
sem tratamento não existe melhora. A ansiedade se esconde em períodos de
turbulência e de calmaria. Sem que se trate suas causas, vive-se eternamente
em um naufrágio, apenas esperando a próxima tempestade.
A ansiedade é um sentimento normal, todos temos um pouco disso, no
entanto, quando ela sai do controle e passa a afetar áreas da sua vida, te
impedindo de fazer coisas básicas (ou complexas) como levantar da cama
para fazer uma prova, é muito provável que você esteja precisando de
ajuda.
Andressa precisava de ajuda. Ela precisava esquecer um pouco de mim
e pensar nela. Vivemos tudo com muita intensidade naquele começo e, se
eu aprendi uma coisa com a separação dos meus pais, foi que indivíduos
rachados, quando juntos, constroem relacionamentos condenados ao
desabamento. É preciso consertar antes de construir. É impossível sustentar
um prédio sobre vigas frágeis.
— E você não tem nada a comentar sobre isso? — No telefone,
provoquei Brenda. — Você me chamou de maníaca sexual quando eu disse
que estava com saudade de estar com Henrique.
Não, nada do que minha amiga tinha falado antes disso era mentira, eu
estava sentindo bastante falta de Andy, porém, se havia uma coisa que eu
nunca estava disposta a fazer, essa coisa era ficar de boca fechada.
— É porque era o Henrique. É diferente agora — foi o que Brenda me
respondeu.
— Por que é diferente?
— Porque... sei lá. Vocês são compatíveis.
Compatíveis.
Aquela era a primeira vez que ela dizia algo parecido.
Todo mundo que eu comentava próximo da minha melhor amiga, ela
esnobava, dizendo que era “bobo”, ou que eu era “muita areia para o seu
caminhãozinho”. Andressa foi a primeira pessoa que ela “aprovou” para
mim, e aquilo me deixou apática.
Pigarreei.
— Hm. E quem vai nesse aniversário mesmo?
— Só vai ter gente legal lá, Camila. Eu prometo.
— Sei não. Eu não conheço essa "Talita" que você chamou. — Ela riu.
— Para de ciúmes. Já te falei que ela é do cursinho, e que ela é
maneira. Renan também gosta muito dela.
— E isso deveria fazer eu me sentir melhor?
— Chega. Coloca uma roupa bonita e me encontra amanhã. Estou com
saudades de fazermos mais coisas juntas. Você promete que vai, né?
Suspirei.
— Se minha mãe não implicar.
— Usa o Renan. Eu só chamei ele por isso.
— Boa tentativa. — Sorri, me esforçando para me livrar dos
pensamentos intrusivos. — Amigos próximos. Você sabe que começa assim,
né?
— Vai à merda. Nunca mais tento te ajudar. Bom dia. Até amanhã.
CAPÍTULO DEZENOVE. O
ÚLTIMO ANIVERSÁRIO
DESSA HISTÓRIA.
Vou poupar o suspense. O dia seguinte chegou, e eu estava pronta para
sair de casa, afinal, consegui substituir meu passe-festa original com louvor.
Era engraçado como minha mãe pensava.
Bar no meio da semana para o aniversário da melhor amiga que eu acho
irresponsável? Não.
Bar no meio da semana para o aniversário da melhor amiga que eu acho
irresponsável junto com Renan? Claro!
E foi assim que eu fui parar no mesmo Uber que ele. Ela substituiu
rápido um Batista de confiança pelo outro. Pensando bem, eu meio que fiz
igual; só que pendi para o lado contrário.
Entrei no banco de trás do carro, e Andressa tinha tomado o do meio.
Sim, ela também tinha aceitado o convite de Brenda. Sim, ela também iria.
— Oi — me cumprimentou, assim que eu entrei, com um sorriso
delicado e os olhos brilhando.
Estava cotidianamente linda naquele dia, e eu travei por alguns
segundos.
Retirei muito mais do que o convencional daquela interação
monossilábica.
Ver Andressa, depois de alguns dias distantes, me alegrou e me cutucou,
em parcelas quase equivalentes.
Ela parecia bem. Estava alegre, e vulgarmente cheirosa. Os dias
passaram, e sua tontura a deu espaço para voltar a cintilar. Sua recuperação
nos deu a oportunidade de continuar com o que estávamos fazendo. Porém,
o tempo afastadas também me permitiu notar que, talvez, isso não fosse
exatamente o que eu queria.
Vinha cozinhando aquele sentimento há dias, não sabia direito a sua
origem, mas te adianto que ele me assombrou a noite inteira.
Retornar de onde paramos me parecia, subitamente, insuficiente.
— Hm... oi, Andy. Oi, Renan. — Ele acenou.
— Oi, Camilinha. — Então apontou para a sua blusa. — Usei a amarela
que você escolheu. O que acha?
Mais cedo, enquanto se arrumava, Renan havia me enviado uma foto de
três opções de blusas. Sinceramente, para mim, roupa de homem era
basicamente a mesma coisa. Só que ele estava nervoso, levando aquilo a
sério, e eu o ajudei a montar um look bonito para comparecer à festa de sua
paixão da adolescência.
— Ta lindão! — Ele riu.
Estava adoravelmente aflito, segurando uma sacola de presente com um
laço escandaloso. Perguntei o que tinha ali dentro e ele nunca quis me dizer.
Esperava que não fosse uma aliança (!!!).
Fizemos o percurso inteiro em silêncio, com Renan com a cara enfiada
em seu celular e eu na janela ao meu lado, reflexiva. As luzes dos postes
lançavam flashes contidos dentro do veículo e rádio tocava o top 5 do dia (o
mesmo há meses). Quando chegamos ao bar, fomos muito bem recebidos.
— Olha quem chegou! Minha calourinha mais linda! — Ana Clara tinha
a fama de chegar cedo aos lugares e, daquela vez, não foi diferente.
Brenda marcou com todos às oito horas. Eram oito e nove e ela já estava
lá, ocupando, junto com Jéssica, duas das cadeiras.
Levantou-se para me abraçar, antes mesmo que a aniversariante.
— A cada dia mais bonita! — exclamou, com os cabelos presos em um
rabo de cavalo altíssimo. Suas mechas lisas e brilhantes cintilavam debaixo
da luz amarelada do bar.
Eu me alegrei imediatamente por vê-la.
— Olha quem fala!
Estávamos convivendo menos naquelas semanas. Eu faltei algumas
aulas, e ela ficou focada em seu TCC. Estava com saudades. Era fácil gostar
de Ana Clara. Ela se tornou indispensável muito rapidamente. Assim como
todo o restante.
Depois do que aconteceu com os meus pais, da minha mãe e daquele
ano difícil, eu realmente achei que estivesse fadada a uma vida de merda.
Eu tinha me acostumado com a ideia de que teria crises de gastrite e de
choro até que eu morresse, mas então... tudo aquilo foi substituído, com a
ajuda de cada uma das pessoas que estavam ali. Eu não chorava há
semanas, meu estômago se mantinha amigável e eu me sentia bem.
O pensamento sobre “não continuar da forma que estava” com Andressa
retornou sem ser convidado. Se eu me sentia bem, por que estava
cogitando... mudar?
— Nossa, amiga, sua pele tá tão boa! Né não? — Ana buscou apoio
logo de quem? Andressa.
Paralisada ao meu lado, ela sorriu torto.
— É, está ótima. — A malícia em seu tom era palatável. Senti o gosto
em sigilo. Era ótimo.
— Tá bom, chega! Pode separar. Não quero ter que presenciar esse
amor todo. Minha vez.
Brenda surgiu com seu look de aniversário (o qual eu também tinha
ajudado a escolher), calça jeans e camiseta. Naquele ano, sua camiseta era
vermelha, o que foi ideia minha. Brenda ficava lindíssima de vermelho, mas
ela nunca me ouvia e só se mantinha no preto. Aquela foi a primeira vez
que deu créditos para a minha opinião. Acho que tinha a ver com a presença
de certo rapaz.
Passou à frente de Ana e me abraçou. Eu retribuí.
— Parabéns — sussurrei.
— Obrigada, meu amor. Que bom que você conseguiu vir. Obrigada.
Obrigada!
Sabia que sua alegria por me ver era genuína, e isso me obrigou a me
desfazer de todo e qualquer sentimento que não fosse compatível com
aquele. Era aniversário da minha melhor amiga e eu queria que ela o
aproveitasse. Deixaria para refletir sobre os motivos de eu não estar mais
confortável escondendo Andressa depois de...
Oh, não, espera.
Era isso que estava me incomodando na nossa relação? O “sigilo”?
Acho que você sabe que a resposta para essa pergunta é sim.
O fato de que aquela era a primeira vez que nos víamos em dias e que
eu não poderia matar a saudade a beijando, ou segurando a sua mão, tão
próxima a minha, estava me incomodando. O fato de que eu não poderia
convidá-la para almoçar comigo em literalmente qualquer lugar fora
daquela faculdade, estava me deixando irritada.
O desconforto se iniciou quando eu não consegui ampará-la da forma
que eu gostaria com a sua crise de ansiedade, e foi aumentando naqueles
dias ociosos. Eu tive espaço para notar que estava desconfortável com
aquilo, e que o motivo era que eu não queria continuar da forma que
estávamos. Ou seja, mentindo.
Optar pela verdade, e não pelo desafio de escondê-la, fora de um jogo,
era realmente algo novo para mim. Troquei os pés.
— Eu vou te dar seu presente amanhã, Bre — garanti, tentando me
afastar daqueles pensamentos. Aquilo era o oposto de ceder o dia a quem
merecia. — Ou talvez segunda. Quando ele resolver chegar.
Eu tinha comprado para ela um conjunto de academia que eu sabia que
estava atrás, mas a porcaria do site demorou a enviar e ele estava atrasado!
Confesso que se eu tivesse me lembrado de comprar antes, não estaríamos
enfrentando aquele contratempo. Porém, eu meio que me esqueci do mundo
inteiro grande parte daquele mês. E a culpada por aquilo estava parada
silenciosamente e respeitosamente ao meu lado.
— Estarei aguardando. — Ela se desvencilhou de mim, passando para
Andy. — E aí, Dessa? — A cumprimentou com dois beijinhos.
— E aí! Parabéns! Obrigada pelo convite.
— Imagina! Que bom que veio! — respondeu, simpática, então
esbarrou os olhos no único que faltava cumprimentar e paralisou.
Renan estava parado atrás de nós, completamente deslocado. Brenda
acenou de longe.
— Oi.
— Oi — respondeu ele. O mesmo grau de constrangimento embutido
em suas pupilas. — Feliz aniversário! — Ela sorriu.
— Obrigada. — Demorou os olhos em seu rosto. O suficiente para que
todo mundo notasse, e até eu me surpreendi com sua reação.
Nunca vi Brenda agir daquele jeito perto de um garoto. Ela nunca ficava
desconfortável, ou inibida.
Por favor, Brenda, pelo menos disfarce! Ela não disfarçou. Só foi
sugada de volta para a realidade quando um garçom pediu licença para
passar. Pigarreou.
— Ana, Jeh, esse aqui é o Renan — o apresentou, tentando quebrar o
gelo. — Vocês já se conhecem?
— Só conheço ela. — Apontou para Jéssica, com um sorriso tímido.
— Fala, Renanzinho! — Ela levantou um copo em sua direção.
Era engraçado como todos os amigos de Andressa o chamavam assim.
Henrique nunca se referiu a ele sem ser no diminutivo, e o pobre do Renan
odiava aquilo.
— Oi, Renan, eu sou a Ana — Ana Clara fez questão de se apresentar.
— Sou amiga dessas meninas. — Apontou na nossa direção. — E
namorada daquela.
— Maneiro. Prazer. Sou irmão dessa aqui. — Segurou os ombros de
Andressa. — E... amigo. Delas. — Ruborizou um pouco ao dizer aquilo, e
eu entendi perfeitamente o seu caso. Eu me sentia igual todas as vezes em
que tinha que chamar Andressa de “amiga”.
Que porra.
Era esse o grande problema, né?
“Amiga” nunca foi o suficiente para mim.
— Prazer! — exclamou Ana, sorrindo. — Você parece muito com sua
irmã, ao mesmo tempo em que não tem nada a ver — o analisou, com a
testa franzida. — Seu queixo é bonitão, marcado...
— Vamos sentar? — sugeriu Brenda, antes que Ana pudesse continuar
com seus elogios esquisitos. — Fiquem à vontade. Ana e Jeh já abriram os
trabalhos.
— Ah, foi mal, é que tá muito quente — Jéssica as defendeu por já
estarem bebendo, enquanto sua namorada contornava as cadeiras e voltava
para o assento ao seu lado.
Começamos a nos movimentar para fazer o mesmo.
O local escolhido pela aniversariante era agradável e fresco. Estávamos
na área interna, e nossa mesa já conjugada com outra. As preenchemos
quase que por completo.
Além de Ana, Jéssica, eu e os Batista, Brenda só havia convidado sua
nova amiga Talita, que estava atrasada. Deixamos um lugar para ela em
uma das pontas, perto de Renan. Brenda ocupou uma das cabeceiras,
Jéssica estava na outra. Eu sentei ao seu lado, Andy entre mim e minha
melhor amiga e Renan a sua frente, bem do lado de Ana.
Coitado.
Fazia parte de sua personalidade, e compromisso estudantil, interagir e
enturmar pessoas novas, então, assim que se sentaram, ela se virou
rapidamente em sua direção.
— Você é maior de idade, Renan? Ele é maior de idade, Dessa? —
Andy sorriu.
— Ele tem dezoito. Quase dezenove.
— E ele bebe?
— Não bebo — Renan respondeu por si só, a voz engrossada.
Acho que tentava provar um ponto na frente de Brenda. Ana Clara
permitiu.
— Beleza. Quem vai querer dividir o Chopp então? — Três mãos se
levantaram. Eu e Renan nos mantivemos quietos. Ana Clara assentiu, então
se voltou novamente em sua direção. — E vocês se conhecem de onde,
Renan? Você e Brenda?
— A gente se conheceu no colégio — explicou, ainda envergonhado.
Não tinha certeza se era só Brenda, ou o ambiente também o pressionava.
Renan tinha menos costume de sair de casa que eu. — Agora, estamos no
mesmo cursinho.
— Sério? Que coincidência foda! Eu conheci Brenda no judô. Já faz
quantos anos, amiga?
— Uns... sete? — arriscou Brenda.
— Uns sete!
Então eles engajaram em um assunto descontraído sobre quando se
conheceram e eu ajeitei minha bolsa no meu colo. Jéssica fez um sinal,
chamando o garçom, e foi aí que Andy se voltou para mim, perguntando:
— Você vai pedir o que, Mila? Quer suco de laranja? Ah, tem abacaxi
também. Você gosta, né?
Ela estava com o cardápio em mãos, e eu me debrucei em sua direção
para ler as opções que sustentava entre seus dedos.
— Gosto. Mas acho que vou querer o de laranja mesmo.
— Ok. Ah, olha, tem coxinha! Se Henrique estivesse aqui, ele ia criticar.
Acho que vou pedir, só pra mandar uma foto pra ele. — Riu, enquanto eu
me peguei me encolhendo, de súbito.
Henrique?
Sua fala me pegou de surpresa. Não por causa da coxinha, era de
conhecimento público que Henrique odiava salgadinho. Minha surpresa se
deu pelo fato de que Andy e eu nunca conversávamos sobre ele. Nunca
conversávamos sobre o que eu fiz.
Acho que aquela noite estava propícia para isso, para pensar demais. A
Lua cheia tomava conta do céu límpido e eu estava muito reflexiva. A
respeito de tudo.
Quando Henrique me contou que eles haviam se afastado por causa do
que aconteceu naquela casa de praia, eu me senti profundamente culpada.
Andressa e Henrique se conheciam há anos, e ter sido a causa de uma briga
entre os dois fez eu me sentir a pior pessoa do mundo inteiro.
Reabri, um pouquinho, a ferida cicatrizada. Sentia que havia esclarecido
as coisas com ele aquele dia, mas não com ela.
— Camila? O que foi? — Andy notou que eu divaguei, então levantou o
cardápio, tapando nossos rostos e nos dando um pouco de privacidade.
Eu queria lidar com os dilemas no dia seguinte. Porém, não podia deixar
que a oportunidade passasse. Eu não queria que continuássemos fingindo
que eu não namorei seu melhor amigo por um ano inteiro só para não correr
o risco de beijá-la. Não queria que ignorássemos o fato de que eu os fiz se
afastar. Havia se tornado desesperador para eu guardar e me esquivar de
certas coisas. Especialmente coisas relacionadas a ela. Não consegui me
segurar. Quando notei, já estava dizendo:
— Nada. Eu só... encontrei com Henri outro dia, antes dele ir embora.
— Ela arregalou de leve seus olhos, surpresa com o rumo que aquele
comentário besta sobre uma coxinha tomou.
— Ah, foi? — tentou disfarçar, mas eu notei que ficou curiosa a
respeito. Não fiz mistérios.
— Uhum — abaixei meu tom, me aproveitando do fato de que o
restante do grupo estava distraído fazendo seus pedidos para compartilhar:
— Ele me disse que você contou sobre a gente quase ter... você sabe.
Quando eu ainda estava com ele — falei tão baixo que ela teve que se
aproximar para ouvir.
Ficou um tempo calada depois daquilo.
— Merda. Eu fiz errado?
— Não. Claro que não. Eu que fiz. Nunca contei nada, em todo o tempo
que estivemos juntos. Sou uma fracote e fiquei no meio de vocês.
— Você não é uma “fracote”, nem ficou entre a gente — insistiu. A voz
baixa e o cardápio tapando, o máximo que dava, nossos rostos. — Ok, eu
confesso que a gente se afastou um pouco depois do que aconteceu, mas já
estamos bem.
A mesma coisa que ele disse.
Suspirei.
— Você me desculpa, Andy? Por ter te... provocado, para depois sumir.
Por ter atrapalhado sua amizade. Eu não queria que a minha confusão idiota
machucasse nenhum de vocês.
Andressa me encarou firme, profundamente empática.
— Mila, você estava se descobrindo, e não teve a intenção. Mas, tá
bom, se você precisa ouvir isso, é claro que eu te desculpo. Assim como
Henrique. — Mordi de leve meus lábios. Ela insistiu: — Eu posso te
garantir que ele também te desculpa.
Eu sabia que ela estava certa. Sabia que Henrique só queria seguir em
frente, e me senti bastante aliviada ao ouvir que também era o que ela
queria. Era meio que o equivalente a arrancar meu coração imaginar que eu
pudesse chateá-la, de alguma maneira. Um pensamento um pouco intenso
para se ter sobre uma “amiga” que eu beijava em segredo.
Camila.
Tome cuidado...
— Meninas? — A fala de Brenda chegou como a voz da razão,
dispersando todo o nosso momento sincero.
Eu não queria tornar aquela noite complicada, mas isso já havia sido
arruinado há muito tempo. As coisas foram chegando até mim como os
respingos grosseiros de uma chuvarada encapsulada. Uma chuva que eu
encapsulei, por todo aquele tempo.
O fato de me sentir fisicamente injuriada ao pensar que aquela garota
pudesse ter se decepcionado comigo era o oposto de não complicar a noite.
Refletir sobre como eu gostaria de deitar minha cabeça em seu ombro e
nunca mais ter que me sentar em uma cadeira que fosse distante da sua era,
definitivamente, o contrário de descomplicado.
Andy abaixou o cardápio.
— Fala?
— O moço tá esperando. Vão pedir mais alguma coisa? — Minha
melhor amiga despencou sua atenção em mim, e o olhar que me deu era
claro. Aquilo era um resgate. Um aviso. Um alerta. Acho que ela notou o
que estava acontecendo. Ela sempre notava.
— Aham — percebi que minha voz estava rouca. — A gente quer...
suco... suco de...
— Laranja — Andy me ajudou. — Eu vou dividir o Chopp.
— Tá legal. Ótimo! Então é isso, moço! Suco de laranja! — gritou, se
esforçando para distrair a todos enquanto eu fazia o meu máximo para não
surtar.
Nosso pedido chegou, eu afoguei meus sentimentos em meio litro de
laranja, e o tempo foi passando irritantemente devagar.
Elas dividiram um barril de Chopp inteiro antes que Talita chegasse. Era
uma garota animada. As instigou a pedirem mais um barril, e outro, e outro.
Perdi a conta de quantos elas tomaram naquela noite, tudo que sei é que os
esgotaram depressa, enquanto Renan e eu nos consolidávamos como os
únicos sóbrios daquele lugar inteiro.
Aquela foi uma das únicas vezes que eu aspirei estar bêbada na minha
vida. Imagino que bêbados sintam menos desconforto. Pensem menos. Não
sintam tanta necessidade de acabar com a leveza de tudo.
Já beirava às onze horas quando Renan disse:
— Cami, temos que ir.
Minha mãe tinha dado uma condição para irmos naquele aniversário:
voltar para casa antes da meia noite. E aquele Batista não era capaz de errar
um único horário. Assenti, relativamente ansiosa para encerrar aquela
noite.
— Ok. Bre... amo você. Feliz aniversário! — Eu me coloquei de pé para
abraçá-la, e, depois, a todo o resto.
Nós nos despedimos e fomos embora. Renan com um sorrisinho
satisfeito no canto do seu rosto e Andressa com meio litro de Chopp
correndo por cada artéria.
Pedimos outro Uber e nos metemos no banco de trás. Meu endereço
veio primeiro que o deles, porém, quando o carro parou e eu me despedi,
Andy não deixou que eu fechasse a porta.
— Ei. Onde você vai? — quis saber Renan, conforme ela colocava as
pernas para fora. Encarei-a tão confusa quanto ele. Sua resposta saiu limpa
e precisa:
— Vou levar a Camila até a porta. Moço, você espera rapidinho? —
perguntou ao motorista. Ele assentiu.
— Claro.
— Andressa, o que... — Largou seu irmão falando sozinho e saiu do
carro atrás de mim. Bateu a porta, se aproximando. Eu a encarei cambalear
de leve.
— Andy? O que você tá fazendo?
— Vou te levar até a porta.
E foi o que ela fez. Não tive como protestar, apenas me sentir em
perigo.
Quando chegamos aos degraus em frente à minha portaria, ela
estacionou, e eu a encarei, confusa. Não entendia o motivo de tudo aquilo,
mas como julgar as atitudes de um bêbado? Ela estava claramente
embriagada. Ficava tátil quando bebia, seus olhos caídos e adquiria uma
crônica necessidade de ser sincera.
— Mila?
— Oi?
— Eu te trouxe até aqui porque eu queria te dizer uma coisa. A sós. —
Estava séria e aquilo me alarmou.
— O que houve?
Respirou fundo.
— Eu meio que... — fez uma pausa, rebobinando. — Eu acho que... —
Suspirou. — Tá, eu não acho nada. Eu gosto para caralho de você. Tipo...
mesmo.
Senti metade do meu peito descolar do lugar onde deveria ficar.
Que noite, não?
— Andy...
— Me deixa só dizer isso, por favor. Você sabe que eu... isso não é de
agora. — Eu nunca a vi com tanta dificuldade para encontrar as palavras
certas antes. Não sei se era o álcool ou o nervosismo. — E eu meio que
estou... indo além.
Ficou um tempo em silêncio, suas frases pesando como bigornas. Abri a
boca, mas ela me impediu de continuar.
— Não precisa falar nada, eu só queria que você soubesse. Eu tenho
absoluta certeza de que estou começando a gostar de você. Na verdade, não
— se contradisse e se confundiu pela última vez. — Eu não estou
começando nada. Já é fato, há muito tempo, eu... gosto muito de você,
Camila.
Tenho essa teoria, até já te contei uma vez, eu acho que a verdadeira
intimidade é testada no silêncio.
Por muito tempo, eu não tive aquilo com Andressa. Minha vontade de
beijá-la era barulhenta, ansiosa, amedrontadora e o silêncio era um convite
para eu me desesperar. Só que havíamos passado por isso. Todos os
caminhos haviam sido percorridos, a atração havia sido provada e a
realidade parecia... diferente.
Eu poderia passar horas ao lado dela em silêncio, apreciando o fato de
que ela estava ali, apenas existindo, perto de mim. Eu não me sentia mais
desesperada para dizer qualquer coisa, somente para não permitir que o
silêncio nos engolisse. Eu não me sentia mais envergonhada. Eu não
esperava que ela me julgasse, por nenhuma das minhas convicções e gostos
(até mesmo meu amor pelo Capitão América). Eu confiava nela, gostava
dela. Gostava de como se vestia, de como era educada com todos ao seu
redor e de como segurava meu rosto com delicadeza, ouvindo com atenção
tudo que eu falava. Andy me ouvia, me ouvia de verdade, e tinham certas
coisas que eu só queria contar para ela.
O que Andressa havia acabado de me confessar, era o que eu tentava
entender em mim.
O motivo de eu não estar mais satisfeita com os encontros às escondidas
era porque eu estava gostando daquela garota. Não só de transar com ela,
não só de sentir seus beijos. Eu estava gostando de tudo. Tudo mesmo. E
era incrível estar na minha posição, e ouvir que a garota que você gosta,
gosta de você em retorno, mas também era uma merda. Porque o fato de ela
me dizer aquelas coisas transformava tudo aquilo em mais do que um
desconforto. Passava a ser uma grande injustiça.
Dar uns amassos escondidos nunca foi tão grave assim. Contudo, as
coisas se tornavam complicadas quando iam além. Era exatamente nesse
ponto que elas deixavam de ser divertidas.
Sua confissão me tirou o chão. Eu estava completamente atordoada
enquanto dizia:
— Andressa, não acho que seja a hora de conversarmos sobre isso. Com
seu irmão dentro de um Uber e você cheia de Chopp no cérebro. Podemos
continuar depois?
— Mila...
— Andy, por favor — insisti, inflexível. Ela ficou um tempo em
silêncio até finalmente dizer:
— Ok.
— Ok — repeti, engolindo em seco. — Boa noite, então. Volta pro
carro, por favor. E me avisa quando chegar em casa.
Ela assentiu.
— Tá bom.
Virou as costas e foi andando, um pouco torta, em direção ao veículo,
me abandonando com os dedos tremendo. Apertei “portaria” no interfone,
sem nenhum rastro de sangue passeando pelo meu rosto.
Eu estava confusa e desesperada, então fiz o que eu deveria ter feito há
muito tempo. Eu peguei meu celular, e mandei uma mensagem para Ana
Clara.

Camila 23:48h: Oi, Ana! Você vai estar na facul


amanhã?

Ela nunca demorava a responder.

Ana 23:49h: Olá gatinha. Vouuuu, mas só a tarde.


Tenho q passar na secretaria

Camila 23:52h: Ah, beleza. Será que a gente pode


se ver rapidinho? Também vou estar por lá, e
queria conversar contigo.

Ana 23:54h: Ai puta merda aconteceu alguma


coisa?

Camila 21:55h: Não! Fica tranquila kkk, não é


nada demais. Você me avisa quando estiver lá?

Ana 21:55h: Óbvio. Te vejo amanhã! To nervosa

Camila 21:58h: Para! Não tem motivos para estar.


Te vejo amanhã, bjsss
CAPÍTULO VINTE. TALVEZ,
TUDO PUDESSE FICAR BEM.
Nem posso culpar o meu vício em mentir por ter mentido para Ana
Clara no dia anterior; coloco toda a culpa no meu nervosismo. Minha
conversa não era “nada demais”. Não para mim. O que eu tinha para dizer
era importante, e eu acho que ela sabia disso. Estava quase mais ansiosa que
eu para me encontrar.
Naquele período de nossas vidas, eu já estava bem mais familiarizada
com o campus da minha universidade, e não tive nenhuma dificuldade em
encontrá-la, sentada no canteiro em frente à xerox do seu Marcus (meu
local de referência), com um cigarro entre seus dedos e Jéssica, ao seu lado.
Meu campus era arborizado, mas não o suficiente. Em períodos como
aquele, no qual o Sol era forte e o calor excessivo (dois terços do ano, no
Rio de Janeiro), as pessoas se aglomeravam em toda e qualquer sombra que
encontravam. Ana Clara conquistou a maior delas naquele dia.
Ela era muito fácil de identificar, com aquela sua mochila laranja,
pousada em cima de seus pés e sua namorada de cabelos vermelhos à sua
esquerda. Eu não estava esperando que ela tivesse companhia, o que foi
ingenuidade da minha parte, porque elas eram um combo.
— Finalmente! — Minha veterana se colocou de pé assim que me viu,
me abraçando, infestando minha blusa com o seu cigarro e se sentando
outra vez. — Passei o dia em desespero. Isso não se faz! Falar que vai
conversar depois. O que houve?
Mordi meus lábios, voltando meu olhar para Jéssica, sem conseguir me
segurar. Ela entendeu de imediato.
— Droga. Você quer que eu saia? Viu, amor, eu falei que ela queria
falar com você sozinha.
— Não, Jeh. Claro que não! — tentei consertar minha reação rude,
apesar de aquilo ser uma calúnia. Eu queria mesmo falar só com a Ana. Mas
quer saber? Notei que não me importava se ela ouvisse também. — Eu só
queria contar uma coisa pra... vocês. E pedir um conselho.
— Ai meu Deus, Camila. Calma. Espera. — Ana tragou com força a
sua bituca. Seu nervosismo era quase cômico. Aguardei até que ela
terminasse de se intoxicar, baforando para longe do meu rosto e dizendo: —
Você não tá grávida não, né?
Juro por Deus que essa foi a primeira coisa que ela me perguntou. Não
consegui segurar meu riso depois disso. Foi bom, liberou um pouco da
tensão que havia nos meus ombros. Era impossível se manter
desconfortável perto de Ana por muito tempo.
— Não. Claro que não — garanti, então dei de ombros. — Só se a
Andressa estiver me escondendo alguma coisa.
Minha estratégia foi soltar a primeira “grande” notícia do dia em forma
de piada. Acho que eu passei muito tempo namorando o Henrique. Acho
que não funcionou.
— Andressa? — Ela demorou a entender. Com Jéssica, foi imediato.
— Oh. Irado! — Sorriu. — Foda, Cami. Fico feliz por vocês.
Ana Clara franziu sua testa, raciocinando aos poucos. Revezou seu
olhar entre mim e Jéssica, até que enfim ligasse os pontos.
— Espera. Você tá dizendo que você e Andressa estão...? — O
entendimento fez seu queixo cair. — Ai meu Deus, ai meu Deus!
Sua alegria me fez rir outra vez. Meu rosto adquirindo o tom vermelho
de sempre.
— Ah! — Deu um último gritinho. — Eu sempre soube! — Sua
animação era contagiante. — Amor, eu não te falei?
— Falou. Mas todo mundo sempre soube, amor.
— Bom, é isso então. — Dei de ombros, sem jeito. — Estamos
correspondendo às expectativas de “todo mundo”.
— Espera. Vocês estão juntas mesmo? Ou é só curtição? — quis saber
Ana e eu a agradeci por ser direta e me poupar da grande responsabilidade
de chegar naquele ponto do assunto.
Não foi difícil confessar que eu estava “ficando” com Andressa. Na
verdade, foi revigorante. O problema estava no que vinha agora:
— Então — pigarreei. — A gente estava só… curtindo. Mas aí ela me
disse ontem que gosta de mim. — Suspirei. — E eu acho que eu também
gosto muito dela.
Esperaram que eu dissesse mais alguma coisa. Quando não o fiz,
franziram sua testa.
— Uma boa premissa, mas você não parece feliz com isso — concluiu
Ana. — Por quê?
Engoli em seco.
— Porque meus pais não sabem que eu fico com mulher. Na verdade...
minha mãe... Quer dizer, nenhum dos dois sabem, é que... — me enrolei
antes de conseguir dizer: — A questão maior é a minha mãe.
Confessei às minhas madrinhas. Ao primeiro casal sáfico que eu
conheci na vida e às pessoas que eu sabia que me entenderiam, melhor do
que ninguém.
— Antes de Andy, nem eu sabia, na verdade — completei, derramando
descontroladamente depois que finalmente tive coragem de começar. — E
eu... sei lá. Ontem eu fiquei refletindo sobre como não é só uma parada
física. Eu gostaria de poder sair com ela, jantar com ela, ir ao cinema e
segurar suas mãos, sem ter medo de alguém ver. Faz sentido? — Elas
assentiram e eu suspirei. — Eu acho que não quero mais ficar só “curtindo”.
E, pelo que ela me disse ontem, eu acho que ela também não. Só que se a
gente ficar juntas de verdade, eu não posso continuar escondendo. E aí eu
teria que contar para a minha mãe e, caralho, eu não sei se eu consigo! Eu
não sei por que parece tão difícil para mim contar para ela.
Ana Clara soltou um sorriso compassivo antes de dizer:
— Parece difícil porque é difícil, Cami. Pra caralho.
— É — Jéssica concordou com ela. — É foda.
Soltei todo o ar de uma só vez.
— Como foi pra vocês? Desculpa se for uma pergunta invasiva.
A minha mania de não querer “incomodar”, e de mentir até para a
minha própria sombra, me impediu de ter uma coisa básica, e extremamente
relevante, para todo o meu processo: conversar com pessoas que passaram
pelo mesmo que eu. Conversar e trocar experiências com quem eu confiava.
Pessoas que eu sabia que me entenderiam.
— Nada invasiva. — Ana sorriu, batendo com seu cigarro em seu
joelho e dando de ombros. — Pra mim, até que foi de boa. Eu nunca falei
nada pros meus pais, na verdade, eu só surgi com uma garota e ai eles
souberam.
— E eles ficaram... tranquilos?
— Uhum. — Esmagou o cigarro de vez no cimento. — Eles me
surpreenderam bastante, na verdade. Eu achei que eles fossem surtar, mas
eles só me perguntaram se eu tinha certeza e, depois disso, seguiram suas
vidas.
— É. Os meus também — compartilhou Jéssica. — Eles demoraram um
pouco para “seguirem com as suas vidas”, na verdade. Uns anos. Mas
seguiram. — Soltou um sorrisinho tímido. — Eu contei que era lésbica
antes de começar a me envolver com a minha primeira garota. E eu acho
que eles não acreditaram muito até que eu levasse ela lá.
— Ela tinha treze anos — dedurou Ana, o que a fez rir.
— Pois é, eu tinha treze anos.
— Caramba. — Arregalei meus olhos. — Você se assumiu super nova
então?
— Foi. Mas não me interprete mal, não tem isso de idade, Cami. —
Então apontou para Ana. — Aninha contou para os pais com dezenove.
Aquilo me pegou de surpresa.
— Mas Jéssica não foi sua primeira, né?
— Não, eu pego mulher desde que... sei lá, eu era um embrião! — Tive
que rir daquela fala sem noção. Apesar do teor da conversa, eu
surpreendentemente não me sentia inibida. Ela continuou: — Mas com
dezenove foi quando eu me senti pronta pra contar. — Descruzou a perna.
— Você sente que é difícil se livrar disso porque é difícil, Cami. E cada um
tem seu tempo. Você precisa entender se é seguro contar, acima de tudo.
Respirei fundo.
Meu peito batia acelerado. Suas histórias eram positivas, seus conselhos
eram bons, e eu me peguei, perigosamente, acreditando.
Não disse a elas na oportunidade que eu e minha mãe tínhamos um
histórico ruim. Que ela já havia me decepcionado antes. Que ela quebrou
uma parte de mim e que eu estava há meses tentando me recuperar daquele
trauma. Eu não contei da mágoa que carregava, porque, de alguma forma,
conversar com elas me deu esperanças. Esperanças de que minha mãe
pudesse me surpreender. De que eu conseguiria ter algum tipo de controle
sobre o meu futuro. Spoiler: não tive muito. Mas, pelo menos, eu tentei.
Hoje eu percebo que isso já foi um grande passo.
— Obrigada, meninas — agradeci, sem jeito. — Mesmo.
Então elas se colocaram de pé e me abraçaram.
— Vai ficar tudo bem — sussurrou Ana, e tudo que eu senti, naquele
instante, foi tranquilidade.
Talvez ela realmente estivesse certa. Talvez, tudo pudesse ficar bem.
Eu já estava ligeiramente motivada antes de falar com elas, mas, depois
que eu saí daquele abraço, abandonei de vez a minha aula e mandei uma
mensagem para Andy.

Camila 15:14h: Oi! Tô saindo da facul agora.


Será que você consegue me encontrar em quinze
minutos no nosso ponto de sempre?
CAPÍTULO VINTE E UM. O
PRELÚDIO.
Eu nunca fui boa em biologia no colégio, especialmente quando se
tratava de plantas. Odiava estudar aquela droga de xilema e de floema e não
tinha interesse nenhum em saber sobre angiospermas e sua reprodução.
Tive dificuldade nas matérias que envolviam biologia na minha
faculdade, mas, pelo menos, eu nunca mais tive que estudar plantas. Eu não
tinha habilidade para isso, nem na teoria, nem na prática.
Certo domingo, eu estava almoçando na casa do meu pai quando ele me
deu um cacto. Vendiam muitos desses no mercado, delicados e fofos. Ele
viu aquele pequenino, no meio de tantos outros, e o adotou.
Eu estava com Gabriel neste dia, a separação ainda era bem recente, e
ele o deu um nome. “Rogério”.
Rogério era o nome do nosso cacto, presente do nosso pai não mais
casado com a nossa mãe, depois de um almoço em seu apartamento de
homem separado.
Rogério morreu depois de duas semanas no parapeito da janela do meu
quarto.
Eu e meu irmão nunca soubemos o que fizemos de errado. Colocamos
água (mas talvez tenhamos colocado muita), o deixamos no sol (talvez
tenhamos deixado muito), conversamos com ele algumas vezes (mas talvez
não o suficiente).
Independente dos motivos, ele ressecou, e foi jogado fora pela minha
mãe, depois que ela o encontrou, murcho. Não nos perguntou se queríamos
fazer um funeral, apenas o arremessou no lixo.
Depois disso, nunca mais me atrevi a tentar cultivar um cacto. Ou uma
planta. Ou qualquer coisa bonita que ficasse muito perto da minha janela,
ou de mim.
Como aquelas flores, paradas em exposição nas prateleiras do lado de
fora do mercado. Suas pétalas cintilavam debaixo do sol. Não sei se aquele
era o melhor ambiente para elas estarem, mas ali estávamos nós. Em uma
tarde de sexta-feira, suando o pescoço e as tripas enquanto aguardávamos
que ela chegasse.
A conversa com Ana Clara e Jéssica ainda ressoava em meu ouvido
quando eu ouvi:
— Escolhe sua favorita. — Sua voz chegou mais revigorante que brisa
fresca, e eu juro que até aquelas flores passaram a brilhar mais quando ela
se aproximou.
Ela se atrasou um pouco, mas havia ido. Estava ali.
— Você vai comprar flores pra mim, Andressa? — Cruzei meus braços
e me virei para encará-la.
Andy usava os cabelos presos naquele dia, uma camiseta preta e uma
autoconfiança invejável.
— Flor — me corrigiu. — No singular. Esses vasos são caros e eu sou
uma mera estudante.
Tive que sorrir, mas foi um sorriso breve. Eu estava tensa.
Engoli em seco, tentando abreviar aquele instante.
— Então, acho que temos que conversar, né? — Ela assentiu. Havia um
desconforto miúdo atrelado aos seus movimentos.
Agarrou a alça da sua bolsa.
— Acho que sim. Posso começar?
Respirei fundo.
— Claro.
— Não me afaste de novo por causa do que eu disse ontem.
Ok, então já começamos assim.
— Andy...
— Por favor.
Tudo dentro de mim se tornou fumaça.
Marcamos de nos encontrar no mercadinho que ficava ao lado da
faculdade, já que se tornou um costume nosso nos encontrar ali. Sempre foi
um bom destino para o nosso disfarce. Distante das nossas casas, ignorado
por todos os nossos familiares. Ninguém poderia nos flagrar ali e aquilo
nunca me pareceu tão errado.
— Mila? — me chamou, e eu tive que levantar os olhos para vê-la, sem
sequer notar que os havia abaixado. Minhas mãos suavam. Ela completou:
— Nada precisa mudar por causa do que eu disse. Nada mudou.
— Nada mudou? — Suspirei. — Andy, tudo mudou.
— Camila...
— Você não percebe o quanto seria egoísta da minha parte manter as
coisas como estão depois do que você me disse ontem?
— Por que seria egoísta?
— Porque estamos nos escondendo, Andressa! Você já passou por isso,
e eu não quero te fazer se encolher dentro do armário outra vez.
— Você não está fazendo nada. Eu escolhi estar aqui — argumentou,
irredutível. — Fui literalmente eu que dei a ideia!
— Sim, eu sei. Mas foi você também que me disse uma vez que se
assumiu para a sua família justamente porque não queria ficar escondendo.
Ela bufou.
— Eu tinha dezoito anos.
— Porra. Faz muito tempo, realmente.
Não se afetou com a minha ironia.
— Era diferente.
— Não, não era.
— Para com isso.
— Andy...
— Só me fala como você se sente — pediu, e eu notei que estava
impaciente. — Você gosta de mim, ou é tudo, sei lá, curiosidade? Me diz
como você se sente de verdade. Você já sabe como eu me sinto. E, se não
for recíproco, Camila, tá tudo certo. Eu juro que vou te respeitar. Mas, se
for…
Suspirou, sem se dar o trabalho de completar, e sua sentença me
abraçou forte.
Não acreditei que aquelas palavras saíram da sua boca. Curiosidade?
Nunca foi “curiosidade”, e eu jamais imaginei que ela pudesse considerar
isso. Na minha cabeça, eu era bem pouco discreta quando estávamos juntas.
Como ela não pôde notar o quão entregue eu estive? Ela era meu Sol,
sempre foi. Tudo que eu fazia, durante meus dias e minhas noites, era
orbitar ao seu redor.
— Meu Deus. É claro que é recíproco, Andressa. Eu gosto muito de
você — murmurei, contrariada por ter que confessar aquilo em voz alta. —
E é por isso que eu não quero te machucar.
Ela respirou fundo.
— Então não me afaste outra vez. É só assim que você vai me
machucar.
Aquilo era romântico, mas, acima de tudo, uma mentira. Havia dezenas
de formas nas quais eu poderia feri-la, só que ela nunca as considerou.
— Andressa…
— Desculpa, Mila, mas eu não tô entendendo. Você tá querendo dizer o
quê, exatamente? Que não quer mais esconder a gente e por isso não
podemos continuar nos vendo? Camila, minha opinião se mantém a mesma.
Eu não preciso que ninguém saiba de nada. Eu só preciso de você. Por mim,
não faz diferença escondermos ou não.
Meu coração foi engolido. Mastigado. Triturado.
Porra, era óbvio que fazia diferença! Ela só não conseguia admitir!
Andressa não precisava que ninguém a machucasse, ela conseguia fazer
isso sozinha, e essa era a única coisa nela que eu não gostava. Não gostava
de vê-la se punir, e era isso que eu estava a forçando a fazer.
Tudo que eu aprendi, durante a minha vida inteira, foi a mentir, e eu a
estava forçando a ser como eu apenas para me agradar. Eu não podia
permitir continuar com aquilo. Não era justo, com nenhuma de nós duas.
— O que eu estou querendo dizer, Andy, é que, se vamos continuar com
isso, eu vou ter que contar para a minha mãe. — Meu peito começou a bater
tão rápido que eu achei que a qualquer instante, ele fosse quebrar as minhas
costelas. — Então eu vou contar. Nesse final de semana.
Ela me encarou em choque. Um silêncio sepulcral nos envolveu pelo
que pareceram horas.
— Camila — murmurou, me encarando com um receio transbordante.
— Você não precisa...
— Eu quero.
— Você quer mesmo?
— Uhum.
Ponderou por alguns instantes. Não sei se minha expressão passou
muita certeza. Não sei se eu tinha muita certeza.
No fim, havia dois caminhos os quais poderia seguir a partir de então. O
primeiro era realmente me afastar de Andy. Se eu fizesse isso, sofreria para
um caralho, porém, minha mãe nunca saberia.
O segundo envolvia continuar com ela e contar para Regina a verdade.
O segundo me parecia impossível, até alguns minutos antes.
Eu nunca achei que eu teria forças para contar a verdade para a minha
mãe, mas a conversa com as minhas madrinhas mudou alguma coisa em
mim. Eu já tinha a garota, eu queria estar com ela e eu só precisava
comunicar a minha escolha. Eu só precisava ter coragem, por dois segundos
completos…
— Mila. — Deu um passo em minha direção, cautelosa: — Se você for
fazer isso, preciso que me prometa que está fazendo por você e não por
mim.
— Eu tô.
— É sério?
— É.
Eu não tinha certeza daquilo. Eu não tinha certeza de nada.
Verdade seja dita: se eu pudesse escolher, eu escolheria não ter que
contar para Regina; mas eu também não escolheria perder Andressa. Minha
decisão se deu por dois motivos: 1) eu não suportava a possibilidade de
ficar sem Andy e 2) eu tinha esperanças, pela primeira vez, de que Regina
poderia me surpreender.
Ela vai me surpreender, repetia, como um mantra. Ela vai me
surpreender. Eu não perderei nenhuma das duas.
— Talvez minha mãe reaja bem, sabe? — compartilhei, em voz alta. —
Como os pais da Ana. Sabia que eles foram tranquilos com ela? Os seus
também foram. Talvez, minha mãe também... possa ser.
— Mila? — Segurou de leve meus ombros. — Independentemente de
você contar ou não, eu estou aqui. Preciso que você entenda isso.
Era óbvio que eu havia entendido aquilo, o que Andressa não havia
entendido, em contrapartida, é que não existia a opção de não contar. Eu
não poderia permitir que ela continuasse se maltratando daquela maneira.
Eu não seria capaz de seguir de outra forma.
Era só eu falar com Regina. Apenas isso. E tudo ficaria bem.
Minha mãe pode me surpreender. Ela vai.
Jesus, eu vou contar!
Senti que meus olhos se encheram de lágrimas. Era o pânico, a
antecipação, a vontade de me livrar daquele fardo, tudo junto. Andy me
encarou com pesar. Notava que estava preocupada comigo. Desesperada, na
verdade. Então me abraçou.
Seus abraços eram como a volta para casa, depois de uma longa viagem.
Eu a apertei.
— Me desculpa — sussurrei, em seu ouvido.
Estávamos abraçadas debaixo de sol quente e minha alma suava com a
promessa do que eu disse que ia fazer. No final de semana. Que final de
semana pavoroso se aproximava...
— Por que você está se desculpando dessa vez?
— Sei lá — admiti. — Acho que por ser tão medrosa. Tão... idiota.
Complicada. E infantil.
— Todas essas coisas são mentira, Cami. — Acariciou meu cabelo. —
E se você continuar falando assim sobre a minha garota favorita, vamos ter
que conversar sério outra vez.
“Minha garota favorita”. Meu peito pareceu um pouco menos diminuto
depois disso. Senti uma corrente forte me tomar por inteiro. Em seus
braços, eu me sentia amedrontada, mas protegida.
— Cami? — tive que provocar.
Aquela foi a primeira vez que tivemos uma conversa séria, e eu não
estava suportando a pressão. Eu não estava suportando... nada. Acho que
nem ela, porque soltou todo o ar de uma vez depois que eu disse aquilo.
— Eu não faço a menor ideia de onde veio isso.
— Tem uma chance para consertar.
— Mila — retificou, e eu sorri. Senti que ela lutou para não fazer o
mesmo.
Era interessante como todo mundo (com exceção do meu ex) respeitou,
sem que fosse combinado, o fato de que aquele apelido era dela. Assim
como eu.
Respirei bem fundo, tentando me concentrar naquele sentimento bom, e
não terminar chorando (outra vez), em meio àqueles cachos com cheiro de
shampoo.
— Andy, o que a gente teve agora — Pigarrei. — Foi a nossa primeira
DR?
Ela finalmente se permitiu rir.
— Porra, se foi, eu preciso me redimir por ter a iniciado. —
Desvencilhou-se de mim e eu tive que me segurar para não protestar
(mesmo que estivesse um calor do caralho). — Você já escolheu a sua flor
favorita? No singular.
Sorri fraco, o máximo que eu consegui. Suas pintinhas, espalhadas de
uma forma tão única, cintilavam debaixo do Sol. Ainda estava anestesiada
quando disse:
— Acho que eu gostaria da amarela. — Apontei na direção do menor
vasinho que havia ali.
Era uma promessa pessoal minha nunca mais pegar uma planta para
cuidar, mas ela me comprou aquele vaso. Pelo menos, eu tive a compaixão
de escolher o mais barato. Seu tom de amarelo era contagiante. Andressa
sorriu, e eu me lembro daquele sorriso todos os dias, quando eu acordo e
quando vou dormir. Foi o último daqueles sorrisos leves e viajantes.
Naquele mesmo dia, tudo desmoronou.
— Excelente escolha.
Ficamos um tempo assim, com os olhos enovelados, e eu não precisei
dizer nada para que ela entendesse.
— Vai ficar tudo bem — garantiu, acariciando meus cabelos.
E eu quis muito acreditar naquilo.
E eu repeti: ela pode me surpreender.
E eu implorei: por favor, mãe…
Por favor.
CAPÍTULO VINTE E DOIS. A
FLOR.
Os melhores e os piores dias da sua vida começam iguais.
Particularmente, eu acho isso injusto. Deveria haver um aviso, de qualquer
tipo. Um badalar de sinos, um aperto no peito, um pressentimento ruim.
Nos filmes, isso acontece, mas eu preciso mesmo parar de comparar minha
vida com a do Peter Parker. Não houve sexto sentido nenhum naquela
sexta-feira, nada que fizesse eu me preparar para como a minha semana
terminaria.
Eu enfrentei um dia comum. Na verdade, não, eu enfrentei um dia bom,
até que eu chegasse em casa com meu mais novo vasinho de plantas e visse
tudo colapsar.
Depois que eu conversei com Andressa, eu retornei para casa de Uber,
como costumava fazer. Meu pai tinha acabado de me mandar uma
mensagem, me chamava para passar o final de semana na sua casa, e eu
estava prestes a o responder quando dei de cara com Regina.
Ela estava parada em frente à porta, aguardando a minha chegada.
Nunca soube se ela ouviu o barulho do carro, se viu da janela, se
instalou um chip no meu pescoço ou se simplesmente faltou ao trabalho e
passou a tarde inteira ali, de pé, esperando. Todas as alternativas pareciam
plausíveis para mim.
Eu nunca vou esquecer o seu olhar.
— Mãe? — Franzi minha testa, fechando a porta atrás de mim e
bloqueando o celular.
Notei rápido que algo havia acontecido; suas írises eram lanças. Meu
primeiro impulso foi querer cobrir os “olhos” da minha mais nova
plantinha, para que ela não fosse transformada em pedra por aquela atenção
de Medusa.
— O que houve?
Ela apontou um dedo na minha direção, batucando com os pés no chão,
impaciente.
— Quem te deu essas flores?
— Essas... flores? Eu... comprei?
Péssima escolha de palavras. Ela me pressionou, e meu primeiro
instinto foi omitir. Não era final de semana ainda, e eu não estava esperando
por aquilo. Não preparei meu discurso, fui pega de surpresa. Minha mentira
colocou ainda mais lenha na fogueira.
— Não minta pra mim, Camila.
Regina borbulhava em raiva. Os nós dos dedos quase brancos, de tanto
que ela apertava seus próprios braços. Eu ainda não estava entendendo
porque minhas flores a irritavam tanto até que dissesse:
— Eu sei que você estava com a Andressa mais cedo.
Gelei. Dos pés à cabeça.
— Eu... Mãe...
— Me contaram, Camila. Me contaram, que vocês estavam abraçadas,
se acariciando.
Não havia passado pela minha cabeça que ela poderia estar brava
comigo por aquele motivo. Eu e Andressa já havíamos tido oportunidades
muito piores para termos sido pegas. Já havíamos sido muito mais
carinhosas em público, muito menos cuidadosas. Mas foi aquela ocasião
que me entregou. Um abraço nada romântico. Um vaso de flores. O capítulo
no qual eu finalmente havia decidido a contar tudo.
O Universo era mesmo um piadista infeliz.
Tudo estava errado.
Não era para ela descobrir dessa maneira, era para eu contar, no final de
semana, depois que eu tivesse reservado um pouquinho de ar.
Não era para ser desse jeito. Ela devia me surpreender com sua atitude
positiva. Ela não devia me olhar com tanto desgosto. Ela tinha que me
surpreender!
Conseguia sentir o pânico se expandindo e subindo pelo meu corpo,
como uma dose de veneno que escala, no sentido contrário. Meu rosto se
tornou escarlate. Eu não precisei responder nada, minha reação me
entregou.
— Mãe — minha voz estava trêmula. Não havia nenhum centímetro do
meu corpo que não estivesse em choque.
O julgamento que eu já havia visto ser dirigido a Andressa antes bateu
em mim com mais força do que eu jamais poderia imaginar.
— Camila. Me responda uma coisa: você virou gay?
Havia tanta coisa errada naquela sentença, e todas elas me
incapacitaram de maneiras diferentes. Eu senti uma dor física, que engolia
cada parte de mim. Era como se meu peito tivesse sido esmagado por um
rolo compressor.
Todas as minhas esperanças foram trucidadas, e esse é o lado ruim de
nutrir expectativas. A decepção é capaz de dizimar tudo, de uma só vez.
Eu errei ao imaginar que minha mãe pudesse me surpreender. Regina
nunca havia se dado o trabalho de tentar mudar, e eu sentia um vazio tão
gigantesco que quase não conseguia me manter de pé. Eu estava oca, e eu
comecei a chorar, depois de semanas composta.
— Mãe... eu posso explicar.
— Explicar, Camila? — gritou. Pela primeira vez durante aquele
diálogo, ela gritou, e eu me encolhi. — Explicar como Andressa conseguiu
influenciar você?
— Mãe...
— E o Henrique? Eu não consigo entender! Você namorava! Foi por
isso que você terminou com ele? Para fazer essa pouca vergonha?
— Não. Mãe, me escuta. Henrique terminou comigo. Eu e Andy, a
gente...
Ela me impediu de continuar com um gesto, e eu a obedeci. Não tentei
argumentar, tampouco me defender.
Eu demorei tanto para fazer o certo que não consegui. Minha voz foi
tirada, mais uma vez. Minhas vontades, meu protagonismo, tudo pareceu
pequeno. Em frente à minha mãe, eu era a Camila a.a., e eu me esqueci do
porquê de um dia ter imaginado ser diferente.
Regina levou uma de suas mãos até sua têmpora, e a massageou.
Ficou um tempo assim, e eu esperei. Esperei pelo que pareceu uma
eternidade. Eu estava vermelha, com as lágrimas se sobrepondo quando ela
falou:
— Preciso de um tempo, Camila. — Engoli em seco. — Seu pai me
pediu hoje pra ficar com você no final de semana. — Passeou com a mão
pelo seu cabelo. — Acho que você devia ir.
Não consegui responder nada por tanto tempo que me esqueci de como
se falava. Meu cérebro sucumbiu. Senti que o chão abaixo dos meus pés
cedeu. Meu peito subia e descia sem ritmo. Eu estava anestesiada, mas
sentia muita dor.
— Você está me expulsando de casa? — Regina negou com a cabeça.
— Quê? Claro que não. — Suspirou. — Óbvio que não, Camila.
Mas também não me pediu para ficar.
Aquilo me desestabilizou por completo.
Ela deveria me surpreender.
Soltei um soluço. O nó na minha garganta tornava difícil respirar.
— Ok — disse, sentindo minha traqueia arranhar. — Vou só... pegar as
minhas coisas.
Então eu caminhei, com aquela porcaria de flor em mãos, até o meu
quarto. Meus dedos tremiam e suavam na maçaneta. A porta estava fechada
e, quando eu a abri, dei de cara com o meu irmão.
Travei por alguns instantes.
Soube, pela expressão em seu rosto, que ele havia ouvido tudo, o que
terminou de esmurrar meu coração.
Ótimo. Mais um para me julgar.
Ignorei seus olhos, caminhando a passos largos até minha cama,
abandonando minha mochila em cima e socando as primeiras roupas que
achei no meu armário do lado de dentro.
Não notei, mas apoiei a flor com delicadeza na mesinha entre nossas
camas. Não notei, mas ele veio até mim.
— Cami? — tentou chamar minha atenção, e eu o ignorei, esvaziando
os meus cabides enquanto chorava.
Eu estava em choque. Acabada.
— Cami? Camila? — insistiu, desistindo de chamar por mim e
simplesmente me abraçando pelas costas.
Fui obrigada a largar a camiseta que segurava depois daquilo.
Ele me imobilizou, com seus braços finos. Gabriel estava crescendo
rápido, e já estava do meu tamanho. As coisas estavam passando muito
depressa. Droga de tempo! Eu queria que ele parasse. Parasse antes daquilo
tudo. Por favor, faça parar!
— Não escute ela, tá bom? Ela tá com a cabeça quente. Não importa o
que ela disse, eu tô aqui por você. — Ele me apertou, e eu me virei para
fitar o seu rosto.
Suas palavras me surpreenderam.
Sabe o que aconteceu comigo depois de todas aquelas brigas, choros e
divórcio? Eu perdi a confiança na minha própria família. Eu sempre soube
que minha mãe não aceitaria a minha sexualidade e, de alguma forma, o
medo que eu sentia da sua reação, somado aos ressentimentos que eu
mantinha do meu pai, me tornou uma estrangeira na minha própria casa. Eu
nunca pensei em buscar abrigo com eles, porque eu tinha medo que
acabasse respingando em Regina. Porque ela ofuscava todo o resto e porque
meu lar parecia desmembrado para mim. Porém, isso não era verdade.
As pessoas certas não me odiariam caso eu fosse sincera. E o garotinho
que fugia de casa, batia a porta e que eu vi crescer havia engrossado a voz,
amadurecido e se transformado em alguém de quem eu me orgulhava.
Ele não me odiava. Meu Deus, ele não me odiava! Ele me surpreendeu.
Senti algo positivo se espreguiçar, mesmo que meu mundo parecesse
nublado. Puxei-o e beijei o topo de sua cabeça.
— Obrigada, Gabi. Obrigada.
Então me voltei novamente para o meu armário e tornei a pegar a maior
quantidade de roupas que cabia naquela mochila. Eu não fazia ideia do que
estava fazendo e acumulei um monte de peças desconexas e sem sentido.
Não me importava, na verdade, com nada daquilo. Eu só queria dar o fora
dali.
— Para onde você vai? — quis saber e eu funguei.
— Vou ficar com o papai.
— Certo. Eu vou com você.
— Não. — Eu me virei para encará-lo, inspirando profundamente. —
Gabi, me escuta. Se você fizer isso, vai ser pior.
Eu não queria que ele enfrentasse problemas com a minha mãe. Eu não
queria causar mais... danos. Eu estava desorientada e confusa.
Era para eu contar.
Não era para ela reagir dessa maneira.
Ele estalou a língua, irritado.
— Isso é injusto, Cami, a casa é mais nossa do que dela. Papai deu pra
gente.
— Tá tudo bem, Gabi — menti. — É melhor para mim, sair daqui. Só
me… deixe ir. — Ele suspirou, sem escapatória.
— Me liga quando chegar lá, pelo menos?
— Ligo.
Então eu peguei minhas coisas e fui embora, o mais rápido que eu
consegui.
Sinceramente, não me lembro de ter visto Regina antes de ir. Acho que
ela não teve coragem. Era uma covarde, assim como eu.
Todo o caminho até o apartamento do meu pai é uma confusão na minha
mente. Só me lembro de chegar lá, com a cara inchada e a vitalidade no
chão. Lembro que ele abriu a porta para mim e que se preocupou de
imediato.
— Filha? O que houve?
Não fui capaz de responder, tudo que eu fiz foi o abraçar forte; da forma
que eu fazia quando era criança. Como daquela vez em que uma colega riu
de mim no colégio. Ou em todas as outras nas quais minha mãe foi muito
rígida.
Meu pai me ensinou a gostar de super-heróis. Meu pai (é brega, eu sei)
costumava ser o meu. E eu precisava do meu super-herói de volta naquele
momento. Eu precisava, desesperadamente, que ele não me odiasse. Eu
precisava do meu pai, daquele pai de antes das brigas. Do pai que ele
sempre foi, e esse pai me acolheu. Não perguntou os motivos, apenas me
aconchegou, no quarto que havia montado para mim, e começou o jantar.
Sua forma de demonstrar carinho era cozinhando. Sua forma de dizer que
me apoiava era servindo carne assada.
Avisei Gabriel que cheguei e ele mandou mensagem para Brenda, que
apareceu naquele apartamento minutos depois. Meu pai bateu na porta do
“meu quarto”, anunciando sua chegada.
— Amiga. — Ela abriu os braços. — Eu sinto muito, muito mesmo.
Então me abraçou forte, e eu chorei no seu colo por horas. Ela passou a
noite ali, dormiu grudada comigo e tudo que eu me lembro de murmurar em
seus braços era:
— Por quê?
CAPÍTULO VINTE E TRÊS.
ERA TUDO QUE ELE PODIA
FAZER.
Eu acordei tão inchada no dia seguinte que não conseguia enxergar
direito. Quando abri os olhos pela manhã, vivi aquele momento maldoso de
inconsciência e confusão. Eu estava atordoada, e acreditei, por alguns
segundos, que tudo não havia passado de um pesadelo.
Infelizmente, não fora.
A muito real cadeia de acontecimentos do dia anterior me atolou antes
mesmo que eu levantasse da cama, sentindo como se um caminhão tivesse
me atropelado.
Minha dor era emocional e física.
O quarto que foi montado para mim no apartamento do meu pai não
tinha cortinas decentes. Eu não tinha dormido ali o número de vezes
suficiente para notar aquilo e pedir para que trocasse. Conclusão: o tecido
fino deixava que os raios de sol atingissem a cama. Mas não foi isso que me
acordou, foi a dor de estômago.
Levantei suando e cambaleei até o banheiro.
Eu estava horrível. Lavei meu rosto e fiquei pior.
Desisti daquilo e voltei para o quarto, puxando, com cuidado, a mochila
pesadíssima, apoiada em um dos cantos. Brenda estava apagada, ocupando
metade da cama de solteiro que dividimos, e eu fiz meu máximo para não
acordá-la enquanto vasculhava o interior do objeto, em busca de alguma
coisa útil.
Eu, claramente, não agia bem no calor do momento. Levei uma dúzia de
vestidos e nenhuma calcinha para a minha fuga/expulsão para a casa do
meu pai. Sorte que eu tinha algumas roupas lá. Foi escolha minha, no
entanto, não ter muitas e, naquele momento, eu me arrependia disso.
Dormi poucas vezes naquele lugar, passando o mínimo de tempo
possível no meu “novo quarto” e evitando preencher o armário, porque eu
nunca quis transformar o seu apartamento em um lar longe do meu. Isso
parecia uma traição à memória da nossa família, uma traição ao tempo em
que as coisas eram boas. Levar algumas coisas para lá e admitir que eu
gostava daquele colchão macio, parecia uma validação do que ele havia
feito. Na minha cabeça, era como se eu dissesse: “ei, pai, tá tudo bem! Não
nos ocasionou nenhum trauma você e Regina terem transformado nosso
apartamento em um ringue de batalha. Não foi nem um pouco difícil para
nós termos que tampar nossos ouvidos com algodão para não os ouvir
gritar! Agora que vocês se separaram, depois de insistir nessa merda por
meses, tudo é lindo e eu vou ocupar, pacificamente, meu novo quarto”.
Era assim que eu me sentia e, em vez de ter me sentado com ele e sido
sincera, eu resolvi puni-lo sem nunca explicar, ou lidar, com o motivo. Eu
segui com o meu padrão operacional de sempre. Fugir de confrontos era a
minha especialidade e aquele comportamento não havia me levado a lugar
nenhum.
Por quanto tempo eu conseguiria fugir disso antes que aquilo explodisse
no meu rosto, exatamente como minha última omissão tinha feito no dia
anterior?
— Fiz pão na chapa — foi como ele me cumprimentou naquela manhã;
com meu tipo de pão favorito e um sorriso no rosto. Eu havia trocado de
roupa, mas não de humor.
Ainda pesava profundamente, e meu estômago ainda doía, quando me
sentei na sua mesinha de dois lugares. O encarei por alguns instantes até ter
coragem de dizer:
— Desculpa ter aparecido do nada ontem.
Ele estava fritando o queijo para o seu próprio pão, mas fez questão de
parar o que estava fazendo para me olhar.
— Camila, pelo amor de Deus! Quantas vezes eu vou ter que dizer?
Essa casa é sua. Sua e do seu irmão.
Suspirei.
Andressa, como sempre, passeou pela minha cabeça, e eu notei a grande
hipócrita que eu era. Eu a critiquei por não permitir que as coisas pesadas a
abandonassem, enquanto eu vinha fazendo o mesmo. Assim como ela, eu
também precisava conversar com alguém. Começando pelo meu pai.
— Pai? A gente meio que precisa falar sobre isso, né? Sobre o divórcio,
e as brigas antes dele. Isso nunca... saiu de mim — Ele se aprumou.
Encarava-me fixamente e eu comecei a me preocupar com o queijo no fogo.
Só faltava essa: um incêndio na única casa que ainda me restava.
— Posso começar me desculpando? — perguntou. — Quero que você
saiba que eu carrego essa culpa, filha. Que sei que errei, e que eu sinto
muito.
Aquela não era a primeira, nem seria a última, vez que meu pai pediria
desculpas pelo que aconteceu no passado.
Ele esteve errado no que fez, óbvio que esteve, mas eu finalmente me
permitia admitir que eu estava sendo um pouco rigorosa com ele. Amar e
conviver com o meu pai não era passar a mão na sua cabeça, era
simplesmente aceitar que ele errou, porém se arrependia. Assim como eu
também havia errado, e me arrependido, de muitas coisas. Aceitar suas
desculpas era me dar a chance de viver, sem toneladas de mágoas me
sufocando. Era me dar a chance de confiar novamente nas pessoas certas da
minha família.
Eu estive engolindo tudo aquilo, e teimei em aceitar seus convites para
ficar mais tempo ali, com ele, em sua casa, que também era minha. Tudo
para, no fim, ser acolhida justamente por ela.
Não, desculpas não consertavam traumas, mas não é como se meu pai
pudesse mudar o que já passou. Suas atitudes presentes, no entanto,
indicavam que ele realmente estava arrependido. E… bom, era isso, né? Era
tudo que ele podia fazer. E o que estava sob o meu controle, era deixar
aquele peso afundar.
A partir daquele dia, eu não vi mais motivos, ou vontade, de continuar o
afastando, pelo que passou.
— Obrigada, pai, por se desculpar. Eu realmente... sei lá, parece que
meio que quebrou alguma coisa tudo isso, sabe? — Ele assentiu, parecendo
realmente entender. — Foi muito difícil para mim, e para Gabriel, ter que
ver vocês brigando, e eu confesso que eu ainda me sinto magoada. Mas eu
entendo que você não tem como mudar o que já foi feito, e eu realmente
acredito que você quer melhorar. Então, eu aceito suas desculpas. De
verdade, dessa vez.
Meu pai (finalmente) desligou o fogo, e veio em minha direção. O
abraço que me deu foi ainda mais apertado do que o do dia anterior. Foi um
pouco torto, afinal, eu estava sentada e ele de pé, mas foi o que precisou
para que eu deixasse que algumas lágrimas relutantes molhassem seu
pijama. Pude notar que ele também chorava quando insistiu:
— Você sempre vai ter essa casa, e a mim. Independentemente de quem
você escolher para se relacionar.
Essa parte é engraçada: eu nunca tive que me assumir para o meu pai.
Ele simplesmente soube. E o que ele fez com isso? O que eu esperava que
qualquer um fizesse. Absolutamente nada. Ele digeriu, e seguiu sua vida.
Não mudou nada para ele saber que eu abracei Andressa naquele
mercadinho idiota. Até porque, não havia nada de extraordinário na minha
confissão. Estávamos vivendo no século XXI, e nunca vai entrar na minha
cabeça o porquê da minha mãe não conseguir entender isso.
— Obrigada.
Ele se desvencilhou de mim fungando e eu achei graça da expressão que
tomou conta de seu rosto. Meu pai tentou esconder o fato que estava em
prantos, mas eu sempre soube que ele era o maior chorão do planeta Terra
(eu tive a quem puxar). Ele chorava no final de 90% dos filmes que
assistíamos, e precisei rir de como chorávamos juntos naquela manhã, com
um pão esmagado na nossa frente.
— Você é uma filha muito boa, Camila — murmurou, dando tapinhas
no meu ombro e retornando, enquanto tentava controlar suas lágrimas, para
o seu queijo na frigideira. Reacendeu o fogo e ficou um tempo em silêncio,
tentando se recompor. Foi só quando o queijo começou a virar carvão que
falou: — Filha?
— Hm?
— Você pode ficar o tempo que quiser aqui, tá bem? — Assenti, sem
forças.
— Ok. Muito obrigada.
— E filha? — insistiu. — Eu te amo.
Aquilo bateu forte.
Engoli em seco, sentindo as lágrimas avançarem outra vez. Tudo que
consegui dizer foi:
— Eu também te amo, pai.
CAPÍTULO VINTE E
QUATRO. O FIM.
Renan chegou para o almoço depois que Brenda o contou o que estava
acontecendo. Eu a pedi, após dezenas de chamadas perdidas e, quando meu
pai abriu a porta, ele estava claramente segurando as lágrimas.
— Oh, Camilinha. Camilinha, Camilinha — cantarolou, em lástima,
enquanto me abraçava tão forte que eu quase não conseguia respirar.
Apoiei meu rosto em seu peito e fiquei ali por um bom tempo, até que
ele desfizesse o abraço para beijar minha testa, segurando meu rosto e
olhando no fundo dos meus olhos.
— Quer maratonar Vingadores ou Capitão América?
Ele me conhecia bem demais.
Em um dia normal, a resposta para aquela pergunta seria óbvia.
Contudo, Marvel, ironicamente, me parecia reservado a ela e eu preferi...
inovar.
Acabamos vendo os três filmes de High School Musical.
Brenda e eu tínhamos um apego emocional muito grande àqueles
filmes, e descobrimos que ele também. Renan só pecava em uma coisa: ele
preferia a Gabriela a Shapay. Para mim, aquilo era um crime. Para Brenda,
um bálsamo.
— Ah, eu também prefiro ela. — Descobri naquele dia que minha
amiga estava corrompida.
Não sei quem corrompeu quem primeiro, mas sei que as suas escolhas
eram profundamente influenciadas. Eles escolheram igual de propósito,
afinal, estavam fazendo cada vez mais coisas juntos. Prestar atenção em
como eles evitavam se tocar e se admirar, a todos os instantes, foi uma
ótima distração para mim naquele dia.
— Ana Clara tá te mandando “um beijo e um abraço do tamanho do
mundo” — depois que acabamos de comer nosso lanche da tarde, Brenda
narrou. — Disse que ela e que a Jeh estarão te esperando na segunda com
muitos abraços e chocolates.
Tentei sorrir, mas apenas me senti pior.
A distração com High School Musical foi boa, e eu era profundamente
grata pelo apoio, mas não era o suficiente. Faltava uma parte de mim, então
eu pedi licença e fui para o quarto.
Deitei embaixo das cobertas e chorei, sem censura ou interrupção, pelo
restante da tarde inteira. Já passava das sete horas quando meu pai bateu
delicadamente na porta do meu quarto.
— Cami? Tem alguém aqui que queria te ver.
Eu sabia que era ela antes mesmo que ela aparecesse, inibida, atrás do
meu pai. Seus olhos encontraram os meus e eu senti meu peito apertar.
Bom, eu ainda tinha um, pelo menos. Ela ainda era capaz de ressuscitá-
lo.
— Oi — murmurou, tímida, e eu senti uma quantidade absurda de
líquido retornar aos meus olhos de uma só vez.
Era Andressa. Ela foi a minha última visita do dia.
Meu pai largou a maçaneta.
— Eu vou deixar vocês sozinhas — anunciou, tocando de leve os
ombros de Andy. — Qualquer coisa, estamos lá na sala.
— Obrigada, tio.
Assisti aquela interação, apática, enquanto meu pai cumpria com o
prometido e nos dava privacidade.
Nunca o agradeci por aquilo.
Todas as partes de mim estavam encharcadas e vermelhas quando Andy
retornou seu olhar ao meu. Assim que nos esbarramos à distância, senti
aquela metade perdida voltar, como em um passe de mágica. Doeu
recuperá-la só para perdê-la depois. Doeu muito.
— Você quer que eu fique ou que eu vá embora?
Sua figura apoiada no batente da porta. Os cabelos soltos e um casaco
amarrado na cintura. Aquela era uma das imagens mais perfeitas que eu tive
o prazer de experimentar.
Suspirei.
— Um pouco das duas coisas.
— Acho que vou ficar aqui pela porta, então — brincou e, mesmo que
as lágrimas escorressem sem pausa, eu consegui sorrir.
— Entra logo, vai.
Ela sorriu em retorno. Um sorriso murcho, pesado. Entrou.
Aproximou-se pé ante pé, encostando a porta, mas não chegando a
fechá-la. Eu estava convivendo e me tornando parte do breu. Ela me
perguntou se podia ligar a luz.
— Não — respondi. — Eu tô horrível.
— Ah. — Ouvi-a rir. — Viu como é incrível estar nessa posição?
— Cala a boca.
— Posso ligar? — insistiu, e eu fico feliz por ter cedido. Precisava vê-la
aquela última vez.
Fechei meus olhos com a claridade, apoiando minhas costas na
cabeceira e encolhendo minhas pernas. Eu me sentia uma vampira em
transformação. Mastigada e sensível.
Andressa se aproximou em definitivo, ocupando o espaço do colchão
bem ao meu lado. Sentou-se, esbarrando sua perna com a minha e
paralisando com seu rosto próximo.
Desisti rápido de esconder que estava chorosa. Eu meio que queria que
ela soubesse, ansiando, ingenuamente, que ela me ensinasse como fazer
parar de doer.
Inspecionou meu rosto por alguns segundos, inspirando e apoiando
umas das mãos na minha bochecha. Senti um arrepio imediato, pousando a
minha palma sobre o seu dorso. Apertei seus dedos com força. Ela retribuiu.
— O que aconteceu? — sussurrou. — Você contou?
— Não. Nem tive a oportunidade. Alguém contou pra ela antes de mim.
Alguém que nos viu naquele mercado idiota.
— Ontem?
— Uhum.
Soltou um xingamento baixo, deixando que sua mão deslizasse até o
meu pescoço. O envolveu de leve, afagando minha pele com o se dedão. Eu
gostava muito quando ela fazia aquilo. Até nossos carinhos pareciam
personalizados.
— Camila... — Seu olhar me atravessou. — Eu sinto muito, muito
mesmo.
Assenti, apática.
— É. Eu também.
— Porra. Isso é tão injusto. Tão injusto... — Abandonou minha pele
para gesticular e eu entendia a revolta, mas senti muita falta do seu toque.
— Ela te fez sair de casa?
— Não diretamente. — Senti a necessidade de defendê-la, mesmo
depois de tudo. — Ela me convidou a passar um final de semana com o
meu pai.
— Caralho. Isso é... — Esbarrou seu olhar indignado com o meu, então
soltou todo o ar de uma vez, afrouxando sua expressão. Sei que ela queria
dizer muito mais coisas, mas se deteve. — Surreal — resumiu, balançando
a cabeça. — Mila... — Respirou fundo. — Eu te pressionei, né?
— Quê? Não — fui rápida. — Claro que não.
Ela estava realmente se culpando pelo que minha mãe fez?
— Andy, me escuta. Nunca ache que é culpa sua, ou que eu me
arrependo — garanti, e a certeza em minhas palavras era verídica. — Eu
nunca vou me arrepender de você.
Abaixei os olhos, levemente constrangida pela minha confissão
melodramática e espontânea, mas ela sorriu, e eu senti meu coração batucar.
A acalmou ouvir aquilo, então balancei a cabeça algumas vezes, me
esquivando da vergonha e confessando:
— Eu não gosto de muitas coisas que eu fiz, mas de você... Andy. Eu
gosto muito.
Eu me senti uma idiota dizendo tudo aquilo, e pensei, literalmente, em
sair correndo, só que eu acabei dando de cara com o sorrisinho orgulhoso
mais lindo que já vi na vida, e isso fez tudo ter valido a pena.
Andressa desceu suas mãos até as minhas, as recolhendo. Seus dedos
tocando nos meus, seu cheiro, sua presença. Não haveria nada no mundo
que se igualasse àquilo.
Aninhou minhas falanges pelo que pareceu uma vida inteira, como se
pudesse segurar os últimos fios que nos sustentavam daquele jeito; e eu a
permiti. Eu a deixaria levá-los, se fosse isso que pedisse. Deixaria que me
levasse. Eu entraria no seu porta-malas e viveria em cativeiro. Jamais
pediria resgate, jamais voltaria ao mundo. Mas sua sensatez e empatia eram
crônicas. O que ela disse foi bem diferente de me sequestrar.
— Mila? — murmurou. — Você quer que eu vá embora? — Senti como
se um arpão tivesse sido atravessado no meu peito.
Ela não estava se referindo somente àquele momento, nós duas
sabíamos bem disso. E eu realmente não queria que ela tivesse perguntando
aquilo, não queria ter que tomar uma decisão. Porém, era justo que eu o
fizesse.
— Não — fui sincera.
Eu nunca, nunca, quis me afastar dela. Só que... era difícil. Eu ainda
estava em choque, embaralhada. Estava no fundo do poço, e não fazia ideia
de como ia me reerguer. Tudo que eu sabia era que não queria que ela
estivesse metida nessa confusão. Ela tinha os seus problemas, a sua vida.
Estava travando uma batalha paralela, contra a ansiedade. E eu não deveria,
nem queria, ser mais uma de suas preocupações. Eu não sabia o que
aconteceria comigo e com a minha mãe. Eu virava outra pessoa na sua
presença, tinha vergonha da minha dependência e não sabia o que fazer.
Minha indecisão era, sim, maus tratos e eu não poderia ferir a pessoa que eu
gostava.
Eu gostava daquela mulher mais do que eu gostava do meu celular. E da
Marvel. E de qualquer saia do meu guarda-roupa. Eu gostava dela com uma
intensidade irradiante. Era tão forte que o sentimento parecia ter se
transformado em um novo órgão. Eu o sentia funcionando dentro de mim.
Ele tinha massa, e posição anatômica. Eu nunca senti algo parecido. E, meu
Deus do céu, eu não queria mesmo que aquela parte de mim fosse decepada,
mas era o correto a se fazer. Eu realmente gostava daquela garota e, se eu
não podia fazer bem a ela, o que eu precisava dizer era:
— Só que você deveria ir.
Ela assentiu. Acho que já esperava por aquela resposta, o que não
significava que doía menos.
Abaixei meu olhar, me sentindo completamente engolida pelos soluços
que vieram sem pedir licença. Esmaguei seus dedos com ainda mais força.
Se virar as costas para ela foi difícil naquela primeira vez, na segunda, foi
dilacerante.
— Ei. Olha para mim — pediu, tocando delicadamente meu queixo e
me forçando a mirá-la. — Me promete que você vai se respeitar. — Fiquei
quieta. Ela insistiu. — Me promete, Camila. Eu só vou sair daqui quando
você me prometer.
Aquela ameaça teve o efeito inverso. O pensamento infantil de:
“HAHA, então é só eu não dizer que você nunca vai embora?” obviamente
passou pela minha cabeça. No entanto, eu o chutei para longe, retribuindo a
mirada séria que ela me dirigia.
Andy estava disposta a me ceder o espaço que eu pedi. Ela nunca fazia
algo diferente do que eu necessitava. Às vezes, eu queria a estapear por ser
tão respeitosa. Isso é problemático de se dizer?
— Mila?
— Tá — cedi.
— Promete?
— Prometo.
Ela sorriu fraco, satisfeita.
Acariciou de leve minha bochecha, mantendo sua mão ali e mirando
meus olhos. Eu nunca tinha visto olhos tão escuros quanto os de Andressa.
Não havia divisão nenhuma entre o que era pupila e o que não era. Era
lindo. Sua cor, seu formato, sua verdade. Ela conversava comigo com
aquelas duas pérolas, e eu agradecia por todas as vezes que colidimos.
Dentro das melhores lembranças que eu tinha, eu sempre a encontraria.
— Mila? — sussurrou. E eu soube, naquele instante, que passaria o
resto dos meus dias reprisando todos os áudios que ela já me enviou um dia,
e que começavam daquele mesmo jeito.
— Hm? — consegui murmurar, apesar das lágrimas.
Ela sorriu torto.
— Alguém já te disse que você fica bonita até chorando?
Ironicamente, eu me peguei rindo daquela merda. Segundos depois,
voltei a chorar. Compulsivamente. Minha última reação descontrolada foi
xingá-la, abraçando-a com força.
— Andy — clamei seu nome como quem clama o nome de um santo.
Bom, na verdade, eu bradei seu apelido. O nosso apelido. A nossa história.
É aqui que ela acaba, Andressa. — Desculpa...
Ela desfez nosso abraço para olhar bem no fundo dos meus olhos. Não
havia raiva ou rancor em suas pupilas, apenas compreensão.
Foi tão súbito. Em um segundo, estávamos nos comprometendo. No
outro, estávamos desmoronando.
— Para de pedir desculpas — pediu, então pousou um beijo em meus
lábios, e aquele foi o beijo mais cruel da minha vida inteira.
Havia muito peso naquele gesto, muitas coisas acumuladas, muitos
poréns. Nada havia acabado, mas, mesmo assim, era um beijo de despedida.
Eu reativei uma última memória naquele instante, a memória do dia em
que eu conheci o amor da minha vida. Eu tinha nove anos de idade e ela,
um apelido bobo, nome de dono de boneco. Quem a apelidou fui eu. A
mesma garotinha assustada que se apaixonaria perdidamente por ela anos
depois. Apenas para, no final, deixá-la ir.

Fim.
PARTE III: ANDRESSA.
CAPÍTULO UM.
Nas primeiras recordações concretas que eu tenho de Camila Ferraz, eu
tinha onze anos de idade e ela nove.
Não sei fazer a triagem entre o que é real, o que é fruto da minha
imaginação e o que é uma memória contaminada pelas minhas percepções
atuais. Contudo, sempre que eu penso na Camila criança, eu me lembro de
suas trancinhas.
Sua mãe, Regina, era do tipo que gostava de fazer penteados
elaborados, e Camila sempre escondia no mínimo uma trança, em meio às
suas mechas. Às vezes, eram pequenas e discretas, em outras, ocupavam
seu couro cabeludo inteiro.
Eu me lembro de achar aquilo lindo, mas de me esquivar todas as vezes
em que minha mãe ameaçava fazer qualquer coisa parecida no meu cabelo.
Não era algo que combinava comigo. Não ficava “legal”. Não como ficava
nela.
Tudo parecia interessante em Camila Ferraz, até mesmo as coisas mais
idiotas, como aquele tênis de luzinhas. Ah, eu me lembro bem daquele
tênis. Camila tinha um, e ele piscava incisivamente na sola, chamando mais
atenção que um globo de discoteca quando a gente ia tomar sorvete com
nossas mães. Eu odiava aquele tipo de coisa. Nunca usei e nunca quis usar,
mas, quando ela usava, parecia legal para mim. As tranças, o tênis
chamativo, as unhas com florzinhas e as bolsas de cachorrinho.
Nossas famílias eram muito próximas quando tínhamos metade da nossa
idade atual, e, quando sua mãe ia passar as tardes na minha casa, era óbvio
que seus filhos iam junto. Como as duas únicas meninas das famílias,
sempre havia uma leve pressão para que brincássemos juntas, só que a
gente não acertava o ritmo. Camila gostava de Barbie e de uma brincadeira
que chamava de “brincar de gente”. Ela sempre teve um forte apelo
dramático correndo pelas suas veias, e gostava de criar histórias e
personagens, incorporando-os e os espalhando pela casa inteira.
Lembro até hoje da vez em que ela pegou duas meias minhas e colocou
debaixo de sua blusa. Era para imitar os seios, que sua personagem tinha de
sobra. Ela sempre se chamava “Luana” nessas brincadeiras, e a “Luana”
daquele dia trabalhava em uma revista de moda, tinha um carro prateado,
dois filhos e um marido.
Foi engraçado quando ela propôs aquilo, porque, pela primeira vez, me
recordo de querer participar. A lástima é que não havia muito espaço para
mim naquela brincadeira.
Renan sempre foi mais alinhado à Camila do que eu. Gostavam de
coisas parecidas, tinham uma conversa fluida, sempre houve uma conexão.
A minha conexão com ela não fazia sentido.
Eu não necessariamente gostava de Camila. Eu me recordo de ficar
nervosa perto dela, confusa, e de forçar uma distância a todo custo. E não
era somente porque eu não via graça em seus jogos que eu me recusava a
brincar com aquelas Barbies. Não foi falta de interesse que me fez
dispensar todas as rodadas de “brincar de gente” que rolaram pelos
cômodos do meu apartamento; foi porque Renan sempre assumia o papel
que eu queria. Ele sempre foi o marido de Luana, e eu não me interessava
em ocupar nenhum espaço além.
Com Camila, foi a primeira vez que eu me senti dessa maneira. Eu não
queria ser mais uma das suas amiguinhas da escola, eu só queria ficar
sentada a observando. Para mim, isso já era o suficiente. Camila gostava de
coisas que eu nunca gostei, enquanto eu só me lembro de gostar dela.
Eu me recordo de ter onze anos, a assistir pulando com meu irmão pelos
cantos e achá-la deslumbrante. Sei que pensava "caramba, ela é muito
bonita! Se eu fosse um menino, eu namoraria com ela".
Não sei se crianças podem verdadeiramente se apaixonar por alguém,
mas sei que se ela queria colocar um pôster com a cara do Caio Castro no
seu quarto, eu queria um com o seu rosto.
Isso durou por todo o tempo que passei no Rio de Janeiro, então, tive
que me mudar.
Eu tinha doze anos quando fomos para Salvador. Metade da minha
família é de lá, e retornamos às origens da minha mãe quando minha avó
materna descobriu um câncer de intestino.
Eu não gosto da palavra “câncer”, ela me causa algo ruim, mas não
existe exatamente um sinônimo para o termo. Assim como não existe
palavra 100% análoga à safadeza adolescente.
Quatorze anos já é idade suficiente para começar a descobrir o incrível
mundo dos “relacionamentos”, e eu acabei sendo a última das minhas
amigas a beijar pela primeira vez. Ou então, fui a única que não mentiu a
respeito até que realmente tivesse acontecido. Seu nome era Arthur, ele era
o garoto mais bonito da turma, e eu fui muito elogiada por ter conseguido
beijá-lo antes que ele engatasse seu namoro com a igualmente requisitada
Rebeca.
Eles eram o casal do momento.
Minhas amigas eram obcecadas por Arthur; meus amigos, por Rebeca.
Eu me lembro claramente de já ter desejado os dois.
Tudo isso aconteceu mais ou menos na época em que a minha avó
estava se recuperando de sua terceira cirurgia. O ano estava acabando e eu
participaria do que seria a maior competição de natação que já havia
enfrentado até então.
Acabei descobrindo uma coisa sobre mim na época. Eu não lidava bem
com as expectativas da minha família.
No geral, posso dizer que tive algumas paixões. Não me considero uma
pessoa passional, mas certamente sou movida por encantos fortes. A água
sempre foi um deles. Eu comecei na natação com dois anos, e nunca mais
parei. Quer dizer, não parei até que eu precisasse parar.
Uma das coisas que eu mais gostava quando estava dentro da água
era do silêncio. O universo subaquático parecia mais pacífico e interessante
que o de fora. Eu gostava do fato de que eu nadava sozinha. Esportes em
equipe nunca foram interessantes para mim. Eu gostava do meu espaço, do
aconchego. Nadei no mar algumas vezes, e não havia nada mais difícil e
transcendental que isso. Eu me sentia conectada a mim mesma enquanto
nadava, me sentia livre. Era tranquilo, eu me esforçava para encontrar um
ritmo e, então, eu conseguia pensar. Meus pensamentos sempre foram
barulhentos, incessantes, meu lado racional controlador. Debaixo da água
eles se calavam. Um pouco.
Acho que como irmã mais velha, eu sentia a necessidade de ser um
exemplo de vitória para o meu irmão. Com a minha avó doente indo assistir
à minha competição, eu precisava vencer. Precisava subir no pódio. Por ela,
pelo meu pai, que pagava a natação. E pela minha mãe, que gostava de
pendurar cada medalha que eu ganhava nas paredes. Eu tinha que vencer
por eles. Eram suas expectativas e eu, de braços dados. Eu ganhei, e
continuaria ganhando. Pois por eles, somente por eles, eu precisava
continuar sendo boa.
Nunca gostei de competir, esse nunca foi meu objetivo com a natação.
Eu só queria nadar. Só que é bastante complicado querer coisas como essas.
O mundo te cobra planos mais concretos, especialmente quando você é uma
pessoa não branca. Eu sempre tive que provar meu valor duas vezes mais
que o restante, e isso é exaustivo.
Eu me lembro que a primeira vez que eu senti falta de ar foi fora da
água. Eu nunca entendi aquele sintoma como algo maior do que um breve
desconforto. Sentir coisas estranhas sempre foi meio que parte de mim. Eu
usava da natação para me acalmar. Fiquei meio alterada sem ela.
Minha avó recebeu alta definitiva duas semanas antes do aniversário de
dezesseis anos de Renan. Estava curada do câncer e, um mês depois, nos foi
repassada a notícia de que, como consequência disso, retornaríamos ao Rio
de Janeiro no próximo ano.
As oportunidades para o emprego do meu pai se provaram melhores lá e
tivemos que voltar. Antes disso, no entanto, eu vivi uma coisa diferente.
Sempre tive contato com muitas pessoas fora da minha bolha, graças à
minha vida de atleta e, depois de Arthur, descobri rápido do que eu também
gostava.
Além das competições e dos treinos dentro da água, eu passava muito
tempo da minha semana fazendo o chamado “treinamento seco”.
Basicamente, tratava-se de musculação e, principalmente, exercícios
cardiorrespiratórios. Minha treinadora era rigorosa, e eu precisava passar
para ela relatórios de desempenhos todas as semanas. Ela tinha um objetivo
com tudo aquilo, estava focada nos campeonatos regionais e foi em um
desses que eu conheci Fernanda.
Fernanda foi a primeira garota com a qual eu me envolvi, e eu só tive
coragem de beijá-la, dentro de um vestiário nojento e com cloro por todo o
corpo, porque eu estava prestes a me mudar de cidade e nunca mais vê-la.
Depois dela, as coisas mudaram por completo.
Retornamos ao Rio, e foi aí que tudo começou a ficar insuportável para
mim.
Camila e Renan se reconectaram com força total. Calharam de estudar
na mesma turma no ensino médio, e se tornaram inseparáveis.
Coloque-se no meu lugar. Eu estava descobrindo e começando a
explorar o fato de que homens talvez não fossem a única identidade de
gênero pela qual eu me atraía. Enquanto isso, havia ela, crescida, desfilando
pelo meu apartamento com seu uniforme justinho e seus cabelos sempre
soltos, espalhando purpurina para todos os lados.
Para onde eu olhava, havia Camila. Ela ia para a escola no nosso carro
de manhã, eu voltava com ela na hora do almoço. Ela espalhava seus
cadernos temáticos pela mesa da minha sala e esbarrava comigo quando ia
ao banheiro.
“Desculpa”, dizia, com uma constância irritante, e seu rosto ficava
instantaneamente vermelho quando me olhava, o que era a coisa mais
adorável do mundo inteiro.
Depois que ela voltou a passear pelo corredor do meu apartamento com
seus cabelos não tão escuros, tampouco tão claros, e suas pulseiras de
miçangas, eu jamais fui capaz de desviar o olhar.
Camila era parte da minha casa. Eu esperava encontrá-la por lá com a
mesma naturalidade que esperava encontrar o sofá, estacionado na sala. Nos
primeiros meses daquele fatídico terceiro, para ela segundo, ano do ensino
médio, eu a via mais do que via a meu pai! E meu pai nunca foi ausente,
não foi isso que eu quis dizer. Apenas que Camila era onipresente,
justamente durante a minha fase hormonal mais borbulhante. Foi inevitável
o que aconteceu.
Ela me disse uma vez que imaginou que eu a odiasse, e eu acho muito
engraçado que essa tenha sido a sua leitura dos fatos. A verdade sobre o que
estava acontecendo naqueles meses era a seguinte: eu cresci e passei a
entender meus sentimentos. Eu sabia que minha vontade de ser “seu
marido” naquelas brincadeiras não era nada inocente. Eu sempre me senti
profundamente atraída pela melhor amiga (até onde eu sabia, hétero) do
meu irmão, e não sabia o que fazer com esse maldito roteiro de fanfic que
despencou em mim quando eu menos esperava.
Quando Camila tinha dezesseis anos, havia parado de usar tranças, mas
seus cabelos continuavam lisos. Ela mexia neles com constância. Os jogava
para o lado quando estava nervosa e para o outro quando estava distraída.
Fazia uma coisa charmosa com os dedos, enroscando as mechas com a
mesma facilidade que enroscava a atenção de todos. Tenho a impressão de
que ela nunca se deu conta do quão fascinante realmente era. Tive amigos
que ficaram putos quando Henrique começou a namorá-la. Camila era
deslumbrante, engraçada e falastrona. Eu poderia ouvi-la falar por horas,
sem parar. Assim como poderia falar sobre ela por anos. E, apesar de tudo
isso, eu fiz a minha parte.
Eu evitei o drama por meses completos. Eu me distraí, encontrei
pessoas novas. Resisti, pelo máximo de tempo que consegui, mas nunca fui
forte.
Não me culpe por ter me aproveitado do fato de que o Universo parecia
a inserir em cada detalhe da minha vida. Não foi programado, não fui eu
que desmarquei minha aula de natação naquele dia. Não tenho culpa se o
treinador mais pontual que eu já tive resolveu cancelar a aula por causa de
seu atraso. Não tenho culpa se ela resolveu entrar, com uma blusa de
babados e nenhuma outra testemunha, na minha cozinha, bem na hora em
que eu também estava lá.
Eu só tenho culpa de uma parte. Eu a vi ali, tentadoramente sozinha e
obviamente apaixonada pelo meu irmão, enfiei uma fatia de bolo na boca e
testei a minha sorte.
O resto, eu culpo o destino.
CAPÍTULO DOIS.
Uma coisa que eu acho que a Camila nunca soube é que ela foi a
responsável por destruir meu quase-relacionamento com uma garota
chamada Sofia.
Nós estávamos conversando há semanas até que eu fizesse a besteira de
deixar de sair com ela em um domingo para ir a um churrasco que o pai da
Camila nos convidou. Não sei se Mila se lembra desse dia, ainda estávamos
no colégio, mas ele foi meio que um divisor de águas para mim.
Eu nunca fui a pessoa mais discreta do mundo. Parte da necessidade de
me assumir o mais breve possível para os meus pais veio daí. Eu nunca fui
capaz de esconder, ou de me esquivar, quando estava interessada em
alguém. Nunca fui minimamente contida no que diz respeito à Camila
Ferraz, e Sofia morria de ciúmes dela.
É cômico que ela já sentisse isso na época, porque foi o único período
que eu realmente concordei que não havia nada acontecendo entre nós.
Havíamos mantido um diálogo breve três vezes antes daquele churrasco, e
Camila não me deu muita moral. Sua falta de interesse, no entanto, não foi
o suficiente para me fazer desistir. Eu simplesmente não conseguia ficar
próxima a ela sem sentir metade de mim em combustão.
Sofia sabia disso, ela notou, na única vez em que foi na minha casa,
esbarrou com Camila e me perguntou quem era. Alguma coisa na forma que
eu falei “amiga do meu irmão” me entregou. Não sei que porra foi, só sei
que depois desse dia, ela passou a enxergar Camila como uma rival. Tentei
contornar a situação e afirmar que não havia nada demais no fato de que eu
preferia estar em um churrasco com a garota que nunca havia tocado antes
do que com a que eu estava realmente ficando, mas falhei. Sofia decidiu
parar de me ver naquele dia, e eu não tive como discordar.
Passei meses tentando não fazer uma besteira como aquela com Sofia.
Eu sabia que Camila estava obviamente encantada por Renan, então os
deixei resolver a situação entre eles, sozinhos. Eu tentei muito não me
intrometer, mas então ela me chamou de “Andy” e eu vi que gostou quando
eu a chamei de “Mila”. Eu notei quando ela trocou os pés, o leve rubor em
suas bochechas, então tive que me voluntariar para convidá-la para a festa
surpresa que organizamos para o meu irmão. Tive que a fazer companhia
quando ele, sem noção da sorte que tinha, a trocou pelo vídeo game, e tive
que ir àquele churrasco. Eu tentei não me intrometer na sua vida. Várias
vezes, repensei sobre o que estava fazendo, e me esforcei para dar o espaço
que precisava. Mas, depois que eu comecei, não consegui mais parar.
Camila estava certa, eu nunca soube desistir de nada, muito menos dela.
CAPÍTULO TRÊS.
Eu parei de fazer aulas de natação porque tive que começar um cursinho
pré-vestibular. Não era um cursinho oficial, apenas um disponibilizado pela
escola, mas era igualmente entediante. Eu ficava para o período da tarde, e
passava incontáveis horas assistindo aos professores resolvendo exercícios.
O que eu tirei dessa experiência foi muito estresse, uma piora nas faltas
de ar e muito mais tempo confinada com um cara chamado Henrique em
uma sala de aula.
Fui amiga de Henrique desde a minha primeira estadia no Rio de
Janeiro. Nós nos conhecemos na alfabetização, e só ficamos sem nos falar
uma vez, em toda a nossa vida, logo depois que eu fiz a maior merda de
todas e tentei beijar a sua namorada.
Henrique era um garoto metido, cheio de marra e com um coração
gigantesco. Compartilhamos, por todo esse tempo, piadas, algumas blusas e
até a mesma garota.
Eu nunca tive o costume de nomear as pessoas da minha vida. Sei que
Camila tem, porque eu mesma já estive em algumas classificações
interessantíssimas, como “quase amiga sazonal”. Mas, se eu tivesse que dar
um nome para Henrique, seria “melhor amigo”.
Ele me ajudou bastante com grande parte das coisas que aconteceram
comigo naquele ano. Tentava me distrair do fato de que os estudos me
consumiam, me convidando para dezenas de resenhas diferentes, me
embebedando e me dando cobertura, quando eu resolvia ser descarada e
fugir para o canto com alguma garota. Eu não era assumidamente bissexual
naquela época, nem mesmo para ele, mas nunca precisei contá-lo para que
soubesse. Na verdade, foi ele que me apresentou à Gabi.
Gabriela era vizinha de um amigo, que era irmão de outro, que era
primo de outro, que conhecia Henrique de uma social. A primeira vez que
eu a vi, havia acabado de beber minha quarta lata de Skol Beats, e estava
cheirando aos cigarros de Ana Clara. Acho que a amiga de Camila, Brenda,
também estava nessa festa. Era o aniversário de alguém, não me lembro de
quem, e nossos grupos estavam todos misturados e bêbados. Tinha uma
pista de dança, e era open bar. Ninguém sentiu minha falta quando ela me
levou até o banheiro.
A primeira vez que eu transei com uma garota foi no banheiro de uma
festa, com mais de um litro de Skol Beats me tornando ousada, mas bem
menos assertiva. Felizmente, minha inexperiência não a fez sumir.
Continuamos nos esbarrando e nos curtindo em todas as festas em comum
que frequentávamos. Incluindo uma na qual Camila também estava.
Fazia tempo que Brenda não frequentava uma resenha, assim como
fazia um bom tempo que Camila não aparecia na minha casa. Só que era
automático. Sempre que eu via Brenda, eu me lembrava de sua amiga e,
assim que eu li seu nome na tela, confirmando sua presença, tive que
perguntar se Camila também iria.
Não, não era costume dela, estar naquele tipo de ambiente, mas fazia
tempo que eu não a via, e imaginei que um milagre pudesse acontecer.
Ironicamente, ele aconteceu.
Sei que Brenda a contou que perguntei sobre ela, e sei também que nada
me alegrou mais do que receber uma mensagem sua pedindo para eu cobrir
a sua barra com a sua mãe e ir com ela ao “evento”.
Porra, ela tinha que perguntar?
Não vou mentir, apesar de sentir uma atração absurda por Camila, eu fui
um pouco covarde no que diz respeito a nós no começo. Não sei se me
culpo tanto por isso, afinal, eu estava no armário e não fazia a menor noção
se meu gaydar era realmente tão certeiro assim. Ele me ensurdecia quando
eu chegava perto dela, mas, enquanto isso, ela dividia risadinhas e olhares
com Henrique. Eu não tinha certeza de suas preferências, muito menos
ousadia para testá-las tão cedo. Eu estava receosa, então passei metade da
minha noite tentando esquecê-la com a Gabi.
Fiz meu máximo para não vê-la, incomodá-la ou me iludir ainda mais,
até que ela me encurralasse no corredor com uma das confissões mais
surpreendentes com as quais já tive que lidar. Seus pais estavam brigando,
ela me confidencializou aquilo, e eu passei a noite inteira tão focada na
necessidade de tirá-la da minha cabeça que me esqueci de que tinha
prometido que voltaríamos para casa cedo. Aquele deslize pioraria as suas
questões familiares e eu me senti a pior pessoa do mundo inteiro.
Tentei consertar as coisas depois disso, mas acho que só piorei. Camila
fugiu de mim algumas vezes durante todo esse tempo, e a primeira delas foi
da minha própria cama. Ela dormiu lá em casa nesse dia. Tentei, com a
ajuda da minha mãe, a acobertar, pelo menos um pouquinho, mas não sei se
consegui. Ela me evitou por um tempo, eu viajei e, quando voltei de
viagem, ela estava namorando o meu amigo.
CAPÍTULO QUATRO.
Se assumir LGBTQIAP+ para a família é possivelmente uma das coisas
mais difíceis que um adolescente pertencente à comunidade pode fazer. Eu
nunca fui defensora dessa necessidade. Em um mundo ideal, isso não seria
preciso. Assim como eu nunca precisei dizer aos meus pais que eu gostava
de homens, gostaria de não ter precisado reuni-los em uma mesa para dizer
que eu também gostava de garotas. Seria incrível se pudéssemos
simplesmente viver com isso, sem todo o constrangimento. Mas, muitas
vezes, não é possível. Eu tive que sair do armário para os meus pais, para o
meu irmão e para todo o resto do mundo, o tempo inteiro, desde que eu
decidi que não queria mais ficar tentando esconder as coisas que eu
verdadeiramente sentia.
Tive sorte, minha família não teve problemas com a minha revelação e
até mesmo o meu pai desistiu de combater a verdade depois de pouquíssimo
tempo a digerindo. Mas isso não significava que todos também fossem ser
assim. Eu já sofri com homofobia, assim como eu já sofri com invalidação,
até mesmo dentro da própria comunidade. Eu nunca me importei com os
olhares atravessados que me eram dirigidos, ou com as piadinhas de mau
gosto nos almoços com os meus tios. Mas isso não tornava menos
complexo o fato de que eu nunca tinha a audácia de confessar para o
motorista do Uber que aquela garota que estava comigo não era minha
amiga e sim a pessoa que eu estava beijando. Isso não significava que eu
não me precavesse, que eu não sentisse medo.
Todo esse papo não é para assustar, apenas para dizer que eu entendo
Camila. Sempre entendi, desde o princípio. Foi por isso que fiz o meu
máximo para não ultrapassar nenhuma linha, muito menos fazer algo que
pudesse constrangê-la. Eu sabia que ela não tinha tido nenhuma relação
com garotas. E estar com a sua primeira era algo que ia além do que ela, por
sorte, pudesse sentir por mim. Acho que foi por isso que eu nunca senti
tanto ciúmes assim de Henrique. Óbvio, eu preferiria vê-la comigo do que
com ele, porém eu sabia que ela precisava dele, e sei o quanto ele a ajudou,
quando eu não pude fazer o mesmo.
Sem vitimismo, mas era meio difícil estar na minha situação. Eu achava
Camila linda quando era criança, passei a achá-la absurdamente
maravilhosa quando voltei para o Rio e, naquele ponto da minha vida,
estava explodindo com a necessidade de sugar cada detalhe que havia nela.
Ao mesmo tempo, eu não podia pular etapas, a empurrar em um canto
qualquer e provar sua boca, da forma que eu vinha fantasiando fazer há
anos.
Ela estava namorando. E eu podia estar enganada pra caralho... mas,
mesmo com Henrique, notei que ela passou a olhar diferente para mim.
Ela se debruçava para perto, ela mexia no cabelo, ela puxava papo. Eu
percebia que ela estava interessada. Curiosa, no mínimo. E tudo bem por
mim, eu não me importava em ser seu experimento, se fosse só isso que ela
queria. Eu seria o que ela precisasse que eu fosse. Eu só queria estacionar
sua fala um instante, a dar um beijo e depois, continuar a ouvindo falar.
Eu notava o vermelho em seu rosto quando eu arriscava um elogio, o ar
que permeava as suas palavras, o desconforto. Às vezes, eu me acercava de
propósito. Só alguns centímetros. O suficiente para perceber o ligeiro
arrepio em seus pelos, então eu me recolhia outra vez.
Ela tinha a silhueta mais bonita que se tem notícias, um rosto de
cerâmica, e eu estava em borbulhas, mas tentei ser um pouco mais
cuidadosa quando entendi o que estava passando. Eu via que ela estava com
medo e eu estava sendo exemplar. Aproveitava os momentos que tínhamos
sem forçar nada, sem me exceder, me contentando com as fantasias que eu
tinha, impróprias para esse texto, mas muito menos incríveis do que foi de
fato tê-la. Eu aprendi a me alimentar de olhares, até que perdi o controle e
fiz uma das piores besteiras da minha vida.
Viajamos juntas e eu tentei beijá-la, mas ela virou o rosto.
Não foi só a rejeição que me transformou em um emaranhado taciturno.
Foi a culpa também. A culpa por ter estragado tudo com ela, e com ele.
Por um grande período de tempo eu me perguntei se estive errada. Se
misturei as minhas expectativas com as dela, baguncei tudo e acabei
trocando as etiquetas. Eu fiquei tão imersa que não sabia mais onde eu
terminava e ela começava e, talvez, eu pudesse ter confundido meus
sentimentos com os dela. Quando ela me afastou, eu não sabia se era porque
ela não se interessava por mim, se era porque estava namorando ou porque
estava assustada.
Por muito tempo, ela nunca me contou as coisas que aconteceram nos
bastidores, eu só fiquei com o grand finale. Tudo que eu tive de material
para trabalhar na minha cabeça foram as suposições. A culpa me consumiu
e eu contei para Henrique o que havia feito. Então tive que aprender a
conviver com a ausência dele e a dela.
Tudo bem, o erro foi meu, eu lidaria com as consequências. Eu
superaria. Era isso que eu havia aprendido a fazer. Você nada. Se ficar
parado, você afunda.
Fiz o vestibular, algo que tentei me preparar o ano inteiro, e me senti
péssima quando acabou. Senti meu corpo inteiro tremer a madrugada que
procedeu aquela prova. Eu sabia que aquilo não era normal, mas eu estava
me punindo.
Nunca consegui me livrar da sensação de que sou uma mal-agradecida.
Eu sempre tive privilégios, e reclamar de qualquer coisa relacionada à
minha vida me parece ingratidão. Eu aprendi muito cedo a mensurar
problemas, e os meus me pareciam bobos. Eu não queria conversar com
ninguém sobre como eu me sentia sem propósito na minha vida. Eu só
queria seguir com ela. E eu segui.
Entrei na faculdade e passei um ano espiando Camila de longe.
Vi, pelas redes sociais, quando ela tentou um corte de cabelo novo. Uma
franja longa, a qual manteve presa com grampos até que crescesse.
Suponho, dados os fatos, que ela nunca tenha gostado dela. Nunca
comentou sobre o assunto, nunca mais a cortou, mas eu a achei linda.
Vi quando ela começou a trocar suas bermudas por shorts. Vi seu corpo
mudar, sua fala crescer. Ouvi sobre seus problemas, soube o que estava
acontecendo com a sua família e quis muito chegar perto outra vez. Eu quis
consolá-la, mas ela não precisava de mim para isso. Na verdade, imaginava
que eu fosse piorar a situação.
Ao mesmo tempo em que eu sentia uma necessidade absurda de
protegê-la, sabia que ela era capaz de lidar com tudo aquilo sozinha.
Mila nunca foi frágil, ou incapaz, apenas foi levada a acreditar nisso.
Ela ainda não havia descoberto o quão incrivelmente independente poderia
ser.
Ela pedia muitas desculpas, sempre disse isso a ela, e essa não era a
palavra certa a se repetir com constância.
Queria que ela pudesse passar um dia se assistindo com os meus olhos.
Acho que não restariam dúvidas então. Ela é a poesia que veio escrita no
meu verso, uma sinfonia de estrelas entrelaçadas. Ela sempre foi tudo, e era
doloroso ver como se considerava, muitas vezes, merecedora de nada.
Se alguém deveria pedir desculpas por algo, esse alguém era o
Universo. Desculpas por cada segundo que a deixou passar sem saber o
quanto era amada, aceita e capaz. Desculpas a mim, por tê-la mantido longe
tanto tempo.
CAPÍTULO CINCO.
A primeira vez que beijei Camila foi também a primeira em que eu
realmente senti que estava vencendo em alguma coisa. Dezenas de
medalhas penduradas em um prego não se comparavam à euforia que me
inundou quando eu a segurei pelo rosto, sentindo cada milímetro de sua
pele. Camila foi a primeira competição que eu me inscrevi,
voluntariamente, na vida. A única que eu me empenhei para ganhar e eu
não exagero quando digo que a maior vitória da minha vida foi ter
conseguido beijar aquela garota.
Camila sempre foi um objetivo para mim, mas não daqueles que você
quer alcançar apenas para riscar da lista. Ela era um dos quais faziam parte
do meu quadro dos sonhos, um dos que eu queria que chegasse, e ficasse,
para sempre. Quando ela chegou, depois de tanto tempo, eu nunca mais quis
que ela fosse embora.
Ficamos um ano distantes, e eu confesso que não foi surpresa para mim,
vê-la naquela faculdade. Meu irmão era bastante fofoqueiro, e eu sempre
soube muito mais do que ela imaginava.
Eu sabia que ela havia passado para psicologia, por exemplo.
Coincidentemente, um curso que ficava no mesmo campus que o meu. O
que eu não sabia, contudo, era que ela havia se grudado à Ana Clara logo
nos primeiros segundos.
Culpo novamente o destino por tê-la colocado sentada naquela cadeira
de plástico, sozinha e encantadoramente sem graça. Eu não esperava que ela
fosse frequentar festas como aquelas, Camila sempre evitou qualquer tipo
de evento. Aparentemente, não mais.
Vê-la, depois de um ano inteiro, mais bonita do que nunca, me assustou.
Eu fugi naquele dia. Fugi porque caiu a ficha de que todas as canções
sempre estiveram certas. É muito difícil se esquecer do seu primeiro amor.
Mesmo que ele tenha negado um beijo seu.
Eu nunca havia superado a vontade insana de tê-la. Caralho, um ano
inteiro se passou, e eu ardi ao ser o alvo, por menos de dois segundos, de
sua atenção! Ela sorriu para mim e eu soube que eu jamais conseguiria
viver a minha vida em paz se não tentasse, só mais uma vez, selar aquele
sorriso meigo com a minha boca.
Muitas coisas haviam mudado em Camila. Detalhes sutis, mas nada
pequenos. E eu amei cada um deles. E eu os queria, com ainda mais
insensatez e falta de pudor do que nunca.
Para a minha surpresa, e felicidade, Camila estava finalmente solteira, e
grudou em Ana e Jéssica, pessoas que faziam parte do meu ciclo de amigos,
com uma facilidade insana. Elas basicamente a adotaram, e essa
proximidade culminou em uma Camila rebolando na minha frente, em mais
uma festa na qual ela, surpreendentemente, compareceu. Esse não foi o fato
principal, mas certamente um dos contribuintes para que chegasse o fim da
noite, e a gente enfim se beijasse.
É muito engraçado, talvez até preocupante, mas não me recordo de um
dia da minha vida no qual eu não estivesse interessada em Camila. Aquele
beijo apenas reafirmou o que eu já sabia: nosso encaixe era perfeito.
Nós nos beijamos algumas vezes antes de chegarmos ao acordo de que
daríamos continuidade àquilo escondido. Fui eu que propus aquele
esquema, quero que isso fique claro, e não me arrependo.
Ninguém tem o direito de tirar ninguém do armário e, obviamente, não
foi o melhor dos casos para eu escondê-la. Minha vontade era gritar para os
quatro ventos que aquela mulher era minha, no sentido menos problemático
possível da sentença. Mas eu quis Camila por metade da minha vida e, se
aquela era a única forma de tê-la, foda-se. Eu faria tudo de novo.
Não me arrependo de nenhum segundo que passei ao seu lado. Tenho
minhas suspeitas de que ela vai tentar fazer parecer mais grave do que
realmente foi. Para mim, não foi nem um pouco difícil estar com ela. Pelo
contrário. Eu não estava enfrentando o melhor dos momentos quando ela
retornou, mas ela, e somente ela, fez tudo parecer dezenas de vezes melhor.
Teve uma vez — e eu prometo que será o último relato que você vai ter
que ler antes de entender o porquê de ter me pegado saindo da casa da sua
mãe naquele dia — que estávamos sentadas próximas, daquele jeito
cauteloso que sempre fazíamos, debaixo de uma das árvores mais altas do
prédio de Psicologia. Poucas pessoas passavam pela gente, era meio da
tarde. Sua aula havia sido cancelada, enquanto a minha, bom, eu não fui.
Menti para ela na ocasião, disse que meu professor também havia desistido
da aula, e ela acreditou. Estava começando a se atentar a esse tipo de coisa,
e a me cobrar coragem.
Pois bem, Camila, você será uma ótima psicóloga um dia, porque
acertou o meu ponto mais fraco. Minha família.
Eles estavam felizes com o meu curso. Na verdade, sei lá. Acho que
eles estavam felizes com o fato de que eu estava fazendo alguma coisa. A
sensação de estar caminhando que a faculdade dava os acalmava, entende?
Mesmo que você esteja perdida, é plenamente possível fingir que não está
nessas condições.
O encanto pelo meu curso acabou depois de pouquíssimo tempo dentro
dele. Mas, quando me dei conta, já era tarde demais. Eu já estava ali, já
havia saído da natação há anos e já não tinha mais controle nenhum da
minha falta de ar.
Eu fiz um pouco errado, acho que a futura psicóloga dentro de Camila
me julgaria se soubesse, mas eu fiz dela a minha piscina. Ela era a única
coisa que me parecia no lugar. Eu tive algumas paixões, elas me moviam, e
Camila sempre foi uma delas.
— Você nunca mais nadou, né, Andressa? — Ela jogou aquele fato
entre nós sem preparar terreno.
Tinha mania de fazer isso. Aproveitava dos momentos em que
estávamos em silêncio para trazer à tona, do nada, sentimentos complexos,
os quais eu imagino rodando e ricocheteando pela sua cabeça o dia inteiro.
Aprendi a não me surpreender quando ela verbalizava aquele tipo de
questionamento. Eu gostava. Gostava da forma como sempre havia
conseguido entender as coisas que aconteciam comigo, sem que eu
precisasse explicar.
Eu gostava de quando ela me vinha com perguntas aleatórias como
“você ficaria um ano inteiro sem falar com os seus pais por um milhão de
reais?”, e depois se indignava com as respostas que eu dava. Eu gostava
muito quando ela me explicava sobre a ordem cronológica dos filmes da
Marvel. Era fascinante vê-la falar sobre coisas que gostava. O entusiasmo, a
fagulha em seus olhos. Imagine como eu me senti quando entendi que falar
sobre nós fazia seus olhos brilharem com a mesma intensidade que o idiota
do Capitão América?
— Faz um tempinho — respondi, espantando para longe uma folha de
cima de sua calça.
Camila Ferraz nunca foi capaz de se sentar diretamente na grama.
Quando explorávamos hábitats como aquele, sentava-se em cima da sua
mochila. Mas eu havia levado um casaco naquele dia, e ela acabou em cima
dele. Às vezes, eu tinha inveja de objetos inanimados.
— Eu tava lembrando... — Suspirou, ligeiramente sem graça. —
Daquela vez que você me fez entrar no mar contigo.
Ri.
— Aquela que você tomou um caixote cinematográfico?
Eu gostava muito de tingir seu rosto de vermelho. Na falta da natação,
esse se tornou meu esporte favorito.
— Porque você foi uma péssima salva-vidas? — retrucou, espertinha.
— Uhum, esse mesmo.
— Em minha defesa, eu falei pra você mergulhar.
— Eu achei que dava pra passar por cima! — se defendeu, e eu ri.
— Tá tudo bem, Mila. Caixotes constroem caráter.
— Você não sente falta?
— De tomar caixote? — Revirou os olhos.
— Da água, Andressa. — Eu obviamente sabia que era disso que ela
estava falando, só gostava muito de provocá-la. E de me esquivar daquele
tipo de assunto.
— Sinto.
— Quando foi a última vez que você nadou?
— Com touca e maiô? — assentiu.
Eu não tinha nenhum motivo, ou vontade, de mentir para ela.
— Naquele dia que eu te encontrei no clube.
— Quê? É sério?
— Sim. As coisas ficaram reais depois disso.
Vi quando ela suspirou. Sua mente funcionando a mil. Ficou alguns
segundos pensando, então olhou para os dois lados, conferindo se
estávamos sozinhas antes de debruçar na minha direção e colar seus lábios
nos meus.
Mila fazia aquilo de uma maneira delicada e carinhosa que me deixava
maluca. Fazia aquilo menos vezes, e com mais pudor, do que deveria.
Sorri para ela, crônica e completamente boiola.
— Pra que isso? Não que eu esteja reclamando. — Ela abraçou as
pernas, dando de ombros.
— Para te mostrar que o real não precisa ser tão ruim assim. E que eu
estou aqui para te apoiar, qualquer que seja a sua decisão em relação a esse
curso. Sempre. — Mordeu seus lábios. — Ou, pelo menos, pelo tempo que
você me quiser.
É esse, então, Camila, o motivo de tudo isso.
O motivo é que eu sempre vou querer você.
Fui apaixonada por você a minha vida inteira. Nunca houve uma opção
mais segura, mais certa ou mais interessante que você.
E eu poderia tentar te esquecer, de verdade dessa vez, porque as coisas
se tornaram mais reais ainda, mas eu não quero.
Você tinha razão quando disse que a minha ansiedade era cíclica, e que
eu precisava tratar, quando disse que eu sou teimosa e que eu deveria
repensar a necessidade de ficar em um curso que não me atende mais
apenas porque eu comecei.
Você tem razão quando disse que eu precisava aprender a deixar as
coisas irem, mas eu já tinha feito isso por um tempo com você, e não estava
disposta a fazer de novo. Extremismo não é a resposta, para nenhum dos
lados. Eu não precisava abrir mão de tudo só porque não estava sendo
simples. Por certas coisas, Camila, vale a pena lutar. A mais certa delas
sempre foi você.
Se eu já fui capaz de nadar mil metros para conseguir uma medalha
boba. Por que você cogitou que eu fosse deixar escapar das minhas mãos o
troféu da minha vida?
Se você precisava que eu te prometesse uma coisa, eu prometeria. Eu
prometeria que iria abandonar esse curso. Prometeria que iria tomar
coragem e iria largar o velho hábito de me punir. Eu iria começar a ir a uma
psicóloga assim que eu terminasse de escrever esse texto. Eu iria buscar
ajuda. Eu me sentia pronta para desistir de tudo que me fazia mal, mas
nunca tenha a audácia de me pedir para abrir mão de você. Isso, eu te
prometo que nunca farei.
O QUE VEIO DEPOIS E
ANTES, DE TUDO ISSO.
Eu demorei uma semana para escrever tudo que você leu antes disso e
só bati na porta de tia Regina quando tive certeza que você não estaria em
casa. Ana Clara me ajudou com isso. Graças à sua habilidade sobrehumana
de ter decorado a grade do primeiro semestre, ela me garantiu que nas
sextas a sua aula só acabava às cinco. Pedi para que seu irmão me ajudasse
com a outra parte. Ele me alertou quando chegaram em casa, então se
trancou em seu quarto e esperou.
O seu porteiro me conhecia, engraçado isso, e me deixou subir sem me
anunciar. Foi um pouco injusto com a sua mãe aquela parte da minha
intervenção, mas necessária.
Ela levou um grande susto quando me viu, em cima de seu capacho.
— Andressa?
Sempre te achei parecida fisicamente com Regina. Eu me lembro de ser
criança e refletir sobre como você seria uma adulta bonita, porque sua mãe
sempre foi uma mulher muito bonita. Errei um pouco, sonhei baixo. Você se
transformou em uma adulta deslumbrante. Bonita seria pouco para te
descrever, peço perdão pela minha ousadia. Eu era apenas uma criança, não
sabia de nada!
— Oi, Regina. — Sorri fraco. O máximo que eu consegui. — Eu posso
entrar?
Sua mãe parecia estar conversando com um fantasma. Uma palidez
cadavérica tomou conta de seu rosto assim que me viu. Foi até um pouco
cômico. Quis rir, confesso.
— Camila não está — respondeu, grave.
Uma confissão: eu sempre tive mais medo das broncas da sua mãe do
que da minha.
Minha mãe não tinha muita vocação para nos colocar de castigo, ou
falar sério. Meu pai costumava assumir esse papel. Ou então, quando por
perto, a sua.
Lembro-me de uma bronca que ela me deu até hoje. Estávamos saindo
da natação e, por algum motivo, eu estava sendo insuportável. Acho que era
uma das formas que eu encontrava de chamar a sua atenção. Às vezes,
quando eu era boba, você ria, e isso era motivo mais do que suficiente para
ser uma idiota.
Eu queria mostrar para Regina, de qualquer jeito, a minha touca nova,
enquanto ela estava nos levando de volta para casa. Sua mãe nunca foi rude
comigo, na verdade, era o contrário, só que não havia mesmo como me dar
atenção naquele instante. Eu estava sendo chata, então ela parou o carro
bruscamente, se virou para trás e disse:
— Andressa Batista, se você não parar com isso agora mesmo eu vou
contar para a sua mãe e a forçar a te deixar sem ir para a natação um mês
inteiro.
Sua mãe sempre foi ótima nas chantagens e havia algo no seu olhar que
dava medo. Entendo como você se tornou tão certinha, eu também andaria
na linha para não ter que enfrentar as broncas dela.
Regina não brigou muitas vezes comigo depois dessa situação, contudo.
Já fui sua queridinha uma vez e estava contando com a certeza de que esse
tipo de coisa não tem como diluir com tanta facilidade.
— Tudo bem, eu vim falar com a senhora.
Ela arregalou os olhos, piscando algumas dúzias de vezes. A mão
estacionada na maçaneta e a confusão reverberando, como uma sirene, em
seus olhos.
— Comigo?
— Uhum. Posso entrar? — Ela pigarreou.
— Hm. — Abriu espaço para mim, totalmente desconfortável. — Pode.
Então eu entrei.
O apartamento que você morava não tinha nada a ver com você. Era
branco demais, milimetricamente organizado. Eu não via você nele, mas
você nunca se deu o trabalho de pertencê-lo, não é? Você sempre se
encolheu, sempre esteve acostumada a ceder. Um espaço no armário para o
seu irmão, um terço da sua felicidade para os seus pais. Não é culpa sua,
foram as circunstâncias. Eu também fiz isso, em outros aspectos da minha
vida. Somos meio que ensinadas a servir. Está no imaginário popular, a
submissão feminina, a necessidade de se limitar, para que outros tenham
espaço para crescer. Isso não me parece nada justo.
— A sua mãe tá bem? — foi o que Regina me perguntou primeiro.
Sei que elas estavam sem se falar fazia alguns dias. Desde que tudo
aconteceu, minha mãe vinha tentando colocar juízo na cabeça da sua. Sei
que foi mérito dela quando Regina te telefonou e pediu para você voltar
para casa, logo na segunda-feira. Sei que você voltou, mas também sei que
a escalada de sucesso da minha mãe parou por aí.
Regina não tinha pedido desculpas ainda, tinha?
Ela estava tentando seguir com a sua vida e fingir que nada havia
acontecido. Paramos de nos falar e ela leu isso como uma vitória, como
uma cura. Ela queria que você voltasse a se resumir, para que não pesasse
para ela. Desculpe, Camila, mas antes nela que em você.
— Tá sim. E você? — Ela se surpreendeu com a minha pergunta.
— Tô bem.
Sorri fraco.
— Certo. — Cruzei meus braços, encarando o estofado cinza, a cozinha
conjugada, sentindo falta de você.
— Andressa, o que você está fazendo aqui? — foi a sua segunda
pergunta, e eu apreciei a assertividade. Não era confortável estar naquela
posição, muito menos ali, naquelas circunstâncias.
— Sinceramente, tia? Eu vim tentar colocar algum juízo na cabeça da
senhora.
— É o que, Andressa?
Ela usou o seu tom de alerta, mas eu não senti medo.
— Desculpe, eu não quero soar desrespeitosa, só quero que a senhora
entenda como está sendo injusta com a sua filha. E comigo também.
— Andressa... — Levou uma das mãos à têmpora. Parecia sem
paciência para ouvir aquilo. — Eu não quero...
— Mas precisa — a interrompi. — Tia, eu ainda sou a mesma garota
que costumava ir todos os dias para a escola com a senhora. A mesma que
odiava quando a senhora colocava arquinhos na minha cabeça e a mesma a
qual a senhora confiava que tomaria conta da sua filha. Nada mudou, nesse
tempo inteiro. Nem o meu amor por filmes longos, muito menos a minha
capacidade de cuidar de Camila.
— Andressa...
— Por favor, me deixe falar. — Ela, surpreendentemente, deixou. — Eu
sei que a senhora quer o melhor para Camila, e é o mesmo que eu quero.
Regina, eu só quero que a sua filha seja feliz. E eu só estou aqui porque
tenho certeza que eu posso fazê-la feliz. Ou, pelo menos, eu sei que eu vou
me esforçar, todos os dias, para que isso aconteça.
“E eu sei que isso é o que todo mundo diz no começo. Mas, tia, nós não
estamos no começo. Eu amo a sua filha a minha vida inteira. Se a senhora
não pode entender isso, preciso pelo menos que saiba. Eu não estou aqui
brincando com ela, eu estou aqui porque eu a amo, e eu sei que a senhora a
ama também. Só que a senhora a está destruindo com o seu rancor. Você
sabia que ela me disse uma vez que o maior medo da vida dela era você? A
sua própria filha, tia. Eu sei que a senhora não é uma pessoa ruim, mas essa
atitude é. E se a senhora precisa odiar alguém, odeie a mim, mas não
estenda esses olhares horríveis à sua filha, muito menos espere que eu vá
abandoná-la. Se ela quiser estar comigo, eu estarei aqui. Eu estarei aqui
sempre que ela quiser. Preciso que saiba disso. Por mais que a senhora me
odeie, enquanto Camila me pedir pra ficar, eu não pretendo ir a lugar
nenhum”.
Foi isso, Camila, que eu disse a ela, e é isso que eu digo a você.
Cada palavra desse parágrafo é a verdade, e eu gostaria que você tivesse
acesso a elas. Não sei se confio na sua mãe para transmitir a mensagem
completa, então decidi fazer eu mesma.
Se você quiser saber o que Regina me disse depois disso, não tenho
muitas novidades.
Ela não disse nada, mas te prometo que ela ouviu, e era só isso que eu
esperava que fizesse.
Não fazia parte dos meus planos que a gente se esbarrasse quando eu
estivesse saindo. Ana Clara me prometeu que você só saía às cinco. Não sei
se ela mentiu de propósito, ou se, naquele dia, você foi liberada mais cedo.
Tudo que sei é que vê-la me fez querer escrever esses capítulos. Vê-la me
fez querer que você soubesse de tudo, não apenas uma parcela. Vê-la me
fez querer que você conseguisse se ver como a pessoa completa que é, pelo
menos uma vez na sua vida.
— Andy? — A sua surpresa por me encontrar ali, saindo do
apartamento de sua mãe, era gigantesca.
Toda vez que você me chamava daquele jeito, eu sentia parte de mim,
ganhar asas. Toda vez que eu a via, eu sentia uma vontade inconsequente e
agressiva de casar com você.
É, pois é, eu havia acabado de confrontar Regina, mas eu só conseguia
pensar no quanto você estava linda. Aquela mochila com bolinhas rosas que
você jurava que era mais “madura” que a que você usava no colégio.
Aquela saia jeans que você passou a amar usar. Aquele rosto, tão idêntico
ao do amor da minha vida.
— O que você... — Não conseguiu terminar de falar, o choque te deixou
muda. Então eu te prometi.
— Vou explicar tudo. — Eu me debrucei na sua direção, e beijei a sua
bochecha. — Prometo.
Você sabe que eu nunca fui muito boa em escolher presentes, então esse
é o que te dou dessa vez.
Essa é a minha versão dos fatos, é assim que eu me sinto, e eu fiz o que
pude.
Se você precisar que eu vá embora, tudo bem, eu vou. Nunca leia esses
textos, e eu respeitarei sua decisão. Mas, se ainda houver uma parte sua que
esteja disposta a tentar, qualquer parte que seja, eu estarei esperando.
Tudo que você precisa fazer é me dizer. A escolha é sua a partir de
então.
PARTE IV: CAMILA OUTRA
VEZ.
CAPÍTULO UM (PELA
TERCEIRA VEZ). DE VOLTA
PARA O FUTURO.
Caralho, que filha da puta!
Andressa era uma filha da puta!
Andressa, você é uma filha da puta!
Estou perdida, não sei mais a quem devo me dirigir. Talvez a você,
leitor, é você que ainda não sabe disso: ela me enviou essas drogas de
capítulos por e-mail!
Simplesmente os escreveu, apertou enter e esperou que eu implodisse.
Eu comentei uma vez com ela. Uma única vez. Sobre a ideia maluca de
escrever sobre nossa história. Era bobeira, eu nunca realmente pensei nisso,
antes que aqueles e-mails chegassem.
O título da mensagem era "minha contribuição para o seu livro de
memórias", e ela me pediu, em caixa alta, para que eu jamais lesse aquelas
páginas antes de finalizar a minha parte.
Andressa montou um roteiro (eu não sei onde ela aprendeu essas
coisas), e estipulou regras. Como ela sabia que eu faria, eu as segui. Afinal,
como ignorar um arquivo em Word da garota que mudou toda a sua vida
depois de pegá-la no flagra saindo da sua casa?
Eu fiz meu máximo para ser breve. Dormi e acordei em cima de um
notebook. Eu queria terminar a minha parte logo, para poder entender o que
havia acontecido naquela tarde, no meu apartamento.
Minha mãe nunca me disse o que elas conversaram e eu respeitei o
mistério que ela fez. Fiz dele minha motivação para terminar essa história,
colocar tudo no papel. Mesmo que fosse dolorido, eu terminei. Demorei
exatos quatro meses para isso. Quatro meses para transcrever anos da minha
vida, e hoje eu finalmente vejo o que Andressa queria com tudo isso. Ela
deu uma de psicóloga para cima de mim.
Sabe quando o Thanos estala os dedos e todo mundo some? Sabe
quando o filme acaba com os heróis perdendo, e você sofre, mas sabe que
esse não vai ser o final? Porque não tem como finalizar daquela maneira.
Não tem como acabar uma vida em um momento ruim.
Eu tenho certeza (claro) de que Andressa não pensou em Thanos
enquanto escrevia a sua contribuição, mas foi o que ela fez. Ela aumentou a
franquia, trouxe a necessidade de um segundo filme. Fez com que eu
colocasse as coisas em perspectiva, relembrasse o que me levou até aqui,
depois me fez ler a sua versão, apenas para provar que o final não poderia
ser daquele jeito.
Eu terminei a minha parte, então li a sua. E agora meu peito se engole e
ultrapassa. Ele se lembra de todos os momentos, ele tem certeza do que
quer. Ele tomou uma decisão.
Bom trabalho, Andressa. Você conseguiu.
Espero que tudo que você disse ainda seja verdade depois de quatro
meses, porque eu acabei de arrumar a minha mochila. Só preciso resolver
uma coisa antes.
CAPÍTULO DOIS. FILHA.
Pode ter parecido um pouco estranho para você, leitor, ler que eu estava
de volta à casa da minha mãe depois de tudo que aconteceu, mas
sinceramente? Foi muito fácil para eu voltar quando ela pediu.
Eu fiquei dois dias fora depois que ela descobriu tudo, antes que ela se
arrependesse e me pedisse para voltar.
O que eu entendo da minha reação submissa é que eu acabei crescendo
profundamente dependente de Regina. E, mesmo que ela não houvesse
dado indícios de que realmente se arrependeu do que me fez passar, eu fui
incapaz de me afastar.
Se te acalma saber, descobri que foi uma amiga dela que me dedurou
aquele dia. Ela estava naquele mercadinho de merda comprando ovos
quando foi atacada pela grotesca imagem de duas garotas se abraçando.
Uma delas, filha da sua amiga!
Grave. Gravíssimo!
Qual das amigas da minha mãe foi a fofoqueira? Nunca me esforcei
para saber. Estava verdadeiramente cansada daquele assunto. Não me
importava conhecer quem fez questão de arruinar quatro meses da minha
vida, eu deixaria para terceiros a responsabilidade de ensiná-la. Enquanto
isso, eu só queria recuperar tudo que me foi tirado. Eu só queria viver a
minha história.
Irônico dizer isso, mas minha mãe foi super protetora a minha vida
inteira. Ela dedicou grande parte de sua existência aos seus filhos, e hoje eu
consigo enxergar isso com carinho, mas também com a noção lógica de que
ela fez das nossas vidas a dela.
Minha mãe nunca entendeu que eu e Gabriel éramos pessoas isoladas;
algo que piorou com o divórcio, mas que esteve presente desde sempre. Ela
queria que vivêssemos colados. Éramos a sua vida inteira, e não pessoas
com desejos, necessidades e opiniões. Não enxergo aquelas ações de minha
mãe como maldade, o que não significa que elas não foram ruins para mim.
Eu nunca tive espaço para me expressar. Nunca consegui angariar coragem
para articular a verdade, porque as minhas verdades quase nunca eram
compatíveis com as dela, e eu não sabia ser alguém que não fosse metade
ela.
Demorei muito para me encontrar dentro de mim, para entender que eu
era uma pessoa separada. E, no caminho, eu fui estragando um monte de
coisas.
Regina me pediu para voltar para casa na segunda, como Andressa já te
contou e, quando eu retornei, ela me abraçou, mas, de fato, nunca me pediu
desculpas. Eu estava confusa, ferida e gastei um bom tempo escrevendo um
livro. Então, aceitei o fato de que nunca conversamos sobre aquilo. Aceitei
como ela tentou varrer para debaixo do tapete Andy, e todo o
“constrangimento” que enfrentamos. Aceitei a forma como ela tratou a
coisa mais importante da minha vida como “uma fase” que ia “passar”. Eu
fui seguindo, no automático, e a ficha foi caindo, gotinha por gotinha. Eu
precisei reviver para notar que aquilo não me fazia bem, e que eu poderia
me afastar. Era difícil, mas eu estava começando a compreender que eu
amava a minha mãe. O que não significava, de forma alguma, que eu
precisava aceitar o seu comportamento.
Muitas vezes, a única coisa que nos separa da necessidade de mudança e
da mudança em si é levantar a bunda da cadeira e agir. É falar o que você
realmente sente!
Era sábado e eu fui cedo até o seu quarto.
Regina ainda estava deitada, mexendo no celular, quando eu entrei.
Ambas de pijama, foi assim que eu decidi encarar o momento mais
difícil e crucial da minha existência.
Se minha vida for transformada em um filme um dia (não sei por que
essa possibilidade sempre passava pela minha cabeça), espero que adaptem
essa parte e me coloquem bem menos remelenta, com uma roupa bonita e o
rosto menos inchado.
Faz de conta que eu estava radiante e decidida, como uma protagonista
em seu clímax, parando na frente do colchão da sua mãe e dizendo:
— Oi, mãe. Eu acho que a gente precisa finalmente conversar.
Minha fala a pegou de surpresa. Ela franziu sua testa, se remexendo.
Meu tom foi delicado, eu fui educada. Acho que ela só se alarmou porque
estava vivendo em uma corda bamba. Eu sabia bem como era isso.
— O que houve, Camila?
Inspirei profundamente.
Foi muito difícil para eu juntar coragem para bater de frente com ela. Eu
nunca consegui, nem mesmo quando comecei a ser um pouco mais
assertiva. Ela nunca esperou que eu fosse revidar, e é isso que acontece
quando você é passiva a sua vida inteira. Ninguém te reconhece quando
você começa a lutar pelo que quer. Quando você toma decisões, as pessoas
que se aproximaram de você por interesse te julgam, e você nunca se sentirá
tão livre.
— Eu sei hoje, meses depois, o que você conversou com Andressa
naquele dia, e que nunca quis me contar — foi como eu comecei.
Vi que ela arregalou de leve seus olhos, mas não disse nada, então eu
continuei.
— Você sabe o que eu fiz durante todo esse tempo, mãe? Eu estive
escrevendo sobre os últimos anos da minha vida. Eu me lembrei de como
eu cheguei aqui. Não foi fácil, e sabe por quê? Porque eu estive apavorada.
Até nos momentos mais felizes, o medo sempre esteve lá. — Mordi de leve
meus lábios, sentindo meu peito apertado ao dizer: — Medo de você.
— Camila... — tentou dizer algo, mas não conseguiu.
Senti quando meus olhos encheram de lágrimas, o que aconteceu mais
cedo do que eu esperava.
As coisas pareciam ter mudado pouco para ela desde que eu a peguei no
flagra em prantos porque descobriu que Andressa beijava garotas. No
entanto, se, para ela, poucas coisas haviam se movido de lugar, para mim,
era o contrário. Tudo estava diferente.
Já havia passado tempo demais, e ainda esbarrávamos na mesma
situação: eu precisava escolher entre aceitar meus sentimentos ou deixá-la
feliz. Eu já havia optado pela sua felicidade uma vez. Naquele instante,
estava optando pela minha.
— Eu te amo, mãe, mas você está tão errada. — Deixei que as lágrimas
caíssem, não que me parassem. — Se passaram meses, e eu acho que eu fui
mais do que paciente. — Inspirei profundamente, tentando me controlar.
Não queria que meus soluços atrapalhassem a compreensão. Eu queria que
ela absorvesse cada sílaba. — Eu voltei para casa quando você pediu,
depois de literalmente me expulsar. Eu revivi, e as memórias me
mantiveram de pé por todo esse tempo. Andy...
Deixei que seu apelido pesasse em nós por alguns instantes até
completar:
— Eu não quero voltar para a antiga Camila, mãe. A antiga Camila
estava muito triste. Ela estava muito ferida, tinha muito medo. Ela voltou
para a sua casa quando você a chamou porque ela pensou que vocês fossem
seguir em frente, mas tudo que fizeram, nesse tempo todo, foi andar para
trás. Eu estive fazendo tudo errado. Eu... — Engoli em seco. Foi muito
difícil, mas eu consegui dizer: — Mãe, eu quero estar com a Andressa —
confessei, da maneira que nunca pude. Da forma que me foi tirada,
antecipada, e imposta a mim.
Eu não queria que minha mãe tivesse descoberto sobre algo tão grande
da maneira que ela descobriu. Às vezes, me pergunto, se eu tivesse tido a
oportunidade e a bravura de sentar e contar a ela, como eu deveria ter feito
desde o princípio, será que as coisas poderiam ter sido diferentes? Tenho
medo de me iludir e achar que sim. Não tenho mais medo de nada além, no
entanto.
Uau.
Eu não tinha mais medo de nada (um exagero para enfatizar meu ponto,
afinal, baratas ainda existiam). É esquisita a sensação de viver sem ter o
mundo inteiro pesando sua lombar. É estranho ser sincera. É... bom.
— Talvez você não consiga aceitar isso agora, mas é a minha vida e eu
quero estar com ela — completei.
Depois que eu confessei aquilo em voz alta pela primeira vez, não
consegui mais parar.
— Eu quero estar com Andressa. Então... acho que você vai ter que
lidar com os fatos.
— Camila...
— Eu não quero que você me ame apesar de eu estar com uma garota,
mãe, eu quero que você me ame e ponto — a interrompi, sem vontade
nenhuma de ouvir suas justificativas. — Se você precisa colocar condições
para estar comigo, eu prefiro que não esteja. — Ela se manteve estática, o
choque tornando seu rosto branco. — Eu não posso retroceder.
Meu primeiro instinto foi acrescentar um "me desculpe" no final da
minha frase de impacto, mas não fiz isso. Eu não queria mais pedir
desculpas. Eu entendo agora, Andy. Eu estive me desculpando por existir
tempo demais.
— Eu tenho pessoas que não buscam condições para me amar, e eu
estarei com elas. Arrumei minha mochila ontem, vou voltar para a casa do
meu pai. — Um soluço saiu, enfim, de seus lábios.
— Filha...
— Espero que um dia a gente possa conversar de verdade sobre isso.
Espero que você entenda o quão errada está, Regina. Nesse dia, eu estarei
disposta a te ouvir. Não ouse me procurar antes dele.
Umedeci meus lábios, cruzando os braços e a fitando. Fitando o rosto
que todo mundo dizia que se assemelhava ao meu. Não se engane, meu
coração estava rachado naquele instante, mas também estava lotado. Lotado
de coragem para enfrentar o que viria a seguir.
— Você quer dizer alguma coisa?
Ela balançou negativamente a cabeça. As lágrimas lentamente a
tomando por completo.
Eu nunca quis fazer a minha mãe chorar, e chorei muito em
consequência.
Uma coisa que eu sempre tive dificuldade para entender é que ela era a
mãe. Ela que devia estar preocupada com o quanto eu chorava (bastante). O
que eu fazia naquele momento era assumir meu papel de filha pela primeira
vez, em muito tempo.
Filhas não deviam ter que acalmar seu irmão quando ele se assustava
com seus pais brigando. Filhas não deviam sentir o peso da
responsabilidade de manter a paz em casa. Filhas não deviam desistir de
tudo para salvar um casamento que não era o seu. Filhas não deveriam ser
expulsas de casa e se preocuparem com o fato de que isso afetaria
negativamente quem as expulsou. Filhas não deviam ser as guardiãs
emocionais da família, elas deveriam ser protegidas, guiadas e amparadas.
Regina era uma adulta, e ela poderia e precisaria arcar com as
consequências dos seus atos. Assim como eu.
É claro que me doeu deixar minha mãe ali, chorando daquele jeito, me
doeu mais do que eu posso colocar em palavras. No entanto, foi preciso. Eu
não podia continuar anulando a minha vida para caber na dela. Era uma
libertação, para nós duas.
Peguei a minha mochila, dei um abraço em Gabriel e saí. Depois de
muito tempo, eu finalmente saí. Depois de muito tempo, eu estava livre, e
isso só poderia significar uma coisa, Andressa.
Eu estava planando e espalhando purpurina (como você tão
poeticamente discorreu) por todo o caminho até o seu apartamento. Todo o
espaço de tempo pareceu infinito até que eu finalmente pousasse em seus
dedos.
CAPÍTULO TRÊS. ÚLTIMAS
VEZES.
Oi, voltei.
Voltei porque seria maldade terminar daquela maneira, sem te contar o
que veio depois de tudo aquilo. Você merece saber (ainda mais porque foi
bem bonitinho).
Antes mesmo de ir para a casa do meu pai, eu fui até o apartamento dos
Batista. Com a minha mochila pesada nas costas, minha florzinha, quatro
meses de atraso e um nervosismo corrosivo.
Acho que não comentei antes, mas a flor que Andressa me comprou,
naquele dia em que tudo desabou, havia sobrevivido por todos aqueles
meses. Gabriel a regou nos dias que eu fiquei no meu pai e eu pesquisei a
quantidade certa de Sol que eu deveria dar para ela antes de simplesmente a
meter no meu parapeito.
Ela foi comigo para a casa de Andy.
Eram dez da manhã de um sábado. Minha sorte era que todo mundo
naquela casa tinha o costume de acordar cedo, e que me conheciam. Minha
sorte era que os Batista eram algo como a minha segunda família.
— Camilinha. — Tia Diana abriu a porta, trajando um vestidinho
florido e segurando uma caneca de café. Ela sorriu para mim, um sorriso de
reconhecimento. — É muito bom te ver. Quer que eu chame...
— A Andressa — fui rápida.
Não queria perder mais nenhum segundo. Eu já havia demorado quatro
meses. Havia fortes possibilidades de ela ter interpretado aquilo como um
“não tô mais interessada” e estar conversando com alguma loira naquele
exato momento. Só de pensar nisso, quis explodir.
— Por favor — lembrei de completar, depois de uma eternidade.
Tia Diana sorriu para mim, cúmplice. Verdade seja dita, ela sempre
soube de tudo.
— Entra. — Então abriu espaço. — Ela tá no quarto dela, pode ir lá —
me autorizou, sem nenhuma cerimônia.
A pobre da Andressa poderia estar de pijama, pelada, dormindo, ou
completamente superada, mas ela me fez ir até lá ver. Comprovar. Testar.
Foi ótimo (para mim) que ela tivesse feito isso, porque eu tive a
oportunidade de pegá-la no flagra, tateando aquelas medalhas que dizia não
se importar, penduradas em um cantinho de sua parede.
Era um pouco desonroso a espiar daquela maneira, como um
perseguidor faria, mas eu gostaria de enquadrá-la naquele instante. O
instante antes que ela notasse a minha presença. O instante em que ela
estava imersa nela. Andressa ficava linda distraída. Ela estava sempre
cutucando as peles soltas de seus dedos, ou ajeitando a argolinha em suas
narinas. Eu gostava de observá-la fazendo as coisas mais corriqueiras, como
vestir uma camiseta, ou amarrar o cadarço do seu tênis. Ela sabia fazer a
amarração descolada de uma orelhinha, e eu sempre a pedia para amarrar as
coisas para mim, só para ver seus dedos trabalharem. Eram dedos
poderosos, e eu agradecia muito por eles. Agradecia também ao seu passado
de atleta, pelos músculos discretamente marcados em seus braços; e à sua
personalidade transgressora, por todos aqueles amassos indecentes. Eu
sentia falta disso. Sentia falta de cada instante. Sentia falta até do que eu
nunca tive. Eu queria esbarrar, todos os dias, com o seu frasco de perfume
na bancada do meu banheiro. Queria a sua escova de dente junto à minha.
Queria a assistir finalizar os cachos de seus cabelos e ser a primeira coisa
que seus olhos enxergassem pela manhã. Queria beijar todos os pedaços do
seu corpo. Queria segurar a sua mão por cima da mesa, e parar, de vez, de
chamá-la de “quase amiga sazonal”. Eu tinha outra titulação em mente para
ela (eu gosto de dar nomes, né, Andressa?), e era isso que eu queria. Era
essa a minha escolha, e eu estava pronta para finalmente arcar com ela.
— Só por curiosidade... onde você colocaria o pôster com o meu rosto?
— Depois de passar alguns segundos na soleira da sua porta, eu tomei
coragem para abrir a boca.
Foi instantâneo. Ela ouviu minha voz e se virou. Seus cabelos
esparramando para todos os lados. Seus piercings, brincos, tatuagens,
história, todos se voltando a mim, como um farol.
— Mila? — A surpresa por me ver ali fez meu peito bater mais forte.
Havia algo de diferente em seu rosto. Ou talvez fosse apenas eu, me
permitindo enxergá-la sem medo, pela primeira vez.
— O que foi? — provoquei, sorrindo. — Estava esperando outra
pessoa?
Ela ignorou por completo minha provocação, abrindo a boca para dizer
algo, mas nada saiu. Deixei que ela tentasse de novo, e foi só na sua
segunda tentativa que ela conseguiu perguntar:
— Você leu? — Havia uma pontada sutil de constrangimento varrendo
seus olhos.
Estava vestindo shorts de moletom cinza e uma blusa de uma banda que
ninguém conhecia (ela escutava umas coisas esquisitas). Deveria ser ilegal
que alguém ficasse tão bonita em um conjunto tão desleixado.
Dei de ombros, tomando a liberdade de adentrar no seu quarto, mesmo
sem ter sido convidada. Apoiei a plantinha sobrevivente na cômoda e ela
sorriu quando a reconheceu. Estava bem menos florida do que quando foi
comprada, mas o fato de estar viva já dizia muito sobre quem eu me tornei.
— Você queria ser meu marido quando tínhamos nove anos de idade?
— Balancei a cabeça, a respondendo com outra insinuação. Estava bastante
inclinada a importuná-la naquele dia. Era para compensar todos os meses
distante. — Que pensamento pervertido, Andressa!
— Bom, eu tinha onze anos, não nove — corrigiu, recuperando-se
rapidamente da surpresa por me ver ali e costurando um sorriso convencido
em seus lábios. — E você precisava de um marido, então...
— Você se voluntaria para o cargo.
— Sem pestanejar.
Assenti lentamente, um sorriso tomando conta, pouco a pouco, do meu
rosto.
Ela cruzou os braços, mantendo-se onde estava. Muito mais longe de
mim do que eu gostaria. Não consegui ler o que pensava, então respirei
fundo, me sentindo repentinamente sem graça ao me lembrar de que eu
estava novamente no quarto da garota que havia batido na porta da casa da
minha mãe para contar que me amava. A garota que escreveu seis capítulos
para me fazer entender que foi apaixonada por mim a sua vida inteira.
Quatro meses. Eu demorei quatro meses para corresponder! Lembrar
daquilo me irritou.
— Eu não acredito que você me fez escrever a porra de um livro,
Andressa! — esbravejei, mais brava comigo do que com ela, por ter
aceitado seus termos. — Você sabe o quão estressante é essa merda? Você
podia só ter me ligado, sei lá!
— Quê? — se surpreendeu. Ela se surpreendeu de verdade. — Espera.
Você escreveu um livro mesmo? Foi por isso que você demorou pra dar
algum sinal de vida? — Arregalou de leve seus olhos, soltando uma risada
inaudível. Senti meu rosto ruborizar. — Eu pedi pra você escrever sua
história, mas achei que você fosse, sei lá, escrever algumas páginas. Você
nunca gostou de escrever!
Ah. Ótimo. Acho que interpretei errado a sua instrução. Mas quando ela
disse “só leia isso quando você terminar de escrever a sua parte do seu livro
de memórias”, eu levei a sério, porra! Você me culpa? Ela usou a palavra
“livro”!
— Acho que eu não sei ser concisa. — Dei de ombros, encerrando
aquele assunto, profundamente constrangida. Ela riu.
— É. Não sabe. — Deu de ombros. — É bastante fofo, inclusive.
Pigarreei, com minhas artérias tremulando debaixo da minha pele.
Sua sentença trouxe uma maré baixa de esperança de que ela realmente
nunca era capaz de mentir para mim. Eu decorei metade das palavras
daqueles capítulos e torci muito para que estivesse falando sério quando
disse: “eu sempre vou querer você”.
— Quatro meses, então. — Silêncio. — É muito tempo, né?
— Bastante.
— Você tá conversando com alguma loira?
— Quê?
Não recuei. A adrenalina atrelada à sua resposta me deixava febril.
— Você está beijando pessoas da sua turma para aumentar sua rede de
contatos? Reacendendo laços com a Gabi? Ou até com aquele tal de
Arthur?
Ela entendeu, enfim.
— Ah. — Sorriu. — Não. — Deu de ombros, fingidamente
desinteressada. — Na verdade, não me importo mais com a minha rede de
contatos, estou em processo de trancar meu curso. — Mudou subitamente o
rumo, e foi a minha vez de arregalar meus olhos.
Meu Deus.
Então ela estava falando sério no seu texto sobre isso? Aquilo encheu
por completo meu peito de orgulho.
— Andy, isso é... uau. Você...
— Ainda não sei se vou pedir transferência para outro. Ou para qual
seria — me respondeu, antes que eu pudesse de fato perguntar. — Uma
coisa de cada vez.
— Sim, claro! — Eu me peguei subitamente entusiasmada. — Seus pais
disseram alguma coisa?
— Não. Eles... ai, cara, eles são foda! — Sorriu. — Eles me apoiaram
na minha decisão.
Era claro que eles tinham apoiado. Era sua ansiedade que a convencia
do contrário.
Nossa. Eu estava tão orgulhosa daquela garota.
— Andy?
— Oi?
— Seus problemas não são fúteis — garanti, me lembrando do que ela
havia confessado naqueles textos. — Não existe isso, na verdade. Cada um
tem as suas questões, e não se pode pesá-las. Competir sobre qual fere mais.
Só você sabe o que te machuca, e você tem todo o direito de se sentir ferida.
— É. Minha psicóloga disse a mesma coisa.
Travei.
— Sua... o quê?
Ela riu, satisfeita por me chocar.
— Minha psicóloga — repetiu, como se não fosse nada. — Eu prometi
que ia, e estou indo. Toda semana. Já faz uns três meses e meio.
— Quê? — Pisquei algumas vezes, realmente desconsertada com
aquelas confissões. Porra, ela não precisava de nenhuma lição de moral?
Qual era o meu papel então? — É sério?
Sorriu, sem graça.
— É.
— Andy! Você é... Isso é... incrível. Como você se sente?
— Tenho estado bem melhor.
— Mesmo? Os tremores melhoraram?
— Um pouco — admitiu. — Eu aprendi a controlá-los melhor e não
tive uma crise forte desde então. Estamos trabalhando os gatilhos agora.
Caralho.
Que mulher incrível. Que mulher perfeita!
Eu estava tão alegre e perplexa que passei um longo tempo sem
conseguir dizer nada. Estava eufórica, e quis retirar um bolo de confetes da
minha mochila e jogar sobre a sua cabeça (isso seria patético, ainda bem
que eu não andava com um bolo de confetes. Desculpe, eu não sei de onde
veio essa vontade estranha). Enfim, de volta para Andy. Eu estava feliz
demais por ela.
Ter buscado ajuda era um grande passo, e eu a admirava ainda mais por
isso.
Vamos deixar só uma coisa clara antes de seguir em frente: nada é
mágica, ou acontece do dia para a noite. O trabalho com a terapia é uma
construção, e a evolução que ela proporciona é gradativa, mas profunda. O
mais difícil é dar o primeiro passo, se livrar do orgulho e aceitar a ajuda. É
se abrir para a oportunidade de melhorar. Andressa já havia completado o
mais difícil e, desde então, eu tinha certeza que ela iria se fortalecer, cada
vez mais.
Quatro meses.
Para ela, haviam se passado quatro meses desde que vivenciamos toda
aquela situação dramática. Para mim, no entanto, era como se tivesse
acontecido ontem. Eu nunca senti nada parecido, nada que fosse tão forte.
Eu nunca tive tanta certeza na minha vida. E estava pronta para enfiar a
certeza que ela costumava sentir de volta pela sua goela, quando ela sorriu.
No fim, ela cumpriu com o prometido em relação ao seu curso, à
psicóloga e a mim.
— Mas e você? — Pigarreou, depois de sustentar aquele silêncio
reluzente por bastante tempo. — Quatro meses e um livro depois, anda
beijando algum amigo meu?
Infeliz.
Revirei os olhos.
— Não, Andressa.
— Que bom.
— Passei dessa fase.
— Que ótimo!
Balancei a cabeça e sorri.
Era esquisito, ao mesmo tempo em que era extremamente excitante, o
fato de que eu estive basicamente dentro da sua cabeça, por um tempo. Era
um ótimo lugar para se estar. Eu conseguia compreendê-la melhor. Eu me
via de uma maneira... menos rígida. O que Andressa fez por mim foi a
declaração mais bonita que eu poderia receber. Eu me sentia da mesma
exata forma que imagino que alguém se sinta depois de uma serenata.
Desajeitada, mas confiante. Lisonjeada e derretida.
— É! — Pigarreei. — Ótimo. Quatro meses, e você está se cuidando,
sem se preocupar em beijar qualquer um que respire... Eu também não fiz
nada parecido. Nem com amigos seus, nem com ninguém.
Ela ficou me encarando incisivamente enquanto eu continuava a falar.
Porra. Era muito assustadora a forma como as pessoas conversavam
sobre esse tipo de coisa em vez de simplesmente ignorarem a sua existência
até que tudo fosse centenas de vezes pior! (Se você quer saber, eu também
tinha planos de começar a terapia).
— Então, eu estava me perguntando, será que, talvez, a gente pudesse...
se você quiser, óbvio... É uma possibilidade, eu acho... Ou não. Mas eu
gostaria. Não sei se você... Quer dizer, já faz um tempão, e eu não imagino
que você tenha ficado me esperando esses meses todos, claro, é só que...
Não terminei a minha frase ensaiada.
Ela se perdeu por completo quando Andy se aproximou. Teve piedade
de mim, me calando com um beijo e cessando de vez com o redemoinho de
incertezas que me deixava tão tensa.
Envolveu meu rosto com as mãos, retornando à posição que era sua e
encostando sua língua na minha.
Arfei, sem conseguir me segurar, me sentindo invadida por uma euforia
desmedida e familiar. Era sempre um bálsamo e uma honra ser apoderada
por ela. Meu peito bateu mais forte. Ela era dona de cada pedacinho de
mim. E eu senti tanta saudade de estar em suas mãos.
Meu corpo inteiro estava mole, e estalando. A necessidade
transbordando. Aquele era mais um beijo após uma longa pausa. Eu estava
cansada demais delas.
— Sim, Camila. — Ela se afastou de mim com um sorriso sapeca no
rosto. Eu adorava vê-la depois de um beijo. Seus lábios rosados, suas
bochechas coradas. Era sempre impossível parar em um. — É uma grande
possibilidade.
Sorri, sem conseguir me conter.
— Sei que ficou claro. Mas eu posso dizer? Eu meio que preparei todo
um discurso…
Seu sorriso aumentou ainda mais.
— Estou ansiosa para ouvir.
Pigarreei, me empertigando e engrossando a voz. Estava levando aquilo
a sério; como se eu fosse a presidente da república, prestes a discursar na
frente de toda a nação.
— Andressa Batista, durante todo esse tempo, eu tagarelei errado. Eu
tive muito medo e esse medo me consumiu. Eu devia ter te dito muitas
coisas antes. Devia ter te dito o quanto eu gosto do seu sorriso, que
transforma seus olhos em meias-luas. Como eu ficava muito brava porque
você conseguia ficar bonita até de uniforme do colégio. Devia ter dito que
eu sempre gostei quando você deixava seus cabelos assim, cacheados, e dos
seus piercings, e da sua risada, e da sua voz. Sua voz é linda, Andy, e suas
histórias também. Eu deveria ter te dito que a minha confusão nunca foi a
seu respeito. Eu deveria ter te dito, há muito tempo, como eu não consegui
parar de pensar em você nenhum instante, desde que você voltou para a
minha vida. Desde que você surgiu, só havia você. Só há você. Você é meio
que… tudo. Eu me espelho em você, tenho orgulho de você e senti muito a
sua falta. Senti falta da sua companhia. Das suas provocações idiotas. Do
seu carinho e da sua capacidade absurda de ser legal comigo quando eu sou
uma filha da puta insegura e medrosa. Eu senti falta de você, Andy, todos os
segundos da minha vida. Percebi isso no momento em que você apareceu
nela.
Andressa ficou calada por tanto tempo que eu achei que tinha estragado
tudo. Que tinha esbarrado no copo e derramado água no seu painel de
controle, provocando um curto-circuito.
O peso do silêncio parecia maciço e fluido, ao mesmo tempo.
Pensei no pior, mas não me desesperei com ele. Mesmo que ela me
dispensasse por ter sido “emocionada demais”, teria valido a pena. Era uma
sensação maravilhosa tirar tudo aquilo do meu peito. E eu estava quase
dizendo isso a ela também quando ela abriu a boca e falou:
— Alguém já te disse que você fica linda até quando está discursando?
Sorri.
Sorri com todos os dentes.
Então eu a beijei de novo, e por muito pouco não consegui a fazer se
sentar em seu colchão. Minha vontade era montar em seu colo e me livrar
daquela blusa enorme que ela usava, e que atrapalhava o meu caminho. Mas
eu fui, obviamente, inconsequente. A adrenalina e a saudade me fizeram
esquecer que eram dez horas da manhã e que toda a sua família estava em
casa. Andy nos manteve de pé, raciocinando com decência e esperteza, algo
que eu nunca fazia quando ela arrastava seus dedos pelo meu braço.
— Obrigada por dizer, Mila — sussurrou, separando nossos lábios, e
meu peito se apertou. Meu único arrependimento era não ter dito tudo
aquilo antes.
— Obrigada... — foi a minha vez. Minha voz, apenas um fiapo,
enquanto eu completava: — Por não desistir de mim.
Andy manteve seu olhar no meu, e meu coração deu um saltinho. O
mesmo que sempre dava quando ela me mirava daquela maneira. O mesmo
que eu imagino que tenha inspirado dezenas de refrãos.
— Não sei como você pode ter cogitado essa possibilidade.
Pois é, nem eu! Meu erro foi beijar a garota mais teimosa, persistente e
sem vergonha do planeta Terra. O resultado não poderia ser diferente, e era
imensurável o quanto eu estava agradecida por aquilo.
— Bom, eu gostaria de te ver essa noite. — Depois que eu fiquei a
encarando feito uma idiota por minutos completos, Andy sentiu a
necessidade de desviar a tensão. Fez aquilo com maestria. — Tá
disponível? — Pendi a cabeça para o lado.
— Depende.
— Do quê?
— Da quantidade de roupa que estaremos usando na ocasião.
Aquilo a fez rir. Uma risada sincera, e contagiante. Quando retrucou,
falou baixo.
— Zero é um número agradável o suficiente para você, Camila Ferraz?
Senti um formigamento delicioso apalpar meu corpo inteiro. Meu Deus,
que saudade eu senti daquilo! Comecei a contar os segundos dali.
— Perfeito.
Aquela garota me deu espaço quando eu precisei, me deu espaço
quando eu pedi e me fez sentir a pessoa mais especial do mundo todos os
instantes em que não enfrentamos espaço nenhum. Era a minha vez de fazer
uma minúscula coisa por ela em retribuição.
Respirei fundo.
— Antes disso, você iria a um lugar comigo? Eu diria que ele se
enquadra na categoria cinco na quantidade de roupa.
Ela franziu a testa.
— Que lugar é esse?
— É uma pergunta de sim ou não, apenas, Andressa.
— Nesse caso, por falta de opção, sim.
— Ótimo. Renan? — gritei, me desvencilhando de súbito.
Ela arqueou uma de suas sobrancelhas, desconfiada, mas não me
questionou mais.
— Oi? — Escutei a voz do meu amigo próxima.
— Vem aqui?
Sua cabeça surgiu quase que imediatamente no batente.
Ele foi muito rápido, então tenho as minhas suspeitas de que estava
mais perto da nossa cena do que imaginávamos (e que ouviu mais do que
deveria). Mas esse era Renan Batista, um grande fofoqueiro, meu melhor
amigo, e uma das pessoas que eu mais confiava no mundo inteiro. Tudo que
achei da possibilidade de ele ter me escutado marcar de transar com a sua
irmã, depois de toda aquela jornada que vivemos, foi graça.
— Preciso que você pegue uma coisa para mim — expliquei, não o
dando espaço para perguntar muitas coisas. — Andressa, você nos dá
licença rapidinho, por favor?
Sim, eu a estava expulsando do próprio quarto.
— Hm. Claro? — E ela estava saindo sem pensar duas vezes.
Fomos largados sozinhos e Renan me encarou com um sorriso animado,
aguardando instruções. Estava quase mais entusiasmado que eu pela
situação. Sorri em retorno.
— Antes de sair correndo pra contar tudo isso pra Brenda, preciso que
você pegue umas coisas para mim, que eu não sei onde fica.
Ele assentiu, solícito como um Golden Retriver.
— O que você precisa?
Contei. Porém, antes de te contar também, deixa eu te atualizar sobre
uma última coisa. Renan e Brenda haviam se beijado!!!!!! (Insira emojis de
confete aqui). Aconteceu alguns dias antes, nos quarenta e cinco do
segundo tempo; e ele ainda não sabia que eu sabia. Brenda o fez prometer
não contar nada, apenas para me confessar no instante seguinte. Acho que
estava testando sua fidelidade. E, quando se tratava dela, Renan era o
homem mais fiel do mundo. Quando se tratava de mim, felizmente,
também.
Meu ex-príncipe separou exatamente o que eu pedi, colocando tudo em
uma mochilinha e a passando para os meus dedos.
— Amo vocês duas — foi o que ele disse, enquanto a estendia a mim e
eu sorri.
— Amo você também.
Então eu deixei a flor (temporariamente) sob sua responsabilidade,
enfiei Andressa em um Uber e a levei até o clube.
Esse era o meu grande plano.
Se ela se dizia ruim com presentes, eu era pior. Nunca soube ser perfeita
como ela, mas, pela primeira vez, eu não me importava mais com isso.
Estava cansada de tentar ser algo que eu não era. Eu consegui o que eu
queria, e eu não precisava fingir mais. Eu estava com a minha garota
favorita em um dia de Sol, e seus olhos brilhavam mais do que aquele
primo distante.
Enxerguei em seu rosto a emoção por estar ali, o pertencimento, e sorri.
— Tem biquíni, touca e óculos na sua mochila — indiquei, quando
enfim adentamos aquele clube histórico. Mesmo sem ir, e separados, meus
pais nunca deixaram de ser sócios. Sorte a nossa. — Dois biquínis, na
verdade. Um, eu peguei pra mim. Me empresta? Esqueci de incluir roupa de
banho na minha mochila/mudança. — Ela estava distraída e elétrica com o
que acontecia, mas encontrou espaço para se surpreender com a minha fala,
arqueando uma de suas sobrancelhas.
— Mudança?
— É. Estou voltando pra casa do meu pai.
— Oh, Mila...
Ela me encarou com complacência, então levantou uma das mãos, e eu
sabia que pretendia me tocar, mas pensou melhor e a recolheu.
Estávamos estacionadas na porta do vestiário. Era isolado, porém havia
algumas pessoas próximas e, por isso, ela se escolheu. O costume a fez se
esconder.
Caramba, ela entendeu tudo errado!
Dei um passo em sua direção e envolvi seu rosto com ambas as minhas
mãos. Meu gesto a pegou de surpresa. Ela arregalou de leve seus olhos,
então a compreensão a atingiu e ela sorriu. Tive que retribuir antes de puxá-
la em minha direção e selar delicadamente nossos lábios.
Fechei meus olhos e senti como se levitasse. Eu sempre achei que fosse
exagero essa breguice de filme de que um beijo poderia te fazer querer sair
cantando pelas ruas. Isso até que eu conhecesse Andressa. Ela me fazia
querer pular em cima de mesas e harmonizar com pássaros.
Puta que pariu. Eu queria beijar aquela garota todos os segundos, de
todos os meus dias. Se ela esteve apaixonada por mim sua vida inteira,
posso dizer que a compensaria, sentindo o mesmo por ela pelo resto da
minha.
Quando me afastei, nossos olhares permaneceram conectados. Sentia as
batidas aceleradas do meu coração. O silêncio entre nós carregado de
promessas. Eu quis tirá-las um pouco da minha cabeça, para variar.
— Beijar você me faz entender esses musicais idiotas, sabia? Eu
dançaria com baratas.
— Quê?
Ok, talvez eu não precisasse ser sincera sobre tudo que eu pensava.
Minha mente era uma bagunça. Sorte a minha que Andy nunca foi a pessoa
mais organizada de todas.
— Espero que isso seja bom — foi como ela concluiu e eu confirmei
vagarosamente antes de beijá-la outra vez.
Acho que está bom de beijo para uma história, não?
Era um novo livro a partir de então, e eu estava muito ansiosa para saber
aonde ele nos levaria. Não prometo te contar todos os detalhes, afinal, não
pretendo demorar outros quatro meses para beijar a garota que eu gosto
outra vez.
— O que me diz de irmos nadar um pouquinho? — perguntei, em um
sussurro, e o dia alcançou de vez seu rosto.
Trocamos de roupa e entramos na água. Andressa levou a toca e os
óculos e os apoiou na beirada. Ela me emprestou seu biquíni. No geral,
usávamos o mesmo número, mas eu tinha um pouco mais de peito que ela,
e ficou ligeiramente indecente. Fui me cobrindo até que chegássemos perto
da água.
O dia estava agradavelmente quente e, fora nós, havia diversas crianças
recortando as raias. Andressa desceu pela escada primeiro e eu fiz um
coque antes de a seguir, aceitando a ajuda de sua mão estendida. Meu
coração batia mais rápido quando submergi. Não pesávamos nada dentro da
água. Fora, pela primeira vez, parecia igual.
Olhei para ela, com a piscina encobrindo até seus ombros. As tatuagens,
quase todas submersas. O sorriso largo, e verdadeiro.
Pedi para o Renan pegar o biquíni amarelo para ela. Sim, o daquela
fatídica fotografia. Ela ficava linda nele, mais linda ainda pessoalmente.
Vê-la o usando era um capricho completamente mesquinho, mas eu adoro
tê-lo feito. Era bom demais tê-la ali. Comigo.
— Você sabe que eu morria de medo dessa piscina quando eu era uma
menininha, né? — compartilhei, aleatoriamente, a encarando balançar com
seu braço, de um lado para o outro. Conseguia ver em seu rosto, a satisfação
por estar ali, depois de tanto tempo. Aquilo me completou como nada
poderia. — Eu odiava tanto a natação.
Ela riu.
— Ah, odiar é exagero, vai. Tivemos bons momentos aqui.
Ela estava certa, tivemos e, em todos eles, ela estava presente.
Não era a natação que podia ser legal para mim, era ela. Sempre foi ela.
Andressa era fascinante, e eu estava incrédula, com toda aquela situação.
Eu estava feliz, em um nível que eu nunca experimentei antes. Eu...
— Andy, eu amo você — disse, sem preparar terreno, muito menos
pensar duas vezes.
Nenhuma de nós havia tido a oportunidade (ou a coragem, no meu caso)
de dizer aquilo à outra antes; mesmo que já fosse verdade há um tempo.
Aquilo era tudo que eu sentia, e era maior do que eu jamais poderia
imaginar.
Então essa era a sensação de estar verdadeiramente apaixonada por
alguém? Uau. Era imensurável. Não é à toa que não existam fórmulas para
materializá-la. Não é à toa que existam poesias. E aquela foi a minha
primeira vez verdadeiramente sentindo, isso.
— Eu também — sussurrou Andy, e eu me perdi em seus olhos.
Nossa primeira vez (ela me fez editar essa parte). Aquelas eram todas as
nossas primeiras vezes.
— Mas você pode repetir? — pediu. — Só alguns milhares de vezes...
Dei uma nadadinha tosca em sua direção, me pendurando em seu
pescoço.
— Eu amo você, Andressa — sussurrei, e ela esmagou seus olhos
naquele sorriso que eu tanto gostava. — Muito. — Retirei o cabelo
molhado que começava a invadir seu rosto. Meus olhos perdidos em cada
mínimo detalhe. — E eu tenho tanta sorte.
Ela se aproximou um pouco, depositando um beijo na ponta do meu
nariz. Nossos braços e pernas estavam unidos, em um círculo perfeito.
— Eu também — garantiu. E eu respirei fundo.
Como era incrível se sentir livre.
— Você me promete uma última coisa, Andy?
— O quê? — Sorri torto antes de dizer:
— Promete que não vai deixar eu me afogar nessa merda de piscina?
Porque seria realmente uma droga se eu morresse depois de tudo isso.
Andressa deixou que uma gargalhada terminasse de unir o que ainda
não havia selado entre nós.
— Nunca vou deixar que você se afogue.
— Que bom. — Sorri. — Então coloca essa touca e vamos nadar!
Soltei-a, fingindo sentir o mesmo entusiasmo que ela por estar dentro de
uma piscina. Fingindo que me alonguei (sei lá se tem que se alongar antes
de nadar. Eu realmente não sei nada de esporte).
Ela vestiu a touca e os óculos, e eu me irritei com o fato de que ela era a
única pessoa no mundo que não ficava horrível com eles.
— Pronta? — Paralisou ao meu lado.
— Nem um pouco. Mas tô curiosa pra ver se eu ainda me lembro de
alguma coisa...
Eu não me lembrava de nada.
Nadei como aqueles recém-nascidos que são arremessados de súbito na
piscina, e que precisam fazer o seu máximo para sobreviver. Mas, pelo
menos, eu não me afoguei. Pelo menos, eu achei aquilo engraçado, e
cheguei ao fundo.
Quando eu era pequena, me lembro de claramente afundar meu rosto e
enxergar o paredão como um desfiladeiro rumo ao fim do mundo. Eu me
lembro de entrar em pânico, pedir ajuda da professora para sair da água e
correr, choramingando, para o colo da minha mãe.
Não há nada de errado em uma criança reagir daquele jeito. Era
realmente fundo, e assustador, mas, bom, eu não era mais uma criança. E
aquela era eu, finalmente, a deixando ir.
Eu acho que existe muita relevância em primeiras vezes, você notou
como eu adoro comentar sobre elas, mas acho que também há certa magia e
relevância nas últimas. São elas que definem o tom das histórias; e é esse o
final que eu tenho para te oferecer.
Essas foram as primeiras, mas também as últimas vezes, que você me
viu temer, fugir e me esconder. Eu conquistei as duas garotas que eu queria.
Fui capaz de acertar o meu rumo e, com os trilhos no lugar, cheguei,
finalmente, onde eu queria estar.
Pode subir os créditos. Agora sim, é de verdade.

Fim.
EPÍLOGO.
— Calma, amiga, não pode ser tão ruim assim!
Ana Clara tentou apaziguar a situação, ao mesmo tempo em que cobria
seu rosto com a camiseta, protegendo suas vias aéreas da fumaça que foi
arremessada em nosso rosto e que, talvez, nos levasse à morte no fim do
dia.
Fitei-a. Apreciava o fato de ela estar tentando me redimir, mas não
havia muito como.
— Ana. — Respirei fundo, tentando não me desesperar. — O porco tá
preto.
Brenda tossiu teatralmente. Estávamos as três debruçadas sobre o vidro
entreaberto do forno, paralisadas e sem saber o que fazer.
— Caralho, Camila, você carbonizou nossa ceia.
— Cala a boca, Brenda. — Fechei o fogão com força. Não ia consertar
nada ficar encarando a droga do porco queimado. A única solução que
encontrei foi: — Alguém pode achar a minha namorada?
Ana se voluntariou, colocando-se de pé, ainda com o nariz coberto.
— Acha o Renan também — complementou Brenda. — Eles vão saber
o que fazer.
Minutos depois de sair, Ana retornou à cozinha conjugada da casa de
praia dos Batistas com os dois ao seu lado.
Mesmo que estivesse preocupada com a situação, suspirei ao vê-la. Eu
quase não tinha visto Andressa naquele dia. Ela havia saído com Jéssica e
seu irmão para comprar (de última hora) o que estava faltando para nossa
“ceia” de Ano Novo. Fazia um mês que Andy havia tirado sua carteira de
motorista, e estava entusiasmada o suficiente com a novidade para se
voluntariar a ir em todos os passeios que envolviam carros. Ela usava o
carro do seu pai e, preciso dizer, dirigia melhor que ele. Nas poucas vezes
que eu peguei carona com o tio Batista (estava andando bastante de ônibus
agora, se te interessa saber), eu tinha a mais absoluta certeza de que a minha
morte estava próxima. Com Andressa, não. Ela era prudente, e tranquila.
Era parecida com o meu pai no volante. Ah, é. Aquilo me fez lembrar. Tinha
que colocar um alarme para não deixar de telefoná-lo quando desse meia-
noite. Para ele e para o meu irmão!
Aquele era o primeiro Ano Novo que eu passava longe da minha
família, e eu não queria parecer uma filha horrível que os havia esquecido
só porque estava entre amigos.
Quando pedi ao meu pai para passar a virada com a minha namorada,
seu irmão, a namorada dele (que também era minha melhor amiga), minha
amiga da faculdade e a namorada dela em uma casa de praia em Búzios,
não tinha esperança nenhuma de que ele fosse deixar. Regina jamais
deixaria. Mas tudo que ele disse foi: “Claro, filha. Tome cuidado e
aproveite”.
Meu pai confiava em mim, e nas pessoas que estavam indo comigo.
Então, ele não viu nenhum problema em me emprestar um dinheiro depois
que eu expliquei toda a logística (responsável) que seguiríamos naqueles
dias. Ficaríamos três dias na mesma fatídica casa de praia em Búzios na
qual eu havia consolidado tantas memórias ruins. Aquela era a oportunidade
de transfigurá-las e, quando eu avisei Brenda que meu pai havia me
permitido tentar, ficamos mudas no telefone por minutos completos.
Ninguém estava acostumado com o que estava acontecendo comigo, mas
todos concordávamos que era bom.
Habitávamos a mesma casa desde o dia anterior, mas eu não vi quando
Andressa chegou do mercado, com dezenas de engradados alcoólicos e um
único saquinho de romã. Estava me arrumando no quarto azul (aquele com
o quadro feio), o que era parte e causa do problema. Minha obrigação era
ficar de olho no pernil que os Batistas haviam temperado e colocado no
forno antes de sair para o mercado; e eu falhei.
— Nossa! — Assim que Andy adentrou a cozinha, exclamou,
balançando uma mão na frente de seu rosto e fazendo uma careta. Renan
repetiu os mesmos exatos gestos atrás.
— O que houve aqui? — quis saber, com os olhos arregalados.
Brenda, que estava apoiada na bancada com os braços cruzados e cara
de poucos amigos, respondeu:
— A Camila foi fazer babyliss e esqueceu de ver o pernil — me
dedurou sem piedade. Revirei os olhos.
O cheiro de queimado tomava conta da cozinha. Andressa se aproximou
do forno, analisando o estrago.
— Caralho, Mila! Quantas horas você ficou fazendo babyliss? — Dei
de ombros.
— Não foi tanto tempo assim... Acho que o forno tava muito quente...
Eu não tinha costume de fazer babyliss, então, na verdade, demorou
bastante para que eu acertasse algumas ondas bobas e irrelevantes. Meu
cabelo fino não era nada comparado ao de Andressa. Meus cachos foram
imediatamente desbancados pelos dela, assim que ela se ajoelhou na minha
frente, deparando-se com a mais nova merda que eu tinha feito. Fiquei sem
graça e culpada. Acho que ela notou, porque completou, quase que
imediatamente:
— Ficou linda, aliás. — Ela me encarou por debaixo. Ainda trajava sua
calça jeans e o cropped que usou para ir ao mercado. — Você tá perfeita.
Sorri cristalino. Meu coração batendo mais rápido.
— Você gostou mesmo?
— Muito. — Seus olhos passearam por toda a minha silhueta e, por
alguns instantes, o pobre do pernil carbonizado foi esquecido. — É essa a
blusa que você comprou ontem?
— Uhum. — Tateei minha blusa branca de malha, mordendo meus
lábios. — O que você achou dela? Tá muito decotada?
O decote batia no meu umbigo.
— Não. — Sorriu. — Claro que não. Tá maravilhosa.
— Ok. Chega. Vocês são impossíveis — reclamou Brenda,
aproximando-se de Andy e a empurrando para longe do forno. — Você é
uma decepção, Andressa. Faz questão de passar pano para ela todas as
vezes.
Troquei olhares com a garota que estava sendo acusada. Ela deu de
ombros, sorrindo.
— Ela é muito bonita para fazer qualquer coisa de errado.
Ouvi Renan e Ana rirem enquanto Brenda revirava os olhos, puxando a
luva e se debruçando para recuperar a nossa única carne destruída. Quando
a apoiou sobre a bancada, o cheiro de queimado aumentou.
Nenhuma das seis pessoas que estavam naquela casa poderia ser
considerada preparada para cozinhar uma ceia de Ano Novo. Então,
combinamos de fazer uma coisa de cada. Tínhamos (no passado mesmo)
um pernil (que era o favorito de Brenda — o que explica seu surto), uma
tigela de salpicão vegetariano, arroz, farofa e uma geladeira lotada de
álcool. Metade daquelas coisas foram feitas por Andressa e por Renan, os
únicos com mínimas habilidades culinárias, então eu sabia que estava
completamente dispensada da bronca por ter transformado em cinzas o
nosso item mais trabalhoso (e caro).
— Que reunião é essa aqui? — Jéssica chegou de súbito. Estava
trocando de roupa enquanto toda a desgraça acontecia, e fez uma careta ao
sentir o cheiro. — Porra. Queimou alguma coisa?
— Amor... — Ana tentou calá-la tarde demais. Ela colocou mais lenha
na fogueira.
Brenda bufou, tirando o laminado com um puxão. Renan achou que era
a hora de interferir.
— Bre — chamou por ela, passando por mim e tocando delicadamente
suas costas.
Ela também já estava pronta, com seu biquíni de paetê. Passamos a
tarde na praia, e ela estava toda vermelha. Naquela nova oportunidade, eu
fui esperta, e não dormi debaixo do sol. Estava menos queimada do que
costumava ficar. Quer dizer, mais ou menos. Sem dúvidas, eu estava mais
vermelha que Brenda, mas nunca ardida o suficiente para afastar Andressa
caso ela tentasse me beijar outra vez.
— O que acha de pedirmos McDonald's? — E, com aquela simples
sentença, Renan devolveu todo o brilho aos seus olhos.
A possibilidade de comer batata frita era equivalente à cura para minha
melhor amiga, em qualquer situação. Obviamente, seu mais novo namorado
sabia disso.
— Será que eles... entregam hoje? — arriscou, incerta. Renan levou as
mãos até seus ombros, garantindo:
— Se não entregarem, eu vou lá buscar.
Pronto. Reestabelecemos a paz. O príncipe encantado salvou o dia!
Todos nós sabíamos que comeríamos McDonald's na nossa ceia, porque os
Batistas eram capazes de ir buscar McDonald's em outro país caso isso
significasse levar um sorriso ao rosto da pessoa pela qual estavam
apaixonados.
Brenda o fitou com um biquinho frágil e completamente derretido.
— Obrigada — sussurrou, debruçando-se na sua direção para dar um
selinho rápido.
Todo o restante do mundo pôde voltar a respirar depois daquilo.
— Ae, Renanzinho. Hoje tem! — provocou Jéssica e Ana a
acompanhou, ovacionando, ainda com a blusa tapando seu nariz.
Andressa se aproximou de mim rindo, enquanto Brenda mostrava o
dedo do meio para as duas.
— Depois vejo se dá pra salvar alguma coisa desse pernil — garantiu, e
eu a agradeci profundamente por aquilo pelo olhar. Brenda estava certa, ela
me mimava demais. E eu jamais reclamaria daquilo. — Antes, vou só tomar
um banho. — Dedilhou meu braço. — Não quer me acompanhar?
— Tá maluca, Andressa? Eu fiquei horas fazendo essa merda de cabelo.
— Ah. — Sorriu. — Então quer dizer que não foi tão rápido assim?
Filha da puta.
— Vai tomar banho, vai! — A empurrei para longe, ouvindo-a rir.
Ela foi, mas, antes, me roubou um beijo, enfatizando:
— Que fique claro, valeu a pena você ter fodido com a nossa única
carne. Nunca vi namorada mais bonita em toda a minha vida.
— Vai logo, Andressa! — insisti, tendo imensa dificuldade em segurar
meu sorriso.
Namorada. Eu gostava muito de ouvir aquela palavra sair da sua boca, e
gostava muito de dizê-la também. Até mesmo em momentos nos quais o
termo não casava bem, eu usava daquela nomenclatura. Não conseguia
parar de chamá-la assim, era até um pouco cansativo, mas você sabe do
meu histórico. Aquela titulação, por si só, era uma vitória pessoal.
Minha namorada sumiu corredor adentro, e então eu tive que enfrentar
sozinha Brenda e seus braços cruzados, paralisada bem na minha frente.
— Bre — a dirigi meu olhar mais inocente. — Você me perdoa por ter
destruído sua carne favorita?
Bateu com o pé algumas vezes no chão até ceder.
— Você é uma idiota. Eu realmente queria comer aquele pernil —
garantiu, então me abraçou.
Eu e minha amiga já tivemos a audácia de reclamar uma vez do fato de
que não nos víamos mais o suficiente. O que o destino fez? Transformou-
nos em algo como “da mesma família”. Eu conseguia visualizar
perfeitamente bem. Eu, ela, nossos respectivos Batistas dividindo os
melhores Natais que se tem conhecimento.
— Mas os cachos ficaram lindos mesmo, sabe?
— Ah, amiga, obrigada! — exclamei, quase emocionada. Ela deu
tapinhas de incentivo em minhas costas e eu me desvencilhei, completando:
— Eu fiz daquele jeito que você me ensinou.
— De dentro pra fora?
— Isso.
— É o melhor mesmo, é o melhor...
Fizemos as pazes e fomos terminar de nos arrumar todas juntas.
Quando deu dez e quarenta, meu celular vibrou. Eu pedi para que
Andressa interrompesse o delineado que fazia em mim para atender meu
pai. Ela era expert em delineado, e eu nunca mais ousaria tentar fazer um
pelo resto da minha vida. Havia muitas vantagens em namorá-la. Eu nunca
usei maquiagens tão bonitas. Eu nunca mais me preocupei em estar
“tentando demais”.
— Oi, pai! O que houve? — Saí do quarto. — Estamos em fuso-
horários diferentes? Nem deu onze horas ainda!
Ele riu.
— Onze horas eu estarei debaixo das minhas cobertas dormindo, minha
filha. Mas liguei porque queria te desejar um feliz ano novo, e te dizer que
eu tenho muito orgulho da mulher incrível que você se tornou.
Ano Novo me deixava emotiva. Senti que meus olhos lacrimejaram um
pouco.
— Ah, pai... Obrigada. Por tudo. Amo você.
Eu ainda estava morando na sua casa, com os armários todos
preenchidos. Então, quando eu agradecia “por tudo”, incluía: estadia, água,
luz, comida e compreensão.
— Amo você, minha querida. Mande minhas boas vibrações para todos
os seus amigos, e para Andressa. Agora, vou passar pro seu irmão, porque
ele também quer falar com você.
Eu sabia que ele não queria, mas foi obrigado.
— Pera aí, pai. Eu tô no meio da parti... Camila? Oi. Feliz ano novo,
tá? — Escutei o barulho do teclado no fundo e soube que ele estava
jogando. Meu pai narrou, nada baixo: “fala pra ela que você ama ela”. —
Amo você. Manda um beijo pra Dessa.
Ri.
Tinha minhas suspeitas de que Gabriel gostava mais de Andressa do que
gostava de mim.
Quando ela ia para a minha casa e meu irmão estava lá também (depois
que eu me mudei para o apartamento do meu pai, ele passou a ir lá com
muita frequência), eles ficavam jogando Fifa a tarde toda. Eu sempre queria
matá-lo por isso.
— Eu também te amo, Gabi. Feliz Ano Novo!
As festas de final de ano eram sempre complicadas para pais recém-
divorciados e... bom, para mães problemáticas.
Naquele ano, eu não havia visto Regina no Natal, e também não a veria
no Ano Novo. Gabriel a fez companhia no aniversário de Jesus Cristo, mas,
para o dia trinta e um... bom, eu não tinha certeza se ela tinha uma
companhia.
Esperava, apesar de tudo, que sim.
Andy mentiu para mim. A minha blusa era muito decotada e eu
coloquei um biquíni por baixo para garantir que ninguém veria o meu peito
durante a contagem regressiva.
Era sempre uma adrenalina gostosa gritar o “dez, nove, oito”, mas havia
um tempero especial em fazer isso de braços dados com a minha melhor
amiga.
Estávamos todos atolados na areia. O cheiro que impregnava no ar era
de euforia. O mar molhava nossos tornozelos quando chegamos ao um e os
fogos foram liberados, iluminando nossos rostos e enchendo o céu de
fumaça.
— Feliz Ano Novo! — gritamos, em uníssono. Um champanhe foi
estourado. Tomei um banho (culpa de Jéssica) e Brenda pulou no meu
pescoço.
Eu a abracei, agradecendo dezenas de vezes por tê-la na minha vida,
então Ana se juntou a nós e nosso abraço se tornou triplo.
Ana Clara havia se formado no semestre anterior (enquanto eu
terminava meu livro) e, somente alguns dias antes de viajarmos, conseguiu
marcar a sua primeira entrevista de emprego. Estava radiante desde então.
— Chega de desemprego, porra! — gritou, depois, beijou nossas
cabeças. — Eu prometo que vou bancar vocês para o resto das nossas vidas!
— Sim, ela já estava embriagada, então Jéssica a roubou para os seus
braços e Renan surgiu, abrindo os seus em minha direção.
— Minha vez?
Acho que nunca sorri tanto antes. Minha bochecha já doía quando eu o
apertei com força.
Meu ex-marido perfeito. Meu amigo de infância. Meu ex-crush
platônico e meu cunhado, todos em uma pessoa só.
Uma coisa fofa que eu tenho para te contar é que Renan havia adotado
um cachorro no mês passado. Um Beagle. Ele e Brenda haviam dado um
nome a ele juntos. Ele se chamava “Trovão”, e tinha o costume de fazer xixi
no quarto de Andressa.
— Sabe... — Sorri travessamente, com a cabeça apoiada em seu ombro.
A nostalgia se misturando ao êxtase e as promessas de novos trezentos e
sessenta e cinco dias. — Acho que seus filhos vão ter os olhos castanhos. O
cromossomo do pai é forte, parece. Eu li isso em algum lugar.
Escutei-o rir antes de se afastar e dizer:
— Droga. Feliz Ano Novo, Camilinha.
— Feliz Ano Novo, Renan!
Foi nesse instante que eu o passei para as mãos da minha amiga, e ela o
agarrou, sem nenhuma vergonha.
Fiquei idiotamente parada, por alguns instantes, enquanto buscava,
desnorteada, a minha boca favorita e a encontrava dando uma corridinha na
minha direção.
— Oi, linda. Henrique te mandou um beijo. Seus sogrinhos perfeitos
também — foi como ela chegou, guardando o celular no bolso de sua calça
branquíssima (e já dobrada até o joelho).
Andy estava tão cintilante quanto os fogos. Com algumas pedrinhas
prateadas coladas ao lado de seus olhos (as quais eu havia basicamente a
obrigado a colocar), estava mais linda que qualquer espetáculo, em
qualquer ponta do mundo. Em qualquer planeta, na verdade, de qualquer
galáxia.
— Ah, que fofos. Depois mando feliz ano novo pra eles!
Garanti, sorrindo ao me recordar como os Batistas haviam evoluído de
pais do meu melhor amigo para sogrinhos perfeitos. Era tão... incrível.
Um adendo irrelevante é que Andressa chamava seus pais assim todas
as vezes agora, só para me irritar. Como não podia mais se referir a si
mesma como “quase amiga sazonal”, encontrou uma nova nomenclatura
(uma que eu usei uma vez perto dela), para me perturbar. Não que ela
conseguisse esse feito; eu não me envergonhava da minha capacidade
criativa. E meus “sogrinhos” eram mesmo perfeitos.
Tia Diana continuava fazendo bolo para mim todas as vezes que eu ia
lá, passar a tarde com a sua filha. Depois que assumimos que estávamos
juntas, tivemos que ouvir um “finalmente”, da boca de sua mãe e um “eu
disse que seria antes do Ano Novo, Diana”, do seu pai. Eles trataram o
nosso relacionamento com a mesma naturalidade que trataram o de Renan e
de Brenda (talvez com mais naturalidade ainda), e eu juro que me
emocionei quando eles me abraçaram e disseram que “sempre estariam ali
por mim”. Porém, nem tudo são flores. Ao confessarmos que estávamos
juntas, nossos privilégios de meninas falsamente hétero e “somente amigas”
acabaram. Voltamos a enfrentar as portas abertas. Um percalço que
havíamos solucionado muito rapidamente. Meu pai passava o dia inteiro no
trabalho e, no mínimo uma vez na semana, os encontros eram
obrigatoriamente na minha cama.
Bom, além dos meus sogrinhos perfeitos, também decidimos que
deveríamos contar a Henrique que estávamos juntas. Vários meses haviam
se passado, e nenhuma de nós se sentiu confortável em adiar aquela
“confissão”. O que eu notava, enfim, era que a sinceridade não era um
obstáculo, mas uma espécie de justiça. Se eu tivesse sido sincera em relação
aos meus sentimentos desde o princípio, eu nunca teria ferido ninguém,
para começo de conversa. Então, eu não queria mais guardar aquilo. Andy,
muito menos. Precisávamos o contar, e foi engraçado quando o fizemos.
Andressa mandou um “Ei, tá vestido? Vou te ligar de vídeo. Atende!” e,
quando ele atendeu, eu estava segurando o celular, desesperada. Meus
dedos tremiam, Andy estava mal enquadrada ao meu lado, e a nossa
imagem chegava a ele como se estivéssemos transmitindo ao vivo um
terremoto.
Só me lembro de ouvir sua gargalhada antes que soltasse:
— Bom saber que vocês também tiveram a decência de se vestir antes
de me ligar.
— É. Pois é. — Andressa o retrucou imediatamente. — Por isso mesmo
pretendo desligar bem rápido.
Mordi meus lábios, incapaz de seguir o caminho descontraído deles.
Henrique ia dar outra resposta sarcástica, mas eu o impedi, dizendo:
— Henri, eu sei que você pediu pra não saber. Mas já se passaram
alguns meses, e a gente precisa. Na verdade, a gente gostaria de te contar
que...
— Camila. Relaxa, meu amor — me interrompeu, com a voz travando
um pouco, graças à internet. — Eu sei que vocês estão juntas, só sendo um
idiota pra não saber. E tá tudo bem. De verdade. Foi estranho por um
tempo? Claro que foi. Mas eu não tenho mais nada a ver com o que rola
entre vocês! Podem se pegar à vontade. Vamos deixar isso claro de uma vez
por todas? Chega de pisar em ovos comigo, porra! É um saco! — Às
vezes, ele podia ser um pouco incisivo. Andressa protestou:
— Ei. Fala direito com ela, seu merda.
— Droga. — O ouvi rir. — Foi mal, Camila! O que eu quis dizer é: não
precisava, mas obrigado por me contar.
Soltei todo o ar de uma vez. Andy segurou meus dedos. Ela nunca
falou, mas eu sabia que estava tão aliviada quanto eu por Henrique ter nos
cedido sua “bênção”.
— Andressa? — Mesmo que o víssemos por uma tela, dava para notar
que ele a encarava a fundo. — Cuide bem dela.
Andy sorriu, apertando a minha mão ainda mais.
— Pode deixar.
E foi assim que todo mundo da minha vida ficou ciente de que eu
namorava a mulher mais perfeita do planeta Terra. No dia 1 de janeiro, não
havia mais um único ser humano que não soubesse da mais nova realidade.
Até para os meus avós eu contei! E tudo que eles falaram, quando eu
mandei uma foto dela, foi: “linda”. Acho que isso é positivo, né? Para mim,
foi. E eu tinha planos de levá-la para conhecê-los no carnaval. Meu pai,
meu irmão e eu íamos viajar para São Paulo, e eu a arrastaria junto comigo.
Arrastaria a minha namorada.
Não canso de dizer isso. Eu e Andressa estamos namorando, e todo
mundo que tivesse alguma objeção a isso, ficaria preso e estacionado no
ano que passou.
Uma onda mais forte socou nossos calcanhares e eu dei uma
cambaleadinha em sua direção. Ela sorriu.
— É, você vai pegar esse celular pra falar com os outros só depois
mesmo — inquiriu, me segurando firme. Eu apreciava o fato de que mesmo
que ela já tivesse bebido incontáveis latas de cerveja, ainda tivesse tanta
força. — Agora, posso fazer as honras de te dar o primeiro beijo do ano?
Sorri de orelha a orelha.
— Achei que não pediria nunca... — mal terminei de falar e ela juntou
nossas bocas.
Meu peito batia mais alto que os fogos que estalavam à nossa direita.
Beijá-la nunca perdia o gosto. Não sei como ousei chamar aquela utopia de
chiclete. O prazo de validade dos beijos de Andressa estava marcado para o
fim da minha vida.
— Feliz Ano Novo, Andy.
— Feliz Ano Novo, Mila — retribuiu, no pé do meu ouvido, antes de
completar: — Eu prometo que esse ano vai ser bom. Do começo ao fim.
Fitei-a. Seus olhos pequenos, nada desinteressados e levemente
embriagados, totalmente voltados a mim.
Andressa, assim como eu, nunca foi sensitiva, ou vidente. Então,
racionalmente, sua promessa era balela. Porém, eu sabia, antes mesmo que
as festas de fim de ano passassem e o ano realmente começasse, que aquilo
seria verdade. Porque eu estava com ela, e todos os segundos ao lado de
Andressa, eram os melhores da minha vida.
As pessoas ficam mesmo bobas e inspiradas quando estão apaixonadas,
né? Não vou me desculpar por isso.
Tive que beijá-la outra vez, e seu bafo de cerveja se misturou ao
champanhe empoçado na minha blusa. Passamos um tempo abraçadas,
assistindo aos míseros fogos que restavam, até que ela se afastasse o
suficiente para me dizer:
— Eu soube que vai estrear um filme desses de super-heróis que você
gosta mês que vem.
Aquilo, obviamente, não era novidade para mim.
— Uhum. E?
Foi imediato. Ela me soltou para conseguir se ajoelhar, pouco torta, na
minha frente.
Ah, não. Eu devia ter previsto aquilo.
Largou a lata que segurava na areia, para ter as duas mãos livres para
abrir uma caixinha imaginária, em frente ao seu rosto. Eu comecei a rir dali.
— Camila Ferraz. Você gostaria de ir assistir comigo esse filme
possivelmente chato? Com a promessa séria e inquebrável de que eu não
vou falar mal do enredo previsível, ou dormir, durante todo ele?
— Diz que sim, diz que sim! — Ouvi Jéssica zombar e gargalhei.
Andressa era uma idiota.
Acho que eu estava tão apegada à palavra “namorada” porque só
estávamos namorando (oficialmente) há menos de um mês.
Duas semanas antes de desembarcarmos ali, eu a pedi em namoro. E, a
partir de então, ela vinha me fazendo pedidos dramáticos e desconexos na
ânsia de suprir com o trauma de que — palavras dela — eu havia roubado o
seu pedido.
Bom, a culpa não era minha se ela não me pedia nunca! Ficamos meses
sem um título, até mesmo Brenda e Renan assumiram antes de nós, e eu
tive que intervir. Ela se sentiu traída (mas aceitou), e eu a prometi, tentando
amansá-la, que ela teria a oportunidade de me pedir em casamento!
Até mesmo ela se surpreendeu quando eu usei a palavra "casamento". Já
havíamos conversado sobre isso, e ela sabia do meu receio desde que o fim
de um me fez adquirir uma dúzia de traumas diferentes. Além disso,
havíamos acabado de começar a namorar, sugerir aquilo não foi nada além
de uma piada boba. Porém, sei lá... acho que se ela me pedisse, eu não diria
não.
Bom, eu tentei. Até usei a palavra-gatilho “casamento”. Mas não foi o
suficiente. Ela se ajoelhava na minha frente e fazia uma cena imbecil uma
vez a cada dois dias desde então. E, em todas elas, eu me derretia.
— Hm... — Fiz um mistério proposital. Ela fingiu estar tensa. Trocamos
olhares conspiratórios antes que eu enfim gritasse: — Sim!
Aplausos.
Andressa se colocou de pé e me pegou no colo. Soltei um gritinho idiota
ao ser carregada. Minha saia completamente embolada e meus cachos
destruídos. Eu era uma mistura de mar, champanhe e sorrisos. Quando me
dei conta, estávamos nos beijando dentro da água. A Lua respeitava os
românticos e nos abraçava. Eu estava dentro d’água, ensopada de todas as
formas possíveis, e não tinha mais medo nenhum de ser carregada por
aquelas ondas. Não perto dela.
Tivemos a frieza de salvar nossos aparelhos eletrônicos antes de nos
engolirmos em alto mar. Meu celular ficou na areia, ao lado do dela. Eu só
vi na manhã seguinte as últimas mensagens que recebi do ano que passou:
Regina 23:58: Oi, Camila. Aqui é a mamãe. Não
quero te atrapalhar, estou passando rapidinho só
para te desejar um feliz ano Novo e dizer que,
quando você estiver disponível, gostaria de tomar
um café com você e conversar. Se você quiser. O
que me diz?
Regina 23:59: Estenda as minhas boas vibrações
às suas amigas, à Renan e à Andressa, por favor.
Regina 00:00: Se ela quiser, ela está convidada
para tomar um café com a gente também.
AGRADECIMENTOS.
Olá!
Caramba, como é bom ver que você chegou até aqui!
Eu juro que tentei não deixar esse livro tão grande, mas, claramente, eu
falhei. Sinto que foi necessário, contudo. Sinto que elas contaram o que
precisavam, e sinto também que, para mim, mesmo que o livro tenha
acabado, a história vai continuar reverberando por um tempo.
Engraçado como até hoje eu me pego repetindo: pare de ter medo, tudo
que você precisa fazer é falar. Sim, eu escuto os conselhos de uma
personagem fictícia que foi criada por mim. Mas, sejamos sinceras, eu não
criei nada. Essa é a história delas, e, durante todo o processo, elas me
ensinaram muito.
Camila e Andressa surgiram a partir em um parágrafo, e, desde então,
eu não fui capaz de abandoná-las. Eu não tinha planos de escrever um
romance. Na verdade, eu estava no meio de um livro completamente
diferente quando tive uma das piores crises de ansiedade da minha vida
(Andressa teve a quem puxar), e consegui encontrar conforto bem aqui,
nessas linhas que você acabou de percorrer. Se você já me conhece de
outras aventuras (quem me conhece sabe), eu sempre escrevi fantasias, mas
posso dizer que encontrei um cantinho muito especial também aqui, pelo
romance.
Essa história é pessoal para mim em dezenas de níveis diferentes.
Existem fragmentos gigantescos de quem eu sou esparramados em diversas
cenas, pensamentos e dramas. Escrever TNPV foi como transcrever minhas
sessões de terapia. Foi colocar no papel medos e verdades que eu jamais
seria capaz de dizer em voz alta, porque, assim como a Camila (e metade
das mulheres do mundo), eu ainda estou aprendendo a falar o que sinto. Eu
ainda estou aprendendo a ocupar o meu espaço, que tardiamente aprendi
que existe.
Escrever é um exercício enorme de vulnerabilidade e eu sinceramente
nunca soube se TNPV encontraria outros leitores. Ele foi uma válvula de
escape para mim. Eu me diverti escrevendo sobre essas duas, e seria
suficientemente bom ter vivido esse processo. Mas, quando eu contei para a
minha psicóloga sobre esse livro (e conversamos bastante sobre ele), ela
apenas disse: seria um ato de coragem você publicá-lo. Então, estamos aqui.
Coragem. É tudo sobre coragem. A gente consegue conquistar coisas
incríveis quando junta só um punhadinho dela.
Para você que chegou até aqui, eu não tenho nem palavras para
agradecer. Espero que a leitura tenha sido tão especial para você quanto a
escrita foi para mim. Espero que você carregue o amor genuíno dessas duas
consigo, e que nunca se esqueça de que você é extremamente capaz, de
qualquer coisa que se dispuser a fazer.
Para as minhas leitoras betas, um “muito obrigada” do tamanho do
mundo. Eu tive a sorte de ter comigo nesse processo a Camila (o nome foi
uma coincidência especial), que me ajudou a lapidar e a melhorar essa
narrativa com seu olhar carinhoso. E também a Hannah, que se dispôs a ler
esse mini calhamaço, mesmo que não tenha o costume de ler, e me deu
muita força e coragem para o trazer até aqui. Sem todas as meninas que
passaram por esse processo (Gaby e Carol também então inclusas nesse
agradecimento), TNPV não existiria. Agradeço demais a cada uma de
vocês.
Agradeço também à minha revisora, Bia, que está comigo faz algumas
estações e que sempre me surpreende com seu carinho e atenção. Segundo a
ela, TNPV foi tema de diversas de suas sessões de terapia, e eu me alegrei e
me preocupei com essa informação em proporções equivalentes.
Um adendo super relevante: eu prometi muitas coisas com esse livro,
menos terapia. Espero que estejam todos cientes disso.
Brincadeiras à parte, agradeço a todas que estiveram envolvidas na parte
gráfica dessa história. Não poderia ter reunido um time melhor. Obrigada
Emily, por essa capa linda e todas as meninas envolvidas nas ilustrações
(incluindo você, Gabs, que eu não sei se conseguiu acabar essa história sem
me matar no processo).
Um obrigada vitalício às minhas amigas, que são obrigadas a me ouvir
falando sobre livros o tempo inteiro. Yasmin, desculpe por encher tanto o
seu saco. Ana Lu, obrigada por se oferecer para me defender caso eu fosse
atacada por lançar esse livro. Karen, obrigada por me ouvir. Gabi, obrigada
por estar sempre aqui.
Um agradecimento super especial também para a minha família, que
sempre me apoia, mesmo que inconscientemente.
Obrigada (sem ironia aqui) à minha psicóloga, que me ajudou a
enxergar o mundo de uma maneira diferente.
Obrigada Mila e Andy (sim, podemos chamá-las assim, temos passe
livre), por me ensinarem tanto.
E obrigada, por fim, a você, querido leitor, por ter se disposto a ler esse
pedacinho tão importante de mim.
Acho que por hoje é só.
Nos vemos em novas aventuras?

Com todo o amor do mundo,


Bia.
ABOUT THE AUTHOR
Bia R.D. Ramos

Assim como quase tudo na minha vida, meu "currículo literário" não
poderia ser mais difuso. Formada em biologia, mas amante das palavras,
nasci há 24 anos no Rio de Janeiro, mas fui criada em vários cantos do
Brasil. Comecei a escrever e a publicar obras com 15 anos, em um
aplicativo de leitura, no qual conquistei leitores fiéis. O primeiro livro que
publiquei no aplicativo somou mais de 250k de leituras e, a partir de então,
não parei mais. Expandindo meus horizontes, publiquei minha primeira
coletânea de poesias na Amazon, em formato de ebook, em 2019. Em 2021,
publiquei meu segundo livro de poesias no site, assim como a minha
primeira ficção. Finalmente adquirindo coragem para me denominar
"escritora", sou aficionada pelo mundo da literatura, e dos encantamentos
que vem junto com ela.
Para acompanhar mais do meu trabalho, me siga nas redes sociais:
@biardescritos em todas as redes.
BOOKS BY THIS AUTHOR
O Caçador De Maresia
Lorenzo monopoliza o comércio de sereias. Sendo o único pescador em
Mangata a deter o conhecimento de como fisgar uma mulher-peixe, vive
por mais de dez anos vendendo sereias para aquários. É o negócio da
família, o que dá vida à cidade. É uma válvula de escape, um trabalho
esculpido na raiva. E a herança promissora de Isaque.
Mas tudo muda quando Pandora é enlaçada por uma das redes mais firmes.
Na segunda caçada do filho de Lorenzo, a sereia é pescada, e logo muda as
regras do jogo.
Todos os pescadores sabem das normas: fique longe das sereias, use
protetores de ouvidos, venda a pesca o mais breve possível. Mas Pandora
não foi exatamente pescada. E Isaque esqueceu de uma ou duas normas de
segurança.
Foi então que o estável e promissor comércio de sereias começou a
naufragar. Engolindo junto tudo o que viu pela frente.

História não recomendada para menores de 16 anos.

Os Quatro Frios Ventos De Inverno


4 continentes. 4 deuses. 1 objetivo. Milhares de erratas. Milhares de formas
de alcançá-lo.

Hadassa é diferente. Mesmo nascida em meio à tempestades de neve, ela


não pertence àquele lugar, e é por isso que está sendo caçada.
Quando o novo presidente é eleito, comanda uma caça às chamadas erratas
por todo seu continente, não deixando-a escolha alguma a não ser fugir do
Inverno congelante. Mas não é apenas o presidente que está atrás da jovem.
E não é apenas ela que está em perigo. Os milhares de impuros que estão
distribuídos estrategicamente por Esaon estão em risco desde seu
nascimento.
Em um universo não tão fictício assim, a pureza física é prioridade e as
erratas são um perigo evidente a paz. Hadassa é uma das erratas, mas não é
a única. Existem milhares delas. Existem milhões que desejam sua morte e
existem quatro deuses que fariam de tudo para protegê-las. Mas a pergunta
maior é: por quê?

Em um mundo de perfeição estética, o quão perigoso pode ser nascer


diferente?

Classificação indicativa: +14

Desencantos
A mais crua definição da palavra desencanto é aquilo que está quebrado,
desiludido, despido, faltoso. Quando falta magia, a realidade esmaga.
Quando falta encanto, o desencantamento deságua. Mas, na verdade, é com
os maiores maremotos que um bom navegador convive e de grande parte de
decepções que um poeta escreve. O desencanto é o combustível da poesia e
o encanto um sonhado resultado.

“Desencantos” é um ensaio de voracidade capaz de destruir toda a ínfima


reputação que um dia construí. Mas esse é o preço que qualquer um corre
ao seguir seu coração.

Esse é um livro de poesias autorais que fala sobre desencantos, encantos, e


algumas coisas a mais.

Em Contraponto
Uma coletânea para todos aqueles que, em contraste aos dizeres de um
mundo engessado, complementam a si mesmo com uma intensa melodia
sorridente. Para os que choram, sorriem e que tem todos os ossos quebrados
em sua busca acima de tudo, por sentir.

Uma obra que reúne poemas sensíveis e acima de tudo, reais.

Éramos Nós Antes De Ser


Dizem que uma das formas de se viver para sempre é quando um poeta se
apaixona por você. Caso isso seja verdade, nessa coletânea, você está
prestes a conhecer alguns eternos.

Nesse livro vamos falar sobre amor, em suas mais diversas fases. Amor
proibido, amor traído, amor platônico, amor apaixonado e amor translúcido.
Amor, e suas consequências. Anos de sentimentos acumulados se derramam
nessas páginas, e me honra te ver por aqui.

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