Todas as Nossas Primeiras Vezes - Bia R. D. Ramos
Todas as Nossas Primeiras Vezes - Bia R. D. Ramos
Todas as Nossas Primeiras Vezes - Bia R. D. Ramos
Com carinho,
Bia.
Para todas que já tiveram medo de ser quem são.
Vocês têm vozes, e elas merecem ser ouvidas.
SUMÁRIO
Capítulo Um: contexto.
Parte I: Escola.
Capítulo Dois: Brenda.
Capítulo Três: A festa de aniversário.
Capítulo Quatro: o começo de algo novo.
Capítulo Cinco. Quando meu pai voltou de viagem.
Capítulo Seis. Abençoada seja Andressa Batista.
Capítulo Sete. Mila, eu prometo.
Capítulo Oito. A Resenha.
Capítulo Nove. Fiz uma cena, tal qual Elena Gilbert.
Capítulo Dez. Comportamento heterossexual.
Capítulo Onze. Eram apenas sete da manhã.
Capítulo Doze. Henrique Silva.
Capítulo Treze. Cupido não precisa amar.
Capítulo Quatorze. Eu odeio os bissexuais.
Capítulo Quinze. Coincidências.
Capítulo Dezesseis. A tentação rodeia suas vítimas como um leão faminto.
Capítulo Dezessete. Eu tenho um motivo para gostar tanto de Capitão América.
Capítulo Dezoito. Final de semana das garotas.
Capítulo Dezenove. Nunca vá a uma praia quase particular com a garota que você quer beijar em
segredo.
Capítulo Vinte. Àquilo eu não conseguiria sobreviver.
Capítulo Vinte e um. Mundo de chiclete.
Capítulo Vinte e dois. Em busca do castelo (mas sem a princesa).
Parte II: faculdade.
Capítulo Um. Só para te situar.
Capítulo Dois. Namorada.
Capítulo Três. Até o Zuckerberg me odeia.
Capítulo Quatro. Tirando algumas peças.
Capítulo Cinco. Ninguém precisa saber.
Capítulo Seis. Você devia levar ela para o banheiro.
Capítulo Sete. Nietzsche sempre sabe.
Capítulo Oito. O começo da melhor noite da minha vida.
Capítulo Nove. Apenas natureza humana...
Capítulo Dez. Dane-se o Capitão América.
Capítulo Onze. O bote salva-vidas.
Capítulo Doze. Dá pra parar de fugir de mim?
Capítulo Treze. Faltou sal.
Capítulo Quatorze. Verdade ou desafio.
Capítulo Quinze. Que meus pais nunca leiam esse capítulo.
Capítulo Dezesseis. A gente pode odiar o ex (só não é meu caso).
Capítulo Dezessete. Time Lapse de alguns dias.
Capítulo Dezoito. Amigos próximos.
Capítulo Dezenove. O último aniversário dessa história.
Capítulo Vinte. Talvez, tudo pudesse ficar bem.
Capítulo Vinte e Um. O prelúdio.
Capítulo Vinte e Dois. A flor.
Capítulo Vinte e Três. Era tudo que ele podia fazer.
Capítulo Vinte e Quatro. O fim.
Parte III: Andressa.
Capítulo Um.
Capítulo Dois.
Capítulo Três.
Capítulo Quatro.
Capítulo Cinco.
O que veio depois e antes, de tudo isso.
Parte IV: Camila outra vez.
Capítulo Um (pela terceira vez). De volta para o futuro.
Capítulo Dois. Filha.
Capítulo Três. Últimas vezes.
Epílogo.
CAPÍTULO UM. CONTEXTO.
Eu conheci o amor da minha vida quando eu tinha nove anos de idade.
Renan era o tipo de pessoa fácil por quem se apaixonar. Cabelos pretos,
sorrisos recorrentes e sardas pipocando o nariz pontudo. Era um garoto
inteligente para a sua idade. Articulava bem, sabia conversar sobre coisas
de gente mais velha e estava aprendendo a tocar violão. Ele sabia cozinhar
também, algumas coisas mais simples. Ao longo dos anos, começou a
gostar de inventar receitas, algo que eu nunca tive talento para fazer.
Renan tinha um quarto lotado de objetos verdes. Sim, verdes. Não um
verde cintilante, como o de uma suculenta. Algo mais rústico e másculo,
como musgo. Gostava de animais, especialmente cachorros, e sonhava em
ter um Beagle. Quando tivesse sua “vida resolvida” e seu título de adulto,
dizia que teria um exatamente dessa raça. Era o seu cachorro favorito e eu
sabia disso, assim como sabia que seus dias favoritos eram os de sol e seu
único defeito era odiar pizza.
Renan tinha a minha idade, os olhos da mesma cor que os meus e uma
irmã mais velha chamada Andressa. Eu a chamava de Andy, um apelido
bobo que inventei e que veio de Toy Story (não me orgulho da origem,
apenas do fato). Na época, eu era obcecada por aquele desenho. Espero que
você saiba o que é Toy Story, mas, caso não, é uma história sobre um
menino que tem bonecos. Só que esses bonecos são vivos, e o nome do
“dono” dos bonecos é Andy. Não sei por que, na época, me pareceu
apropriado chamá-la assim. Talvez fosse porque ela era a mais velha de nós
três, talvez porque sua mãe costumava chamá-la de Andinha, e eu só reduzi.
Ou, talvez, fosse o meu subconsciente, me alertando sobre o quanto ela
brincaria comigo durante todos aqueles anos. Independente do motivo, eu
fui a primeira a chamá-la de Andy. Tínhamos essa coisa com primeiras
vezes, grande parte das nossas, pareciam reservadas uma para a outra.
Nossas mães se tornaram amigas porque nossos pais trabalharam juntos
em uma empresa que faliu. A falência os uniu mais do que os dias bons,
afinal, a desgraça mútua é sempre mais efetiva em juntar pessoas; e, depois
que eles sofreram em consonância com a falência precoce, passaram a
marcar jantares em família e a levarem seus filhos e mulheres uns para a
casa dos outros. A amizade entre os dois foi contagiante, afetando suas
esposas. Nossas famílias se tornaram arroz e feijão, até que tivemos que nos
separar.
Andressa e Renan se mudaram para o nordeste; passaram alguns bons
anos lá. Nossas mães mantiveram contato, nossos pais continuaram amigos
e meu irmão e eu, bom, nós éramos crianças. O que significava que
arrumamos novos amigos para brincar de pique-pega e nos esquecemos
daqueles com os quais não conversávamos mais.
Em minha defesa, a época era propícia para isso. Não éramos crianças
tecnológicas como as de hoje, que jogam online e conversam pelo Discord.
Dávamos prioridade aos amigos que estavam por perto; aos que podiam
descer para o play nos finais de semana e que trocavam canetas na escola.
Nossas famílias eram muito amigas, claro, mas Renan era aquele garotinho
bonito que eu me sentia atraída e desengonçada por perto e Andy, bom,
Andy era simplesmente Andy. Ela era... descolada. E, na época, eu era o
oposto disso.
Andressa, Renan e eu nos conhecemos muito novos, mas a amizade não
criou raízes antes de eles se mudarem. Por isso, mesmo que tenhamos sido
apresentados cedo, tudo só começou mesmo bem depois.
Eles voltaram para a cidade quando eu estava no segundo ano do ensino
médio e Renan foi estudar na mesma sala que a minha. Apesar de não
termos sido de fato amigos durante todo esse tempo separados, seu nome
nunca deixou de me causar borboletas no estômago. Foi difícil não me
apaixonar quando ele voltou ainda mais lindo do que partiu.
Retornaram da Bahia para morar em um prédio a duas ruas de distância
do nosso. Dividíamos o carro para ir para a escola, o que nos aproximou de
vez. Foi aí que criamos raízes, Renan e eu.
Tornamo-nos amigos, grandes amigos. Ele passou a se sentar do meu
lado na sala e a comprar pipoca para mim todos os dias na saída. Eu ia para
a sua casa fazer trabalhos em dupla e a gente compartilhava séries e piadas.
Nossas mães tinham a incômoda mania de insinuar que deveríamos
namorar, o que constrangia ambos, por motivos diferentes. Elas diziam que
terminaríamos juntos e que uniríamos de vez as famílias com um belo
matrimônio. Não foi bem assim que aconteceu.
Apesar de negar para todos, eu tinha uma queda secreta por Renan
desde os meus nove anos de idade. Criei raízes profundas até demais e o
problema é que nunca foi recíproco.
Três meses depois que ele retornou para o Rio de Janeiro, ele se
apaixonou por outra garota.
Espera, fica pior.
Ele se apaixonou pela minha melhor amiga!
Mas, para todo problema, existe um lado positivo (às vezes). Foi por
causa do meu primeiro coração partido que Andressa se espreguiçou,
metendo os braços na minha existência. Eu não teria a deixado entrar em
nenhum outro momento, muito menos teria ido pegar água naquele instante.
Eu disse, primeiras vezes, ela sempre estava lá, de alguma forma.
Mas de volta a Renan. Eu descobri da paixão enquanto fazíamos um
trabalho de biologia. Estava na casa dele, sentada sobre os meus joelhos no
tapete de seu quarto (ainda verde e másculo). Tínhamos que colar pares de
cromossomos em um cartaz e, enquanto o fazíamos, ele achou apropriado
perguntar:
— Você acha que meus filhos têm chance de ter olhos azuis? —
Encarei-o com a testa franzida, confusa com a pergunta aleatória e
desconexa.
Ele estava com um sorriso torto no rosto e aquilo me deixava nervosa,
mesmo que eu nunca deixasse transparecer. Engolia o que sentia sem
precisar de um copo d’água desde que ele voltou para a cidade e eu me
tornei expert em fingir não me importar.
Em sua defesa, eu sempre fui muito boa mentindo. Não tinha como ele
saber que ia quebrar meu coração quando dissesse:
— É que a Brenda tem os olhos bem azuis. Talvez neutralize o
cromossomo do castanho, sei lá.
Ele foi sutil, esquisito e levemente equivocado biologicamente, mas
achava que eu já sabia. Bom, não era o caso. Brenda não havia me contado.
Isso porque não acontecia nada de relevante entre os dois. E, nem mesmo
ela, minha melhor amiga, sabia que eu seria capaz de dormir abraçada com
a foto de quem eu afirmava ser só um amigo.
Ninguém sabia que eu gostava de Renan e, meu Deus, eu nunca
imaginei que ele fosse tão emocionado! No fim, descobri, eles só haviam
dado um beijo e ele já falava sobre misturar cromossomos e fazer filhos.
Talvez tivesse sido o efeito Brenda. Sempre acreditei que eles haviam sido
feitos para ficarem juntos. Isso depois que superei meu coração partido,
claro. Naquele momento, não era o caso.
— Espera. Brenda? — Eu me assustei. — Vocês estão... juntos?
Seu rosto ficou profundamente vermelho quando ele se justificou:
— Não juntos, juntos. Quer dizer... Cami, você não sabia? Ela não falou
de mim?
Não, ela não havia falado, mas não foi por mal. Brenda era o oposto de
Renan. Ela sempre foi uma pedra de gelo quando se tratava de homens.
Minha amiga ainda não o considerava importante o suficiente para contar
dele para mim, por isso eu não sabia do beijo — o qual aconteceu em uma
festa, enquanto ela estava ilegalmente bêbada. Mas, bom, Renan estava
sóbrio, e ele nunca foi do tipo que pulava de galho em galho (ou que ia a
festas). Renan sempre gostou de fazer morada e, de alguma forma
impressionante de se testemunhar (e que eu suspeito que tenha a ver com o
tanquinho que ele adquiriu aos dezoito anos), ele foi convencendo Brenda,
pouco a pouco, a adotar seu estilo de vida.
— Ah, falou. — Depois que ele cuspiu na minha cara o fato de que 1)
tinha beijado a minha melhor amiga, 2) ela não tinha me contado e 3) aquilo
tinha o deixado inseguro, senti que precisava mentir, escolhendo poupar os
seus sentimentos quando os meus haviam sido picotados. — É que eu não
achei que era sério.
— Ah. — Ele riu, constrangido, e eu senti minha garganta secar. Que
situação de merda. — Não é mesmo, eu acho... Mas eu tô querendo que
seja. Tudo bem por você?
Não!
— Por que não estaria?
Renan franziu a testa, refletindo por alguns instantes e fazendo uma
careta.
— Sei lá, seus dois melhores amigos. Não é estranho?
Dois melhores amigos.
Aquela sentença foi como uma espada atravessada na minha versão
adolescente, que imaginava estar perdidamente apaixonada pelo garoto
bonito que a dava atenção.
Encarando Renan com os olhos opacos, engoli toda a minha dor,
dizendo:
— Claro que não. Acho que vocês ficam lindos juntos!
Porra, eu devia ter sido atriz. Tinha um talento nato! Até sorri, acredita?
E ele acreditou sem pestanejar que eu estava feliz pelos dois e não em luto
por mim mesma e meu pobre coração despedaçado.
— Obrigada, Cami. — Ele me abraçou de lado, acariciando meus
ombros fraternalmente, como meu pai costumava fazer. Ali jazia,
natimorta, nossa história de amor. — Eu gosto muito dela, sabe?
Assenti, sentindo meu coração pesar sobre o meu estômago. Senti
vontade de vomitar, em cima de seus carinhos fraternais e seu título de
“melhor amigo”. Quis deitar e me encolher, no chão de seu quarto, que
ainda tinha a decoração verde. Aliás, Renan, por que verde? Eu nunca
gostei de verde. Nem um pouco. Devia ter imaginado que não daríamos
certo.
— Sei. — Ri, sem mostrar nenhum dente. — Escuta, eu posso pegar um
pouco de água? Você quer?
— Claro que pode. E não quero não. — Ele me soltou, enfim, de seu
carinho de melhor amigo, dando duas batidinhas em meu ombro. — Valeu,
Camilinha.
— Nada!
Então, me coloquei de pé sem usar as mãos, deixando aquele quarto
como um nadador que acabou de completar sua maratona, submergindo na
borda da piscina em último lugar.
Lembro-me da sensação de ter toda a minha fantasia partida ao meio.
Renan era a ideia de príncipe encantado que me foi ensinada a procurar, e
eu o havia perdido para a minha amiga de olhos azuis.
Eu estava confusa, a sensação era esquisita. Estava triste, havia tido
minha casa de bonecas pisoteada e sentiria falta de ter uma. Eu gostava
muito de gostar de alguém, sempre gostei. O sentimento me deixava mais
leve. Quando fui obrigada a parar de gostar de Renan — algo que fiz por
três meses, 2190 horas e 131400 segundos —, senti como se uma parte de
mim tivesse sido tirada.
Demorei a entender que não se tratava exatamente dele, mas sim do
sentimento. Havia certa magia em estar apaixonada e, do meu jeito
conturbado e silencioso, eu sempre cultivei um pouco desse sentimento. Por
alguém que não era ele, claro.
— Oi, Mila!
Eu não sabia que Andressa estava em casa naquele dia. Ela costumava
nadar nas terças e nas quintas e, geralmente, só chegava quando eu já tinha
ido embora.
Andy era um peixinho desde pequena. Chegamos a fazer aulas de
natação juntas quando ainda éramos crianças, mas eu odiava e, depois de
muita reclamação e choro, consegui convencer minha mãe a me tirar.
Andressa não, ela havia continuado. Sei de algumas competições que
participou e sei que treinava com um profissional. Naquele dia em
específico, no entanto, havia desistido de ir para a piscina. Seu treinador
estava atrasado e ela sentada na mesa que pairava bem ao centro da
cozinha, comendo um pedaço de bolo que sua mãe havia feito para mim.
Tia Diana era minha maior fã. Ela adorava quando eu e Renan tínhamos
trabalho para fazer juntos. Era ela quem nos buscava na escola e, como
trabalhava como dona de casa, os encontros eram sempre no seu
apartamento, onde tínhamos que ficar com as portas abertas, sendo
supervisionados pelos mais velhos. Achavam que íamos nos beijar
loucamente caso fechássemos a porta, porque, na cabeça deles (e na minha),
era isso que meninos e meninas de dezesseis anos faziam. Talvez, de fato
fosse. Mas não a gente (por escolha de Renan).
— Ah, oi, Andy! — Eu me surpreendi por vê-la. — Desculpa. Eu só
vim... pegar água.
Senti a necessidade de me justificar por estar invadindo a sua...
privacidade? Parecia pessoal o fato de estar comendo sozinha e em silêncio
uma fatia de bolo de cenoura. Especialmente quando não trocávamos mais
do que duas palavras desde os nove anos de idade.
— Claro! — exclamou. Estava com os cabelos soltos e as pernas
cruzadas em cima da cadeira. Seu rosto fino me mirava com atenção. Ela
colocou um pedaço na boca antes de perguntar: — Sabe onde fica? A
gelada tá na geladeira. — Interpretou errado minha confusão e apatia. Eu
sabia onde ficava a água, só não sabia mais o que fazer em relação ao seu
irmão.
— Ah, ok. — Sorri, simpática, me encaminhando, levemente
desgovernada, na direção indicada.
Andy esperou que eu passasse ao seu lado para dizer:
— Então. Foi você, não foi? — Parei onde estava, encarando-a confusa.
— Eu o quê?
— Que inventou esse apelido. Andy.
— Hm. Acho que foi. — Fiz-me de sonsa, cruzando meus braços.
Eu não achava, eu tinha certeza. Mas era esquisito que eu me lembrasse
tão bem de algo de nossas infâncias que ela já havia se esquecido.
Eu suspeitava que ela tivesse se esquecido de tudo relacionado a mim.
Coisas irrelevantes somem da nossa memória, e Andressa nunca pareceu ter
tido algum interesse na minha pessoa, até aquele dia.
Eu entrava e saía da casa de Renan todas as semanas e o máximo que
fazíamos era nos cumprimentar com “bom dia”, “tchau”, “até”. Dividíamos
o mesmo carro, pelo amor de Deus, e nem lá interagíamos! Ela estava um
ano na minha frente no colégio, e a gente se esbarrava pouco. Andressa
nunca foi antipática, muito pelo contrário, era conhecida por ser um amor
de pessoa. Só nunca... puxou assunto comigo, e não seria eu quem o faria.
Ela tinha uma energia oposta à minha. Sempre a pegava estirada em algum
canto, com as costas apoiadas em uma posição desleixada, mas
estranhamente confiante. Usava muito preto, branco e roupas largas. Seus
olhos eram pequenos e suas sobrancelhas bem marcadas. Sorria com
constância, mas, quando se mantinha neutra, parecia permanentemente
cansada. Olhos de ressaca, era isso que ela tinha, mesmo quando não bebia,
mas estupidamente cativantes.
— Isso é engraçado — foi o que ela me respondeu, sorrindo.
Desde os dezoito anos, usava os cabelos compridos. Pretos, batiam na
altura de seu cotovelo e cacheavam apenas nas pontas (ela alisava o
comprimento). Eu lembro que, quando éramos menores, eles eram bem
mais curtos, e armados. Mas isso não era relevante, o que veio depois, sim:
— O que é engraçado? — quis saber, confusa pelo fato de Andressa
Batista estar conversando comigo depois de longos três meses me
ignorando.
Estava interessada pelo diálogo, não vou mentir. Andy sempre carregou
um mistério magnético com ela; talvez pelo fato de me evitar. E eu estava
tão interessada no nosso primeiro diálogo depois de anos que quase me
esqueci do ocorrido com Renan. Quase.
Ela deu de ombros.
— Pegou por um tempo, mas todo mundo meio que desistiu do Andy.
Você é a única que ainda me chama assim.
Ah, que ótimo. Primeira oportunidade de interação e eu começava a
chamando por um apelido morto.
— Hm... desculpa? — arrisquei, sem saber se deveria me sentir culpada.
— Quer que eu pare de te chamar de Andy?
— Não, Mila, claro que não. — Sorriu. — Eu gosto. Acho fofo.
— Ah, certo. — Tentei sorrir, um pouco desengonçada, então o silêncio
nos engoliu.
Aquele era um daqueles instantes em que o assunto tinha acabado, não
havia mais o que dizer, só que você ainda precisa compartilhar o mesmo
ambiente que a pessoa com a qual tem zero intimidade.
Eu ainda precisava dar um sentido para a minha peregrinação à cozinha
e pegar o copo d’água, então, tive que fazê-lo com o silêncio incômodo e
desconfortável que se seguiu o nosso diálogo me mordiscando por todas as
beiradas.
O problema é que eu tenho um defeito (não só esse, mas esse é
profundamente irritante), eu falo demais. E sempre tive a necessidade
patológica de preencher qualquer momento de silêncio com alguma
baboseira qualquer. É mais forte que eu. É como se eu fosse inimiga do
bom e velho respiro. Sim, o silêncio me incomoda. O fato de sentir que os
olhos de Andressa me seguiam enquanto eu abria a porta da geladeira e
puxava uma garrafa de água, mas que sua boca se mantivesse lacrada.
Incomodava que ela tivesse aceitado o fim do papo e chamado meu apelido
de “fofo”. Incomodava que compartilhássemos algo pessoal e íntimo
quando não éramos nada íntimas. Era como se tivéssemos um segredo e
história, quando não tínhamos nada além de um grande elefante branco na
sala. Estava me sentindo observada, e exposta. Foi por isso que eu disse:
— Você também é uma das únicas pessoas que me chama de Mila, caso
queira sentir que é recíproco. — Ela arqueou uma de suas sobrancelhas,
surpreendendo-se por eu ter voltado a falar. Aproximei-me e apoiei a
garrafa de água na sua frente, fingindo casualidade: — Quase todo mundo
prefere Cami. Onde ficam os copos mesmo?
Ela sorriu e, quando ela sorria, aquela sensação de que estava cansada e
insatisfeita sumia. Seu rosto inteiro sorria junto. Olhos, testa e bochechas.
— Ali, no armário de cima. — Apontou para um dos armários
suspensos e eu assenti, seguindo a orientação enquanto a escutava
perguntar, para as minhas costas: — E você gosta mais de qual?
Dei de ombros, alcançando os copos.
— Tanto faz pra mim.
— Certo. Vou continuar te chamando de Mila então — concluiu,
enquanto eu me aproximava e me servia um pouco de água. — Para sentir
que é recíproco e tudo mais.
Por algum motivo, aquela frase me fez desistir de derramar a água no
copo, me contentando com três míseros dedos e me afastando dela.
Recíproco.
O jeito como ela disse aquela palavra, me encarando sem nem piscar e
com um sorriso no rosto, foi o começo de tudo que veio a partir de então.
Eu guardei a água na geladeira e me despedi de Andy, voltando para o
quarto e para o drama de Renan. Mas foi como colar uma figurinha
arrancada de novo no mesmo lugar. As coisas pareciam diferentes.
Meu coração partido pareceu singelo quando eu engoli aqueles três
dedos de água e consolidei apelidos com Andressa. Superei fácil Renan e
Brenda, afinal, Andy apareceu, e ela sempre teve mais espaço em meus
pensamentos que qualquer um.
Mas não vamos pular etapas. Você já tem o contexto geral de como tudo
começou. Agora vai ser capaz de entender que todas as vezes em que tudo
deu errado foi por causa dessa estúpida e amaldiçoada reciprocidade, a qual
compartilhamos e perdemos diversas vezes desde que tínhamos dezesseis (e
dezoito) anos de idade.
PARTE I: ESCOLA.
CAPÍTULO DOIS. BRENDA.
Na madrugada em que meu coração foi partido por Renan, eu chorei um
pouquinho. Calma, não foram mares, muito menos rios. Nada comparado
ao que eu aprendi que poderia chorar. Mas, mesmo assim, saíra algo. Uma
garoa singela, nada indolor.
Naquele mesmo dia da confissão, eu inventei que estava com dor de
cabeça e deixei Renan terminar de colar os cromossomos sozinho. Fiquei
em luto logo após, pela morte do meu amor platônico. O luto durou exatos
cinco dias, e foi extremamente difícil conviver com Brenda e Renan
enquanto ele não amansava. Bom, quer dizer, foi especialmente difícil lidar
com Renan. Com Brenda eu resolvi as coisas bem rapidamente.
Minha melhor amiga tinha os cabelos castanhos, pele branca, olhos
azuis (como você bem sabe), lábios pequenos e sempre foi a pessoas mais
extrovertida e atlética que eu conhecia.
Brenda fazia judô desde os sete anos de idade, natação desde os cinco e
qualquer outro esporte imaginável desde... sempre. Sinceramente, eu já
havia perdido a conta de quantos ela já praticara. E o irritante era que ela
era boa em todos.
Brenda estudava na mesma sala que eu desde o quinto ano, mas só
viramos amigas no nono, quando eu fui obrigada a assistir a uma
competição de vôlei do meu irmão mais novo, chamado Gabriel.
Ele puxou toda a energia atlética da família, diga-se de passagem, só
que nunca foi bom como Brenda. Naquele dia do vôlei, aquilo ficou mais
do que claro.
Gabriel era péssimo; e aquela partida, interminável. Por sorte, ou
destino, Brenda se sentou ao meu lado na arquibancada, e tornou tudo
muito mais aprazível quando sussurrou no meu ouvido:
— Tá vendo aquele cara? O número sete?
A pergunta me pegou desprevenida. Encarei-a confusa, dando de cara
com um rosto atento, sedento por respostas. Eu a conhecia da escola, claro.
Estudávamos na mesma sala há anos e ela era uma figura reconhecida por
todos. Só nunca tínhamos conversado antes. Brenda se sentava nas cadeiras
de trás, eu era mais do meio. Trocamos algumas palavras quando tivemos
que fazer um trabalho em grupo juntas, nada além. Eu gostava dela, a
achava divertida, porém, nunca tivemos a oportunidade de interagir. Nossos
grupos de amigos não se misturavam, só que ela sempre foi enxerida
demais para deixar que um empecilho bobo daqueles a impedisse de se
aproximar de qualquer um.
Brenda gostava de fazer novos amigos e (palavras dela) ela sempre
gostou de mim.
Sentada sozinha em uma arquibancada gelada, encarei minha colega de
sala, também sozinha, notando que ela realmente queria que eu respondesse
aquela pergunta. Não tive como não o fazer.
Forcei minhas pálpebras, enxergando um garoto de cabelos pretos errar
um passe. Ou um lance, sei lá. Ele não conseguiu bater na bola!
— Tô — garanti, encarando-a logo em seguida. Ela não me encarava de
volta, apenas gesticulava.
— Caramba, né? Ele é tipo o pior jogador que eu já vi. Desculpa, mas
nossa! Parece que o braço é furado, que nervoso! — A forma como falou
aquilo, séria e analítica, me fez rir. Ela me encarou com a testa franzida. —
Que foi?
— Nada. Só estou feliz que você não tenha falado isso sobre o meu
irmão.
Brenda demorou alguns segundos para processar. Quando o fez, não
tardou a rir.
— Isso seria vergonhoso. Quem é seu irmão?
— O camisa doze, de blusa azul.
Foi sua vez de forçar suas pálpebras para enxergar. Meu irmão não era
difícil de ver. Sempre foi alto para a sua idade. Seus cabelos castanhos, no
mesmo exato tom dos meus, se destacavam na quadra alaranjada e lustrosa.
Brenda o analisou por alguns instantes antes de dizer:
— Ah, ele é esforçado. O sete é só ruim mesmo.
— Vou ter que acreditar em você. — Dei de ombros. — Não entendo
nada de vôlei, tô aqui obrigada. Minha mãe me fez vir, apesar de já ter
fugido pro banheiro três vezes. Quer dizer... — Apontei para o vazio ao
meu lado. — Quatro agora. E, como meu pai ficou preso no trabalho, fiquei
com pena e vim. — Encarei-a e sorri. Sua expressão não era equivalente. —
É importante pro Gabriel. Ele é... como você disse? Esforçado.
Continuei sorrindo, mas ela não. Encarou-me por alguns instantes, de
uma maneira incômoda. Era como se eu tivesse dito uma coisa muito
profunda, quando, na verdade, apenas tagarelava. Na época, ela entendia e
eu não. Havia um fio que nos ligava; um dos que eu não gostaria que
existissem, mas que, em alguns anos, estaria sufocando cada parte de mim.
Brenda estava sentada sozinha naquela arquibancada porque seu primo
estava jogando, e ela conseguiu, depois de muita chantagem, convencer
seus pais a levarem para assistir. No entanto, o passeio em família durou
pouquíssimo tempo. Eles haviam a abandonado antes do fim do primeiro
set, para brigar no estacionamento.
— Camila, né? — Assenti. — Sou Brenda, e vôlei não é nada
complicado. Tipo, tá vendo essa formação? Aquele é o líbero...
Então ela começou a apontar e a me explicar dezenas de coisas
complicadas que eu nunca decorei, nem fiz questão.
Depois daquele dia, viramos amigas.
Ela me convidou para sentar ao seu lado na sala e, quando vimos,
estávamos fazendo todos os trabalhos juntas, lanchávamos na mesma mesa
e conversávamos o dia inteiro. Eu disse, as desgraças são uma das formas
mais fáceis de juntar pessoas. Ficamos unidas como siamesas!, até que nos
separaram à força.
No segundo ano, um golpe baixo nos atingiu: dividiram a nossa turma e
cada uma ficou em uma sala. Sofremos profundamente pela separação, até
que resolvemos aceitar. O coordenador não se comoveu com a nossa
tristeza quando protestamos, havia muitos adolescentes indo reclamar com
ele. Então, eu tive que me conformar em ficar em uma sala separada da
minha melhor amiga. E foi por isso que eu tive espaço para fazer dupla com
Renan, sentar junto com ele, me apaixonar por ele e me aproximar de sua
irmã.
Sim, tudo que aconteceu foi culpa do maldito coordenador que nos
separou.
Eu agradeço a ele todos os dias.
— Vem cá, Cami, o que tá acontecendo? — Depois que se passaram três
dias do meu período de luto, Brenda perdeu a paciência, me encurralando
no colégio, bem no pé da escada que levava até a cantina.
Sua estratégia era boa, estávamos longe de qualquer testemunha, o que
tornava minhas possibilidades de fuga quase nulas. Nem mesmo se eu
tentasse empurrá-la, eu conseguiria passar. Naquele período de nossas
vidas, ela já era faixa preta no judô.
— Como assim?
— Você tá estranha comigo. Faz alguns dias.
— Eu não tô estranha contigo. — Estava sim. Estava monossilábica e
silenciosa, duas coisas que eu definitivamente não era. — Só tô preocupada
com a prova de física.
Ela não cairia naquela mentira com facilidade. Era de Brenda que
estávamos falando.
— É só semana que vem.
— Eu sei, mas você já viu a matéria?
— Camila, você é boa em física.
— Não nessa matéria.
— Tá, não me conta o que houve então. — Revirou os olhos. — Mas
pelo menos me escuta! Eu achei que era coisa da minha cabeça, mas não é.
Renan vem me sondando.
Quase me engasguei com o biscoito que eu mastigava tranquilamente
antes que ela chegasse.
— Ah. — Foi tudo que eu consegui dizer. Ela cruzou os braços,
desconfiada.
— Ele é seu amigo. Sabe por quê?
— Você não sabe? — retruquei, ligeiramente irritada.
Não tinha como fingir que eu não estava chateada. Chateada por ela não
ser capaz de ler a droga da minha mente e entender que, por mais que eu
negasse, eu sentia uma pequena paixãozinha por Renan há anos!
— Deveria? — Sua pergunta era genuína, eu vi em seu rosto. Afinal,
Renan não fora o único beijo da noite, nem o primeiro cara a ficar obcecado
por ela. Brenda demoraria para entender o estilo de vida monogâmico e
emocionado de Renan. Demoraria bastante.
Respirei fundo.
— Brenda — comecei, tocando seus ombros e tentando não ser injusta
com ela. Eu conhecia a minha amiga, e sabia que se ela suspeitasse que
aquilo me machucaria, ela nunca teria feito. — Vocês se beijaram. Não
lembra? — questionei, com um pouco mais de amargor do que eu pretendia,
apesar da minha intenção nobre. Para a minha sorte, ela não notou.
Uma luz se acendeu em seu cérebro. Vi quando ela apertou rebobinar, e
retornou à festa. Ao beijo. Ao momento em que destruiu todas as minhas
chances com o meu “melhor amigo”.
— Ah! — exclamou, encarando-me, ligeiramente chocada. — É
mesmo, teve um beijo. Faz sentido então.
Pois é, Brenda!
Pigarreei, desviando o olhar. Ela não fez por mal, porém, mesmo assim,
era difícil. Eu realmente achava que estava apaixonada por Renan. E quem
poderia me culpar? Eu ainda não sabia com o que a paixão realmente se
parecia.
— Quer dizer, na verdade, não faz sentido não! — Pensou melhor. —
Foi só um beijo, por que ele...
Sua fala foi interrompida pela metade quando um vulto deu de cara com
nós duas.
— Opa. — Andressa surgiu do nada, quase batendo de frente.
Ela virou a esquina equilibrando uma coxinha e um Guaravita,
surpreendendo-se ao nos encontrar ali.
As escadas ficavam vazias na hora do intervalo, quase todo mundo
vegetava em volta da cantina. Eu preferiria estar lá a ter aquele
interrogatório bizarro com a minha melhor amiga, óbvio, mas eu não tinha
escolha.
— Oi, Andressa! — Brenda foi a primeira a falar, chamando a atenção
de Andy, que estava com o cabelo preso em um rabo de cavalo alto e
brincos de argola enormes.
Eu já havia notado antes, mas, naquele instante, me parecia mais claro,
como seu rosto havia mudado com o tempo. Havia afinado, e seus cabelos,
escurecido. Andressa era parecida com Renan, mas não muito. O tom de
pele dele era mais claro e seu queixo mais quadrado. Ele era mais parecido
com o pai. Tio Batista tinha os cabelos lisos e a pele tão branca que meu pai
o chamava (esteriotipicamente, eu sei) de “europeu”. Nascido no Rio de
Janeiro, foi encontrar tia Diana no interior da Bahia, em uma viagem de
férias, quando eles tinham vinte e um anos. Pois é, a história dos dois era
digna de um livro. Apaixonaram-se nas férias, cultivaram um
relacionamento de ponte aérea e se casaram três anos depois que
começaram a namorar. Tia Diana saiu da casa de seus pais para vir morar
com ele no Rio de Janeiro. Tiveram seus dois filhos aqui. Mas, enquanto
Renan sugou muitas características físicas de seu pai, Andressa puxou os
lábios, a delicadeza e a simetria de sua mãe. Tia Diana era negra, de pele
clara. Andy também. Seus cabelos eram da mesma cor dos dela, cacheados
e compridos. Para não dizer que tio Batista passou em branco, ela tinha o
sorriso do pai, além das mesmas pintinhas espalhadas pelo rosto. Tudo nela
parecia conversar bem, e impactar, como uma peça de teatro. Em resumo,
ela já era bonita na adolescência, o quão injusto é isso?
— Você acabou de interromper uma muito particular discussão sobre o
seu irmão — dedurou Brenda, cruzando os braços e a encarando.
Brenda e Andressa se conheciam porque compartilhavam alguns amigos
em comum. Não eram próximas, mas tinham certa intimidade. Saíam juntas
para alguns lugares e se cumprimentavam pelos corredores. No fim, não era
grande coisa, Brenda tinha uma pequena intimidade com quase todo mundo
daquele colégio.
— Quer subir? — Abriu espaço e eu a imitei. Andy sorriu fraco.
— Aham. Mas, antes, você me lembrou. Mila! — Virou-se em minha
direção e eu tive que me segurar para não recuar.
Mila.
Depois daquele dia na cozinha, achei esquisito quando ela me chamou
daquele jeito, mas um esquisito bom. Andy pronunciava meu apelido de
uma forma sonora, animada e cativante. Eu notei que gostava.
— Eu tinha que falar com você.
Desde a conversa que tivemos, tínhamos nos visto pouco. Eu andava
evitando passar mais tempo do que o necessário com Renan, o que diminuía
ainda mais as vezes em que a dava “boa tarde”. Por isso, me surpreendi
com aquilo, me surpreendi bastante. Passamos rápido da fase do “não
conversamos” para “eu tinha que falar com você”.
— Eu? O que foi? — Ela não demorou para dizer:
— Então, é sobre Renan. — Claro que era sobre ele.
Aquilo me murchou um pouco, não vou mentir. Andressa era uma
pessoa interessante, tenho certeza de que todo mundo achava aquilo. O tipo
que atraía atenção, mesmo sem se esforçar. Ela parecia saber exatamente o
que dizer, e como agir, em todas as situações. Eu tagarelava demais,
compartilhava mais do que devia e sempre acabava me arrependendo do
que eu falava. Quase sempre nessa ordem.
— Ele faz aniversário na próxima semana e minha mãe tá organizando
uma festa. É surpresa. Você gostaria de ir?
— Claro!
Não sei por que respondi aquilo tão rápido. Talvez porque eu estivesse
tentando manter meu teatro, e seria estranho se eu não fosse ao aniversário
do meu (precisava começar a dizer isso sem aspas) melhor amigo. Ou talvez
porque eu simplesmente nunca tivesse gostado de dizer não para Andy.
Ela sorriu com a minha resposta.
— Legal! Se você quiser, pode ir também, Brenda.
Ela assentiu com a cabeça.
— Tá bom. Valeu.
Então ficamos em silêncio. As três. Brenda com os braços cruzados,
Andressa com a coxinha na mão e eu engolindo uma vontade absurda de
sair correndo e retirar o que eu disse.
Que merda, eu não queria ir à festa surpresa de Renan! Ainda o estava
evitando! Mas eu me torturava. Tudo porque não conseguia ser sincera e
confessar o que eu realmente sentia.
— Então tá. — Ela suspirou, um pouco desconcertada. Não a culpo,
Brenda estava com uma carranca quilométrica. — Vejo vocês lá! Agora,
preciso mesmo subir. — Abrimos caminho e ela sorriu. — Valeu. — Passou
por nós carregando seu lanche e eu a acompanhei se afastar.
Andressa usava uma camiseta de uniforme dois números acima do seu.
Ficava tão larga que a manga chegava aos seus cotovelos. Sempre me
perguntei como aquilo ficava bem nela quando o que eu mais queria na
época era que o meu uniforme fosse dois números menores. Coisa que,
claro, ninguém deixou.
Ela virou à esquerda e sumiu de vista. Cruzei os braços, voltando a
minha atenção à minha amiga, que me encarava de volta com a testa
franzida.
— Que foi?
Estudou-me por alguns segundos, desconfiada, antes de cruzar os braços
e dizer:
— Nada. Eu acho... — fez mistério por mais alguns instantes até que
resolveu mudar de assunto. — Me escuta, Cami, sobre o que estávamos
falando antes... — Segurei a vontade de revirar os olhos. — Se tiver algum
problema, por menor que seja, nessa história toda com Renan. Promete que
me fala? Eu faço ele parar com essa gracinha dele rapidinho.
Inspirei profundamente, me irritando.
Por que tudo tinha que ser sobre Renan?
Eu não aguentava mais aquele nome, e ainda teria que o ouvir pelo resto
do dia inteiro.
— Tá tudo bem, Brenda. Juro. Eu não sei por que vocês acham que eu
me importaria com isso. Agora chega. Me deixa comer em paz?
Ela pensou por alguns instantes, prolongando o momento por alguns
torturantes segundos, até enfim ceder. Estendeu a palma da mão em minha
direção e eu sorri, compartilhando alguns biscoitos e selando nosso acordo
de paz. No fim, as coisas com Brenda se amansaram muito antes que com
Renan. Com ele, eu só consegui agir normalmente depois que passou sua
festa de aniversário. Muitas coisas mudaram a partir de então.
CAPÍTULO TRÊS. A FESTA
DE ANIVERSÁRIO.
Exatamente uma semana depois de ser convidada para a festa surpresa
de Renan, eu estava batendo na porta de sua casa, vestindo um macaquinho
rosa, carregando um saco de balões em vários tons de verdes e um presente,
que minha mãe havia comprado.
Era um livro. Renan gostava de ler, enquanto eu não lia nada. Minha
mãe fez o favor de passar no shopping, depois de seu trabalho, e comprar
um dos que as vendedoras a recomendaram, uma vez que eu não me
esforcei muito para fazer o mesmo. Não queria ir àquela festa. As coisas
com ele ainda estavam esquisitas e eu continuava o evitando, o máximo que
conseguia.
Renan, diferente de Brenda, não notou a estranheza nos meus atos. Era
desligado o suficiente para acreditar que eu tinha passado uma semana
inteira preocupada com a prova de física (novamente, eu não tinha
dificuldade nenhuma com física) e com dor de cabeça.
Nos momentos em que eu era obrigada a conviver com ele, eu fazia
meu máximo para soar normal. Ele me comprava pipoca na saída e eu
sorria ao me despedir da carona. Felizmente, estávamos em semana de
testes e havia poucas coisas em dupla para me incomodar. A única
preocupação era a maldita festa, que se aproximava rápido e que eu gostaria
de poder evitar.
Brenda não iria comigo, e eu meio que agradecia por isso. Ainda estava
confusa e, mesmo que tentasse negar para mim mesma, guardava caquinhos
de ressentimentos.
Estava melhor do que uma semana antes. Certamente, a fase do luto
havia passado, mas então eu vivenciava algo novo: revanche. Verdade seja
dita, eu ainda não estava pronta para ver os dois juntos no mesmo cômodo.
Especialmente quando eu sabia que era isso que Renan queria. Havia certo
orgulho egoísta em mim, que se alimentava do fato de que Brenda o
esnobava. Era maldoso e injusto, mas eu ainda estava ressentida o suficiente
para me alegrar com isso.
Eu precisava seguir em frente, abrir mão daquela parte de mim que
acreditava estar apaixonada por ele. Renan não sentia o mesmo e eu tinha
que me acostumar com aquilo, só que estava duelando contra a perda. Era
ruim perder todo o sentimento. Como eu já disse antes, eu gostava de estar
apaixonada, e ter que fingir não sentir nada quando eu sentia tudo era
simplesmente desesperador para uma adolescente com tantos hormônios
exacerbados.
Bom, contrariando todo o meu amor próprio, eu fui à festa. Quem abriu
a porta para mim foi tia Diana. Já havia alguns adolescentes jogados pelos
cantos quando cheguei, organizando os últimos detalhes. Renan retornaria
para o apartamento com Andressa e seu pai em alguns minutos. Os dois o
enrolariam no shopping até o horário combinado (clássico de festa surpresa)
e, quando ele chegasse, daria de cara com uma mesa cheia de cupcakes, um
bolo do tamanho da sua cara e meia dúzia de amigos com celulares
apontados para o seu rosto. Eu não queria ter que ser um deles, mas ali
estava eu.
Devia ter dito não. Tenho certeza que se eu não tivesse ido, ele não
sentiria minha falta. Um drama desconexo, ele certamente sentiria, mas era
isso que eu pensava, compulsivamente. Ciúmes. Insuficiência.
— Camilinha! — Tia Diana me cumprimentou, me abraçando. — Achei
que não vinha mais!
— Desculpa, tia. Meu pai atrasou pra chegar em casa. — Outra vez.
Aquela última frase eu não havia dito, só pensado.
Meu pai trabalhou até tarde todos os dias daquela semana, o que me
incomodava, mas enfurecia minha mãe. No dia da festa de Renan, eu estava
tão ansiosa pelo fato de estar ali que não tinha me tocado que um drama
maior que meu amor platônico espreitava as portas da minha casa. O fato de
o meu pai chegar tarde em casa foi o começo de tudo.
— Tudo bem, minha querida. Graças a Deus uma mulher! Não aguento
mais ter que conviver com tanta testosterona! Vem colocar sua bolsa no
quarto dele.
Eu não entrava no quarto de Renan desde o fatídico dia dos
cromossomos. Pensar em pisar outra vez lá me causou um revertério.
— Não precisa, tia! Eu fico... segurando! — Fui rápida demais na
minha resposta, o que a levou a me encarar com a testa franzida. Fui vítima
de seu olhar desconfiado e me desesperei.
Eu sabia que ela notava o distanciamento entre mim e Renan e se, por
acaso, comentasse aquilo com a minha mãe, as insinuações e suposições
começariam, então elas escavariam e descobririam que eu havia sido ferida,
o que significava que eu já havia gostado, o que era o mesmo que o fim do
mundo para mim, naquela ocasião. Foi por isso que eu emendei, comendo
as palavras:
— Eu trouxe balões!
Para o meu alívio, aquilo a fez rir. Ela aceitou o pacote estendido e a
mudança de cenário.
— Obrigada, minha querida! Agradeça sua mãe também. Manda um
beijo pra ela, e fala que eu tô com saudades dela aqui.
Sorri, simpática.
— Pode deixar.
Então eu a ajudei a encher os balões, grudando-os nas paredes e
finalizando os últimos ajustes até que desse o horário.
Seis e vinte e quatro o carro dos Batista entrou na garagem, Andressa
avisou sua mãe que estavam chegando e nós apagamos a luz. Lembro-me
de me esconder, com o peito batucando, ao lado de um menino da nossa
sala. Eu era a única amiga mulher de Renan naquele aniversário, e fui a que
menos fez barulho quando a porta se abriu.
— Surpresa! — O grito em uníssono o assustou. Ele se virou para dar
de cara com o grupinho escondido atrás do sofá. Havia um sorriso enorme
em seu rosto.
— Não brinca! — exclamou, com uma felicidade expansiva que fez
meu coração afundar. — Gente, que isso?
Aproximou-se de nós sem deixar de sorrir. Estava tão genuinamente
animado que eu não consegui não sorrir de volta.
— Camilinha, meu Deus! — Eu fui a primeira que ele abraçou. —
Muito, muito obrigado. Você é foda. Obrigado.
Agradeceu, como se eu tivesse feito algo além de sugerir a cor verde na
toalha de mesa e trazido alguns balões.
Ainda presa em seu abraço, senti meu rosto esquentar e minha garganta
secar, mas, mesmo assim, consegui dizer:
— Feliz aniversário!
Ele riu, afastando-se o suficiente para beijar o topo da minha cabeça.
— Obrigado!
Então cumprimentou os garotos ao meu lado, dando tapas em suas
costas e falando alto. Estava feliz, verdadeiramente feliz, e eu me senti uma
pessoa horrível por não estar retribuindo da mesma forma.
O problema com amores platônicos é que você não precisa de permissão
para sentir, muito menos de consentimento para continuar. Não existem
muitos limites para o que a cabeça pode criar, e é sempre muito mais bonito
que a realidade.
Eu tenho certeza de que nunca teria dado certo com Renan na vida real
(não só por causa do verde), mas era absolutamente incrível tudo que eu
fantasiava na minha mente. O que era injusto com a pessoa que existia fora
dela e com a amizade que construímos. Só que eu tinha dezesseis anos na
época e nada disso me era claro. Eu precisava deixar a paixão unilateral
com Renan diluir, porém, nunca o faria se eu não parasse de pensar nele, me
remoer e...
— Oi, Mila. — Andressa se aproximou de mim quando Renan abraçava
o último garoto da fila, roubando minha atenção de volta para a realidade.
— Que bom que você veio! — Sorriu, com as mãos no bolso.
Eu me esforcei ao máximo para sorrir de volta.
— Ah, oi, Andy! — Mirei seu rosto, notando algo de diferente e
franzindo a testa.
Ela havia colocado um piercing no septo. Uma argola, que ligava uma
narina a outra. Andressa viria a adquirir certo vício por piercings e brincos
e, como para todo o resto, eu estava presente quando ele se iniciou.
— Você não tinha esse piercing antes, tinha? — Resolvi conferir, me
distraindo ao analisar seu rosto.
Eu não era muito boa com fisionomias, Brenda costumava brigar
comigo por isso. Eu nunca notava quando ela cortava o cabelo, não percebi
nem mesmo quando fez sua primeira tatuagem. Mas, bom, aquele piercing
estava no meio do rosto da Andressa. Não tinha como eu não ver. Né?
— Não. — Riu, cruzando os braços. — Furei faz algumas horas. Meu
pai achou horrível, falou para eu tirar. Tem alguma opinião?
Pendi minha cabeça para o lado, deixando que meu olhar percorresse o
novo adorno em seu rosto. Ela se permitiu ser observada com uma pontada
sutil de divertimento nos olhos.
Andy usava uma blusa de banda branca e uma saia jeans escura. As
argolas gigantes se mantinham escondidas nos cachos de seus cabelos. Ela
não havia os alisado naquele dia, e eu os achei muito bonitos daquela
maneira. Era somente para eu opinar sobre o seu piercing, mas eu senti um
formigamento desconfortável se espalhar em meu estômago ao ter sua
atenção tão centrada em mim. Ela me analisava de volta, sei que o fazia, no
entanto tornava aquilo quase casual. Andy exalava autoconfiança e o
piercing (proibido na escola, mas que ela manteve, não sei como) era
apenas mais um símbolo de sua atitude.
— Posso ser sincera? — Ela arqueou uma de suas sobrancelhas.
— Depois dessa pergunta, definitivamente não.
Aquilo me fez rir. A primeira risada sincera desde o começo daquele
dia. Imitei-a e cruzei meus braços, sentindo o cheiro bom que vinha de sua
figura.
O perfume que usava era uma delícia. Deveria perguntar o nome?
— Eu achei lindo. Combina com você.
De fato, combinava. Andressa era o tipo de pessoa que poderia fazer o
que quisesse que continuaria linda, e eu tinha certeza de que ela sabia disso.
Mas a minha resposta não foi suficiente. Ela soltou um riso fraco.
— Tudo bem, Camila, pode ser sincera.
— Eu estou sendo sincera! — garanti, descruzando meus braços para
gesticular e reforçar meu ponto. — Ficou ótimo!
— Certo. — Manteve sua sobrancelha arqueada, em uma expressão
caricatamente desconfiada. Eu sorri.
— Tá. Agora você está implorando por elogios.
— É o que faço, em todas as oportunidades.
— Pois a minha cota de hoje já esgotou.
— Nossa. Bem escassa, eu achei.
— Mas verdadeira, que é tudo o que importa!
Andressa balançou a cabeça, sorrindo.
— Graças a Deus então! — exclamou. — Se doeu para colocar, imagino
que deva ser pior ainda pra tirar.
Mais uma vez, eu ri, me surpreendendo. Não conhecia aquele lado de
Andressa. Um lado descontraído, e que mantinha um diálogo comigo. Na
minha cabeça, Andy continuava sendo a filha da amiga da minha mãe, que
não tinha muita paciência para brincar de Barbie e que quase nunca saía do
quarto quando eu ia. Não imaginava que ela fosse divertida, não conhecia
essa característica dela. Na verdade, eu não conhecia nenhuma delas. Todas
as minhas expectativas eram baseadas em uma criança. Depois, na garota
que usava roupas muito estilosas para a época.
— Eu imagino. — Compadeci com a dor que nunca sentiria,
acompanhando-a em seu sorriso enquanto sentia a descontração esmaecer
conforme o diálogo chegava ao fim.
Eu tenho essa teoria de que a verdadeira intimidade é testada na
quietude. São poucas as pessoas com as quais você consegue ficar
confortável no mais completo silêncio. Naquele ponto, Andressa ainda não
era uma delas. Sua atenção me deixava inquieta.
Sem ter mais o que falar, me senti desconfortável outra vez, encarando o
ambiente ao meu redor e me lembrando de onde estava e porque me sentia
tão pesada sobre aquilo. Andressa me distraiu por alguns segundos, mas eu
despenquei na realidade com força.
Enquanto conversávamos sobre seu mais recente piercing, todos haviam
se dispersado. Renan havia entrado com os amigos, tio Batista e tia Diana
estavam conversando na cozinha e eu fiquei com ela e a mesa do bolo.
— Mila? — Como se notasse que eu havia me perdido para meu drama
mais uma vez, ela roubou novamente minha atenção. Encarei-a levemente
aérea. Ela continuou: — Vou pegar algo pra comer. Tô morrendo de fome.
Você quer?
Toda aquela aproximação amigável me deixou intrigada. Você sabe, já
tínhamos tido dezenas de oportunidades de sermos agradáveis uma com a
outra, mas, por três meses inteiros, foi como se preparássemos terreno.
Havia uma barreira entre nós que demoramos para atravessar. O interesse
repentino de Andressa na minha pessoa era novo, mas eu imaginava que
pudesse gostar. Ainda mais quando isso significava uma desculpa para não
ter que ficar trocando sorrisos e carícias fraternais com Renan. Voltei meu
olhar para ela.
— Quero.
Ela sorriu.
— Beleza. Volto em um instante.
Então sumiu em direção à cozinha, retornando com dois pratos cheios
de salgadinhos e estendendo um em minha direção.
Enquanto ela buscava comida para nós duas, eu havia tomado a
liberdade de me sentar no sofá. Isolada, antissocial e esquisita. O coração
partido havia me transformado em uma uva passa.
— Obrigada! — agradeci, e ela sorriu cristalino em resposta.
Foi aí que eu notei que quando ela sorria daquela maneira, seus olhos
diminuíam de tamanho, virando duas meias-luas. Eu me perguntava se era
assim desde criança. Ia pesquisar nos álbuns quando chegasse em casa.
— Então — começou. — Minha mãe pediu para te avisar que os
convidados estão lá no quarto com o Renan, e que eles estão te chamando
— transmitiu a mensagem de maneira neutra, enquanto apoiava o próprio
prato no seu colo, sentando-se ao meu lado. O cheiro de seu perfume me
alcançou novamente. — Eles estão jogando, algo assim.
Coloquei uma bolinha de queijo na boca sem responder nada.
Ah.
Tudo que eu menos queria naquela noite era ser obrigada a assistir
Renan e seus outros seis amigos jogarem na televisão minúscula que havia
em seu quarto.
Renan. Seis garotos que eu não conversava muito. O mesmo quarto no
qual ele quebrou meu coração. Um jogo de vídeo game que eu não me
importava. Não, sem chance, aquele era o pior cenário que eu poderia
imaginar. Já bastava estar ali, eu não precisava me punir tanto. Encarei
Andressa e ela me parecia muito mais segura que todo o resto. Sim, eu a
estava usando para evitar Renan, mas não era só isso. Ela era
estranhamente... agradável.
— Você vai fazer o quê? — perguntei, surpreendendo-a. Ela deu de
ombros.
— Hm. Nada.
— Quer assistir alguma coisa? — Apontei para a televisão desligada à
nossa frente. — Não tô muito a fim de jogar, não.
Minha sugestão a fez sorrir um daqueles sorrisos que esmagavam seus
olhos.
Ficou mais do que claro que ela gostou da ideia quando estendeu seu
prato na minha direção.
— Segura aqui. Vou pegar o controle. — Debruçou-se na direção do
hack e resgatou-o de debaixo de algumas revistas. Retornando ao sofá,
trocou-o pelos seus salgados. — É todo seu. Me surpreenda.
Eu certamente não a surpreendi ao escolher Capitão América: Guerra
Civil, mas eu gostava da franquia mais do que poderia ser considerado
saudável. Na minha cabeça, ela também gostaria (todos os meus amigos,
incluindo Renan, amavam), só que eu vim a descobrir mais tarde que
Andressa odiava filmes de super-heróis. O que não a impediu de passar
longas duas horas e vinte e oito minutos sentada ao meu lado, acabando
com todas as coxinhas do seu prato só para pedir as minhas e esbarrar no
meu ombro sem querer todas as vezes.
Descobri também, bem depois, que de todos os super-heróis que ela não
gostava, Capitão América era o mais odiado. O que não a impediu de fazer
piadinhas durante o filme e me perguntar coisas bobas como “quem é
essa?”, quando era A Scarlett Johansson na tela.
Nos primeiros minutos, eu me peguei acanhada. Andressa dobrou as
pernas para cima do estofado e deitou a cabeça no encosto. Não consegui
fazer o mesmo, estava travada com sua presença nada convencional e com
tudo que vinha me consumindo aqueles dias. Contudo, na primeira vez que
ela fez um comentário engraçado sobre o Homem de Ferro, eu me permiti
respirar, aproveitando um momento que eu nunca imaginei que vivenciaria,
mas que se mostrava profundamente bem-vindo.
O sofá da casa dos Batista era grande e fofo, mas eu sabia que não era
apenas isso que me deixava relaxada. Havia um senso de conforto na
presença de Andressa, era leve.
Eu a perguntei o que tinha achado do filme quando acabou, ela mentiu
dizendo que havia gostado e eu me senti orgulhosa com aquilo, como se
agradar ela fosse uma vitória particular.
No fim, como você pôde perceber, a festa de aniversário de Renan foi
bem mais interessante do que eu poderia esperar.
Quando chegou a hora dos parabéns e ele me pediu justificativas do
porquê eu não tinha aparecido para jogar, Andressa o deu um empurrão
fraco, respondendo por mim.
— Porque eu sou muito mais legal que vocês.
E eu sorri, Renan sorriu de volta e, por alguns instantes, eu consegui
apreciar o seu sorriso sem me sentir rancorosa ou envenenada. Claro que
quando ele me encarou por detrás da mesa do bolo em meio ao coro de
parabéns, eu senti meu peito tamborilar e morrer, mas só por alguns
instantes. Não me arrependia de ter ido, como imaginei que fosse o fazer.
Na verdade, a festa de Renan havia sido... o começo de algo novo.
CAPÍTULO QUATRO. O
COMEÇO DE ALGO NOVO.
Duas semanas, muitos estudos e testes de física se passaram até que
algo relevante voltasse a acontecer. E com algo relevante entenda:
churrasco de domingo em família.
Meu pai tinha essa mania, ele fazia questão que os almoços de domingo
fossem “especiais”. Teve um domingo, algumas semanas antes, que ele nos
levou para um parque, estendeu uma canga e disse que faríamos um
piquenique. De almoço. Ele organizou tudo e levou três marmitas cheias de
batata para acompanhar os pãezinhos com presunto e queijo que havia
preparado. Gabriel reclamou dos mosquitos, eu me entretive com a
experiência, mas minha mãe estava em uma dieta restritiva, então se negou
a comer qualquer um dos quitutes que ele colocou na sua frente. Lembro
claramente da fala esquisita que um direcionou ao outro: “É só um dia,
Regina”, meu pai disse. “Não é só um dia, Miguel, são vários deles”.
Spoiler: eles não estavam falando sobre as batatas, estavam falando
sobre uma viagem de trabalho que meu pai faria na segunda-feira, dia 5.
Também conhecida como: um dia depois do churrasco de domingo em
família, o qual merece ser contado aqui.
Meu pai ia viajar, ficaria fora um mês inteiro. Era a primeira vez que ele
fazia isso. As coisas iam bem no seu trabalho e ele estava em uma disputa
por um cargo importante. Clássico, mas não menos impactante. Era mais do
que óbvio que minha mãe não gostou da novidade.
Vamos falar um pouquinho sobre a minha mãe. Regina era
fisioterapeuta. Formou-se na faculdade com vinte e um anos de idade, mas
demorou a conseguir exercer sua profissão. Meus pais se conheceram
durante a graduação; estudavam no mesmo campus, em cursos diferentes.
Meu pai fazia administração, usava óculos e era insistente. Regina não
estava atrás de namorados, ou de casamentos. Na verdade, nunca foi o tipo
de mulher que sonhava com nenhuma daquelas coisas. A única coisa que
sempre afirmou querer fora filhos. Bom, cuidado com o que você deseja,
porque ela não soube usar a lei da atração com parcimônia. Eu vim cedo
demais.
Não, minha mãe nunca disse isso, só que eu sabia que era a verdade. Eu
atrasei sua vida. Engravidaram por acidente, no primeiro ano de formada da
minha mãe. Aos vinte e dois anos, ela tinha planos de abrir um consultório
com uma amiga, mas acabou montando um quarto de bebê. Meu pai vinha
de uma família com dinheiro, então, isso não foi problema. O bebê não era
problema. Apesar do susto, todos aceitaram bem a nova realidade. Tiveram
que sacrificar pouco, no final. Quem mais se sacrificou foi minha mãe
(outro clássico, eu sei).
Ela optou por ficar esse primeiro ano comigo, e o segundo e o terceiro
também. Foi só quando eu completei quatro anos que ela se sentiu segura
para me colocar em uma escolinha (ela era contra creches, achava que iam
me deixar cair, ou que eu ia pegar pneumonia, sei lá). Foi só então que ela
conseguiu tentar, pela primeira vez, iniciar sua vida profissional. Começou
atendendo em casa, e conseguiu uma clientela fiel nos primeiros meses.
Meu pai havia acabado de ingressar na empresa na qual conheceu o pai de
Renan (aquela mesma que faliu), e as coisas pareciam bem... até que
engravidaram de novo e minha mãe foi obrigada a retroceder.
As coisas sempre eram mais difíceis para as mães que trabalhavam fora.
Eles já haviam se casado na época, e o dinheiro do meu pai conseguia nos
manter. Ela não precisava trabalhar na rua, não pelo dinheiro. E meu pai
repetia isso insistentemente como se fosse a acalmar e não a fazer se sentir
ainda mais impotente. O problema era que minha mãe gostava de trabalhar
fora e só conseguiu retornar à sua profissão quando, adivinhe, meu irmão
foi para a escola! (Ela nunca superou o lance das creches). Somavam-se
bons anos desde então e, no presente, ela finalmente havia conseguido um
emprego em uma clínica de reabilitação. Não foi fácil encontrá-lo, não era
simples entrar no mercado de trabalho sendo mãe e tendo mais de trinta
anos. Mas ela conseguiu, depois de muitos nãos, e estava feliz, até onde eu
sabia.
Certo, você deve estar se perguntando: para que tanto contexto? Eu
quero saber de Andy! Acredite, eu também gosto de saber e falar sobre ela,
todos os instantes. Mas coisas ruins também aconteceram e tudo isso é
relevante. As coisas foram transcorrendo na minha vida como uma fileira
de dominó sendo derrubada. Quem deu o primeiro peteleco, infelizmente,
foi o meu pai.
O maior problema com a ausência dele por um mês inteiro era o
seguinte: ele nos levava para escola nas segundas e quartas, porque, nesses
dias, a clínica abria mais cedo e minha mãe não conseguia nos dar carona.
Só dois dias, era tudo que ela pedia, em troca de todos os restantes. Quando
meu pai a tirou isso, ela se sentiu traída.
Sua chefe já havia aberto uma exceção para o seu caso. Ela cumpria
menos horas que o restante, não tinha como simplesmente decidir que
passaria a descumprir seu horário porque seu marido considerava o seu
trabalho mais importante que o dela.
Claro, ela podia pedir ajuda para a tia Diana. E, pelo amor de Deus,
poderíamos pegar um ônibus! Mas a questão não era essa. A questão era
que, ao aceitar aquela viagem, ele deixava mais do que claro que os anos se
passaram e mesmo assim ele não se importava com o seu trabalho. Ele
ganhava mais que ela e era ele quem sustentava a casa. O serviço dela...
bom, ela poderia dar um jeito. Se o perdesse, não faria diferença na
contabilidade.
Regina estava ferida porque ele a desrespeitara. Com suas palavras e
também com suas ações. E não havia almoço de domingo em família que
pudesse consertar o rancor acumulado por tantos anos. Nem mesmo um no
qual também havia a família de Andy.
Pois bem, fique feliz, chegamos nesse ponto. Lembra que nossos pais
eram amigos? Lembra que a tia Diana disse para eu falar para a minha mãe
que estava com saudades? A rotina os havia afastado do convívio diário,
mas meu pai ia viajar, e ele os convidou para o nosso churrasco de domingo
para se despedir (e se vangloriar, um pouquinho).
Ele alugou uma churrasqueira no clube no qual éramos sócios (mas
nunca frequentávamos, para não ter que interagir com ninguém), comprou
as carnes e fez os acompanhamentos. Minha mãe não o ajudou com nada,
apenas dirigiu e, na época, não entendi o porquê de nada daquilo. Eu me
incomodei com a distância e frieza entre os dois, mas, sinceramente? Estava
ocupada demais surtando com o fato de que havia um Renan tirando a
camisa na minha frente para de fato me preocupar.
— Você não acha? — perguntou ele, retirando-me do meu transe à
força.
Eu não fazia ideia do que eu precisava dar minha opinião, mas assenti.
Não se engane, Renan ainda era um completo magricela na época. Não
havia nada de estupendo em seu abdômen. Nada além do fato de que eu
nunca tinha visto um homem tirar a camisa na minha frente (além do meu
irmão) antes. E, bom, mesmo sem gominhos (o que eu nunca gostei tanto
assim), ele era bonito. A maldita genética da família Batista, que fazia
questão de esculpir filhos perfeitos sem que ninguém tivesse pedido!
— Acha mesmo? — insistiu, o que fez eu me remexer no balanço.
Ai, porra, com o que eu havia concordado?
Estávamos em uma fase boa, eu e ele. Várias semanas depois do
ocorrido, nunca mais havíamos tocado no assunto Brenda. E, depois de
sermos obrigados a conviver tantas vezes, eu meio que me apaixonei de
novo, esquecendo-me do coração partido e de todo o resto.
Consertei a minha decepção com a boa e velha ilusão, o que era
catastrófico, mas confortável. Eu achava que gostava dele outra vez e o
havia perdoado pelo seu “deslize”. Achava que ainda podíamos dar certo.
Pois é, retornei à estaca zero. Aquela na qual eu nutria uma paixão
platônica, jamais correspondida, e secreta, pelo meu único amigo homem.
Porém, as coisas estavam prestes a mudar.
— Acho — foi o que respondi, e ele suspirou, assentindo em
concordância.
— Sinceramente, Camilinha, eu também.
Nunca soube com o que concordamos naquele instante, tudo que sei é
que ele tinha uma cicatriz na barriga, da vez em que teve apendicite, e que
era extremamente difícil encarar seu rosto quando ele estava seminu na
minha frente.
Tudo que Renan vestia era um short frouxo. Afinal, estávamos em um
clube. Com piscina, e eu em muito contato com os meus hormônios.
— Vamos entrar na água? — Superou o assunto anterior com rapidez,
para a minha sorte, jogando sua camisa branca por cima dos ombros e me
encarando.
Ele estava de pé, parado na minha frente, pronto e animado para entrar
na piscina. Sem noção nenhuma do efeito que causava em mim. Meu irmão
já estava lá desde que chegamos, e meus pais estavam juntos com os de
Renan na frente da churrasqueira. Andy estava sentada em uma cadeira de
plástico próxima a eles, mexendo no celular. Eu e meu amigo estávamos
mais distantes, no parquinho que havia na lateral. Conversávamos
tranquilamente nos balanços, até que ele resolvesse que estava muito calor,
tirasse a camisa, e me fizesse perder todas as minhas faculdades mentais.
— Depois — retruquei. — Tô com fome. — O que era verdade, mas
também uma desculpa. Sentia meu rosto quente, e não era só por causa do
sol.
— Vamos lá roubar carne então — sugeriu, com um sorriso, afastando-
se na direção da churrasqueira e não me dando escolha alguma além de o
seguir.
Renan era alto. Quando éramos crianças, ele era o mais baixo de nós,
mas a puberdade já o havia socado naquele ponto e ele tinha pelo nas
pernas, a altura de uma porta e as costas bonitas. Eu sempre gostei de
costas, essa é uma confissão esquisita sobre mim, e as dele me distraíram
por um bom tempo. Fui as seguindo até que ele se aproximasse de
Andressa.
Ela não havia tirado o piercing do nariz, caso você esteja se
perguntando, e estava tão vestida quanto eu, com uma camiseta preta e short
jeans. A única diferença é que a minha blusa era rosa, e eu não parecia tão
desconectada da realidade.
Andressa estava concentrada em seus dedos, digitando uma mensagem
de texto apressada. Eu assisti de camarote quando seu irmão se aproximou
sorrateiro. Tinha um plano infantil em mente, algo que sempre aflorava
quando estava perto dela.
— Ei. Sai dessa porcaria, sua viciada! — gritou, puxando de súbito, o
celular de suas mãos. Ela reagiu de imediato.
— Para, Renan! — exclamou. — Ei! Me devolve. É sério. — Tentou
impedir, mas ele não a ouviu, sequestrando seu celular às gargalhadas e o
carregando junto consigo enquanto se aproximava de seu pai.
Andressa bufou, aceitando a derrota e largando seus braços sobre suas
coxas. Eu fui abandonada ao seu lado, ouvindo-a confessar ao vento:
— Caralho. Ele é um idiota.
Havia uma travessa cheia de carnes apoiada na mesa à sua frente, o que
me foi tentador. Precisava me afastar um pouco de Renan para conseguir
respirar, então me sentei ao seu lado, roubando uma linguiça enquanto
dizia:
— É mesmo.
Eu estava rindo da situação, porém, ela me encarou com uma irritação
tão genuína que eu fechei a cara imediatamente.
Andressa sempre foi muito expressiva. Sua testa marcava quando ela
estava confusa e seus olhos entregavam coisas que ela não queria dizer.
Eu notei que ela estava diferente naquele dia, afastada. Desde que
chegou, manteve-se jogada na cadeira e grudada em seu celular. Eu
imaginei que, depois de termos sido agradáveis uma com a outra na festa de
Renan, poderíamos interagir mais. Na verdade, estava contado com isso.
Mas parecia que eu havia rebobinado tudo naquele dia. Minha paixão por
Renan e minha falta de interação com sua irmã.
Tudo na minha vida tinha que ser platônico? Sério? Até mesmo as
amizades?
Depois de me encarar verdadeiramente incomodada por ter tido seu
celular roubado, ela inspirou profundamente, fechando os olhos por alguns
instantes e cruzando as pernas por cima da cadeira. Fitei-a confusa.
— Andy, o que foi? — arrisquei, sentindo-me verdadeiramente nervosa
por estar forçando contato com ela. Nas outras vezes, foi ela quem iniciou o
assunto, e em momentos nos quais eu estava bem mais receptiva. Só que ela
parecia preocupada, e eu nunca a havia visto assim antes. Aquilo me
intrigou. — Tá tudo bem?
Minha pergunta a pegou de surpresa, deu para notar. Ela abriu os olhos,
voltando-os em minha direção e soltando todo o ar de uma vez.
— Tá. Não é nada. — Remexeu-se. — Desculpa, é que aconteceu uma
coisa. Com uma amiga.
— Sua amiga tá bem?
— Tá. Mas eu acho que ela me odeia.
Franzi minha testa.
— Por quê?
Andy soltou um sorrisinho.
— É... bom — parou de falar, balançando a cabeça. — É complicado.
Complicado.
Confabulei milhares de coisas que uma amiga poderia fazer para que
você a odiasse. Certamente, beijar seu amor platônico não era uma delas,
porque eu nunca odiei Brenda.
— Você tava conversando com ela, né? — deduzi. Ela assentiu.
— Tava.
— Quer que eu pegue o celular de volta pra você? Eu com certeza sou
capaz.
Aquilo a fez rir.
— É, tenho certeza que você conseguiria, mas acho melhor não. — Deu
de ombros. — Talvez seja um sinal.
— De quê?
— De que é melhor eu deixar ela me odiar.
Uau.
— Nossa! — exclamei. — Eu tô realmente curiosa. O que você fez de
tão terrível, Andressa Batista?
Aproximei-me, sentando-me sobre meus joelhos. Ela riu outra vez e eu
me permiti a acompanhar. Parecia ligeiramente menos tensa, mais próxima
a Andy que me recebeu no dia da festa. Aquilo me motivou a continuar:
— Se você quiser me contar, claro.
Ela jogou as costas no encosto, pendendo de leve sua cabeça e me
encarando. Andressa tinha uma mania incômoda de mirar. Quando ela
falava comigo, olhava nos meus olhos, e fazia com que todo o resto
parecesse no mudo por alguns instantes. Ela era a distração perfeita para
todas as vezes que eu queria fugir de Renan. Naquele instante, eu sequer
lembrava que ele tinha costas!
— Estou aqui.
Fiquei confusa.
— Como assim? — Roubei mais uma carne, entretida com sua história.
— Você tinha combinado de sair com ela?
— Não.
Certo, eu estava muito confusa. Mas parecia que eu não devia estar (??).
Andressa me olhava como se estivesse sendo clara, como se fôssemos
cúmplices. Só que ela escrevia em códigos.
— Qual o problema de estar aqui então?
Ela não me respondeu, apenas desviou o olhar, com um sorriso
melancólico no rosto.
Ficou mais do que claro que ela não queria falar sobre aquele assunto,
então não a pressionei mais. Porém, com aquela escolha altruísta,
entrávamos de novo naquela porcaria de situação. O silêncio constrangedor
de duas pessoas sem intimidade. Aquele que eu não sabia manter.
Não sabia se havia ultrapassado alguma linha com todas aquelas
perguntas, tampouco se havia estragado tudo. Ter um dia de atenção
exclusiva de Andressa foi algo que me agradou. Conversar com ela era
divertido, havia um senso de desconhecido atrelado à sua personalidade,
algo como uma aventura. Então eu precisava testar, para ver se havia
estragado tudo, porque notei naquele instante que aquela possibilidade me
incomodava.
— Você não vai entrar na piscina? — perguntei, como se nada tivesse
acontecido. Ela voltou a me olhar, dando de ombros.
— Sinceramente, Mila? Eu nem trouxe biquíni.
— Podemos ficar na borda então — insisti. — Eu também não tô muito
a fim de molhar meu cabelo. Lavei ontem.
Andressa inspirou profundamente, ponderando enquanto desviava seus
olhos para seus pais e irmão mais à frente. Fiz o mesmo. Renan conversava
com o braço ao redor do ombro de sua mãe, enquanto a minha cortava uma
linguiça. Em algum ponto, meu pai tirou mais algumas da grelha,
aproximando-se para jogá-las na tábua que ela usava. Ao se aproximar, a
deu um beijo na cabeça, sussurrando algo em seu ouvido. Ela sorriu,
cabisbaixa. Um sorriso que combinava com o de Andy. Não era um sorriso
comum, de um dia bom. No entanto, ela não o afastou, o que era positivo.
Era uma trégua, para o que quer que estivesse havendo.
Quando Andressa voltou a falar, as coisas pareciam certas outra vez.
— Pode ser então.
E foi assim que o churrasco de domingo em família terminou. Comigo
sentada na borda da piscina, Andressa do meu lado e meu irmão e Renan
nadando na frente da gente. Engraçado que quando ela estava do meu lado,
ter um garoto seminu nadando crawl não me chamava tanto a atenção. Tudo
que eu pensava era no que ela poderia ter feito para aquela amiga odiar tê-la
ali.
CAPÍTULO CINCO. QUANDO
MEU PAI VOLTOU DE
VIAGEM.
Ter passado um dia agradável na piscina com Renan e Andressa foi bom
por dois motivos: 1) foi um dia agradável com Renan e Andressa na
piscina e 2) deixou minha mãe feliz.
Contei um pouco sobre ela, mas aqui vai uma coisa igualmente
importante: minha mãe adorava a Andressa. Sim, ela gostava de Renan.
Inclusive, gostava dele comigo. Mas ela ADORAVA a Andressa. E ficou
especialmente feliz por nos ver juntas, conversando e “criando laços”, como
ela tão poeticamente eternizou naquele dia. Ter presenciado a nossa
"aproximação" foi quase uma distração perfeita para o fato de que meu pai
tinha viajado algumas horas antes. Por isso, eu permiti que ela tirasse
conclusões e achasse que éramos melhores amigas então, quando eu nem
sabia o que éramos. “Conhecidas de infância que conversavam
descontraidamente quando tinham oportunidade” era um bom palpite.
— Ela é legal, não é? Eu sempre disse! Vocês eram tão amigas...
Não, não éramos. Brincávamos juntas por conveniência e porque nossos
pais obrigavam, mas Andressa nunca gostou das mesmas coisas que eu. Foi
fácil perder o contato uma vez, e parecia estar se tornando fácil de novo.
Naquele dia do churrasco, Andy demorou um tempo, mas se recuperou
da situação com a amiga, voltando a fazer piadas aleatórias sobre a forma
como seu irmão era ignorado pelo meu. Gabriel tinha onze anos de idade, e
uma falta de paciência senil. O pobre do Renan era animado demais para
ele e a interação entre os dois era engraçada de se acompanhar. Estávamos
nos divertindo bastante, com os pés dentro d’água e os joelhos quase se
tocando.
Andy se sentou com as costas curvadas, mas parecia leve como uma
pluma. Contou sobre seu amor pela natação e se lembrou (para a minha
surpresa), que havíamos feito aulas juntas. Pois é, aparentemente, ela não
tinha se esquecido por completo da minha presença em outra fase da sua
vida. Aparentemente, eu não passava tão despercebido assim e aquilo
amansou meu ego, não tenho como negar. Aquilo me fez sorrir. E quando
eu sorria, ela sorria mais. E quanto ela sorria mais, eu também queria o
fazer. Era um ciclo. Um ciclo bobo... inédito, mas, aparentemente,
inevitável.
Andressa fazia jus à fama que tinha. Ela era cativante, e eu entendia
perfeitamente bem porque minha mãe a adorava. Como alguém poderia
sentir o contrário? Que amiga era aquela que a odiava? Eu não conseguia
entender, ela me parecia a pessoa mais fácil de gostar que eu conhecia.
Em resumo, conversamos bastante naquele dia. Sobre natação, escola e
o fato do meu irmão estar crescendo rápido. Ela pegou meu número e me
mandou um “oi” para que eu pudesse salvar o seu. Depois disso, no entanto,
ninguém falou mais nada por um bom tempo. Imergimos em nossas
próprias realidades e preocupações.
O período que meu pai passou fora foi mais tranquilo do que eu
imaginei. Minha mãe não se estressava tanto e Gabriel se mostrou
ineditamente prestativo. Passou a lavar a louça do jantar (antes,
responsabilidade do meu pai) e me cobrava para que eu arrumasse o quarto
que dividíamos. Era como se ele tivesse se sentido o homem da casa. Era
irritante, mas, tirando isso, as coisas correram bem.
Nas segundas e nas quartas (os dias do conflito), tia Diana levava e
buscava a mim, Renan e Gabriel na escola. Acho que não mencionei antes,
mas Andressa não nos acompanhou mais a partir de junho. Estava fazendo
aulas à tarde, em um cursinho disponibilizado na própria escola, para passar
na faculdade.
É, pois é, havia isso nas suas costas. Ela estava no último ano do ensino
médio, e nos encaminhávamos para as férias de meio de ano. O que
significava que ela começaria a estudar com mais esmero (e pressão) a
partir de então, e que não me deu mais tanta abertura por um tempo.
Ficamos afastadas até que julho chegasse.
Dia 5 de julho as coisas na minha casa mudaram. Meu pai voltou de
viagem.
Depois de um mês fora, trouxe uma mala com presentes e um sorriso no
rosto. Estava confiante de que ia conseguir a promoção, a viagem foi um
sucesso, ele estava corado, alegre e renovado. Trouxe com ele um monte de
histórias divertidas, que retirou risadas sinceras minhas e de Gabriel. A
única coisa que se esqueceu de trazer de volta foi a sua boa relação com a
minha mãe.
Naquele mesmo dia, eles brigaram de madrugada. Eu ouvi, e acho que
Gabriel também, apesar de fingir estar dormindo.
A primeira briga foi no dia de sua volta, a outra, no dia seguinte.
Discutiam sempre de madrugada, quando achavam que já estávamos
dormindo e não presenciaríamos o fato de que eles não conseguiam mais
chegar a um consenso. Nós ouvíamos tudo, no entanto e, se não o
fizéssemos, certamente perceberíamos seus comportamentos estranhos
durante o dia. Minha mãe estava estressada e brigava conosco por qualquer
coisa. Meu pai se mantinha mudo. Ia trabalhar e, quando voltava, perdia a
língua, apenas nos dando um beijo de boa noite. Nenhum em minha mãe.
Notávamos o distanciamento, e aquilo estava me corroendo. Claro que
Brenda percebeu.
— Cami, eu odeio quando você esconde as coisas de mim. — Um dia,
quando estávamos lanchando juntas, ela disse, e eu me retraí. — Mas tudo
bem, tome seu tempo. Eu estou aqui para quando precisar.
Fingi que não precisei por um bom tempo. Não queria falar sobre
aquilo, nem mesmo com a minha melhor amiga. Queria esconder e esperar
passar. Mas o problema é que não passava nunca! E foi piorando, até que
chegássemos na fatídica sexta-feira e eles se despedissem com um beijo
para ir para o trabalho.
Sim, é isso mesmo que você leu. Um beijo para ir para o trabalho,
depois de quase uma semana se alfinetando. Foi naquele dia que eu
consegui tomar um fôlego para continuar.
Nem tinha percebido, mas o céu parecia mais cinza e o vento mais
quente. Tudo isso foi consertado em instantes por aquela cena inesperada.
Um beijo. Um sorriso. Eles haviam feito as pazes. Tinha passado. As coisas
iam melhorar!
Eu quis acreditar nisso, e talvez seja por isso que a ideia me tenha
descido com tanta facilidade. Foi como se um peso tivesse sido tirado das
minhas costas, só que não completamente. Sabe quando você carrega uma
mochila pesada e alguém a levanta para te ajudar a levar? Foi mais ou
menos isso que aconteceu. O beijo levantou a mochila, mas ela ainda estava
lá, pronta para me nocautear no pulmão a qualquer instante. E eu sempre
soube, lá no fundo, que uma hora ou outra, ela o faria.
— Camila, aconteceu uma coisa muito estranha agora há pouco. — No
mesmo dia do beijo de café da manhã, Brenda entrou falando no banheiro.
Eu estava lavando as minhas mãos, ainda pensando em como meus pais
tinham feito as pazes e tudo voltaria a ser perfeito, quando ela surgiu, de
súbito.
Nossas salas ficavam lado a lado e, de vez em quando, ela monitorava
os momentos em que eu pedia para ir ao banheiro para ir junto. Matávamos,
pelo menos uma vez na semana, um pouco da aula conversando em frente
ao espelho; até que alguma monitora nos mandasse de voltar para a sala.
Geralmente, Brenda fazia isso quando queria fofocar sobre alguma coisa.
Naquele dia, ela achou um assunto urgente para me interceptar.
— O quê? — quis saber, curiosa, enxugando minhas mãos com o papel.
Para a minha felicidade, ela nunca foi de fazer mistério.
— Então, tem uma galera combinando de se encontrar hoje à noite na
casa do Rafael — fez uma pausa antes de continuar, estalando a língua e se
justificando: — Eu não te convidei porque eu sei que sua mãe não deixa e tá
tudo bem, isso não importa. Eu te amo independente de resenhas idiotas.
Você é mais que tudo isso.
— Certo — interrompi-a com um sorriso no rosto.
Brenda, no começo da nossa amizade, tentou me levar para “o mau
caminho”, como minha mãe tão carinhosamente apelidou a sua vida. Tentou
me enturmar, me convidando para as matinês que ia e para as festas do
pijama que frequentava. E bom, eu queria ir, como toda boa adolescente,
mas Regina nunca deixou.
Lembra que eu disse que ela gostava de Andressa? Era meio que o
contrário com Brenda. Minha mãe não era a sua maior fã desde que ela
recebeu uma advertência da escola por ter ido para a aula bêbada. O que
minha mãe não sabia, no entanto, era que quem a havia dado aquela bebida
(e depois a levado para a escola) havia sido seu pai, em uma tentativa nada
honrável de criar laços com a filha que só fazia questão de ver uma vez a
cada dois meses.
Bom, independente de seus motivos, Brenda tinha uma liberdade
absurda. Uma a qual nunca tive na minha vida. Minha mãe não gostava de
festas com bebidas, nem me permitia ir, por mais que eu pedisse. Minha
melhor amiga sabia disso e, depois de um tempo, para que eu não me
magoasse, ou criasse problemas, parou de me chamar. Estranhamente,
aquilo funcionou. Eu me sentia menos idiota não sabendo.
Até aí, nada novo. Por isso, cruzei os braços.
— E o que tem de estranho nisso? — Ela explicou sem demora:
— Então, quando eu confirmei no grupo que eu ia, Andressa Batista me
chamou no privado para perguntar se você ia também.
Deixei meu queixo cair.
— Quê?
— Pois é! — Gesticulou. — Essa foi a minha exata reação!
Franzi minha testa, sentindo um nó estranho no estômago.
— Ela já perguntou de mim antes?
— Ela nunca perguntou de ninguém antes, Cami. — Deu de ombros. —
Pelo menos, não para mim.
Certo, aquilo era mesmo estranho. Fazia um tempo que eu não
conversava com Andressa. Como eu disse, ela estava estudando, e eu em
meio a uma erupção familiar. Então, nem mesmo quando eu estava disposta
a ir para a sua casa, eu a via. Era no mínimo esquisito que ela perguntasse
de mim. Encarei Brenda por alguns instantes antes de perguntar:
— E o que você respondeu?
— Como assim o que eu respondi? Que não, claro. Mas fica tranquila
que eu não falei pra Andressa do lance da sua mãe nem nada do tipo.
Uma luz se acendeu na minha cabeça. Minha mãe. Andressa. Na mesma
frase. Na mesma situação.
— Andy vai então? — perguntei, deslocadamente. Brenda não estava
acompanhando meu raciocínio.
— Aonde?
— Nessa resenha.
— Vai.
Cruzei meus braços, a encarando. Depois do beijo de bom dia entre
meus pais, o mundo ganhou saturação e eu me sentia capaz de tudo.
— E você acha que vai ser boa?
— Eu acho que sim. A galera é legal e o apartamento dele é enorme.
Tem um visual lindo e... — Parou de falar, desconfiada. — Por quê?
Sorri.
— Eu tive uma ideia.
Brenda percebeu a malícia em meu sorriso, então sorriu de volta,
mesmo sem entender.
— Que ideia, Camila Ferraz?
— Vou tentar uma coisa com a minha mãe. Te aviso se der certo.
CAPÍTULO SEIS.
ABENÇOADA SEJA
ANDRESSA BATISTA.
Deu certo!
Nada surpreendentemente, eu usei Andressa (de novo) para benefício
próprio. Mas, pelo menos, não tinha nenhuma relação com Renan daquela
vez (orgulhe-se de mim). Tinha a ver com a minha vontade repentina de ser
uma delinquente e quebrar as regras. Depois que Brenda me contou, eu
decidi que queria ir naquela resenha, e aquela era a oportunidade perfeita.
Sempre me perguntei o que me esperava naquele tipo de ambiente, me
sentindo "atrasada" por não o frequentar. Tinha a ideia utópica de que era
ali que as coisas realmente aconteciam, e de que eu estava perdendo todas
elas porque minha mãe não me deixava ir. Em sua defesa (e eu vou parar de
defendê-la no futuro), eu tinha dezesseis anos. Era menor de idade e,
tecnicamente, o que faziam nessas resenhas (ingerir bebida alcoólica) era
ilegal para a minha idade. Mas, bom, você sabia que na França é ilegal
batizar um porco com o nome de Napoleão? Isso me leva a perguntar: o que
realmente são as leis?
Sim, essa era a minha desculpa para querer frequentar um lugar com
práticas ilegais. Os porcos franceses.
— Mãe, posso te pedir uma coisa? — foi como eu comecei, assim que
cheguei da escola, com o plano em mente e o coração acelerado.
Então pedi. Pedi pela décima vez para sair em uma noite de sexta-feira
para a casa de um (ela não sabia disso) desconhecido. O único detalhe
diferente daquela vez era que eu mencionei Andy. Aquele era o ponto
chave. Foi aquilo que me salvou. Abençoada seja Andressa Batista.
Regina estava mais compreensiva naquele dia. O beijo de bom-dia
também a causou certo efeito e a sua garota favorita fez o resto do trabalho.
— E você vai com a Andressa? — conferiu, com a sobrancelha
arqueada, depois que eu a pedi.
— Sim! — Mentira número um. Apesar de aparentemente querer (e
pensar naquilo me deixava confusa), Andressa não sabia que eu ia. Ainda.
— E vocês vão como?
Merda.
— De uber! — Mentira número dois. Eu havia acabado de inventar isso.
— E vão voltar como?
— De uber também — Mentira número três.
— E Diana sabe?
— Claro que sabe.
Certo, isso eu não sabia se era mentira ou verdade. Achava que era
verdade. Tia Diana nunca pareceu impedir Andressa de sair para lugar
nenhum e, algumas vezes, até incentivava que eu e Renan saíssemos juntos;
coisa que nunca fazíamos. Renan não gostava muito de festas e eu, você
sabe, não poderia gostar.
— É um lugar tranquilo, mãe. Pelo amor de Deus!
— É na casa de quem mesmo?
— Rafael. É da escola.
— E os pais dele vão estar em casa?
— Claro! — E aí veio a mentira número quatro (ou cinco). Pelo que eu
sabia, Rafael fazia as resenhas propositalmente quando eles viajavam e ele
ficava só com o irmão (um inconsequente de vinte e três anos).
Nossa, eu era uma garota má! Estava eletrizada pela minha capacidade
maligna, mesmo que soubesse que não faria nada demais quando estivesse
lá.
Minha mãe pensou por um tempo. Por um bom tempo. Ponderou todos
os prós e os contras, mas a presença de Andressa era decisiva e o bem
venceu.
— Tudo bem, Camila. — Tive que me segurar para não dar pulinhos de
alegria. — Mas eu quero você de volta em casa antes das duas da manhã.
— Claro, claro!
Então eu fui correndo para o quarto, peguei meu celular e avisei Brenda
que eu iria. Ela não acreditou, me ligando para confirmar o fato de que eu
não havia sido substituída, e me lembrando do meu outro problema.
— Caramba, você só pode estar de brincadeira — riu. — Santa
Andressa!
— Santa Andressa — repeti, ainda incrédula.
Andressa era simplesmente a solução para todos os meus problemas.
Por que eu não havia pensado nisso antes?
— Você vai e volta com ela então? — questionou, do outro lado da
linha, o que me fez travar por alguns instantes. — Ela vai ficar feliz, hein,
tava querendo sua presença... Eu ainda não entendi bem. O que tá
acontecendo entre vocês?
Não escutei sua última pergunta, focando no fato de que, pois é, eu
havia contado para minha mãe que ia e voltaria com Andressa e ela nem
sabia disso. Para o meu azar, Regina era o tipo de mãe que conferiria a
minha história e ela era amiga da mãe de Andressa, o que significava que
poderia facilmente descobrir minha cadeia de mentiras e nunca mais me
deixar sair de casa.
Fiquei desesperada.
— Tenho que falar com ela — disse a Brenda, antes de desligar, abrindo
o aplicativo de mensagens e buscando seu nome.
Salvei como Andy, e, quando entrei na conversa, senti meu coração
acelerar.
A última mensagem havia sido há meses. Um “salvei seu contato”
idiota. Perdi a coragem e larguei o celular. Depois, me repreendi por aquilo.
Que isso? Eu não era do tipo que tinha ansiedade social por mensagem. Eu
tinha amigos online desde a época do Stardoll! Eu era incrível trocando
mensagens. Incomparável.
Camila 14:45h: Oi, Andy. Tudo bem? Aqui é a Camila!!
Na verdade, se ela não quisesse me ajudar, não estava tudo bem. Estava
tudo péssimo. Mas eu tinha que me mostrar tranquila em relação àquilo e, lá
no fundo, eu de fato estava. Afinal, era para Andressa que eu estava
pedindo ajuda e eu tinha uma certeza crônica, irresponsável e sem
explicações de que ela não me deixaria na mão.
Andy 15:02h: hahahahaha
Andy 15:02h: atrapalhar pq?
Andy 15:02h: claro, conta comigo
Camila 15:09h: Última coisa: sua mãe sabe que você vai?
Brenda 20:09h: Nada demais. Só meu pai. Prometo que ta tudo bem, só
não to no clima. Amanhã a gente conversa. Não vou estragar seu
grande momento!!
Engoli em seco.
Meu Deus, eu nem havia saído.
— Vai embora — sugeriu Ana, ao notar a brancura em meu rosto. — Eu
acho elas.
— Eu não vou largar Andressa desaparecida!
Henrique tentou apaziguar:
— Gente, vocês estão surtando à toa. Elas só devem ter ido pra casa da
Gabi.
Encarei-o com a testa franzida.
— Quê? Onde é a casa da Gabi?
— Aqui do lado. Apartamento 1405.
Porra. Por que ele não tinha dito aquilo antes?
Trotei, sem esperar por Ana, em direção à porta pela qual eu havia
chegado, peregrinando pelo corredor atrás do apartamento 1405. Não
precisei o encontrar, contudo, para dar de cara com Andressa. Na verdade,
para trombar de frente com ela.
— Opa. Foi mal — disse, entre risos, se afastando de mim. Estava viva,
saudável e corada. Quis a estapear por isso. — Mila? O que...
— Eu estou te procurando faz pelo menos uns vinte minutos, Andressa!
Onde você estava?
— Eu? — se surpreendeu com a minha recepção nada amigável. — Eu
estava... por aí.
— Por aí?
— Mila? — começou, receosa. Aproximando-se lentamente de mim,
como quem tenta controlar uma fera que acabou de sair da jaula. Suas
sobrancelhas estavam arqueadas. Ela carregava a porcaria de uma expressão
inocente e eu, um hipopótamo na minha garganta. — O que houve?
Percebi que ela realmente não entendia o porquê da minha patética
cena, o que me irritou profundamente.
Ela estava com Gabi, eu sabia disso. Em seu apartamento. Fazendo
sabe-se lá Deus o quê. E, por causa disso, eu não chegaria em casa a tempo.
Ela havia descumprido a promessa mais importante que havia me feito
naquela noite. Havia estragado tudo, mas, bom, ela não tinha obrigação
nenhuma.
Não era sua culpa que eu tivesse me metido na sua noite e estipulado
horários. Tudo bem que ela havia prometido que voltaria comigo antes das
duas, e eu não ia abandoná-la sumida, mas a minha frustração, o verdadeiro
motivo dela, não era culpa sua.
Não era culpa sua que eu estivesse tão esgotada por ficar dias sem
dormir porque meus pais não paravam de discutir. Não era culpa sua que eu
tivesse abandonado minha mãe chorando em casa. Eu estava brava com ela
por ter me trocado por Gabi, por ter se esquecido do nosso combinado e por
me fazer decepcionar minha mãe, mas eu também estava fazendo uma cena
e me senti pior ainda ao notar aquilo.
— Nada — foi o que eu disse, me sentindo uma grande idiota. Quem
era eu para cobrar algo dela? Ela possivelmente me achava a garota mais
surtada do mundo. — Deixa pra lá.
Dei as costas. Ela me seguiu.
— Quê? Mila? — Segurou meu pulso, me forçando a voltar a encará-la.
— O que houve? Você tá brava comigo?
Senti meu celular tremer em meu bolso e deduzi ser minha mãe. Só ela
me mandaria mensagem uma hora dessas. Já deveriam ser duas da manhã e
eu não havia chegado em casa porque Andressa havia sumido. Com a Gabi.
Senti uma vontade súbita de chorar, me esforçando ao máximo para
evitar aquilo.
Pelo amor de Deus, só faltava eu chorar na frente dela.
— Não tô brava — menti. Ela descartou minha mentira com um aceno
de cabeça.
— Óbvio que tá. — Ainda segurava meu pulso e eu sentia seus dedos
como chapas ferventes. Ela ficava mais aberta ao toque físico quando bebia,
vale ressaltar. — O que eu fiz? — suplicava por uma explicação, sentindo-
se culpada por algo que sequer entendia. Eu soltei todo o ar de uma vez. As
lágrimas se aproximavam e o aperto no meu peito se tornava maior.
— Você viu que horas são? — Ela não precisou conferi-las para
entender. Para lembrar. Vi o entendimento tomar conta de seus olhos como
neblina em um dia de sol.
A culpa deixou seu rosto mais opaco e eu me senti horrível por isso. Por
ter me metido na sua noite, feito uma cena e depois a estragado.
— Mila...
— Me desculpa — quase implorei, desvencilhando meu pulso às
pressas. — Desculpa — pedi mais uma vez, me virando de costas. Ela não
desistiu.
— Camila, que isso? Eu que tenho que me desculpar. Eu que esqueci da
droga do horário! — Não respondi nada, caminhando pelo corredor vazio
como estivesse em uma novela das nove.
Não consegui segurar mais, as coisas transbordaram, e as lágrimas
chegaram aos meus olhos junto com uma mensagem no meu bolso traseiro.
Andressa deu uma corridinha em minha direção.
Agora as duas faziam uma cena.
— Mila. Ei? — tentou mais uma vez, se metendo na minha frente. Fui
obrigada a parar de andar e a odiei por aquilo. Desviei o olhar, tentando
disfarçar o estúpido fato de que eles estavam marejados. Andressa me
analisou. — O que realmente está acontecendo?
— Nada. Eu só tô cansada.
— Você não tá cansada, você tá chorando — retrucou, o que me fez
chorar mais. As lágrimas escorreram de maneira dramática. Eu só queria
cavar um buraco, entrar nele, e nunca mais sair.
— Droga, Andy! Eu não estou brava com você, tá bom? Você só tava se
divertindo, em algo que eu me convidei para estar. Não tem nada a ver com
você.
— Tem a ver com o que então? — perguntou, cautelosamente, e eu me
calei.
As lágrimas escorriam pelo meu rosto em uma intensidade que eu não
conseguia controlar. Eu estava exausta. Eu estava arrasada.
— Mila? — abaixou seu tom, me encarando de perto. Tocou meu ombro
e eu gelei. — Por favor, fala comigo. — Encarei-a de volta por alguns
instantes.
Seus olhos me transmitiam uma mistura de serenidade e preocupação.
Eu estava me sentindo um lixo. Eu precisava falar com alguém.
— Eu não quero ir pra casa — confessei o que nem eu mesma entendia.
O que vinha me corroendo por dentro e que eu não queria que se tornasse
real. O que eu escondia de Brenda, e de mim. — Meus pais, eles estão
brigando e eu... Eu prometi pra minha mãe que ia chegar antes das duas. Eu
só não queria... — Dei de ombros. — Decepcionar ela também, sabe?
Então algo esquisito aconteceu. Andressa me abraçou.
Sem me dar espaço para recuar, ela colou seu peito no meu, o que me
paralisou por alguns instantes. Eu nunca a havia abraçado antes.
— Eu não fazia ideia, Camila. Sinto muito — disse, apoiando a cabeça
no meu ombro e tomando conta de todo o meu espaço pessoal.
Senti o cheiro bom do seu perfume, o ardido do álcool e um senso de
cumplicidade que eu necessitava. Aquilo abaixou minha guarda, me
fazendo ceder.
Andressa nunca rejeitou ou minimizou minhas emoções, nem mesmo
quando elas eram barulhentas e aquilo era profundamente significativo para
mim.
Passado o choque, eu me dei por vencida e aceitei o gesto, envolvendo
meus braços em suas costas e afundando meu rosto em seus cabelos. Eles
também eram cheirosos. Deus, como ela conseguia cheirar tão bem no final
de uma resenha?
Cuidadosa, ela apoiou uma das mãos em minha cabeça, acariciando-a
com tanta delicadeza que eu tive que me segurar para não chorar ainda
mais.
Pois é, tomem cuidado. As coisas vão sair. Talvez nos piores momentos
possíveis.
Andressa aproximou sua boca de meu ouvido e sussurrou:
— Vai ficar tudo bem. — E eu acreditei. E eu quis acreditar. Então a
apertei mais.
Eu me sentiria horrível depois. Envergonhada, exposta. Mas aqui vai
uma coisa que aprendi com o tempo: não há vergonha nenhuma em ser
vulnerável. Pelo menos não perto das pessoas certas.
— Andy? — Depois do que me pareceu uma eternidade, eu arrisquei.
— Oi?
— Me desculpa. — Senti o vento quente que saiu de seu sorriso.
— Só se você parar de pedir desculpas.
— Meu Deus, o que houve? — Ouvi a voz de Ana, mas não levantei
minha cabeça para ver.
Já bastava que Andressa tivesse que presenciar toda aquela cena, eu
morreria se existisse uma plateia. Profundamente envergonhada, me
encolhi. Andy me apertou com mais força, respondendo por nós:
— Nada, Ana. Pode deixar que a gente já vai.
Felizmente, Ana entendeu a deixa, voltando para dentro do apartamento
e nos largando sozinhas outra vez. Eu apreciava aquilo. Muito mesmo.
Tentei me soltar, mas ela não deixou, descendo sua mão para as minhas
costas e as afagando com delicadeza. Seu abraço era aconchegante e ela me
forçou a aceitá-lo até que eu conseguisse me acalmar, deixando sair todos
os restos do que ainda era apenas um embrião.
— Deus, eu me sinto uma idiota — confessei, depois que consegui
limitar a tsunami em meus olhos. Andy riu.
— A única idiota dessa história sou eu.
— Eu não queria mesmo estragar sua noite — repeti, desvencilhando-
me rápido, antes que ela tentasse me impedir outra vez.
A consciência retornava e eu me sentia acovardada por toda aquela
situação patética.
Pois é, eu não acredito até hoje que eu chorei no ombro de Andressa
Batista na primeira vez que saímos juntas. Menos ainda que aquilo não a
tenha afastado. Mas a verdade é que se eu me sentia culpada, ela se sentia
mais. Andressa odiava a ideia de ter me feito chorar, mesmo que o choro
não fosse somente sua culpa.
— De verdade, eu tô... uma bagunça — Tentei sorrir, levando uma das
mãos aos olhos. Foi só então que eu me lembrei que eu já estive, em algum
momento daquela porcaria de dia, maquiada.
Puta merda.
— Eu tô toda borrada, não tô? — me preocupei, mas Andy apenas
sorriu, usando seu polegar para limpar o que eu imagino que fosse uma
mancha de rímel (nunca quis saber).
O toque sutil de seu dedo em meu rosto me causou um arrepio. Não sei
como viveria a partir de então, com tanta vergonha dentro de mim.
— Não mais. — Sorriu delicadamente, recolhendo seus braços. Havia
melancolia em seu sorriso e compreensão em seus olhos. — Escuta, eu sou
seu passe-festa, não sou? Então me deixa consertar isso.
Franzi minha testa.
— Como?
— Vamos usar minha arma secreta.
Então ela pediu meu celular emprestado (o dela estava quase
descarregando) e ligou para tia Diana. Enquanto eu ainda fungava,
humilhada, Andy traçou um plano com sua mãe.
A desculpa era que eu havia ido para a casa dela e já havia chegado há
muito tempo. Andressa havia tido uma má digestão (da comida inexistente
que nos serviram naquela resenha) e eu a levei, heroicamente, para casa.
Acabei me esquecendo de avisar, mas ia dormir lá. Minha mãe não gostava
que eu dormisse na casa dos outros, e resmungaria sobre aquilo, mas pelo
menos não saberia da verdade. Pelo menos eu não precisaria voltar para
casa naquele dia. Poderia adiar meu retorno à realidade. Poderia terminar
aquela noite bem. Ao lado da garota com a qual eu havia surtado, claro.
— Sua mãe concordou com essa história sem noção? — perguntei,
enquanto Andressa me devolvia meu celular e me explicava o que eu tinha
que dizer. Sim, a história da indigestão. Sim, era loucura.
— Camila, você conhece nossa querida Diana Batista. — Sorriu. — Ela
já está mandando uma mensagem nesse instante pra sua mãe, contando essa
"história sem noção".
— Ela não vai cair nisso.
— Acredite, minha mãe sabe ser convincente.
— Era mais fácil só… contar a verdade.
Andy franziu a testa, provocando:
— Que eu estraguei tudo?
Cruzei os braços.
— Não essa verdade. — Ela sorriu fraco, depois suspirou.
— Mila, eu fiz a merda, então me deixe resolver.
Guardei o meu celular no meu bolso, sentindo que as lágrimas haviam
secado e que eu gostaria muito de rebobinar aquela parte da noite, mas não
o que veio depois.
— Tá — desisti de lutar contra, notando que Andy não desistiria fácil.
Além do mais, nada poderia ser pior do que já havia sido. — Tudo bem.
— Obrigada! — ironizou, petulante, mas não havia nada de arrogante
em seu rosto. Na verdade, Andressa parecia composta, como se nada tivesse
acontecido. Era sua tentativa de fazer eu me sentir menos patética. Não
estava funcionando. — Agora, precisamos passar em um lugar antes de ir
pra casa. Tudo bem por você?
Arqueei minha sobrancelha.
— Que lugar?
Ela sorriu.
— Você vai gostar.
O "lugar" misterioso de Andressa era o Burger King.
Aquela era sua tentativa louvável de me alimentar, me distrair e me
fazer abrir mão da cara sofrida que eu havia incorporado ao meu rosto.
Depois de tudo que aconteceu, eu me sentia triste, envergonhada e cansada.
Ela estava determinada a mudar aquilo.
— Peguei isso para você! — exclamou, enquanto apoiava a bandeja
com os nossos lanches na mesa à minha frente, pescando uma coroa de
papel. — Vem cá — pediu, debruçando-se para pousá-la na minha cabeça.
Eu me aproximei, encabulada, aceitando o adorno com uma energia
nada equivalente. Ela estava muito feliz para quem terminava a noite
comendo um sanduíche de carne falsa depois que eu molhei sua blusa com
lágrimas.
Deus. Como chegamos àquilo?
— Uau.
Jogou-se na cadeira a minha frente, encarando-me como um pintor,
orgulhoso de sua obra. Eu tinha certeza que eu era um rascunho feito por
um recém-nascido naquele instante.
— Ficou majestosa em você — garantiu, teatralmente, puxando seu
hambúrguer e o desembrulhando. Acompanhei sua movimentação com o
olhar, sem tocar no meu.
Depois que Andy decidiu que eu dormiria na sua casa e me convenceu a
mentir outra vez para a minha mãe, entramos no apartamento de Rafael para
buscar nossas coisas e nos despedir de todos. Andressa me garantiu que
meu rosto não estava inchado, mas eu duvidava da veracidade daquilo.
Afinal, Ana me olhou com tanta pena que eu me senti um cachorro de rua.
Despedimo-nos com um abraço, Henrique bagunçou de leve meu cabelo
e Andressa se manteve ao meu lado, chamando o carro. Fez mistério por
todos os cinco minutos que nos separaram da lanchonete, tratando o fato de
que pedimos um fast food no meio da madrugada como um jantar de gala.
Eu não sabia demonstrar, mas me sentia muito grata por aquilo.
— Andy — foi como eu comecei a falar, assistindo-a morder um pedaço
de seu sanduíche. Ela me encarou enquanto mastigava. Seus cabelos
estavam embaraçados e eu não conseguia acreditar que havia me metido no
meio deles para chorar. Puta que pariu. Continuei: — Eu me sinto uma
completa idiota e acho que nunca mais serei capaz de olhar para a sua cara
de novo quando amanhecer.
Ela engasgou ao tentar rir, me encarando com seus olhos expressivos. O
piercing em seu nariz cintilava graças à luz amarelada que pendia no centro
da nossa mesa. Estava sentada na minha frente, e me chutou sem querer.
— Foi mal… Por que só "quando amanhecer"?
Dei de ombros.
— Porque agora você tá bêbada e eu torcendo muito para que você
tenha amnésia.
— Eu não tô bêbada, Mila. Nem tenho amnésia. Sinto lhe informar.
— Você tá bêbada, sim.
— Não estou, Camila, só estou feliz.
— Depois que eu destruí sua noite?
Ela balançou a cabeça, em negação.
— Pare de ser tão dramática, pelo amor de Deus! Você não destruiu
nada, eu prefiro estar aqui, para ser honesta. Estava morrendo de fome.
Era claro que ela estava mentindo.
— E você quer dizer pra mim que não está bêbada?
Aquilo a fez suspirar.
— Por que é tão difícil de aceitar que eu gosto de passar um tempo com
você?
Então voltamos àquilo. Às coisas que ela dizia e que me afetavam sem
que eu entendesse o porquê. Parece que um abraço em meio a um break
down nível Elena Gilbert não era o suficiente para acabar com aquilo. Puxei
uma batata antes de responder, com sinceridade:
— Porque... sei lá. A gente se fala de mês em mês, em situações nas
quais somos obrigadas a interagir. E porque você estava com os seus
amigos enquanto a gente mal se conhece.
Ela negou com a cabeça.
— Ah, dessa parte eu discordo. Eu te conheço! Por exemplo. — Ajeitou
suas costas antes de continuar. — Eu sei que a sua cor favorita é rosa.
Soltei uma risada sincera.
— Não é não. É azul.
— Droga. — Ela me fitou por alguns incômodos segundos até dizer: —
Você sabe a minha?
Peguei outra batata, só para ter uma desculpa para desviar o olhar
enquanto refletia sobre aquilo. Eu não fazia a menor ideia. A cor que eu
mais a via usar era preto, então, esse foi meu palpite. Quando ela assentiu,
eu arregalei meus olhos, surpresa.
— É sério?
Andy riu.
— Não. Eu só não queria perder no argumento. — Ri de volta, sem
conseguir me segurar. Queria que minha melancolia e vitimismo durassem
mais tempo, mas era impossível com aquela porcaria de garota ali, fazendo
o seu máximo para dissipar meus dias ruins. — É amarelo.
Amarelo era uma boa escolha. Eu gostava desse lance de simbologia de
cores, e amarelo significava “felicidade”. Parecia adequado a ela, por mais
que ela basicamente só usasse cores sóbrias. Pensando bem, acho que cores
favoritas não têm que necessariamente estar na sua paleta de coloração
pessoal.
Eu a encarei por alguns instantes enquanto refletia sobre tudo aquilo
(com tudo aquilo, leia-se: pensava demais sobre um fato idiota como a cor
favorita de alguém) e ela retribuiu. Retribuiu de uma maneira que me
deixou desconfortável, mas corajosa, nas mesmas proporções. Eu me
remexi na cadeira antes de dizer o que eu achava que havia superado, mas
que reverberava na minha cabeça.
— Eu posso te perguntar uma coisa e você vai me prometer que vai
esquecer dela amanhã? Selecione como uma das memórias que a bebida vai
obrigatoriamente varrer.
— Esquecerei por completo.
Inspirei, apoiando meu antebraço na mesa e dizendo:
— Por que você perguntou pra Brenda se eu iria hoje?
Não sei de onde veio aquilo, mas era algo que eu precisava saber. Era
simples, mas vinha me corroendo, assim como todas as coisas simples que
vinham dela. E eu sentia que era o momento certo para perguntar. Havia
boas doses de casualidade e companheirismo entre nós. Eu tinha uma
necessidade doentia de macerar aquilo. Andressa mordeu mais um pedaço
de seu sanduiche antes de me responder.
— Ela te contou isso, foi?
— Contou.
Assentiu, sorrindo sozinha para o seu pão e deixando a pergunta pairar
no ar por alguns instantes.
— O que você achou do Henrique? — Depois do que pareceu uma
eternidade em tratamento de silêncio, foi o que retrucou. Arqueei uma das
minhas sobrancelhas.
— Andressa Batista — a repreendi, tentando soar descontraída. — Por
que você está mudando de assunto? — Ela riu, irônica.
— Porque eu acho que você já sabe a resposta pra sua pergunta.
Aquilo me paralisou.
Eu sabia?
Ela me encarou, estudando a minha reação, e foi a pior possível.
Toda vez que Andressa abria uma brecha, eu a fechava às pressas.
Reticências que se tornavam pontos. Sinais que eu fingia não ver.
Eu senti um frio na barriga significativo. Um daqueles que não era
equivalente a uma vergonha comum, sentida por uma pessoa qualquer. Um
dos que não dava mais para ignorar. O que era aquilo? Por que ela estava
fazendo essas coisas comigo?
Desesperada e profundamente incomodada, fui obrigada a falar a
primeira coisa que passou pela minha cabeça:
— Ah, eu achei Henrique bem bonito, e parece muito gente boa. —
Pigarreei, sentindo como se houvessem espinhos na minha cadeira. — Ele
me pediu em casamento. — Ri, um pouco forçada, e ela riu de volta, mas
seu sorriso foi esvaziando aos poucos.
— É, eu vi. Você não vai comer? — Apontou para o sanduiche intocado
na minha frente. Eu engoli em seco.
— Pode pegar, se quiser.
No fim, ela de fato o pegou. Eu não consegui comer mais nada, me
sentindo remexida. Andressa agiu normal e eu a imitei. No entanto, havia
um desconforto intrínseco às nossas ações, não tinha como negar.
Que resposta era essa que eu sabia?
Foi ali que eu abri o portal, passando a me questionar coisas que nunca
havia de fato me questionado antes. Como o motivo de ter me incomodado
por Andressa estar com Gabi parte da noite ou de gostar tanto de Orange is
The New Black (eu assistia escondida no meu celular, e nunca contei, nem
mesmo a Brenda, que eu o fazia).
Bom, eu viria a descobrir em breve. Depois, ignoraria a verdade por um
bom tempo.
CAPÍTULO DEZ.
COMPORTAMENTO
HETEROSSEXUAL.
Quando chegamos à casa de Andressa, todos estavam dormindo, menos
tia Diana, que nos aguardava (e ao lanche que Andy comprou para ela) com
um sorriso no rosto.
Ela me cumprimentou com um abraço apertado e um beijo no topo da
cabeça, o que me fez sentir uma falta tremenda da minha mãe, além de uma
profunda e dilacerante culpa. Eu estava fugindo dela e da situação com o
meu pai, era uma covarde e não fiz nada para mudar aquilo, apenas fugi
mais.
— Eu deixei toalha no banheiro e os lençóis a postos. Já arrumei a cama
pra vocês. Agora, vou comer isso aqui e dormir, porque estou morta.
Andressa se aproximou dela e a deu um beijo na bochecha. Tia Diana
sempre ficava acordada até que Andressa chegasse em casa. Não a proibia
de sair para nenhum lugar, sua única exigência era que ela não bebesse. Pois
é, Andy era um pouco rebelde nesse quesito, contudo, pelo menos (eu
acho), ela nunca extrapolou. Tanto que eu sabia que ela jamais se esqueceria
das coisas que haviam acontecido naquela noite. Ela não havia bebido o
suficiente para aquilo e realmente não era de ter amnésia.
— Brigadão, mãe. Mesmo.
Era claro que Tia Diana sabia. Que ela bebia, no caso. E eu sei que elas
já discutiram sobre aquilo algumas vezes, mas nunca soube direito como as
linhas eram traçadas e quais eram os limites dos combinados entre as duas.
Tudo que sei é que Andressa tinha a mãe que eu sonhava em ter, porque
nunca estamos satisfeitos com as nossas e porque a minha me decepcionaria
bastante um tempo depois.
— Boa noite, meninas. — Tia Diana, a mãe ideal, que fazia planos com
a gente e permitia que Andressa saísse de casa nos desejou. — Sonhem com
os anjinhos.
Ah, se ela soubesse...
Encaminhamo-nos para o quarto de Andressa e eu me peguei
desconfortável ao perceber que a cama que ela tinha arrumado para nós era
a de Andressa e só. Uma cama de casal para nós duas. Aparentemente, as
regras com Renan não se aplicavam a ela. Afinal, ela fechou a porta sem
pensar duas vezes e nos lacrou sozinhas ali dentro, com uma cama para
dividir.
Vantagens, tinham que haver algumas.
— Você se mexe muito? — questionou, aproximando-se de uma
cômoda no canto e apoiando sua bolsa logo em cima. Eu nunca havia
entrado no quarto da Andressa adolescente e não disfarcei ao analisá-lo.
Ela disse que gostava de amarelo, mas não havia nada dessa cor pelos
cantos. Seu quarto, na verdade, seguia seu guarda-roupa. Era bastante
monocromático. As paredes eram brancas, o armário tinha as portas de
espelho e não havia quadros pendurados, apenas prateleiras. Sua cômoda
era o maior ponto de cor. Eu a reconhecia, costumava ficar no quarto de
Renan quando éramos pequenos. Era de madeira escura e, em cima dela,
havia vários porta-retratos. Encarei-os, me deparando com meia dúzia de
Andressas, em fases diferentes de sua vida. Nossa, não havia uma
minimamente ruim. Ela sempre foi desonestamente linda e eu agradecia
todos os dias por não termos nos “reconectado” quando eu estava passando
pelos meus catastróficos e traumatizantes treze anos.
Em metade das fotos, Andy estava com Renan, ou com seus pais. Em
uma dela, no entanto, estava em um grupo com vários amigos, sentados em
um gramado. Henrique estava na foto, assim como Gabi.
— Caso sim, vou ter que te fazer dormir na sala — continuou a falar,
me encarando com os braços cruzados.
O que estava fazendo com Gabi e por que não quis me contar?
Eu nunca fui a maior fofoqueira da história, mas, da vida de Andy, eu
queria saber. Tudo sobre ela me parecia intrigante.
Engoli em seco, tentando agir com casualidade, como ela fazia,
superando todos os acontecimentos anteriores e fingindo zero
constrangimento por estar em seu quarto me questionando sobre a sua vida
pessoal enquanto estávamos prestes a dividir a mesma cama. O plot
perfeito, eu sei.
— Seria mais educado se você se oferecesse para dormir no sofá —
provoquei em retorno, balançando a cabeça para me livrar dos pensamentos
intrusivos. Não era da minha conta o que ela fazia com Gabi, nem porque
ela estava em um porta-retratos no seu quarto. — Eu sou a visita.
— Mas a cama é minha. — Revirei os olhos e ela sorriu, estendendo o
braço em minha direção. — Ok, é brincadeira. Vou ser uma boa anfitriã. Me
dá aqui — se voluntariou para pegar a minha bolsa.
Meu celular estava silencioso. Aparentemente, minha mãe havia
acreditado na história maluca e ido dormir. Eu sabia que ela não havia
gostado, mas o que importava era que havia funcionado. E só havia
funcionado porque envolvia Andressa e sua mãe. Elas eram terreno neutro.
Pelo menos costumavam ser.
— Posso pôr aqui? — O “aqui” ao qual se referia era em cima da
cômoda, ao lado de suas fotos bonitas. Da foto de Gabi. Assenti.
— Claro.
Virou-se para apoiá-la, em seguida, abriu uma das gavetas e me
estendeu um pijama.
— Mas e ai? — insistiu, enquanto eu o aceitava. Ela havia escolhido o
único azul que tinha.
— E ai o quê?
— Você se mexe ou não? — Sorri.
— Não, Andressa.
— Ótimo. Porque eu sim.
Então ela tomou banho primeiro, retornando com cheiro de morango e
devidamente trocada. Usava uma blusa branca larga de Game of Thrones e
um short curto por debaixo. Toda a sua perna estava à amostra, então não
me culpe por ter que narrar a visão que tive.
Andressa era mais alta que eu apenas alguns centímetros, só que suas
pernas eram esguias, o que a dava a aparência de ser bem maior. Ela tinha
insegurança quanto aquilo, vim a saber no futuro, quanto ao fato de ser (na
sua cabeça) magra demais. Mas eu te confirmo, leitor (e você deve acreditar
na sua narradora), suas pernas finas sempre foram deslumbrantes, assim
como ela.
Eu estava sentada na ponta de sua cama, rolando de um lado para o
outro a tela do meu celular quando ela voltou de banho tomado, pernas de
fora e cabelos presos no topo de cabeça. Usava meias, mesmo que estivesse
calor, e a casualidade de toda aquela situação me deixou desconfortável
mais uma vez.
Pelo amor de Deus, o que estava havendo comigo? Era isso que as
meninas faziam quando dormiam uma na casa da outra? Surtavam por
dividir a mesma cama? Eu não sabia, eu nunca havia experimentado nada
daquilo antes!
— Peguei um sabonete e uma escova de dentes pra você. Estão em cima
da pia, junto com a toalha. — Apontou, sendo uma ótima anfitriã, como
prometido, enquanto eu estava agitada o suficiente para não conseguir
retribuir.
— Tá bom. Minha vez então — disse, ansiando sair dali e respirar.
Entrei no banho e me queimei com a água quente. Andressa deixou o
chuveiro na temperatura perfeita para cozinhar um frango (ela sempre fazia
isso). Mas tudo bem, eu me permiti ser cozida por alguns instantes,
torcendo para que a água me amortecesse, pelo menos por um tempo.
Estava estranhando a mim mesma. Estranhando todos os
acontecimentos, desde o começo daquela noite. Mais especificamente:
minha reação a todos eles.
Perceba que muitas coisas mudaram. Dentre elas: eu estava em sua casa
e, até então, não havia surtado a respeito de Renan. Lembra dele? O amor
da minha vida! Pois é, ele evaporou rápido como veio. Só foi preciso
algumas horas em uma resenha e uma briga terrível entre meus pais.
Deus. Eu precisava de uma boa noite de sono, para acalmar o que havia
fora do lugar. Precisava lidar com as novidades que me estapearam. Afinal,
parte delas, eu escolhi ter. Devia arcar com as consequências dos meus atos,
e a minha estratégia para lidar com isso era fingir casualidade. Sim, esse era
o meu plano sempre. Fingir.
Fingir que eu não estava confusa ao voltar ao quarto carregando a
toalha, sem fazer ideia de qual devia ser seu destino. Fingir que não me
incomodava por ter que me deitar ao lado de Andressa, debaixo da mesma
coberta fina e com a distância de uma régua entre a gente. Fingir que não
havia sentido quando ela esbarrou em mim ao se virar para o seu canto.
Fingir casualidade ao dormir fora (coisa que eu não fazia nunca), com
Renan no quarto ao lado, minha mãe enganada em casa e meu pai sabe-se
Deus onde. Fingir que eu estava bem e normal, quando não me sentiria
assim por um bom tempo.
A minha sorte era que, como você sabe, eu fingia bem. E meu
fingimento digno de Oscar me fez conseguir pegar no sono. Você ansiava
por isso, mesmo sem saber, porque é aí que a parte mais interessante desse
capítulo começa.
E a segunda:
Eu tinha digitado “beijos”, mas apaguei. Aquela palavra era meio que
um gatilho quando vinha atrelada a ela. Meu coração bateu acelerado até
que ela respondesse.
Parei debaixo de uma árvore, segurando uma agenda como se ela fosse
um escudo e mandando uma mensagem desesperada para Brenda.
Minha melhor amiga não havia passado naquele ano, e teve que
enfrentar um ano de cursinho para tentar uma faculdade pública (estava fora
de cogitação sua mãe pagar uma particular). Por isso, estava estudando,
assim como Renan (que ainda não tinha certeza do que queria), já fazia
algumas semanas. Ela estava sendo responsável, enquanto eu surtava
debaixo de sol quente.
Obedeci, mesmo sem entender, e foi assim que Ana Clara retornou para
a minha vida. Sim, a garota que elogiou minhas sobrancelhas e “cuidou de
mim” na primeira e única resenha que eu frequentei na minha adolescência.
O mundo, às vezes, é muito pequeno, e ela calhou de ser minha veterana.
Dez minutos depois que eu mandei minha localização, ela veio ao meu
resgate.
— Camila! — Seu abraço caloroso continuava o mesmo. — Eu estou
tão feliz que esteja aqui! Estou tão feliz que tenha escolhido esse curso!
Brenda me disse que você tá perdida, mas fica tranquila, já, já você se
acostuma. Vem, vou te mostrar a sala.
Segurou minha mão e me guiou por um labirinto a céu aberto até um
prédio bege, cheio de janelas de madeira. A primeira coisa que notei era que
quase todos os edifícios daquele campus tinham uma arquitetura clássica,
dessas que se espera encontrar em museus, misturada com parafernálias
modernas, como canos de ar condicionado. Aquele era o caso do prédio de
psicologia. O adentramos, e meu destino final era uma grande e abafada
sala. Já havia quatro pessoas sentadas nela quando eu entrei, todas tão sem
graça e deslocadas quanto eu. Felizmente, eu tinha Ana. Ela tornou toda a
minha adaptação muito mais simples.
Minha primeira aula da faculdade inteira era de sociologia. Eu odiava a
grade do primeiro semestre, mas os resumos de Ana me salvaram quando
eu estava em desespero, ou simplesmente... ocupada demais para estudar.
— Você não veio na recepção dos calouros, né, sua sem graça? —
brigou comigo com seu jeitinho doce, sentando-se na cadeira da minha
frente e sorrindo.
Ana Clara estava um pouco diferente da última vez que nos
encontramos. Seus cabelos estavam mais curtos e seu rosto mais ovalado.
Sua receptividade, no entanto, se mantinha intacta. Ela sempre me tratou
como se fôssemos melhores amigas e, talvez por isso, eu sempre me senti
profundamente à vontade ao seu lado.
— Mas pelo menos na calourada você vai, né?
— Não sei... — retruquei, ainda profundamente sem jeito. — Eu não
sou muito de festas.
Na verdade, minha mãe não era e, como você sabe, eu a obedecia.
— Ah, mas nessa você precisa ir. É tipo um rito de passagem! Você já
perdeu o trote! — argumentou, levando aquilo mais a sério do que
necessitava.
Acontece que aquilo era realmente importante para Ana. Ela fazia parte
da organização da calourada, da recepção de calouros e de tudo mais que
pudesse se enfiar. Atlética, monitoria. Se fosse possível, ela estaria
coordenando aquela faculdade. Ana tinha facilidade em interagir com
pessoas e talento em tudo que se propunha a fazer. As amigas de Brenda
eram muito parecidas com ela, eu era o único patinho feio.
— Vai ser na sexta. Começa às seis, só um pouco depois do seu último
tempo. Você tem anatomia, eu acho. Confere aí. — Conferi e era verdade.
Como ela decorou aquela merda? Eu nunca decorei minha grade. Até o
fim do semestre, tinha que olhar que aula eu teria no dia seguinte, para
pegar as folhas certas do fichário.
— Eu tô na organização desde cedo e você pode ficar comigo assim que
sua aula acabar. A gente tá se esforçando e vai ser muito boa mesmo, Cami!
Você pode ficar só um pouco, não precisa ir embora tarde! — Ela me olhou
com olhos de cachorrinho abandonado. — Vamos? Por favor, por favor.
De primeira, eu disse que ia pensar, só que era mentira. Eu sabia que
não iria. Porém, a semana foi passando e eu fui amolecendo.
Passei os dias me esforçando para me realocar naquele novo ambiente
(meu primeiro impacto foi quando eu descobri que eu não precisava pedir
para ir ao banheiro. Bastava levantar e sair!), começando a interagir e a
fazer amigos. Naquele primeiro semestre, minha turma se tornou um órgão
unificado e todos iam naquela calourada. Foi aquele consenso que me
pressionou. Eu me senti tentada, induzida, curiosa, então, na sexta-feira,
mandei uma mensagem pra Brenda, quando faltava uma hora para o meu
tempo acabar.
Já naquela primeira semana, minha rotina com a minha mãe começou a
ser inconveniente. Ela não me deixava pegar ônibus (ônibus eram
perigosos, tinham assaltos). Então, ela me levou e me buscou de carro todos
os dias — menos na sexta. Na sexta, eu perguntei a Brenda o que deveria
fazer.
Ela conhecia minha mãe, me conhecia, e sabia dos prós e contras da
minha presença naquela festa. Só que se ela me conhecia, eu a conhecia em
retorno e sabia qual seria sua resposta. Quando mandei aquela mensagem,
eu já estava cedendo; sua fala foi apenas a desculpa que eu precisava. Eu
necessitava que alguém tomasse a decisão por mim, e ela sempre estava
disposta a assumir esse papel.
Então joguei o celular para o lado e voltei a dormir. Estava tão aérea que
não parei para refletir sobre a parte do “amigo”, nem... nada além.
Fugi dos meus pensamentos por mais algumas horas, acordando com
um Gabriel irritado, arremessando um travesseiro na minha cabeça.
— Você morreu?
Lembro-me de quando ele costumava ter voz de criança. Não era mais o
caso. Ele estava crescendo e seu tom engrossando de uma maneira
engraçada. Ele desafinava com constância, e se sentia constrangido todas as
vezes. Seu “morreu” saiu esquisito e, se eu tivesse um pouco mais de
forças, teria caçoado dele por isso.
— A gente vai almoçar. Levanta.
Obedeci, lavando meu rosto e agradecendo o fato do meu estômago ter
voltado a gostar de mim. Consegui almoçar e não senti mais enjoo até o
final do dia, o que era um grande avanço.
Viu? Eu nunca precisei de endoscopia!
Naquele sábado, minha mãe ficou resolvendo coisas do trabalho e
Gabriel (como de costume) jogando no computador. Brenda, Renan e até
mesmo Ana estavam calados. Então, eu aproveitei para passar o dia inteiro
deitada na minha cama, assistindo séries duvidosas no meu celular.
Tudo que eu queria era que meu cérebro virasse mousse. Não queria
pensar em nada, e consegui esse grande feito, até que eu enjoasse da série
que estava acompanhando e resolvesse, ingenuamente, entrar no Instagram.
Pior ideia da minha vida.
“Se algo pode dar errado, vai dar errado” é o que diz a Lei de Murphy e
é o que sempre acontecia comigo. Como ousam dizer que não existe
comprovação para essa lei quando existe esse fato: a primeira foto que
apareceu no meu feed era de @dessa.batista.
Porra. Caralho. Deus, por quê?
Acho que até mesmo o Zuckerberg tinha adquirido problemas pessoais
comigo naquele ponto.
Prendi minha respiração.
Andy era “low profile”, não tinha o costume de aparecer nas redes
sociais. O que é sexy, eu sei, e que também tornava toda aquela postagem
surpreendente. Eu tive que parar para ver.
Era uma foto dela.
Estava sentada na borda de uma piscina. Seus pés estavam dentro
d’água, enquanto ela mantinha seu tronco inclinado para trás. Uma de suas
mãos protegia seu rosto do sol, sombreando seus olhos, enquanto a outra,
apoiava o peso de seu corpo.
A foto foi tirada no final do dia, dava para notar pela tonalidade dourada
que a lapidava. Mas quem se importa com a saturação quando havia uma
Andressa de biquíni passando pelo seu feed às cinco e vinte e sete de um
sábado?
Eu juro que meus lábios secaram.
Fiquei mais tempo do que devia estacionada naquele momento.
Andressa estava com os cabelos presos em um coque e seus cachos
caíam com desleixo, para todos os lados. Usava um biquíni totalmente
amarelo. A parte de cima era um top, a debaixo pequena o suficiente para
que eu conseguisse notar que ela tinha feito uma tatuagem na bacia
também. Dei zoom com cuidado, tentando enxergar o que era, sem sucesso.
Arrastei meu zoom para o lado, fazendo o mesmo com a tatuagem de seu
ombro, de seu antebraço, na pequena cicatriz que havia no seu joelho, na
costura de seu biquíni, nas alças, em seus dedos, em seus olhos, em seu
pescoço, mãos e, quando me dei conta, havia uma boca enorme tomando
conta da tela do meu celular.
Soltei todo o ar de uma vez, liberando o zoom com o peito batendo mais
rápido.
Se você me perguntar, eu sei descrever cada detalhe daquela foto. Eu
passei horas ali.
Sei que ela estava linda, que amarelo continuava sendo a cor perfeita
para contrastar com seus cabelos e que dava para enxergar seus olhos em
meia lua, por causa do sorriso, mesmo que ela os sombreasse. Sei que seu
canino esquerdo nunca havia sido desentortado e sei que o pior de tudo
estava na legenda.
Andressa nunca se dava o trabalho de colocar uma legenda em suas
fotos. E, das cinco fotos que ela tinha em seu feed (pouquíssimas recentes),
apenas duas tinham emojis.
No entanto, daquela vez, na sua foto de biquíni amarelo, postada às
nove e trinta de sexta, havia uma frase completa.
Nada. Brenda não me disse mais nada. E com ele, não foi muito
diferente.
Minha amiga me criticava, falava que eu precisava ter mais atitude no
que diz respeito à minha vida amorosa. Pois bem, guarde esse
acontecimento e me diga: não é o sujo falando do mal lavado?
— Então, você vai? — quis saber minha anja, madrinha e veterana,
guardando sua escova em seu nécessaire e me devolvendo minha pasta de
dente.
Ela nunca se lembrava de incluir uma em sua mochila, mas eu não a
censurava por isso. Ela estava escrevendo TCC. Existe um tipo de
imunidade imputada nesse fato. Qualquer ação que ela tomasse era
completamente justificada.
— Talvez.
Talvez nada. Outra vez, eu sabia que não iria. Só não disse a verdade
para evitar que ela continuasse me enchendo de links e motivos pelos quais
eu deveria ter aquela “experiência”.
O evento sobre o qual falávamos era uma festa que ia acontecer na
sexta-feira, organizada por algumas atléticas. Segundo Ana, as festas
organizadas pelas atléticas eram boas, e eu deveria ir. Ela havia começado a
me sondar sobre o assunto no começo da semana, e tentado me convencer
aos poucos. Fui convencida, mas ainda não havia recebido o combustível
necessário para fazer aquela besteira.
Não eram necessários, na verdade, muitos argumentos. Eu queria ir.
Minha primeira festa havia acabado antes mesmo de começar e eu ainda
mantinha viva aquela ansiedade atrelada ao desconhecido. Contudo, não
teria como mentir para a minha mãe e falar que teria aula daquela vez. Que
aula do meu turno duraria até meia noite? Eu precisaria falar a verdade e
aquilo era algo que eu jamais consegui fazer. Especialmente com ela.
— Oba! — exclamou Ana, animada, puxando um rímel (sim, ela tinha
um rímel, mas não uma pasta de dentes). — Mas a Dessa vai também. Tudo
bem por você?
Travei por alguns instantes.
De onde havia vindo aquilo?
Aquela era a primeira vez que ela me perguntava sobre Andressa e,
curiosamente, não me pareceu mais seguro pedir minha permissão para
chamá-la do que simplesmente arremessá-la na minha frente.
Eu me fiz de sonsa.
— Ué. Por que não estaria?
Ana não me respondeu nada, nem sei se escutou o que eu disse. Estava
debruçada sobre a pia, com a boca aberta, atacando seus cílios com tinta
preta. Depois que maquiou um de seus olhos, soltou uma risadinha,
confessando:
— Eu já te contei que a Jéssica tinha ciúmes dela no início?
Não havia nenhum contexto para aquilo, assim como metade das coisas
que ela falava. Então me esforcei para compreendê-la.
— De quem? Da Andressa?
— É — riu. — Eu fui meio bocuda também. Não devia ter contado para
ela o que rolou entre a gente tão cedo. Mas não foi nada demais! Eu não
sabia que Jéssica era ciumenta. Ela demorou para querer dar alguma moral
pra Dessa depois disso, mas o engraçado é que hoje ela me trocaria por ela.
Veja só que irônico: eu fui o elo de ligação!
Ana demorou a dizer tudo aquilo, fazendo algumas pausas para ajeitar o
rímel. Seu suspense combinou bem com o teor de sua frase. Foi uma
incrível pancada.
— Espera. Você e Andressa já... ficaram? — perguntei, receosa, sem
realmente querer ouvir aquela resposta.
O problema era que Ana Clara não tinha muito tato. Sincericídio, já
ouviu o termo? Deve ter sido cunhado inspirado nela.
— Já. Mas faz um tempo do caralho. Eu nem conhecia a Jeh ainda!
Acho que foi na calourada dela. Foi no banheiro — riu. — A gente tava
meio bêbada, mas olha... sua amiguinha de infância tem uns truques bem
legais.
Eu juro que eu tentei disfarçar, mas minha boca secou. Meu estômago
embrulhou e eu tive que desviar o olhar. Ciúme, foi o que eu senti, quando
eu tinha zero direito.
Ana percebeu que eu fiquei apática, então desviou sua atenção do
espelho para o meu rosto, me analisando por alguns instantes até rir.
— Ah, saquei.
Pisquei algumas vezes.
— O quê?
— A gente achava que era por causa de ressentimento que vocês
ficavam se evitando. Mas não é. — Deu de ombros. — É tesão.
Senti meu rosto ficar roxo.
— Ana!
— Não fique brava comigo — se defendeu, completamente alheia ao
meu embaraço. — Faz um bom tempo, e foi só uma rapidinha.
Eu não precisava saber disso. Eu definitivamente não precisava saber
disso.
— Eu não ficaria... brava com você.
Ela riu. Riu por um bom tempo, até que cruzou seus braços e concluiu:
— Eu gostei muito de saber disso. Ela é gata pra caralho, você é gata
pra caralho. Acho que seriam um casal tão lindo!
— Ana!
— Tá bom, tá bom. Desculpa!
Fingi estar muito concentrada guardando as minhas coisas dentro da
minha mochila enquanto sentia o constrangimento esquentar meu corpo
inteiro.
— Pode deixar que eu não vou comentar mais, mas ela vai estar na
festa. E, conselho de amiga: você devia levar ela pro banheiro.
Quis sair correndo e nunca mais trocar nenhuma palavra com Ana Clara
a partir daquele instante; mas, surpreendentemente, eu não fiz isso. Pelo
contrário. Eu simplesmente larguei meus braços ao lado do meu corpo e
comecei a rir.
Havia algo muito revigorante, e igualmente desesperador, no fato de que
eu havia confessado para Brenda, dias antes, que eu sentia atração por
garotas. Era como se eu estivesse deixando sair a conta-gotas, a forma mais
indolor para alguém como eu.
Eu poderia ter insistido e negado. Fingido que não, eu não sentia
“tesão” por uma garota. Não, eu não sentia ciúmes. Não, eu não ficaria
imaginando agora, compulsivamente, como seria uma “rapidinha” com
Andy dentro de um banheiro. Eu podia ser a mentirosa de sempre, só que eu
não senti vontade de fazer aquilo. Não com Ana.
Então saímos do banheiro, e tinham duas gotinhas agora. Duas pessoas
que sabiam (em parte) da coisa mais obscura e desesperadora que eu
guardava em mim. E, olha que insano, eu ainda não havia entrado em
combustão! Pelo contrário. Eu não me sentia tão aliviada há muito tempo.
Havia algo forte em verbalizar ou, simplesmente, não negar minha
identidade para outras pessoas. Era como se eu tivesse passado finalmente a
me aceitar e a me... conhecer. Eu me sentia mais forte, mais capaz. Que
sentimento perigoso aquele. Fazia eu me sentir capacitada e tentada a seguir
alguns conselhos.
CAPÍTULO SETE.
NIETZSCHE SEMPRE SABE.
Sexta-feira, 5 de abril. Aquela data ficou eternizada em mim, como uma
tatuagem.
Era o dia da festa das atléticas. Tinha um tema, do qual não me recordo;
afinal, isso não faz nenhuma diferença. Temas não eram nada além de
desculpas para reunir jovens embriagados em um ambiente apertado.
Não que eu achasse ruim. Por favor, continuem. Só não contem muito
comigo.
Era a segunda festa que acontecia desde que eu havia começado as
minhas aulas. A segunda que eu faltaria. E eu estava me sentindo,
resumidamente, excluída.
Ana Clara ainda não sabia que eu nunca havia planejado ir, então, vinha
me mandando mensagens de voz animadas sobre a roupa que vestiria e as
fofocas que ficou sabendo com a organização. Tudo aquilo me deixava
ainda mais frustrada.
Rebobinamos e eu tinha dezesseis anos outra vez, proibida de ir a
qualquer lugar porque minha mãe não gostava. Eu a entendia na época.
Naquele momento, não a entendia mais. Aquilo ficou ainda mais evidente
depois daquele dia.
Uma coisa que eu aprendi é que, em geral, existem alguns caminhos que
uma pessoa reprimida pode seguir. Em algum momento, viver uma vida de
mentiras e ressentimentos vai te corroer ou, então, te fazer explodir.
Nietzsche abordou essa questão de repressão de desejos e de emoções,
argumentando que reprimir impulsos naturais pode levar a uma explosão de
ressentimento ou a uma autonegação prejudicial. Sartre também já afirmou
que somos responsáveis por nossas escolhas e que viver de acordo com as
expectativas dos outros nos impede de realizar nosso potencial pleno.
Sei disso hoje, depois que tudo desmoronou. Se soubesse antes, teria
evitado algumas situações, como a que aconteceu naquela fatídica manhã de
sexta. Mas o determinismo também afirma que erros podem ser vistos como
parte do processo natural de causa e efeito. De certa forma, minhas ações
me levaram àquele clímax. De certa forma, eu não as condeno.
Acordei mais cedo do que precisaria naquela manhã. Cedo o suficiente
para ver Gabriel saindo para a escola. Como todos os filhos de tia Diana
tinham terminado o ensino médio, ela não dividia mais o carro com a minha
mãe, e meu irmão passou a ir e a voltar de van.
A rotina era a seguinte: Regina descia com ele e, quando subia,
preparava meu café. Costumávamos sair às sete. Ela me deixava na
faculdade, com mais de uma hora de antecedência, e ia direto para o seu
trabalho.
Como era esperado, no entanto, depois de alguns dias de teste, tornou-se
impossível conciliar nossos horários, e ela havia parado de me levar e
buscar. Já que pegar ônibus ainda estava fora de cogitação (gravíssimo, aos
seus olhos), Uber foi a solução encontrada. E, depois de vários dias com
aquele novo meio de locomoção, eu meio que me acostumei.
Era muito melhor para mim. Ter que chegar antes, ou esperar depois do
horário, sempre foi uma chatice! O que ela fez de errado foi ter me dado um
gostinho do que seria não precisar enfrentar esse ritual. No fim, é
impossível sentir falta do que nunca se conheceu antes, mas tão impossível
quanto voltar atrás quando se começa a se ter o que sempre quis.
Depois que tomamos café, eu ameacei me levantar e abrir meu
notebook. Acordei cedo, e meus planos envolviam aproveitar o tempo extra
continuando um filme até que desse o horário de pegar o carro. Porém, ela
me impediu de sair da mesa com a seguinte frase:
— Que Uber, Camila? A gente tá gastando muito com isso. Você vai
voltar a ir comigo.
E eu simplesmente paralisei.
Fiquei um tempo processando e mastigando o que tudo aquilo
significava até conseguir abrir a boca outra vez.
— Mãe...
— Preciso sair às sete em ponto, para não atrasar...
— Mãe...
— O trânsito tem estado cada vez pior. Outro dia peguei um
engarrafamento de trinta minutos...
— Mãe — tive que repetir três vezes até que ela se dispusesse a me
escutar. Já estava arrumada, tomando seu café em um copo de requeijão.
Naquela casa, eu era a única que usava xícaras para coisas quentes. Gabriel
dizia que eu era fresca, eu digo apenas que utilizo a louça de maneira
correta. — Não precisa me levar, obrigada.
Comecei suave. Ela franziu a testa.
— Não tem aula hoje?
— Tem. Mas... eu posso pegar um ônibus.
Regina demorou uma eternidade para dizer:
— Pra quê? De carro é mais confortável.
Certo. Ser suave não estava funcionando.
— Eu não quero ficar esperando horas, mãe — argumentei. Meu tom de
voz neutro. Minha fala parcimoniosa e passiva... — Eu chego cedo pra
caralho e...
— Camila. Que boca suja! — Travei.
Não havia notado que soltei um palavrão, e me senti imediatamente
culpada.
Acho que aquele foi o primeiro palavreado “chulo” que verbalizei (em
voz alta) perto dela. Teve efeito. Ela largou seu café, me encarando com
rigidez.
— Quero conhecer essa tal de Ana Clara. Você falou que ela é amiga de
Brenda?
Realmente, o palavrão era culpa de Ana Clara (e Jéssica), elas
embutiam um em cada sentença, e eu acabei pegando a mania, mas aquilo
era desnecessário. A forma como ela falou, com raspas de maledicência,
como se Ana fosse uma pessoa horrível porque falava palavrões (??), me
espetou. Ela sempre foi assim com Brenda, e eu sempre deixei. Ela foi
assim com Andy, e eu nunca a defendi...
Inspirei profundamente.
— Mãe — comecei, sentindo o calor da rebelião e da mágoa, mas me
esforçando para me manter respeitosa. — Por favor, não precisa me levar
hoje.
Regina descartou minha fala como quem descarta uma ideia
inconveniente, um incômodo temporário, uma farpa no dedo! Seu olhar
revelava que aquela reação não seria tolerada por muito tempo. Que ela a
desaprovava.
Quem ela achava que era para desaprovar algo?
— Camila, pare de besteira.
Eu, milagrosamente, não cedi.
— Mãe. Não.
— Por que não?
— Porque eu chego muito cedo!
— Você pode aproveitar pra estudar.
— Eu não consigo estudar na rua.
— Camila, você está saindo com algum garoto?
Hoje eu rio disso, porque ela não poderia estar mais errada. Mas, na
época, aquilo me cutucou lá no fundo.
— Não.
— Camila, você terminou com Henrique agorinha!
“Agorinha”.
Já fazia meses. E, se eu o conhecesse bem, sabia que já devia ter beijado
metade da faculdade naquele meio tempo (e eu o conhecia bem).
— Não tem garoto nenhum, mãe — insisti e, talvez, essa fosse a
primeira verdade que eu a contava em muito tempo.
— Então por que eu não posso te levar?
— Porque eu não quero.
Ela demorou a processar o que eu havia dito. Tanto que eu imaginei
que, pela primeira vez na vida, ela estivesse me escutando.
Não poderia estar mais enganada.
Ela pegou seu copo de café, bebendo o último gole antes de dizer:
— Vai se arrumar logo, Camila. Tenho que sair daqui a pouco.
Aquela situação não era tão grave assim. Francamente? Eu já havia
aguentado coisas muito piores. Só que eu me sentia diferente. Eu estava
vivenciando as consequências de ter me limitado por tanto tempo, lidando
com o fato de que meu mundo havia se expandido, desafrouxado e que eu
estava mudando.
Eu estive lotada, por todo esse tempo. E eu explodi.
— Não. Eu vou de Uber, mãe. E volto também. Não precisa me esperar,
tenho uma festa pra ir. — Então me coloquei de pé e trotei, dramaticamente,
em direção ao meu quarto.
Hoje, eu me sinto uma idiota narrando isso. Foi uma rebeldia besta, mas
enorme na ocasião. Aquilo era algo sério, foi a primeira vez que eu impus
minha vontade daquela maneira. A primeira vez que eu consegui falar o que
eu verdadeiramente queria.
Meu peito batia forte enquanto eu a escutava gritar para as minhas
costas:
— Festa? Que festa, Camila?
Não a expliquei. Eu me tranquei no quarto e fiquei lá até que ela fosse
obrigada a sair para trabalhar. Uma atitude infantil, eu sei. Amadureci um
pouco tarde.
Regina bateu algumas vezes, tentou me fazer sair com a voz mansa.
Não foi o suficiente. Eu estava borbulhando e ela atrasada.
— A gente conversa mais tarde.
Foi o que prometeu, e que me soou muito como uma ameaça. Não
gostei daquilo. Mas, para ser justa, eu não gostava de nada do que ela fazia
há um bom tempo.
Eu estava furiosa, e foi aquela briga boba que me trouxe ele. O
combustível, que eu precisava para mudar por completo a minha vida, havia
acabado de ser derramado, inteirinho, em cima de mim.
CAPÍTULO OITO. O COMEÇO
DA MELHOR NOITE DA
MINHA VIDA.
Graças à minha covardia e meu medo do mundo, eu sempre fui o tipo de
pessoa que evitava conflitos. Isso explica muitas coisas que aconteceram
comigo. Explica a minha fuga épica de qualquer fragmento de Andressa,
por exemplo. Assim como o fato de que a primeira vez que eu bati a porta
na cara da minha mãe, eu tinha dezoito anos de idade.
Ser uma boa garota tem seu preço, e eu o paguei naquele dia. O Uber foi
trinta reais.
Regina tinha certa razão ao dizer que estávamos gastando muito com
aquele meio de transporte, mas a solução que eu queria para aquilo não era
voltar a depender dela. Talvez eu tivesse mesmo sido contaminada pelas
minhas novas amizades, porque eu queria autonomia. Eu precisava disso.
Eu precisava... me encontrar. E passei o dia inteiro remoendo e mastigando
essa necessidade.
O sentimento de ter discutido com ela era parecido com o que as
mentiras me causavam. Doía, mas era uma reparação.
No fim, o que tivemos foi uma briga idiota, que não teria muitos
desdobramentos para Regina. A gente conversaria no dia seguinte, meu pai
seria incluído e se voluntaria para pagar o Uber (por que ninguém cogitava
a porcaria do ônibus?). Chegaríamos a um denominador em comum, algo
como um acordo, e minha mãe voltaria a viver sua vida como se nada
tivesse acontecido. Ela tinha muita facilidade em fazer aquilo. Eu não.
Para mim, aquela discussão foi o estopim de uma realidade
completamente nova. Uma na qual eu não me importava nem um pouco
com Uber, ônibus ou nada disso. Mas, antes que chegássemos nesse nível,
eu ainda estava puta com ela, assistindo emburrada, já fazia quarenta
minutos, minha segunda e última aula do dia. Anatomia.
Argh. Como Regina consegue ser tão irritante?
Argh. Como Anatomia consegue ser tão chato?
Argh. Como que o mundo consegue ser tão injusto?
Ana Clara não tinha reunião, nem aula, naquele dia, então não pisou na
faculdade tão cedo. Foi sorte sua, porque eu estava sendo uma péssima
companhia.
Eram três da tarde quando ela me mandou uma mensagem, dizendo que
chegaria com Jéssica às quatro. A festa estava marcada para começar às
seis. Até lá, ela me convidou para o que denominava de “esquenta”.
Eu ainda não estava familiarizada com o termo, e não sei se todos os
“esquentas” são assim, mas, para Ana Clara, aquilo significava se sentar em
literalmente qualquer lugar e beber. Minha aula acabou mais cedo naquele
dia, então eu aceitei participar. Sem a parte das bebidas, claro, só com as
companhias. Qualquer coisa que me fizesse esquecer minha mãe.
Minhas “madrinhas” estavam me esperando na porta do prédio quando
eu saí, carregando um casaco nos braços e uma faceta amarga.
Atrasei um pouco o início do esquenta de três pessoas. Eram quatro e
quinze quando Ana envolveu os braços ao redor do meu pescoço e disse:
— Se prepare, gatinha. Hoje vai ser a melhor noite da sua vida.
Ana Clara sempre exagerava, e eu raramente levava suas hipérboles a
sério. Mas, daquela vez, preciso confessar. Ela meio que acertou.
Foi só isso que ela mandou. E “uhum” foi tudo que eu escolhi
responder.
Meu coração batia totalmente errado, eu conseguia sentir. Assim como
ainda sentia o calor de sua mão em meu pescoço e sua língua, grudada na
minha.
Na noite anterior, eu cheguei em casa eufórica.
Havia algo de tão leve assoprando dentro de mim que eu me sentia
flutuando sobre o meu colchão. Eu me sentia livre. Eu me sentia... eu. Eu de
verdade.
Não conseguia parar de reprisar aqueles beijos e, em cada uma das
vezes, meu rosto ficava vermelho e eu sentia uma necessidade absurda de
sorrir. Beijar mulheres foi incrível para mim. Foi mágico. Beijar Andressa
foi fascinante. Depois daqueles beijos, eu passei a acreditar que unicórnios
e sereias existiam. Passei a enxergar o mundo lotado de purpurina, tirei a
minha prova. Eu definitivamente não era heterossexual, e enxergar aquilo
com clareza trazia muitas coisas positivas, mas também muito pesar.
No sábado, eu pulei algumas etapas do luto, indo direto para a quarta
delas: tristeza.
Apesar de todos os sentimentos positivos, eu me peguei profundamente
angustiada. Estava com medo do que aceitar a minha não-
heterossexualidade significaria. Afinal, eu sabia o que minha mãe achava
do que eu fiz, e esse dilema ainda me gerava muita culpa.
Certos ciclos são mais difíceis de quebrar do que outros. Eu vivi a
minha vida inteira em função da minha mãe, não era simples fazer algo que
eu sabia que ela desaprovava. Não era simples ir contra ela dessa maneira.
O que meus instintos me mandavam fazer, surpreendentemente, era
jogar tudo para o alto e beijar aquela garota de novo. Mas o combustível
havia acabado, e eu me peguei caindo no mesmo redemoinho tóxico de
sempre.
Eu me preocupava demais com o que minha mãe ia pensar. Eu me
sentia presa a ela. Era como se houvesse uma mola acoplada ao meu
tornozelo. E eu até podia ousar ir mais longe, só que, de alguma forma, eu
sempre retornava.
Eu estava começando a enxergar, tardiamente, a existência de vida fora
do planeta Regina. Porém, ainda parecia cedo dizer que eu havia adquirido
resistência para suportar essa nova gravidade.
Você sabe, eu nunca fui corajosa como Andressa. Se eu pudesse roubar
sua personalidade, acredite, eu roubaria. Eu roubaria tudo daquela mulher.
Mas o que eu tinha disponível em mãos era uma Camila que estava
finalmente começando a se conhecer, e que ainda não conseguia suportar a
possibilidade de ferir a sua mãe.
As pessoas certas não me odiariam caso eu fosse sincera. Disso, eu
tinha certeza. O problema era que eu nunca havia considerado Regina uma
delas.
Bloqueei a tela do meu celular. Meu peito martelava e eu o abandonei
outra vez, tentando enfrentar o resto do meu dia longe. Antes de dormir, no
entanto, encarei novamente a mensagem de Henrique. A lembrança daquele
relacionamento trazia à tona uma versão minha que eu, honestamente, não
gostaria de reviver, mas também trazia ele. E ele era meu bote salva-vidas,
lembra?
A perspectiva de reencontrar rostos conhecidos brilhou para mim como
uma oportunidade para desviar o foco do turbilhão emocional que eu estava
vivendo.
Foi por isso que eu aceitei o convite.
Buscava uma distração. Buscava sair de perto da minha mãe.
Ir àquele aniversário era uma maneira de adiar, ainda que
temporariamente, a confrontação com meus próprios sentimentos. Algo que
eu amava fazer, e que ainda não havia me conformado que nunca dava
certo.
Fingir que não aconteceu não muda fatos. E ir ao aniversário do meu
ex-sogro porque eu havia beijado a melhor amiga do seu filho não era nem
de longe o melhor dos cenários.
Especialmente depois que eu me deparei com a sua lista de convidados.
CAPÍTULO DOZE. DÁ PRA
PARAR DE FUGIR DE MIM?
A primeira vez que eu realmente conversei com os pais de Henrique foi
quando estávamos retornando do seu baile de formatura e eu estava sentada
no banco de trás de seu carro, sendo levada para casa. Henrique estava
apagado no meu peito, bêbado até a alma. Felizmente, seus pais não podiam
brigar com ele a respeito quando Pia (minha ex-sogra) estava quase igual.
Na casa de Henrique, seu pai era o único cronicamente sóbrio (como eu).
Seu Silva não bebia, e era do tipo que dirigia com calma, atento a todas as
placas. E acontecimentos.
Eu estava brutalmente cansada naquela noite. Física e emocionalmente.
A paisagem da cidade passava pelo vidro lateral com pressa, e tudo que eu
sentia era pesar, pelo que havia deixado para trás.
Acariciava os fios macios de Henrique enquanto sentia as lágrimas
escorrendo pela minha bochecha.
Na minha cabeça adolescente, seria impossível alguém notar que eu
chorava quando estava tão escuro. Na minha cabeça, seria impossível que
alguém percebesse o que eu estava sentindo, mas então Seu Silva cortou o
silêncio com a seguinte sentença:
— Ano que vem é você, hein, Camila? Se formando, prestando
vestibular...
Eu me ajeitei no banco, surpresa com a sua fala. Antes daquele dia, eu
me sentia profundamente constrangida todas as vezes que interagia com a
família do meu namorado. Eles eram tão ocupados, tão... incríveis! Era
intimidador, e continuou sendo, até que eu passasse a ser convidada para
muitos almoços em família (desculpas para que eu pudesse me afastar da
minha).
Os pais de Henrique me trataram como uma filha quando meu mundo
começou a desmoronar. Perdi a conta das vezes que fugi para a sua casa. E,
em todas elas, eles me acolheram. A primeira foi naquela madrugada.
— É. Pois é. — Pigarreei, sem jeito, afastando minha mão de Henrique.
Era sempre constrangedor trocar carícias com ele quando seus pais
estavam por perto.
— Você já sabe o que quer fazer? — questionou e eu suspirei. Odiava
aquela pergunta.
— Não. Nem ideia.
— Ah, isso é normal! — exclamou, e eu enxerguei um sorriso muito
parecido com o de Henrique pelo retrovisor. — Vocês são muito jovens para
essas coisas. Não acha, Pia?
Ela assentiu. Seus cabelos escuros despencando do coque que ela um
dia havia usado.
— Com certeza! — Ela se virou para me encarar. O cinto de segurança
limitava seus movimentos, mas seus olhos embriagados me acharam. Eu
torci para que a maquiagem pesada fosse suficiente para disfarçar minha
cara de choro. — Sabe, Camila, Henrique só decidiu que queria ser médico
semana passada.
Seu Silva assentiu, deslocadamente nostálgico.
— Você lembra o que ele dizia que queria quando tinha sete anos, Pia?
— Sim! Escute essa, Camila, é muito bonitinha! Quando a gente
perguntava pro Henri de sete anos o que ele queria ser quando crescer, ele
travava o maxilar em um sorrisinho adorável e respondia: feliz, mamãe.
Meu peito apertou por alguns segundos.
— Feliz — repetiu Seu Silva. — Eu acho que as crianças realmente
sabem muito mais que nós. A vida é curta para não procurarmos essa tal de
felicidade — Então buscou o meu olhar pelo retrovisor e disse: — Está tudo
bem se você não tiver se encontrado com a sua ainda, Camila.
Por alguns instantes depois disso, o silêncio reinou. Seu olhar
permanecia compassivo, mas era como se ele pudesse enxergar o que eu
pensava. Minha felicidade, ele parecia saber, estava muito longe daquele
veículo.
As luzes da cidade passaram por nós até que ele quebrasse o silêncio
uma última vez:
— Sabe, Camila, a vida é cheia de surpresas.
Guarde as palavras do Seu Silva, porque ele nunca esteve errado em
nada do que disse naquele dia.
Certamente, a vida era um grande bolo estomacal de surpresas.
Imprevistos são as coisas mais previstas com as quais podemos contar.
Quase nada acontece como o planejado. O que não significa que
imprevistos sejam sempre ruins.
Eu estava animada para reencontrar com os pais de Henrique quando
minha mãe me deixou na portaria de seu prédio. Entre nós, o clima estava
esquisito. Eu estava morrendo de medo de que ela pudesse ler em meu rosto
o que eu havia feito; enquanto ela estava monossilábica, possivelmente
desapontada com o meu comportamento de sexta (e ela nem sabia o que
verdadeiramente havia acontecido). Eu sempre me irritava quando ela fazia
bico, então entrei sem nem me despedir.
O porteiro do prédio de Henrique já me conhecia o suficiente para não
se dar ao trabalho de me explicar como chegar ao play. Subi pelo elevador
me sentindo agitada. Não tive tempo de comprar um presente (nem saberia
o que levar), então tudo que eu carreguei comigo para aquele almoço de
aniversário foi uma bolsa transpassada preta e uma mente confusa.
Eu tinha um pouco mais de noção de moda nessa época (graças a Deus)
e escolhi um vestido esverdeado, que ia até meu tornozelo. Foi difícil
garimpar, metade das minhas roupas já não me agradavam mais.
Não pensei em desistir de ir nenhum segundo, todavia. Era muito mais
fácil para eu enfrentar Henrique e meus ex-sogros do que o fato de que eu
havia beijado mulheres (no plural, sendo uma delas ANDRESSA). Contudo,
minha coragem tinha prazo de validade. Quando a porta se abriu, a
sensação de “ok, isso é minimamente estranho” me alcançou.
A ex-namorada do seu filho no seu aniversário. Isso é socialmente
aceitável? Isso é normal?
Eu sempre tendi a crer que não existe amizade com o ex (ou com sua
família), mas acho que com Henrique nada nunca seguiu como o planejado.
— Camila! — Pia me viu antes que eu pudesse a ver.
Seus cabelos lisos estavam, como de costume, presos em um coque, e
seus dedos acoplados a uma taça cheia. Ela me abraçou.
— Que bom que você veio!
Sorri, um pouco forçada.
— Obrigada pelo convite.
— Imagine! Estávamos com saudades. Como está seu irmão, e sua
mãe? Seu pai? — começou a me interrogar conforme me guiava,
delicadamente, festa adentro.
Mais de dez mesas, forradas com uma toalha branca, ocupavam o
espaço. Havia algumas crianças correndo pelos cantos, uma música
ambiente calma e garçons, servindo petiscos e bebidas.
O dia estava ensolarado e os raios de sol entravam pelos vidros
lacrados. Pia me guiou até Seu Silva, e eu o parabenizei com um aperto de
mãos.
Aquele era um almoço imponente, havia bastantes convidados.
“Amigos próximos”, Henrique dissera. Era surpreendente que alguém
tivesse tantos amigos assim.
— Cadê Henri, amor? — perguntou Pia, depois que eu o parabenizei e
menti, falando que estava tudo “tranquilo” na minha vida. Ele apontou para
a nossa esquerda.
— Tá sentado ali.
O play do prédio de Henrique era climatizado (óbvio que era), e o ar
condicionado estava forte; mas não foi por isso que os meus pelos se
arrepiaram. Foi porque, assim que nossas atenções foram guiadas a uma das
mesas mais próximas à parede, eu enxerguei. Sentada ao lado do meu
queridíssimo ex-namorado, estava Andressa Batista.
Por que eu não suspeitei que aquilo fosse acontecer?
Se os pais de Henrique trataram com tanto zelo a ex-namorada de seu
filho, era mais que óbvio que fariam o mesmo com a sua amiga de anos.
Minha vontade, naquele instante, era de fingir um desmaio; só não fiz
isso porque ia chamar ainda mais atenção.
— Obrigada. Vem, Camila, vou te levar até ele.
Então Pia me guiou em direção ao que eu evitei encarar o sábado
inteiro.
Puta que me pariu. Eu não tinha capacidade física, tampouco mental,
para lidar com Andressa depois daquele beijo. Ainda mais na frente do meu
ex!
Jesus Cristo.
Caminhei como quem caminha para a forca, sentindo que aquele
maldito percurso durou vidas. Quando chegamos próximas aos dois, eu já
tinha oitenta e quatro anos, três netos e dor nas costas por causa da minha
péssima postura durante a minha juventude.
— Olha quem eu trouxe! — Foi a forma como ela me anunciou, e que
combinou bem com a situação.
Um tributo de Jogos Vorazes sendo apresentado ao público, era assim
que eu me sentia. Aquela mesa era o equivalente à arena. Não via a hora de
alguém chegar por trás e enfiar um arpão no meu peito, me poupando
daquela droga de tortura!
Henrique se levantou.
— Eae! Eu tava achando que você não vinha mais! — Então me
abraçou e eu fui obrigada a encarar Andy sobre seus ombros.
Ela retribuiu minha encarada em silêncio. Seus olhos derraparam sobre
mim, atritando como patins em uma pista de gelo, e eu me senti por
completo escorregadia.
Havia um sorrisinho minúsculo pousado no canto de seus lábios. Notá-
los era perigoso, me fazia me lembrar de sua textura. Fazia me lembrar de
como estivemos tão próximas. Senti minha garganta secar.
— Licença, garotada — pediu Pia, assim que seu filho me soltou,
pousando uma de suas mãos em meu ombro e dizendo: — Muito bom te
ver, minha querida.
Fiz meu máximo para sorrir em resposta.
— Muito bom te ver também, tia.
Então se afastou e eu me peguei na maior cilada da minha vida.
Existe uma regra social que diz: se você abraçou um, tem que abraçar
todos. Henrique havia acabado de me dar um abraço caloroso, existia certa
pressão para que eu me locomovesse na direção de Andressa e pelo menos a
cumprimentasse com dois beijos no rosto. Contudo, fui incapaz de agradar a
sociedade naquele momento (e naqueles dias).
Eu a ignorei por completo, ou pelo menos tentei, simplesmente puxando
uma cadeira e me sentando depressa.
Sentia um bolo na minha garganta. Sentia meu peito acelerado. Sentia
toda a sua atenção voltada para mim.
— Oi, Mila — fez questão de dizer, com aquela droga de cadência
cativante em seu tom.
Engoli em seco, tentando não pensar em como na última vez que ela
veio com “Mila” para cima de mim, eu havia permitido que ela me
empurrasse contra uma parede.
Ai, Deus, isso não podia acontecer de novo. Não, Camila, você não
precisa de mais drama na sua vida. Vocês já concluíram o que precisavam.
Já se beijaram. Chega! Sua mãe não gostaria disso...
— Oi.
Henrique, como de costume, se sentou entre nós.
Não compartilhávamos a mesa redonda com mais ninguém. Além de
celulares, havia alguns copos vazios em cima dela. Andressa teve a audácia
de puxar o prato de salgadinhos no centro e o empurrar em minha direção.
— Ei — chamou minha atenção e eu respirei bem fundo antes de
encará-la. — Guardamos pra você.
Vai soar repetitivo se eu disser que ela estava linda naquele dia? Pois ela
estava.
Usava uma blusa de mangas, que tapava um pedaço do tigre que tinha
tatuado em seu antebraço esquerdo. Não havia uma coisa que me
desagradasse em seu rosto. O cheiro de seu perfume era incipiente e
familiar. Ela usava uma maquiagem leve, suas pintinhas estavam todas à
amostra e seu delineado clássico estava de volta. Andressa não costumava
usar gloss, mas havia uma fina camada de batom em seus lábios. A cor era
puxada para o marrom. Ela tinha habilidade até para fazer aquilo. Não
havia um borrado, o arco do cupido estava bem marcado, a boca parecia
macia, e convidativa e... meu Deus do céu, eu estava começando a
hiperventilar.
— Na verdade, eu guardei — provocou Henrique. — Dessa queria
comer tudo.
Andy revirou os olhos.
— Eu obviamente ia buscar mais.
— Isso é mentira. Você é egoísta.
Ela pendeu de leve a cabeça para o lado antes de dizer:
— Discordo. Eu posso ser generosa, depende da motivação. Opiniões,
Camila?
Ah, eu tinha muitas opiniões. Ela foi bastante generosa naquela sexta,
por exemplo, quando enfiou a língua na minha boca e generosamente me
fez arfar.
Os salgadinhos ficaram abandonados na mesa. Tudo que eu disse foi:
— Preciso ir ao banheiro.
(Eu não era muito criativa nas minhas desculpas).
Henrique assentiu.
— Fica ali atrás, perto da cozinha. Mas quer ir lá em casa? Mônica tá lá,
é só bater. Esse aqui é minúsculo.
Na casa dele. Ótimo! Mais longe ainda de Andressa.
— Certo. Obrigada.
Eu me coloquei de pé de uma só vez, refazendo todo o caminho até o
elevador.
Não havia ar condicionado no mundo que pudesse abaixar minha
temperatura naquele momento.
Entrei rápido e apertei o doze.
O prédio de Henrique tinha duas características importantes: a primeira
delas é que ele era muito alto. Tinha dezesseis andares e escadas largas com
portas corta-fogo (algo que não existia no meu — o terror dos bombeiros).
A segunda é que seus elevadores eram antigos e demoravam a obedecer aos
comandos dos botões.
A porta demorou tanto para fechar que Andressa teve espaço de sobra
para impedi-la.
Quando só restava uma fresta entre a minha liberdade e aquela situação
perigosa, um braço surgiu do lado de dentro, travando minha fuga.
A porta sanfonada revelou a figura de Andressa como quem revela o
galã em um filme de Hollywood. Seus cabelos e seu perfume preenchendo
todo o ambiente. Ela se colocou para dentro e eu paralisei, com meu peito
dando solavancos. Não disse nada, apenas estacionou ali, me deixando
completamente engasgada.
A porta se fechou e nos lacrou, sozinhas. Senti como se eu tivesse sido
confinada em um forno.
Esperei que ela dissesse alguma coisa. Qualquer coisa. Mas ela não fez
nada, então passamos pelo quinto andar.
Eu me sentia consciente de cada minúsculo movimento que aquela
porcaria de garota fazia ao meu lado. Ela cruzou os braços e encarou o
mesmo que eu: a porta metálica. O silêncio que se instaurou era capaz de
derrubar aquele elevador no fosso, tamanho era o seu peso.
— O que você tá fazendo? — Não aguentei.
Ela sorriu.
— Subindo pro doze. Você?
Maldita.
— Andressa...
— É isso que vamos fazer mesmo então, né? — me interrompeu, e
havia uma miúda pontada de decepção no seu tom. — Você vai me ignorar
por mais um ano.
Não disse nada até que o elevador aterrissasse e me permitisse sair.
Caminhei até o apartamento de Henrique e bati na porta. Mônica, a
moça que limpava a sua casa, a abriu para mim, me cumprimentando com
um abraço, me permitindo entrar. Não olhei para trás até que chegasse ao
banheiro.
Conhecia o caminho e tudo que havia dentro daquele apartamento,
inclusive a minha perseguidora.
Tranquei a porta e soltei todo o ar de uma vez. Meu sangue fervia.
Precisei de uns minutos para respirar.
Dei um tempo antes de sair, e torci para que ela tivesse ido embora, mas
era claro que não iria.
Abri a porta e ali estava, diante de mim, a última pessoa que deveria
estar na minha frente em uma ocasião como aquelas. Que merda. Eu não
conseguia mais esconder o quanto a queria. Meu corpo não me obedecia
mais. Eu não era capaz de mentir para ela, e mentir era a porra do meu
superpoder!
— Você quer usar o banheiro? — fui irônica. Ela foi mais.
— Não, não. Obrigada. Tô bem aqui.
Seus braços estavam cruzados. Seus olhos me atravessavam.
— Ok.
Passei por ela e ela veio atrás de mim.
Repetimos os passos e saímos (depois de nos despedir de Mônica), pela
sala de estar. Alcançando o corredor, apertei o botão para chamar o
elevador. Foi só aí que ela notou que eu realmente estava fazendo aquilo.
Eu realmente estava correndo mais uma vez.
— Mila, é sério mesmo? Você não vai nem olhar na minha cara? —
Umedeci meus lábios, mantendo meu olhar fixo no vazio.
Não posso, não posso.
Ela se aproximou. Bastante. Não nos tocávamos, mas por muito pouco.
Ter ciência daquilo era o que precisava para fazer meu sangue correr ao
contrário.
— Camila. Dá pra você parar de fugir de mim?
Fui incapaz de não voltar meus olhos para o seu rosto depois daquilo,
esbarrando em sua própria melancolia.
Algo dentro de mim derreteu.
O peso da tensão entre nós se tornou concreto. Havia uma redoma ao
nosso redor, que nos tornava sedentas. Cada pontinho racional do meu
corpo gritava para que eu resistisse, mantivesse a distância. No entanto, eu
não tinha forças para obedecer.
Não posso. Era o que eu tentava me convencer, mas uma voz interna
sussurrava que, talvez, eu pudesse sim. Por que não?
Porque sua mãe não vai gostar, sua idiota! Minha dependência ecoava.
Era o que os velhos hábitos tentavam me convencer. Mas, convenhamos, e
daí? Aquilo era o que eu gostaria. E isso tinha que ter algum peso, não
tinha?
— A gente pode pelo menos... conversar?
Nossos olhares se encontraram e eu fui sugada.
Conversar?
Porra, Andressa. Eu não queria conversar naquele momento.
Seu rosto era uma constelação. Ela parecia processar muitas coisas ao
mesmo tempo, enquanto eu parei de processar tudo.
Tomei uma decisão impulsiva.
Graças a Henrique, eu conhecia o suficiente daquele prédio para agarrar
seu pulso e a puxar em direção à enorme e pesada porta a alguns passos de
distância da gente.
Até hoje eu não sei quem abriu aquela porta corta-fogo, mas tenho
certeza que fui eu que a empurrei em direção à parede daquela vez.
Não esperei nem mesmo a porta terminar de bater para beijá-la.
A necessidade quase primitiva de tê-la, tenho certeza, estava no meu
DNA. Eu fui programada para desejar Andressa Batista e era sufocante ter
estado distante de sua boca por tanto tempo.
Foi difícil me saciar. Eu a apertei com força, deslizando nossos corpos
pela parede. Ela retribuiu à altura, passeando com sua mão pelas minhas
costas inteiras e fazendo eu me arrepender por ter escolhido um vestido tão
coberto.
Não sentia que estava perto o suficiente. Eu queria ir mais fundo. Mais
contato. O máximo que desse. Acho que fui faminta demais. Andy salvou
nossas vidas.
— Mila... — Escutei-a rir, interrompendo o beijo e segurando meus
braços. — A gente vai cair da escada — sussurrou, e o calor de suas
palavras me devolveu o raciocínio. Pelo menos, parte dele.
Abri os olhos e enxerguei os degraus, a centímetros de distância dos
nossos pés. Uma luz havia se acendido com a nossa movimentação. Estava
quente e abafado do lado de dentro. Estávamos no meio das escadas, onde
qualquer um que descesse, ou subisse, poderia nos ver. E contar para a
minha mãe.
Meu. Deus.
Fui puxada outra vez pela mola, e a culpa chegou empurrando.
Era claro que o que ela gostava importava. Ela era a minha mãe! Onde
eu estava com a cabeça?
— Andy... — Senti o desespero tomar conta do meu corpo.
— Camila — Segurou meu rosto com delicadeza. Todo o alvoroço
animalesco evaporou. Tudo que eu enxergava era preocupação em seus
olhos. — Me explica o que está havendo?
Inspirei profundamente, tentando me controlar.
— Me desculpa — pedi, gesticulando. — A gente não pode continuar
fazendo isso.
Ela franziu a testa.
— Por que não?
— Porque... eu não consigo.
— Não consegue o quê?
Mirei-a por alguns longuíssimos instantes. Depois de um ano completo
e de quase a engolir viva, senti a necessidade de ser sincera.
— Eu nunca te contei o que houve naquela casa de praia.
Andressa ajeitou suas costas de imediato. Entendia que o que vinha a
seguir não era simples, então deixou que seus dedos escorregassem até
meus ombros. Acho que estava tentando me encorajar a continuar. Ela
queria ouvir quase tanto quanto eu queria falar.
Adiamos aquela conversa por um ano. Na verdade, adiamos tudo por
um ano e eu “conhecia” Andressa desde os meus nove anos de idade, mas
acho que nunca me abri para a oportunidade de conhecê-la, de fato.
Nem a mim mesma.
— Pode falar, se quiser — sussurrou e eu a encarei.
Engraçado como segundos antes o clima era completamente diferente.
Engraçado como eu sempre queria falar tudo para ela.
— Naquela viagem, sua mãe contou para a minha que você gostava de
garotas. E quando minha mãe soube disso... — Desviei o olhar,
envergonhada por um comportamento que não era meu. — Bom, ela
chorou.
Eu esperava qualquer reação naquele momento. Esperava que ela fosse
ficar brava. Esperava que se sentisse ofendida. Esperava que me soltasse ou
que xingasse minha mãe. Eu esperava qualquer coisa diferente, mas o que
Andressa fez foi começar a rir.
Aquilo me pegou completamente desprevenida.
— Por que você tá rindo? — perguntei, ofendida. Espantada. — Para
com isso.
— Céus. Desculpa — pediu, ao notar que eu não achava aquilo nada
engraçado. — Desculpa, Mila. Desculpa — repetiu, e deu para notar o
quanto ela se esforçou para engolir o riso e dizer: — Ela chorou?
— Chorou!
— Por quê?
Suspirei.
— Porque ela disse que você era como uma filha pra ela e que você ia
sofrer com isso na Terra, e no Inferno.
Arregalou seus olhos.
— Caralho.
— É.
Balançou a cabeça. A comicidade da situação sendo dissolvida de vez
em seu estômago.
— Eu notei que alguma coisa tinha acontecido, eu só não sabia que... —
começou a dizer, porém nunca terminou. Suspirou, deixando que as
palavras evaporassem. — Você podia ter me contado.
Certamente, eu poderia. Mas quem se comunica bem com dezessete
anos de idade e uma situação dessas nas suas costas?
— Não consegui. — Dei de ombros. — E é essa então, a grande
revelação. Minha mãe é preconceituosa pra caralho. Surpresa!
Andressa me encarou como se eu fosse um passarinho que havia
acabado de cair do ninho.
— Oh, Mila, eu sinto muito. É uma situação horrível e...
— Andy — a interrompi. — Tá tudo bem. — Obviamente, não estava,
eu só não queria mais falar sobre aquilo. — Foi ótimo... o que fizemos.
Muito bom. Eu só não posso... — Inspirei profundamente. — Continuar. —
Afastei seus dedos. — Eu estou... morrendo de medo.
— De mim?
Respirei fundo.
— Sim.
— Mila — sussurrou. — Sou apenas eu.
Apenas.
Deus, ela era tudo.
— Ela não sabe e eu não consigo contar, Andressa.
— Camila, olhe para mim.
Ela me segurou outra vez, me forçando a encará-la. Trombei com sua
expressão compenetrada e suspirei.
— Pra que você quer contar? — perguntou.
— Como assim?
— Tá tudo bem por mim.
— Tudo bem o quê?
Ela deu um sorriso de canto, seguido de um dar de ombros. Franzi
minha testa.
— Andy...
— Antes que você arrume mais uma desculpa, posso falar?
Seria péssimo ouvi-la argumentar, porque eu sabia que eu cederia, só
que eu não fiz nada para impedi-la.
— Cada um tem seu tempo. Você não precisa fazer nada que você não
queira. Você não precisa sair falando por aí. Não conte para sua mãe. Ou
para ninguém. Foda-se.
— Andy...
— Ninguém tem nada a ver com isso, Camila. A gente pode manter
entre nós. Eu te dou a minha palavra que ninguém vai saber.
Prendi minha respiração.
Ela não estava sugerindo que a gente continuasse se pegando em
segredo, estava?
Nossos olhos se cruzaram e ficamos em silêncio. Ela se manteve
irredutivelmente séria.
Porra, era exatamente isso que ela estava sugerindo.
— Andy, quê? Você tá brincando, né? Isso é uma péssima ideia. Eu
agradeço se puder não contar o que já aconteceu, mas, se a gente
continuar... vão acabar descobrindo — pontuei, ainda não convencida. Ela
soltou um sorriso sacana.
— Não se a gente fizer tudo direitinho.
— Andy...
— Me dá uma chance — pediu, me encarando fixamente. Sua expressão
misturava, sem precisar de receita, uma dualidade gigantesca de inocência e
sordidez. — Por favor.
Me dá uma chance.
Como quatro palavras podem ser o estopim de uma decisão tão imbecil?
Andressa acertou, como de costume, nas palavras que escolheu usar.
Deus sabe que tudo que eu mais queria era dar uma chance para aquela
garota. Vinte, se fossem necessárias. Mas ela só me pediu uma, e eu dei.
Quer dizer, não era uma ideia tão ruim assim, era? Eu estava sendo
muito emocionada? Não é como se a gente estivesse fugindo para as colinas
para se casar em segredo. Eram só alguns beijos. Minha mãe não precisava
saber quem eu beijava, pelo amor de Deus! Minha mãe nunca saberia disso.
— Andressa. Tudo bem mesmo se a gente não... contar pra ninguém? —
conferi, em um sussurro.
Ela sorriu.
— Claro que sim.
Então foi ali que decidimos.
Não precisamos assinar termos, ou juntar testemunhas. Concordamos,
fizemos um pacto. Eu não pensei a longo prazo na época. Mas, diz para
mim, como eu poderia? Aquela era a chance de ouro. Era a única forma de
ter tudo que eu sempre quis, e eu me agarrei naquela oportunidade com
unhas e dentes. Eu torci, do fundo do meu coração, para que funcionasse.
— Andy?
— Hm?
— Me desculpa.
— Pelo quê?
— Eu não te defendi aquele dia. Da minha mãe.
Aquilo estava entalado tão fundo que foi difícil deixar sair cada uma
daquelas palavras. Andressa suspirou.
— Queria poder ter te defendido também — disse e eu senti, bem lá
dentro.
Uma coisa triste foi que eu sempre esperei por esse resgate.
Eu era a mocinha que caía da ponte, que era raptada pelo vilão, que era
feita de refém. Eu era uma vítima, esperando alguém me resgatar da minha
poça de desalento.
Uma coisa que aquela Camila estava começando a aprender é que
super-heróis não existem longe dos filmes. Andressa não poderia estar em
todos os lugares ao mesmo tempo e o que acontecia na minha vida,
dependia de mim. Ninguém ia me salvar. E, por mais que tentassem,
ninguém poderia viver minha vida no meu lugar. O que eu fiz, naquele
instante, foi escolher vivê-la, parcialmente, como eu gostaria.
Andy notou que eu divaguei, então arrastou delicadamente o dedão pela
minha bochecha, pousando-o na minha boca e me trazendo de volta ao
dizer:
— Tá legal, chegou a hora. Preciso te contar que tem batom na sua boca
de novo. Só que, dessa vez, graças a Deus, a culpa é minha.
Ela obteve sucesso na sua empreitada (não surpreendentemente). Fui
incapaz de não sorrir depois daquilo, e o clima se tornou menos denso.
Andy validou minha reação deslizando suas mãos até meu pescoço.
— Posso limpar pra você?
Dei uma espiada no lance de escada ao nosso redor. Estávamos
sozinhas.
— Pode.
Então ela me beijou e, mesmo que não tivesse pedido, eu pensei em
assinar a papelada e adotar seu sobrenome naquele exato momento. A
suavidade de seus lábios contra os meus era uma das canções mais bonitas.
Eu me deixei imergir, envolvendo meus braços em seu pescoço e
sentindo cada centímetro da pessoa que mais me assustava e me acalmava
no mundo. A ambiguidade da atração é engraçada, os sintomas são muito
parecidos com os da ansiedade. Eu sempre tive a mente ansiosa,
completamente viciada em Andressa.
“São só alguns beijos”.
“Ninguém precisa saber”.
Engajamos mais que o esperado no beijo, e ela me empurrou para longe
da escadaria. Estacionamos próximas à porta e eu sorri, sentindo que ela
fazia o mesmo.
Eu estive fugindo por tanto tempo. Fugindo do respiro, de Andy, de
mim. Tê-la me parecia mentira. Não podia ser de verdade. Nada daquilo.
Eu nunca imaginei que eu fosse verdadeiramente capaz de beijá-la, mas
eu consegui. Eu consegui pra caralho.
E aquelas semanas, me recordo com pesar, foram as melhores semanas
da minha vida.
CAPÍTULO TREZE. FALTOU
SAL.
Ajeitei a gola do meu casaco, sentindo o ar condicionado mais forte do
que deveria. O Uber demorou a aceitar minha corrida e eu cheguei tarde
para a minha aula, pegando um lugar terrível. Minha cadeira estava
posicionada exatamente embaixo da saída de vento, e o sopro congelante
que batia na minha nuca congelava meu corpo inteiro.
Eu já não aguentava mais estar ali. Era segunda-feira e eu estava presa
na minha primeira aula: sociologia.
O começo da semana costumava ser caótico para mim no que diz
respeito a responsabilidades acadêmicas.
Na segunda, eu tinha aula de manhã e à tarde, e os professores sempre
chegavam no horário. Eu me irritava profundamente com o fato de que eles
nunca cancelavam aquelas aulas. Contava com isso todos os dias. Era o que
me fazia levantar na cama: a certeza de que pelo menos uma aula eu não
teria.
Naquele dia, não tive sorte.
Eram dez e vinte e oito e eu estava na faculdade.
As segundas me eram muito insuportáveis também, pois eram dias nos
quais Ana Clara não tinha nada para fazer ali. Nas semanas anteriores, ela
marcou reuniões com seu orientador, então acabamos nos encontrando com
mais frequência. Só que grande parte das alterações já haviam sido feitas e,
na semana após aquela festa universitária (d.a.), ela aproveitou todo o
tempo que tinha para ficar em casa escrevendo seu texto.
O único ponto positivo disso é que eu precisaria omitir
(presencialmente) sobre o que havia acontecido para menos gente. E que eu
tinha muito tempo livre para fantasiar.
No domingo, depois que eu e Andressa terminamos aquela pouca
vergonha nas escadas, tivemos que retornar para a festa, e fizemos o nosso
máximo para disfarçar o fato de que ela estava usando a porcaria de um
batom com uma fixação incrível.
— Fodeu, Mila, vamos ter que ficar por aqui mais umas três horas. No
mínimo. — Havíamos trocado de lugar e, de alguma forma, eram as minhas
costas que encostavam na parede. Ela apoiou um dos braços ao lado do meu
rosto, encarando minha boca com muita indecência. — Estou pensando em
uma solução. Talvez saia com mais algumas tentativas.
Dei um tapa fraco em seu ombro.
— Andressa. Para.
Ela riu e eu senti que meu rosto ficou vermelho.
— Dá um jeito na sua cara também! Tá terrível — inqueri, e ela
continuou a sorrir, enquanto eu me esforçava para parecer composta outra
vez.
Depois desse desastre, ela aprendeu, e eu também. Sem batom quando
estávamos por perto. Era uma das regras do nosso “disfarce”. A segunda era
não nos encarar muito quando em público. A gente não lidava bem com
esse tipo de coisa. Então, sem troca de olhares e definitivamente sem toques
acidentais! Um metro de distância, no mínimo. Foi isso que nunca
dissemos, mas estipulamos. E eu era bem melhor seguindo regras do que
ela.
Felizmente, meu ex-namorado se sentou mais inclinado na minha
direção quando voltamos, e tudo que ele falou foi:
— Vocês demoraram, então já peguei pra vocês. Sei lá se vão passar de
novo. — Fomos recebidas com um pratinho de macarrão cada, e comemos
em silêncio.
Não sei se Henrique notou alguma coisa naquele dia, só sei que levamos
a sério nosso pacto e nenhuma de nós duas contou nada para ele.
Tivemos a oportunidade de colocar os assuntos em dia naquela manhã,
mas eu confesso que não prestei muita atenção nos relatos do meu ex. Não
quando bem no meu campo de visão, havia Andy.
Droga, eu só conseguia pensar nela.
Sonhei com ela naquela madrugada, enquanto dormia e sonhei com ela
pela manhã, quando estava acordada. Francamente, eu estava obcecada. E a
obsessão te leva para caminhos extremos, como os que eu persegui naquela
semana.
Enquanto eu estava na aula de sociologia, já haviam se passado muitas
horas desde que havíamos nos visto pela última vez (menos de vinte e
quatro horas). O que significava que eu estava contando os segundos para
beijá-la de novo. Sem coragem, no entanto, para tomar a iniciativa.
Eu estava elétrica. Tanto que todas as vezes que uma notificação
aparecia na minha tela, eu sentia meu peito palpitar.
Depois que deixamos aquele aniversário, eu esperei para ver se ela ia
me mandar alguma mensagem. Sinceramente, eu não sabia o que dizer. Não
sabia se aquilo havia sido o suficiente para ela, se ela se arrependia, se
queria parar. Eu não queria parar.
Não entendia como beijar alguém sem compromisso (e em segredo)
funcionava. Não tive muitos casos amorosos, você sabe e, com Henrique,
eu não precisei de nada daquilo. A pressão era bem menor, justamente
porque o mundo não colapsaria se Regina descobrisse, e eu não sentia uma
necessidade tão grande de estar com ele. Com Andressa, eu sentia tudo em
um nível absurdo. Era sufocante, as expectativas eram muitas... só que ela
não me mandou nada. Não até que a manhã chegasse e eu recebesse a
notícia.
Não tive coragem de encaminhar nenhuma mensagem, mas mandei para
o seu irmão. Tentei não soar suspeita ao rodeá-lo com perguntas sobre
Andressa e seu retorno para casa. Ela tinha chegado bem, era tudo que eu
sabia. Depois disso, ele simplesmente parou de me responder.
Renan não era do tipo que sumia do WhatsApp, então eu me preocupei
quando ele passou a me ignorar, sendo obrigada a tentar localizá-lo com
Brenda.
Normalmente, eu não teria problema nenhum em mandar uma
mensagem para a minha melhor amiga (obviamente). No entanto, eu a
estava evitando desde que me esquivei da responsabilidade. Em minha
defesa, era temporário. Eu planejava contá-la! Algum dia.
Após deixá-la sem resposta o sábado inteiro (e metade do domingo), eu
finalmente a respondi com um: “A gente conversa pessoalmente” e ela,
mais do que instantaneamente me replicou com: “Ok. Quando?”.
Marcamos para o próximo sábado, e foi o suficiente. Ela não tocou mais
no assunto, acho que notou que eu estava vivendo um conflito.
“Ninguém precisa saber”. Confesso que estava na dúvida se aquela
máxima se aplicava a ela, mesmo estando inclinada a achar que não. Pensei
em abordar o assunto algumas vezes, só que ela não sabia onde Renan
estava, e eu escolhi lidar com um problema de cada vez.
Liguei para ele, sem sucesso. Fui dormir e, quando acordei, o mandei o
equivalente a dez “ois”, até que ele enfim explicasse:
Andy 11:22h: oi
Andy 11:22h: to bem sim
Andy 11:26h: desculpa n ter te mandado nada
antes
Andy 11:28h: foi meio caótico até que alguém nos
confirmasse q ela estava bem
Retruquei depressa.
Andy 11:35h: n
Andy 11:37h: n fui
Óbvio.
A casa de Andressa, apesar de tudo, era um lugar seguro para mim. Era
onde eu havia passado metade dos meus dias do ensino médio e, se eu
tivesse que escolher um lugar para encontrá-la, certamente seria lá. Um
ambiente familiar, aconchegante e sem ninguém para nos flagrar, e contar
para a minha mãe.
Engoli em seco.
— Renan está vindo pra casa — anunciei, em voz alta. — Tenho que...
ir.
Ela assentiu, apalpando seus travesseiros.
— Ok.
Inspirei profundamente, encarando a sua camiseta subir
provocativamente conforme ela se movimentava.
Mordi meus lábios.
Apesar de termos ficado horas ali, eu ainda não estava satisfeita. Eu
sempre estive certa ao entender que uma dose de Andressa não seria o
suficiente para me saciar. Eu precisava da garrafa inteira. De várias delas.
Foda-se. Eu havia experimentado uma vez, e eu queria mais.
— Andy? — Ela me encarou. Os cabelos bagunçados, os lábios
inchados, a blusa comprida, cobrindo tudo e nada ao mesmo tempo. Inspirei
profundamente. — Você tem alguma coisa pra fazer amanhã?
Sorriu, e o quarto se tornou subitamente claro. Ajeitou sua coluna,
colocando-se ereta e respondendo:
— Nadinha.
Respirei fundo mais uma vez.
— Que tal a gente... marcar alguma coisa?
O sorriso em seu rosto era tão delicado e sincero que eu cogitei ignorar
a volta de Renan e a beijar de novo. E de novo. E de novo.
— Eu adoraria.
Sorri fraco em resposta.
— Ok. — Abaixei meu olhar, sentindo quando meu rosto ruborizou de
leve. — Vou pensar em algum lugar... reservado.
— Meus pais só voltam sexta — opinou. — Eu posso fazer macarrão
com molho branco dessa vez, se você gostar.
— Eu gosto.
Ela sorriu.
— Então... combinado?
— Combinado.
E foi assim que tudo se iniciou.
Depois daquele dia, seria incrivelmente complicado aguentar mais de
setenta e duas horas inteiras sem beijá-la. Era arriscado, era delicado, era
tudo que eu precisava.
Eu nunca me senti tão cintilante. Tão… capaz.
Antes de ir embora, naquele primeiro dia, lembro claramente de fechar
meus olhos e pedir, com todas as minhas forças:
Por favor, meu Deus, não tire esse sentimento de mim nunca mais.
CAPÍTULO DEZESSEIS. A
GENTE PODE ODIAR O EX
(SÓ NÃO É MEU CASO).
Fui para a casa de Andressa novamente na quinta-feira, e repetimos
grande parte dos acontecimentos do dia anterior — tirando o
constrangimento no sofá, o jogo clichê e o filme reprisando a tarde inteira,
sozinho.
Fomos direto ao ponto, estávamos mais treinadas e um pouco mais à
vontade para poupar os preparativos.
Mais uma roupa de cama para a lavanderia!
Eu me perguntei se seria educado da minha parte me oferecer para pagar
metade dos custos daquilo, mas verdade seja dita: eu não tinha uma fonte de
renda própria e minha mesada estava sendo minada nos carros que eu
pegava para vê-la. Achei justo que ela arcasse com a bagunça.
Andy estava ainda mais carinhosa naquele segundo dia, e altruísta. Ela
me deixou experimentar coisas nela, e eu gostei bastante do que fizemos, só
que sua complacência durou pouco. Ela me deitou de lado e me provou que
estava ainda mais certeira. Era autodidata no que dizia respeito ao meu
corpo. Eu não precisava falar nada, ela entendia, e eu passei a entendê-la
também.
Saí de sua casa mais radiante que no dia anterior.
Nas quintas, eu costumava ter aula à tarde, mas meu professor cancelou.
Não faltei nada para estar ali, e também não contei para ninguém onde
verdadeiramente fui. Para todos que não se chamassem Andressa Batista e
tivessem um fôlego absurdo (obrigada, natação), eu estava na faculdade.
Estava jogando tudo para o alto e vivendo no meu mundo de chiclete.
Fazia tudo que meu eu mais jovem se recusou a fazer. Corria riscos, em prol
de uma necessidade.
Foram essas as marcas da minha explosão. Foi assim que eu lidei com
tudo. Transformei Andy em mais uma das minhas mentiras.
Naquela quinta-feira, desci o prédio, por precaução, pelas escadas,
percebendo que eu tinha um bom instinto para ser uma fugitiva. Podem me
chamar para roubar um banco se precisarem, eu sou ótima arrumando
desculpas, dissimulando e me esquivando de olhares. Eu sou ótima
fingindo. Ele sabia bem.
Inspirei profundamente.
Camila 17:14h: Sim
Camila 17:14h: Na verdade, eu preciso te contar
uma coisa..
Camila 17:15h: Eu beijei Andressa naquele dia da
festa
Camila 17:15h: E depois na festa do pai do
Henrique
Camila 17:15h: E depois a gente transou
Camila 17:15h: Várias vezes
Camila 17:15h: E foi o melhor sexo da minha vida
Camila 17:15h: Todos eles
Camila 17:15h: Depois, eu encontrei com Henrique
e contei pra ele que a gente quase se beijou
naquela casa de praia
Camila 17:16h: Aliás, pois é. Você também não
sabia disso!
Camila 17:16h: A gente quase se beijou naquela
vez que fomos pra Búzios, e eu tentei confessar
isso pro Henrique hoje, mas ele já sabia
Camila 17:17h: Andressa contou pra ele, e ele me
abraçou e me devolveu meu pijama
Camila 17:19h: É isso. Boa tarde. Amo você
Fim.
PARTE III: ANDRESSA.
CAPÍTULO UM.
Nas primeiras recordações concretas que eu tenho de Camila Ferraz, eu
tinha onze anos de idade e ela nove.
Não sei fazer a triagem entre o que é real, o que é fruto da minha
imaginação e o que é uma memória contaminada pelas minhas percepções
atuais. Contudo, sempre que eu penso na Camila criança, eu me lembro de
suas trancinhas.
Sua mãe, Regina, era do tipo que gostava de fazer penteados
elaborados, e Camila sempre escondia no mínimo uma trança, em meio às
suas mechas. Às vezes, eram pequenas e discretas, em outras, ocupavam
seu couro cabeludo inteiro.
Eu me lembro de achar aquilo lindo, mas de me esquivar todas as vezes
em que minha mãe ameaçava fazer qualquer coisa parecida no meu cabelo.
Não era algo que combinava comigo. Não ficava “legal”. Não como ficava
nela.
Tudo parecia interessante em Camila Ferraz, até mesmo as coisas mais
idiotas, como aquele tênis de luzinhas. Ah, eu me lembro bem daquele
tênis. Camila tinha um, e ele piscava incisivamente na sola, chamando mais
atenção que um globo de discoteca quando a gente ia tomar sorvete com
nossas mães. Eu odiava aquele tipo de coisa. Nunca usei e nunca quis usar,
mas, quando ela usava, parecia legal para mim. As tranças, o tênis
chamativo, as unhas com florzinhas e as bolsas de cachorrinho.
Nossas famílias eram muito próximas quando tínhamos metade da nossa
idade atual, e, quando sua mãe ia passar as tardes na minha casa, era óbvio
que seus filhos iam junto. Como as duas únicas meninas das famílias,
sempre havia uma leve pressão para que brincássemos juntas, só que a
gente não acertava o ritmo. Camila gostava de Barbie e de uma brincadeira
que chamava de “brincar de gente”. Ela sempre teve um forte apelo
dramático correndo pelas suas veias, e gostava de criar histórias e
personagens, incorporando-os e os espalhando pela casa inteira.
Lembro até hoje da vez em que ela pegou duas meias minhas e colocou
debaixo de sua blusa. Era para imitar os seios, que sua personagem tinha de
sobra. Ela sempre se chamava “Luana” nessas brincadeiras, e a “Luana”
daquele dia trabalhava em uma revista de moda, tinha um carro prateado,
dois filhos e um marido.
Foi engraçado quando ela propôs aquilo, porque, pela primeira vez, me
recordo de querer participar. A lástima é que não havia muito espaço para
mim naquela brincadeira.
Renan sempre foi mais alinhado à Camila do que eu. Gostavam de
coisas parecidas, tinham uma conversa fluida, sempre houve uma conexão.
A minha conexão com ela não fazia sentido.
Eu não necessariamente gostava de Camila. Eu me recordo de ficar
nervosa perto dela, confusa, e de forçar uma distância a todo custo. E não
era somente porque eu não via graça em seus jogos que eu me recusava a
brincar com aquelas Barbies. Não foi falta de interesse que me fez
dispensar todas as rodadas de “brincar de gente” que rolaram pelos
cômodos do meu apartamento; foi porque Renan sempre assumia o papel
que eu queria. Ele sempre foi o marido de Luana, e eu não me interessava
em ocupar nenhum espaço além.
Com Camila, foi a primeira vez que eu me senti dessa maneira. Eu não
queria ser mais uma das suas amiguinhas da escola, eu só queria ficar
sentada a observando. Para mim, isso já era o suficiente. Camila gostava de
coisas que eu nunca gostei, enquanto eu só me lembro de gostar dela.
Eu me recordo de ter onze anos, a assistir pulando com meu irmão pelos
cantos e achá-la deslumbrante. Sei que pensava "caramba, ela é muito
bonita! Se eu fosse um menino, eu namoraria com ela".
Não sei se crianças podem verdadeiramente se apaixonar por alguém,
mas sei que se ela queria colocar um pôster com a cara do Caio Castro no
seu quarto, eu queria um com o seu rosto.
Isso durou por todo o tempo que passei no Rio de Janeiro, então, tive
que me mudar.
Eu tinha doze anos quando fomos para Salvador. Metade da minha
família é de lá, e retornamos às origens da minha mãe quando minha avó
materna descobriu um câncer de intestino.
Eu não gosto da palavra “câncer”, ela me causa algo ruim, mas não
existe exatamente um sinônimo para o termo. Assim como não existe
palavra 100% análoga à safadeza adolescente.
Quatorze anos já é idade suficiente para começar a descobrir o incrível
mundo dos “relacionamentos”, e eu acabei sendo a última das minhas
amigas a beijar pela primeira vez. Ou então, fui a única que não mentiu a
respeito até que realmente tivesse acontecido. Seu nome era Arthur, ele era
o garoto mais bonito da turma, e eu fui muito elogiada por ter conseguido
beijá-lo antes que ele engatasse seu namoro com a igualmente requisitada
Rebeca.
Eles eram o casal do momento.
Minhas amigas eram obcecadas por Arthur; meus amigos, por Rebeca.
Eu me lembro claramente de já ter desejado os dois.
Tudo isso aconteceu mais ou menos na época em que a minha avó
estava se recuperando de sua terceira cirurgia. O ano estava acabando e eu
participaria do que seria a maior competição de natação que já havia
enfrentado até então.
Acabei descobrindo uma coisa sobre mim na época. Eu não lidava bem
com as expectativas da minha família.
No geral, posso dizer que tive algumas paixões. Não me considero uma
pessoa passional, mas certamente sou movida por encantos fortes. A água
sempre foi um deles. Eu comecei na natação com dois anos, e nunca mais
parei. Quer dizer, não parei até que eu precisasse parar.
Uma das coisas que eu mais gostava quando estava dentro da água
era do silêncio. O universo subaquático parecia mais pacífico e interessante
que o de fora. Eu gostava do fato de que eu nadava sozinha. Esportes em
equipe nunca foram interessantes para mim. Eu gostava do meu espaço, do
aconchego. Nadei no mar algumas vezes, e não havia nada mais difícil e
transcendental que isso. Eu me sentia conectada a mim mesma enquanto
nadava, me sentia livre. Era tranquilo, eu me esforçava para encontrar um
ritmo e, então, eu conseguia pensar. Meus pensamentos sempre foram
barulhentos, incessantes, meu lado racional controlador. Debaixo da água
eles se calavam. Um pouco.
Acho que como irmã mais velha, eu sentia a necessidade de ser um
exemplo de vitória para o meu irmão. Com a minha avó doente indo assistir
à minha competição, eu precisava vencer. Precisava subir no pódio. Por ela,
pelo meu pai, que pagava a natação. E pela minha mãe, que gostava de
pendurar cada medalha que eu ganhava nas paredes. Eu tinha que vencer
por eles. Eram suas expectativas e eu, de braços dados. Eu ganhei, e
continuaria ganhando. Pois por eles, somente por eles, eu precisava
continuar sendo boa.
Nunca gostei de competir, esse nunca foi meu objetivo com a natação.
Eu só queria nadar. Só que é bastante complicado querer coisas como essas.
O mundo te cobra planos mais concretos, especialmente quando você é uma
pessoa não branca. Eu sempre tive que provar meu valor duas vezes mais
que o restante, e isso é exaustivo.
Eu me lembro que a primeira vez que eu senti falta de ar foi fora da
água. Eu nunca entendi aquele sintoma como algo maior do que um breve
desconforto. Sentir coisas estranhas sempre foi meio que parte de mim. Eu
usava da natação para me acalmar. Fiquei meio alterada sem ela.
Minha avó recebeu alta definitiva duas semanas antes do aniversário de
dezesseis anos de Renan. Estava curada do câncer e, um mês depois, nos foi
repassada a notícia de que, como consequência disso, retornaríamos ao Rio
de Janeiro no próximo ano.
As oportunidades para o emprego do meu pai se provaram melhores lá e
tivemos que voltar. Antes disso, no entanto, eu vivi uma coisa diferente.
Sempre tive contato com muitas pessoas fora da minha bolha, graças à
minha vida de atleta e, depois de Arthur, descobri rápido do que eu também
gostava.
Além das competições e dos treinos dentro da água, eu passava muito
tempo da minha semana fazendo o chamado “treinamento seco”.
Basicamente, tratava-se de musculação e, principalmente, exercícios
cardiorrespiratórios. Minha treinadora era rigorosa, e eu precisava passar
para ela relatórios de desempenhos todas as semanas. Ela tinha um objetivo
com tudo aquilo, estava focada nos campeonatos regionais e foi em um
desses que eu conheci Fernanda.
Fernanda foi a primeira garota com a qual eu me envolvi, e eu só tive
coragem de beijá-la, dentro de um vestiário nojento e com cloro por todo o
corpo, porque eu estava prestes a me mudar de cidade e nunca mais vê-la.
Depois dela, as coisas mudaram por completo.
Retornamos ao Rio, e foi aí que tudo começou a ficar insuportável para
mim.
Camila e Renan se reconectaram com força total. Calharam de estudar
na mesma turma no ensino médio, e se tornaram inseparáveis.
Coloque-se no meu lugar. Eu estava descobrindo e começando a
explorar o fato de que homens talvez não fossem a única identidade de
gênero pela qual eu me atraía. Enquanto isso, havia ela, crescida, desfilando
pelo meu apartamento com seu uniforme justinho e seus cabelos sempre
soltos, espalhando purpurina para todos os lados.
Para onde eu olhava, havia Camila. Ela ia para a escola no nosso carro
de manhã, eu voltava com ela na hora do almoço. Ela espalhava seus
cadernos temáticos pela mesa da minha sala e esbarrava comigo quando ia
ao banheiro.
“Desculpa”, dizia, com uma constância irritante, e seu rosto ficava
instantaneamente vermelho quando me olhava, o que era a coisa mais
adorável do mundo inteiro.
Depois que ela voltou a passear pelo corredor do meu apartamento com
seus cabelos não tão escuros, tampouco tão claros, e suas pulseiras de
miçangas, eu jamais fui capaz de desviar o olhar.
Camila era parte da minha casa. Eu esperava encontrá-la por lá com a
mesma naturalidade que esperava encontrar o sofá, estacionado na sala. Nos
primeiros meses daquele fatídico terceiro, para ela segundo, ano do ensino
médio, eu a via mais do que via a meu pai! E meu pai nunca foi ausente,
não foi isso que eu quis dizer. Apenas que Camila era onipresente,
justamente durante a minha fase hormonal mais borbulhante. Foi inevitável
o que aconteceu.
Ela me disse uma vez que imaginou que eu a odiasse, e eu acho muito
engraçado que essa tenha sido a sua leitura dos fatos. A verdade sobre o que
estava acontecendo naqueles meses era a seguinte: eu cresci e passei a
entender meus sentimentos. Eu sabia que minha vontade de ser “seu
marido” naquelas brincadeiras não era nada inocente. Eu sempre me senti
profundamente atraída pela melhor amiga (até onde eu sabia, hétero) do
meu irmão, e não sabia o que fazer com esse maldito roteiro de fanfic que
despencou em mim quando eu menos esperava.
Quando Camila tinha dezesseis anos, havia parado de usar tranças, mas
seus cabelos continuavam lisos. Ela mexia neles com constância. Os jogava
para o lado quando estava nervosa e para o outro quando estava distraída.
Fazia uma coisa charmosa com os dedos, enroscando as mechas com a
mesma facilidade que enroscava a atenção de todos. Tenho a impressão de
que ela nunca se deu conta do quão fascinante realmente era. Tive amigos
que ficaram putos quando Henrique começou a namorá-la. Camila era
deslumbrante, engraçada e falastrona. Eu poderia ouvi-la falar por horas,
sem parar. Assim como poderia falar sobre ela por anos. E, apesar de tudo
isso, eu fiz a minha parte.
Eu evitei o drama por meses completos. Eu me distraí, encontrei
pessoas novas. Resisti, pelo máximo de tempo que consegui, mas nunca fui
forte.
Não me culpe por ter me aproveitado do fato de que o Universo parecia
a inserir em cada detalhe da minha vida. Não foi programado, não fui eu
que desmarquei minha aula de natação naquele dia. Não tenho culpa se o
treinador mais pontual que eu já tive resolveu cancelar a aula por causa de
seu atraso. Não tenho culpa se ela resolveu entrar, com uma blusa de
babados e nenhuma outra testemunha, na minha cozinha, bem na hora em
que eu também estava lá.
Eu só tenho culpa de uma parte. Eu a vi ali, tentadoramente sozinha e
obviamente apaixonada pelo meu irmão, enfiei uma fatia de bolo na boca e
testei a minha sorte.
O resto, eu culpo o destino.
CAPÍTULO DOIS.
Uma coisa que eu acho que a Camila nunca soube é que ela foi a
responsável por destruir meu quase-relacionamento com uma garota
chamada Sofia.
Nós estávamos conversando há semanas até que eu fizesse a besteira de
deixar de sair com ela em um domingo para ir a um churrasco que o pai da
Camila nos convidou. Não sei se Mila se lembra desse dia, ainda estávamos
no colégio, mas ele foi meio que um divisor de águas para mim.
Eu nunca fui a pessoa mais discreta do mundo. Parte da necessidade de
me assumir o mais breve possível para os meus pais veio daí. Eu nunca fui
capaz de esconder, ou de me esquivar, quando estava interessada em
alguém. Nunca fui minimamente contida no que diz respeito à Camila
Ferraz, e Sofia morria de ciúmes dela.
É cômico que ela já sentisse isso na época, porque foi o único período
que eu realmente concordei que não havia nada acontecendo entre nós.
Havíamos mantido um diálogo breve três vezes antes daquele churrasco, e
Camila não me deu muita moral. Sua falta de interesse, no entanto, não foi
o suficiente para me fazer desistir. Eu simplesmente não conseguia ficar
próxima a ela sem sentir metade de mim em combustão.
Sofia sabia disso, ela notou, na única vez em que foi na minha casa,
esbarrou com Camila e me perguntou quem era. Alguma coisa na forma que
eu falei “amiga do meu irmão” me entregou. Não sei que porra foi, só sei
que depois desse dia, ela passou a enxergar Camila como uma rival. Tentei
contornar a situação e afirmar que não havia nada demais no fato de que eu
preferia estar em um churrasco com a garota que nunca havia tocado antes
do que com a que eu estava realmente ficando, mas falhei. Sofia decidiu
parar de me ver naquele dia, e eu não tive como discordar.
Passei meses tentando não fazer uma besteira como aquela com Sofia.
Eu sabia que Camila estava obviamente encantada por Renan, então os
deixei resolver a situação entre eles, sozinhos. Eu tentei muito não me
intrometer, mas então ela me chamou de “Andy” e eu vi que gostou quando
eu a chamei de “Mila”. Eu notei quando ela trocou os pés, o leve rubor em
suas bochechas, então tive que me voluntariar para convidá-la para a festa
surpresa que organizamos para o meu irmão. Tive que a fazer companhia
quando ele, sem noção da sorte que tinha, a trocou pelo vídeo game, e tive
que ir àquele churrasco. Eu tentei não me intrometer na sua vida. Várias
vezes, repensei sobre o que estava fazendo, e me esforcei para dar o espaço
que precisava. Mas, depois que eu comecei, não consegui mais parar.
Camila estava certa, eu nunca soube desistir de nada, muito menos dela.
CAPÍTULO TRÊS.
Eu parei de fazer aulas de natação porque tive que começar um cursinho
pré-vestibular. Não era um cursinho oficial, apenas um disponibilizado pela
escola, mas era igualmente entediante. Eu ficava para o período da tarde, e
passava incontáveis horas assistindo aos professores resolvendo exercícios.
O que eu tirei dessa experiência foi muito estresse, uma piora nas faltas
de ar e muito mais tempo confinada com um cara chamado Henrique em
uma sala de aula.
Fui amiga de Henrique desde a minha primeira estadia no Rio de
Janeiro. Nós nos conhecemos na alfabetização, e só ficamos sem nos falar
uma vez, em toda a nossa vida, logo depois que eu fiz a maior merda de
todas e tentei beijar a sua namorada.
Henrique era um garoto metido, cheio de marra e com um coração
gigantesco. Compartilhamos, por todo esse tempo, piadas, algumas blusas e
até a mesma garota.
Eu nunca tive o costume de nomear as pessoas da minha vida. Sei que
Camila tem, porque eu mesma já estive em algumas classificações
interessantíssimas, como “quase amiga sazonal”. Mas, se eu tivesse que dar
um nome para Henrique, seria “melhor amigo”.
Ele me ajudou bastante com grande parte das coisas que aconteceram
comigo naquele ano. Tentava me distrair do fato de que os estudos me
consumiam, me convidando para dezenas de resenhas diferentes, me
embebedando e me dando cobertura, quando eu resolvia ser descarada e
fugir para o canto com alguma garota. Eu não era assumidamente bissexual
naquela época, nem mesmo para ele, mas nunca precisei contá-lo para que
soubesse. Na verdade, foi ele que me apresentou à Gabi.
Gabriela era vizinha de um amigo, que era irmão de outro, que era
primo de outro, que conhecia Henrique de uma social. A primeira vez que
eu a vi, havia acabado de beber minha quarta lata de Skol Beats, e estava
cheirando aos cigarros de Ana Clara. Acho que a amiga de Camila, Brenda,
também estava nessa festa. Era o aniversário de alguém, não me lembro de
quem, e nossos grupos estavam todos misturados e bêbados. Tinha uma
pista de dança, e era open bar. Ninguém sentiu minha falta quando ela me
levou até o banheiro.
A primeira vez que eu transei com uma garota foi no banheiro de uma
festa, com mais de um litro de Skol Beats me tornando ousada, mas bem
menos assertiva. Felizmente, minha inexperiência não a fez sumir.
Continuamos nos esbarrando e nos curtindo em todas as festas em comum
que frequentávamos. Incluindo uma na qual Camila também estava.
Fazia tempo que Brenda não frequentava uma resenha, assim como
fazia um bom tempo que Camila não aparecia na minha casa. Só que era
automático. Sempre que eu via Brenda, eu me lembrava de sua amiga e,
assim que eu li seu nome na tela, confirmando sua presença, tive que
perguntar se Camila também iria.
Não, não era costume dela, estar naquele tipo de ambiente, mas fazia
tempo que eu não a via, e imaginei que um milagre pudesse acontecer.
Ironicamente, ele aconteceu.
Sei que Brenda a contou que perguntei sobre ela, e sei também que nada
me alegrou mais do que receber uma mensagem sua pedindo para eu cobrir
a sua barra com a sua mãe e ir com ela ao “evento”.
Porra, ela tinha que perguntar?
Não vou mentir, apesar de sentir uma atração absurda por Camila, eu fui
um pouco covarde no que diz respeito a nós no começo. Não sei se me
culpo tanto por isso, afinal, eu estava no armário e não fazia a menor noção
se meu gaydar era realmente tão certeiro assim. Ele me ensurdecia quando
eu chegava perto dela, mas, enquanto isso, ela dividia risadinhas e olhares
com Henrique. Eu não tinha certeza de suas preferências, muito menos
ousadia para testá-las tão cedo. Eu estava receosa, então passei metade da
minha noite tentando esquecê-la com a Gabi.
Fiz meu máximo para não vê-la, incomodá-la ou me iludir ainda mais,
até que ela me encurralasse no corredor com uma das confissões mais
surpreendentes com as quais já tive que lidar. Seus pais estavam brigando,
ela me confidencializou aquilo, e eu passei a noite inteira tão focada na
necessidade de tirá-la da minha cabeça que me esqueci de que tinha
prometido que voltaríamos para casa cedo. Aquele deslize pioraria as suas
questões familiares e eu me senti a pior pessoa do mundo inteiro.
Tentei consertar as coisas depois disso, mas acho que só piorei. Camila
fugiu de mim algumas vezes durante todo esse tempo, e a primeira delas foi
da minha própria cama. Ela dormiu lá em casa nesse dia. Tentei, com a
ajuda da minha mãe, a acobertar, pelo menos um pouquinho, mas não sei se
consegui. Ela me evitou por um tempo, eu viajei e, quando voltei de
viagem, ela estava namorando o meu amigo.
CAPÍTULO QUATRO.
Se assumir LGBTQIAP+ para a família é possivelmente uma das coisas
mais difíceis que um adolescente pertencente à comunidade pode fazer. Eu
nunca fui defensora dessa necessidade. Em um mundo ideal, isso não seria
preciso. Assim como eu nunca precisei dizer aos meus pais que eu gostava
de homens, gostaria de não ter precisado reuni-los em uma mesa para dizer
que eu também gostava de garotas. Seria incrível se pudéssemos
simplesmente viver com isso, sem todo o constrangimento. Mas, muitas
vezes, não é possível. Eu tive que sair do armário para os meus pais, para o
meu irmão e para todo o resto do mundo, o tempo inteiro, desde que eu
decidi que não queria mais ficar tentando esconder as coisas que eu
verdadeiramente sentia.
Tive sorte, minha família não teve problemas com a minha revelação e
até mesmo o meu pai desistiu de combater a verdade depois de pouquíssimo
tempo a digerindo. Mas isso não significava que todos também fossem ser
assim. Eu já sofri com homofobia, assim como eu já sofri com invalidação,
até mesmo dentro da própria comunidade. Eu nunca me importei com os
olhares atravessados que me eram dirigidos, ou com as piadinhas de mau
gosto nos almoços com os meus tios. Mas isso não tornava menos
complexo o fato de que eu nunca tinha a audácia de confessar para o
motorista do Uber que aquela garota que estava comigo não era minha
amiga e sim a pessoa que eu estava beijando. Isso não significava que eu
não me precavesse, que eu não sentisse medo.
Todo esse papo não é para assustar, apenas para dizer que eu entendo
Camila. Sempre entendi, desde o princípio. Foi por isso que fiz o meu
máximo para não ultrapassar nenhuma linha, muito menos fazer algo que
pudesse constrangê-la. Eu sabia que ela não tinha tido nenhuma relação
com garotas. E estar com a sua primeira era algo que ia além do que ela, por
sorte, pudesse sentir por mim. Acho que foi por isso que eu nunca senti
tanto ciúmes assim de Henrique. Óbvio, eu preferiria vê-la comigo do que
com ele, porém eu sabia que ela precisava dele, e sei o quanto ele a ajudou,
quando eu não pude fazer o mesmo.
Sem vitimismo, mas era meio difícil estar na minha situação. Eu achava
Camila linda quando era criança, passei a achá-la absurdamente
maravilhosa quando voltei para o Rio e, naquele ponto da minha vida,
estava explodindo com a necessidade de sugar cada detalhe que havia nela.
Ao mesmo tempo, eu não podia pular etapas, a empurrar em um canto
qualquer e provar sua boca, da forma que eu vinha fantasiando fazer há
anos.
Ela estava namorando. E eu podia estar enganada pra caralho... mas,
mesmo com Henrique, notei que ela passou a olhar diferente para mim.
Ela se debruçava para perto, ela mexia no cabelo, ela puxava papo. Eu
percebia que ela estava interessada. Curiosa, no mínimo. E tudo bem por
mim, eu não me importava em ser seu experimento, se fosse só isso que ela
queria. Eu seria o que ela precisasse que eu fosse. Eu só queria estacionar
sua fala um instante, a dar um beijo e depois, continuar a ouvindo falar.
Eu notava o vermelho em seu rosto quando eu arriscava um elogio, o ar
que permeava as suas palavras, o desconforto. Às vezes, eu me acercava de
propósito. Só alguns centímetros. O suficiente para perceber o ligeiro
arrepio em seus pelos, então eu me recolhia outra vez.
Ela tinha a silhueta mais bonita que se tem notícias, um rosto de
cerâmica, e eu estava em borbulhas, mas tentei ser um pouco mais
cuidadosa quando entendi o que estava passando. Eu via que ela estava com
medo e eu estava sendo exemplar. Aproveitava os momentos que tínhamos
sem forçar nada, sem me exceder, me contentando com as fantasias que eu
tinha, impróprias para esse texto, mas muito menos incríveis do que foi de
fato tê-la. Eu aprendi a me alimentar de olhares, até que perdi o controle e
fiz uma das piores besteiras da minha vida.
Viajamos juntas e eu tentei beijá-la, mas ela virou o rosto.
Não foi só a rejeição que me transformou em um emaranhado taciturno.
Foi a culpa também. A culpa por ter estragado tudo com ela, e com ele.
Por um grande período de tempo eu me perguntei se estive errada. Se
misturei as minhas expectativas com as dela, baguncei tudo e acabei
trocando as etiquetas. Eu fiquei tão imersa que não sabia mais onde eu
terminava e ela começava e, talvez, eu pudesse ter confundido meus
sentimentos com os dela. Quando ela me afastou, eu não sabia se era porque
ela não se interessava por mim, se era porque estava namorando ou porque
estava assustada.
Por muito tempo, ela nunca me contou as coisas que aconteceram nos
bastidores, eu só fiquei com o grand finale. Tudo que eu tive de material
para trabalhar na minha cabeça foram as suposições. A culpa me consumiu
e eu contei para Henrique o que havia feito. Então tive que aprender a
conviver com a ausência dele e a dela.
Tudo bem, o erro foi meu, eu lidaria com as consequências. Eu
superaria. Era isso que eu havia aprendido a fazer. Você nada. Se ficar
parado, você afunda.
Fiz o vestibular, algo que tentei me preparar o ano inteiro, e me senti
péssima quando acabou. Senti meu corpo inteiro tremer a madrugada que
procedeu aquela prova. Eu sabia que aquilo não era normal, mas eu estava
me punindo.
Nunca consegui me livrar da sensação de que sou uma mal-agradecida.
Eu sempre tive privilégios, e reclamar de qualquer coisa relacionada à
minha vida me parece ingratidão. Eu aprendi muito cedo a mensurar
problemas, e os meus me pareciam bobos. Eu não queria conversar com
ninguém sobre como eu me sentia sem propósito na minha vida. Eu só
queria seguir com ela. E eu segui.
Entrei na faculdade e passei um ano espiando Camila de longe.
Vi, pelas redes sociais, quando ela tentou um corte de cabelo novo. Uma
franja longa, a qual manteve presa com grampos até que crescesse.
Suponho, dados os fatos, que ela nunca tenha gostado dela. Nunca
comentou sobre o assunto, nunca mais a cortou, mas eu a achei linda.
Vi quando ela começou a trocar suas bermudas por shorts. Vi seu corpo
mudar, sua fala crescer. Ouvi sobre seus problemas, soube o que estava
acontecendo com a sua família e quis muito chegar perto outra vez. Eu quis
consolá-la, mas ela não precisava de mim para isso. Na verdade, imaginava
que eu fosse piorar a situação.
Ao mesmo tempo em que eu sentia uma necessidade absurda de
protegê-la, sabia que ela era capaz de lidar com tudo aquilo sozinha.
Mila nunca foi frágil, ou incapaz, apenas foi levada a acreditar nisso.
Ela ainda não havia descoberto o quão incrivelmente independente poderia
ser.
Ela pedia muitas desculpas, sempre disse isso a ela, e essa não era a
palavra certa a se repetir com constância.
Queria que ela pudesse passar um dia se assistindo com os meus olhos.
Acho que não restariam dúvidas então. Ela é a poesia que veio escrita no
meu verso, uma sinfonia de estrelas entrelaçadas. Ela sempre foi tudo, e era
doloroso ver como se considerava, muitas vezes, merecedora de nada.
Se alguém deveria pedir desculpas por algo, esse alguém era o
Universo. Desculpas por cada segundo que a deixou passar sem saber o
quanto era amada, aceita e capaz. Desculpas a mim, por tê-la mantido longe
tanto tempo.
CAPÍTULO CINCO.
A primeira vez que beijei Camila foi também a primeira em que eu
realmente senti que estava vencendo em alguma coisa. Dezenas de
medalhas penduradas em um prego não se comparavam à euforia que me
inundou quando eu a segurei pelo rosto, sentindo cada milímetro de sua
pele. Camila foi a primeira competição que eu me inscrevi,
voluntariamente, na vida. A única que eu me empenhei para ganhar e eu
não exagero quando digo que a maior vitória da minha vida foi ter
conseguido beijar aquela garota.
Camila sempre foi um objetivo para mim, mas não daqueles que você
quer alcançar apenas para riscar da lista. Ela era um dos quais faziam parte
do meu quadro dos sonhos, um dos que eu queria que chegasse, e ficasse,
para sempre. Quando ela chegou, depois de tanto tempo, eu nunca mais quis
que ela fosse embora.
Ficamos um ano distantes, e eu confesso que não foi surpresa para mim,
vê-la naquela faculdade. Meu irmão era bastante fofoqueiro, e eu sempre
soube muito mais do que ela imaginava.
Eu sabia que ela havia passado para psicologia, por exemplo.
Coincidentemente, um curso que ficava no mesmo campus que o meu. O
que eu não sabia, contudo, era que ela havia se grudado à Ana Clara logo
nos primeiros segundos.
Culpo novamente o destino por tê-la colocado sentada naquela cadeira
de plástico, sozinha e encantadoramente sem graça. Eu não esperava que ela
fosse frequentar festas como aquelas, Camila sempre evitou qualquer tipo
de evento. Aparentemente, não mais.
Vê-la, depois de um ano inteiro, mais bonita do que nunca, me assustou.
Eu fugi naquele dia. Fugi porque caiu a ficha de que todas as canções
sempre estiveram certas. É muito difícil se esquecer do seu primeiro amor.
Mesmo que ele tenha negado um beijo seu.
Eu nunca havia superado a vontade insana de tê-la. Caralho, um ano
inteiro se passou, e eu ardi ao ser o alvo, por menos de dois segundos, de
sua atenção! Ela sorriu para mim e eu soube que eu jamais conseguiria
viver a minha vida em paz se não tentasse, só mais uma vez, selar aquele
sorriso meigo com a minha boca.
Muitas coisas haviam mudado em Camila. Detalhes sutis, mas nada
pequenos. E eu amei cada um deles. E eu os queria, com ainda mais
insensatez e falta de pudor do que nunca.
Para a minha surpresa, e felicidade, Camila estava finalmente solteira, e
grudou em Ana e Jéssica, pessoas que faziam parte do meu ciclo de amigos,
com uma facilidade insana. Elas basicamente a adotaram, e essa
proximidade culminou em uma Camila rebolando na minha frente, em mais
uma festa na qual ela, surpreendentemente, compareceu. Esse não foi o fato
principal, mas certamente um dos contribuintes para que chegasse o fim da
noite, e a gente enfim se beijasse.
É muito engraçado, talvez até preocupante, mas não me recordo de um
dia da minha vida no qual eu não estivesse interessada em Camila. Aquele
beijo apenas reafirmou o que eu já sabia: nosso encaixe era perfeito.
Nós nos beijamos algumas vezes antes de chegarmos ao acordo de que
daríamos continuidade àquilo escondido. Fui eu que propus aquele
esquema, quero que isso fique claro, e não me arrependo.
Ninguém tem o direito de tirar ninguém do armário e, obviamente, não
foi o melhor dos casos para eu escondê-la. Minha vontade era gritar para os
quatro ventos que aquela mulher era minha, no sentido menos problemático
possível da sentença. Mas eu quis Camila por metade da minha vida e, se
aquela era a única forma de tê-la, foda-se. Eu faria tudo de novo.
Não me arrependo de nenhum segundo que passei ao seu lado. Tenho
minhas suspeitas de que ela vai tentar fazer parecer mais grave do que
realmente foi. Para mim, não foi nem um pouco difícil estar com ela. Pelo
contrário. Eu não estava enfrentando o melhor dos momentos quando ela
retornou, mas ela, e somente ela, fez tudo parecer dezenas de vezes melhor.
Teve uma vez — e eu prometo que será o último relato que você vai ter
que ler antes de entender o porquê de ter me pegado saindo da casa da sua
mãe naquele dia — que estávamos sentadas próximas, daquele jeito
cauteloso que sempre fazíamos, debaixo de uma das árvores mais altas do
prédio de Psicologia. Poucas pessoas passavam pela gente, era meio da
tarde. Sua aula havia sido cancelada, enquanto a minha, bom, eu não fui.
Menti para ela na ocasião, disse que meu professor também havia desistido
da aula, e ela acreditou. Estava começando a se atentar a esse tipo de coisa,
e a me cobrar coragem.
Pois bem, Camila, você será uma ótima psicóloga um dia, porque
acertou o meu ponto mais fraco. Minha família.
Eles estavam felizes com o meu curso. Na verdade, sei lá. Acho que
eles estavam felizes com o fato de que eu estava fazendo alguma coisa. A
sensação de estar caminhando que a faculdade dava os acalmava, entende?
Mesmo que você esteja perdida, é plenamente possível fingir que não está
nessas condições.
O encanto pelo meu curso acabou depois de pouquíssimo tempo dentro
dele. Mas, quando me dei conta, já era tarde demais. Eu já estava ali, já
havia saído da natação há anos e já não tinha mais controle nenhum da
minha falta de ar.
Eu fiz um pouco errado, acho que a futura psicóloga dentro de Camila
me julgaria se soubesse, mas eu fiz dela a minha piscina. Ela era a única
coisa que me parecia no lugar. Eu tive algumas paixões, elas me moviam, e
Camila sempre foi uma delas.
— Você nunca mais nadou, né, Andressa? — Ela jogou aquele fato
entre nós sem preparar terreno.
Tinha mania de fazer isso. Aproveitava dos momentos em que
estávamos em silêncio para trazer à tona, do nada, sentimentos complexos,
os quais eu imagino rodando e ricocheteando pela sua cabeça o dia inteiro.
Aprendi a não me surpreender quando ela verbalizava aquele tipo de
questionamento. Eu gostava. Gostava da forma como sempre havia
conseguido entender as coisas que aconteciam comigo, sem que eu
precisasse explicar.
Eu gostava de quando ela me vinha com perguntas aleatórias como
“você ficaria um ano inteiro sem falar com os seus pais por um milhão de
reais?”, e depois se indignava com as respostas que eu dava. Eu gostava
muito quando ela me explicava sobre a ordem cronológica dos filmes da
Marvel. Era fascinante vê-la falar sobre coisas que gostava. O entusiasmo, a
fagulha em seus olhos. Imagine como eu me senti quando entendi que falar
sobre nós fazia seus olhos brilharem com a mesma intensidade que o idiota
do Capitão América?
— Faz um tempinho — respondi, espantando para longe uma folha de
cima de sua calça.
Camila Ferraz nunca foi capaz de se sentar diretamente na grama.
Quando explorávamos hábitats como aquele, sentava-se em cima da sua
mochila. Mas eu havia levado um casaco naquele dia, e ela acabou em cima
dele. Às vezes, eu tinha inveja de objetos inanimados.
— Eu tava lembrando... — Suspirou, ligeiramente sem graça. —
Daquela vez que você me fez entrar no mar contigo.
Ri.
— Aquela que você tomou um caixote cinematográfico?
Eu gostava muito de tingir seu rosto de vermelho. Na falta da natação,
esse se tornou meu esporte favorito.
— Porque você foi uma péssima salva-vidas? — retrucou, espertinha.
— Uhum, esse mesmo.
— Em minha defesa, eu falei pra você mergulhar.
— Eu achei que dava pra passar por cima! — se defendeu, e eu ri.
— Tá tudo bem, Mila. Caixotes constroem caráter.
— Você não sente falta?
— De tomar caixote? — Revirou os olhos.
— Da água, Andressa. — Eu obviamente sabia que era disso que ela
estava falando, só gostava muito de provocá-la. E de me esquivar daquele
tipo de assunto.
— Sinto.
— Quando foi a última vez que você nadou?
— Com touca e maiô? — assentiu.
Eu não tinha nenhum motivo, ou vontade, de mentir para ela.
— Naquele dia que eu te encontrei no clube.
— Quê? É sério?
— Sim. As coisas ficaram reais depois disso.
Vi quando ela suspirou. Sua mente funcionando a mil. Ficou alguns
segundos pensando, então olhou para os dois lados, conferindo se
estávamos sozinhas antes de debruçar na minha direção e colar seus lábios
nos meus.
Mila fazia aquilo de uma maneira delicada e carinhosa que me deixava
maluca. Fazia aquilo menos vezes, e com mais pudor, do que deveria.
Sorri para ela, crônica e completamente boiola.
— Pra que isso? Não que eu esteja reclamando. — Ela abraçou as
pernas, dando de ombros.
— Para te mostrar que o real não precisa ser tão ruim assim. E que eu
estou aqui para te apoiar, qualquer que seja a sua decisão em relação a esse
curso. Sempre. — Mordeu seus lábios. — Ou, pelo menos, pelo tempo que
você me quiser.
É esse, então, Camila, o motivo de tudo isso.
O motivo é que eu sempre vou querer você.
Fui apaixonada por você a minha vida inteira. Nunca houve uma opção
mais segura, mais certa ou mais interessante que você.
E eu poderia tentar te esquecer, de verdade dessa vez, porque as coisas
se tornaram mais reais ainda, mas eu não quero.
Você tinha razão quando disse que a minha ansiedade era cíclica, e que
eu precisava tratar, quando disse que eu sou teimosa e que eu deveria
repensar a necessidade de ficar em um curso que não me atende mais
apenas porque eu comecei.
Você tem razão quando disse que eu precisava aprender a deixar as
coisas irem, mas eu já tinha feito isso por um tempo com você, e não estava
disposta a fazer de novo. Extremismo não é a resposta, para nenhum dos
lados. Eu não precisava abrir mão de tudo só porque não estava sendo
simples. Por certas coisas, Camila, vale a pena lutar. A mais certa delas
sempre foi você.
Se eu já fui capaz de nadar mil metros para conseguir uma medalha
boba. Por que você cogitou que eu fosse deixar escapar das minhas mãos o
troféu da minha vida?
Se você precisava que eu te prometesse uma coisa, eu prometeria. Eu
prometeria que iria abandonar esse curso. Prometeria que iria tomar
coragem e iria largar o velho hábito de me punir. Eu iria começar a ir a uma
psicóloga assim que eu terminasse de escrever esse texto. Eu iria buscar
ajuda. Eu me sentia pronta para desistir de tudo que me fazia mal, mas
nunca tenha a audácia de me pedir para abrir mão de você. Isso, eu te
prometo que nunca farei.
O QUE VEIO DEPOIS E
ANTES, DE TUDO ISSO.
Eu demorei uma semana para escrever tudo que você leu antes disso e
só bati na porta de tia Regina quando tive certeza que você não estaria em
casa. Ana Clara me ajudou com isso. Graças à sua habilidade sobrehumana
de ter decorado a grade do primeiro semestre, ela me garantiu que nas
sextas a sua aula só acabava às cinco. Pedi para que seu irmão me ajudasse
com a outra parte. Ele me alertou quando chegaram em casa, então se
trancou em seu quarto e esperou.
O seu porteiro me conhecia, engraçado isso, e me deixou subir sem me
anunciar. Foi um pouco injusto com a sua mãe aquela parte da minha
intervenção, mas necessária.
Ela levou um grande susto quando me viu, em cima de seu capacho.
— Andressa?
Sempre te achei parecida fisicamente com Regina. Eu me lembro de ser
criança e refletir sobre como você seria uma adulta bonita, porque sua mãe
sempre foi uma mulher muito bonita. Errei um pouco, sonhei baixo. Você se
transformou em uma adulta deslumbrante. Bonita seria pouco para te
descrever, peço perdão pela minha ousadia. Eu era apenas uma criança, não
sabia de nada!
— Oi, Regina. — Sorri fraco. O máximo que eu consegui. — Eu posso
entrar?
Sua mãe parecia estar conversando com um fantasma. Uma palidez
cadavérica tomou conta de seu rosto assim que me viu. Foi até um pouco
cômico. Quis rir, confesso.
— Camila não está — respondeu, grave.
Uma confissão: eu sempre tive mais medo das broncas da sua mãe do
que da minha.
Minha mãe não tinha muita vocação para nos colocar de castigo, ou
falar sério. Meu pai costumava assumir esse papel. Ou então, quando por
perto, a sua.
Lembro-me de uma bronca que ela me deu até hoje. Estávamos saindo
da natação e, por algum motivo, eu estava sendo insuportável. Acho que era
uma das formas que eu encontrava de chamar a sua atenção. Às vezes,
quando eu era boba, você ria, e isso era motivo mais do que suficiente para
ser uma idiota.
Eu queria mostrar para Regina, de qualquer jeito, a minha touca nova,
enquanto ela estava nos levando de volta para casa. Sua mãe nunca foi rude
comigo, na verdade, era o contrário, só que não havia mesmo como me dar
atenção naquele instante. Eu estava sendo chata, então ela parou o carro
bruscamente, se virou para trás e disse:
— Andressa Batista, se você não parar com isso agora mesmo eu vou
contar para a sua mãe e a forçar a te deixar sem ir para a natação um mês
inteiro.
Sua mãe sempre foi ótima nas chantagens e havia algo no seu olhar que
dava medo. Entendo como você se tornou tão certinha, eu também andaria
na linha para não ter que enfrentar as broncas dela.
Regina não brigou muitas vezes comigo depois dessa situação, contudo.
Já fui sua queridinha uma vez e estava contando com a certeza de que esse
tipo de coisa não tem como diluir com tanta facilidade.
— Tudo bem, eu vim falar com a senhora.
Ela arregalou os olhos, piscando algumas dúzias de vezes. A mão
estacionada na maçaneta e a confusão reverberando, como uma sirene, em
seus olhos.
— Comigo?
— Uhum. Posso entrar? — Ela pigarreou.
— Hm. — Abriu espaço para mim, totalmente desconfortável. — Pode.
Então eu entrei.
O apartamento que você morava não tinha nada a ver com você. Era
branco demais, milimetricamente organizado. Eu não via você nele, mas
você nunca se deu o trabalho de pertencê-lo, não é? Você sempre se
encolheu, sempre esteve acostumada a ceder. Um espaço no armário para o
seu irmão, um terço da sua felicidade para os seus pais. Não é culpa sua,
foram as circunstâncias. Eu também fiz isso, em outros aspectos da minha
vida. Somos meio que ensinadas a servir. Está no imaginário popular, a
submissão feminina, a necessidade de se limitar, para que outros tenham
espaço para crescer. Isso não me parece nada justo.
— A sua mãe tá bem? — foi o que Regina me perguntou primeiro.
Sei que elas estavam sem se falar fazia alguns dias. Desde que tudo
aconteceu, minha mãe vinha tentando colocar juízo na cabeça da sua. Sei
que foi mérito dela quando Regina te telefonou e pediu para você voltar
para casa, logo na segunda-feira. Sei que você voltou, mas também sei que
a escalada de sucesso da minha mãe parou por aí.
Regina não tinha pedido desculpas ainda, tinha?
Ela estava tentando seguir com a sua vida e fingir que nada havia
acontecido. Paramos de nos falar e ela leu isso como uma vitória, como
uma cura. Ela queria que você voltasse a se resumir, para que não pesasse
para ela. Desculpe, Camila, mas antes nela que em você.
— Tá sim. E você? — Ela se surpreendeu com a minha pergunta.
— Tô bem.
Sorri fraco.
— Certo. — Cruzei meus braços, encarando o estofado cinza, a cozinha
conjugada, sentindo falta de você.
— Andressa, o que você está fazendo aqui? — foi a sua segunda
pergunta, e eu apreciei a assertividade. Não era confortável estar naquela
posição, muito menos ali, naquelas circunstâncias.
— Sinceramente, tia? Eu vim tentar colocar algum juízo na cabeça da
senhora.
— É o que, Andressa?
Ela usou o seu tom de alerta, mas eu não senti medo.
— Desculpe, eu não quero soar desrespeitosa, só quero que a senhora
entenda como está sendo injusta com a sua filha. E comigo também.
— Andressa... — Levou uma das mãos à têmpora. Parecia sem
paciência para ouvir aquilo. — Eu não quero...
— Mas precisa — a interrompi. — Tia, eu ainda sou a mesma garota
que costumava ir todos os dias para a escola com a senhora. A mesma que
odiava quando a senhora colocava arquinhos na minha cabeça e a mesma a
qual a senhora confiava que tomaria conta da sua filha. Nada mudou, nesse
tempo inteiro. Nem o meu amor por filmes longos, muito menos a minha
capacidade de cuidar de Camila.
— Andressa...
— Por favor, me deixe falar. — Ela, surpreendentemente, deixou. — Eu
sei que a senhora quer o melhor para Camila, e é o mesmo que eu quero.
Regina, eu só quero que a sua filha seja feliz. E eu só estou aqui porque
tenho certeza que eu posso fazê-la feliz. Ou, pelo menos, eu sei que eu vou
me esforçar, todos os dias, para que isso aconteça.
“E eu sei que isso é o que todo mundo diz no começo. Mas, tia, nós não
estamos no começo. Eu amo a sua filha a minha vida inteira. Se a senhora
não pode entender isso, preciso pelo menos que saiba. Eu não estou aqui
brincando com ela, eu estou aqui porque eu a amo, e eu sei que a senhora a
ama também. Só que a senhora a está destruindo com o seu rancor. Você
sabia que ela me disse uma vez que o maior medo da vida dela era você? A
sua própria filha, tia. Eu sei que a senhora não é uma pessoa ruim, mas essa
atitude é. E se a senhora precisa odiar alguém, odeie a mim, mas não
estenda esses olhares horríveis à sua filha, muito menos espere que eu vá
abandoná-la. Se ela quiser estar comigo, eu estarei aqui. Eu estarei aqui
sempre que ela quiser. Preciso que saiba disso. Por mais que a senhora me
odeie, enquanto Camila me pedir pra ficar, eu não pretendo ir a lugar
nenhum”.
Foi isso, Camila, que eu disse a ela, e é isso que eu digo a você.
Cada palavra desse parágrafo é a verdade, e eu gostaria que você tivesse
acesso a elas. Não sei se confio na sua mãe para transmitir a mensagem
completa, então decidi fazer eu mesma.
Se você quiser saber o que Regina me disse depois disso, não tenho
muitas novidades.
Ela não disse nada, mas te prometo que ela ouviu, e era só isso que eu
esperava que fizesse.
Não fazia parte dos meus planos que a gente se esbarrasse quando eu
estivesse saindo. Ana Clara me prometeu que você só saía às cinco. Não sei
se ela mentiu de propósito, ou se, naquele dia, você foi liberada mais cedo.
Tudo que sei é que vê-la me fez querer escrever esses capítulos. Vê-la me
fez querer que você soubesse de tudo, não apenas uma parcela. Vê-la me
fez querer que você conseguisse se ver como a pessoa completa que é, pelo
menos uma vez na sua vida.
— Andy? — A sua surpresa por me encontrar ali, saindo do
apartamento de sua mãe, era gigantesca.
Toda vez que você me chamava daquele jeito, eu sentia parte de mim,
ganhar asas. Toda vez que eu a via, eu sentia uma vontade inconsequente e
agressiva de casar com você.
É, pois é, eu havia acabado de confrontar Regina, mas eu só conseguia
pensar no quanto você estava linda. Aquela mochila com bolinhas rosas que
você jurava que era mais “madura” que a que você usava no colégio.
Aquela saia jeans que você passou a amar usar. Aquele rosto, tão idêntico
ao do amor da minha vida.
— O que você... — Não conseguiu terminar de falar, o choque te deixou
muda. Então eu te prometi.
— Vou explicar tudo. — Eu me debrucei na sua direção, e beijei a sua
bochecha. — Prometo.
Você sabe que eu nunca fui muito boa em escolher presentes, então esse
é o que te dou dessa vez.
Essa é a minha versão dos fatos, é assim que eu me sinto, e eu fiz o que
pude.
Se você precisar que eu vá embora, tudo bem, eu vou. Nunca leia esses
textos, e eu respeitarei sua decisão. Mas, se ainda houver uma parte sua que
esteja disposta a tentar, qualquer parte que seja, eu estarei esperando.
Tudo que você precisa fazer é me dizer. A escolha é sua a partir de
então.
PARTE IV: CAMILA OUTRA
VEZ.
CAPÍTULO UM (PELA
TERCEIRA VEZ). DE VOLTA
PARA O FUTURO.
Caralho, que filha da puta!
Andressa era uma filha da puta!
Andressa, você é uma filha da puta!
Estou perdida, não sei mais a quem devo me dirigir. Talvez a você,
leitor, é você que ainda não sabe disso: ela me enviou essas drogas de
capítulos por e-mail!
Simplesmente os escreveu, apertou enter e esperou que eu implodisse.
Eu comentei uma vez com ela. Uma única vez. Sobre a ideia maluca de
escrever sobre nossa história. Era bobeira, eu nunca realmente pensei nisso,
antes que aqueles e-mails chegassem.
O título da mensagem era "minha contribuição para o seu livro de
memórias", e ela me pediu, em caixa alta, para que eu jamais lesse aquelas
páginas antes de finalizar a minha parte.
Andressa montou um roteiro (eu não sei onde ela aprendeu essas
coisas), e estipulou regras. Como ela sabia que eu faria, eu as segui. Afinal,
como ignorar um arquivo em Word da garota que mudou toda a sua vida
depois de pegá-la no flagra saindo da sua casa?
Eu fiz meu máximo para ser breve. Dormi e acordei em cima de um
notebook. Eu queria terminar a minha parte logo, para poder entender o que
havia acontecido naquela tarde, no meu apartamento.
Minha mãe nunca me disse o que elas conversaram e eu respeitei o
mistério que ela fez. Fiz dele minha motivação para terminar essa história,
colocar tudo no papel. Mesmo que fosse dolorido, eu terminei. Demorei
exatos quatro meses para isso. Quatro meses para transcrever anos da minha
vida, e hoje eu finalmente vejo o que Andressa queria com tudo isso. Ela
deu uma de psicóloga para cima de mim.
Sabe quando o Thanos estala os dedos e todo mundo some? Sabe
quando o filme acaba com os heróis perdendo, e você sofre, mas sabe que
esse não vai ser o final? Porque não tem como finalizar daquela maneira.
Não tem como acabar uma vida em um momento ruim.
Eu tenho certeza (claro) de que Andressa não pensou em Thanos
enquanto escrevia a sua contribuição, mas foi o que ela fez. Ela aumentou a
franquia, trouxe a necessidade de um segundo filme. Fez com que eu
colocasse as coisas em perspectiva, relembrasse o que me levou até aqui,
depois me fez ler a sua versão, apenas para provar que o final não poderia
ser daquele jeito.
Eu terminei a minha parte, então li a sua. E agora meu peito se engole e
ultrapassa. Ele se lembra de todos os momentos, ele tem certeza do que
quer. Ele tomou uma decisão.
Bom trabalho, Andressa. Você conseguiu.
Espero que tudo que você disse ainda seja verdade depois de quatro
meses, porque eu acabei de arrumar a minha mochila. Só preciso resolver
uma coisa antes.
CAPÍTULO DOIS. FILHA.
Pode ter parecido um pouco estranho para você, leitor, ler que eu estava
de volta à casa da minha mãe depois de tudo que aconteceu, mas
sinceramente? Foi muito fácil para eu voltar quando ela pediu.
Eu fiquei dois dias fora depois que ela descobriu tudo, antes que ela se
arrependesse e me pedisse para voltar.
O que eu entendo da minha reação submissa é que eu acabei crescendo
profundamente dependente de Regina. E, mesmo que ela não houvesse
dado indícios de que realmente se arrependeu do que me fez passar, eu fui
incapaz de me afastar.
Se te acalma saber, descobri que foi uma amiga dela que me dedurou
aquele dia. Ela estava naquele mercadinho de merda comprando ovos
quando foi atacada pela grotesca imagem de duas garotas se abraçando.
Uma delas, filha da sua amiga!
Grave. Gravíssimo!
Qual das amigas da minha mãe foi a fofoqueira? Nunca me esforcei
para saber. Estava verdadeiramente cansada daquele assunto. Não me
importava conhecer quem fez questão de arruinar quatro meses da minha
vida, eu deixaria para terceiros a responsabilidade de ensiná-la. Enquanto
isso, eu só queria recuperar tudo que me foi tirado. Eu só queria viver a
minha história.
Irônico dizer isso, mas minha mãe foi super protetora a minha vida
inteira. Ela dedicou grande parte de sua existência aos seus filhos, e hoje eu
consigo enxergar isso com carinho, mas também com a noção lógica de que
ela fez das nossas vidas a dela.
Minha mãe nunca entendeu que eu e Gabriel éramos pessoas isoladas;
algo que piorou com o divórcio, mas que esteve presente desde sempre. Ela
queria que vivêssemos colados. Éramos a sua vida inteira, e não pessoas
com desejos, necessidades e opiniões. Não enxergo aquelas ações de minha
mãe como maldade, o que não significa que elas não foram ruins para mim.
Eu nunca tive espaço para me expressar. Nunca consegui angariar coragem
para articular a verdade, porque as minhas verdades quase nunca eram
compatíveis com as dela, e eu não sabia ser alguém que não fosse metade
ela.
Demorei muito para me encontrar dentro de mim, para entender que eu
era uma pessoa separada. E, no caminho, eu fui estragando um monte de
coisas.
Regina me pediu para voltar para casa na segunda, como Andressa já te
contou e, quando eu retornei, ela me abraçou, mas, de fato, nunca me pediu
desculpas. Eu estava confusa, ferida e gastei um bom tempo escrevendo um
livro. Então, aceitei o fato de que nunca conversamos sobre aquilo. Aceitei
como ela tentou varrer para debaixo do tapete Andy, e todo o
“constrangimento” que enfrentamos. Aceitei a forma como ela tratou a
coisa mais importante da minha vida como “uma fase” que ia “passar”. Eu
fui seguindo, no automático, e a ficha foi caindo, gotinha por gotinha. Eu
precisei reviver para notar que aquilo não me fazia bem, e que eu poderia
me afastar. Era difícil, mas eu estava começando a compreender que eu
amava a minha mãe. O que não significava, de forma alguma, que eu
precisava aceitar o seu comportamento.
Muitas vezes, a única coisa que nos separa da necessidade de mudança e
da mudança em si é levantar a bunda da cadeira e agir. É falar o que você
realmente sente!
Era sábado e eu fui cedo até o seu quarto.
Regina ainda estava deitada, mexendo no celular, quando eu entrei.
Ambas de pijama, foi assim que eu decidi encarar o momento mais
difícil e crucial da minha existência.
Se minha vida for transformada em um filme um dia (não sei por que
essa possibilidade sempre passava pela minha cabeça), espero que adaptem
essa parte e me coloquem bem menos remelenta, com uma roupa bonita e o
rosto menos inchado.
Faz de conta que eu estava radiante e decidida, como uma protagonista
em seu clímax, parando na frente do colchão da sua mãe e dizendo:
— Oi, mãe. Eu acho que a gente precisa finalmente conversar.
Minha fala a pegou de surpresa. Ela franziu sua testa, se remexendo.
Meu tom foi delicado, eu fui educada. Acho que ela só se alarmou porque
estava vivendo em uma corda bamba. Eu sabia bem como era isso.
— O que houve, Camila?
Inspirei profundamente.
Foi muito difícil para eu juntar coragem para bater de frente com ela. Eu
nunca consegui, nem mesmo quando comecei a ser um pouco mais
assertiva. Ela nunca esperou que eu fosse revidar, e é isso que acontece
quando você é passiva a sua vida inteira. Ninguém te reconhece quando
você começa a lutar pelo que quer. Quando você toma decisões, as pessoas
que se aproximaram de você por interesse te julgam, e você nunca se sentirá
tão livre.
— Eu sei hoje, meses depois, o que você conversou com Andressa
naquele dia, e que nunca quis me contar — foi como eu comecei.
Vi que ela arregalou de leve seus olhos, mas não disse nada, então eu
continuei.
— Você sabe o que eu fiz durante todo esse tempo, mãe? Eu estive
escrevendo sobre os últimos anos da minha vida. Eu me lembrei de como
eu cheguei aqui. Não foi fácil, e sabe por quê? Porque eu estive apavorada.
Até nos momentos mais felizes, o medo sempre esteve lá. — Mordi de leve
meus lábios, sentindo meu peito apertado ao dizer: — Medo de você.
— Camila... — tentou dizer algo, mas não conseguiu.
Senti quando meus olhos encheram de lágrimas, o que aconteceu mais
cedo do que eu esperava.
As coisas pareciam ter mudado pouco para ela desde que eu a peguei no
flagra em prantos porque descobriu que Andressa beijava garotas. No
entanto, se, para ela, poucas coisas haviam se movido de lugar, para mim,
era o contrário. Tudo estava diferente.
Já havia passado tempo demais, e ainda esbarrávamos na mesma
situação: eu precisava escolher entre aceitar meus sentimentos ou deixá-la
feliz. Eu já havia optado pela sua felicidade uma vez. Naquele instante,
estava optando pela minha.
— Eu te amo, mãe, mas você está tão errada. — Deixei que as lágrimas
caíssem, não que me parassem. — Se passaram meses, e eu acho que eu fui
mais do que paciente. — Inspirei profundamente, tentando me controlar.
Não queria que meus soluços atrapalhassem a compreensão. Eu queria que
ela absorvesse cada sílaba. — Eu voltei para casa quando você pediu,
depois de literalmente me expulsar. Eu revivi, e as memórias me
mantiveram de pé por todo esse tempo. Andy...
Deixei que seu apelido pesasse em nós por alguns instantes até
completar:
— Eu não quero voltar para a antiga Camila, mãe. A antiga Camila
estava muito triste. Ela estava muito ferida, tinha muito medo. Ela voltou
para a sua casa quando você a chamou porque ela pensou que vocês fossem
seguir em frente, mas tudo que fizeram, nesse tempo todo, foi andar para
trás. Eu estive fazendo tudo errado. Eu... — Engoli em seco. Foi muito
difícil, mas eu consegui dizer: — Mãe, eu quero estar com a Andressa —
confessei, da maneira que nunca pude. Da forma que me foi tirada,
antecipada, e imposta a mim.
Eu não queria que minha mãe tivesse descoberto sobre algo tão grande
da maneira que ela descobriu. Às vezes, me pergunto, se eu tivesse tido a
oportunidade e a bravura de sentar e contar a ela, como eu deveria ter feito
desde o princípio, será que as coisas poderiam ter sido diferentes? Tenho
medo de me iludir e achar que sim. Não tenho mais medo de nada além, no
entanto.
Uau.
Eu não tinha mais medo de nada (um exagero para enfatizar meu ponto,
afinal, baratas ainda existiam). É esquisita a sensação de viver sem ter o
mundo inteiro pesando sua lombar. É estranho ser sincera. É... bom.
— Talvez você não consiga aceitar isso agora, mas é a minha vida e eu
quero estar com ela — completei.
Depois que eu confessei aquilo em voz alta pela primeira vez, não
consegui mais parar.
— Eu quero estar com Andressa. Então... acho que você vai ter que
lidar com os fatos.
— Camila...
— Eu não quero que você me ame apesar de eu estar com uma garota,
mãe, eu quero que você me ame e ponto — a interrompi, sem vontade
nenhuma de ouvir suas justificativas. — Se você precisa colocar condições
para estar comigo, eu prefiro que não esteja. — Ela se manteve estática, o
choque tornando seu rosto branco. — Eu não posso retroceder.
Meu primeiro instinto foi acrescentar um "me desculpe" no final da
minha frase de impacto, mas não fiz isso. Eu não queria mais pedir
desculpas. Eu entendo agora, Andy. Eu estive me desculpando por existir
tempo demais.
— Eu tenho pessoas que não buscam condições para me amar, e eu
estarei com elas. Arrumei minha mochila ontem, vou voltar para a casa do
meu pai. — Um soluço saiu, enfim, de seus lábios.
— Filha...
— Espero que um dia a gente possa conversar de verdade sobre isso.
Espero que você entenda o quão errada está, Regina. Nesse dia, eu estarei
disposta a te ouvir. Não ouse me procurar antes dele.
Umedeci meus lábios, cruzando os braços e a fitando. Fitando o rosto
que todo mundo dizia que se assemelhava ao meu. Não se engane, meu
coração estava rachado naquele instante, mas também estava lotado. Lotado
de coragem para enfrentar o que viria a seguir.
— Você quer dizer alguma coisa?
Ela balançou negativamente a cabeça. As lágrimas lentamente a
tomando por completo.
Eu nunca quis fazer a minha mãe chorar, e chorei muito em
consequência.
Uma coisa que eu sempre tive dificuldade para entender é que ela era a
mãe. Ela que devia estar preocupada com o quanto eu chorava (bastante). O
que eu fazia naquele momento era assumir meu papel de filha pela primeira
vez, em muito tempo.
Filhas não deviam ter que acalmar seu irmão quando ele se assustava
com seus pais brigando. Filhas não deviam sentir o peso da
responsabilidade de manter a paz em casa. Filhas não deviam desistir de
tudo para salvar um casamento que não era o seu. Filhas não deveriam ser
expulsas de casa e se preocuparem com o fato de que isso afetaria
negativamente quem as expulsou. Filhas não deviam ser as guardiãs
emocionais da família, elas deveriam ser protegidas, guiadas e amparadas.
Regina era uma adulta, e ela poderia e precisaria arcar com as
consequências dos seus atos. Assim como eu.
É claro que me doeu deixar minha mãe ali, chorando daquele jeito, me
doeu mais do que eu posso colocar em palavras. No entanto, foi preciso. Eu
não podia continuar anulando a minha vida para caber na dela. Era uma
libertação, para nós duas.
Peguei a minha mochila, dei um abraço em Gabriel e saí. Depois de
muito tempo, eu finalmente saí. Depois de muito tempo, eu estava livre, e
isso só poderia significar uma coisa, Andressa.
Eu estava planando e espalhando purpurina (como você tão
poeticamente discorreu) por todo o caminho até o seu apartamento. Todo o
espaço de tempo pareceu infinito até que eu finalmente pousasse em seus
dedos.
CAPÍTULO TRÊS. ÚLTIMAS
VEZES.
Oi, voltei.
Voltei porque seria maldade terminar daquela maneira, sem te contar o
que veio depois de tudo aquilo. Você merece saber (ainda mais porque foi
bem bonitinho).
Antes mesmo de ir para a casa do meu pai, eu fui até o apartamento dos
Batista. Com a minha mochila pesada nas costas, minha florzinha, quatro
meses de atraso e um nervosismo corrosivo.
Acho que não comentei antes, mas a flor que Andressa me comprou,
naquele dia em que tudo desabou, havia sobrevivido por todos aqueles
meses. Gabriel a regou nos dias que eu fiquei no meu pai e eu pesquisei a
quantidade certa de Sol que eu deveria dar para ela antes de simplesmente a
meter no meu parapeito.
Ela foi comigo para a casa de Andy.
Eram dez da manhã de um sábado. Minha sorte era que todo mundo
naquela casa tinha o costume de acordar cedo, e que me conheciam. Minha
sorte era que os Batista eram algo como a minha segunda família.
— Camilinha. — Tia Diana abriu a porta, trajando um vestidinho
florido e segurando uma caneca de café. Ela sorriu para mim, um sorriso de
reconhecimento. — É muito bom te ver. Quer que eu chame...
— A Andressa — fui rápida.
Não queria perder mais nenhum segundo. Eu já havia demorado quatro
meses. Havia fortes possibilidades de ela ter interpretado aquilo como um
“não tô mais interessada” e estar conversando com alguma loira naquele
exato momento. Só de pensar nisso, quis explodir.
— Por favor — lembrei de completar, depois de uma eternidade.
Tia Diana sorriu para mim, cúmplice. Verdade seja dita, ela sempre
soube de tudo.
— Entra. — Então abriu espaço. — Ela tá no quarto dela, pode ir lá —
me autorizou, sem nenhuma cerimônia.
A pobre da Andressa poderia estar de pijama, pelada, dormindo, ou
completamente superada, mas ela me fez ir até lá ver. Comprovar. Testar.
Foi ótimo (para mim) que ela tivesse feito isso, porque eu tive a
oportunidade de pegá-la no flagra, tateando aquelas medalhas que dizia não
se importar, penduradas em um cantinho de sua parede.
Era um pouco desonroso a espiar daquela maneira, como um
perseguidor faria, mas eu gostaria de enquadrá-la naquele instante. O
instante antes que ela notasse a minha presença. O instante em que ela
estava imersa nela. Andressa ficava linda distraída. Ela estava sempre
cutucando as peles soltas de seus dedos, ou ajeitando a argolinha em suas
narinas. Eu gostava de observá-la fazendo as coisas mais corriqueiras, como
vestir uma camiseta, ou amarrar o cadarço do seu tênis. Ela sabia fazer a
amarração descolada de uma orelhinha, e eu sempre a pedia para amarrar as
coisas para mim, só para ver seus dedos trabalharem. Eram dedos
poderosos, e eu agradecia muito por eles. Agradecia também ao seu passado
de atleta, pelos músculos discretamente marcados em seus braços; e à sua
personalidade transgressora, por todos aqueles amassos indecentes. Eu
sentia falta disso. Sentia falta de cada instante. Sentia falta até do que eu
nunca tive. Eu queria esbarrar, todos os dias, com o seu frasco de perfume
na bancada do meu banheiro. Queria a sua escova de dente junto à minha.
Queria a assistir finalizar os cachos de seus cabelos e ser a primeira coisa
que seus olhos enxergassem pela manhã. Queria beijar todos os pedaços do
seu corpo. Queria segurar a sua mão por cima da mesa, e parar, de vez, de
chamá-la de “quase amiga sazonal”. Eu tinha outra titulação em mente para
ela (eu gosto de dar nomes, né, Andressa?), e era isso que eu queria. Era
essa a minha escolha, e eu estava pronta para finalmente arcar com ela.
— Só por curiosidade... onde você colocaria o pôster com o meu rosto?
— Depois de passar alguns segundos na soleira da sua porta, eu tomei
coragem para abrir a boca.
Foi instantâneo. Ela ouviu minha voz e se virou. Seus cabelos
esparramando para todos os lados. Seus piercings, brincos, tatuagens,
história, todos se voltando a mim, como um farol.
— Mila? — A surpresa por me ver ali fez meu peito bater mais forte.
Havia algo de diferente em seu rosto. Ou talvez fosse apenas eu, me
permitindo enxergá-la sem medo, pela primeira vez.
— O que foi? — provoquei, sorrindo. — Estava esperando outra
pessoa?
Ela ignorou por completo minha provocação, abrindo a boca para dizer
algo, mas nada saiu. Deixei que ela tentasse de novo, e foi só na sua
segunda tentativa que ela conseguiu perguntar:
— Você leu? — Havia uma pontada sutil de constrangimento varrendo
seus olhos.
Estava vestindo shorts de moletom cinza e uma blusa de uma banda que
ninguém conhecia (ela escutava umas coisas esquisitas). Deveria ser ilegal
que alguém ficasse tão bonita em um conjunto tão desleixado.
Dei de ombros, tomando a liberdade de adentrar no seu quarto, mesmo
sem ter sido convidada. Apoiei a plantinha sobrevivente na cômoda e ela
sorriu quando a reconheceu. Estava bem menos florida do que quando foi
comprada, mas o fato de estar viva já dizia muito sobre quem eu me tornei.
— Você queria ser meu marido quando tínhamos nove anos de idade?
— Balancei a cabeça, a respondendo com outra insinuação. Estava bastante
inclinada a importuná-la naquele dia. Era para compensar todos os meses
distante. — Que pensamento pervertido, Andressa!
— Bom, eu tinha onze anos, não nove — corrigiu, recuperando-se
rapidamente da surpresa por me ver ali e costurando um sorriso convencido
em seus lábios. — E você precisava de um marido, então...
— Você se voluntaria para o cargo.
— Sem pestanejar.
Assenti lentamente, um sorriso tomando conta, pouco a pouco, do meu
rosto.
Ela cruzou os braços, mantendo-se onde estava. Muito mais longe de
mim do que eu gostaria. Não consegui ler o que pensava, então respirei
fundo, me sentindo repentinamente sem graça ao me lembrar de que eu
estava novamente no quarto da garota que havia batido na porta da casa da
minha mãe para contar que me amava. A garota que escreveu seis capítulos
para me fazer entender que foi apaixonada por mim a sua vida inteira.
Quatro meses. Eu demorei quatro meses para corresponder! Lembrar
daquilo me irritou.
— Eu não acredito que você me fez escrever a porra de um livro,
Andressa! — esbravejei, mais brava comigo do que com ela, por ter
aceitado seus termos. — Você sabe o quão estressante é essa merda? Você
podia só ter me ligado, sei lá!
— Quê? — se surpreendeu. Ela se surpreendeu de verdade. — Espera.
Você escreveu um livro mesmo? Foi por isso que você demorou pra dar
algum sinal de vida? — Arregalou de leve seus olhos, soltando uma risada
inaudível. Senti meu rosto ruborizar. — Eu pedi pra você escrever sua
história, mas achei que você fosse, sei lá, escrever algumas páginas. Você
nunca gostou de escrever!
Ah. Ótimo. Acho que interpretei errado a sua instrução. Mas quando ela
disse “só leia isso quando você terminar de escrever a sua parte do seu livro
de memórias”, eu levei a sério, porra! Você me culpa? Ela usou a palavra
“livro”!
— Acho que eu não sei ser concisa. — Dei de ombros, encerrando
aquele assunto, profundamente constrangida. Ela riu.
— É. Não sabe. — Deu de ombros. — É bastante fofo, inclusive.
Pigarreei, com minhas artérias tremulando debaixo da minha pele.
Sua sentença trouxe uma maré baixa de esperança de que ela realmente
nunca era capaz de mentir para mim. Eu decorei metade das palavras
daqueles capítulos e torci muito para que estivesse falando sério quando
disse: “eu sempre vou querer você”.
— Quatro meses, então. — Silêncio. — É muito tempo, né?
— Bastante.
— Você tá conversando com alguma loira?
— Quê?
Não recuei. A adrenalina atrelada à sua resposta me deixava febril.
— Você está beijando pessoas da sua turma para aumentar sua rede de
contatos? Reacendendo laços com a Gabi? Ou até com aquele tal de
Arthur?
Ela entendeu, enfim.
— Ah. — Sorriu. — Não. — Deu de ombros, fingidamente
desinteressada. — Na verdade, não me importo mais com a minha rede de
contatos, estou em processo de trancar meu curso. — Mudou subitamente o
rumo, e foi a minha vez de arregalar meus olhos.
Meu Deus.
Então ela estava falando sério no seu texto sobre isso? Aquilo encheu
por completo meu peito de orgulho.
— Andy, isso é... uau. Você...
— Ainda não sei se vou pedir transferência para outro. Ou para qual
seria — me respondeu, antes que eu pudesse de fato perguntar. — Uma
coisa de cada vez.
— Sim, claro! — Eu me peguei subitamente entusiasmada. — Seus pais
disseram alguma coisa?
— Não. Eles... ai, cara, eles são foda! — Sorriu. — Eles me apoiaram
na minha decisão.
Era claro que eles tinham apoiado. Era sua ansiedade que a convencia
do contrário.
Nossa. Eu estava tão orgulhosa daquela garota.
— Andy?
— Oi?
— Seus problemas não são fúteis — garanti, me lembrando do que ela
havia confessado naqueles textos. — Não existe isso, na verdade. Cada um
tem as suas questões, e não se pode pesá-las. Competir sobre qual fere mais.
Só você sabe o que te machuca, e você tem todo o direito de se sentir ferida.
— É. Minha psicóloga disse a mesma coisa.
Travei.
— Sua... o quê?
Ela riu, satisfeita por me chocar.
— Minha psicóloga — repetiu, como se não fosse nada. — Eu prometi
que ia, e estou indo. Toda semana. Já faz uns três meses e meio.
— Quê? — Pisquei algumas vezes, realmente desconsertada com
aquelas confissões. Porra, ela não precisava de nenhuma lição de moral?
Qual era o meu papel então? — É sério?
Sorriu, sem graça.
— É.
— Andy! Você é... Isso é... incrível. Como você se sente?
— Tenho estado bem melhor.
— Mesmo? Os tremores melhoraram?
— Um pouco — admitiu. — Eu aprendi a controlá-los melhor e não
tive uma crise forte desde então. Estamos trabalhando os gatilhos agora.
Caralho.
Que mulher incrível. Que mulher perfeita!
Eu estava tão alegre e perplexa que passei um longo tempo sem
conseguir dizer nada. Estava eufórica, e quis retirar um bolo de confetes da
minha mochila e jogar sobre a sua cabeça (isso seria patético, ainda bem
que eu não andava com um bolo de confetes. Desculpe, eu não sei de onde
veio essa vontade estranha). Enfim, de volta para Andy. Eu estava feliz
demais por ela.
Ter buscado ajuda era um grande passo, e eu a admirava ainda mais por
isso.
Vamos deixar só uma coisa clara antes de seguir em frente: nada é
mágica, ou acontece do dia para a noite. O trabalho com a terapia é uma
construção, e a evolução que ela proporciona é gradativa, mas profunda. O
mais difícil é dar o primeiro passo, se livrar do orgulho e aceitar a ajuda. É
se abrir para a oportunidade de melhorar. Andressa já havia completado o
mais difícil e, desde então, eu tinha certeza que ela iria se fortalecer, cada
vez mais.
Quatro meses.
Para ela, haviam se passado quatro meses desde que vivenciamos toda
aquela situação dramática. Para mim, no entanto, era como se tivesse
acontecido ontem. Eu nunca senti nada parecido, nada que fosse tão forte.
Eu nunca tive tanta certeza na minha vida. E estava pronta para enfiar a
certeza que ela costumava sentir de volta pela sua goela, quando ela sorriu.
No fim, ela cumpriu com o prometido em relação ao seu curso, à
psicóloga e a mim.
— Mas e você? — Pigarreou, depois de sustentar aquele silêncio
reluzente por bastante tempo. — Quatro meses e um livro depois, anda
beijando algum amigo meu?
Infeliz.
Revirei os olhos.
— Não, Andressa.
— Que bom.
— Passei dessa fase.
— Que ótimo!
Balancei a cabeça e sorri.
Era esquisito, ao mesmo tempo em que era extremamente excitante, o
fato de que eu estive basicamente dentro da sua cabeça, por um tempo. Era
um ótimo lugar para se estar. Eu conseguia compreendê-la melhor. Eu me
via de uma maneira... menos rígida. O que Andressa fez por mim foi a
declaração mais bonita que eu poderia receber. Eu me sentia da mesma
exata forma que imagino que alguém se sinta depois de uma serenata.
Desajeitada, mas confiante. Lisonjeada e derretida.
— É! — Pigarreei. — Ótimo. Quatro meses, e você está se cuidando,
sem se preocupar em beijar qualquer um que respire... Eu também não fiz
nada parecido. Nem com amigos seus, nem com ninguém.
Ela ficou me encarando incisivamente enquanto eu continuava a falar.
Porra. Era muito assustadora a forma como as pessoas conversavam
sobre esse tipo de coisa em vez de simplesmente ignorarem a sua existência
até que tudo fosse centenas de vezes pior! (Se você quer saber, eu também
tinha planos de começar a terapia).
— Então, eu estava me perguntando, será que, talvez, a gente pudesse...
se você quiser, óbvio... É uma possibilidade, eu acho... Ou não. Mas eu
gostaria. Não sei se você... Quer dizer, já faz um tempão, e eu não imagino
que você tenha ficado me esperando esses meses todos, claro, é só que...
Não terminei a minha frase ensaiada.
Ela se perdeu por completo quando Andy se aproximou. Teve piedade
de mim, me calando com um beijo e cessando de vez com o redemoinho de
incertezas que me deixava tão tensa.
Envolveu meu rosto com as mãos, retornando à posição que era sua e
encostando sua língua na minha.
Arfei, sem conseguir me segurar, me sentindo invadida por uma euforia
desmedida e familiar. Era sempre um bálsamo e uma honra ser apoderada
por ela. Meu peito bateu mais forte. Ela era dona de cada pedacinho de
mim. E eu senti tanta saudade de estar em suas mãos.
Meu corpo inteiro estava mole, e estalando. A necessidade
transbordando. Aquele era mais um beijo após uma longa pausa. Eu estava
cansada demais delas.
— Sim, Camila. — Ela se afastou de mim com um sorriso sapeca no
rosto. Eu adorava vê-la depois de um beijo. Seus lábios rosados, suas
bochechas coradas. Era sempre impossível parar em um. — É uma grande
possibilidade.
Sorri, sem conseguir me conter.
— Sei que ficou claro. Mas eu posso dizer? Eu meio que preparei todo
um discurso…
Seu sorriso aumentou ainda mais.
— Estou ansiosa para ouvir.
Pigarreei, me empertigando e engrossando a voz. Estava levando aquilo
a sério; como se eu fosse a presidente da república, prestes a discursar na
frente de toda a nação.
— Andressa Batista, durante todo esse tempo, eu tagarelei errado. Eu
tive muito medo e esse medo me consumiu. Eu devia ter te dito muitas
coisas antes. Devia ter te dito o quanto eu gosto do seu sorriso, que
transforma seus olhos em meias-luas. Como eu ficava muito brava porque
você conseguia ficar bonita até de uniforme do colégio. Devia ter dito que
eu sempre gostei quando você deixava seus cabelos assim, cacheados, e dos
seus piercings, e da sua risada, e da sua voz. Sua voz é linda, Andy, e suas
histórias também. Eu deveria ter te dito que a minha confusão nunca foi a
seu respeito. Eu deveria ter te dito, há muito tempo, como eu não consegui
parar de pensar em você nenhum instante, desde que você voltou para a
minha vida. Desde que você surgiu, só havia você. Só há você. Você é meio
que… tudo. Eu me espelho em você, tenho orgulho de você e senti muito a
sua falta. Senti falta da sua companhia. Das suas provocações idiotas. Do
seu carinho e da sua capacidade absurda de ser legal comigo quando eu sou
uma filha da puta insegura e medrosa. Eu senti falta de você, Andy, todos os
segundos da minha vida. Percebi isso no momento em que você apareceu
nela.
Andressa ficou calada por tanto tempo que eu achei que tinha estragado
tudo. Que tinha esbarrado no copo e derramado água no seu painel de
controle, provocando um curto-circuito.
O peso do silêncio parecia maciço e fluido, ao mesmo tempo.
Pensei no pior, mas não me desesperei com ele. Mesmo que ela me
dispensasse por ter sido “emocionada demais”, teria valido a pena. Era uma
sensação maravilhosa tirar tudo aquilo do meu peito. E eu estava quase
dizendo isso a ela também quando ela abriu a boca e falou:
— Alguém já te disse que você fica linda até quando está discursando?
Sorri.
Sorri com todos os dentes.
Então eu a beijei de novo, e por muito pouco não consegui a fazer se
sentar em seu colchão. Minha vontade era montar em seu colo e me livrar
daquela blusa enorme que ela usava, e que atrapalhava o meu caminho. Mas
eu fui, obviamente, inconsequente. A adrenalina e a saudade me fizeram
esquecer que eram dez horas da manhã e que toda a sua família estava em
casa. Andy nos manteve de pé, raciocinando com decência e esperteza, algo
que eu nunca fazia quando ela arrastava seus dedos pelo meu braço.
— Obrigada por dizer, Mila — sussurrou, separando nossos lábios, e
meu peito se apertou. Meu único arrependimento era não ter dito tudo
aquilo antes.
— Obrigada... — foi a minha vez. Minha voz, apenas um fiapo,
enquanto eu completava: — Por não desistir de mim.
Andy manteve seu olhar no meu, e meu coração deu um saltinho. O
mesmo que sempre dava quando ela me mirava daquela maneira. O mesmo
que eu imagino que tenha inspirado dezenas de refrãos.
— Não sei como você pode ter cogitado essa possibilidade.
Pois é, nem eu! Meu erro foi beijar a garota mais teimosa, persistente e
sem vergonha do planeta Terra. O resultado não poderia ser diferente, e era
imensurável o quanto eu estava agradecida por aquilo.
— Bom, eu gostaria de te ver essa noite. — Depois que eu fiquei a
encarando feito uma idiota por minutos completos, Andy sentiu a
necessidade de desviar a tensão. Fez aquilo com maestria. — Tá
disponível? — Pendi a cabeça para o lado.
— Depende.
— Do quê?
— Da quantidade de roupa que estaremos usando na ocasião.
Aquilo a fez rir. Uma risada sincera, e contagiante. Quando retrucou,
falou baixo.
— Zero é um número agradável o suficiente para você, Camila Ferraz?
Senti um formigamento delicioso apalpar meu corpo inteiro. Meu Deus,
que saudade eu senti daquilo! Comecei a contar os segundos dali.
— Perfeito.
Aquela garota me deu espaço quando eu precisei, me deu espaço
quando eu pedi e me fez sentir a pessoa mais especial do mundo todos os
instantes em que não enfrentamos espaço nenhum. Era a minha vez de fazer
uma minúscula coisa por ela em retribuição.
Respirei fundo.
— Antes disso, você iria a um lugar comigo? Eu diria que ele se
enquadra na categoria cinco na quantidade de roupa.
Ela franziu a testa.
— Que lugar é esse?
— É uma pergunta de sim ou não, apenas, Andressa.
— Nesse caso, por falta de opção, sim.
— Ótimo. Renan? — gritei, me desvencilhando de súbito.
Ela arqueou uma de suas sobrancelhas, desconfiada, mas não me
questionou mais.
— Oi? — Escutei a voz do meu amigo próxima.
— Vem aqui?
Sua cabeça surgiu quase que imediatamente no batente.
Ele foi muito rápido, então tenho as minhas suspeitas de que estava
mais perto da nossa cena do que imaginávamos (e que ouviu mais do que
deveria). Mas esse era Renan Batista, um grande fofoqueiro, meu melhor
amigo, e uma das pessoas que eu mais confiava no mundo inteiro. Tudo que
achei da possibilidade de ele ter me escutado marcar de transar com a sua
irmã, depois de toda aquela jornada que vivemos, foi graça.
— Preciso que você pegue uma coisa para mim — expliquei, não o
dando espaço para perguntar muitas coisas. — Andressa, você nos dá
licença rapidinho, por favor?
Sim, eu a estava expulsando do próprio quarto.
— Hm. Claro? — E ela estava saindo sem pensar duas vezes.
Fomos largados sozinhos e Renan me encarou com um sorriso animado,
aguardando instruções. Estava quase mais entusiasmado que eu pela
situação. Sorri em retorno.
— Antes de sair correndo pra contar tudo isso pra Brenda, preciso que
você pegue umas coisas para mim, que eu não sei onde fica.
Ele assentiu, solícito como um Golden Retriver.
— O que você precisa?
Contei. Porém, antes de te contar também, deixa eu te atualizar sobre
uma última coisa. Renan e Brenda haviam se beijado!!!!!! (Insira emojis de
confete aqui). Aconteceu alguns dias antes, nos quarenta e cinco do
segundo tempo; e ele ainda não sabia que eu sabia. Brenda o fez prometer
não contar nada, apenas para me confessar no instante seguinte. Acho que
estava testando sua fidelidade. E, quando se tratava dela, Renan era o
homem mais fiel do mundo. Quando se tratava de mim, felizmente,
também.
Meu ex-príncipe separou exatamente o que eu pedi, colocando tudo em
uma mochilinha e a passando para os meus dedos.
— Amo vocês duas — foi o que ele disse, enquanto a estendia a mim e
eu sorri.
— Amo você também.
Então eu deixei a flor (temporariamente) sob sua responsabilidade,
enfiei Andressa em um Uber e a levei até o clube.
Esse era o meu grande plano.
Se ela se dizia ruim com presentes, eu era pior. Nunca soube ser perfeita
como ela, mas, pela primeira vez, eu não me importava mais com isso.
Estava cansada de tentar ser algo que eu não era. Eu consegui o que eu
queria, e eu não precisava fingir mais. Eu estava com a minha garota
favorita em um dia de Sol, e seus olhos brilhavam mais do que aquele
primo distante.
Enxerguei em seu rosto a emoção por estar ali, o pertencimento, e sorri.
— Tem biquíni, touca e óculos na sua mochila — indiquei, quando
enfim adentamos aquele clube histórico. Mesmo sem ir, e separados, meus
pais nunca deixaram de ser sócios. Sorte a nossa. — Dois biquínis, na
verdade. Um, eu peguei pra mim. Me empresta? Esqueci de incluir roupa de
banho na minha mochila/mudança. — Ela estava distraída e elétrica com o
que acontecia, mas encontrou espaço para se surpreender com a minha fala,
arqueando uma de suas sobrancelhas.
— Mudança?
— É. Estou voltando pra casa do meu pai.
— Oh, Mila...
Ela me encarou com complacência, então levantou uma das mãos, e eu
sabia que pretendia me tocar, mas pensou melhor e a recolheu.
Estávamos estacionadas na porta do vestiário. Era isolado, porém havia
algumas pessoas próximas e, por isso, ela se escolheu. O costume a fez se
esconder.
Caramba, ela entendeu tudo errado!
Dei um passo em sua direção e envolvi seu rosto com ambas as minhas
mãos. Meu gesto a pegou de surpresa. Ela arregalou de leve seus olhos,
então a compreensão a atingiu e ela sorriu. Tive que retribuir antes de puxá-
la em minha direção e selar delicadamente nossos lábios.
Fechei meus olhos e senti como se levitasse. Eu sempre achei que fosse
exagero essa breguice de filme de que um beijo poderia te fazer querer sair
cantando pelas ruas. Isso até que eu conhecesse Andressa. Ela me fazia
querer pular em cima de mesas e harmonizar com pássaros.
Puta que pariu. Eu queria beijar aquela garota todos os segundos, de
todos os meus dias. Se ela esteve apaixonada por mim sua vida inteira,
posso dizer que a compensaria, sentindo o mesmo por ela pelo resto da
minha.
Quando me afastei, nossos olhares permaneceram conectados. Sentia as
batidas aceleradas do meu coração. O silêncio entre nós carregado de
promessas. Eu quis tirá-las um pouco da minha cabeça, para variar.
— Beijar você me faz entender esses musicais idiotas, sabia? Eu
dançaria com baratas.
— Quê?
Ok, talvez eu não precisasse ser sincera sobre tudo que eu pensava.
Minha mente era uma bagunça. Sorte a minha que Andy nunca foi a pessoa
mais organizada de todas.
— Espero que isso seja bom — foi como ela concluiu e eu confirmei
vagarosamente antes de beijá-la outra vez.
Acho que está bom de beijo para uma história, não?
Era um novo livro a partir de então, e eu estava muito ansiosa para saber
aonde ele nos levaria. Não prometo te contar todos os detalhes, afinal, não
pretendo demorar outros quatro meses para beijar a garota que eu gosto
outra vez.
— O que me diz de irmos nadar um pouquinho? — perguntei, em um
sussurro, e o dia alcançou de vez seu rosto.
Trocamos de roupa e entramos na água. Andressa levou a toca e os
óculos e os apoiou na beirada. Ela me emprestou seu biquíni. No geral,
usávamos o mesmo número, mas eu tinha um pouco mais de peito que ela,
e ficou ligeiramente indecente. Fui me cobrindo até que chegássemos perto
da água.
O dia estava agradavelmente quente e, fora nós, havia diversas crianças
recortando as raias. Andressa desceu pela escada primeiro e eu fiz um
coque antes de a seguir, aceitando a ajuda de sua mão estendida. Meu
coração batia mais rápido quando submergi. Não pesávamos nada dentro da
água. Fora, pela primeira vez, parecia igual.
Olhei para ela, com a piscina encobrindo até seus ombros. As tatuagens,
quase todas submersas. O sorriso largo, e verdadeiro.
Pedi para o Renan pegar o biquíni amarelo para ela. Sim, o daquela
fatídica fotografia. Ela ficava linda nele, mais linda ainda pessoalmente.
Vê-la o usando era um capricho completamente mesquinho, mas eu adoro
tê-lo feito. Era bom demais tê-la ali. Comigo.
— Você sabe que eu morria de medo dessa piscina quando eu era uma
menininha, né? — compartilhei, aleatoriamente, a encarando balançar com
seu braço, de um lado para o outro. Conseguia ver em seu rosto, a satisfação
por estar ali, depois de tanto tempo. Aquilo me completou como nada
poderia. — Eu odiava tanto a natação.
Ela riu.
— Ah, odiar é exagero, vai. Tivemos bons momentos aqui.
Ela estava certa, tivemos e, em todos eles, ela estava presente.
Não era a natação que podia ser legal para mim, era ela. Sempre foi ela.
Andressa era fascinante, e eu estava incrédula, com toda aquela situação.
Eu estava feliz, em um nível que eu nunca experimentei antes. Eu...
— Andy, eu amo você — disse, sem preparar terreno, muito menos
pensar duas vezes.
Nenhuma de nós havia tido a oportunidade (ou a coragem, no meu caso)
de dizer aquilo à outra antes; mesmo que já fosse verdade há um tempo.
Aquilo era tudo que eu sentia, e era maior do que eu jamais poderia
imaginar.
Então essa era a sensação de estar verdadeiramente apaixonada por
alguém? Uau. Era imensurável. Não é à toa que não existam fórmulas para
materializá-la. Não é à toa que existam poesias. E aquela foi a minha
primeira vez verdadeiramente sentindo, isso.
— Eu também — sussurrou Andy, e eu me perdi em seus olhos.
Nossa primeira vez (ela me fez editar essa parte). Aquelas eram todas as
nossas primeiras vezes.
— Mas você pode repetir? — pediu. — Só alguns milhares de vezes...
Dei uma nadadinha tosca em sua direção, me pendurando em seu
pescoço.
— Eu amo você, Andressa — sussurrei, e ela esmagou seus olhos
naquele sorriso que eu tanto gostava. — Muito. — Retirei o cabelo
molhado que começava a invadir seu rosto. Meus olhos perdidos em cada
mínimo detalhe. — E eu tenho tanta sorte.
Ela se aproximou um pouco, depositando um beijo na ponta do meu
nariz. Nossos braços e pernas estavam unidos, em um círculo perfeito.
— Eu também — garantiu. E eu respirei fundo.
Como era incrível se sentir livre.
— Você me promete uma última coisa, Andy?
— O quê? — Sorri torto antes de dizer:
— Promete que não vai deixar eu me afogar nessa merda de piscina?
Porque seria realmente uma droga se eu morresse depois de tudo isso.
Andressa deixou que uma gargalhada terminasse de unir o que ainda
não havia selado entre nós.
— Nunca vou deixar que você se afogue.
— Que bom. — Sorri. — Então coloca essa touca e vamos nadar!
Soltei-a, fingindo sentir o mesmo entusiasmo que ela por estar dentro de
uma piscina. Fingindo que me alonguei (sei lá se tem que se alongar antes
de nadar. Eu realmente não sei nada de esporte).
Ela vestiu a touca e os óculos, e eu me irritei com o fato de que ela era a
única pessoa no mundo que não ficava horrível com eles.
— Pronta? — Paralisou ao meu lado.
— Nem um pouco. Mas tô curiosa pra ver se eu ainda me lembro de
alguma coisa...
Eu não me lembrava de nada.
Nadei como aqueles recém-nascidos que são arremessados de súbito na
piscina, e que precisam fazer o seu máximo para sobreviver. Mas, pelo
menos, eu não me afoguei. Pelo menos, eu achei aquilo engraçado, e
cheguei ao fundo.
Quando eu era pequena, me lembro de claramente afundar meu rosto e
enxergar o paredão como um desfiladeiro rumo ao fim do mundo. Eu me
lembro de entrar em pânico, pedir ajuda da professora para sair da água e
correr, choramingando, para o colo da minha mãe.
Não há nada de errado em uma criança reagir daquele jeito. Era
realmente fundo, e assustador, mas, bom, eu não era mais uma criança. E
aquela era eu, finalmente, a deixando ir.
Eu acho que existe muita relevância em primeiras vezes, você notou
como eu adoro comentar sobre elas, mas acho que também há certa magia e
relevância nas últimas. São elas que definem o tom das histórias; e é esse o
final que eu tenho para te oferecer.
Essas foram as primeiras, mas também as últimas vezes, que você me
viu temer, fugir e me esconder. Eu conquistei as duas garotas que eu queria.
Fui capaz de acertar o meu rumo e, com os trilhos no lugar, cheguei,
finalmente, onde eu queria estar.
Pode subir os créditos. Agora sim, é de verdade.
Fim.
EPÍLOGO.
— Calma, amiga, não pode ser tão ruim assim!
Ana Clara tentou apaziguar a situação, ao mesmo tempo em que cobria
seu rosto com a camiseta, protegendo suas vias aéreas da fumaça que foi
arremessada em nosso rosto e que, talvez, nos levasse à morte no fim do
dia.
Fitei-a. Apreciava o fato de ela estar tentando me redimir, mas não
havia muito como.
— Ana. — Respirei fundo, tentando não me desesperar. — O porco tá
preto.
Brenda tossiu teatralmente. Estávamos as três debruçadas sobre o vidro
entreaberto do forno, paralisadas e sem saber o que fazer.
— Caralho, Camila, você carbonizou nossa ceia.
— Cala a boca, Brenda. — Fechei o fogão com força. Não ia consertar
nada ficar encarando a droga do porco queimado. A única solução que
encontrei foi: — Alguém pode achar a minha namorada?
Ana se voluntariou, colocando-se de pé, ainda com o nariz coberto.
— Acha o Renan também — complementou Brenda. — Eles vão saber
o que fazer.
Minutos depois de sair, Ana retornou à cozinha conjugada da casa de
praia dos Batistas com os dois ao seu lado.
Mesmo que estivesse preocupada com a situação, suspirei ao vê-la. Eu
quase não tinha visto Andressa naquele dia. Ela havia saído com Jéssica e
seu irmão para comprar (de última hora) o que estava faltando para nossa
“ceia” de Ano Novo. Fazia um mês que Andy havia tirado sua carteira de
motorista, e estava entusiasmada o suficiente com a novidade para se
voluntariar a ir em todos os passeios que envolviam carros. Ela usava o
carro do seu pai e, preciso dizer, dirigia melhor que ele. Nas poucas vezes
que eu peguei carona com o tio Batista (estava andando bastante de ônibus
agora, se te interessa saber), eu tinha a mais absoluta certeza de que a minha
morte estava próxima. Com Andressa, não. Ela era prudente, e tranquila.
Era parecida com o meu pai no volante. Ah, é. Aquilo me fez lembrar. Tinha
que colocar um alarme para não deixar de telefoná-lo quando desse meia-
noite. Para ele e para o meu irmão!
Aquele era o primeiro Ano Novo que eu passava longe da minha
família, e eu não queria parecer uma filha horrível que os havia esquecido
só porque estava entre amigos.
Quando pedi ao meu pai para passar a virada com a minha namorada,
seu irmão, a namorada dele (que também era minha melhor amiga), minha
amiga da faculdade e a namorada dela em uma casa de praia em Búzios,
não tinha esperança nenhuma de que ele fosse deixar. Regina jamais
deixaria. Mas tudo que ele disse foi: “Claro, filha. Tome cuidado e
aproveite”.
Meu pai confiava em mim, e nas pessoas que estavam indo comigo.
Então, ele não viu nenhum problema em me emprestar um dinheiro depois
que eu expliquei toda a logística (responsável) que seguiríamos naqueles
dias. Ficaríamos três dias na mesma fatídica casa de praia em Búzios na
qual eu havia consolidado tantas memórias ruins. Aquela era a oportunidade
de transfigurá-las e, quando eu avisei Brenda que meu pai havia me
permitido tentar, ficamos mudas no telefone por minutos completos.
Ninguém estava acostumado com o que estava acontecendo comigo, mas
todos concordávamos que era bom.
Habitávamos a mesma casa desde o dia anterior, mas eu não vi quando
Andressa chegou do mercado, com dezenas de engradados alcoólicos e um
único saquinho de romã. Estava me arrumando no quarto azul (aquele com
o quadro feio), o que era parte e causa do problema. Minha obrigação era
ficar de olho no pernil que os Batistas haviam temperado e colocado no
forno antes de sair para o mercado; e eu falhei.
— Nossa! — Assim que Andy adentrou a cozinha, exclamou,
balançando uma mão na frente de seu rosto e fazendo uma careta. Renan
repetiu os mesmos exatos gestos atrás.
— O que houve aqui? — quis saber, com os olhos arregalados.
Brenda, que estava apoiada na bancada com os braços cruzados e cara
de poucos amigos, respondeu:
— A Camila foi fazer babyliss e esqueceu de ver o pernil — me
dedurou sem piedade. Revirei os olhos.
O cheiro de queimado tomava conta da cozinha. Andressa se aproximou
do forno, analisando o estrago.
— Caralho, Mila! Quantas horas você ficou fazendo babyliss? — Dei
de ombros.
— Não foi tanto tempo assim... Acho que o forno tava muito quente...
Eu não tinha costume de fazer babyliss, então, na verdade, demorou
bastante para que eu acertasse algumas ondas bobas e irrelevantes. Meu
cabelo fino não era nada comparado ao de Andressa. Meus cachos foram
imediatamente desbancados pelos dela, assim que ela se ajoelhou na minha
frente, deparando-se com a mais nova merda que eu tinha feito. Fiquei sem
graça e culpada. Acho que ela notou, porque completou, quase que
imediatamente:
— Ficou linda, aliás. — Ela me encarou por debaixo. Ainda trajava sua
calça jeans e o cropped que usou para ir ao mercado. — Você tá perfeita.
Sorri cristalino. Meu coração batendo mais rápido.
— Você gostou mesmo?
— Muito. — Seus olhos passearam por toda a minha silhueta e, por
alguns instantes, o pobre do pernil carbonizado foi esquecido. — É essa a
blusa que você comprou ontem?
— Uhum. — Tateei minha blusa branca de malha, mordendo meus
lábios. — O que você achou dela? Tá muito decotada?
O decote batia no meu umbigo.
— Não. — Sorriu. — Claro que não. Tá maravilhosa.
— Ok. Chega. Vocês são impossíveis — reclamou Brenda,
aproximando-se de Andy e a empurrando para longe do forno. — Você é
uma decepção, Andressa. Faz questão de passar pano para ela todas as
vezes.
Troquei olhares com a garota que estava sendo acusada. Ela deu de
ombros, sorrindo.
— Ela é muito bonita para fazer qualquer coisa de errado.
Ouvi Renan e Ana rirem enquanto Brenda revirava os olhos, puxando a
luva e se debruçando para recuperar a nossa única carne destruída. Quando
a apoiou sobre a bancada, o cheiro de queimado aumentou.
Nenhuma das seis pessoas que estavam naquela casa poderia ser
considerada preparada para cozinhar uma ceia de Ano Novo. Então,
combinamos de fazer uma coisa de cada. Tínhamos (no passado mesmo)
um pernil (que era o favorito de Brenda — o que explica seu surto), uma
tigela de salpicão vegetariano, arroz, farofa e uma geladeira lotada de
álcool. Metade daquelas coisas foram feitas por Andressa e por Renan, os
únicos com mínimas habilidades culinárias, então eu sabia que estava
completamente dispensada da bronca por ter transformado em cinzas o
nosso item mais trabalhoso (e caro).
— Que reunião é essa aqui? — Jéssica chegou de súbito. Estava
trocando de roupa enquanto toda a desgraça acontecia, e fez uma careta ao
sentir o cheiro. — Porra. Queimou alguma coisa?
— Amor... — Ana tentou calá-la tarde demais. Ela colocou mais lenha
na fogueira.
Brenda bufou, tirando o laminado com um puxão. Renan achou que era
a hora de interferir.
— Bre — chamou por ela, passando por mim e tocando delicadamente
suas costas.
Ela também já estava pronta, com seu biquíni de paetê. Passamos a
tarde na praia, e ela estava toda vermelha. Naquela nova oportunidade, eu
fui esperta, e não dormi debaixo do sol. Estava menos queimada do que
costumava ficar. Quer dizer, mais ou menos. Sem dúvidas, eu estava mais
vermelha que Brenda, mas nunca ardida o suficiente para afastar Andressa
caso ela tentasse me beijar outra vez.
— O que acha de pedirmos McDonald's? — E, com aquela simples
sentença, Renan devolveu todo o brilho aos seus olhos.
A possibilidade de comer batata frita era equivalente à cura para minha
melhor amiga, em qualquer situação. Obviamente, seu mais novo namorado
sabia disso.
— Será que eles... entregam hoje? — arriscou, incerta. Renan levou as
mãos até seus ombros, garantindo:
— Se não entregarem, eu vou lá buscar.
Pronto. Reestabelecemos a paz. O príncipe encantado salvou o dia!
Todos nós sabíamos que comeríamos McDonald's na nossa ceia, porque os
Batistas eram capazes de ir buscar McDonald's em outro país caso isso
significasse levar um sorriso ao rosto da pessoa pela qual estavam
apaixonados.
Brenda o fitou com um biquinho frágil e completamente derretido.
— Obrigada — sussurrou, debruçando-se na sua direção para dar um
selinho rápido.
Todo o restante do mundo pôde voltar a respirar depois daquilo.
— Ae, Renanzinho. Hoje tem! — provocou Jéssica e Ana a
acompanhou, ovacionando, ainda com a blusa tapando seu nariz.
Andressa se aproximou de mim rindo, enquanto Brenda mostrava o
dedo do meio para as duas.
— Depois vejo se dá pra salvar alguma coisa desse pernil — garantiu, e
eu a agradeci profundamente por aquilo pelo olhar. Brenda estava certa, ela
me mimava demais. E eu jamais reclamaria daquilo. — Antes, vou só tomar
um banho. — Dedilhou meu braço. — Não quer me acompanhar?
— Tá maluca, Andressa? Eu fiquei horas fazendo essa merda de cabelo.
— Ah. — Sorriu. — Então quer dizer que não foi tão rápido assim?
Filha da puta.
— Vai tomar banho, vai! — A empurrei para longe, ouvindo-a rir.
Ela foi, mas, antes, me roubou um beijo, enfatizando:
— Que fique claro, valeu a pena você ter fodido com a nossa única
carne. Nunca vi namorada mais bonita em toda a minha vida.
— Vai logo, Andressa! — insisti, tendo imensa dificuldade em segurar
meu sorriso.
Namorada. Eu gostava muito de ouvir aquela palavra sair da sua boca, e
gostava muito de dizê-la também. Até mesmo em momentos nos quais o
termo não casava bem, eu usava daquela nomenclatura. Não conseguia
parar de chamá-la assim, era até um pouco cansativo, mas você sabe do
meu histórico. Aquela titulação, por si só, era uma vitória pessoal.
Minha namorada sumiu corredor adentro, e então eu tive que enfrentar
sozinha Brenda e seus braços cruzados, paralisada bem na minha frente.
— Bre — a dirigi meu olhar mais inocente. — Você me perdoa por ter
destruído sua carne favorita?
Bateu com o pé algumas vezes no chão até ceder.
— Você é uma idiota. Eu realmente queria comer aquele pernil —
garantiu, então me abraçou.
Eu e minha amiga já tivemos a audácia de reclamar uma vez do fato de
que não nos víamos mais o suficiente. O que o destino fez? Transformou-
nos em algo como “da mesma família”. Eu conseguia visualizar
perfeitamente bem. Eu, ela, nossos respectivos Batistas dividindo os
melhores Natais que se tem conhecimento.
— Mas os cachos ficaram lindos mesmo, sabe?
— Ah, amiga, obrigada! — exclamei, quase emocionada. Ela deu
tapinhas de incentivo em minhas costas e eu me desvencilhei, completando:
— Eu fiz daquele jeito que você me ensinou.
— De dentro pra fora?
— Isso.
— É o melhor mesmo, é o melhor...
Fizemos as pazes e fomos terminar de nos arrumar todas juntas.
Quando deu dez e quarenta, meu celular vibrou. Eu pedi para que
Andressa interrompesse o delineado que fazia em mim para atender meu
pai. Ela era expert em delineado, e eu nunca mais ousaria tentar fazer um
pelo resto da minha vida. Havia muitas vantagens em namorá-la. Eu nunca
usei maquiagens tão bonitas. Eu nunca mais me preocupei em estar
“tentando demais”.
— Oi, pai! O que houve? — Saí do quarto. — Estamos em fuso-
horários diferentes? Nem deu onze horas ainda!
Ele riu.
— Onze horas eu estarei debaixo das minhas cobertas dormindo, minha
filha. Mas liguei porque queria te desejar um feliz ano novo, e te dizer que
eu tenho muito orgulho da mulher incrível que você se tornou.
Ano Novo me deixava emotiva. Senti que meus olhos lacrimejaram um
pouco.
— Ah, pai... Obrigada. Por tudo. Amo você.
Eu ainda estava morando na sua casa, com os armários todos
preenchidos. Então, quando eu agradecia “por tudo”, incluía: estadia, água,
luz, comida e compreensão.
— Amo você, minha querida. Mande minhas boas vibrações para todos
os seus amigos, e para Andressa. Agora, vou passar pro seu irmão, porque
ele também quer falar com você.
Eu sabia que ele não queria, mas foi obrigado.
— Pera aí, pai. Eu tô no meio da parti... Camila? Oi. Feliz ano novo,
tá? — Escutei o barulho do teclado no fundo e soube que ele estava
jogando. Meu pai narrou, nada baixo: “fala pra ela que você ama ela”. —
Amo você. Manda um beijo pra Dessa.
Ri.
Tinha minhas suspeitas de que Gabriel gostava mais de Andressa do que
gostava de mim.
Quando ela ia para a minha casa e meu irmão estava lá também (depois
que eu me mudei para o apartamento do meu pai, ele passou a ir lá com
muita frequência), eles ficavam jogando Fifa a tarde toda. Eu sempre queria
matá-lo por isso.
— Eu também te amo, Gabi. Feliz Ano Novo!
As festas de final de ano eram sempre complicadas para pais recém-
divorciados e... bom, para mães problemáticas.
Naquele ano, eu não havia visto Regina no Natal, e também não a veria
no Ano Novo. Gabriel a fez companhia no aniversário de Jesus Cristo, mas,
para o dia trinta e um... bom, eu não tinha certeza se ela tinha uma
companhia.
Esperava, apesar de tudo, que sim.
Andy mentiu para mim. A minha blusa era muito decotada e eu
coloquei um biquíni por baixo para garantir que ninguém veria o meu peito
durante a contagem regressiva.
Era sempre uma adrenalina gostosa gritar o “dez, nove, oito”, mas havia
um tempero especial em fazer isso de braços dados com a minha melhor
amiga.
Estávamos todos atolados na areia. O cheiro que impregnava no ar era
de euforia. O mar molhava nossos tornozelos quando chegamos ao um e os
fogos foram liberados, iluminando nossos rostos e enchendo o céu de
fumaça.
— Feliz Ano Novo! — gritamos, em uníssono. Um champanhe foi
estourado. Tomei um banho (culpa de Jéssica) e Brenda pulou no meu
pescoço.
Eu a abracei, agradecendo dezenas de vezes por tê-la na minha vida,
então Ana se juntou a nós e nosso abraço se tornou triplo.
Ana Clara havia se formado no semestre anterior (enquanto eu
terminava meu livro) e, somente alguns dias antes de viajarmos, conseguiu
marcar a sua primeira entrevista de emprego. Estava radiante desde então.
— Chega de desemprego, porra! — gritou, depois, beijou nossas
cabeças. — Eu prometo que vou bancar vocês para o resto das nossas vidas!
— Sim, ela já estava embriagada, então Jéssica a roubou para os seus
braços e Renan surgiu, abrindo os seus em minha direção.
— Minha vez?
Acho que nunca sorri tanto antes. Minha bochecha já doía quando eu o
apertei com força.
Meu ex-marido perfeito. Meu amigo de infância. Meu ex-crush
platônico e meu cunhado, todos em uma pessoa só.
Uma coisa fofa que eu tenho para te contar é que Renan havia adotado
um cachorro no mês passado. Um Beagle. Ele e Brenda haviam dado um
nome a ele juntos. Ele se chamava “Trovão”, e tinha o costume de fazer xixi
no quarto de Andressa.
— Sabe... — Sorri travessamente, com a cabeça apoiada em seu ombro.
A nostalgia se misturando ao êxtase e as promessas de novos trezentos e
sessenta e cinco dias. — Acho que seus filhos vão ter os olhos castanhos. O
cromossomo do pai é forte, parece. Eu li isso em algum lugar.
Escutei-o rir antes de se afastar e dizer:
— Droga. Feliz Ano Novo, Camilinha.
— Feliz Ano Novo, Renan!
Foi nesse instante que eu o passei para as mãos da minha amiga, e ela o
agarrou, sem nenhuma vergonha.
Fiquei idiotamente parada, por alguns instantes, enquanto buscava,
desnorteada, a minha boca favorita e a encontrava dando uma corridinha na
minha direção.
— Oi, linda. Henrique te mandou um beijo. Seus sogrinhos perfeitos
também — foi como ela chegou, guardando o celular no bolso de sua calça
branquíssima (e já dobrada até o joelho).
Andy estava tão cintilante quanto os fogos. Com algumas pedrinhas
prateadas coladas ao lado de seus olhos (as quais eu havia basicamente a
obrigado a colocar), estava mais linda que qualquer espetáculo, em
qualquer ponta do mundo. Em qualquer planeta, na verdade, de qualquer
galáxia.
— Ah, que fofos. Depois mando feliz ano novo pra eles!
Garanti, sorrindo ao me recordar como os Batistas haviam evoluído de
pais do meu melhor amigo para sogrinhos perfeitos. Era tão... incrível.
Um adendo irrelevante é que Andressa chamava seus pais assim todas
as vezes agora, só para me irritar. Como não podia mais se referir a si
mesma como “quase amiga sazonal”, encontrou uma nova nomenclatura
(uma que eu usei uma vez perto dela), para me perturbar. Não que ela
conseguisse esse feito; eu não me envergonhava da minha capacidade
criativa. E meus “sogrinhos” eram mesmo perfeitos.
Tia Diana continuava fazendo bolo para mim todas as vezes que eu ia
lá, passar a tarde com a sua filha. Depois que assumimos que estávamos
juntas, tivemos que ouvir um “finalmente”, da boca de sua mãe e um “eu
disse que seria antes do Ano Novo, Diana”, do seu pai. Eles trataram o
nosso relacionamento com a mesma naturalidade que trataram o de Renan e
de Brenda (talvez com mais naturalidade ainda), e eu juro que me
emocionei quando eles me abraçaram e disseram que “sempre estariam ali
por mim”. Porém, nem tudo são flores. Ao confessarmos que estávamos
juntas, nossos privilégios de meninas falsamente hétero e “somente amigas”
acabaram. Voltamos a enfrentar as portas abertas. Um percalço que
havíamos solucionado muito rapidamente. Meu pai passava o dia inteiro no
trabalho e, no mínimo uma vez na semana, os encontros eram
obrigatoriamente na minha cama.
Bom, além dos meus sogrinhos perfeitos, também decidimos que
deveríamos contar a Henrique que estávamos juntas. Vários meses haviam
se passado, e nenhuma de nós se sentiu confortável em adiar aquela
“confissão”. O que eu notava, enfim, era que a sinceridade não era um
obstáculo, mas uma espécie de justiça. Se eu tivesse sido sincera em relação
aos meus sentimentos desde o princípio, eu nunca teria ferido ninguém,
para começo de conversa. Então, eu não queria mais guardar aquilo. Andy,
muito menos. Precisávamos o contar, e foi engraçado quando o fizemos.
Andressa mandou um “Ei, tá vestido? Vou te ligar de vídeo. Atende!” e,
quando ele atendeu, eu estava segurando o celular, desesperada. Meus
dedos tremiam, Andy estava mal enquadrada ao meu lado, e a nossa
imagem chegava a ele como se estivéssemos transmitindo ao vivo um
terremoto.
Só me lembro de ouvir sua gargalhada antes que soltasse:
— Bom saber que vocês também tiveram a decência de se vestir antes
de me ligar.
— É. Pois é. — Andressa o retrucou imediatamente. — Por isso mesmo
pretendo desligar bem rápido.
Mordi meus lábios, incapaz de seguir o caminho descontraído deles.
Henrique ia dar outra resposta sarcástica, mas eu o impedi, dizendo:
— Henri, eu sei que você pediu pra não saber. Mas já se passaram
alguns meses, e a gente precisa. Na verdade, a gente gostaria de te contar
que...
— Camila. Relaxa, meu amor — me interrompeu, com a voz travando
um pouco, graças à internet. — Eu sei que vocês estão juntas, só sendo um
idiota pra não saber. E tá tudo bem. De verdade. Foi estranho por um
tempo? Claro que foi. Mas eu não tenho mais nada a ver com o que rola
entre vocês! Podem se pegar à vontade. Vamos deixar isso claro de uma vez
por todas? Chega de pisar em ovos comigo, porra! É um saco! — Às
vezes, ele podia ser um pouco incisivo. Andressa protestou:
— Ei. Fala direito com ela, seu merda.
— Droga. — O ouvi rir. — Foi mal, Camila! O que eu quis dizer é: não
precisava, mas obrigado por me contar.
Soltei todo o ar de uma vez. Andy segurou meus dedos. Ela nunca
falou, mas eu sabia que estava tão aliviada quanto eu por Henrique ter nos
cedido sua “bênção”.
— Andressa? — Mesmo que o víssemos por uma tela, dava para notar
que ele a encarava a fundo. — Cuide bem dela.
Andy sorriu, apertando a minha mão ainda mais.
— Pode deixar.
E foi assim que todo mundo da minha vida ficou ciente de que eu
namorava a mulher mais perfeita do planeta Terra. No dia 1 de janeiro, não
havia mais um único ser humano que não soubesse da mais nova realidade.
Até para os meus avós eu contei! E tudo que eles falaram, quando eu
mandei uma foto dela, foi: “linda”. Acho que isso é positivo, né? Para mim,
foi. E eu tinha planos de levá-la para conhecê-los no carnaval. Meu pai,
meu irmão e eu íamos viajar para São Paulo, e eu a arrastaria junto comigo.
Arrastaria a minha namorada.
Não canso de dizer isso. Eu e Andressa estamos namorando, e todo
mundo que tivesse alguma objeção a isso, ficaria preso e estacionado no
ano que passou.
Uma onda mais forte socou nossos calcanhares e eu dei uma
cambaleadinha em sua direção. Ela sorriu.
— É, você vai pegar esse celular pra falar com os outros só depois
mesmo — inquiriu, me segurando firme. Eu apreciava o fato de que mesmo
que ela já tivesse bebido incontáveis latas de cerveja, ainda tivesse tanta
força. — Agora, posso fazer as honras de te dar o primeiro beijo do ano?
Sorri de orelha a orelha.
— Achei que não pediria nunca... — mal terminei de falar e ela juntou
nossas bocas.
Meu peito batia mais alto que os fogos que estalavam à nossa direita.
Beijá-la nunca perdia o gosto. Não sei como ousei chamar aquela utopia de
chiclete. O prazo de validade dos beijos de Andressa estava marcado para o
fim da minha vida.
— Feliz Ano Novo, Andy.
— Feliz Ano Novo, Mila — retribuiu, no pé do meu ouvido, antes de
completar: — Eu prometo que esse ano vai ser bom. Do começo ao fim.
Fitei-a. Seus olhos pequenos, nada desinteressados e levemente
embriagados, totalmente voltados a mim.
Andressa, assim como eu, nunca foi sensitiva, ou vidente. Então,
racionalmente, sua promessa era balela. Porém, eu sabia, antes mesmo que
as festas de fim de ano passassem e o ano realmente começasse, que aquilo
seria verdade. Porque eu estava com ela, e todos os segundos ao lado de
Andressa, eram os melhores da minha vida.
As pessoas ficam mesmo bobas e inspiradas quando estão apaixonadas,
né? Não vou me desculpar por isso.
Tive que beijá-la outra vez, e seu bafo de cerveja se misturou ao
champanhe empoçado na minha blusa. Passamos um tempo abraçadas,
assistindo aos míseros fogos que restavam, até que ela se afastasse o
suficiente para me dizer:
— Eu soube que vai estrear um filme desses de super-heróis que você
gosta mês que vem.
Aquilo, obviamente, não era novidade para mim.
— Uhum. E?
Foi imediato. Ela me soltou para conseguir se ajoelhar, pouco torta, na
minha frente.
Ah, não. Eu devia ter previsto aquilo.
Largou a lata que segurava na areia, para ter as duas mãos livres para
abrir uma caixinha imaginária, em frente ao seu rosto. Eu comecei a rir dali.
— Camila Ferraz. Você gostaria de ir assistir comigo esse filme
possivelmente chato? Com a promessa séria e inquebrável de que eu não
vou falar mal do enredo previsível, ou dormir, durante todo ele?
— Diz que sim, diz que sim! — Ouvi Jéssica zombar e gargalhei.
Andressa era uma idiota.
Acho que eu estava tão apegada à palavra “namorada” porque só
estávamos namorando (oficialmente) há menos de um mês.
Duas semanas antes de desembarcarmos ali, eu a pedi em namoro. E, a
partir de então, ela vinha me fazendo pedidos dramáticos e desconexos na
ânsia de suprir com o trauma de que — palavras dela — eu havia roubado o
seu pedido.
Bom, a culpa não era minha se ela não me pedia nunca! Ficamos meses
sem um título, até mesmo Brenda e Renan assumiram antes de nós, e eu
tive que intervir. Ela se sentiu traída (mas aceitou), e eu a prometi, tentando
amansá-la, que ela teria a oportunidade de me pedir em casamento!
Até mesmo ela se surpreendeu quando eu usei a palavra "casamento". Já
havíamos conversado sobre isso, e ela sabia do meu receio desde que o fim
de um me fez adquirir uma dúzia de traumas diferentes. Além disso,
havíamos acabado de começar a namorar, sugerir aquilo não foi nada além
de uma piada boba. Porém, sei lá... acho que se ela me pedisse, eu não diria
não.
Bom, eu tentei. Até usei a palavra-gatilho “casamento”. Mas não foi o
suficiente. Ela se ajoelhava na minha frente e fazia uma cena imbecil uma
vez a cada dois dias desde então. E, em todas elas, eu me derretia.
— Hm... — Fiz um mistério proposital. Ela fingiu estar tensa. Trocamos
olhares conspiratórios antes que eu enfim gritasse: — Sim!
Aplausos.
Andressa se colocou de pé e me pegou no colo. Soltei um gritinho idiota
ao ser carregada. Minha saia completamente embolada e meus cachos
destruídos. Eu era uma mistura de mar, champanhe e sorrisos. Quando me
dei conta, estávamos nos beijando dentro da água. A Lua respeitava os
românticos e nos abraçava. Eu estava dentro d’água, ensopada de todas as
formas possíveis, e não tinha mais medo nenhum de ser carregada por
aquelas ondas. Não perto dela.
Tivemos a frieza de salvar nossos aparelhos eletrônicos antes de nos
engolirmos em alto mar. Meu celular ficou na areia, ao lado do dela. Eu só
vi na manhã seguinte as últimas mensagens que recebi do ano que passou:
Regina 23:58: Oi, Camila. Aqui é a mamãe. Não
quero te atrapalhar, estou passando rapidinho só
para te desejar um feliz ano Novo e dizer que,
quando você estiver disponível, gostaria de tomar
um café com você e conversar. Se você quiser. O
que me diz?
Regina 23:59: Estenda as minhas boas vibrações
às suas amigas, à Renan e à Andressa, por favor.
Regina 00:00: Se ela quiser, ela está convidada
para tomar um café com a gente também.
AGRADECIMENTOS.
Olá!
Caramba, como é bom ver que você chegou até aqui!
Eu juro que tentei não deixar esse livro tão grande, mas, claramente, eu
falhei. Sinto que foi necessário, contudo. Sinto que elas contaram o que
precisavam, e sinto também que, para mim, mesmo que o livro tenha
acabado, a história vai continuar reverberando por um tempo.
Engraçado como até hoje eu me pego repetindo: pare de ter medo, tudo
que você precisa fazer é falar. Sim, eu escuto os conselhos de uma
personagem fictícia que foi criada por mim. Mas, sejamos sinceras, eu não
criei nada. Essa é a história delas, e, durante todo o processo, elas me
ensinaram muito.
Camila e Andressa surgiram a partir em um parágrafo, e, desde então,
eu não fui capaz de abandoná-las. Eu não tinha planos de escrever um
romance. Na verdade, eu estava no meio de um livro completamente
diferente quando tive uma das piores crises de ansiedade da minha vida
(Andressa teve a quem puxar), e consegui encontrar conforto bem aqui,
nessas linhas que você acabou de percorrer. Se você já me conhece de
outras aventuras (quem me conhece sabe), eu sempre escrevi fantasias, mas
posso dizer que encontrei um cantinho muito especial também aqui, pelo
romance.
Essa história é pessoal para mim em dezenas de níveis diferentes.
Existem fragmentos gigantescos de quem eu sou esparramados em diversas
cenas, pensamentos e dramas. Escrever TNPV foi como transcrever minhas
sessões de terapia. Foi colocar no papel medos e verdades que eu jamais
seria capaz de dizer em voz alta, porque, assim como a Camila (e metade
das mulheres do mundo), eu ainda estou aprendendo a falar o que sinto. Eu
ainda estou aprendendo a ocupar o meu espaço, que tardiamente aprendi
que existe.
Escrever é um exercício enorme de vulnerabilidade e eu sinceramente
nunca soube se TNPV encontraria outros leitores. Ele foi uma válvula de
escape para mim. Eu me diverti escrevendo sobre essas duas, e seria
suficientemente bom ter vivido esse processo. Mas, quando eu contei para a
minha psicóloga sobre esse livro (e conversamos bastante sobre ele), ela
apenas disse: seria um ato de coragem você publicá-lo. Então, estamos aqui.
Coragem. É tudo sobre coragem. A gente consegue conquistar coisas
incríveis quando junta só um punhadinho dela.
Para você que chegou até aqui, eu não tenho nem palavras para
agradecer. Espero que a leitura tenha sido tão especial para você quanto a
escrita foi para mim. Espero que você carregue o amor genuíno dessas duas
consigo, e que nunca se esqueça de que você é extremamente capaz, de
qualquer coisa que se dispuser a fazer.
Para as minhas leitoras betas, um “muito obrigada” do tamanho do
mundo. Eu tive a sorte de ter comigo nesse processo a Camila (o nome foi
uma coincidência especial), que me ajudou a lapidar e a melhorar essa
narrativa com seu olhar carinhoso. E também a Hannah, que se dispôs a ler
esse mini calhamaço, mesmo que não tenha o costume de ler, e me deu
muita força e coragem para o trazer até aqui. Sem todas as meninas que
passaram por esse processo (Gaby e Carol também então inclusas nesse
agradecimento), TNPV não existiria. Agradeço demais a cada uma de
vocês.
Agradeço também à minha revisora, Bia, que está comigo faz algumas
estações e que sempre me surpreende com seu carinho e atenção. Segundo a
ela, TNPV foi tema de diversas de suas sessões de terapia, e eu me alegrei e
me preocupei com essa informação em proporções equivalentes.
Um adendo super relevante: eu prometi muitas coisas com esse livro,
menos terapia. Espero que estejam todos cientes disso.
Brincadeiras à parte, agradeço a todas que estiveram envolvidas na parte
gráfica dessa história. Não poderia ter reunido um time melhor. Obrigada
Emily, por essa capa linda e todas as meninas envolvidas nas ilustrações
(incluindo você, Gabs, que eu não sei se conseguiu acabar essa história sem
me matar no processo).
Um obrigada vitalício às minhas amigas, que são obrigadas a me ouvir
falando sobre livros o tempo inteiro. Yasmin, desculpe por encher tanto o
seu saco. Ana Lu, obrigada por se oferecer para me defender caso eu fosse
atacada por lançar esse livro. Karen, obrigada por me ouvir. Gabi, obrigada
por estar sempre aqui.
Um agradecimento super especial também para a minha família, que
sempre me apoia, mesmo que inconscientemente.
Obrigada (sem ironia aqui) à minha psicóloga, que me ajudou a
enxergar o mundo de uma maneira diferente.
Obrigada Mila e Andy (sim, podemos chamá-las assim, temos passe
livre), por me ensinarem tanto.
E obrigada, por fim, a você, querido leitor, por ter se disposto a ler esse
pedacinho tão importante de mim.
Acho que por hoje é só.
Nos vemos em novas aventuras?
Assim como quase tudo na minha vida, meu "currículo literário" não
poderia ser mais difuso. Formada em biologia, mas amante das palavras,
nasci há 24 anos no Rio de Janeiro, mas fui criada em vários cantos do
Brasil. Comecei a escrever e a publicar obras com 15 anos, em um
aplicativo de leitura, no qual conquistei leitores fiéis. O primeiro livro que
publiquei no aplicativo somou mais de 250k de leituras e, a partir de então,
não parei mais. Expandindo meus horizontes, publiquei minha primeira
coletânea de poesias na Amazon, em formato de ebook, em 2019. Em 2021,
publiquei meu segundo livro de poesias no site, assim como a minha
primeira ficção. Finalmente adquirindo coragem para me denominar
"escritora", sou aficionada pelo mundo da literatura, e dos encantamentos
que vem junto com ela.
Para acompanhar mais do meu trabalho, me siga nas redes sociais:
@biardescritos em todas as redes.
BOOKS BY THIS AUTHOR
O Caçador De Maresia
Lorenzo monopoliza o comércio de sereias. Sendo o único pescador em
Mangata a deter o conhecimento de como fisgar uma mulher-peixe, vive
por mais de dez anos vendendo sereias para aquários. É o negócio da
família, o que dá vida à cidade. É uma válvula de escape, um trabalho
esculpido na raiva. E a herança promissora de Isaque.
Mas tudo muda quando Pandora é enlaçada por uma das redes mais firmes.
Na segunda caçada do filho de Lorenzo, a sereia é pescada, e logo muda as
regras do jogo.
Todos os pescadores sabem das normas: fique longe das sereias, use
protetores de ouvidos, venda a pesca o mais breve possível. Mas Pandora
não foi exatamente pescada. E Isaque esqueceu de uma ou duas normas de
segurança.
Foi então que o estável e promissor comércio de sereias começou a
naufragar. Engolindo junto tudo o que viu pela frente.
Desencantos
A mais crua definição da palavra desencanto é aquilo que está quebrado,
desiludido, despido, faltoso. Quando falta magia, a realidade esmaga.
Quando falta encanto, o desencantamento deságua. Mas, na verdade, é com
os maiores maremotos que um bom navegador convive e de grande parte de
decepções que um poeta escreve. O desencanto é o combustível da poesia e
o encanto um sonhado resultado.
Em Contraponto
Uma coletânea para todos aqueles que, em contraste aos dizeres de um
mundo engessado, complementam a si mesmo com uma intensa melodia
sorridente. Para os que choram, sorriem e que tem todos os ossos quebrados
em sua busca acima de tudo, por sentir.
Nesse livro vamos falar sobre amor, em suas mais diversas fases. Amor
proibido, amor traído, amor platônico, amor apaixonado e amor translúcido.
Amor, e suas consequências. Anos de sentimentos acumulados se derramam
nessas páginas, e me honra te ver por aqui.