Na Ponta da Lingua - Hellen R. P_

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Copyright © 2023Hellen R. P.

Na Ponta da Língua
1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser


reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou
mecânicos sem consentimento e autorização por escrito do autor/editor.

Capa: Hórus Design


Betagem: Júlia Santiago, Láiza de Oliveira, Olívia Uviplais e Raquel
Leiane
Ilustrações: @gabiz_artxx, @ppwlneilustra
Diagramação: Hellen R. P. (usando recursos do Canva)

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
fatos reais é mera coincidência. Nenhuma parte deste livro pode ser
utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis ou
intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos
autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do
código penal.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA


LÍNGUA PORTUGUESA.
“A única coisa que temos de respeitar, porque ela nos une, é a
língua.”
FRANZ KAFKA
DEDICATÓRIA
No livro da vida, as cicatrizes são histórias escritas
em nossa pele, tal qual um papel.
Para todas as mulheres marcadas,
que seu livro tenha um final feliz.
sinopse
nota da autora
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Epílogo
Bônus
Agradecimentos
Sobre a autora
Strangers to lovers – boy protetor – proximidade forçada – amor
proibido
Isaac Almeida é um policial federal que atua como infiltrado.
Quando uma denúncia surge acusando o diretor de uma escola, ele terá que
fingir ser Ezequiel, um professor de inglês.
Não bastasse crianças bagunceiras, a missão ainda terá como
empecilho a professora de espanhol e inimiga número um de qualquer
pessoa que ocupe o cargo de Ezequiel, que para ela é amaldiçoado.
Isabela Martins tem o sangue hispânico forte em suas veias. Entre
assistir séries sem legendas e falar xingamentos usando a língua do avô,
guarda marcas do passado que não gostaria de relembrar. Sua vida ameaça
sair dos eixos quando precisa conviver com Ezequiel, um homem
misterioso capaz de romper seus segredos.
O problema é que eles não se dão bem. Enquanto ela nunca recua,
ele sempre tem uma resposta na ponta da língua.
Isaac e Isabela surgiram em minha mente em meados de 2021.
Comecei a escrever fervorosamente sobre o casal, mas a descoberta de uma
gravidez fez eu me distanciar por muito tempo dessa dupla dinâmica. Por
muitas vezes pensei que não iria concluir essa história, mas a dupla Isa &
Isa não conseguiu sair da minha mente mesmo depois de anos. Retornei a
passos de tartaruga, porém estava disposta a mostrar ao mundo toda a
química inegável entre eles.
Isaac foi um personagem desafiante desde sua profissão, que me
exigiu muitas pesquisas sobre leis de infiltração de agentes, armas e crimes,
até sua personalidade, tão forte, marcante e carregada de conturbações.
Isabela, assim como eu, é professora, mas o desafio de escrevê-la foi
grande. Um furacão em forma de mulher. Uma personagem guerreira, cheia
de atitude e coragem.
Ambos me surpreenderam com suas personalidades tão distintas,
porém tão semelhantes em certos pontos. Me senti envolvida em seus
dramas pessoais, mergulhei em suas mentes, me tornando uma mera
expectadora diante da vivacidade de Isaac e Isabela.
Espero que goste do livro, que seu coração gargalhe com as cenas
engraçadas, mas que também fique quentinho com as cenas que só Isa & Isa
são capazes de entregar.
ALERTA DE CONTEÚDO
Atenção! Se você tem menos de 18 anos recomendo que pare a
leitura por aqui. Esse livro possui cenas de sexo explícito, além de palavras
de baixo calão. Apesar dos assuntos serem tratados com leveza, esta obra
possui ainda, menção a relacionamento abusivo e automutilação, por isso se
não se sente à vontade com esse tipo de conteúdo, por favor, não siga com a
história.
Boa leitura!
PLAYLIST
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♪ Emoção pura, deixe queimar
Como o fogo, você anseia por uma mudança? ♪
:::How does it feel – London Gramar:::

ISAAC ALMEIDA

O sangue escorreu pela minha testa, quase atrapalhando minha


visão, quando puxei a arma do coldre. A pistola Glock 9 mm não tinha peso
em minhas mãos grandes e o medo de apertar o gatilho já tinha ido embora
faz tempo.
Eu era acostumado àquilo, à adrenalina da ação, à euforia do
momento e, principalmente, a manter o controle diante das situações
inesperadas. O latejar do lado direito da cabeça, onde escorria o líquido
quente e vermelho, não tirou minha atenção do homem alto e forte que
fumava um charuto. Ele estava sentado em uma cadeira de couro nos
fundos do galpão.
O grandalhão era nada mais nada menos que El Cabrón Fuego, o
líder do cartel de Iles de Saintes, o maior cartel de drogas da América
Central. Ninguém sabia como ele havia chegado ao Brasil, mas eu sabia
como ele iria embora: dentro de um camburão. Ou eu não me chamava
Isaac Almeida.
Com a arma em punho, analisei o território inimigo, contabilizando
cinco homens armados, fora o próprio Cabrón, enquanto eu só tinha o apoio
de Fernando. Olhei para o vulto ao meu lado e cochichei.
— Nando, são três caras para cada um de nós. Podemos esperar o
reforço, mas se demorarem corremos o risco de perder a missão.
Fernando apenas assentiu e eu entendi sua mensagem no mesmo
instante. Era melhor agir logo, afinal, foram meses de planejamento para
conseguirmos chegar até ali. Respirei fundo, tentando conter o bater
frenético do meu coração, e avancei.
Minhas roupas pretas deixavam-me camuflado no espaço escuro e
logo peguei um dos capangas pelas costas, colando a arma na sua coluna
com uma mão e com a outra tapando sua boca. O homem se remexeu,
assustado, e eu o arrastei para a escuridão como um ninja acostumado às
sombras. Sem chamar a atenção torci seu pescoço, desacordando-o, e deixei
o corpo jazer sobre o chão frio cimentado. Olhei ao redor e notei que outro
dos capangas já havia sumido, indicando que Fernando também havia
conseguido derrubar o seu.
Eliminar mais um capanga também foi fácil tanto para mim quanto
para Fernando, mas os outros dois restantes estavam muito próximos ao
Cabrón então, em um pensamento rápido, puxei Fernando para o centro do
salão onde eles estavam, e apontei a arma na cabeça do meu amigo. Eu
tinha uma saída e iria usá-la para escapar dali.
— Cabrón, achei esse cara bisbilhotando o terreno, ele até mesmo
liquidou alguns dos nossos homens. — O desespero na minha voz era quase
real, beirando a uma indicação ao Oscar. — Ele tentou me nocautear, mas
não conseguiu.
Apontei para minha testa sangrando, que o chefe do tráfico não
sabia ser consequência de uma briga com outros guarda-costas dele. Cabrón
olhou para Fernando com desprezo, como se ele fosse uma mosca
indesejada que havia pousado em seu prato.
— Mate-o, Michael. — O sotaque caribenho do líder do cartel
preencheu o espaço.
Michael era o nome que eu usava como infiltrado. Eu estava no
meio daquele cartel havia quatro longos meses, conquistei a amizade
daqueles homens corruptos e criminosos a ponto de quase virar um braço
direito de Cabrón. Eu usaria meu disfarce a meu favor, por isso, destravei a
arma que mantinha colada na cabeça de Fernando.
— O senhor tem certeza? — perguntei para o “chefe”, colocando
medo na minha voz. — Ele é da polícia, a gente pode se complicar.
— Ele está sozinho, basta jogar o corpo no rio, ninguém nunca
descobrirá.
A falta de emoções na voz do traficante caribenho me deixou
furioso. Como ousava agir daquela forma diante de uma vida humana? Com
a arma destravada em punho girei o corpo com velocidade e acertei o joelho
de um dos capangas. Fernando agiu rapidamente e sacou a arma já mirando
no outro, o problema foi que Cabrón puxou um revólver nas costas, fixando
a mira em Fernando.
A adrenalina me atingiu em cheio e vi quase como se toda ação
estivesse em câmera lenta. Corri na direção do chefe da quadrilha e, com
uma força surpreendente, joguei o ombro contra o peito dele. Meu corpo
trombou com o de Cabrón derrubando-o no chão e fazendo sua arma cair.
Ele era um homem grande, mas eu era treinado, mestre em kung fu,
capoeira e judô. No chão ele não teve chances, saquei minha algema e
prendi suas mãos.
— El Fuego, está preso em flagrante, pela prática do crime de
tráfico de drogas. Você tem o direito de ficar calado e tudo o que disser
poderá ser usado contra você no tribunal — falei pausadamente, em meio a
minha respiração entrecortada.
— Isa, você está bem? — Fernando perguntou, enquanto passava as
algemas nos outros capangas.
— Nando, nunca estive melhor — informei, mesmo que a cabeça
estivesse para explodir, havíamos pegado um dos grandes traficantes da
América.
O barulho das sirenes chegou ao meu ouvido e logo inúmeros
policiais armados invadiram o local, seguidos de uma ambulância. Os
bandidos foram levados algemados às viaturas e um paramédico veio até
mim.
— Você vai precisar de pontos — falou, tocando minha testa.
— Basta colocar um band-aid e fico novinho em folha — comentei.
— Você está perdendo muito sangue pelo corte.
— Bobagem. — Nunca havia me sentido mais vivo e eufórico,
ainda assim acompanhei-o até a ambulância, onde ele me suturou.
Depois de passar um tempo na delegacia da polícia federal,
finalizando os trâmites e desativando minha identidade falsa, fui liberado
pelo chefe do departamento.
Com uma sensação de formigamento na testa devido à anestesia,
após pedir um Uber e atravessar boa parte da cidade, finalmente cheguei ao
meu apartamento. Fazia meses que não pisava ali, uma vez que estava até
então morando no alojamento do cartel. Foram tempos difíceis, não só
porque tive que fingir ser outra pessoa, mas porque fiquei longe do mundo,
dos amigos, de casa.
Sentei-me no sofá e inspirei o cheiro de desodorizador que a diarista
que vinha duas vezes por semana havia passado. Claro que ela não sabia
que eu estava infiltrado num cartel, na verdade nem sabia que eu era
policial federal. Para ela eu estava apenas viajando e era conhecido como
João, um nome simples e comum que não chamaria a atenção para mim. Me
lembraria de ligar para ela na manhã seguinte para dispensar sua atividade.
Agora que estava em casa não ia mais precisar, já que eu mesmo poderia
limpar tudo, fora que era sempre arriscado soltar meu nome verdadeiro em
um momento espontâneo.
Acabei cochilando no próprio sofá, sentindo a maciez do tecido
contra meu corpo cansado. Quando a luz do sol invadiu a janela da sala, me
remexi e só então percebi um desconforto perpassando minha coluna.
Droga! Dormir no sofá sempre acabava comigo!
Levantei, me arrastando, e fui até o banheiro tomar um banho
caprichado como há muito não tomava. Tirei o excesso da barba espessa
que havia crescido naqueles quatro meses e depois mergulhei embaixo no
chuveiro. A água gelada percorreu meu corpo afastando a sensação de calor
da cidade e deixei lavar toda a imundice que estava impregnada em mim.
Trabalhar disfarçado era sempre desgastante, mas não podia reclamar, afinal
estava tirando criminosos das ruas.
O toque da campainha chamou minha atenção e após pegar a toalha
e enrolá-la na cintura segui até a porta de entrada.
— Você está bem? — Fernando perguntou, assim que abri a porta e
o vi do lado de fora.
— Sempre. Entre.
Meu amigo adentrou a sala, se esparramando pelo sofá, colocando
ainda, o pé sobre a mesinha de centro. Que cara folgado!
— Isaac, você está horrível, com uma olheira imensa — ele falou
abrindo um sorriso sarcástico.
— Bom, você também não está bonito, mas no seu caso o problema
é que você já nasceu feio — resmunguei, empurrando seu pé de cima da
minha mesa. — Seja educado, ao menos.
Fernando riu e passou a mão na cabeça raspada. Ele era um homem
elegante, com a pele negra reluzente e um sorriso branco retilíneo, e o
próprio sabia que era tudo, menos feio. Nos conhecemos no Curso de
Formação Policial que fizemos em Brasília e desde então nos tornamos
amigos. Éramos os tipos de pessoas que não tínhamos muitos vínculos,
principalmente quando precisávamos trabalhar infiltrados. Assim, os
colegas de profissão acabavam por se tornar nossa família.
Ainda de toalha, fui até a cozinha e enchi um copo com água gelada,
bebendo o conteúdo em um gole só, voltei à sala e cruzei os braços sobre o
peito, me perguntando o que Fernando estava fazendo no meu apê àquela
hora. Eu parecia uma pessoa com ressaca, mas estava apenas cansado da
missão com o cartel.
Só havia me olhado no espelho para fazer a barba, me assustando ao
notar meu rosto esquelético e olhos profundos. Fernando tinha razão, eu
estava horrível. Os quatro meses foram regados a bebidas, falta de
alimentação adequada e muito desgaste psicológico, tudo isso para fazer o
papel de traficante e conquistar a confiança de Cabrón. Eu estava magro,
quase viciado e certamente precisaria de acompanhamento psicológico.
Sorte minha que não havia precisado matar ninguém ao assumir o papel.
Tinha a conta recheada, o salário era alto, ainda assim o dinheiro
não parecia capaz de apagar os danos que sofri. Os que causei. O que me
levava em frente era saber que estava ajudando a sociedade, eliminando
bandidos.
Pensei em meu pai, em como ele deu a vida pela justiça e como eu
pretendia fazer a mesma coisa. Desde pequeno quis ser um policial, seguir
seus passos e, por mais que fosse desgastante, eu me sentia eufórico, cheio
de adrenalina, como se o que eu fizesse me deixasse mais vivo.
— O chefe surgiu com um novo caso para você. — Fernando tirou o
celular do bolso e jogou na minha direção. — Isso se você aceitar, claro.
Peguei o aparelho no ar, mas não cheguei a olhar a tela.
— Não vou ter nenhum descanso? — indaguei.
— Quem mandou você ser o melhor?
Eu era jovem, tinha trinta e três anos, ainda assim havia conquistado
o respeito da equipe, já que eu nunca media esforços para concluir o
trabalho com sucesso. Infelizmente, isso fazia com que eu sempre estivesse
pulando de um caso para outro, praticamente sem intervalos. Não era
obrigado a aceitar me infiltrar, era uma opção minha, minhas escolhas,
entretanto, sempre me levavam por aquele caminho.
— Eu prometo que essa vai ser fácil. — Fernando pareceu ler minha
mente.
Finalmente girei o visor do celular na direção dos olhos e o que vi
me deixou em choque.
— O que é isso? — questionei, confuso.
— Sua nova identidade.
— Como isso faz sentido? — Joguei o celular de volta para
Fernando, sem entender que porra de arquivo era aquele.
— Recebemos uma denúncia anônima informando que o diretor da
instituição pratica atos ilícitos.
— Ainda não entendi. — Passei a mão pelos cabelos, esbarrando
sem querer nos pontos costurados em minha pele próximos aos fios.
— Muito simples, você vai ser um professor de inglês de uma escola
municipal cujo diretor é suspeito de lavagem de dinheiro.
— Caralho, eu não sei ser professor. Eu já vivi um advogado, o que
foi difícil mesmo eu sendo formado em direito, um traficante, inclusive um
arquiteto, mas professor? — Balancei a cabeça em negativa, aquilo era
demais até mesmo para mim.
— Qual é, cara? Qual a dificuldade em ser professor? — Fernando
abriu um sorriso que eu classifiquei como sem vergonha e a vontade que
tive foi de socar seu rosto.
— Eu vou me chamar Ezequiel? Quem diabos têm esse nome, um
velho de oitenta anos?
Fernando riu descaradamente e eu cocei o queixo sobre a barba rala
pensando em como seria interpretar um professor. O pior não era falar
inglês, isso eu sabia dos inúmeros cursos que havia feito da SWAT, nem
mesmo ter que dar aula, o problema era ter que lidar com dezenas de
crianças com cerca de dez anos de idade.
— Ao menos a olheira já faz parte do personagem, você vai se
encaixar perfeitamente no papel.
Engoli em seco, pensando no que tinha feito da vida para me meter
naquela confusão sem precedentes. Foram anos estudando, treinando,
lutando para acabar sendo babá de criança. Se bem que, para alguém que
havia enfrentado os piores tipos de criminosos, com certeza controlar um
bando de garotos seria moleza.
E para uma pessoa que tinha sempre tudo sob controle, jamais
imaginei que, pela primeira vez, eu estaria errado.
♪ Nem sempre a gente acerta em tudo
E muitas vezes fala demais ♪
:::Par de ases – Tiê:::

ISABELA MARTINS

Qué mierda! O barulho irritante do alarme me despertou de um


sonho que estava tendo com o Henry Cavill. Isso mesmo, o Henry Cavill!
Me remexi na cama, zangada, e soquei o travesseiro porque a porcaria de
despertador atrapalhou o beijo que eu quase ia dando no Superman!
Frustrada, com sono e desejando saber o final do sonho
maravilhoso, pulei da cama e fui ao banheiro. Me olhei no espelho redondo
de moldura cobreada e o que vi não me deixou melhor do que já estava.
As olheiras embaixo dos meus olhos castanhos estavam tão
perceptíveis que teria que usar corretivo para não ser confundida com o
Kung Fu Panda e os cabelos longos, de tom escuro, estavam tão ressecados
que mais parecia o deserto de Gilbués, então o restinho da máscara
hidratante tinha que ser o suficiente. A verdade é que eu estava um caco e
tudo isso porque o bimestre estava acabando e a semana de provas era
sempre a pior semana de todas. Para piorar meu nariz coçava sem parar em
uma das crises de rinite que sempre insistiam em aparecer do nada.
Não era ruim apenas para os alunos que ficavam desesperados, era
ruim para mim também, que tinha que, além de fazer a provas, corrigi-las,
levando em conta o raciocínio de cada um dos estudantes. Eu sabia que era
professora de espanhol, não de matemática, ainda assim tinha que tentar
entender o que o aluno tinha respondido.
Depois do susto que tomei no espelho, tomei um banho rápido e fiz
o resto da minha higiene matinal. Peguei um Sucrilhos de dentro da
geladeira e saí comendo puro mesmo, sem leite, como se fosse ração para
passarinho. Eu sabia que não era nada saudável, mas eu ainda tinha vinte e
nove anos, poderia me preocupar com a quantidade de açúcar dentro do
corpo depois dos quarenta, quem sabe.
Peguei a mochila preta e a chave do carro sobre o sofá, após
terminar meu café da manhã, e tranquei o apartamento. Meus pés,
acostumados, desceram as escadas do terceiro andar até o térreo não porque
gostasse de me exercitar, mas porque o prédio não tinha elevador e fui até o
estacionamento descoberto.
O interior do meu Ford Ka branco estava pegando fogo e só não
queimei minha bunda porque estava usando calça jeans, a mão não teve
tanta sorte e ardeu ao contato com a direção. O sol escaldante do Nordeste
não brincava em serviço. Quarenta minutos depois estava no corredor da
escola, seguindo direto para dentro da sala de aula.
— Bom dia, professora. — Mathias, um dos alunos mais danados do
sexto ano, me cumprimentou assim que abri a porta.
— Bom dia, Mathias. — Coloquei a mochila sobre a mesa e saquei
o envelope com as provas.
A turma, milagrosamente, parecia calada para uma manhã de
segunda-feira o que me deixou em alerta. O que será que eles haviam
aprontado?
— Por que vocês estão tão quietos? — indaguei, arqueando uma das
sobrancelhas e não me assustei ao ver que o próprio Mathias foi o primeiro
a abrir a boca.
— O vice-diretor disse que vamos ter um novo professor de inglês.
Meus pelos arrepiaram só de ouvir as palavras “professor” e
“inglês” juntas. A até então professora de inglês, Raquel, era uma megera
enxerida e alimentava a rixa entre professor de espanhol e inglês e eu
duvidava que seu substituto fosse muito melhor.
Revirei os olhos e por um momento quase esqueci que deveria
aplicar as provas. Puxei os papéis do envelope e saí entregando as
avaliações para cada aluno. Voltei à minha mesa e sentei-me na cadeira que
dava de frente à turma. Enquanto meus olhos passeavam pelos alunos, me
peguei pensando no novo professor de inglês. Tinha certeza de que era um
sabichão metido a besta, sempre eram assim, só porque a língua inglesa era
a mais falada do mundo e blá blá blá.
Um movimento chamou minha atenção, um virar de rosto discreto,
mas eu era experiente, conhecia muito bem as artimanhas dos alunos.
— Vamos deixar a prova do coleguinha de lado — disse encarando
o aluno que havia tentado pescar.
Foquei o resto do tempo nos estudantes, que entregaram a prova
logo antes do sinal do intervalo tocar. Com a sirene gritando aos quatro
cantos, guardei os papéis de volta no envelope e me dirigi até a sala dos
professores.
O ambiente era precário e continha, além de uma mesa enorme com
cerca de dez cadeiras, um sofá que um dia foi branco, mas que àquela altura
da vida estava em um misto de amarelo e marrom. Margareth, minha amiga
e professora de história, sentada no sofá, comia biscoitinhos de uma vasilha
de plástico.
— Como estão os alunos? — questionou de boca cheia e eu ri de
seu jeito.
— Quietos até demais — falei, largando minha bolsa sobre a mesa e
me apoiando no braço do sofá em direção à Margareth. — Estavam falando
sobre um professor novo de inglês.
— O que aconteceu com a Raquel? — Margareth arregalou os olhos
verdes e colocou a mão na boca.
— E eu que sei? Sexta-feira ela estava aqui na sala dos professores
falando ao telefone em inglês com o marido, como se ele fosse um gringo e
não um homem que nasceu no Piauí — bocejei.
— Tomara que o substituto seja melhor que ela. — Margareth riu,
fechando a vasilha dos biscoitos e pegando um copo com café puro.
Não sei como alguém conseguia se manter tão magra comendo
tanto.
— Duvido muito, mas não custa sonhar.
— Preciso ir. — Margareth comentou, pegando a própria bolsa
sobre o sofá. — Deseje-me sorte, aposto que a turma não está nem um
pouco interessada em aprender sobre Átila, o Huno.
— Boa sorte, amiga. — Levantei meu punho mostrando sinal de
força, como os coreanos faziam nos doramas e, assim que ela saiu pela
porta, me deixei cair sobre o sofá.
Ainda aplicaria avaliação no sétimo ano e no oitavo antes de
finalmente poder ir para casa. O dia mal havia começado e meus miolos
pareciam ferver e eu ainda nem tinha começado a corrigir as provas. Puxei
o celular do bolso e fucei um pouco as redes sociais.
Meus dedos, curiosos por informação, quase que imediatamente
foram em busca de Raquel e por mais que não nos déssemos bem, eu não
desejava mal a ela e esperava que nada de ruim tivesse acontecido. Não
encontrei nenhuma informação sobre ela, sendo as últimas postagens de
uma semana atrás.
Dei de ombros e aproveitei o tempo livre para revisar o conteúdo
que ia dar nas próximas semanas. Quando a sirene tocou, ajeitei a mochila
sobre os ombros e segui para a sala do sétimo ano. Eles também iam fazer
prova, por isso passei de carteira em carteira com as avaliações e depois me
sentei na cadeira da frente.
O primeiro bimestre letivo do ano estava acabando, o que indicava
que logo a feira de línguas estrangeiras iria acontecer e pensar naquilo me
deixou ansiosa. As feiras dos anos passado e retrasado tinham sido
desastrosas e os estandes da escola foram os piores. O pior, entretanto, foi
lembrar do que aconteceu na feira de três anos atrás. As lembranças
formaram um nó na minha garganta e só despertei das memórias quando um
aluno se aproximou de mim para entregar a prova.
Esperei pacientemente os outros terminarem de responder e, com
todas as provas em mãos, saí da sala em direção ao corredor. Estava quase
no automático, pensando na próxima turma, quando, do nada, algo sólido
bateu em mim. As provas voaram das minhas mãos se espalhando ao chão
e, desesperada, saí recolhendo as folhas que pareciam querer voar à corrente
de ar que passava por ali.
Meus cabelos caíram sobre os olhos enquanto eu juntava os papéis e
eu estava tão distraída que mal percebi um par de mãos próximo a mim, me
ajudando. Demorei alguns segundos para notar um homem ao meu lado e,
quando ele abriu um sorriso na minha direção, eu recuei.
— Desculpe, acabei esbarrando em você sem querer. — A voz dele
soou grave, não combinando em nada com seu perfil.
Ele me entregou um punhado de papel e então se levantou e eu,
ainda confusa, fiquei alguns segundos tentando enfiar todas as provas
dentro do bendito envelope.
— Deixa eu lhe ajudar. — O homem não esperou nem minha
resposta, pegou os papéis e envelope das minhas mãos e em um segundo
organizou tudo, me devolvendo.
— Obrigada — comentei e olhei mais uma vez para ele.
Ele vestia uma calça social que não parecia se encaixar muito bem
em seu corpo um pouco magro e a camisa de botão, de manga comprida,
estava com leves sinais de que não havia sido engomada. O rosto,
entretanto, chamava a atenção com uma cicatriz no canto da testa, próxima
a seus cabelos lisos, bem penteados, e olhos castanhos meio mortos, com
uma olheira tão grande que deixava a minha no chinelo. A barba por fazer
cobria um rosto que talvez um dia houvesse sido bonito, mas que parecia ter
sofrido nos últimos tempos.
— Aqui é a Escola Municipal Torquato Neto? — ele perguntou,
passando a mão pelos cabelos escuros e escorridos.
— Sim, mas a reunião não acontece aqui. Eu sei que no site eles
colocam o endereço daqui, mas ela acontece no prédio aqui do lado, que é
uma paróquia.
— Reunião? — ele me indagou e pude notar suas sobrancelhas bem
desenhadas formando um vinco. Estava confuso.
Eu entendi o motivo da confusão, não sabia por que cargas d’águas
colocaram o endereço errado da reunião, mas vez ou outra acontecia aquilo,
de alguém chegar pensando que acontecia na escola.
— Isso, a reunião do AA — disse apontando para a porta gradeada
da escola. — Basta sair e seguir à direita, qualquer dúvida o porteiro pode
lhe ajudar.
O homem pigarreou e notei um tom rubro subindo por seu rosto. E
então eu vi um sorriso acanhado aparecer em seus lábios.
— Eu não sou alcoólatra.
— Não? — Indaguei, confusa, sentindo meu próprio rosto queimar
de vergonha.
— Não, eu estou aqui porque recebi uma ligação do senhor Afonso.
— Do vice-diretor?
— Isso, ele pediu para eu vir hoje, pois precisava que eu substituísse
uma professora.
Minha boca abriu em choque e quase que o envelope caiu das
minhas mãos mais uma vez no dia. Olhei para aqueles olhos que segundos
atrás pareciam sem brilho e notei que uma faísca começou se acender ali e a
constatação me preocupou. Eu não conhecia aquele homem, mas eu sabia
exatamente quem ele era e, por isso, quando ele abriu a boca para falar,
mesmo que soubesse o que ia dizer, eu me assustei com suas palavras.
— Prazer, meu nome é Ezequiel Silva, sou o novo professor de
inglês.
♪ As crianças riam nas minhas aulas
Enquanto eu estava planejando meus shows ♪
:::Thunder – Imagine Dragons:::

ISAAC ALMEIDA

Puta merda. Onde foi que eu errei? Será que foi o cabelo partido de
lado de modo tão exagerado ou as roupas sociais que pareciam não se
encaixar comigo? Talvez não tenha sido nenhum desses detalhes e sim
minhas olheiras aparentes e o corpo esguio. Merda. O tempo no cartel me
deixou um caco a ponto de pensarem que eu era um alcóolatra! O que até
poderia ser real depois de tanto beber durante aqueles meses.
A mulher, baixa, de corpo bem marcado pela calça jeans e blusa
branca, me olhou em choque e eu continuei com minha mão estendida em
sua direção, depois de me apresentar. Ela finalmente segurou o envelope
sobre o peito com uma mão e apertou a minha com a outra. Sua pele era
macia, delicada, em nada parecida com a minha, áspera e rugosa.
— Sou Isabela Martins, a professora de espanhol. — O tom dela
saiu alto e eu encarei seus olhos castanhos, com curiosidade.
Ela provavelmente estava com medo de mim e eu não podia julgá-
la, não quando eu mesmo havia tomado um susto ao finalmente me olhar,
com atenção, no espelho antes de ir à escola. Eu estava horrível, isso era um
fato. Ainda assim, ver aquela professora me encarando daquele jeito me
deixou furioso.
Eu precisava exercer um papel e, pela primeira vez, eu não parecia
preparado para aquilo. A corporação não deu tempo suficiente e eu tinha
que dar um jeito de não chamar a atenção.
— Me desculpe pela aparência, acabei sofrendo um acidente ontem.
— Toquei minha testa em um movimento ensaiado, nem sentindo a mentira
corroer minha alma, e vi o exato momento em que Isabela se encolheu ao
notar minha cicatriz recém-formada.
— Eu... eu preciso ir para a sala de aula. — Isabela desviou o olhar
de mim e então apontou para uma sala. — Ali fica a sala dos professores, os
horários das aulas estão no mural.
Ela saiu sem nem ao menos se despedir, o barulho do salto ecoando
pelo chão cimentado, e eu fiquei inerte, me xingando mentalmente por ter
vacilado logo no primeiro dia.
Segui para a sala dos professores e percebi que ela estava vazia, com
exceção de um senhor careca que parecia absorto com seus fones de
ouvidos imensos cobrindo as orelhas. Ele nem olhou para mim e eu segui
até o mural, tentando entender em que sala eu teria que dar aula.
A planilha era autoexplicativa e percebi que a primeira turma era a
do sexto ano. Estalei os dedos e segui direto para o corredor, passando os
olhos pelas plaquinhas de papel coladas sobre as portas, indicando as
turmas. O sexto ano parecia uma turma normal quando entrei na sala, um
amontoado de crianças perambulando pelo espaço, os gritos agudos se
misturando a tosses e risadas. Nada fora do comum para garotos de dez ou
onze anos. Pigarrei tentando chamar a atenção, mas a algazarra continuou.
— Bom dia turma, sou Ezequiel e serei o novo professor de vocês
— disse com o tom firme, que só chamou a atenção de duas garotas que se
sentavam na frente.
O restante pareceu pouco se importar com minha presença e eu senti
um pouco de frustração. Eu sabia que crianças eram agitadas, eu mesmo
havia sido um garoto travesso, ainda assim mantinha-me quieto durante as
aulas.
— Voltem aos seus lugares, por favor — pedi, batendo palmas para
chamar a atenção.
Nada.
A gritaria não tinha fim e eu senti a cabeça latejando onde a costura
ainda estava recente. Um garoto enfiou o dedo no nariz e ousou a jogar a
meleca na minha direção e aquilo foi a gota d’água.
O soco veio tão espontaneamente que até mesmo eu me assustei. Os
olhos arregalados daquelas crianças pousaram em mim, assustados. Minha
mão se enterrava na estrutura de madeira da mesa, quase rachada. O punho
fechado ainda sentia o ardor em contato com o objeto, mas a única coisa
que passou por meu pensamento foi que eu tinha passado dos limites.
O que eu estava fazendo ao assustar aqueles meninos daquela
forma? Eles estavam com medo de mim e mais uma vez senti o peso dos
olhares acuados na minha direção. Primeiro tinha sido a professora de
espanhol, depois aquelas pobres crianças.
— Eu estava brincando — falei abrindo um sorriso falso, algo que
estava fazendo cada vez com uma maior frequência. — Eu sou o Ezequiel,
mas podem me chamar de Zeck. Formem um círculo, hoje vamos ter uma
aula divertida.
Os alunos acabaram empolgados com minha ideia do círculo e eu
passei a mão pelos cabelos lisos, deixando um suspiro escapar pela minha
boca. Eu estava fazendo tudo errado, o que acabava por me deixar com
mais raiva do que eu já estava. Eu odiava sair do controle, mas nada estava
saindo conforme planejado, o que era uma merda. Mas não podia deixar
aquelas pessoas inocentes à mercê de um diretor que roubava o dinheiro
destinado a eles. Eu simplesmente não podia.
O sorriso falso, congelado em meu rosto, se manteve quando me
postei no meio do círculo e comecei a conversar com as crianças. Iniciei me
apresentando, quer dizer, apresentando o tal de Ezequiel, um homem
totalmente diferente de mim. Zeck era formado em letras, tinha mestrado, já
havia viajado pela Inglaterra e gostava de séries e músicas pop. Eu era um
homem totalmente diferente, quase um idoso em um corpo de jovem, o
máximo que ainda assistia eram as séries da DC. Havia ficado tanto tempo
infiltrado que não parecia me encaixar na sociedade sendo eu mesmo.
Uma aluna levantou o braço me libertando dos meus devaneios e eu
aproveitei a deixa para entrar no personagem.
— Pois não, querida — usei minha voz mais doce, depois do soco
não queria vacilar de novo.
— Posso ir ao banheiro?
— Claro — disse um tanto decepcionado.
A menina pulou da cadeira e os outros alunos começaram a se
apresentar. Atento, escutei sobre a vida de cada um dos trinta estudantes e
quando percebi a campainha tocou indicando o fim da aula.
Poderia ter sido pior! Foi o mantra que enfiei em minha mente
enquanto andei pelo corredor indo em direção, mais uma vez, à sala dos
professores. Embora aquele ambiente ainda fosse estranho, me deixei sentar
sobre o sofá de cor quase bege, sentindo meu corpo rígido finalmente
relaxar.
Fechei os olhos por um instante, tentando inspirar o ar puro, mas
tudo o que consegui foi sentir o cheiro forte de café. Minhas mãos
tremerem diante do cheiro, curiosamente me lembrando do sabor do álcool
sobre os lábios. O amargor das bebidas ingeridas durante os meses
anteriores era quase palpável e eu me levantei de supetão, tentando
controlar o nervosismo que queria se instalar dentro de mim.
— Carajo! — uma voz feminina rugiu.
O quase xingamento, vindo em outra língua, chamou minha atenção
e percebi que havia, sem querer, esbarrado na professora de espanhol,
derramando café sobre sua blusa.
— Sinto muito — falei sentindo a cor do meu rosto sumir. O que eu
tinha feito para merecer aquilo? Tudo estava dando errado!
— Você de novo? — Isabela me olhou com desdém e, sem pensar,
puxei seu pulso em direção ao lado de fora da sala. — O que você está
fazendo?
— Onde fica o banheiro? — perguntei, olhando as placas sobre as
portas. — Não quero que se queime.
Com a cara fechada, ela apontou para uma porta à direita e, com
pressa, entrei no ambiente com ela. Eu sabia primeiros socorros, por isso
abri a torneira com velocidade e comecei a jogar água sobre a camisa da
professora. Meus dedos iam da água que escorria pela torneira até sua
camisa de botão, em um vai e vem, tentando impedir que o calor do líquido
quente e escuro a machucasse.
Quando eu disse que ia assumir o papel do Ezequiel, eu não
esperava que tudo começasse a dar errado logo no primeiro dia. Eu tinha
um plano, mas a cada passo que eu dava em direção à sua execução,
acontecia algo inusitado, fazendo eu não me ater à estratégia. Eu não era
daquele jeito, era um homem prático, objetivo e focado, então por que eu
estava naquele exato momento tocando os seios de uma mulher no banheiro
feminino?
Despertei dos devaneios ao notar que meus dedos estavam sobre o
tecido da camisa encharcada, tocando duas esferas redondas e macias. Dei
um salto para trás, sentindo o frio da bancada de granito da pia em minhas
costas.
A respiração estava tão agitada quanto no dia que capturei Cabrón.
O que era estranho, já que eu não conseguia, sequer, ver uma semelhança
entre os dois atos. Até que meus olhos pousaram em Isabela e então eu
percebi por que eu estava nervoso. Porque tanto ela quanto o traficante
tinham a morte cravada nos olhos.
Isabela me olhou com um uma fúria tão grande que eu tentei dar um
passo para trás, mas eu tinha esquecido que já estava colado na pia. Meu
cotovelo bateu na torneira que ainda se mantinha ligada e nem mesmo a
água de temperatura ambiente me livrou do arrepio que percorreu a minha
espinha.
— Eu... me desculpe...
O soco veio rápido, e, por mais que meus instintos fossem aguçados,
fui pego de surpresa. A pele de Isabela não parecia nada macia contra a
aspereza da minha barba por fazer e, para uma mulher daquele tamanho, ela
era tremendamente forte.
— Seu cretino tarado. — A fúria presente em sua voz me deixou
perplexo.
Diante de toda a confusão na qual minha vida estava metida, fiz a
última coisa que eu não costumava fazer. Eu recuei.
♪ Não estou aqui para terminar
Só pra ver quão longe isso vai se desdobrar ♪
:::Make it Wit Chu – Queens of the stone age:::

ISABELA MARTINS
Eu não acreditava que aquele bastardo estava com medo depois de
segurar nos meus peitos. Na hora que me tocou parecia tão corajoso, então
por que de repente estava assustado, analisando os próprios sapatos?
— Você está mesmo evitando o meu olhar? — perguntei, incrédula.
O semblante de Ezequiel fechou-se ainda mais, passeando pela
escuridão em questão de segundos, e então lá estava a faísca em seus olhos
mais uma vez.
— Eu sinto muito, de verdade. — Ele levantou as mãos em um
gesto de rendição. — Acho que não começamos com o pé direito.
— Você acha? — indaguei, sentindo a fúria me possuir.
Tudo bem, eu tinha sido uma otária por julgá-lo um alcoólatra, ainda
mais quando ele havia me ajudado a pegar as avaliações que haviam caído
no chão, mas ele não tinha o direito de me tocar daquele jeito, nem que suas
intenções fossem as melhores.
Ezequiel passou a mão pelos cabelos em um gesto que eu estava
começando a odiar e então estendeu a mão na minha direção.
— Podemos fingir que estamos nos conhecendo agora? — ele
questionou com a voz quase rouca. — Estou nervoso com meu primeiro dia
de aula.
Sua voz pareceu sincera e a mão estendida na minha direção,
convidativa, fez eu me aproximar. Eu lembrei do meu primeiro dia de aula,
do quão apavorada eu estava e ali, diante de mim, pude notar que Ezequiel
sentia o mesmo. Crianças podiam ser difíceis, principalmente longe dos
pais, por isso, e só por isso, dei um desconto.
— Tudo bem — disse, segurando sua mão calejada.
— Você está bem? — Ezequiel questionou, ainda segurando meus
dedos sobre os seus.
— Sim, não foi nada demais. — Tirei minha mão da sua e
instintivamente levei-a a seu rosto, onde eu havia batido. — E você?
Ele se retesou ao meu toque, encarando minha mão com os olhos
arregalados, e eu rapidamente puxei-a de volta, como se sua pele fosse
capaz de me queimar.
— Não se preocupe, já levei muitos socos na vida. — Ezequiel
sorriu, o primeiro sorriso sincero que eu vi em seus lábios, mas no mesmo
instante sua boca se fechou, se tornando sério.
Não entendi sua mudança repentina, mas naquele momento só
queria saber o porquê de alguém bater nele. Será que de fato ele era um
tarado cretino? Não, não parecia ser o tipo, ele realmente parecia
preocupado comigo. Mas eu não era exatamente o exemplo de pessoa que
sabia julgar os outros. Principalmente depois do que havia acontecido
comigo.
Passei os braços pelo meu corpo em um gesto protetor, tentando me
livrar das lembranças, mas Ezequiel pareceu pensar que eu estava me
afastando dele, já que recuou em direção à porta diante do meu gesto.
— Tem certeza de que está bem? Posso te levar ao hospital. — Sua
voz saiu fraca, a preocupação presente em seus olhos castanhos, que
pararam sobre os meus por um tempo maior do que deveria ser permitido
por lei.
— Eu vou indo. — Apontei para o lado de fora, desejando ao
máximo sair daquele ambiente que, de repente, parecia pequeno demais.
Meus pés quase tropeçaram na soleira da porta e, quando finalmente
saí do banheiro, senti o ar livre percorrer meus pulmões. Segui a passos
rápidos em direção à sala dos professores, sem olhar para trás.
O ambiente estava lotado, era horário de troca de turma, mas
nenhuma pessoa olhou para mim quando adentrei o cômodo, com exceção
de Margareth, que arqueou uma das sobrancelhas na minha direção.
— O que aconteceu com você? — questionou, olhando minha blusa
molhada.
— O novo professor de inglês derrubou café em mim. — disse
olhando ao redor, esperando não encontrar Ezequiel ali, mas sentindo uma
pontada de decepção ao notar que de fato ele não estava presente.
— Você já começou uma briga com ele? — Margareth indagou,
rindo. — Como ele é? Ainda não tive o desprazer de conhecê-lo.
Eu sabia que minha amiga compartilhava meu ódio pelos
professores de inglês, tudo porque queria me proteger, mas eu não podia
deixar que ela detestasse uma pessoa que nem conhecia.
— Ainda não tenho opinião formada sobre o Ezequiel — disse a
verdade, dando de ombros.
— Ezequiel? Que nome curioso, você sabia que Ezequiel foi um
sacerdote profeta? — Margareth questionou e eu sorri para ela.
— Por que você sempre tem informações estranhas nessa sua
cachola? — apontei para sua cabeça.
— Não sei. — Ela deu de ombros. — Gosto de saber de tudo um
pouco.
O problema era que Margareth sabia de tudo e não era só um pouco.
Era quase uma enciclopédia ambulante de dados aleatórios e isso por
diversas vezes fazia eu rir.
— Você é doida — falei, me sentando ao seu lado no sofá.
Margareth passou o braço pelo meu ombro, me puxando para perto e
quase colou a boca no meu ouvido ao cochichar.
— Mas não vai me dizer que aquele gostoso ali é o tal de Ezequiel?!
Virei para onde os olhos verdes da minha amiga estavam fixos e ali
vi o motivo de toda a minha frustração. Ezequiel parecia deslocado diante
de tantas pessoas. As mãos pousavam nos bolsos da calça social de
tonalidade cinza.
— Gostoso? Você tá louca, né? — rebati em voz baixa.
— Qual é, ele tem o sorriso perfeito e os olhos encantadores. —
Margareth encarou Ezequiel de baixo para cima. — Eu sei que as olheiras
podem ser um pouco assustadoras, mas você mesma tem um par delas bem
aí, embaixo dos seus olhos.
Ok. Margareth tinha razão! Não quanto ao Ezequiel ser gostoso, mas
quanto eu mesma ter olheiras gigantes.
— Você deve estar com fome, a falta de alimentos só pode estar
afetando seu cérebro. — disse, na defensiva, mas meus olhos traiçoeiros
correram em direção à Ezequiel.
Talvez eu tenha exagerado, ele não era horrível, embora gostoso
fosse uma definição que não se encaixasse no seu perfil. Analisei seus
cabelos castanhos escuros, que se mantinham de lado, quase alinhados, e
depois seu sorriso, que de fato era bonito, mas nada se comparava aos
olhos. Uma hora eles pareciam apagados, sem vida, em outros momentos
pareciam acesos, cheios de um brilho único.
— Para quem não achou ele um gato você bem que está secando ele
faz uns bons minutos — Margareth comentou e eu desviei os olhos em
direção à minha amiga.
— Não sei do que você está falando — disse, pulando do sofá e
puxando a mochila na minha direção. — Minhas aulas de hoje acabaram,
vou para casa, tenho muitas provas para corrigir.
— Você está fugindo do assunto.
— Não, estou fugindo de você — falei, mostrando a língua para
minha amiga. — Até amanhã, Marga.
Segui para fora, desviando de um professor ou outro até que
encontrei Ezequiel em frente à porta. Ele sorriu para mim e eu apenas
encarei seu rosto, sem retribuir. Por mais que ele não fosse metido como
Raquel ou não se parecesse nem um pouco com... com Martin, isso não
queria dizer que ele era uma boa pessoa e a mágoa que eu tinha contra o
cargo ainda não tinha se curado.
Passei rapidamente ao seu lado e quando cheguei ao meu carro, no
estacionamento na lateral do terreno da escola, coloquei o envelope sobre o
banco do passageiro. Segui para casa escutando música no rádio do
automóvel, os dedos batucando o volante. A tarde prometia ser desgastante,
por isso, ao passar por um posto de gasolina, parei na loja de conveniência e
comprei um pote de sorvete.
Ao chegar no prédio, estacionei o carro na vaga destinada a mim e
subi os lances de escadas com a mochila nas costas, o envelope em uma
mão e o pote de sorvete em outra. Eu odiava aquelas escadas, sempre
chegava sem fôlego no meu apartamento, ao menos elas serviam como
exercício diário, já que para mim era um sacrifício ir à academia ou fazer
qualquer outro tipo de atividade física.
Com um pouco de suor se formando na testa e a respiração
entrecortada, abri a porta e só não joguei a mochila sobre o sofá porque o
notebook estava dentro dela e eu ainda estava pagando as parcelas do
aparelho. Com cuidado, coloquei a bolsa sobre o sofá e fui direto à
geladeira guardar o sorvete, que no calor de Teresina estava prestes a
derreter. Após aproveitar um pouquinho de frio proveniente da geladeira,
fui até o banheiro.
Olhei a camisa manchada de café e desabotoei-a vendo que até
mesmo meu sutiã estava sujo. A pele do meu colo estava um pouco
avermelhada, mas nada muito grave. Tirei também o sutiã e coloquei as
duas peças no cesto de roupa suja. Já que estava quase totalmente despida,
aproveitei para tomar um banho, tentando não pensar na quase centena de
provas que eu teria que corrigir.
Com os cabelos molhados e usando um pijama mesmo ainda sendo
o começo da tarde, me debrucei sobre a cama puxando as avaliações do
envelope e espalhando-as ao meu redor. Peguei uma caneta na mesa de
cabeceira e comecei a percorrer as avaliações, analisando as respostas dos
alunos.
A turma do sexto ano estava de parabéns, havia muitas notas boas e
assim que terminei a correção das provas, me estiquei sobre a cama,
sentindo os efeitos da dor na coluna me atingindo. Não sabia por que, mas
não conseguia corrigir sentada em uma cadeira, como uma pessoa normal, é
como se na cama eu me sentisse mais à vontade em realizar o trabalho.
Me levantei esticando os braços sobre a cabeça e notei, entre as
avaliações, um punhado de papéis que definitivamente não era meu. Dei
uma olhada no documento e abri um sorriso incrédulo.
Larguei o papel sobre a cama e fui diretamente à geladeira pegar um
pouco de sorvete. Coloquei duas bolas generosas em uma xícara, sem me
preocupar em procurar as taças de sobremesa, e, quando o gelado da
sobremesa mergulhou em minha boca, um gemido escapou por meus lábios.
Mal tinha me deleitado com o sabor de chocolate sobre a boca quando a
campainha tocou.
Curiosa, segui até a porta, escancarando-a sem saber o que esperar,
mas nem nos meus sonhos imaginei que veria aquele homem diante de
mim.
♪ Algumas noites, eu fico acordado contando minha má sorte,
algumas noites, eu chamo de um empate ♪
:::Some Nights – Fun.:::

ISAAC ALMEIDA
— Pera aí, deixa ver se eu entendi. Isa, você segurou os seios da
professora de espanhol? — Fernando questionou, abrindo um sorriso. —
Como eles eram, macios?
— Você só escutou isso de tudo o que eu te falei? — questionei
emburrado, cruzando os braços. — Não percebeu que todo o plano que fiz
deu errado?
Fernando se ajeitou sobre a poltrona da sala e então o riso
desapareceu de seu rosto. Eu havia ligado para ele assim que cheguei em
casa e acabei contando toda a tragédia que tinha acontecido no primeiro dia
de aula.
— Falando sério agora. Ela é gostosa?
— Você tá de brincadeira comigo, né? — perguntei, jogando o
travesseiro do sofá, no qual estava sentado, em sua direção.
— Cara, você está muito rabugento. Está precisando de sexo. —
Fernando falou, segurando o travesseiro sem esforço. — Faz quanto tempo
que você não afoga o ganso?
Revirei os olhos e não o respondi. Não tinha como eu ter vida sexual
no tempo que fiquei no cartel. Eu não ia transar com as mulheres da máfia,
muito menos com as garotas menores de idade que eles traziam de outros
países latinos para servir como um pedaço de carne.
— Nando, eu não liguei para você para falar sobre sexo. —
Resmunguei com a incapacidade do meu amigo levar as coisas a sério. —
Se Isabela quisesse, eu poderia ter sido demitido ou até mesmo preso.
Passei a mão pelos cabelos, quase esquecendo da cicatriz que se
alojava ali. Admitir a derrota tão cedo era um desastre, principalmente para
mim, que sempre tinha tudo sobre o controle. Mas naquela escola, eu não
tinha controle sobre as crianças e, ainda menos, sobre Isabela. Antes de ir
embora, ela tinha me lançado um olhar ameaçador e só de pensar na
intensidade presente nele, um calafrio percorreu meu corpo.
— Logo após meu encontro... polêmico com Isabela eu fui atrás do
diretor, me apresentar, mas ele não estava lá. O vice-diretor, Afonso, não
estava presente também.
— Mas você não ia entregar ao vice-diretor um documento? —
Fernando indagou.
— Ia. — Me levantei do sofá e fui até o balcão que separava a sala
da cozinha, abrindo minha bolsa carteiro. — No telefonema ele pediu meu
currículo, porque ele falou sobre estratégias para uma feira de línguas
estrangeiras.
Fernando deu de ombros, não entendendo sobre o que estava
falando, mas nem eu mesmo sabia. Só sabia que o vice-diretor queria o
documento e eu ia entregá-lo. Revirei a bolsa procurando o papel, mas não
encontrei. Eu tinha certeza de que ele estava em minhas mãos quando entrei
na escola, então por que tinha sumido de repente? Minha mente vagou até o
momento que cheguei no colégio e então a ficha caiu.
— Merda — praguejei.
— O que foi? — Fernando arqueou umas das sobrancelhas, curioso.
— Acabei, sem querer, colocando meu currículo dentro do envelope
que Isabela derrubou no chão.
— Amanhã você pega com ela.
— Ela não pode ver meu currículo, Nando. — Andei de um lado
para o outro, pensando em um modo de reaver a papelada antes que ela
visse.
— Por que não? — Fernando questionou.
— Você acha mesmo que ela vai acreditar que fiz um mestrado em
Estudos de Língua e Literatura na Universidade de Harvard? — perguntei,
sentindo um nó se formando em minha garganta. — Olha para mim, eu mal
pareço um professor, quanto mais um que tem uma carreira impecável. E se
ela não acreditar ela pode começar a me investigar.
Me xinguei mentalmente inúmeras vezes e fechei a mão em punho,
frustrado por ter cometido um erro bobo. Como eu poderia ter errado
daquele jeito em uma missão tão importante? Não podiam desconfiar da
minha farsa, eu não poderia ser pego. E meu cansaço da operação anterior
não podia ser desculpa para esse desleixo.
— Eu preciso pegar o documento antes que Isabela veja. — falei,
determinado.
— E como pretende fazer isso? — Fernando questionou.
— Vou na casa dela. — Puxei o celular do bolso, decidido.
Fernando se levantou e cruzou os braços sobre o peito. Ele não
pareceu gostar da minha ideia, já que o sorriso, sempre presente, sumiu.
— Você vai usar o banco de dados da corporação para conseguir o
endereço dela?
Eu sabia que era ilegal conseguir informações daquela forma, até
porque Isabela não estava envolvida com minha investigação.
— Não, claro que não, vou vasculhar as redes sociais dela,
certamente vou encontrar alguma pista de onde ela mora.
Minha resposta fez Fernando relaxar e eu comecei a procurar
inúmeras redes sociais em busca de Isabela. No começo não foi fácil, mas
eu sabia o sobrenome dela e era muito bom em encontrar dados na internet
e logo consegui achá-la.
Corri os olhos pelas fotos de Isabela, que tinha o perfil aberto ao
público, vendo que seu sorriso, nunca antes dirigido a mim, era muito
bonito. Encontrei uma foto dela abraçada a uma mulher que me parecia
familiar e na foto estava marcado o endereço. Bingo!
Peguei a chave do carro e coloquei a bolsa carteiro sobre o ombro.
Será que àquela hora Isabela já teria visto meu currículo mentiroso?
— Vamos, Fernando, está na hora de você ir embora, eu estou
apressado — falei, empurrando suas costas para fora do meu apê.
— Caraca, você é um péssimo anfitrião. — Fernando não estava
nem um pouco sério, o sorriso tinha voltado ao seu rosto anguloso. — Da
próxima vez, pelo menos ofereça uma cerveja e quem sabe uns petiscos.
Revirei os olhos e ri, Fernando era impossível, com seu jeito
impertinente. Fechei a porta assim que ele saiu e praticamente saí correndo
em direção ao meu carro, sem nem esperar pelo meu amigo. Afundei sobre
o banco de couro e dei partida no carro de 184 cavalos. Atravessei metade
da cidade até o prédio no qual Isabela morava e estacionei o carro na
calçada, em frente ao edifício, que tinha apenas uma mureta baixa e um
gradeado.
O local pelo menos tinha uma guarita, mas o porteiro me encarou
sem ânimo. Os cabelos do homem já eram totalmente grisalhos e ele
perguntou qual apartamento era meu destino. Eu não sabia o número do
apartamento, por isso falei o nome de Isabela e disse que era um colega de
profissão. O senhor não pareceu preocupado em verificar se aquela
informação era verdadeira e me deixou entrar sem nem mesmo interfonar
para a professora de espanhol. Aquilo era totalmente errado, ainda assim
entrei no prédio.
O imóvel tinha um aspecto um pouco antigo, com boa parte da
pintura se descascando e pude notar que as vagas de estacionamento não
eram cobertas, o que era péssimo, já que morávamos em uma das cidades
mais quentes do Brasil. Coloquei a mão sobre os olhos, tentando evitar que
os raios solares me cegassem, e segui até o bloco B, número 34,
apartamento no qual o porteiro me informou ser o de Isabela. O local não
tinha elevador e ficava no terceiro andar, sorte que eu era um homem
atlético e mal senti o peso de subir aquela quantidade de lances.
Respirei fundo e bati na porta duas vezes. Isabela logo escancarou a
porta e seus olhos arregalados me mostraram que ela tomou um susto ao me
ver ali.
— Ezequiel, o que está fazendo aqui? — Sua voz saiu em um misto
de surpresa e rancor e eu me vi mudo por um segundo.
Escutei uma voz masculina vinda de dentro do apartamento e meu
corpo logo retesou. Ela estava acompanhada e eu estava ali atrapalhando.
— Sinto muito, acabei colocando um documento meu dentro do seu
envelope — falei rapidamente, querendo sair dali o mais rápido possível.
Isabela continuou com os olhos em mim por mais um tempo, até que
ela saiu da frente da porta apontado para o apartamento.
— Entre.
Não querendo entrar, mas também não querendo ser mal-educado,
me arrastei, meio sem jeito, pela sua sala de estar. Um homem estava
sentado no sofá, uma perna cruzada sobre a outra, de modo elegante. Ele
vestia uma roupa de academia, um short escuro e uma camiseta colada no
corpo forte.
— Não sabia que estava esperando visitas, Isa. — Meu apelido
saindo dos lábios daquele homem me deixou confuso, e só então percebi
que ele estava se dirigindo a Isabela.
— Eu não estava, Iago — Isabela falou, direta. — Ezequiel só veio
pegar uns papéis.
— Eu já vou indo. Obrigado pelo açúcar. — O tal de Iago se
levantou e pegou um pote de plástico em cima da mesinha de centro.
Isabela pareceu um pouco decepcionada, mas não protestou, apenas
o acompanhou até a saída. Depois de fechar a porta se virou para mim e
cruzou os braços sobre os seios. Não pude evitar de olhá-los, o pijama,
composto por um shortinho rosa e uma blusa regata verde limão, deixando
muita pele à mostra e então desviei meus olhos, incapaz de continuar
admirando aquela mulher que parecia me odiar.
— Você está de pijama? — foi a primeira coisa que perguntei,
sentindo minha garganta seca.
— Estou, porque curiosamente, dois homens vieram ao meu
apartamento sem me avisar. — Isabela passou a mão pelos cabelos e notei
que ela não perecia nem um pouco constrangida por usar aquelas peças de
roupa pequenas demais. — Aliás, como conseguiu meu endereço?
— Redes sociais. — Dei de ombro falando a verdade. — Você
deveria ser mais cuidadosa, o porteiro do prédio não fez nem questão de
avisar para você.
— O síndico não se importa muito com isso. — Isabela andou pelo
apartamento, indo em direção a uma porta. — Venha, você não quer seu
documento? Eu poderia ter entregado ele amanhã para você.
— Eu preciso dele hoje, preciso consertar algo que errei — inventei
uma desculpa qualquer.
— Então quer dizer que você se enganou que havia feito mestrado
em Harvard? Ou errou sobre o emprego na Apple? Não sabia que
professores de inglês poderiam trabalhar fazendo Iphone.
A pergunta não soou acusatória, ainda assim, a sobrancelha erguida
de Isabela na minha direção fez eu me xingar mentalmente. Ela havia lido
meu currículo e, como suspeitei, não acreditou muito nas mentiras
colocadas no pedaço de papel.
— Na verdade, errei o meu e-mail — falei colocando a mão no
bolso, enquanto Isabela abriu a porta do que seria o quarto dela.
Inúmeros papéis se espalhavam pela cama, mas, tirando esse fato,
ela parecia ser uma pessoa organizada. Eu não vi peças de roupas
espalhadas pelos cantos e a mesinha de cabeceira estava com tudo em
ordem. Isabela se curvou sobre a cama, a posição sugestiva veio de forma
tão natural que me peguei observando suas pernas cobertas apenas pelo
short minúsculo.Desviei os olhos para o chão, mais uma vez fugindo de
encarar aquela mulher que eu conhecia há menos de vinte e quatro horas e
só voltei a fitá-la quando escutei seu pigarreio.
— Aqui está. — Isabela estendeu o papel na minha direção. Me
aproximei dela e peguei o documento composto por inúmeras mentiras —
Como foi lá?
— Lá onde? — questionei, confuso.
— Em Harvard, é claro. — Isabela seguiu de volta à sala e saí em
seu encalço.
Eu não sabia se ela estava desconfiada ou se realmente era
curiosidade, por isso apenas respondi de forma objetiva.
— Foi ótimo, Cambridge é uma cidade maravilhosa. — Abri um
sorriso e continuei. — Infelizmente o inverno pode ser cruel com quem
nasceu no Brasil, ainda assim foi bom.
As pessoas sempre falavam do clima quando viajavam para o
exterior então eu só segui a onda. Isabela se mostrou satisfeita com minha
resposta, já que sorriu.
— Imagino que tenha sido difícil, eu mesma sinto frio até quando
estou na sessão de frios de um supermercado — comentou, sentando-se no
sofá e indicando-o para eu me sentar também.
— Eu preciso ir, ainda tenho que ajeitar meu e-mail. — disse, já me
encaminhando para a porta. — Obrigado e desculpa.
Me virei para ir embora, ficar perto de Isabela era perigoso, mas
algo me impediu de sair. Olhei para baixo, especificamente para meu pulso,
e percebi que a professora de espanhol o segurava com sua mão.
— Pelo que exatamente está se desculpando? Por ter vindo à minha
casa sem me avisar, por ter tocado em meus seios sem minha permissão ou
por ter sido pego no flagra mentindo em seu currículo?
Ela então me soltou. Virei meu corpo em direção à Isabela,
encarando aqueles olhos ameaçadores. Mais uma vez ela estava rindo, mas
eu percebi que não era alegria que marcava seus lábios bem desenhados. Eu
pensei que o primeiro dia já havia atingido sua cota de tragédias, mas é
claro que ainda tinha sobrado espaço para mais.
♪ Oh, não, vocês garotos nunca vão se importar
Não, vocês garotos nunca se importam em como uma garota se sente ♪
:::No you girls – Franz Ferdinand:::

ISABELA MARTINS
A cara que Ezequiel fez na minha direção foi impagável: uma
mistura de choque com aflição. Eu sabia que havia sido maléfica, mas quem
mandou ele chegar de supetão na minha casa quando o gato do Iago estava
me dando bola?
Eu mal acreditei quando abri a porta e vi que meu vizinho, que
parecia saído dos filmes de super-heróis da Marvel, estava ali diante de
mim, pedindo açúcar. Era raro eu ver Iago pelo prédio, por isso, quando ele
surgiu na minha frente, quase me engasguei. Eu havia acordado após um
sonho frustrado com Henry Cavill, mas ali, na minha frente, estava um
homem tão bonito quanto. Quando o convidei a entrar e ele se sentou no
meu sofá, eu faltei suspirar. Eu ia pedir o telefone dele, quem sabe a gente
marcasse uma saída. Mas ele foi embora cedo demais, e tudo por culpa do
Ezequiel que apareceu do nada no meu apê.
— Sinto muito por ter aparecido sem avisar, mas eu não sabia seu
telefone — Ezequiel comentou, a fisionomia voltando a parecer uma
máscara indecifrável.
— Mas arranjar meu endereço foi fácil, né? — rebati. Estava irritada
por seu intrometimento.
— Você está realmente zangada comigo? — questionou.
— Claro que sim. — Cruzei os braços sobre os seios.
Ezequiel me olhou por um segundo e então um pequeno riso se
formou em seu rosto. Eu não gostava de quando ele ria, principalmente
porque os dentes pareciam perfeitos demais.
— Entendi, eu atrapalhei o que estava acontecendo aqui. Não tenho
culpa se ele foi embora quando eu cheguei.
Pude notar um leve tom de sarcasmo na sua voz e logo soube que
ele estava falando de Iago. Revirei os olhos e resolvi cutucar a fera com
vara curta.
— Quer dizer que você fez mesmo mestrado em Harvard? —
questionei, erguendo uma das sobrancelhas.
Sei que não devia ter lido o currículo, mas estava ali, na minha cara
e não resisti. A formação dele era impecável, perfeita demais para ser
verdade e eu sei que metade da minha desconfiança era inveja, mas a outra
metade era de fato real. Poderia alguém que parecia ser tão novo ter aquela
quantidade de experiência?
— Claro que fiz, você acha que eu mentiria no meu currículo? —
Ezequiel questionou me olhando com cara feia, tocando o pescoço com o
indicador.
— Quem nunca mentiu no currículo que atire a primeira pedra.
— Fique à vontade de pesquisar meu nome no Google — ele disse
virando-se mais uma vez para ir embora.
— Talvez eu faça isso — retruquei.
Os pés de Ezequiel vacilaram, ainda assim ele girou a maçaneta e
foi embora me deixando ali, abismada com todos os acontecimentos do dia.
Aquele homem era irritante e a vontade que eu tinha era de socá-lo, mais
uma vez, por ele ser tão presunçoso.
Me debrucei sobre o sofá, puxei o celular, abri o Google e coloquei
o nome dele no campo de busca, desejando desesperadamente que tudo que
tivesse naquele currículo fosse mentira, mas o que encontrei só me deixou
pior. Não só tudo era verdade, como a foto dele que surgiu na tela me
deixou em choque. Parecia uma foto 3x4, no entanto, ele estava
tremendamente lindo. O rosto não estava tão magro, os cabelos se
destacavam, mais compridos, e os olhos sempre com aquele estúpido brilho.
Joguei o celular sobre o sofá e me levantei indo até à cozinha, beber um
gole de água. Subitamente o ambiente tinha se tornado mais quente do que
já era.
Voltei ao quarto e recomecei a corrigir as avaliações das outras
turmas. Me foquei nas respostas dos alunos e não nos acontecimentos
sinistros do dia. Quando finalmente acabei de passar as notas dos alunos
para o sistema acadêmico, me deixei relaxar. Meus olhos se fecharam quase
automaticamente, devido ao cansaço, e acabei pegando no sono. Não sonhei
com Henry Cavill, mas sim com Iago e Ezequiel brigando entre si em uma
banheira cheia de sabão.
Acordei assustada, imaginando de onde meu subconsciente tinha
tirado aquela ideia para o sonho que tive. Esfreguei os olhos e me levantei
da cama percebendo que já era noite. Pela janela do quarto pude ver que as
estrelas pareciam tímidas no céu e que a temperatura havia dado uma
amenizada. Sem sono, depois de ter cochilado, fui até a sala e liguei a
televisão. O jornal local falava sobre a prisão de um traficante de drogas
caribenho e me peguei pensando o que diabos um homem que nasceu no
Caribe veio fazer no Piauí. Se eu fosse ele estaria curtindo as praias do
Caribe e não a quentura da única capital do Nordeste que não era litorânea.
O jornalista comentou sobre o caso por um bom tempo e, sentindo
um pouco de medo da violência crescente, fui até a porta verificar se estava
realmente trancada. Como Ezequiel tinha dito, o porteiro deixava qualquer
um passar e talvez fosse bom conversar com o síndico para mudar a
situação.
O telefone tocou sobre o sofá e abri um sorriso ao notar o nome de
Margareth no visor. Ainda que trabalhássemos no mesmo local, nós
vivíamos ligando uma para outra.
— Oi, Marga — falei ao atender a chamada.
— Você não vai acreditar no que aconteceu. — A voz empolgada de
Margareth soou no meu ouvido.
— O quê?!
— Não tem o Otávio, aluno do sétimo ano? — ela questionou.
— Sim, que que tem ele?
— O pai dele me adicionou no Facebook e mandou um direct me
convidando para jantar.
— O quê? — meu grito ecoou pela sala e eu dei graças a Deus que
Iago àquela altura provavelmente não estava em casa porque ele era
enfermeiro e trabalhava boa parte das noites dando plantão. — Você
aceitou?
— Tá maluca? Não saio com pais de alunos. Seria uma confusão
desnecessária se não desse certo. Já pensou como seria na reunião de pais e
mestres?
— E você quer adivinhar o que aconteceu comigo hoje à tarde? —
questionei, pronta para contar o que tinha ocorrido.
— Você sabe que eu odeio tentar adivinhar. Conta logo.
— Meu vizinho, o Iago, veio aqui em casa, pedir um pouco de
açúcar — eu disse, me remexendo no sofá.
— Não acredito! Ele é muito gato, que sorte a sua — Margareth
comentou e olha que ela só tinha visto Iago uma vez, no corredor do prédio,
quando veio me visitar.
— Sorte seria se o Ezequiel não tivesse aparecido aqui — disse
estreitando os olhos, mesmo que ela não pudesse ver.
— Como assim?
Eu respirei fundo e contei tudo, como ele magicamente havia
aparecido no meu apartamento, falei sobre o currículo dele e também sobre
nossa interação. Margareth parecia estar se divertindo, já que eu pude
escutar seu sorriso do outro lado da linha.
— Não tem graça — falei, emburrada.
— Claro que tem, vocês parecem cão e gato e como ele é o gato
você só pode ser o cão.
Revirei os olhos, inconformada com a atitude da minha amiga. Ela
não tinha jeito, sempre levando tudo na brincadeira.
— Qual é, ele nem é tão gato assim — comentei, tentando não
pensar na foto de Ezequiel que achei na internet.
— Como dizia meu avô: o pior cego é aquele que não quer ver. —
Margareth riu e eu bufei.
— Preciso preparar minha aula de amanhã. — disse, cortando o
assunto.
— Ok, ok, não vou mais implicar, mas se hoje, no primeiro dia, ele
já foi na sua casa, o que será que ele vai aprontar amanhã?
— Não quero nem imaginar, só quero distância — falei me
levantando do sofá. — Eu realmente preciso ir, até amanhã.
— Até.
Desliguei o telefone e voltei para o quarto, a minha vontade era de
preparar minhas aulas do outro dia, mas a curiosidade foi maior e acabei
aproveitando o tempo para pesquisar mais sobre Ezequiel.
Não encontrei muitas coisas sobre ele, nenhuma rede social, o que
era estranho, apenas o currículo e um documento mostrando sua nomeação
no concurso. Tirei o nome dele do Google e coloquei o meu próprio e vi um
punhado de resultados a mais. Talvez ele fosse um homem discreto e eu
uma pessoa enxerida. Fechei a tela do computador me sentindo uma stalker
da pior categoria.
Eu não tinha motivos para desconfiar de Ezequiel e, por mais que
odiasse seu cargo, não podia simplesmente detestá-lo por ele estar fazendo
sua função. O que tinha acontecido entre mim e Martin nada tinha a ver
com Ezequiel. Um frio não condizente com a temperatura ambiente
perpassou meu corpo e eu suspirei ao notar meus próprios braços se
fechando sobre meu corpo em um gesto semiautomático. Eu precisava
superar, sabia daquilo, mas, enquanto a solução do problema não parecia
surgir diante de mim, resolvi fazer o que fazia de melhor. Me distanciar.
Estava decidido. Eu não iria mais interagir com Ezequiel.
♪ Vou trocar essa vida por fortuna e fama
Até cortaria meu cabelo e mudaria o meu nome ♪
:::Rockstar – Nickelback:::

ISAAC ALMEIDA
Aquela mulher era ardilosamente perigosa. Deitado na cama, horas
depois de chegar em casa, eu ainda pensava no estrago que ela poderia fazer
na missão. Sabia que ao colocar meu nome no buscador ela não acharia
nada demais, afinal a polícia fazia um trabalho bem-feito. Ainda assim, eu
tinha medo. Uma mulher desconfiada era suficiente para se transformar em
uma arma perigosa.
Fechei os olhos, tentando dormir, mas as cenas, ainda frescas das
atrocidades cometidas pelo Cabrón, perpassaram minha mente já
perturbada. Eu precisava impedir o que quer que acontecesse naquela
escola. Crianças passavam o dia naquele ambiente que, muito
provavelmente, era uma fachada para o crime. Só conseguiria dormir em
paz depois que aquele caso terminasse e minha tranquilidade só duraria até
mais uma nova missão surgir.
Não era o ideal para minha saúde mental, porém era daquele jeito.
Me obrigava a fazer o meu melhor, o que exigia muito não só fisicamente
de mim, mas o retorno fazia tudo valer a pena.
Decidido, me sentei de uma vez do colchão semiortopédico e puxei
uma folha de papel da escrivaninha, onde minha arma permanecia
guardada. Ia traçar um plano e executá-lo o mais rápido possível. Se as
evidências não vinham até mim, eu iria até elas e assim terminaria aquele
trabalho o mais rápido possível, antes mesmo que Isabela tivesse mais
motivos para desconfiar de mim.
Passei a madrugada acordado, a adrenalina fluindo pelo meu corpo
tão acostumado à ação. Na manhã seguinte as olheiras estavam um pouco
piores, mas não me importei, ia concluir a missão.
Ao chegar na escola fui direto à sala de aula, pronto para colocar
todo meu plano em prática, mas o universo não parecia tão disposto a me
ajudar. Mal cheguei na porta e vi que a algazarra estava feita. Crianças
corriam de um lado para o outro, algumas assustadas, outras com o dedo
apontado para o fim da sala. Os berros e gritos se misturavam a risos e,
confuso, saí andando até o ponto onde boa parte dos alunos se
aglomeravam.
Primeiro tomei um susto, depois, quando me recuperei, xinguei
mentalmente em todas as línguas que conhecia, porque o que vi me deixou
tão indignado que meu cérebro não conseguiu se controlar.
Um aluno com catapora.
Isso mesmo, os pais de um dos alunos simplesmente resolveram que
seria sensato enviar o filho com catapora para uma sala cheia de outras
crianças. O caos, já instalado, só ficou pior quando o aluno, cheio de marcas
pelo corpo, começou a chorar.
Suspirei e contei até dez antes de fazer algo do qual me arrependeria
e, com uma paciência que costumava não ter, me dirigi até o garoto chorão.
Segurei sua mão com firmeza, lancei um sorriso nível de premiação
mundial de atuação e o convidei para ir até o lado de fora da sala comigo. A
última coisa que precisava era ter um surto de catapora na minha turma.
— Qual seu nome e o telefone do seus pais? — indaguei.
O garoto não respondeu nada, apenas continuou chorando, uma
meleca verde saindo por uma de suas narinas. Ele fungava, esfregando as
mãos sobre os olhos molhados.
— Não precisa chorar, todo mudo já teve catapora um dia.
O aluno desatou a chorar mais ainda e eu olhei para os lados,
desesperado, sem saber o que fazer. Uma mulher passava pelo corredor,
carregando uma pasta nas mãos, e sem pensar duas vezes fui até ela.
— Será que você pode me ajudar? — implorei, quase como se
minha vida dependesse disso, porque afinal, não só minha vida dependia
desse caso.
A mulher olhou para o aluno chorão e depois para mim. Ela então
abriu um sorriso de compreensão e chamou o aluno.
— Otávio, querido, venha aqui, não precisa ter vergonha. — Sua
voz saiu de forma tão carinhosa que até eu me acalmei.
O tal de Otávio chegou de mansinho e abraçou a mulher de olhos
verdes. O choro finalmente cessou e ela tocou no meu ombro antes de dizer.
— Não se preocupe, deixa que eu resolvo o caso dele.
Suspirei, aliviado, e ajeitei os fios do meu cabelo que, no desespero,
tinham saído do lugar.
— Eu sou Ezequiel, a propósito — falei, me apresentando.
— Eu sei. — A mulher de olhos claros, falou, mordendo o lábio
inferior para conter um riso. — Sou a Margareth, professora de história,
mas pode me chamar de Marga.
Ela me analisou por completo, sem um pingo de pudor, e eu inventei
uma tosse falta, incapaz de sustentar seu olhar lascivo.
— Eu vou voltar à sala de aula. — falei, sentindo minha garganta
travar. — Muito obrigado pela ajuda.
Margareth estendeu a mão na minha direção e eu apertei a dela,
pronto para ir embora. Ela, entretanto, segurou a minha com força.
— Você sabia que o profeta Ezequiel ficou muito tempo em
cativeiro, na Babilônia? — questionou, sem me soltar e eu ergui uma
sobrancelha, curioso. — A esposa dele faleceu, durante o episódio, mas ele
era um homem de fé.
Esperei pela continuação de sua história sobre o profeta Ezequiel,
mas ela se calou e soltou minha mão. Margareth chamou Otávio mais uma
vez e foi embora, seguida dele.
Fiquei um tempo parado, chocado demais para me movimentar. Foi
uma troca de olhar, mas senti ser o suficiente para ela saber que eu estava
mentindo, como se conseguisse ler todos meus passos meticulosos como
falsos. Tal qual Ezequiel, eu vivia em eterno cativeiro, preso de lugar em
lugar por conta da minha profissão e ela pareceu saber exatamente aquilo ao
falar aquelas palavras.
Fechei a mão em punho, inconformado por precisar ter cuidado com
mais uma pessoa. Primeiro era Isabela, que prometeu investigar meu nome,
depois era Margareth com seu olhar crítico sobre mim. Eu precisava sair
dessa escola o mais rápido possível, de forma que meu disfarce
permanecesse intacto.
Voltei à sala de aula, mas minha cabeça permaneceu na missão, em
como eu faria para conhecer o diretor e descobrir se ele realmente estava
envolvido no mundo dos crimes ou não. Por isso, logo que a aula acabou,
segui a passos firmes até a sala da diretoria.
Bati na porta duas vezes, pronto para me apresentar e fazer o
homem confiar em mim, só que quem abriu a porta não foi o diretor, e sim
o vice, Afonso.
— Professor Ezequiel. Que bom vê-lo por aqui, entre. — O senhor
careca e de estatura elevada me abraçou como se fossemos velhos amigos.
— Queria mesmo conversar com você.
Afonso afastou uma das cadeiras da sala para eu sentar e ele próprio
se sentou na robusta cadeira que ficava diante da mesa de madeira. O
homem cruzou os braços sobre o peito e abriu um sorriso em meio a seus
dentes amarelos.
— Trouxe seu currículo? — questionou.
Puxei o envelope da mochila e entreguei ao homem, deixando a
máscara da seriedade cobrir minha face.
Afonso analisou os papéis com atenção, abrindo a boca, surpreso,
em alguns momentos e eu me preparei para o bombardeamento de
perguntas, mas nada veio, apenas palmas.
— Desconheço um professor com tantas qualificações, você
realmente é um profissional exemplar. Fico muito feliz que esteja com a
gente. Pena que isso só aconteceu porque Raquel foi afastada devido ao
acidente.
A atmosfera mudou na mesma hora. Afonso olhou, de modo rápido,
para uma foto em cima de sua mesa. A imagem mostrava uma reunião de
várias pessoas e, como reconheci Isabela e também Margareth, supus que
era uma foto com todos os professores. Percorri os olhos pelos rostos e fixei
em uma mulher loira, alta, e de nariz pontudo. Aquela era Raquel, a antiga
professora de inglês.
O que tinha acontecido com ela nada tinha a ver comigo. Ela havia
sofrido um acidente de moto, estava andando acima da velocidade
permitida, e, felizmente, sobreviveu ao estrago quando bateu em um poste.
Teve que se afastar e ali eu entrei. A polícia fez um trabalho meticuloso, me
colocando em seu lugar como se eu fosse o próximo candidato na lista do
concurso, mas a verdade é que apagamos todos os registros de afastamento
de Raquel, para que o verdadeiro candidato jamais soubesse que ela havia
saído do cargo. Era uma coisa complexa, mas para mim só importava que
eu estava ali para resolver um crime.
— Você tem alguma pergunta? — questionou, depois de suspirar.
Apagando a tristeza em seu semblante e voltando a uma atmosfera gentil.
— Quando irei conhecer o diretor? — perguntei, demonstrando uma
empolgação genuína. Não via a hora de prendê-lo, se fosse culpado.
— O diretor Pascoal é muito ocupado, mas não se preocupe, você
vai ter várias oportunidades para conhecê-lo.
Trinquei a mandíbula com sua resposta. Eu não tinha tempo, nem
um pouco. Não queria ficar meses infiltrado se pudesse resolver o quanto
antes. Esse diretor estava me tirando do sério e, se por um acaso, não o
prendesse por lavagem de dinheiro ou o que quer que fizesse às escondidas,
estava seriamente pensando em o prender por não trabalhar.
Afonso se levantou, já pronto para me despachar, mas quando abriu
a porta tocou a testa e suspirou alto.
— Como sou esquecido, sei a oportunidade perfeita para vocês se
encontrarem logo. Você sabe jogar poker?
Um sorriso naturalmente se abriu em meus lábios. Se tinha uma
coisa que eu sabia fazer era blefar, principalmente quando minha profissão
dependia disso. Embora poker não fosse um jogo de azar, senti que a sorte
estava ao meu favor e eu estava pronto para jogar.
♪ Será que estou sob um feitiço
Que me impede de ver a realidade? ♪
:::Love Hurts – Incubus:::

ISABELA MARTINS
— Não acredito que você que transou e eu que ganhei catapora! —
comentei, colocando o termômetro embaixo da axila.
— Isa, eu sinto muito. Eu estava querendo, ele também, foi natural.
— Margareth juntou as palmas das mãos em uma prece, implorando por
perdão pela décima vez nos últimos dois minutos.
— O que foi natural? Você me passar catapora ou transar com o pai
do seu aluno? — questionei, incrédula.
Minha amiga suspirou, olhando para o teto, e o termômetro embaixo
da axila apitou indicando que eu estava com febre mais uma vez. Ela
choramingou, mas não fiquei com pena dela. A safada havia ido ao meu
apartamento contar tudo o que tinha acontecido entre ela e o pai do Otávio,
não deixando de fora nenhum dos detalhes sórdidos e ainda havia me
deixado doente.
— Eu sei que falei que não sairia com pai de aluno, mas Manuel é
um fofo, comprou até flores como forma de agradecimento por eu ter
ajudado o Otávio. — Margareth abriu um sorriso bobo e eu bufei.
Ela havia tido uma noite de sexo maravilhosa, em compensação
contraiu catapora, o que não foi problema, já que ela tinha pegado quando
criança. O desastre foi ter passado a maldita doença para mim, que, aos
vinte e nove anos, estava parecendo uma árvore de Natal, de tanta bolinha
espalhada pelo corpo.
— Eu preciso ir para a escola, só vim ver se você estava melhor.
Você promete que vai ficar bem sozinha? — questionou.
— Não se preocupe, se eu precisar de algo vou atrás do Iago. Ele é
enfermeiro, pode me ajudar.
— Boa ideia, ele pode te ajudar a trocar de roupa, por exemplo. —
Margareth riu e eu não pude deixar de sorrir também, só minha amiga para
ter ideias como essa.
Ela se despediu, mas não antes de falar o nome de Manuel mais uma
infinidade de vezes. Marga realmente estava gamada nesse homem. Ter um
relacionamento com um pai de aluno não era o melhor dos cenários, mas
também não era proibido ou algo do tipo. Só poderia ser complicado e eu
sabia, melhor que ninguém, que quando o relacionamento com alguém
próximo ao ambiente de trabalho não dava certo, muitos problemas
estariam envolvidos.
Liguei a televisão e, mesmo sendo abril, comecei a assistir um filme
natalino. Já que eu estava parecendo uma árvore de Natal, iria entrar no
clima. Estava tentando não ficar irritada com a situação, mesmo que
estivesse com febre, dor de cabeça, e uma coceira chata pelo corpo.
Eu costumava ver o lado positivo da situação, e o lado positivo era
que os coleguinhas não iam rir de mim, como aconteceria se eu tivesse
ficado doente na infância, e eu estava de atestado médico por uma semana.
Se eu pensasse bem era quase férias antecipadas, só que com direito a muita
coceira e banho roxo.
O filme acabou e aproveitei para pegar um cobertor no quarto
porque mesmo tendo tomado o remédio de febre ainda estava sentindo frio.
Voltei à sala e dei o play em mais outro filme natalino, desejando cada vez
mais que o Natal chegasse logo.
Depois de passar a manhã entre filmes, pipoca e cochilos, dei uma
de Garfield e pedi uma lasanha à bolonhesa por um aplicativo de comida, já
que não estava com coragem para preparar algo. Estava quase com tédio,
indo para o quarto filme cheio de presentes e milagres amorosos, quando
uma batida na porta chamou minha atenção.
Girei a maçaneta de uma vez, pronta para ver minha comida
quentinha sendo entregue e não um homem de estatura elevada e olhar
penetrante.
— Ezequiel?
O que diabos o culpado pela minha doença estava fazendo na minha
casa? Deixei toda a vibe de carpe diem de escanteio.
— Você é um idiota! — foi a primeira coisa que disse, zangada.
Ele recuou um passo, surpreso com minha atitude, mas logo se
recuperou.
— O que foi que eu fiz? — questionou e eu revirei os olhos. Ele
tinha mestrado, não poderia ser tão estúpido!
— Por sua culpa Margareth pegou catapora e passou para mim.
— Jamais imaginei que você seria prejudicada nessa confusão. —
Ele comentou, sorrindo, os dentes retilíneos, brancos, bonitos demais para
meu gosto.
O som sereno de sua risada me irritou e, se eu tivesse poderes,
certamente seria o Ciclope e soltaria laser por meus olhos. Me aproximei de
Ezequiel a ponto de sentir o cheiro discreto de seu perfume amadeirado.
— Você não pode chegar na escola achando que o é o maioral só
porque fez um mestrado nos Estados Unidos se não sabe nem lidar com
uma criança chorando por conta de catapora. Que tipo de professor de
merda você é?
O riso fechou no mesmo instante e, apenas por um segundo, vi
medo perpassando seu semblante. O medo, entretanto, deu lugar a algo que
eu não soube identificar e, quando Ezequiel me encarou com seu par de
olhos castanhos, eu me vi calada, pensando se não teria ido longe demais.
— Você tem razão. Eu sinto muito, isso não vai mais se repetir. —
Ezequiel disse, determinado. — Prometo que não vou mais lhe causar
problemas, Isabela.
Meu nome, saindo de forma tão séria de sua boca, trouxe um
desconforto no meu estômago e, por um breve momento, eu quis desfazer
tudo e trazer de volta o Ezequiel sarcástico. Antes de eu falar qualquer outra
coisa, ele passou por mim, entrando no meu apê e deixou uma sacola em
cima da bancada da cozinha. Só então percebi que ele havia feito compras.
— O que é isso? — perguntei, confusa.
— Soube de você por Margareth e como me senti culpado pelo que
aconteceu, resolvi trazer algumas coisas para você. Trouxe um antialérgico,
remédio para febre, suco e água de coco. — Informou tirando uma
infinidade de coisas da sacola ecológica com estampa de filhotes de
cachorros. — Ah, trouxe também chocolate e frutas.
Ezequiel descarregou tudo, quase como se agir dessa forma,
trazendo comida para mim, fosse natural, e depois enfiou a mão no bolso da
calça jeans. Sua roupa, casual, de nada parecia com a que usava na escola.
Uma camiseta preta cobria seu corpo e seu look se completava com um
tênis da mesma cor. Os cabelos estavam bagunçados, dando um ar
desleixado e curiosamente atraente, e eu balancei a cabeça tentando afastar
essa linha de pensamento perigosa.
— Para sua informação, nos Estados Unidos, a maioria dos pais
fazem questão que as crianças peguem catapora, pois acreditam que é mais
seguro que elas desenvolvam imunidade natural à doença em uma idade
jovem, em vez de serem vacinadas. — Ezequiel comentou, dando de
ombros.
E então, todo o encanto que parecia surgir vindo dele, se quebrou.
— Você sempre tem que rebater o que falo? — questionei, incrédula
por todas as vezes ele ter uma resposta na ponta da língua.
Ezequiel me analisou, pronto para responder, e então tocou a ponta
dos seus dedos na cicatriz recém-formada, fazendo por fim uma careta.
— É um hábito que tenho desde criança. Meu pai dizia que era um
dos meus grandes defeitos, ser uma pessoa orgulhosa, sempre ter a última
palavra.
Uma nuvem sombria pareceu se instalar em suas íris marrom e não
soube dizer se era pela dor que a cicatriz trazia ou se pelas lembranças que
ele recordava. De alguma forma me senti tentada a afastar a escuridão de
perto dele.
— Quais eram os seus outros defeitos? — perguntei, curiosa por
saber mais um pouco sobre Ezequiel.
Para minha surpresa ele riu e andou a passos curtos até a porta de
entrada.
— Se eu te dissesse teria que te matar — falou piscando um dos
olhos para mim e virou as costas para ir embora, mas, antes de sair, girou os
pés na minha direção. — Se hidrate muito bem e não esqueça de tomar os
remédios na hora certa.
Balancei a cabeça, concordando, e ele foi embora, me deixando
plantada no meio da minha sala, chocada demais para processar tudo o que
tinha acontecido.
Quase que instantaneamente senti sua falta, mas talvez fosse melhor
desse jeito, quanto menos contato com Ezequiel, melhor. Afinal, seu cargo
de professor de inglês parecia mais amaldiçoado que o cargo de Defesa
Contra as Artes das Trevas de Harry Potter.
Respirei fundo e voltei ao sofá, pronta para continuar na minha vibe
de férias, porém, uma batida na porta soou mais uma vez. Girei a maçaneta
e vi Ezequiel do outro lado, quase esbaforido. Sua respiração ofegante
indicava que ele havia corrido os lances da escada.
— Eu esqueci de uma coisa. — Olhei para trás, pronta para ver a
chave do seu carro jogada em cima da bancada ou coisa do tipo. Ezequiel,
entretanto, não se moveu.
Depois de um minuto de silêncio, como se subitamente tivesse se
lembrando do que veio fazer ali, ele disparou:
— Esqueci de dizer que enquanto estiver doente, venho cuidar de
você. — Sua voz saiu fraca, rápida, mesmo assim tive certeza de que o
havia escutado muito bem.
Ezequiel abriu um sorriso, dessa vez contido, mas não menos
bonito, e eu me deixei encarar sua boca. Foi questão de um segundo, mas
suficiente para sentir uma onda de calor perpassando meu corpo. No
entanto, culpei a febre, que devia ter passado. Quando Ezequiel foi embora,
entretanto, senti que levou consigo um pouco da minha sanidade.
♪ Eu quero jogar como se faz no Texas, por favor
Dobrá-los, deixarem me bater, aumente a aposta, querido, fique comigo (eu
amo isso) ♪
::: Poker Face – Lady gaga:::

ISAAC ALMEIDA

Eu era orgulhoso, teimoso e exigente, mas nunca poderiam me


chamar de egoísta. Descobrir que, por minha culpa, Isabela contraiu
catapora me deixou fora do eixo. Cada vez mais eu estava perdendo o
controle ao assumir o papel de professor, e o que mais me deixava irado era
prejudicar outras pessoas que não a mim.
Logo após acabar a aula, fui direto para casa, trocar de roupa, pois
um aluno havia sujado minha camisa de tinta guache. Em seguida, fui ao
supermercado e à farmácia para comprar algumas coisas. Precisava garantir
que Isabela se recuperasse rápido, por isso acelerei até o limite permitido
por lei em direção ao seu apartamento, localizado na zona leste da cidade.
Pulei de dois em dois degraus até o terceiro andar, pronto para fazer
meu papel de bom moço, mas nada me preparou para a visão que tive
quando Isabela abriu a porta.
Ela estava de pijama de bolinhas, combinando de um jeito muito
irônico com as pequenas bolhas espalhadas em seu corpo. Mal tive tempo
de fazer algum comentário, já que ela foi me xingando. Não tirava sua
razão, eu era culpado e merecia seu rancor, mas, quando ela citou meu
mestrado e disse que eu era um professor de merda, me senti o pior
infiltrado de todos.
Mesmo que ela tenha tentado descontrair o clima, perguntando sobre
meus defeitos, senti que era hora de ir embora, me preparar para a noite de
poker. Por que então, quando meus pés tocaram na calçada do seu prédio,
eu senti a necessidade de voltar ao seu apartamento?
Talvez, se meu pai estivesse vivo, pudesse acrescentar “estúpido” na
minha lista de defeitos, porque corri até a porta de Isabela, pronto para ser
irônico, mas tudo o que saiu de minha boca foi uma promessa. Ela ficou tão
surpresa quanto eu, a diferença é que não dei tempo para ela responder,
praticamente saí correndo que nem um garoto amedrontado.
Quando entrei no meu carro, bati com força no volante. Estava
frustrado, pela culpa que carregava dentro de mim, mas sabia que era o
certo a ser feito, que era minha obrigação ajudar Isabela a se recuperar.
Fui para casa, tentando não pensar no que havia ocorrido, mas
quando vi Fernando, parado em frente ao meu apê, os braços cruzados e o
olhar questionador, desisti. Aquilo era um preço a se pagar por ter falado
para o porteiro que Fernando sempre podia ir me visitar.
— O que está fazendo aqui? — perguntei.
— Vim saber como está sua missão, mas pelo jeito não vai muito
bem, ou sua carranca ainda é por falta de sexo?
— E você, não tem trabalho para fazer? — retruquei, destrancando a
porta do apartamento e entrando na sala sem nem esperar uma resposta.
Fernando soltou uma gargalhada alta e veio me seguindo, como de
costume, e pela primeira vez quis barrar sua entrada lá na portaria.
— Estou na parte administrativa, enquanto não arranjam um novo
caso para mim — ele respondeu, fechando a porta atrás de si e praticamente
pulando no meu sofá.
— Tenha modos, por favor.
— Cara, não sei como você conseguiu ficar infiltrado no cartel
sendo tão ranzinza. — Fernando ligou a televisão e mudou os canais até
parar em um onde passava um jogo de futebol do campeonato inglês.
— Fernando, não tenho tempo para suas brincadeiras — afirmei,
sério, jogando as chaves do carro sobre a mesinha da sala.
— Você parece cansado. Aconteceu alguma coisa? — questionou,
arqueando uma de suas sobrancelhas escuras.
Cruzei os braços sobre o peito, incapaz de segurar a fúria que me
corroía.
— Sabe por que eu pareço cansado? Adivinha só, porque estou
cansado. Passei meses na porra de um cartel de drogas, e, sem nem ter uma
folga, sou enviado a outro trabalho. Para piorar ainda sou culpado por ter
deixado Isabela doente.
— Quem é Isabela? — ele questionou e só então percebi que ainda
não tinha falado o nome dela para meu amigo.
— A professora de Espanhol.
— A que você pegou nos peitos? — Travei meu maxilar com a
pergunta, mas assenti com a cabeça, confirmando. — Não acredito que você
transmitiu doença venérea para ela.
— Não tem graça, Fernando. Ela pegou catapora por minha culpa!
Você tem ideia de que essa doença pode ser séria na idade adulta?
O sorriso finalmente morreu nos lábios de Fernando. Eu estava irado
e ele sabia disso. Meu amigo, melhor que ninguém, me conhecia, sabia que
eu assumia a responsabilidade mesmo quando não era minha, quem dirá
sendo.
— Você sabe que, se precisar, pode contar comigo — disse,
desligando a televisão e se levantando. — Você quer sair hoje, tomar uma
gelada, conversar?
— Não vai dar, hoje tenho compromisso, finalmente vou ter a
oportunidade de conhecer o diretor Pascoal.
— Tenha cuidado. — Fernando deu dois tapinhas no meu ombro.
— Eu sempre tenho — respondi, abrindo um sorriso com a ideia que
se formou em minha mente. — Você lembra alguma coisa de poker?
Fernando me encarou no mesmo instante e puxou a carteira de
dentro do bolso.
— Apostando cinquentinha? — ele retirou uma nota de cinquenta
reais da carteira e a jogou em cima da mesinha da sala.
— Você sabe que não gosto de apostar dinheiro.
Ele ergueu uma sobrancelha e então levou os dedos até o botão de
sua calça.
— Strip poker? É disso que gosta? — perguntou em meio a um
sorriso.
— Idiota.
Deixei a sala para ir atrás de um baralho e passamos alguns minutos
relembrando um pouco sobre poker. Fazia algum tempo que não jogava,
mas era como aprender a andar de bicicleta, só precisava de um pouco de
prática. Conhecer as regras era crucial, mas não era tão importante quanto
blefar, e nisso eu era bom.
Fernando precisou ir embora e eu continuei com meu treinamento
no notebook, assistindo partidas de poker. Depois de vários vídeos, puxei a
ficha que a polícia tinha me fornecido de Pascoal e a analisei com cuidado.
Ele era um homem discreto, não tinha muitos patrimônios em seu nome e
não parecia ter algo sujando sua reputação. Eu, entretanto, sabia que às
vezes os piores criminosos poderiam ser lobos na pele de cordeiros.
Faltando pouco mais de meia hora para o jogo, tomei um banho
rápido e me vesti de forma simples, usando uma camisa polo clara e uma
calça jeans. Eu tinha que me manter no papel de Ezequiel, por isso, penteei
meus cabelos para o lado e fechei os dois botões da camisa próximo ao
pescoço. Segui para minha BMW preta e, após poucos minutos, parei na
calçada em frente a uma casa de padrão mediano. Toquei a campainha e
quem atendeu, foi um homem branco, barrigudo, com cabelos somente nas
laterais, deixando uma careca do topo da cabeça.
Reconheci Pascoal pela foto de sua ficha, mas fiz cara de surpresa,
afinal ainda não havíamos sidos apresentados.
— Você é...
— Ezequiel, o novo professor de inglês. — Estendi a mão na sua
direção e o homem apertou a minha com força, um sorriso macabro
aparecendo em seus lábios.
— Seja bem-vindo, rapaz, é sempre bom quando temos um
professor novo. — Ele apontou o interior da casa para eu entrar e caminhou
por entre o hall até uma sala no lado direito da casa. — Aquela escola tem
mulheres demais. Precisamos de mais testosterona.
Outro sorriso se fez presente e eu fechei os punhos, irritado, aquele
velho poderia não ser um criminoso, mas não deixava de ser um machista
filho de uma puta.
— Você tem razão. — comentei, tocando meu pescoço com o
indicador, tentando mostrar que eu concordava com ele.
— Claro que tenho. — Ele apontou para uma das cadeiras que
rodeavam a mesa e vi que alguns outros professores já estavam presentes,
incluindo Afonso, o vice-diretor.
A sala parecia um daqueles salões de jogo, era grande e espaçosa.
Percebi que nas paredes algumas telas famosas chamavam a atenção. Todas
eram réplicas, ainda assim deveriam valer uma pequena fortuna e eu tinha
certeza de que nada daquilo estava declarado em seu imposto.
Cumprimentei a todos com um aceno de cabeça e acabei sentando-
me em frente a Pascoal, o que era ótimo, já que poderia ver todas as suas
expressões. Na mesa tinham 6 pessoas: eu, Afonso, Pascoal e três outros
professores. Reconheci um de vista, mas não sabia o nome dos outros.
Até ali tudo parecia tranquilo. Jogar poker não era crime, e
conversar e beber falando idiotices também não. As cartas foram lançadas
na mesa, mas, antes de o jogo em si começar, uma movimentação na
entrada da sala chamou minha atenção. Mulheres. Quatro mulheres vieram
deslizando pelo salão como se fossem sereias, as roupas quase inexistentes
deixavam boa parte do corpo à mostra. Vi o exato momento em que um dos
professores tirou uma aliança do dedo e guardou no bolso.
Todas elas traziam copos cheios de bebida, que foram oferecidos a
nós de um jeito sensual. A que se aproximou de mim tinha o rosto pequeno,
formato oval e grandes olhos cor de amêndoas. Quando eles se fixaram nos
meus, pude ver medo e isso, junto com quase a certeza de que ela não
deveria ter mais que dezoito anos, fez meu estômago se remoer. A vontade
era de prender todo mundo, mas eu não tinha provas de nada, o que me
deixava de mãos atadas. Dei meu sorriso mais sincero para garota, tentando
transmitir minha solidariedade, ela, entretanto, não pareceu perceber e se
encolheu quando o professor que escondeu a aliança tocou seu braço.
— Acho que não nos apresentamos — cortei o que quer que ele
fosse falar com a garota e ela aproveitou a distração para se afastar. — Sou
Ezequiel, o novo professor de inglês.
— Sou Tibério, professor de Geografia. — O homem, um pouco
mais velho que eu, desfez a carranca e estendeu a mão na minha direção.
Ele tinha os cabelos claros, olhos marrons e uma serenidade que não
combinava com o lugar. Puxei um assunto sobre a escola, disposto a tirar a
concentração dele da menina, mas logo o diretor Pascoal chamou a atenção,
chamando uma das mulheres para dar as cartas. A mulher tinha experiência
com o baralho, o que mostrava que deveria estar ali em todas as reuniões.
Os sorrisos murcharam, os barulhos aquietaram e só permaneceu a
concentração. Não precisou de muito tempo para perceber as manias dos
presentes ao mentir. Eu mesmo tinha uma, costumava tocar o indicador no
pescoço quando faltava com a verdade, mas era uma mania espontânea,
involuntária, que tentava eliminar, principalmente quando estava sendo
observado. Pascoal, entretanto, parecia não ter uma singularidade, o que
despertou meu interesse.
Passei várias partidas perdendo, deixando-o assumir a liderança, e
mesmo com reais a menos na minha carteira não consegui perceber quando
ele mentia ou não. Comecei a me frustrar e, quando já estávamos na quinta
rodada, cometi o erro que tentei passar a noite toda longe. Peguei o copo de
whisky que estava intacto na minha frente e bebi o conteúdo em um só gole.
O álcool desceu rasgando minha garganta em uma sensação já
conhecida, e trouxe consigo lembranças dolorosas. Os abusos sofridos no
cartel vieram com força e as cartas tremeram nas minhas mãos. O gosto de
ferrugem tomou minha boca e meu estômago ameaçou regurgitar o que eu
tinha comido no almoço. Para piorar, a cicatriz em minha testa começou a
latejar, quase me deixando momentaneamente sem enxergar.
Segurei as cartas com as mãos trêmulas, tentando me concentrar no
jogo e não no inferno que passei no cartel. Meu peito subia e descia com
velocidade e sabia que a qualquer momento alguém poderia perceber.
— Você está bem? — Foi Afonso quem perguntou depois de uma
rodada do jogo e aproveitei sua deixa para inventar uma história.
— Eu esqueci que tenho um compromisso. — Me apressei em dizer,
antes que percebessem o que estava acontecendo. Me levantei e pedi
desculpas pelo inconveniente.
Com passos apressados segui até o carro, onde desmoronei assim
que me sentei no banco de couro. Puxei o celular pronto para ligar para
Fernando, mas algo me deteve. Uma mensagem.
Número desconhecido: Já que você disse que ia cuidar de mim, bem que poderia trazer um
sorvete.

A mensagem era de meia hora atrás. Eu não tinha o contato salvo,


mas sabia que era de Isabela e isso pareceu um sinal para minha mente
confusa. Não pensei duas vezes. Na verdade, não sei nem se cheguei a
pensar, só dei partida no carro com a certeza de que, naquele momento, sua
companhia seria bem-vinda.
♪ Eu não procurei por você, não
Nos esbarramos pelo caminho ♪
:::Ojitos Lindos – Bad Bunny:::

ISABELA MARTINS
Bastou um dia completo sem dar aula que lembrei que não gostava
tanto assim de férias. Como uma pessoa agitada, odiava o tédio e nem todos
os filmes de Natal foram capazes de me tirar do torpor que senti quando o
sol se pôs.
A febre havia cessado, em compensação a coceira pelo corpo estava
insuportável e nada no mundo parecia capaz de amenizar. Nem mesmo
pensar em Ezequiel e sua promessa inusitada fazia meu corpo sair do estado
de comichão, na verdade só me deixava pior, como se meu cérebro também
estivesse cheio de bolhas.
Ele era o culpado? Sim, mas não precisava cuidar de mim, eu podia
me cuidar muito bem sozinha. Bastou sentir vontade de comer um sorvete,
entretanto, que toda a minha lógica caiu por terra. O pote que eu comprei já
tinha acabado e eu realmente queria mais um pouco da minha sobremesa
favorita. Eu não podia sair de casa e arriscar contaminar outras pessoas e os
aplicativos de comida demoravam tanto para entregar que provavelmente
chegaria um caldo e não um sorvete. Pensei em cobrar esse favor à
Margareth, afinal, ela era tão culpada quanto Ezequiel, mas algo dentro de
mim disse que eu deveria aproveitar a oportunidade. Já que ele prometeu
que iria cuidar de mim, eu iria usufruir dos benefícios e fazê-lo de gato e
sapato, para que aprendesse a não me deixar doente de novo.
Eu não tinha o contato dele, mas bastou uma ligação para a escola.
A técnica de assuntos educacionais, que àquela altura já estava quase no fim
do período de trabalho, me passou o telefone que Ezequiel tinha fornecido à
instituição. Peguei o celular em cima da mesinha da sala e sem pensar
demais mandei a mensagem.
Passei alguns minutos ansiosa, esperando uma resposta, mas nada
veio. Eu sabia que sua promessa havia sido coisa do momento e que ele não
ia perder o tempo dele fazendo minhas vontades. Bufei, sentindo uma
pontada de decepção, e aproveitei que estava com o celular em mãos para
navegar um pouco nas redes sociais.
Minutos depois, uma batida soou na porta, me despertando. Ao abri-
la, tomei um susto ao notar que Ezequiel estava ali.
— Eu não acredito que você veio! — exclamei, cobrindo a boca
com a mão, tentando esconder o riso idiota que insistiu em aparecer em
meus lábios.
— Promessa é dívida. — Ezequiel falou, mas algo em sua voz
chamou minha atenção. Ela não parecia tão confiante como sempre. — Será
que posso entrar?
Pensei por um segundo. Mal conhecia Ezequiel e realmente não
imaginei que viria, por isso fiquei sem reação com seu aparecimento. Na
minha cabeça, seria fácil recusar sua visita e me afastar desse homem, como
eu havia premeditado. No entanto, a realidade era que, por mais que
Ezequiel fosse um rabugento que sempre retrucava, eu estava começando a
gostar de sua companhia, nem que fosse para entrar em atrito.
— Claro. — Abri mais um pouco a porta e deixei o caminho livre
para ele, que se sentou no sofá, afundando sobre o tecido escuro.
Curiosa, olhei para suas mãos, esperando encontrar meu sorvete
nelas, mas elas estavam vazias.
— Não acredito que você esqueceu meu sorvete. — Acusei-o, ainda
próxima à porta de entrada.
— Eu... me desculpe. — Ezequiel passou a mão pelos cabelos.
— Você não se cansa de pedir desculpas? — perguntei, fitando-o, e
só então percebi que sua mão, que ainda estava tocando seus fios escuros,
tremia. — Aconteceu alguma coisa?
— Nada demais. — Ezequiel desconversou, mas ali percebi que
algo não estava certo.
Dei três passos em sua direção, chegando tão próximo que pude ver
cada detalhe de sua pequena cicatriz que cruzava o lado esquerdo da testa.
E então o cheiro me invadiu, suave, mas ao mesmo tempo marcante.
— Você está bêbado? — perguntei quando identifiquei o odor de
whisky.
— Não. — Ezequiel se mexeu, desconfortável, o que só me deu a
impressão de que havia pego-o no flagra. — Claro que não.
Sua afirmação não me convenceu e ele percebeu, porque se levantou
na mesma hora e pigarreou.
— Eu mal bebi um copo durante o jogo de poker — disse, os olhos
desviando dos meus e a bochecha adquirindo um leve tom rubro. — Acho
que é melhor eu ir embora.
E então minha mente clareou. Poker!
— Não acredito que você já foi convidado para jogar com o diretor,
enquanto eu estou na instituição há anos e nunca fui. — Cruzei os braços,
na defensiva, indignada de que apenas os homens eram chamados para
aquela confraternização que mais parecia uma seita.
— Você tinha que agradecer por nunca ter sido convidada. —
Ezequiel enfiou as mãos no bolso.
— Como é lá? — perguntei, curiosa.
Várias histórias circulavam na sala dos professores sobre o famoso
jogo de poker. Por um momento cheguei a pensar que era apenas uma
mentira que contavam para deixar quem não era convidado com inveja, mas
eu soube que era real quando Martin foi convidado. Ele, entretanto, não
quis me falar nada sobre o que aconteceu lá e, quando insisti, gritou
comigo. Foi a primeira vez. A primeira vez de muitas.
Olhei ansiosa para Ezequiel, o homem que ocupava o mesmo cargo
que meu ex-namorado, e esperei uma resposta tão ruim, se não pior, do que
Martin havia me dado. O que ele fez, entretanto, foi sorrir. A sombra que
pairava em seu semblante finalmente sumindo.
— Um antro que jamais mereceria uma visita sua.
— Qual é, quero detalhes. — Apontei para o sofá onde antes
Ezequiel estava sentado.
Ele observou a porta de entrada, como se ponderasse se era melhor
ir embora ou ficar, e então voltou ao sofá, suspirando logo após se sentar.
— O que você quer saber? — perguntou depois de cruzar os braços
sobre o peito.
— O que acontece lá? Nenhum professor comenta sobre as
atividades realizadas na “Noite do Poker”. — Fiz aspas com os dedos,
porque na minha cabeça, poker deveria ser tipo um codinome para uma
caça a animais silvestres, ou o que quer que acontecesse.
— Jogamos poker — Ezequiel respondeu e eu bufei, não acreditava
que ele tinha ficado para me contar algo tão patético, então, para minha
surpresa ele continuou. — Mulheres seminuas passeiam oferecendo
bebidas, enquanto homens casados fingem não ter uma esposa esperando
em casa.
Embora surpresa, parecia bem o tipo de coisa que aconteceria em
uma reunião em que somente homens eram convidados. Aquilo parecia a
perfeição para qualquer mente masculina, então por que Ezequiel parecia
irritado?
Em um gesto rápido olhei suas mãos. Nenhum sinal de aliança.
— Você tem namorada, é esse o problema? — perguntei, pensando
se realmente ele era o último dos românticos.
— Não, quem dera esse fosse meu problema. — Arqueei uma
sobrancelha com sua escolha de palavras. — A questão é que aquelas
garotas pareciam... assustadas.
— Você quer dizer que estavam sendo obrigadas a estar ali? —
questionei, indignada, sentindo as pernas falharem e me sentando ao seu
lado. — Porque se for eu vou já chamar a polícia.
— NÃO. — Ezequiel rebateu no mesmo instante. — Não é uma boa
ideia, quer dizer, podemos estar nos precipitando e fazer a polícia perder
tempo, quando poderia estar atuando em um caso de verdade, é pior. E não
acho que elas estavam lá obrigadas, só acho que se pudessem ter dinheiro
de outra forma, não estariam fazendo aquilo.
— Mas e se rolar uma suruba ilegal lá?
— Não acredito que role sexo, ao menos não pareceu ser esse o
caso.
Toquei meu queixo com o indicador, pensativa. Por mais que em
minha mente passassem cenários obscuros sobre o que acontecia na noite
do poker, jamais pensei que usassem mulheres daquela forma. Ezequiel se
mostrou tremendamente enojado, o que só fez com que eu percebesse que
os demais professores que participavam daquele evento eram verdadeiros
cretinos.
— A Noite do Poker ocorre há anos e ninguém nunca comentou
sobre o que acontecia lá.
— Difícil comentar quando é o diretor que promove. Ele pode
inventar uma desculpa qualquer para demitir. — Ezequiel suspirou.
— O diretor Pascoal pode até promover, mas quem teve a ideia do
poker não foi ele, foi o Afonso — comentei.
— Como assim? — Ezequiel estreitou os olhos, se aproximando
mais de mim. Seu tronco se inclinou na minha direção e mais uma vez pude
sentir o cheiro de seu perfume amadeirado ameaçando inundar minhas
narinas. Podia notar meu nariz querendo coçar, como uma resposta da
minha rinite, mas felizmente nenhum espirro veio.
Travei minha respiração, me sentindo perto demais daquele homem
que mexia com meus sentidos.
— Antes de Pascoal assumir a direção, Afonso era o diretor e o jogo
do poker começou durante a gestão dele. Quando Pascoal foi eleito para o
cargo, ele continuou com a tradição. Claro que nunca convidou nenhuma
das mulheres.
Ezequiel ficou calado por um tempo, digerindo o que eu tinha
falado, e então colou a boca na minha bochecha em um beijo. A barba rala
pinicou meu rosto, mas, ao invés de fazer cosquinhas, deixou meus pelos da
nuca arrepiados. Nossas respirações se cruzaram e, antes que eu
conseguisse sequer esboçar alguma reação, ele se afastou, se levantando e
indo em direção à porta.
— Obrigada, Isabela — disse, já colocando um pé para fora do apê.
— Espera...
Tarde demais. Ezequiel tinha ido embora e, como havia prometido
que cuidaria de mim, sabia que amanhã teria muito mais.
♪ Todas estas palavras não são da boca para fora
E nada mais importa ♪
::: Nothing Else Matters – Metallica:::

ISAAC ALMEIDA

Eu tinha conseguido uma informação! Não era a mais valiosa do


mundo, mesmo assim, no momento que eu estava vivendo, ela parecia
perfeita.
Depois de dias sofrendo com alunos catarrentos, um quase surto de
catapora e uma noite de poker péssima, Isabela tinha me dado o que poderia
ser um norte para minha investigação.
Talvez o diretor não fosse o cabeça dos crimes e sim Afonso. Por
isso, quando cheguei em casa após sair da casa de Isabela, solicitei à
inteligência da polícia um arquivo do vice-diretor.
Minha mente estava a mil e eu não sabia se era pelo álcool que
havia ingerido ou pela adrenalina de finalmente ter um caminho a seguir.
Então ao invés de dormir ou ainda esperar pelo relatório da polícia, eu
busquei por Afonso nas redes sociais.
Gente velha ou era oito ou oitenta: ou tinham todas as redes sociais
do universo, ou nenhuma e, para meu desgosto, Afonso se encaixava na
última opção. Pensei em como poderia me aproximar dele e me lembrei que
só haveria outro jogo de poker em duas semanas. Não podia esperar esse
tempo todo.
Em algum momento apaguei e só acordei porque o despertador era
realmente irritante. Esfreguei meus olhos, sentindo o cansaço invadindo
meu corpo, e fui para a escola praticamente arrastado, mas com um sorriso
no rosto, o sorriso que Ezequiel sempre levava consigo.
As aulas foram normais, sem sinal do aluno com catapora, os
demais alunos permaneceram na mesma algazarra que eu começava a me
acostumar. Eu não ficaria ali por muito tempo, então trataria de ser mais
paciente e ao menos tentar ensinar alguma coisa para eles.
Durante o intervalo fui à sala do diretor, com a desculpa de que
queria saber como estava o aluno doente, ninguém, entretanto, atendeu a
porta quando bati. As pessoas daquela escola realmente precisavam
começar a trabalhar. Por isso que o serviço público era desprezado.
Acabei indo embora da escola com um gosto amargo na boca, um
gosto que perdurou até depois do almoço e que só foi embora quando decidi
ir para casa de Isabela, ver como ela estava, pronto para cumprir a promessa
que havia feito.
A noite anterior havia sido inusitada. Eu fui em busca de companhia
e recebi uma pista. Fiquei tão eufórico que, pela primeira vez e muito
tempo, não tinha tido Cabrón em meus sonhos. Isso foi sinal suficiente para
abrir um sorriso quando entrei no carro em direção a seu apartamento.
Subir os três lances de escada estava quase virando uma rotina.
Meus pés escalaram de dois em dois degraus e, quando parei em frente à
porta, respirei fundo, contendo a respiração acelerada. Talvez eu devesse
voltar à acadêmica.
Isabela abriu a porta depois de alguns segundos, trajando, dessa vez,
um short jeans e blusa de alcinha. Nada de seus pijamas coloridos. Um leve
tom de decepção ameaçou invadir meu peito, como se eu desejasse vê-la
mais uma vez usando roupas pequenas, semitransparentes e com estampas
engraçadas. Arranhei a garganta, afastando o pensamento que poderia se
tornar perigoso, e abri meu melhor sorriso.
— Oi.
— Hola! — Ela replicou em espanhol, e eu contive um sorriso, o
sotaque parecia deixá-la com a voz um pouco anasalada.
Isabela afastou o corpo, abrindo caminho para que eu entrasse, e
notei que, dessa vez, ao invés de filmes natalinos, ela estava assistindo La
Casa de Papel. Ela não havia pausado a série, então a voz de Nairóbi
tagarelava em um espanhol rápido demais para eu entender sequer uma
palavra.
— Você gosta mesmo de espanhol, hein! — falei, parando em frente
à televisão da sala, notando que ela nem chegava a usar legenda em
português.
— Meu abuelito nasceu na Espanha e veio para cá trabalhar, então
me ensinou muita coisa sobre a língua dele.
Isabela deu de ombros e fechou a porta da entrada. Ela girou os
calcanhares e foi até a geladeira, pegando um iogurte de morango e
bebendo-o diretamente da embalagem, sem usar uma colher.
Observei seu pescoço inclinado para cima, os cabelos escorrendo
pelas costas, e o som quase imperceptível que ela fazia ao engolir. O
conjunto fez eu prender a respiração e eu percebi que Fernando estava
certo. Eu realmente precisava transar.
O tempo que eu passava sozinho com Isabela sempre parecia me
levar a pensar nela de maneira que eu não podia e eu me repreendi
mentalmente por estar pensando em sexo quando estava em uma missão.
Odiava misturar as coisas, eu estava trabalhando e só podia pensar na minha
vida pessoal quando finalmente tivesse resolvido o caso.
Seus dedos soltaram a garrafinha de plástico dentro da pia da
cozinha, e então ela reparou que eu estava observando-a.
— Você quer um? — indagou, uma sobrancelha arqueada e eu
neguei com a cabeça, incapaz de emitir voz ao notar seus lábios melados
com o líquido espesso rosa.
Voltei meu rosto para a televisão, mas nem mesmo O Professor
falando sobre o plano de assalto ao banco foi capaz de tirar da minha mente
a visão de como seria ver Isabela lambuzando certas partes do meu corpo.
Arranhei a garganta, cobrindo a boca com minha mão, e me
perguntei se o álcool de ontem à noite ainda estava fazendo efeito na porra
do meu cérebro. A resposta que obtive foi que provavelmente sim.
— Sabe, eu não preciso de sua ajuda. Pode ir embora se quiser. —
Ela comentou, caminhando na minha direção, finalmente limpando a boca
com a palma da mão, mas parou perto do balcão que separava a sala da
cozinha, e eu aproveitei sua mudança de assunto para finalmente abrir a
boca.
— Você está melhor? — indaguei, ansioso para que sua resposta
fosse SIM, para que eu realmente pudesse ir embora.
— Nem um pouco. A febre vai e volta, mas o pior mesmo é a
coceira. — Como que para confirmar suas palavras, ela passou as unhas
pelo braço. — Dios mio! Essas porcarias não param de coçar.
— Ei! — Avancei em sua direção e segurei seus braços, impedindo
seu movimento. — Você não pode fazer isso.
Isabela puxou os braços, mas eu não os soltei, e quando ela fez
menção de repetir a ação, eu a puxei para perto de mim, colando seu peito
contra o meu, sem deixar nenhum espaço entre nós.
— O que você pensa que está fazendo? — questionou, uma veia se
saltando sobre a testa.
— Impedindo você de cometer uma besteira. Sua mãe nunca te
ensinou que não se deve coçar?
— Não está vendo que não peguei catapora quando era criança?
Óbvio que ela não ensinou nada sobre isso — Ela rebateu, tentando se
desvencilhar de mim, mas eu era policial, sabia muito bem segurar alguém
com firmeza.
— Tem razão, sendo assim farei o papel de sua mãe e lhe ensinarei o
que não fazer. Você é bonita demais para ficar com manchas pelo corpo.
Isabela se aquietou no mesmo instante, ficando estática em meus
braços. Os olhos castanhos se demoraram nos meus e só então, quando ela
os desviou, eu a liberei.
— O que você disse? — perguntou.
— Que você não deve se coçar. — Cruzei os braços, cansando de ter
que repetir a mesma coisa mil vezes.
— Não essa parte. — Ela revirou os olhos. — A parte que você
disse que eu era bonita.
— Eu não disse... — calei minha boca, perplexo. Eu tinha dito isso
de forma tão natural que nem percebi quando as palavras saíram da minha
boca. Estava desatento, falando coisas sem pensar e isso era perigoso para a
missão, não podia deixar a emoção sobrepassar a razão. Remexi uma das
pernas, desconfortável por ter sido descuidado, e suspirei. — Você é bonita,
não vai querer ficar com marcas pelo corpo.
Tentei manter minha voz controlada, mas ela soou falha em meus
ouvidos e eu rezei para que Isabela não tivesse percebido. Ela então se
mexeu, dando um passo para trás, e tocou o próprio pulso. Seu movimento
chamou minha atenção, eu não tinha apertado com força, ainda assim me
preocupei.
— Te machuquei?
— Não sou frágil como você pensa. — Ela bufou, um riso de
escárnio nos lábios bem desenhados, e eu finalmente me deixei relaxar e
sorri. Ela era mesmo osso duro de roer, sempre contestando. — Não preciso
de você aqui, sei me cuidar só.
— Eu sei disso, sei que você é forte. — Apontei para minha
bochecha onde um pequeno roxo ainda permanecia ali. — Não precisa me
confrontar. Por que você é sempre tão na defensiva?
Queria entender de onde vinha tanto atrevimento. Nunca tinha
conhecido ninguém igual a ela.
— As pessoas que conheço nunca fazem algo sem segundas
intenções. — Isabela estreitou os olhos, querendo ler quais seriam as
minhas. — Sempre esperam uma fraqueza para atacar.
Cerrei minha mandíbula com força. Se ela pensava que eu era do
tipo filho da puta ou qualquer coisa meramente semelhante, ela estava
muito enganada. Eu estava preocupado com seu bem-estar e era somente
esse meu interesse.
— Bom, pois acho que você está precisando conhecer pessoas
novas. — Dei de ombros, frustrado.
Quando entrei pela porta, meu interesse era ajudar Isabela. Eu havia
sido o responsável por passar catapora para ela e queria consertar as coisas,
mas era impossível quando a mulher sempre parecia querer brigar.
— O que você fazia quando coçava demais? — questionou, a voz
fraca, e então percebi o que ela estava fazendo.
Era um pedido de desculpas disfarçado de pergunta. Um pedido que
resolvi aceitar, mesmo sabendo que não devia.
— Além do antialérgico, eu passava pomada. — Olhei seus braços,
que começavam a criar feridas, e suspirei. — Você ao menos foi ao médico,
ou está se medicando sozinha?
— Só consegui vaga para o mês que vem. Mas Margareth me disse
os medicamentos que o pediatra passou para Otávio e estou usando o
mesmo.
— Você sabe que não é criança, né?
— Por que você supõe que eu não sei das coisas?
— Porque parece que você não sabe — respondi.
Ela soltou um muxoxo e respondeu.
— Olha, se você veio aqui só para reclamar, é melhor ir embora.
Nem meu sorvete você teve coragem de trazer. — Isabela cruzou os braços
sobre os seios deixando-os levemente empinados e eu me xinguei
mentalmente por, por um segundo, notar como eles pareciam deliciosos,
saltando daquele jeito.
Recuei, automaticamente, tentando me afastar da minha linha de
pensamentos. Por que esse caso tinha que ter obstáculos como crianças
doentes e uma professora sexy que adorava tirar minha paciência?
— Você realmente ama sorvete, né? Prometo que assim que você
melhorar, eu a levo em uma sorveteria.
— Você está fazendo muitos juramentos. — Isabela veio pé ante pé
até mim, a ponto de ficar a centímetros de distância, e apontou o indicador
em meu peito. — Espero que você trate de cumpri-los.
Engoli o nó que se formou em minha garganta, um arrepio cruzando
meu corpo. Não por Isabela estar me cobrando, mas por saber que eu faria o
possível e o impossível para realizar cada uma das promessas. E a certeza
disso me assustou pra caralho!
♪ Se você me abraçar sem me machucar
Você será o primeiro a fazer isso ♪
:::Cinnamon Girl – Lana Del Rey:::

ISABELA MARTINS

Ezequiel estava nervoso. Uma gota de suor cruzou sua testa, sobre a
cicatriz, e seu pomo de adão subiu e desceu com rapidez, mostrando que ele
havia engolido em seco. Ele estava com medo, mas tudo o que eu queria era
sorrir.
Sim, eu era má, mas algo em seu desespero me confortou. Eu
conhecia pessoas, afinal, ensinava um bando delas todos os dias e se
Ezequiel estava desse jeito era porque ele se importava com o que tinha
dito. Não eram palavras ditas da boca para fora e eu não precisava ser
nenhuma Sherlock Holmes para saber que isso me levava a duas
conclusões.
Primeiro: ele me achava bonita, já que ele mesmo havia dito isso,
não só uma vez, mas duas vezes.
Segundo: ele se preocupava comigo, uma vez que prometeu cuidar
de mim e até mesmo de me levar em uma sorveteria.
A recém-descoberta fez eu levantar meu rosto e encarar o homem na
minha frente. Poucos dias haviam se passado desde que havia o conhecido,
ainda assim, ele aparentava ser uma pessoa diferente, com uma energia que
não tinha quando esbarrei com ele pelo corredor da escola.
Ezequiel possuía um maxilar levemente anguloso, o nariz tinha uma
leve saliência para um dos lados, quase como se tivesse sido quebrado em
algum momento na vida. As sobrancelhas bem marcadas chamavam a
atenção para os olhos e estes, mesmo cercados por olheiras que
demonstravam cansaço, tinham um brilho único. O castanho das íris ora era
como uma terra batida em um dia de verão, quente e reconfortante, ora era
como uma caverna escura, misteriosa e cheia de segredos. E então havia a
marca em sua testa, pequena, porém em destaque contra sua pele.
— O que aconteceu aqui? — tirei meu indicador de seu peito e
apontei-o para sua testa, sentindo a curiosidade invadir meu coração.
Talvez eu estivesse confusa, provavelmente pelo calor que Teresina
sempre exalava, ou até mesmo pela febre que ia e voltava com frequência,
mas, vendo o conjunto que cada detalhe do rosto de Ezequiel formava, eu
pude entender o que Margareth quis dizer. Ele realmente era bonito.
Ezequiel arqueou uma sobrancelha, surpreso por minha pergunta
repentina, e então arranhou a garganta.
— Alguém me bateu com um soco inglês — falou como se não
fosse nada demais e eu abri a boca em choque.
— Você não mentiu quando disse que já tinha apanhado muito —
argumentei. — O que leva um professor de inglês a sofrer tantas agressões?
— Você sabe como eu sou. — Ezequiel sorriu e então tocou o
pescoço com o indicador. — Não levo desaforo para casa.
Sorri com sua resposta, ele realmente tinha razão. Eu mesma já tinha
tido vontade de socá-lo, mas usar um soco inglês já era demais.
— Você deveria ter cuidado. Às vezes as pessoas não são tão
pacientes quanto eu — comentei, girando meus calcanhares e indo até o
sofá. — Mas falando sério agora, não precisa ficar me vigiando, eu estou
bem.
Ezequiel me olhou dos pés à cabeça, se demorando uma fração de
segundos a mais quando seu olhar cruzou o meu e então ele desviou a
atenção para a televisão.
— Eu sei que você está bem, afinal passa o dia inteiro assistindo
Netflix, como se estivesse de férias. — Ele apoiou o cotovelo sobre a
bancada, tocando o queixo com o polegar. — E, antes que você rebata, não
estou dizendo que você está errada, se fosse eu também estaria fazendo a
mesma coisa.
— Quer dizer que o senhor rabugento gosta de séries? — questionei,
pegando o controle de cima do sofá e aumentando volume mesmo que não
estivesse prestando atenção no que passava na tela. — Pensei que no seu
tempo livre você seria do tipo que cozinharia crianças dentro de um
caldeirão.
— Qual é, isso é fora da lei, jamais faria isso. — Ele gargalhou,
puxando uma das banquetas, que ficavam dispostas ao lado da bancada, e se
sentando sobre ela de um jeito despojado, quase como se estivesse se
sentindo confortável na minha casa.
— Então, além de rabugento, você é careta? — me remexi no sofá,
me virando para sua direção e me esquecendo totalmente que na televisão
passava O Professor elaborando o plano de assaltar um banco. Eu poderia
assistir a série depois.
— As regras existem para serem cumpridas. — O riso ainda estava
ali, mas algo a mais também. Seria seriedade?
— As regras existem para serem quebradas.
— É por isso que você está fazendo tudo errado quando o assunto é
cuidar de si mesma? — Ezequiel questionou, se levantando e encurtando a
distância que nos separava. — Por que você gosta de quebrar regras?
Mesmo sem ser convidado, Ezequiel se sentou ao meu lado e então,
sem o menor pudor, varreu meu corpo com os olhos. Primeiro suas íris
passearam pelas pernas, subindo até minhas coxas, depois elas pararam em
meus braços, onde uma vermelhidão na pele mostrava o ato que gerara todo
o conflito de minutos atrás.
— Para sua informação eu não gosto de quebrar regras, só quando é
necessário. E acredite, quando sua alma parece que vai sair do corpo de
tanta comichão, um ou outro delito podem ser cometidos.
— Se você usasse a pomada direito não sentiria tanto — reclamou,
parecendo meu pai dando um sermão, a diferença é que ele não tinha trinta
anos a mais do que eu.
— Eu não alcanço todos os lugares, por isso achei que passar só em
uma parte do corpo não adiantaria. — Dei de ombros, cansada daquele
assunto. Eu queria que ele me trouxesse sorvetes ou me paparicasse, não
que fosse um chato de galochas.
— Posso passar para você. — Ezequiel estendeu a mão, esperando,
e eu me perguntei se ele realmente estava falando sério. Quando vi que sua
mão continuava ali, estirada diante de mim, me dei por vencida e me
levantei.
Fui até meu quarto e abri a primeira gaveta da mesinha de cabeceira,
retirando dali um tubo trazido por Margareth em meio a sua crise de culpa.
Era fato que a pomada aliviava, mas eu não tinha paciência e nem espelho
de corpo todo para conseguir localizar cada pequena elevação na pele para
usar o produto.
Voltei para a sala e vi Ezequiel um tanto eufórico. Entreguei o tubo
em suas mãos, revirando os olhos logo em seguida, incapaz de conter uma
leve faísca que atingiu meu peito.
— Por aqui não vamos mais quebrar regras, ok? — ele perguntou,
ficando de pé, mas eu não estava pronta para dar o braço a torcer, não
quando se tratava de Ezequiel.
— Calma lá garotão, você está pedindo demais.
Ezequiel soltou um muxoxo alto, segurou meus ombros e me girou
com delicadeza, me deixando de costas para ele. Primeiro senti a frieza do
produto pastoso sobre minha perna direita, ainda nem havia me acostumado
com a sensação quando o toque de Ezequiel se fez presente em minha pele.
A superfície de seus dedos era calejada, ainda assim, a delicadeza no
qual me tocava, passando o creme de um lado para o outro, fez meu coração
errar uma batida. Ezequiel demorou um tempo considerável em minhas
pernas o que me levou a pensar que ele estava certo e eu realmente estava
me negligenciando.
— Você está parecendo um céu estrelado — disse, após esfregar o
produto por um de meus cotovelos.
— Uau, essa comparação foi quase poética — debochei, sentindo
um nó se formando em minha garganta.
— Bom, de médico, poeta e louco, todos nós temos um pouco —
respondeu e eu não pude evitar de sorrir.
— Quantos anos você tem? — perguntei genuinamente interessada
em saber se ele era um velho em corpo de jovem ou apenas um jovem com
uma alma velha.
— Trinta e três.
— Poxa! — me virei para ele, quase colando o indicador em seu
rosto — Você é só quatro anos mais velho e fica querendo me dar lições de
vida!
— Ei, não tente fugir, vire de costas que eu ainda não terminei.
Cruzei os braços girando para ficar mais uma vez de costas para ele,
contando os segundos para que acabasse logo, mas quando suas mãos
passaram por meus cabelos, afastando-os das costas, minha respiração
acelerou.
Esperei uma reação vinda de Ezequiel, mas no primeiro momento
ele ficou imóvel, a única coisa que eu conseguia sentir era sua respiração
que, assim como a minha, parecia rápida. Fechei os olhos, pensando em
uma desculpa para me afastar, meus pés, entretanto, não se moveram. E
então o inevitável aconteceu. Ezequiel passou a ponta do polegar em uma
das marcas, seu toque em minhas cicatrizes ameaçando me deixar em
pânico.
Minhas pernas então voltaram à vida, porém sem a força necessária.
Meu joelho vacilou e, apesar de uma de suas mãos ainda estar em meu
pescoço, Ezequiel me segurou com a outra. Seu aperto forte em minha
cintura foi o suficiente para eu me manter de pé, e o principal, com a cabeça
erguida.
Tentei controlar minha respiração, mas foi a de Ezequiel, acelerada,
sobre a pele da minha nuca, que fez eu perceber que ele estava furioso.
— Quem foi que fez isso? — Curiosamente sua voz saiu em um
sussurro, como se ela pudesse me machucar tanto quanto quem havia feito
as cicatrizes em mim.
Pensei em Martin, em como seus dedos longos e frios eram
diferentes dos de Ezequiel, em como sua voz imperiosa e nociva não tinha
nada a ver com o tom carinhoso e reconfortante do atual professor de
inglês.
Por um segundo quis mentir, dizer que não sabia do que ele estava
falando. Tendo, entretanto, seus dedos tocando um a um os oito vestígios
em meu pescoço, sentindo a maciez e suavidade que eles tratavam meu
corpo, não pude evitar de contar a verdade.
— Foi meu ex-namorado.
O braço de Ezequiel, que ainda estava sobre minha cintura, se
apertou contra mim e ouvi um leve suspiro saindo de sua boca. Ele então
envolveu o outro braço ao redor da minha cintura, pressionando seu peito
contra minhas costas e aproximando sua boca do meu ouvido.
— Isabela, eu sei que você é forte. Mesmo assim, estarei aqui para
protegê-la.
Não precisei olhar para Ezequiel. Ele nem mesmo havia feito um
juramento. Mas ali, sentindo seu corpo junto do meu e a seriedade presente
em sua voz, eu soube que sua fala era uma promessa e, mesmo sendo uma
pessoa cética, que havia perdido a fé em homens, eu acreditei nas suas
palavras.
♪ Eu sinto algo tão certo
Fazendo a coisa errada ♪
::: Counting Stars – One Republic:::

ISAAC ALMEIDA
— Ei, ei, ei! Você precisa é afogar o ganso, não a mão na minha
cara. — Fernando retrucou quando um jab de direita acertou seu queixo.
O suor escorria pelo seu peito despido, deixando a pele escura
reluzente. A respiração ofegante se misturava ao barulho da televisão, que
transmitia um jogo qualquer de basquete, e a mão enfaixada segurava uma
das cordas que delimitavam o ringue.
— O filho da puta abusou fisicamente dela. Você tem noção disso?
— questionei, irritado, ainda chocado pelo que tinha descoberto. — As
marcas produzidas pelas unhas dele estavam ao redor do seu pescoço.
Fechei os olhos sentindo a ira percorrer cada pedaço do meu corpo.
Ele havia enforcado ela e o mero pensamento foi o suficiente para eu querer
vomitar. Eu, o homem que trabalhou infiltrado em um cartel durante meses,
que presenciou crimes dos mais diversos tipos, não podia sequer imaginar
um desgraçado machucando Isabela.
— Embora eu não concorde, você sabe como é: briga de marido e
mulher ninguém mete a colher. É o senso comum. — Fernando mexeu na
própria mandíbula, no local que eu desferi o soco, e eu tive vontade de
repetir o ato. — Infelizmente as pessoas pensam dessa forma.
— Isso é o que me irrita, Fernando. Todo dia mulheres são
assassinadas pelos ex-parceiros. Eu não me importo com o senso comum.
Meu amigo veio na minha direção, o short azul de academia era
curto demais para suas pernas longas, quase deixando-o parecido com um
cosplay do Sagat de Street Fighter.
— Isa, não se meta. — Fernando tocou meu peito nu, bem no ponto
onde as finas cicatrizes se acumulavam, tão diferentes das outras que
estampavam meu tronco. — Você não deve se envolver, esqueceu que está
infiltrado? Faça seu trabalho e caia fora.
Eu sabia que ele estava certo, mas algo dentro de mim fazia com
que eu me importasse. Fazia com que eu não pudesse deixar para lá.
— Eu não posso. — Minha voz saiu em um sussurro e eu desabei
sobre o chão, me sentando sobre a superfície fria e cinzenta do octógono.
Estalei meus dedos, sentindo o ardor sobre minha pele. Socar
Fernando pareceu uma boa ideia quando ele me telefonou me convidando
para ir à academia, só não imaginava que fosse me sentir perdido.
Fernando se sentou ao meu lado, cruzando uma perna sobre a outra,
e seus olhos percorreram dos meus pés descalços até meu peito.
— Você pode e você vai. Há anos você é o cara que vive em função
do trabalho, que leva, literalmente, no peito as marcas nocivas pelas quais
passou durante as missões. Isaac, você sempre foi um cara apaixonado pelo
que faz, então por que agora seria diferente?
Inevitavelmente, a imagem de meu pai veio à minha mente. Ele
pertenceu ao batalhão de operações especiais e, embora eu tivesse seguido
um caminho diferente, indo para a polícia federal, ele ainda era meu herói e
o modelo que eu queria seguir. Um homem justo, leal, que colocava a
segurança dos outros acima da sua e era isso que eu estava fazendo sendo
infiltrado, não era? Então por que de repente eu não me sentia satisfeito?
Quando meus olhos bateram no pescoço de Isabela, eu soube o que
tinha ocorrido. Eu não era idiota e as marcas formavam um padrão de
machucados causados por unhas, um padrão que eu conhecia muito bem.
Olhei para meu próprio peito, para o local onde minhas próprias unhas
mutilavam a carne quando eu cometia alguma barbárie.
Balancei a cabeça, tentando afastar as lembranças dolorosas, e
percebi que tinha feito o certo em ter ido embora da casa de Isabela depois
da descoberta. Ela estava envergonhada, pude notar por seu silêncio
contínuo, embora não houvesse motivos para isso. No entanto, eu
compreendia seus sentimentos e preferi não tocar mais no assunto,
preferindo ir embora.
Já eu precisava colocar a cabeça no lugar para não ir atras do
maldito filho da puta que fez isso com ela e socá-lo até eu não ter mais
forças.
— Por favor, diga que não está apaixonado. — Fernando tocou meu
ombro e eu bati em sua mão com rispidez.
— Claro que não, você tá maluco? — bufei a contragosto. — Estou
em uma missão, você sabe que não posso me envolver com ninguém.
A questão era que Isabela havia sofrido violência e eu era a porra de
um policial. Era meu dever como profissional, e também como cidadão, me
preocupar com sua integridade física.
Fernando se levantou e esticou a mão na minha direção. Segurei-a e
em um puxão ele me colocou de pé.
— Me poupe. Mesmo quando não está em uma missão você não se
envolve com ninguém.
— É complicado, você sabe, não podemos compartilhar com outras
pessoas o que fazemos no trabalho — respondi, socando o ar, pronto para
outra rodada de treino. — Quando chegar o momento certo, eu paro.
Eu sabia que meu prazo de validade sendo um agente infiltrado era
limitado. Não tinha como formar uma família com uma profissão como
essa, por isso, quando achasse que fosse o momento certa, eu iria parar. Não
deixaria de ser policial, só não aceitaria mais os casos em que precisasse de
infiltração.
— Você não precisa se apegar para pegar. — Fernando deu um jab
na minha direção e eu desviei com certa facilidade.
— É isso que você faz com a filha dos outros? — respondi com uma
rasteira, mas meu amigo estava preparado e segurou minha perna.
— Não, o que eu faço com elas é algo mais parecido com isso. —
Fernando puxou minha perna com as duas mãos e, com o ombro empurrou,
meu tórax, me derrubando no chão. Ele então ficou sobre mim, o riso
convencido nos lábios, o que me irritou.
— Quando é que você vai crescer? — perguntei, sem acreditar que
um marmanjo de quase quarenta anos ainda agia desse jeito.
— Você não faz meu tipo, mas se quiser pode até ser que eu
consiga... “crescer”.
— Idiota. — Empurrei ele com força e me sentei. Precisava treinar
mais, como poderia defender as pessoas se não conseguia nem ganhar do
meu amigo? Tinha que ficar em forma o mais rápido possível. — Como
você está? Algum novo caso?
— Não. — Meu amigo passou a mão pela cabeça raspada. — Estou
de férias.
— Porra, e você nem me disse?
— Não queria que você ficasse com inveja. Você sempre deixa as
suas acumularem e depois acaba perdendo.
Fernando tinha razão. Eu queria férias? Lógico. Mas gostava de
estar na ativa também. Para mim, trabalhar era saber que alguém estava
tentando deter criminosos. Por isso, sempre deixava para depois e acabava
me envolvendo em um caso após o outro.
Revirei os olhos para Fernando e me deitei sobre o piso
emborrachado. Observei a estrutura metálica do telhado, enquanto minhas
costas latejavam sobre o tapete. Meu peito subia e descia conforme a
respiração tentava voltar ao normal. Eu estava cansado, suado e dolorido,
ainda assim não conseguia tirar da minha cabeça o fato de que Isabela havia
sido vítima de violência nas mãos de um homem escroto. Repassei os
nossos momentos juntos e compreendi por que ela parecia não me tolerar.
Porra, eu havia tocado nos seios dela! Tinha certeza de que na sua mente eu
era tão cretino quanto o ex.
— Merda! — exclamei, tocando minha testa.
— O que foi? — Fernando indagou, arqueando uma das
sobrancelhas na minha direção. — Alguma câimbra?
— Não, apenas lembrei de uma burrada que fiz.
— Isa, você é o cara que eu conheço que menos comete erros. Na
verdade, nunca vi uma pessoa tão certa, chega a ser irritante.
— Eu sei. — Fechei os olhos, colocando minhas mãos embaixo da
cabeça, como se fossem um travesseiro. — Mas esse caso... tenho cometido
erros desde o começo.
Era difícil admitir falhas, principalmente porque eu gostava de
sempre ter tudo do jeito certo.
— Você está cansado, acabou de sair de um cartel.
— Tem razão. — Abri os olhos e voltei a me sentar.
— Quer beber uma gelada depois daqui? É sábado, dia para
aproveitar. — Fernando levantou os braços, se espreguiçando, esticou as
cordas do ringue e passou o corpo grande pelo espaço.
— Não, vou ficar mais um pouco.
Fernando balançou a cabeça em concordância e foi em direção ao
vestiário, enquanto eu me levantei e comecei a fazer flexão. Não estava
brincando quando disse que ia voltar aos treinos. O suor se acumulava em
meu rosto, bem na ponta do nariz, os braços doendo a cada nova série do
exercício. Meu amigo voltou do vestiário trajando uma jaqueta preta por
cima de uma camisa branca e uma calça jeans escura.
— Ei, essa jaqueta é minha — resmunguei, terminando a última
flexão e ficando de pé.
— Nós dois sabemos que fica melhor em mim. Tem certeza de que
não quer vir?
— Tenho, preciso fazer uma coisa depois daqui — respondi,
decidido.
Meu amigo foi embora e eu segui até o vestiário, parando em frente
ao espelho e olhando meu tronco nu. Estava magro, mas os músculos ainda
podiam ser vistos. Quando entrei no último caso, estava totalmente
diferente, pesando dez quilos a mais e com cicatrizes a menos. Sabia que as
marcas não tinham volta, sempre estariam cravadas em minha pele. Mas, ao
menos meu peso, estava disposto a conquistar.
Entrei embaixo do chuveiro, sentindo alívio por finalmente me
livrar do suor e do calor que Teresina insistia em manter em qualquer época
do ano. Chuveiros elétricos não eram necessários na cidade, não quando a
temperatura quase nunca abaixava dos trinta graus. Minhas mãos passaram
pelos cabelos, enxaguando-os, e, quando toquei meu pescoço,
automaticamente pensei em Isabela.
Sabia que não deveria me meter na vida particular de pessoas que
não estavam relacionadas ao caso, mas eu não conseguia separar as coisas.
Não podia usar o banco de dados da inteligência para buscar o escroto do
ex, mas eu devia estar preparado para se ele ousasse aparecer.
Não conhecia ele, não sabia seu nome, aparência ou tipo físico. Mas
eu não me importava, ele poderia ser até mesmo um Sylvester Stallone.
Para defender Isabela de um desgraçado abusador, eu seria a porra do
Chuck Norris.
♪ Mas eu nunca poderia encontrar as palavras para dizer
Fique, fique ♪
::: Stay – Hurts:::

ISABELA MARTINS

— Essa é ou não é a melhor notícia do ano?


A pergunta ficou no ar e eu me ajeitei sobre a cama, tentando não
pensar demais, mas falhando miseravelmente.
— Não, não é. — engoli o nó que se formou em minha garganta.
— Claro que é. Basta você ficar amiga de Ezequiel, que existe uma
chance de você conseguir ir para a Espanha. — A empolgação contagiante
de Margareth dava para ser sentida do outro lado do telefone. — Sei que
não vai muito com a cara dele, mas nada que um tempinho juntos não
resolva. Tenho certeza de que ele não é chato.
Bati com a palma da mão na minha testa e bufei. Seria tão mais fácil
se ele fosse chato e não o cara preocupado que tocava minhas cicatrizes
com tanta delicadeza.
— Eu não quero ficar um “tempinho” junto com ele. Eu não posso...
— Qual é Isa, é uma viagem para a Espanha. A escola Municipal
Planalto Ininga é a maior campeã da feira de Línguas e esse ano não vão
participar porque o novo diretor perdeu o prazo da inscrição e te
conhecendo eu sei que você fez a inscrição no primeiro dia.
Sim, Margareth tinha razão. Eu desejava conhecer o país do abuelito
Garcia. Ganhar a feira de Línguas significava ganhar também uma
passagem com tudo pago para qualquer país de língua espanhola ou inglesa
como prêmio para capacitação dos professores. Minha vontade de conhecer
a Espanha tinha vindo do meu avô, que sempre que possível comentava
sobre como era sua cidade natal, Madrid.
Com ele veio a paixão pela língua, cultura, além dos filmes e séries
hispânicos. Ele respirava a Espanha e, bem, eu respirava ele. A saudade de
seu colo, do cheiro da tinta que ele usava para pintar os cabelos, fazia com
que seu rosto ainda estivesse nítido em minha mente, mesmo que ele tivesse
partido há dez anos.
— Eu não sei se consigo ficar mais próxima de Ezequiel do que já
estou. — disse, mordendo meu lábio inferior.
— Como assim? Vocês mal trocaram um oi.
Tudo bem, eu não havia contado para Margareth sobre as visitas do
professor de inglês na minha casa, mas em minha defesa as coisas tinham
acontecido de forma muito rápida e eu própria ainda processava o que
estava acontecendo.
— Então, ele veio aqui uns dias, ver se eu estava bem — falei
tentando manter minha voz calma, mas sentindo o desespero em cada nota
que emiti.
— O que você quer dizer com isso? — Margareth questionou e,
mesmo que não estivesse vendo-a, tive a certeza de que ela estava
estreitando os olhos, como se pudesse me fuzilar, ainda que eu não estivesse
ao seu lado.
— Ezequiel ficou preocupado e veio verificar se eu estava bem.
— Isso é ótimo, quer dizer que vocês já não são inimigos mortais e
podem trabalhar juntos para ganhar a feira. — Escutei o barulho de palmas
e abri um sorriso, o primeiro desde que Ezequiel foi embora.
— Nunca fomos inimigos mortais — declarei.
— Você falou a mesma coisa entre você e Raquel, mas eu vi na sua
agenda rabiscos de uma adaga enfiada no nome dela.
Ok! Talvez eu tivesse um leve ranço com quem ocupava o cargo
amaldiçoado, mas eu não tinha culpa se desde Martin todos pareciam chatos
ou esnobes.
— Prometo que nunca fiz nada do tipo com Ezequiel.
— Ótimo, porque em vez de uma adaga você deveria desenhar uma
flecha de cupido no nome dele — Margareth disse.
— Nunca escrevi o nome dele no caderno. Não sou criança. —
Revirei os olhos, mas tive a necessidade de completar. — O da Raquel só
escrevi porque naquele dia da feira ela realmente me tirou do sério.
Raquel havia faltado todas as reuniões com os alunos e quando
ficamos em último lugar ainda veio tirar satisfação comigo, gritando para
quem quisesse ouvir, que eu só tinha conquistado o terceiro lugar na feira
anterior porque eu dormia com o professor de inglês, que no caso era o
Martin. Aquilo foi demais, até mesmo para mim, que até então relevava
muita coisa. Depois de ter xingado ela de um monte de coisa, claro que tudo
em um espanhol tão rápido que ela não entendeu nada, cortei relações com
Raquel. Depois disso, no ano posterior, eu participei sozinha, sem a ajuda
dela, e foi horrível, já que não tivemos a apresentação de inglês.
Eu não tinha mais esperanças de ganhar a viagem com tudo pago
para a Espanha, tanto que já estava começando a juntar para fazer a viagem
por conta própria, o problema era que o Euro estava absurdamente caro,
então meu sonho ia demorar um pouco a se concretizar.
A notícia de Margareth, entretanto, mexeu comigo. Será que existia
uma chance real de ficar em primeiro lugar? Eu e Ezequiel conseguiríamos
conquistar o prêmio que sempre desejei?
— Raquel é uma escrota, mas Ezequiel não é tão ruim. —
Margareth falou e percebi que ela ficou esperando alguma resposta minha.
— Você tem razão — soltei, junto a um suspiro.
Eu não queria pensar em Ezequiel, não quando a imagem de seu
corpo colado ao meu vinha à minha mente. Quando seu cheiro amadeirado
insistia em querer se fazer presente ao meu redor. Tudo nele inspirava
perigo, o brilho nos olhos, a língua afiada e o gênio forte. Ainda assim, tudo
parecia familiar, como se eu própria também fosse desse jeito.
Uma batida na porta soou pelo apartamento e eu desliguei a
chamada sentindo um leve alívio, a conversa estava enveredando por
caminhos perigosos.
Levantei da cama em um salto e, quando abri a porta e dei de cara
com Ezequiel, minha boca abriu em choque.
— O que está fazendo aqui? — perguntei de supetão, surpresa por
vê-lo.
Ele levantou sua sacola ecológica estampada de cachorros e abriu
um sorriso.
— Trouxe seu sorvete — comentou, entrando pela porta e indo até o
balcão da cozinha em um gesto que eu já tinha visto algumas vezes nos
últimos dias.
— Pensei que você tinha dito que ia me levar em uma sorveteria —
disse, ainda sem acreditar que ele estava na minha frente.
— Uma coisa não exclui a outra. — Ezequiel deu de ombros e
retirou um pote de sorvete da sacola. — Não sabia que sabor gostava, então
trouxe o meu favorito: flocos. Você gosta?
Passei meus olhos por Ezequiel. Ele usava camiseta branca, básica,
e uma calça jeans. Seus cabelos não estavam de lado, pelo contrário,
pareciam um tanto bagunçados, mas de uma maneira proposital. Eu poderia
jurar que aquele estilo nada tinha a ver com que o vi usar no dia que nos
esbarramos no corredor. Como se fossem pessoas diferentes. Até a postura
estava distinta, menos na defensiva, quase à vontade.
— Flocos é perfeito — respondi me aproximando e vendo o pote de
dois litros suar sobre o balcão de granito. — Vou pegar as taças de
sobremesa.
Fui até a cozinha, abrindo as portas dos armários sem saber onde
tinha guardado as malditas taças. Quando estava só eu não as usava, comia
direto do pote, então não me preocupava muito onde tinha colocado o
conjunto de vidro que ganhei da minha mãe quando me mudei para esse
apartamento. Fiquei nas ponta dos pés, varrendo com os olhos as prateleiras
mais altas, quando senti um toque em minhas costas.
Ezequiel colou seu corpo ao meu e esticou o braço, passando-o por
minha cabeça, eu me encolhi, surpresa, mas ele apenas retirou uma caixa
meio amassada de dentro do armário.
— É isso que está procurando? — questionou, dando um passo para
trás.
— Obrigada. — Peguei a caixa de suas mãos.
Servi duas bolas generosas de sorvete para cada e me sentei em uma
das banquetas, deixando o gelado da sobremesa descer por minha garganta.
— Uau, você gosta mesmo disso. — Ezequiel comentou.
— Como não gostar? Moramos em Teresina, esqueceu? — O calor
era insuportável a ponto de eu desejar sorvete todos os dias.
— Bom, eu não nasci aqui, mas calor é algo do qual já estou
acostumado.
— Sério que não é daqui? E veio de onde, nunca percebi sotaque de
fora em sua fala.
— Venho de Corumbá, Mato Grosso do Sul, cidade mais quente que
aqui. — Ezequiel falou, se mantendo de pé. — Vim para cá quando era
criança, acabei perdendo o sotaque.
A informação de que Ezequiel era de outro estado me deixou em
choque. Ele não parecia vindo de outro lugar, mas o que mais me assustou
foi saber que existiam cidades mais quentes do que Teresina. Brasil não era
para amadores.
— Você sente falta de lá? — questionei, saboreando mais uma
colherada de sorvete.
Ele tocou o queixo, pensativo, e então abriu um sorriso, daqueles
com gosto de nostalgia.
— Sinto sim, mas o Nordeste me acolheu muito bem, gosto daqui.
— Ezequiel finalmente provou da sobremesa. Pude notar o exato momento
em que ele fechou os olhos e um xingamento baixinho saiu de sua boca. —
Caralho, fazia tempo que não comia isso.
— Eu te falei que era gostoso — brinquei.
— Dessa vez vou ter que concordar com você. — Ezequiel se
sentou na banqueta do meu lado. — Não tenho argumentos para dizer o
contrário.
Ele estava se divertindo e eu percebi que eu também estava. Ao seu
lado não pairava a nuvem cinzenta que as memórias de meu relacionamento
com Martin traziam.
Desde que abri a porta e vi Ezequiel, fiquei na expectativa de
perguntas, perguntas das quais eu não sabia se queria responder. Mas ele em
nenhum momento tocou no assunto, como se o que tivesse acontecido na
última vez que nos encontramos fosse fruto da minha imaginação.
Algo, entretanto, havia mudado. Ezequiel parecia diferente, menos
tenso, mais confortável em nossa briga de cão e gato.
— Você é estranho, sabia? — disse, raspando a vasilha, e lambendo
a colher até não sobrar nenhum indício de flocos nela.
— Uau, as mulheres nunca falaram isso de mim. — Ele fez uma
careta e eu tive a impressão de que feri um pouco seu ego, que deveria ser
enorme.
— Acho que você não tem tido muito contato com elas, não é? Ou
não estaria aqui num sábado à noite. — Joguei a verdade de uma vez. Nem
eu mesma acreditava que ele estava ali, em pleno final de semana.
— Você tem razão. Já faz um tempo que não tenho um encontro. —
Ezequiel passou a mão pelos cabelos, desalinhando-os.
— Não pense que isso aqui é um encontro. — Apontei para mim e
depois para ele. Eram apenas nós dois tomando sorvete em uma noite
quente, nada mais que isso.
— Seria a última coisa que passaria pela minha cabeça — ele
rebateu, quase que imediatamente.
Sua resposta mexeu comigo e eu me ajeitei sobre a banqueta,
inclinando meu corpo sobre o balcão, em sua direção, o cotovelo tocando a
superfície escura da pedra de granito.
— Está dizendo que não estou à altura de ser uma das mulheres que
saem com você? — perguntei, pronta para a briga.
— Pelo contrário, você estaria acima de qualquer outra com quem
eu já tenha saído — Ezequiel comentou com um sorriso nos lábios. Eu,
entretanto, não percebi nenhum tom de deboche ou sarcasmo. Então, por
que meu coração buscava alguma pegadinha em sua fala?
Ficamos em silêncio por um instante. As íris castanhas de Ezequiel
fixaram-se nas minhas, sem desviar por um momento sequer, e senti a
necessidade de manter o contato visual, como se estivéssemos envolvidos
em um jogo em que o primeiro a piscar perdia.
— Você tem uma lábia boa — declarei.
— Tenho que ter, meu emprego exige. — Ezequiel deu de ombros.
— Você fala como se ser professor exigisse muito de você —
comentei e o jogo acabou.
Ezequiel desviou os olhos no mesmo instante, a colher, que estava
no meio do caminho da sua boca, despencou sobre o chão.
— Me desculpe, eu vou limpar. — Ele saltou da banqueta em um
pulo, virando de costas para mim e seguindo para a cozinha, pegando um
pano em cima da pia.
Em um movimento sem jeito, Ezequiel passou o pano sobre o
pedaço de sorvete que começava a derreter sobre o chão. Ele então voltou
até a pia e enxaguou o pano. Vi quando fechou a torneira e, mesmo assim,
permaneceu de costas para mim. Só depois de alguns segundos ele virou-se
e me encarou.
— Eu preciso ir. — Puxou o celular do bolso e mostrou a tela para
mim. Um cachorro da raça Akita estampava a tela. — Está tarde.
Ezequiel enfiou o celular de volta no bolso e se dirigiu até a porta,
dando um “tchau” sem jeito e indo embora. E eu fiquei ali, plantada em
frente à porta. Eu tinha ganhado o jogo, tinha permanecido sem desviar os
olhos até o fim. Eu era a vitoriosa. Mas quando escutei o eco dos passos de
Ezequiel sumindo pelo corredor, entendi que nem sempre quem ganhava
levava o prêmio. Porque naquele momento, a única coisa que eu sentia na
ponta da minha língua não era o sabor do sorvete de flocos. Era o sabor da
derrota.
♪ Eu te darei o meu melhor lado, contarei minhas melhores mentiras
Sim, é incrível, né? ♪
:::Homemade Dynamite – Lorde:::

ISAAC ALMEIDA

Eu precisava agir. Depois do episódio da catapora, do poker e,


principalmente, da derrapada que dei, me senti na obrigação de encerrar o
caso o mais depressa possível. Eu tinha sido um idiota. Havia levado
sorvete para Isabela, mas tinha saído como um lunático, tudo porque deixei
escapar que ser bom de lábia ajudava na minha profissão. Eu era a porra de
um policial infiltrado, tinha mais era que manter a fodida da minha boca
fechada, em vez de ficar falando coisas que poderiam me comprometer
depois.
O domingo passou. A segunda e a terça também. Eu já estava
pensando na desculpa que teria que usar para evitar visitar Isabela quando a
vi no corredor da escola. Ela havia se livrado da catapora e aquilo trouxe
um alívio para mim. Poderia voltar a manter distância da mulher que
sempre fazia eu baixar a guarda. Acenei a cabeça e segui caminhando sem
nem dar tempo de uma troca de palavras.
Sim, eu era um filho de uma puta. Um que jurei que não seria, mas
eu não podia prejudicar o caso. Minha vida era essa: missão em primeiro
lugar. Por isso, na própria terça-feira, quando deu nove da noite, hora da
troca de vigia, eu invadi a escola. Talvez eu estivesse ficando impaciente,
sabia que o trabalho de infiltrado era coisa que demandava tempo, as
pessoas precisavam confiar em mim para mostrar seu lado mais sombrio.
Porém, tudo que eu ganhara naqueles dias havia sido um convite para um
jogo de poker. Um jogo no qual eu havia arruinado tudo por causa das
lembranças que a bebida trazia, lembranças que eu desejava esquecer.
Duvidava que um segundo convite aconteceria.
Me esgueirei pelo terreno baldio que ficava no fundo do prédio e
pulei o muro, me escondendo na sombra formada pela iluminação precária.
Eu sabia que os vigias ficavam perto da entrada, assistindo televisão, então
segui com uma certa calma até a sala da direção.
Como imaginei, a porta estava destrancada, então eu nem teria que
arrombá-la. O sistema público era falho de vários modos e um deles era que
quase nunca trancavam salas. Minhas salas de aula durante a universidade
de direito viviam de portas abertas, deixando o ambiente perigoso e
suscetível a vários tipos de acontecimentos.
A sala, que eu já conhecia, era um ambiente pequeno, ainda assim
dei uma olhada pelo local. Havia uma mesa de madeira com gavetas, uma
estante de ferro meio desgastada e ainda uma geladeira e algumas cadeiras
de plástico. Liguei a lanterna do meu celular para enxergar melhor e fui
direto para a estante.
Vasculhei entre os papéis, procurando algo que chamasse minha
atenção, mas tudo parecia ser assunto da escola. Vi uma movimentação pela
janelinha da porta e desliguei a lanterna na mesma hora. Meu coração
acelerou dentro do peito, a sensação de adrenalina que era acostumado a
sentir voltou a me invadir.
Um sorriso invadiu meus lábios, eu gostava daquela sensação, do
perigo, da euforia em quase ser pego no meio da ação. A sombra sumiu e
aproveitei para voltar minha atenção à estante. Liguei mais uma vez a
lanterna e a frustração começou a me corroer quando nada do que
encontrava parecia ser uma pista. Se a escola realmente fosse palco de
atividades criminosas, certamente deveria ter alguma prova ali.
Deixei a estante e segui para o computador de geração ultrapassada,
que ficava em cima da mesa. Liguei o aparelho e vi que ele solicitava senha
para acesso. Testei as combinações mais usadas, nome, datas de aniversário,
esse tipo de coisa e consegui acessar quando coloquei o nome do time de
futebol pelo qual o diretor era fanático. Nenhum arquivo, entretanto,
chamou minha atenção.
Segui para as gavetas da mesa, meus dedos já estavam no puxador
da primeira gaveta quando uma ideia veio à minha cabeça. Os criminosos
costumavam esconder provas nos locais menos óbvios e naquela sala o que
poderia ser menos óbvio do que a geladeira? Poderia parecer um absurdo,
mas a mente criminosa podia ser tão astuta que às vezes era necessário
pensar de um jeito diferente.
Abri a geladeira procurando por algo fora do comum. Havia
algumas frutas, garrafas de água, algumas de suco e uma caixa de whisky.
Quem guardava uma bebida alcoólica dentro da caixa na geladeira? Minhas
mãos foram no mesmo instante para o objeto e ao tocá-lo notei que o peso
dali dentro não correspondia a uma garrafa, mas sim a outra coisa. Abri a
caixa e vi, envolto em um saco plástico, notas de real. Eu, entretanto, não
tive tempo de investigar a fundo, porque no mesmo instante, a porta da sala
se abriu.
Fechei a caixa quando a luz acendeu, forçando meus olhos a se
fecharem. Não tive tempo de devolver a caixa à geladeira quando o timbre
conhecido soou em meus ouvidos.
— Ezequiel? — A voz aguda fez com que eu recolhesse minha mão,
mas ao olhar para Isabela, notei que meu gesto não passou despercebido. —
O que você está fazendo aqui?
Ela tinha me pegado no flagra, era fato, e como eu não sabia um
modo de escapar, rebati.
— E você, o que está fazendo aqui? — questionei, depositando a
caixa dentro do eletrodoméstico e cruzando os braços.
Ela finalmente fechou a porta e veio andando na minha direção.
Então foi sua vez de cruzar os braços.
— Falando sério agora. O que você está fazendo aqui?
Isabela olhou para a geladeira aberta e depois para mim, como se
tentasse desvendar o que quer que estivesse acontecendo ali. Eu sabia que
não tinha como fugir de sua pergunta, mas nenhuma resposta com sentido
veio à minha mente. Pelo contrário, eu só conseguia pensar no quanto ela
estava bonita usando uma calça jeans rasgada no joelho e um cropped
vermelho. Ela estava maquiada? Pisquei, tentando assumir o controle de
meus pensamentos e me vi petrificado. Toda a euforia de estar novamente
em campo, sumiu.
— Eu... — travei e Isabela tocou minha mão, que só então percebi
que estava tremendo.
— Vi o que você estava fazendo. Por favor, diga que não estava
tentando roubar a bebida do diretor.
Isabela quase fez uma súplica e eu quis dizer que não era aquilo que
ela estava pensando, mas suas palavras me deram a desculpa perfeita.
— Você me pegou no flagra — admiti, passando a mão pelos
cabelos em um gesto que quis que transmitisse constrangimento. —
Durante a partida de poker o diretor comentou sobre um whisky de luxo e
eu... fiquei tentado a experimentar.
Menti descaradamente e baixei minha cabeça, deixando a culpa
recair sobre mim. Esperei um sermão, mas tudo o que veio foi um abraço.
Isabela colou o corpo ao meu, os braços envolvendo minhas costas.
— Não consigo imaginar como é conviver com um vício, mas
prometo que vou te ajudar. Assim como você me ajudou.
Isabela se afastou, a seriedade marcando um rosto que eu já estava
acostumado a ver alegre, e, segurando minha mão, me levou para longe da
geladeira. Ela já estava quase na porta quando deu um muxoxo alto.
— Merda! Quase esqueci o que vim fazer.
Ela soltou minha mão e foi até a estante. Por um momento pensei
que ela estava ali para fazer algo ilegal, como roubar um gabarito ou trocar
a nota de algum aluno, mas tudo o que ela fez foi pegar uma garrafa de
água.
— Você veio aqui nessa hora da noite para isso? — questionei,
confuso.
— Eu estava no supermercado quando lembrei que, durante a
reunião que tive pela tarde com Afonso, havia esquecido minha garrafa aqui
e Deus sabe que Afonso é o maior cleptomaníaco da escola e minha garrafa
é nova, da Tupperware, ainda nem terminei de pagar.
Mesmo diante da situação em que nos encontrávamos não pude
deixar de gargalhar. Somente Isabela era capaz de carregar uma leveza
como essa.
— Se eu demorar demais o seu João, o vigia, pode vir aqui me
procurar e se ele te achar aqui você estará encrencado. Vamos, vou tirar
você daqui com segurança. — Isabela cochichou e achei engraçado como
ela estava quase se achando uma espiã. Quem sabe ela levasse jeito para a
coisa.
Com passos calculados, Isabela foi até a porta e a abriu. Olhou para
um lado, depois para o outro e voltou correndo na minha direção.
— Já era! Seu João já está vindo.
Meu riso morreu nos lábios. Uma coisa era a sensação de quase ser
pego, outra era de fato ser flagrado fazendo algo que pudesse comprometer
meu emprego e assim a investigação. Eu conseguiria lidar com Isabela,
agora como eu teria uma desculpa para me livrar do vigia?
Eu só tinha segundos para pensar em um plano, o que nunca foi
empecilho para mim, mas diante de uma Isabela desesperada, meu cérebro
pareceu bugar.
— Temos que pensar em algo — ela disparou, enquanto eu apenas
olhava seu nervosismo. Sua boca abria e fechava sem emitir som e um dos
olhos parecia piscar mais do que o normal. Será que estava tudo bem?
Eu estava pronto para assumir a culpa, confessar que tinha vindo
roubar a bebida e depois pensaria em como resolver a situação, quando
Isabela estalou os dedos.
— Já sei, tenho uma ideia. Pode parecer maluca, mas deve
funcionar.
— Eu topo qualquer coisa — falei apressado, o coração acelerado
no peito, suor querendo brotar na minha testa.
Não sabia o que Isabela tinha em mente, mas não tinha tempo para
analisar outras opções.
— Então não entre em pânico. Dios mío! Porque vamos quase nos
beijar.
— Quê?!
Franzi as sobrancelhas, me perguntando se escutei direito, mas não
tive tempo nem de raciocinar, porque Isabela foi mais rápida, colando sua
boca na minha bochecha, próxima da minha própria boca.
— O que você está fazendo? — perguntei, sentindo meu sangue
gelar.
— Psiu...entra na minha e fica quieto.
Sua voz em um sussurro, tão próxima a mim, trouxe junto seu hálito
de hortelã, e o calor de seu corpo colado ao meu fez com que eu fechasse os
olhos. Isabela sabia o que fazia, agarrou minha nuca, emaranhando os dedos
nos meus cabelos, de forma possessiva e eu tive que fechar minha boca para
que um gemido não escapasse de meus lábios. Eu não sabia como seu plano
funcionaria, só sabia que meu cérebro pareceu congelar, ao passo que meu
corpo começou a ferver por dentro. Levei minha mão até suas costas,
passando os dedos pelo tecido de sua camisa de cetim, pensando se era
errado ou não a trazer para mais perto de mim. No entanto, antes que
pudesse agir, escutei um barulho vindo da porta.
Quando Isabela se afastou de mim, eu não consegui pensar em
desculpas para escapar daquela enrascada, nem mesmo no que faria caso
meu disfarce fosse descoberto. Tudo o que percebi foi que os anos de
práticas, cursos e treinamentos, jamais me prepararam para saber lidar com
ela.
♪ Não quero pensar sobre isso (uh)
Não quero falar sobre isso (uh) ♪
:::What Goes Around Comes Around – Justin Timberlake:::

ISABELA MARTINS

¡No puedo creerlo! Eu quase tinha beijado Ezequiel! Tudo fazia


parte do meu estúpido plano de última hora. A cena da série coreana veio à
minha mente e eu soube o que tinha que fazer. Só não esperei que eu
própria fosse sentir o coração bater mais forte só de ficar perto do professor
de inglês. O que diabos eu estava fazendo?!
Eu, entretanto, não tive tempo para pensar sobre minha burrice, já
que dentre os três presentes, talvez fosse a que menos estava prestes a ter
um piripaque.
Seu João, estava em um misto de cor branco fantasma e roxo
Thanos. Nada, entretanto, superava a cara de Ezequiel, que franzia a testa
como se pensar fosse algo acima de sua capacidade.
Eu não tive tempo de pensar no calor do toque de Ezequiel em
minhas costas, nem mesmo na maciez de seus cabelos sobre meus dedos, já
que naquele momento tudo o que fiz foi dar uma de Meryl Streep e pedir
desculpas ao vigia. Seu João estava tão assustado que deixou a sacola de
lixo, que carregava, cair sobre o chão, fazendo um barulho alto. Ele
recolheu a sacola preta em um segundo e logo tratou de ir embora, tamanha
a vergonha que estava, me deixando sozinha com Ezequiel, que enfiou a
mão nas calças, tentando esconder o desconforto que nos cercava.
— Precisamos ir, antes que seu João resolva nos entregar —
comentei dando um passo em direção à porta, tentando manter o foco de
fugir dali, mas a mão de Ezequiel segurou meu pulso, me impedindo de
continuar.
— Que porra foi essa que aconteceu aqui? — ele rugiu.
— Eu salvei sua pele. De nada — falei o óbvio.
Eu que deveria estar chateada, quase tive que beijá-lo para limpar a
barra dele! E eu tenho certeza de que seria um beijo gostoso e cheio de
pegada e...no lo creo! O que eu estava pensando?
— De onde você tirou essa ideia ridícula de que um beijo resolveria
a situação? — sua pergunta veio em tom de deboche e aquilo realmente me
irritou. Eu tinha feito aquilo por ele e a ideia não era ridícula. Salvou a
gente, não foi? Ou ele queria dizer, implicitamente, que minha ideia não
tinha sido boa?
— De um dorama. — Dei de ombros, lembrando que em Pousando
no Amor, havia dado certo.
— Um o quê?
— Uma novela coreana. — Revirei os olhos, ele nem tinha noção do
quanto eram boas as novelas asiáticas. — Você não pareceu achar a ideia
ridícula, ou não teria fechado os olhos.
Analisei Ezequiel, pronta para que ele desmentisse o que disse, mas
ele ficou calado, soltou meu pulso e andou na minha direção. O momento
do quase beijo havia sido tão turbulento que eu mal havia percebido que ele
fechou os olhos, na verdade eu só notei porque eu própria quis fechar os
meus e, com medo de que ele me pegasse no flagra, encarei-o. Qual foi
minha surpresa ao ver que o próprio estava fazendo justamente aquilo.
Ezequiel poderia até querer dizer que eu não tinha feito um bom trabalho,
mas sua atitude mostrou o contrário.
Ele parou, ficando a poucos centímetros de mim, e cruzou os braços
sobre o tórax.
— Isabela, eu não precisava da sua ajuda. — Seu olhar frio e o tom
grave de sua voz deixaram-no um tanto quanto sensual. Êpa! Será que a
catapora tinha afetado meu cérebro? — O que te garante que o seu João não
vai reportar o que viu ao diretor da escola?
— Não se preocupe com seu João, não é a primeira vez que ele
presencia uma cena do tipo — respondi, bufando e segurando minha garrafa
contra o peito. Tudo era culpa daquela maldita garrafa. Eu estava no
supermercado, fazendo compras, quando lembrei que havia esquecido ela
na escola.
A boca de Ezequiel se abriu no mesmo instante e, por mais que
tenha ficado calado, eu soube exatamente o que se passou em sua cabeça.
— Para sua informação, seu João pegou outros professores fazendo
a mesma coisa. Então ele já está acostumado — me defendi, mesmo
sabendo que não precisava.
Nos encaramos por uns segundos e ele assentiu com a cabeça, como
se concordasse com minhas palavras e eu dei o assunto por encerrado.
Puxei sua mão e o levei para o lado de fora da escola. Seu João ainda virou
a cara, provavelmente envergonhado, quando já estávamos na calçada. Ali,
ia soltando a mão de Ezequiel quando tive uma ideia.
— Você tem compromisso agora? — questionei, ainda sentindo
adrenalina percorrer meu corpo.
Eu estava elétrica a ponto de minha respiração descompassada fazer
meu peito subir e descer com velocidade. Quando cheguei na escola, não
passou pela minha cabeça que fosse encontrar Ezequiel escondido. Eu o
tinha pego no flagra e tirá-lo da situação foi um tanto quanto divertido, eu
me sentia quase como se estivesse em uma série policial. Ezequiel,
entretanto, não parecia compartilhar da mesma opinião, já que seu
semblante estava mais parecido com o de alguém que estava prestes a
vomitar.
Ele me admirou, curioso, mas balançou a cabeça, negando. Eu sabia
que meu pedido era ousado, porém ele estava me devendo uma.
— Temos uma missão — falei, ainda mantendo o calor de seus
dedos entre os meus. — Venha logo, antes que acabe a reunião.
— Reunião? Do que você está falando? — Ezequiel se desvencilhou
de mim, se afastando, me analisando com curiosidade.
Apontei com o indicador para a paróquia, onde àquele momento
acontecia uma reunião do AA. Não precisei dizer mais nada, ele entendeu o
que eu queria. Esperei seu protesto, mas tudo o que veio foi um suspiro.
— Precisamos realmente fazer isso? — disse, a voz baixa, os
ombros caídos.
Mordi meu lábio, sentindo o coração apertar dentro do peito e toquei
seu ombro em um gesto de apoio.
— Eu quero que você se livre desse vício — falei a verdade,
encarando-o.
— Eu não sou viciado — ele declarou rápido demais e então
continuou — A última vez... aquela vez que apareci em seu apartamento eu
não estava bêbado, só estava tentando esquecer de algo.
Observei Ezequiel com atenção. Seus olhos pareciam divagar e, à
luz do poste, pude perceber como a preocupação em seu semblante deixou-
o com a aparência mais velha. Alguma recordação ameaçava sua sanidade
e, como uma pessoa que já havia passado pela mesma coisa, me vi
compelida a dizer algo.
— Todos nós temos marcas que gostaríamos de esquecer. —
Ezequiel virou o rosto para mim e eu vi de relance quando contemplou meu
pescoço. — A questão é, o que fazemos com essas marcas? Deixamos que
elas sejam fortes a ponto de nos apagar ou nos tornamos resistentes o
suficiente para assumir o controle?
Ezequiel travou a mandíbula e veio na minha direção. A mão dele
veio até meu rosto, mas parou no meio do caminho e, como se estivesse
travando uma batalha interna, demorou uns segundos para finalmente
encostar na minha bochecha.
Eu não precisava ser nenhum gênio. Ele tinha medo de me tocar e a
preocupação genuína que cada pequeno gesto seu pudesse me machucar me
aqueceu por dentro.
Seu polegar roçou minha bochecha. Por um segundo pensei que ele
iria me beijar. Um beijo de verdade. Ele, entretanto, nunca se aproximou e,
tão rápido quanto veio, se afastou, abrindo finalmente o primeiro sorriso da
noite.
— Você é estranha, sabia? Não sei como viemos de um quase beijo
falso a lições poéticas sobre cicatrizes.
Gargalhei alto, todos meus anseios subitamente indo embora. Eu
tinha medo de falar sobre Martin, mas ali estava Ezequiel, também tendo os
próprios pesadelos. Não precisávamos compartilhar o que nos fazia mal,
ainda assim havia uma compreensão mútua e silenciosa entre nós.
— Sabe como é, sou uma caixinha de surpresas.
— Não, você é destemida. Tenho inveja disso, às vezes acho que
sou apenas um covarde. — Ezequiel olhou para a paróquia e percebi que ele
estava refletindo se compensava ir à reunião ou não.
— Podemos deixar para outra oportunidade.
Ele não respondeu e então enfiou a mão no bolso da calça em um
gesto que eu já começava a me acostumar. Àquela altura da noite, o clima
começou a esfriar um pouco e o movimento de carros deu uma diminuída.
— Vamos, vou te deixar no seu carro, essa hora é perigoso ficar aqui
fora. — Ezequiel olhou para os dois lados da rua e estendeu a mão na
minha direção. Não pensei muito antes de pegá-la e ele foi me guiando até
meu Ford Ka. — Quando chegar em casa me envia uma mensagem
avisando que chegou, ok?
Sentei-me sobre o banco macio do carro e fechei a porta, abrindo o
vidro logo em seguida e apontei o indicador em direção a Ezequiel.
— Eu já estou boa da catapora, como pode ver. Não precisa mais se
preocupar comigo. Sei que deve ter sido um fardo, ficar me visitando quase
todos os dias.
Ezequiel se inclinou sobre o carro, apoiando as duas mãos na lataria,
acima da porta.
— Não diga isso, não foi um fardo.
— Então por que sumiu?
Não quis soar magoada, mas ele esteve todos os dias e do nada,
depois da noite do sorvete, desapareceu.
— Estava ocupado, corrigindo prova. — Ezequiel tocou o pescoço
com o indicador. — Talvez você tenha razão quando disse que eu era um
professor de merda. Eu deixei para corrigir tudo na última hora.
Estreitei meus olhos tentando pegá-lo na mentira, mas Ezequiel se
manteve com o semblante tranquilo, os olhos fixos em mim.
Eu estava sendo ingrata e pensar que, além de cuidar de mim, ele
ainda estava dando aula e corrigindo prova fez eu ter compaixão.
— Você não é um professor de merda. Os alunos adoram você —
disse, girando a chave do carro na ignição.
— Sério? — Um pequeno sorriso se fez presente em seus lábios e
pude notar uma felicidade genuína.
— Claro, a turma fala bem de você. O que é bom, já que na sexta
será a reunião de pais e mestres.
— Como é que é? — ele deu um passo para trás e me encarou,
surpreso.
— Afonso não te falou sobre a reunião? — indaguei, já com o carro
ligado e engatando a primeira marcha.
Ezequiel balançou a cabeça e eu ri. A reunião de pais e mestres era
como o Big Brother Brasil da escola pública, um encontro cheio de tretas,
fofocas e brigas.
Se eu, que estava acostumada a aquilo, ainda tremia na base, só
podia sentir pena de Ezequiel e, antes de acelerar, deixando-o ali, dei o
melhor conselho que poderia:
— É melhor se preparar, se arme até os dentes.
♪ O dia todo fico pensando em coisas
Mas nada parece me satisfazer ♪
:::Paranoid – Black Sabbath:::

ISAAC ALMEIDA

Eu tinha falhado! Em todos os aspectos da minha vida lá estava eu,


fodendo tudo. Fosse trabalho, vida pessoal, ou até mesmo meu pensamento.
Joguei a camisa no chão quando cheguei no meu apartamento,
pegando o controle da televisão em cima da mesinha de centro da sala e
ligando o eletrodoméstico. Não sabia o que estava passando, mas não me
importava, só queria que o barulho abafasse as vozes da minha cabeça que
insistiam em me sabotar. Elas diziam que eu estava perdendo o controle,
que eu era um policial fracassado, um professor medíocre e um homem
babaca.
Caralho! Eu quase tinha cedido ao desejo e beijado de verdade
Isabela, se o vigia não tivesse chegado a tempo eu tinha certeza de que nada
poderia me parar. De todos os terríveis acontecimentos da noite, esse era o
que me deixava mais furioso. Isabela tinha passado o inferno com o ex e lá
estava eu, pegando em seus seios e ficado que nem um adolescente idiota
com um beijo de mentira. E eu só podia imaginar que ela não ficou furiosa
com minhas mãos em suas costas porque a adrenalina ainda estava presente
em seu corpo, mas sabia que assim que toda a euforia a deixasse, ela iria me
odiar. Por mais que para minha missão pouco importasse o que Isabela
achasse de mim, eu não queria que ela me detestasse.
Com a cabeça fervilhando, fui até a geladeira e peguei uma cerveja
que estava ali há pelo menos uns seis meses. Verifiquei a validade e virei o
conteúdo bebendo direto do gargalo. Foda-se meu passado, um dia eu teria
que assumir meus atos e que esse dia fosse hoje.
O álcool invadiu meu corpo trazendo um sabor agridoce entre alívio
e o desespero. Esvaziei a garrafa de uma vez e logo peguei outra e mais
uma. A única coisa que eu queria era esquecer, mas tudo o que a bebida
fazia era o contrário, me lembrar. Puxei o celular e olhei a foto de Hachi,
meu primeiro e único cachorro, na tela principal e eu acabei me sentindo
pior, com saudades. Disquei a chamada rápida e esperei impaciente, até que
Fernando atendeu.
— Você tem razão. Acho que preciso de férias — desabafei,
terminando de beber a última cerveja.
— Que bicho te picou? — ele perguntou e eu poderia jurar que do
outro lado da linha ele estaria sorrindo, como se eu tivesse acabado de
contar alguma piada.
— Estou falando sério. Você sabe que eu não sou do tipo que brinca.
— Pera aí, deixa só eu vestir uma calça. — Pude notar um
xingamento baixinho e então Fernando voltou a falar. — Em quinze
minutos eu chego aí.
Eu sabia que sua casa ficava há bem mais de quinze minutos da
minha, mas não protestei. Estava cansado demais para dar um de
responsável pelo amigo que era mais velho que eu.
Eu sabia que três cervejas não eram nada. Meu corpo era muito mais
resistente ao álcool, ainda assim me senti perturbado, as mãos insistindo em
tremer. Por isso, me deixei sentar na poltrona de cor grafite. Meu tórax
subindo e descendo só fez com que eu olhasse para baixo, para as linhas
finas que se amontoavam ali, paralelas umas às outras.
Toquei a superfície do meu polegar sobre a rugosidade da pele
cicatrizada e me segurei para não mergulhar naquele canto obscuro que eu
gostaria de esquecer, só então percebi que da última vez que havia fechado
meus olhos não foi o pavor tão costumeiro que veio me visitar. Não, foi
algo diferente. Foi um frio na barriga, um causado por Isabela e sua
ousadia. Eu ainda conseguia visualizar ela na minha frente, a mão pelos
meus cabelos, tomando posse, seu nariz tão próximo a ponto de nossas
respirações se misturarem.
Uma batida soou na porta me despertando e, já sabendo que
encontraria Fernando ali, não tive pressa em atendê-lo. Quando girei a
maçaneta, meu amigo estava com a mão fechada em punho, pronto para
socar mais uma vez minha porta.
— Não precisa derrubar minha porta, ainda estou pagando as
parcelas desse apartamento.
— Sua ligação me deixou preocupado. — Fernando alisou a cabeça
raspada e entrou na minha sala mesmo sem ser convidado. — Você vai
mesmo tirar férias?
— Tenho direito a uns meses. — Dei de ombro tentando mostrar
que não era grande coisa, apenas um funcionário público querendo usufruir
de seus direitos. — Depois desse caso seria bom ficar um tempo sem me
envolver.
Fernando cruzou os braços sobre a camisa preta, os músculos
saltando. Ele era um homem forte para quem já estava beirando os quarenta
anos.
— Sabe, você pode conversar comigo se quiser. — Fernando se
sentou no sofá, como que para mostrar que não iria a lugar nenhum, mas eu
continuei estático, perto da porta, pensando se realmente seria uma boa
ideia compartilhar o que aconteceu.
Embora Fernando tenha prendido Cabrón junto comigo, não havia
se infiltrado no cartel como eu, apenas chegou na hora de fechar o cerco.
Fechei a porta e girei meus calcanhares em direção ao meu amigo.
Passamos por muita coisa nesses anos de polícia e ele sabia que eu não
gostava de comentar sobre os casos, ainda assim estava disposto a tentar e
aquilo fez eu abaixar um pouco a guarda.
— Eu machuquei pessoas. — Me limitei a dizer, mas já sentindo,
saindo das minhas costas, o peso que carregava.
— Isa, todos nós já fizemos isso. A lei nos ampara, não é crime.
— Claro que é crime. O fato de eu não ser punido não muda isso —
berrei, o ódio que sentia por mim mesmo despertando. — Sim, era para um
bem maior, ainda assim eu sou culpado.
Fernando se ajeitou sobre o sofá, cruzando uma perna sobre a outra
e apoiou o cotovelo na perna. Sua pose, similar à de um psicólogo, fez eu
me sentir um pouco mais à vontade e eu voltei à poltrona.
— Cabrón era obcecado por torturas e quem não quisesse participar
seria vítima delas. — Eu ri, sem achar um pingo de graça, lembrando do
que tinha acontecido. — E acredite, eu preferia mil vezes ter sido torturado
a ser o torturador, mas, precisando ganhar sua confiança, fui o primeiro a
me oferecer como seu ajudante. As coisas que vi... que fui obrigado a
fazer...
— Isaac, você tem que deixar isso para lá. Você já se martirizou por
isso. — Fernando apontou para minhas cicatrizes. — Eu te conheço o
suficiente para saber que você fez isso a si mesmo como punição.
Eu nunca cheguei a confessar, mas Fernando sabia que eu me
automutilei como uma forma de culpa. Ele me conhecia há anos, sabia que
antes daquela missão eu não tinha aquelas marcas. Fernando era a pessoa
que mais me entendia e, mesmo sendo muito diferentes, tínhamos uma
conexão que apenas aqueles que viviam naquela profissão eram capazes de
ter.
— Eu não consigo deixar isso para lá. Eu tenho sangue nas minhas
mãos, calos nos meus dedos de tanto manusear todos os tipos de armas
possíveis. — Admirei minhas mãos, vendo-as limpas, sabendo que um dia
elas estavam cobertas pelo líquido vermelho de outras pessoas.
— Se não fosse você, seria outro, e tenho certeza de que se fosse
outro as vítimas estariam em uma situação muito pior. — Fernando me
defendeu.
Eu sabia que, no fundo, ele tinha razão. Eu não tinha matado
ninguém, nem mesmo deixado alguém inválido, mas o fato de ter
prejudicado pessoas me consumia por dentro. Eu, o cara que acima de tudo
queria protegê-las.
— Obrigado — sussurrei o que era tão difícil para mim.
Eu não era dado a agradecimentos. Eu não era dado a declarações
sentimentais. Nesse quesito eu havia puxado para minha mãe, que não
falava comigo desde que entrei na polícia. Ela odiava o fato de eu ter
escolhido a carreira do meu pai mesmo depois dele ter sido assassinado.
Dizia que não aguentaria outra morte na família e simplesmente cortou
ligações. Eu não a culpava, sabia que tinha sofrido silenciosamente pela
morte do esposo, mas também não forçava a barra. Estava dando um tempo
a ela, mesmo que esse tempo já estivesse sendo longo demais. Conhecendo
nós dois, dificilmente um iria dar o braço a torcer e ser o primeiro a
procurar pelo outro.
Suspirei, pensar em minha mãe não ajudava a lidar com o que eu
estava passando. Só fazia eu me sentir pior, por ser um cretino que não
tinha seguido os passos planejados por ela.
Fernando me despertou para a realidade quando se levantou e
cruzou o espaço entre nós, levantando o dedo indicador em direção ao meu
rosto. Eu o olhei curioso, e então a expressão fechada que ele carregava
antes foi substituída pelo seu conhecido riso.
— Agora vamos falar sério. Que batom é esse perto da sua boca?
Demorei uns segundos para entender do que ele estava falando, e
então a imagem de Isabela surgiu na minha mente. Uma gargalhada escapou
de meus lábios, afastando qualquer outra coisa que não fosse a loucura que
tinha acontecido na noite.
— Você não vai acreditar! — declarei. — Mas eu realmente estou
cansado, conto para você outra hora.
Meu amigo não questionou, apenas ergueu uma das sobrancelhas e
fingiu tossir, arranhando a própria garganta. Sim, ele estava super curioso,
mas eu não iria facilitar, tive um dia longo e realmente queria tomar um
banho.
— Foi só você meter o shape que está chovendo mulher? —
perguntou quando já estava na porta.
Olhei para meu peito despido, ainda estava longe da forma que
queria, mas aos poucos minha massa muscular parecia voltar a ser como
era. Me sentia quase o Christian Bale da polícia, vivendo em um eterno
efeito sanfona.
— Não está chovendo nenhuma mulher, isso aqui foi apenas ossos
do ofício — respondi apontando para meu rosto.
Fernando não pareceu acreditar na minha história, balançando a
cabeça em negação, a mão já no trinco da porta.
— Por que a gente não pede uma pizza e procura alguma coisa para
assistir? — perguntei e ele achou uma boa ideia, voltando ao sofá,
afundando o corpanzil sobre o tecido. Eu estava cansado, mas era bom ter
sua companhia.
Depois que jantamos, ele foi embora quando viu que eu estava mais
estável. Me livrei da calça assim que fechei a porta, andando pelo
apartamento apenas de boxer preta e parei em frente ao espelho redondo,
com moldura de pedrarias, que ficava no final do corredor que dava acesso
aos quartos. Dentre o conjunto de sobrancelhas grossas, olhos castanhos e
cabelos bagunçados, o que chamou minha atenção foi outro local. Um
coberto por uma mancha vermelha.
A marca de batom deixada por Isabela entre minha bochecha e a
boca era um borrão vermelho sobre a superfície da minha pele. Apesar de
ser apenas um borrão, era inegável para qualquer pessoa que visse que ali
havia sido um beijo.
Levei meu polegar até o local, sentindo uma leve cremosidade pela
ponta do dedo. Olhei para o vermelho presente na minha digital, lembrando
de quando aquela cor, em minhas mãos, significava outra coisa. Pensei em
Isabela, em como o simples fato de estar ao seu lado me tornava mais leve,
em como por sua causa uma cor poderia mudar de sentido.
Eu odiava vermelho, até agora. Como odiar a cor que estampava
meu rosto em uma demonstração de apoio? Isabela havia livrado minha
barra e tudo que eu tinha feito foi agir como um idiota. Típico de mim.
Assim era eu, um homem que vivia tempo demais fingindo ser
quem não era e quando mostrava minha verdadeira personalidade o que
vinha era o temperamento de um ogro. Isabela era o oposto. Assim era ela,
como um amuleto da sorte, capaz de ensolarar até os dias mais cinzentos.
♪ Me esqueça, me esqueça
Deseje nunca ter namorado comigo ♪
:::Hate me – EllieGoulding:::

ISABELA MARTINS

Estava decidido. Eu odiava reunião de Pais e Mestres. Sempre tinha


confusão e os professores ainda saiam como culpados de tudo. Por isso,
quando coloquei meu terninho de cor vermelho sangue, quase nunca
utilizado, para usar na reunião daquela noite, eu respirei fundo me
preparando para o que estava por vir. Usava aquela cor justamente para me
misturar entre os corpos ensanguentados depois que a guerra começasse. Eu
até tinha tido catapora quase nos trinta anos, mas a doença não parecia tão
ruim quanto enfrentar cara a cara a fúria de certos pais.
Preparei minha pasta com as informações sobre os alunos e segui até
meu Ford Ka. Ao chegar à escola, retoquei o batom, também vermelho, no
espelho do retrovisor e abri meu sorriso mais falso, treinando caso
precisasse conquistar meu ponto de vista.
O estacionamento havia sido aberto ao público, para os pais
colocarem os carros, e estava meio lotado. Dei graças aos céus ao ver que
Margareth já havia chegado e estava conversando com a professora de
português. Acenei quando cheguei mais perto e logo minha amiga veio ao
meu encontro.
— Uau, você está parecendo a Legalmente Loira nesse terninho, só
faltou ser rosa. — Margareth, que vestia um vestido longo roxo, comentou.
— Espero ganhar meus casos, que nem ela — falei, mostrando a
pasta com todo o passado escolar dos alunos.
— Está levando essas reuniões muito a sério. — Ela riu e eu dei de
ombros, não gostava de ser contrariada, muito menos quando tinha razão.
— E a catapora, você está melhor?
Mordi os lábios com sua pergunta. Eu provavelmente era uma amiga
má, mas havia guardado a informação de que Ezequiel havia passado vários
dias cuidando de mim. Só tinha comentado por alto que ele foi me ver. Mas
aí lembrei que ela que tinha me passado catapora, então estávamos quites.
— Estou melhor — contei a meia verdade, tocando a ponta do meu
nariz, um gesto que fazia quando omitia informações.
— Que bom, eu fiquei preocupada, nunca havia visto um adulto
pegar catapora.
Nem eu, mas pegava e era sério, sorte que comigo tinha sido
tranquilo. Dei de ombros, não queria falar sobre aquele assunto que me
levava a pensar em Ezequiel e no quanto fazer isso levava meu cérebro a se
transformar em uma gelatina.
— É melhor a gente ir, os pais já estão chegando — disse,
apontando com a cabeça para um grupo de pessoas que seguiam para dentro
da escola.
Minha melhor amiga concordou e me seguiu até a sala onde iria
acontecer a reunião. Muitos pais já se amontoavam nas carteiras que
formavam um círculo e o vice-diretor cumprimentou um por um,
esbanjando um sorriso simpático.
O diretor Pascoal ainda não havia chegado, mas ele era o típico
homem que se achava o centro do universo, chegando atrasado e fazendo
um alarde. Enquanto isso, Afonso ia dando um de anfitrião, falando os
informes de última hora e as regras de boa convivência. Como se fosse
adiantar alguma coisa.
Me ajeitei sobre a cadeira escolar, segurando a pasta com força.
Estava tão focada no que Afonso dizia, esperando finalmente a hora que ele
iria abrir os portões do inferno, que tomei um susto quando senti um toque
em meu braço.
— Oi. — A voz rouca de Ezequiel fez meus pelos eriçarem.
Girei meu rosto na sua direção e notei que ele havia sentado na
cadeira ao lado. Parei uns segundos para analisar seu look que, assim como
o meu, era monocromático, a diferença era que ele estava todo de preto.
A camisa de botão se ajustava ao seu corpo, fazendo os músculos,
que eu não sabia que existiam, saltarem. Os cabelos, ainda úmidos, caiam
sobre a testa, desordenados. Meus olhos mais uma vez varreram seu corpo e
quando eu notei que os dois últimos botões da camisa, aqueles próximos ao
pescoço, estavam abertos, quase me inclinei para olhar o pedaço de pele
que aparecia ali. Foi nesse momento que percebi que era a hora de fechar a
boca e responder seu comprimento.
— Oi. — Minha voz saiu fraca.
— Está tudo bem com você? — questionou, próximo demais, o
perfume amadeirado suave a ponto de não afetar minha rinite, e por um
momento esqueci como formar palavras.
Balancei a cabeça em concordância, indicando que estava tudo bem,
mesmo que minha língua tenha decidido me deixar na mão, como se tivesse
sido engolida pelo gato. E considerando que Ezequiel realmente estava
atraente, o ditado popular só podia ser verdade.
— Tem certeza? — perguntou.
— Que você é um gato? — respondi de imediato e só então percebi
que minha voz não só tinha voltado, mas também saído em alto e bom som.
— Quê?! — Ezequiel arqueou uma das sobrancelhas e eu quis enfiar
minha cara dentro de um buraco, daqueles que atravessam o mundo e vão
parar na China.
¡Maldita sea! Qué demonios estoy haciendo!
— Nada — comentei sentindo meu rosto queimar, foi então que um
milagre aconteceu, Pascoal chegou para me salvar. — Olha, o diretor
chegou, a reunião vai começar.
Ezequiel virou em direção a Pascoal no mesmo instante, se tornando
rígido a ponto de os nós de seus dedos ficarem brancos de tanto ele apertar
o tampo da carteira escolar. Eu não tive tempo de pensar em seu gesto
inusitado, já que o diretor já chegou causando.
— Sejam bem-vindos à melhor escola do Piauí. — Ele abriu os
braços fazendo com que os botões de sua camisa branca quase saltassem
para fora, diante da barriga sobressaltada.
Alguns muxoxos soaram vindo dos pais e até mesmo professores e a
quase cópia do Leôncio do Pica-Pau não deixou barato.
— Alguém discorda do meu comentário? — questionou olhando as
pessoas com cara de poucos amigos.
Uma pessoa levantou a mão e como não reconheci como sendo
professor só pude imaginar que era um dos pais. A mulher não esperou que
o diretor lhe passasse a fala e já foi se levantando.
— Se fosse a melhor escola não teria permitido que um aluno com
catapora frequentasse as aulas.
Pronto! A momentânea paz que havia durado menos de dez minutos
tinha chegado ao fim. O pai de Otávio também se levantou, mas não
consegui escutar o que ele disse, já que outras pessoas também acharam que
ficar de pé era a regra e não a exceção e logo uma algazarra começou.
— É sempre assim? — Ezequiel perguntou e eu bufei.
— Acredite, esse ano está bom, contanto que ninguém grite seu
nome você, vai sobreviver.
Estalei os dedos como se estivesse pronta para entrar em um ringue
e apurei os ouvidos para o caso de meu nome escapar pela boca de alguém.
E de fato, em algum momento escapou, só que em vez de colocarem a culpa
em mim estavam me fazendo de vítima, dizendo que eu era um exemplo do
que poderia ocorrer com as crianças e que eu deveria processar a escola e
ficar milionária. A ideia não soou nada má, até que eu vi Ezequiel fazendo
uma careta.
— Ei, não leve isso aqui a sério. — Apontei para as pessoas que
discutiam ferozmente.
— Elas têm razão. — Ele se levantou, pronto para assumir a culpa.
Ele só não sabia que fazer aquilo seria pior. Eu conhecia reunião de
pais e mestres suficiente para saber que o melhor a fazer era tentar passar
despercebido. Sim, eu usava um terninho vermelho e poderia ser tudo,
menos discreta, mas eu tinha anos de prática. Ezequiel ia ser engolido,
massacrado, e por mais que eu soubesse que ele era do tipo que rebatia,
sabia também que ele não ia aguentar.
— Por que não vamos tomar um ar? — indiquei com a cabeça a
porta de saída.
Ezequiel se mostrou reticente, mas então balançou a cabeça em
concordância. Aproveitei que Afonso estava separando dois participantes
que pareciam prestes a se socar, e que Pascoal palitava os dentes, para puxar
a mão de Ezequiel e levá-lo até a porta da sala que dava direto no corredor.
A escola estava bem iluminada, como nunca tinha estado antes, não
àquela hora da noite e soltei sua mão assim deixamos a cacofonia de
barulho e confusões para trás.
— Eu duvido que Harvard seja tão bagunçada assim. — Sorri,
andando pelo corredor em direção ao estacionamento.
— Nem um pouco. — Ezequiel respondeu, me acompanhando,
enfiando a mão nos bolsos.
Mesmo tendo começado a reunião, pessoas ainda chegavam,
correndo por meio dos carros, os passos amortecidos sobre a terra batida.
Um casal de mãos dadas passou por nós com um sorriso amarelo no rosto e
eu pensei que, assim como eu, talvez os pais também odiassem aquele
encontro. Me encostei sobre um carro desconhecido, tendo o cuidado para
não amassar a lataria do que parecia ser um automóvel de luxo que valeria
provavelmente o preço de vários anos do meu aluguel.
Ezequiel olhou quando apoiei meu bumbum na porta do carro e
soltou um riso contido.
— O que foi? — perguntei, cruzando os braços.
— Nada não. — Passou a mão pelos cabelos. — Não precisa ficar
na defensiva. Pensei que já tínhamos passado dessa fase.
Eu não sabia em que fase estávamos, se é que estávamos de fato em
alguma fase. O fato é que ele conhecia os meus segredos e também
havíamos quase nos beijado, embora tudo tivesse sido parte de um plano.
Talvez ele tivesse razão. Eu não precisava temer. Não ele.
Encarei Ezequiel por um tempo, notando mais uma vez que ele
realmente ficava elegante trajando preto e vi quando seus orbes se fixaram
nos meus e logo depois na minha boca. Foi um movimento quase
imperceptível. Eu, entretanto, era uma pessoa observadora, principalmente
depois de ter ficado tanto tempo sem perceber o que acontecia diante dos
meus olhos.
— Eu... — falamos ao mesmo tempo e então ele riu.
— Primeiro você. — Ezequiel comentou.
— Não, pode falar — disse, curiosa, sentindo meu coração dando
um salto dentro do peito, imaginando as infinitas possibilidades do que ele
poderia dizer.
— Eu preciso ir ao banheiro. Você me espera?
Meus ombros murcharam com sua fala e eu abri um sorriso amarelo.
— Claro.
Ezequiel deu meia volta e seguiu para dentro do edifício. Eu
continuei de braços cruzados tentando, em vão, não admirar as costas largas
que ele tinha.
Chutei uma pedrinha que havia próximo ao meu scarpin preto, me
sentindo momentaneamente sozinha. Eu havia saído cedo da casa dos meus
pais, não porque eles não me quisessem por lá, pelo contrário, se eu me
acomodasse me deixariam viver a eternidade junto com eles, mas porque eu
queria ser independente.
Foi natural escolher espanhol como curso, uma vez que eu sentia
dentro de mim o sangue hispânico correndo das veias. Me apaixonei por
crianças e pelo ato de ensinar durante todo o processo e, apesar do estresse
diário e do cansaço no final de cada bimestre, eu me sentia feliz. Mas se eu
gostava daquilo, então por que nos últimos tempos eu sentia que faltava
algo?
Escutei passos perto de mim e levantei o rosto, deixando as
pedrinhas de lado, pronta para encontrar Ezequiel ali. Quem eu vi,
entretanto, fez meus pelos arrepiarem.
♪ Querida, querida, por favor, se você já, já se sentiu
Como um nada, você é perfeita pra caralho pra mim ♪
:::F**kin' Perfect – P!nk:::

ISAAC ALMEIDA

Até no banheiro estava tendo confusão. Isabela não brincou quando


disse que era para eu vir armado. Só não pensei que precisaria quase que
literalmente. Dois pais se agarravam pelo pescoço, um acusando o outro de
olhar o pau enquanto estava mijando.
Parecia até que um vírus havia se infiltrado na escola, pior que o da
catapora, o vírus do desrespeito, raiva e rancor. Dentro da sala de reuniões o
clima estava caótico. Pessoas gritando, apontando o dedo na cara do outro
e, praticamente, cuspindo insultos. Enquanto isso, o diretor Pascoal nada
fazia, pelo contrário, parecia se divertir. Afonso ainda tentava acalmar os
ânimos, mas verdade seja dita, os outros estavam gostando do caos. Era
quase como se os pais estivessem se preparado o bimestre todo para a briga,
enquanto os professores, como Isabela falou, estivessem se armando para se
defender. Eu mesmo estava pronto para entrar no meio, assumir a culpa no
caso da catapora e fazer meu papel de bom professor, me desculpar e seguir
a missão, só que Isabela não deixou.
A escola não era um ambiente saudável, até mesmo para mim,
acostumado aos piores tipos de ambientes possíveis. Eu podia compreender
porque professores viviam estressados.
Respirei fundo enquanto os homens brigavam perto dos mictórios.
Fingi que não estava escutando os xingamentos e me aliviei apressado. Se a
escola estava daquele nível, talvez não tivesse sido boa ideia deixar Isabela
sozinha. Lavei as mãos após fechar o zíper e, com elas ainda molhadas por
falta de papel toalha, segui pelo corredor que, ao contrário da sala de
reuniões, estava vazio.
Quando cheguei no estacionamento, Isabela ainda estava ali, o corpo
tocando a superfície da minha BMW e um sorriso natural invadiu meus
lábios. Só que algo não estava certo. Uma pessoa segurava o ombro de
Isabela e sua expressão não parecia nem um pouco contente, pelo contrário.
A mão fechada em punho e a respiração acelerada demonstravam que ela
estava nervosa, talvez apavorada.
Acelerei meus passos, sentindo meu estômago se revirar,
preocupado que fosse um pai de aluno raivoso. No entanto, quando escutei
a voz do homem que estava conversando com Isabela, congelei.
— Você vai fazer o quê, por acaso? Chamar a polícia de novo? —
seu timbre era frio e venenoso e a simples menção da palavra “polícia” fez
eu ficar em alerta.
Toquei minha cintura, em um gesto automático, buscando minha
arma ali, mas sabia, melhor que ninguém, que eu sempre a mantinha em
casa quando estava trabalhando disfarçado.
— Me largue. — Isabela protestou e eu não perdi mais tempo.
Ela não precisou pedir de novo, já que eu agi imediatamente.
Cheguei retirando a mão do homem com um tapa, como se ele fosse um
inseto indesejado que estivesse pousando onde não devia. Onde eu não
permitiria.
— Você não ouviu o que ela falou? — minha voz saiu gutural,
grave, beirando a selvageria.
Cruzei os braços, me pondo entre os dois, mas desejando puxar a
cintura de Isabela, trazendo-a para perto de mim, porém com medo da
reação dela ao meu toque.
O homem olhou para mim, pronto para rebater, mas o barulho de
pessoas entrando no estacionamento chamou sua atenção. Ele não queria ser
visto. Por mais que usasse uma roupa comum, uma camiseta branca e uma
calça jeans, ele não queria ser notado, já que virou o rosto quando um grupo
de três pessoas passaram ao nosso lado. Logo depois, entretanto, ele me
analisou dos pés à cabeça, uma carranca tornando seu rosto jovem com um
aspecto monstruoso. Sim, o ex de Isabela exalava crueldade, desde seu
olhar sombrio até os lábios cerrados com fúria. Eu não sabia o que tinha
acontecido, como ele havia chegado ali, mas não iria permitir que
continuasse o que quer que estivesse fazendo.
Abri minha boca para confrontá-lo, e então seus orbes desviaram de
mim para Isabela em um aviso silencioso de que ainda não tinha acabado, e,
como se nada tivesse acontecido, saiu caminhando devagar, indo embora.
Sua ousadia foi demais para mim, dei um passe em sua direção,
pronto para não deixar barato, a mão de Isabela, entretanto, segurou meu
braço, impedindo o movimento.
Virei o rosto para ela, que mantinha a atenção no chão, e então
parei.
— Você está bem? — questionei, sentindo a ira me invadir.
— Estou. — Ela soltou meu braço, com a voz fraca demais.
— Quer que eu lhe deixe em casa?
— Não precisa, meu carro está logo ali. — Isabela apontou para o
Ford Ka que eu já conhecia e seguiu caminhando na direção do seu
automóvel, sem dizer um até logo, apenas seguindo adiante, as pernas
vacilantes.
Tudo pareceu tão errado, o encontro com o ex, a dor que ele ainda
causava nela. Ver ela escapando do que parecia querer consumi-la, me
abalou. Eu não iria virar as costas e voltar para a reunião. Não. Eu não iria
me afastar, mesmo que em meu cérebro fosse o melhor a fazer.
— Tem certeza? — perguntei, não desistindo.
Isabela então virou na minha direção, o terninho vermelho, que
antes trazia toda a sua vibração, pareceu apagado naquele momento. Ela
balançou a cabeça, negando minha carona e eu suspirei.
Não ia impor nada, mas não iria ficar quieto. Quando ela entrou no
carro e saiu, entrei na minha BMW e a segui de longe. Eu não era a porra de
um stalker, mas não ia deixá-la desprotegida tendo um maluco à solta.
Aproveitei para ligar para polícia, eu precisava dar um jeito de afastar
aquele lunático de Isabela.
Mantive meu carro há alguns metros de distância e parei em frente
ao seu prédio quando ela entrou no estacionamento, colocando o automóvel
na vaga descoberta. Eu iria estar vigilante, para o caso do ex, maluco,
aparecer. Ia ficar de vigília, nem que passasse a porra da noite toda ali.
Entretanto, algo chamou a atenção. Uma movimentação. Através da
grade que cercava a edificação, vi que, ao invés de Isabela seguir para a
entrada do seu bloco, caminhou na direção da portaria e depois atravessou a
rua. Merda! Ela tinha me visto e estava vindo até mim.
Puxei meu celular quando ela bateu com os nós do dedo indicador
no vidro do meu carro. Baixei o vidro tentando fazer cara de paisagem, mas
até eu sabia que não enganaria ninguém.
— O que você está fazendo? — Isabela questionou.
— Estou mexendo nas minhas redes sociais — menti, de forma
descarada, balançando meu celular em sua direção.
— Você não tem redes sociais. — O tom confiante de sua voz fez eu
vacilar.
— Como você sabe? — questionei, me ajeitando sobre o banco do
carro. — Por acaso andou me investigado?
— Você disse que eu poderia colocar seu nome no Google. — Ela
deu de ombros e eu abri a boca, sem acreditar que ela realmente havia feito
aquilo. — Você não precisa me vigiar.
— Você já olhou seu porteiro? Ele não impediria seu ex de entrar no
prédio.
Isabela se encolheu ao notar que eu sabia quem era o homem e
arranhou a garganta antes de dizer.
— Ezequiel, não precisa se preocupar...
— Escute, você não precisa se preocupar, não enquanto eu estiver
aqui.
Ela me encarou, esperando encontrar alguma mentira ali, mas para
alguém que vivia enganando as pessoas, eu nunca tinha falado tão sério na
minha vida.
Ficamos segundos em silêncio e a única coisa que eu escutava eram
as próprias batidas do meu coração. Eu sabia que não era uma brincadeira,
nem mesmo um jogo, mas dessa vez eu não iria desviar meus olhos de
Isabela, ia me manter firme, como a promessa que tinha feito em protegê-la.
Foi ela quem desviou primeiro, as íris indo parar no meu carro, e só
então ela deu um sorrisinho.
— Não acredito que estava encostada no seu carro e você não disse
nada.
— Foi divertido ver você tendo cuidado — eu disse, abrindo a porta
do veículo e saindo. — É melhor você ir para casa, já está tarde.
— Você vai ficar aqui, do lado de fora do meu prédio? — Isabela
perguntou.
— Acredite, já fiz coisas muito piores do que ter que passar a noite
dentro de um carro.
Isabela mordeu o lábio inferior e respirou fundo três vezes. Eu já
estava pronto para perguntar o que ela queria quando indagou:
— Você quer dormir comigo? Quer dizer, no meu apartamento? —
sua fala saiu apressada e mesmo àquela hora da noite, pude ver sua
bochecha adquirindo um leve tom rubro.
Tudo dizia para eu negar seu pedido. O policial dentro de mim
sussurrava em meu ouvido que não era uma boa ideia, que aquilo não fazia
parte da missão e que não fazia sentido me envolver.
Encarando Isabela, entretanto, os olhos em expectativa, os cabelos
balançando pela leve rajada de vento, as mãos envolvendo o próprio corpo
em um abraço, eu não pude dizer não.
E ali eu soube que se mil vezes ela perguntasse aquilo, mil vezes eu
daria a mesma resposta.
— Sim. Eu quero.
♪ Esse mundo pode te machucar
Te cortar profundamente e deixar uma cicatriz ♪
:::Nothing breaks like a heart – Miley Cyrus:::

ISABELA MARTINS

Só entendi o que estava acontecendo quando o corpanzil de


Ezequiel afundou sobre meu sofá de dois lugares. Até então eu parecia
anestesiada depois que havia encontrado Martin. Eu nem percebi quando
entrei no carro e fui em direção ao meu apê e muito menos quando convidei
Ezequiel para dormir comigo. Ainda assim, ali estava ele, o sapato social
colocado próximo à porta e os pés de fora do estofado que era pequeno
demais para ele.
Abri a boca sem emitir som, querendo voltar atrás e pedir para ele ir
embora, mas desejando que ele ficasse ali. Porque, se existisse a mínima
possibilidade de Martin vir atrás de mim, eu não queria estar só.
— Vou pegar um lençol para você — falei, ainda sem acreditar que
tudo aquilo estava acontecendo.
Martin havia aparecido do nada e, quando perguntei sobre o que
estava fazendo ali, disse com a expressão cheia de deboche que ouviu falar
sobre a reunião de pais e mestres e que tinha sentido minha falta.
Fazia anos que não nos víamos, mesmo assim pareceu tão nítido
sentir suas mãos em volta da minha garganta. Fechei os olhos, segurando o
lençol com força. Eu estava naquela situação por causa de um homem e ali
estava eu, convidando outro para dentro da minha casa.
— Está tudo bem aí? — A voz de Ezequiel soou do outro lado da
porta do meu quarto, me despertando, e eu percebi que era injusto colocar
ele no mesmo patamar que meu ex. Respirei fundo antes de seguir até onde
ele estava.
— Sim, você vai precisar de mais alguma coisa? — perguntei,
afastando a linha de pensamentos que insistia em me invadir.
— Não, está ótimo assim. — Ele pegou o lençol da minha mão e
seguiu até a sala.
Voltei para meu quarto e me joguei sobre a cama, o tecido do
terninho vermelho se amassando no processo. De todas as reuniões de pais
e mestres, aquela havia sido a pior, e olha que eu já tinha participado de
uma em que a mãe de uma aluna puxou meus cabelos.
De nada adiantou meus preparativos de guerra, minha roupa estilo
advogada, minha pasta de informações. Tudo foi por água abaixo quando
encontrei Martin. Ele não era uma guerra, era o próprio apocalipse.
No começo parecia um paraíso, um homem doce, presente, que
adorava ouvir o que eu tinha a falar, depois foi ficando frio, distante,
irritado com tudo. Cheguei a pensar que o problema talvez fosse eu, que o
deixava zangado ou que fazia algo errado. Demorei a perceber que não era
minha culpa. Nunca foi.
Doía aceitar que eu havia sido vítima de violência, parecia o tipo de
coisa que só acontecia com as outras pessoas. Doía mais ainda ver que
ninguém estava nem aí e não fazia nada. O máximo que tinha conseguido
foi uma ordem de restrição. No entanto, ontem, ali estava ele, ao meu lado.
Eu não tinha tido coragem de falar com meus pais. Primeiro por vergonha,
porque no começo, eu pensava que a culpa era minha, mesmo não sendo.
Depois só pensei que não faria bem a eles obter uma informação daquelas.
Depois de terapia, potes de sorvetes e muitos doramas e músicas da
Shakira, eu pensei que estava tudo bem. Mas ver Martin impune e sendo
ainda a mesma pessoa foi demais para mim. Não sei o que teria acontecido
se não fosse por Ezequiel.
Abri a gaveta da mesinha de cabeceira e tirei um spray de pimenta
de dentro. Comprei logo após trocar a fechadura do apartamento quando
meu relacionamento com Martin chegou ao fim, mas havia deixado o objeto
ali, mofando. Estava de hora de carregar ele na bolsa, já que não podia
confiar na polícia ou mesmo na justiça.
Com os dedos envolvidos sobre a latinha, saltei da cama,
determinada, e peguei minha bolsa, guardando a pequena arma dentro dela.
Um barulho vindo da cozinha chamou minha atenção e quando
cheguei à cozinha vi que Ezequiel tinha derrubado um copo.
— Desculpe, acordei você? — Ezequiel questionou.
— Não estava dormindo. Você tem sorte que eu só uso copos de
plástico. — Apontei para o objeto que ainda estava no chão.
— Algo contra os de vidro? — ele perguntou, se abaixando para
pegar.
— Sim, eles quebram e fazem um estrago.
Ezequiel riu, colocando o copo sobre a bancada de granito que
dividia a cozinha da sala. Vendo-o tão perto, pude notar sua camisa
marcando seus bíceps e um calor acima do normal, até mesmo para
Teresina, perpassou meu corpo.
— Bela, — o apelido que ninguém nunca me chamava, saindo por
sua voz grave, chamou minha atenção. — você não pode ser contra algo só
porque quebra. Afinal, todas as coisas quebram, até mesmo nossos
corações.
Eu sabia do que ele estava falando. Ezequiel tinha razão e, pela
primeira vez, concordar com ele foi fácil.
— Você já teve seu coração quebrado? — a pergunta saiu por minha
garganta, rápida.
Ele coçou sua cabeça, como um garoto travesso e respondeu:
— Claro.
— Quem foi a mulher? — questionei, sentindo a curiosidade me
consumir. Não era o caminho que queria seguir, mas parecia mais fácil do
que pensar em mim mesma ou em Martin. Saber mais sobre Ezequiel, de
certa forma, me tranquilizava.
— Quem disse que foi uma mulher? — Ele perguntou, cruzando os
braços sobre o peito.
— Foi um homem? — perguntei, erguendo uma das sobrancelhas.
Ezequiel atravessou o espaço entre nós, ficando a poucos
centímetros de mim, e em seguida mordeu o lábio inferior, escondendo um
sorriso.
— Você acha que eu sou gay? — foi a vez dele erguer a
sobrancelha.
E eu engoli a saliva que se formou em minha garganta quando
lembrei do nosso quase beijo, do seu corpo colado ao meu, e a mão na
minha cintura.
— Não... — Minha voz saiu fraca, vacilante.
— Prometo que ficarei quietinho no seu sofá e você nem vai
lembrar da minha existência.
Ezequiel sorriu, um riso sincero, como se achasse graça das minhas
indagações e seguiu andando até o sofá, onde afundou seu corpo, colocando
os braços por baixo da cabeça, como um travesseiro. Fiquei sem ação,
querendo sair dali, mas ao mesmo tempo sem querer voltar para o quarto.
Eu sabia que entre os lençóis, meus pensamentos poderiam divagar.
— Você vai mesmo dormir? — perguntei dando a volta na sala e
parando de frente para o sofá.
— E você não? — perguntou.
— Como quer me proteger se estiver dormindo?
— Meus ouvidos são ótimos — comentou, ainda na mesma posição.
— Humpf! No creo que escuchas bien.
Ezequiel tirou os braços atrás da cabeça e se sentou no sofá, os
olhos escuros na minha direção.
— Não é justo ficar resmungando em espanhol. Vamos, diga, o que
você quer?
— Quem disse que eu quero alguma coisa? — rebati, sentindo a
energia caótica que sempre envolvia nossas discussões de volta.
— Você voltou a implicar comigo, no mínimo espera algo de mim.
— Ezequiel tocou a testa, o dedo passando pela cicatriz. — Não vai deixar
eu dormir, né?
Sim, eu era a pior anfitriã de todas. Eu deveria agradecer que ele
estava disposto a cuidar de mim, mas ali estava eu, ainda usando terninho e
bombardeando-o com palavras, porque eu própria tinha medo de voltar ao
quarto.
— Eu acho que não vou conseguir dormir. — Fui sincera, esperando
seu deboche, o que Ezequiel fez, entretanto, só me mostrou que eu tinha
acertado em convidá-lo para dormir no meu apê.
Ele afastou o corpo para um dos cantos do sofá e bateu com a palma
da mão na superfície do tecido, me convidado a me sentar ao seu lado. Não
pensei duas vezes e me deixei desabar sobre o sofá, que pareceu pequeno
demais para nós dois.
— Quer conversar sobre o encontro com seu ex? — Ezequiel foi tão
direto que me engasguei.
— Não quero falar sobre o Martin — respondi.
— Então o nome dele é Martin?
Dios mio! Como eu tinha deixado escapar o nome do meu ex de
modo tão rápido?! Arranhei a garganta e fiz minha melhor cara de
paisagem.
— Quer assistir um filme? — perguntei, fugindo de sua pergunta.
— É tão difícil assim, falar sobre ele? — Ezequiel tocou uma mecha
de meu cabelo e a colocou por trás da minha orelha em um gesto que
Martin tinha feito inúmeras vezes, mas nunca de forma tão delicada, nunca
com os olhos fixos nos meus sem qualquer malícia.
— Sim, é difícil. — Me deixei levar pela calmaria que Ezequiel
transmitia, parecia fácil desabafar quando ele era o ouvinte. —É difícil
entender que alguém que faz parte das nossas vidas nos machuca.
Os dedos de Ezequiel saíram do meu cabelo e foram parar nas
próprias coxas, por cima da calça jeans preta. Ele me olhou por um
segundo, o silêncio entre nós apenas atrapalhado pelo barulho do ventilador.
Encarei-o de volta, esperando ver em seu semblante pena, porém, tudo o
que vi foi um brilho diferente de qualquer outro que já tinha visto no meio
de seus orbes. Seria orgulho?
— Três mulheres são vítimas de feminicídio por dia. Em quase
noventa por cento dos casos, o autor é o companheiro ou ex companheiro.
— Ezequiel fechou as mãos em punhos. — São dados grotescos, beirando
ao absurdo. Você conseguiu se livrar de seu agressor, mas muitas mulheres
não conseguem.
Eu sabia exatamente do que ele estava falando. Busquei conhecer
mais sobre o tema depois que Martin me agrediu e vi que os números de
casos eram extremamente altos, por isso fiquei surpresa ao perceber que
Ezequiel parecia dominar o assunto.
— Como você sabe disso? — perguntei, curiosa.
— Meu pai era policial, lidava com muitos casos desse tipo, então
acabei me mantendo atualizado. Por isso, sei que é importante eu estar aqui,
porque Martin já deu avisos de que é perigoso.
— Obrigada. — Agradeci e levei minhas mãos até as suas. Ezequiel
trincou a mandíbula no mesmo instante, se tornando rígido ao meu toque.
— Você não precisa ter medo de me tocar.
Eu percebia que sempre que me aproximava dele, ele ficava tenso,
quase como se prendesse a respiração. Logo após a agressão, foi difícil de
lidar com a aproximação das pessoas, principalmente de homens, mas o
tempo me levou a perceber que o culpado era um em especial. Martin. E
apenas ele. Ninguém mais tinha culpa. Eu não tinha culpa. Ezequiel não
tinha culpa.
— Sim, eu preciso — ele falou, quase em um sussurro, a voz doce
como eu nunca havia ouvido. Ergui uma sobrancelha com seu comentário e
ele, vendo minha surpresa, continuou. — Você não usa copos de vidro,
porque quebra, eu os uso, mas tenho cuidado ao manusear, porque sei
exatamente o que acontece se eu não for cuidadoso.
Encarei Ezequiel, vendo a preocupação em seu olhar. Sua atitude
comigo fez meu estômago se remoer dentro de mim e um quentinho se
espalhar por meu peito. Ele, diferente de Martin, não era do tipo que só
falava palavras bonitas, ele agia com bondade e, mesmo sendo uma pessoa
que eu mal conhecia, fazia eu me sentir segura. Como se meu corpo
respondesse à sua preocupação genuína, me deixei relaxar e abri minha
boca em um bocejo, sentindo o peso do sono finalmente cair sobre meus
ombros. Me levantei do sofá, esticando meus braços para cima no meio do
processo. O corpo cobrando o preço do cansaço. Passei a mão pelo blazer
abarrotado e depois pelos meus cabelos e me despedi de Ezequiel.
— Já vai dormir? — ele questionou. — Pensei que ia passar a noite
em claro.
— Não preciso mais me preocupar. — Falei, dando as costas para
ele e seguindo em direção ao hall que dava acesso aos outros cômodos.
Antes de entrar no meu quarto, entretanto, completei. — Porque se eu cair,
sei que vai me segurar.
♪ Grite, grite, ponha tudo para fora
Estas são as coisas sem as quais posso sobreviver ♪
:::Shout – Tears for fears:::

ISAAC ALMEIDA
Talvez Isabela tenha conseguido dormir, mas eu definitivamente
não. Suas últimas palavras ficaram ecoando na minha cabeça. Sim, ela
estava certa, eu iria segurá-la, independentemente do motivo da queda, e
isso mostrava o quão perdido eu estava.
Eu tinha participado de mais casos do que minha memória era capaz
de lembrar e em nenhum deles saí fazendo coisas fora do meu
planejamento. Alguma coisa em Isabela, entretanto, mexia com meu
cérebro, me deixando sempre confuso e perdido. E uma prova disso foi
quando ela entrou na sala vestindo apenas um pijama e meu pau deu sinal
de vida. Sim, provavelmente porque era de manhã cedo, o que era comum
de acontecer, e não porque ela estava deslumbrante usando roupas
semitransparentes e pequenas.
— Bom dia — ela disse, passando por detrás do sofá e indo até a
geladeira, onde retirou uma garrafa d’água e despejou o conteúdo em um
copo, mandando depois, goela adentro.
— Bom dia. — Minha voz saiu rouca e eu cobri minha ereção com a
mão mesmo sabendo que dali de onde ela estava não veria nada.
Isabela não precisava que eu a assustasse com meu pau duro,
quando na noite passada tinha confiado em mim para protegê-la.
— Você está bem? Parece rouco.
— O ventilador deve ter irritado minha garganta — menti
descaradamente, enquanto tentava, via pensamento, fazer minha ereção
desaparecer.
— Quer um pouco de água? — Ainda segurando o próprio copo,
Isabela deu um passo em direção à sala, mas eu me sentei subitamente e
estendi a palma da minha mão na sua direção, fazendo um gesto para que
parasse.
— NÃO!!! — gritei meio desesperado, o que fez Isabela parar onde
estava. Por isso, inventei a primeira desculpa que veio à minha cabeça. —
Beber água em jejum faz mal.
— Não é o contrário? — ela perguntou, coçando o queixo com a
mão livre.
Merda! Eu era muito burro!
— Você tem razão. — Cocei minha nuca, tentando despistar. —
Acho que me confundi. Desculpe.
Isabela então continuou a caminhar em minha direção, e eu senti
alívio por ter conseguido normalizar a minha situação.
— Você parece que é devagar quando acorda — falou se sentando
ao meu lado e colocando os pés sobre a mesinha de centro redonda,
exatamente como Fernando costumava fazer em meu apartamento.
Ela não tinha noção do quanto eu poderia ser veloz, e era justamente
por esse tipo de pensamento que eu não sabia o que fazer quando estava
próximo à Isabela. Só balancei a cabeça, confirmando, e ela pegou o
controle e ligou a televisão.
— O que você pretende fazer hoje? — perguntou, passando pelos
canais sem parar em nenhum em específico.
— Por quê? Está querendo me convidar para alguma coisa? —
indaguei, com um sorriso nos lábios.
— Na verdade estava querendo cobrar sua promessa. — Ela deixou
o copo sobre a mesinha, tirou os pés dali e se virou para mim.
Algumas pequenas marquinhas de catapora ainda podiam ser vistas
em sua pele, uma no braço, outra próxima do colo e uma pequenininha na
ponta do nariz. Incrível como tudo nela ficava lindo.
— Qual delas? — arqueei as sobrancelhas, formando um vinco entre
elas.
— A de me levar na sorveteria.
Ela gostava mesmo de sorvetes. Eu podia compreender que Teresina
era quente e algo gelado sempre era bom, mas começava a achar que seu
amor pela sobremesa era quase um vício.
— Seu desejo é uma ordem — falei, fazendo uma reverência estilo
os príncipes da Disney faziam diante de suas princesas.
— Não, sua promessa é uma dívida.
Sorri, ela estava de bom humor e isso significava que o puto do
Martin não a havia destruído a ponto de não se reerguer. Isabela era uma
guerreira e cada vez mais eu a admirava.
— Tem razão. Vou para casa me arrumar e volto para buscar você,
tudo bem? — me levantei e segui até a porta, pegando meus sapatos no
caminho.
— Ótimo!
Me despedi e fui para casa, me jogando sobre a cama assim que
entrei no meu quarto. Eu estava com sono, cansado e bem que merecia tirar
uma soneca, mas sabia que não dava tempo, então deixei a maciez do
colchão e entrei debaixo do chuveiro. Teresina merecia ser estudada, era
uma cidade quente, ainda assim, de manhã, a água que saía pelo chuveiro
era sempre gelada.
Saí do banheiro desperto, despido, e perambulei pelo quarto até o
guarda-roupa. Abri a porta de correr e vi minha algema ali, repousando
dentro da primeira gaveta, aquela que usava para guardar cuecas e meias.
Puxei uma boxer preta e peguei também uma calça e uma blusa do Asa
Noturno. Àquela altura do campeonato, eu já tinha mostrado tanto do meu
verdadeiro eu à Isabela que roupas diferentes das que usava não seriam
necessárias.
Quando eu cheguei no prédio de Isabela, não precisei entrar no
edifício, já que ela estava na portaria, conversando com o porteiro. Fiquei
um tempo dentro do carro, apreciando cada detalhe da mulher que
ameaçava minha sanidade. O vestido vermelho cheio de florzinhas seguia
até o meio da coxa, mostrando a sua vivacidade. As sandálias de tom
marfim possuíam saltos, ainda assim ela estaria longe da minha altura.
O que chamou a atenção, entretanto, não foi o batom vermelho
sobre a boca, ou a leve maquiagem que ela possuía nos olhos: foram os
cabelos. Pela primeira vez, vi Isabela de cabelo amarrado. Seus fios
castanhos balançavam em um rabo de cavalo, deixando boa parte do
pescoço à mostra, sem escondê-lo, e para mim aquilo só podia significar
uma coisa. Liberdade.
Saí do carro chegando de fininho, percebendo que ela conversava
sobre doramas e eu não aguentei e sorri. Isabela virou na minha direção,
surpresa por me ver ali, e então se despediu do senhorzinho.
— Está rindo de quê? — perguntou, me seguindo até meu carro.
Abri a porta para ela, que se acomodou sobre o banco de couro. Fiz
a volta no carro e me sentei sobre o banco do motorista, girando a chave na
ignição. Só então a respondi.
— Você realmente acha que as pessoas assistem esse negócio de
dorama?
— Claro! Você está desatualizado, os doramas estão famosos, até
mesmo a Netflix já percebeu. E fique sabendo que a esposa de seu Ramón
ama as novelas coreanas. — Ela cruzou os braços, ressentida.
— Vou acreditar em você. — Revirei os olhos, e contive meu
sorriso, que insistia em aparecer toda vez que Isabela estava presente.
— Posso ligar seu som? — perguntou quando acelerei.
— Fique à vontade. — Apontei para o painel touchscreen e ela
começou a mexer nos ícones procurando alguma música que a agradasse.
— Qual é, você só tem música velha, só som da década de oitenta.
— Eu sou da década de oitenta. Está me chamando de velho? —
tirei meus olhos da rodovia por um segundo e a observei. Peguei-a
encarando minha mão na marcha e quando ela percebeu que tinha sido
descoberta, desviou a atenção para meu rosto.
— Você não é velho, é só careta.
— Por que diz que sou careta? — perguntei, genuinamente curioso.
Fernando vez ou outra me chamava assim também.
Isabela apontou para minha camisa e franziu o nariz. A pequena
marquinha de catapora ficando um pouco mais nítida.
— Você gosta de super-heróis.
— Eles não estão mais na moda? — indaguei, estacionando o carro
em frente ao parque Potycabana.
— Claro que não, a época de ouro dos filmes da Marvel já passou.
— Estalou os dedos, enfatizando o tempo passado.
— Mas o Asa Noturno não é da Marvel. — Desliguei o carro e
apoiei meus cotovelos sobre a direção, as mãos apoiando meu queixo.
— Eu sei, o problema, Ezequiel, é que a DC nunca teve uma época
de ouro.
— Ai, isso doeu. — Coloquei as mãos sobre o meu coração,
fingindo sentir um aperto ali, mas assim que olhei para ela ao meu lado,
encostada no banco de couro e com um sorriso nos lábios, a dor se tornou
realidade.
— Não sabia que aqui tinha uma sorveteria — ela disse, olhando
pela praça, os olhos semicerrados por conta da luz do sol.
Eu saí do carro e abri a porta para ela, como um cavalheiro, e ela
agradeceu com um balançar de cabeça. Isso não era um encontro, então por
que eu estava começando a me sentir nervoso? Enfiei a mão nos bolsos,
sem saber o que fazer com elas, e segui ao lado de Isabela, andando a esmo
pela praça. Algumas pessoas caminhavam pelo local, principalmente
famílias, e um toque de nostalgia me invadiu, me lembrando dos tempos
que eu ia ali, logo após me mudar do Mato Grosso do Sul para o Piauí.
— Ali. — Apontei para uma barraquinha colorida, onde uma
senhora montava sorvete para um par de crianças.
— Fazia tanto tempo que eu não vinha a esse local — Ela olhou ao
redor do parque, se admirando com o espaço arborizado e as quadras
esportivas.
— Eu e meu pai viemos algumas vezes aqui antes da reforma.
— Por que sua família deixou o Mato Grosso do Sul e veio para o
Piauí? — ela perguntou, andando quase saltitante em direção à pequena fila
formada somente por crianças.
— Meu pai passou no concurso da polícia militar daqui, então
viemos, eu, ele e minha mãe — respondi, com as mãos ainda nos bolsos.
— É a primeira vez que você fala da sua mãe — ela pontuou e eu
percebi que esperava uma resposta.
Eu poderia mentir, mudar de assunto, ou qualquer outra coisa do
tipo, mas curiosamente me vi compelido a dizer a verdade. Isabela tinha
esse poder sobre mim, fazer com que eu sempre quisesse ser honesto.
— Depois que meu pai morreu nos afastamos. Ela não aceitou
minha profissão, queria que eu fosse como ela, que é médica, que eu
salvasse vidas de verdade...
Senti o nó se formando em minha garganta. Toda vez que o assunto
vinha à tona eu me ressentia. Minha mãe dizia que médicos que salvavam
vidas, não policiais. Segundo ela policiais apenas davam a própria vida em
prol de outras pessoas, como se a vidas deles fossem insignificantes. Eu
sabia que ela tinha ficado abalada com a morte do Senhor Plínio, mas ele
não era insignificante por ter protegido aquela grávida durante o assalto, ele
era um herói, mas minha mãe, enlutada, nunca aceitou a decisão de meu pai
e depois a minha de seguir a carreira dele.
— Pode não parecer, mas a educação salva vidas sim — Isabela
comentou, parando de frente para mim e quase fazendo eu trombar com ela.
Abaixei meu rosto para fitar Isabela, uns centímetros mais baixa que
eu, e quis sorrir, ela realmente era uma mulher extraordinária.
— Você tem razão — me limitei a dizer, incapaz de me sentir bem
sabendo que estava mentindo para ela sobre quem eu era.
Ela girou os calcanhares de novo e seguiu até a barraquinha, onde as
crianças já haviam ido embora e a vendedora já esperava-nos com um
sorriso no rosto.
— Olá, bom dia. Esse sorvete amarelo é de quê? — Isabela apontou
para um dos depósitos que ficavam dentro do freezer.
— Bom dia, meus amores, é de cajá. — A senhora respondeu.
— Uau, amo sorvete de cajá e faz tempo que não como um, difícil
ver desse sabor nos supermercados — Isabela tagarelou.
— Toda a produção daqui eu mesma que faço. — Exibiu com
orgulho a velhinha.
— Eu vou querer o de cajá então. — Isabela bateu palmas. — E
você, Zeck?
— Zeck? — questionei, surpreso com o apelido que ela usou para
me chamar.
Isabela deu de ombros, como se fosse normal termos aquela
intimidade, mesmo após ela ter socado meu rosto há poucos dias.
— Eu não vou querer. Quanto deu? — puxei minha carteira e paguei
pelo sorvete dela e seguimos andando pelo parque, aproveitando o calor que
só a cidade era capaz de ofertar.
Várias pessoas caminhavam por uma pista de cooper e alguns casais
faziam piquenique em cima da grama. Eu sabia que ir àquele parque era
uma programação familiar. Eu mesmo já tinha ido diversas vezes com o Sr.
Plínio, enquanto a Sra. Maria do Carmo, minha mãe, estava atolada em
plantões médicos.
— Aqui é incrível — Isabela comentou, parando próximo a um
grupo que cantava ao som de violão. — Deveríamos vir mais vezes.
Suas palavras, vindas de forma tão natural, fizeram minha
respiração acelerar. Ela queria fazer aquilo mais vezes. Queria fazer aquilo
mais vezes COMIGO! E o mais importante, eu também queria.
Encarei Isabela, que me olhou de lado, o sorriso estampando os
lábios, o sorvete já na altura da boca, a língua pronta para lamber a
sobremesa gelada, e foi inevitável não engolir a saliva que se formou em
minha garganta.
Ela era linda em cada pequeno gesto, mesmo que muitos deles
fossem formados pelo caos. E, para alguém que buscava a calmaria, eu
aceitaria uma ou duas bagunças na minha vida, desde que vindas dela.
♪ Sou a vela que brinda com o fogo
Sou a dor e o esporro em quem se queimar ♪
::: Rosa dos ventos – Bruno Batista:::

ISABELA MARTINS

— Professora! — tomei um susto ao escutar o grito vindo de uma


criança com os braços abertos.
A garotinha, de maria chiquinha nos cabelos, veio correndo na
minha direção e eu me vi abrindo os braços para receber seu abraço
apertado. A ex-aluna quase derrubou meu sorvete, mas eu consegui
equilibrar a casquinha, quase como se fosse a Jean Grey, usando a força do
pensamento.
— Olá — respondi depois que ela me soltou.
— Tia Isa, que saudades. — A garota, cujo nome eu só sabia que
começava com “E” disse.
A mãe da menina apareceu logo em seguida, esbaforida, e estendeu
a mão na minha direção em um cumprimento.
— Desculpa, Érica saiu correndo quando te viu. — A mãe passou a
mão pelos cabelos bagunçados. — Ela vive comparando a nova professora
de espanhol com você.
Eu lembrava que aquela aluna tinha saído da escola porque os pais
haviam escolhido um colégio mais perto de casa.
— Ele é seu namorado? — A garota perguntou, apontando o dedo
para Ezequiel, e só então percebi que ele estava ao meu lado, a mão enfiada
no bolso desde que compramos o sorvete.
— Minha filha... — a mãe repreendeu, envergonhada.
— Ele é meu amigo — respondi à garotinha, que balançou a cabeça
em concordância.
— Queria participar da feira de línguas. — Érica mudou totalmente
de assunto e cruzou os braços. — Minha escola nova não vai participar.
— Que pena querida — comentei, pensando que eu também não
iria. Àquela altura, já estava atrasada para organizar as coisas e eu nunca
tinha falado nada com Ezequiel. — Eu também queria.
Érica ficou mais contente com a constatação de que eu não iria para
a feira também e, com um sorriso no rosto, deu tchau e foi embora.
— Por que tenho a impressão de que já ouvi falar dessa feira? —
Ezequiel perguntou, finalmente tirando as mãos do bolso e passando uma
delas pelo cabelo.
— Porque é um evento grande que as escolas costumam participar
— respondi, mordendo o último pedaço da casquinha crocante.
Ezequiel ergueu uma das sobrancelhas e se sentou em um banquinho
de madeira, cruzando uma perna sobre a outra.
— Não entendi por que você não vai participar.
— É uma feira onde os professores de espanhol e inglês têm que
montar uma apresentação com os alunos e não temos mais tempo de
combinar nada. — Dei de ombros.
Ele colocou a mão no queixo, pensativo, e ficou uns segundos em
silêncio para logo depois abrir um sorriso.
— Claro que temos tempo, vamos fazer isso — disse, confiante.
Me aproximei dele e me sentei ao seu lado no banco, esticando os
pés que mal tocavam no chão.
— Você tem certeza? Vai ser trabalhoso e teremos que trabalhar
juntos — questionei.
— Claro. Você quer isso, não é?
— Muito — confessei. — Ganhar significaria conquistar minha
viagem dos sonhos.
— Como assim? — Ezequiel perguntou.
— Quem conquistar o primeiro lugar ganha como prêmio uma
viagem para qualquer país de língua inglesa ou espanhola.
Ezequiel mordeu o lábio inferior em meio a um sorriso e inclinou a
cabeça, me analisando.
— Você quer muito isso, né?
— Claro, tenho muita vontade de conhecer a Espanha, terra do meu
avô — comentei. — Amo a Espanha tanto quanto amo doces após o
almoço.
Ezequiel se levantou e estendeu a mão na minha direção. Segurei
seus dedos e ele me puxou, fazendo eu ficar de pé ao seu lado.
— Temos muito a planejar — ele falou.
— Ei, calma, aqui está divertido, podemos planejar depois.
Ri com sua empolgação, eu queria muito ganhar, mas passear no
parque estava sendo um programa agradável. O sol havia desaparecido por
trás das nuvens, grupos familiares se divertiam entre piqueniques e eventos
esportivos e tinha, claro, o sorvete que melhorou meu humor em quase
duzentos por cento.
A companhia de Ezequiel só tornava o passeio melhor. Fazia tempo
que não saía para me divertir e ele era uma pessoa agradável e nada tinha a
ver com o fato de que ele queria participar da feira de línguas por minha
causa, mas porque ele estava ali, ao meu lado. Conversando. Escutando o
que eu tinha a dizer. Se importando.
Admirei-o quando apontou para um cachorro e disse que teve um
igual. Ezequiel destravou a tela do celular e me mostrou seu bichinho de
estimação, o sorriso de ponta a ponta, os olhos carregados de uma nostalgia
gostosa.
— Hachi foi meu melhor amigo por muito tempo — declarou
enquanto começamos a caminhar pelo parque, vendo algumas pessoas se
exercitando em um campo de futebol. — Eu sou filho único então, ele foi
meu parceiro de todas as horas.
— Por que você não tem outro cachorro? — perguntei, curiosa. Eu
também era filha única, mas nunca tive nenhum animalzinho.
Sabia que as pessoas que gostavam de cachorros sempre viviam
rodeadas pelos caninos. Eu nunca tinha tido um cachorro, meus pais eram
alérgicos a pelo, por isso, passávamos longe de animais peludos.
— Não paro muito em casa, não teria tempo para cuidar.
— Não sabia que era tão ocupado — comentei e Ezequiel parou no
mesmo instante, os olhos focados no meus como se fossem capazes de ler a
minha alma e eu senti um arrepio atravessando meu corpo.
As íris castanhas de Ezequiel eram carregadas de mistérios que,
curiosamente, eu queria desvendar. Nada de segurar casquinha de sorvete
com a mente! Eu queria ser a Jean Grey para conseguir ler o que Ezequiel
estaria pensando naquele momento. Mesmo não sendo uma equação
matemática, surgia em mim, cada vez mais, o desejo de solucionar
Ezequiel, porque o que sabia sobre ele parecia não ser suficiente.
Me vi compelida a passarmos a tarde juntos a descobrir sobre sua
vida, entender suas motivações e conhecer sobre seus desejos. Não era só
devolver o favor dele ter me defendido de Martin, ter dormido em um sofá
velho e pequeno demais. Não. Era uma vontade genuína de estar perto.
Ezequiel cobriu os olhos quando o sol saiu por detrás das nuvens e
eu aproveitei para observá-lo. A camisa de super-herói preta e a calça jeans
de nada lembrava a roupa monocromática que tinha usado na reunião dos
pais e mestres. Ele estava despojado, um sorriso no rosto, mesmo que sua
maçã da bochecha ainda estivesse um pouco roxa do soco que eu tinha
dado. A marca na testa já cicatrizava e os fios castanhos insistiam em cair
por ali.
— Cuidado! — O aviso de Ezequiel veio rápido demais e eu não
entendi o que veio a seguir, só sei que ele me puxou contra si, colocando
uma das mãos na minha cintura e a outra no meu ombro, girando meu corpo
de forma tão brusca que demorei uns segundos a perceber que ele tinha
trocado de lugar comigo.
Um adolescente andando de patins passou a centímetros de onde eu
estava momentos antes, local que agora era ocupado por Ezequiel.
— Desculpa! — pediu o jovem de cabelos cacheados e pele negra e
saiu deslizando de volta em uma velocidade incrivelmente alta.
Meu corpo ainda estava colado ao de Ezequiel, o tecido de sua
camisa em contato com meu ombro desnudo. Os braços fortes e firmes
ainda em volta de mim. Meu coração acelerou dentro do peito e estávamos
tão próximos que tive medo de que ele conseguisse sentir. O perfume de
Ezequiel me invadiu em cheio, o cheiro de madeira e um toque de relva me
fazendo inundar em sua essência masculina, mas dessa vez meu nariz não
resistiu e resolveu que era a hora perfeita para espirrar.
Ezequiel se afastou, cessando o contato, e eu me vi sentindo sua
falta no mesmo instante.
— Você está bem? — Ezequiel questionou, olhando-me de uma
ponta a outra.
— Não. — Soquei seu ombro de leve, tendo a necessidade de tocá-
lo, nem que fosse só mais um pouco, e desconversei. — Não acredito que
aqui pode andar de patins. Eu amava andar quando era criança, ganhei até
um par do Papai Noel.
— Você sabe que Papai Noel não existe, né? — ele gargalhou, um
sorriso cheio de luz, e em resposta, tudo o que consegui fazer foi rir
também. Era impossível não me deixar levar pela sua felicidade.
— Se ele existisse, essa hora eu estaria andando de patins, não
discutindo a existência dele com você. — Mostrei minha língua em sua
direção, fugindo do sentimento que insistia em martelar meu peito.
Eu não queria pensar. Pensar fazia eu focar em todos os contras de
ter qualquer tipo de relacionamento. Eu só queria me jogar, aproveitar o
momento, sem refletir sobre o fardo de carregar algo dentro do coração que
poderia se transformar em dor. Martin tinha destruído muito de mim e me
reerguer quase custou minha sanidade.
Só que era difícil não pensar em Ezequiel, não quando ele estava ali,
ao meu lado, discutindo sobre Papai Noel em pleno abril.
— Ali eles alugam patins. — Ele apontou para um quiosque de
alvenaria de formato redondo, onde algumas pessoas conversavam.
— Vou pegar minha bolsa que deixei no seu carro — comentei,
dando um passo em direção ao estacionamento.
— Não precisa, eu pago. — Ele puxou a carteira mais uma vez do
bolso da calça.
— Eu faço questão de pagar. Você já bancou o sorvete.
Ezequiel não protestou, o que fez eu ficar feliz. Eu sabia que ele
tinha melhores condições do que eu, tinha um carro maneiro, roupas
elegantes (quando não usava camisetas de super-heróis) e eu sabia que seu
perfume era caro, mesmo meu nariz sendo terrível por conta da rinite. Mas
eu gostava de ser participativa, dividir os gastos sempre foi natural quando
tanto meu pai quanto minha mãe contribuíam financeiramente nas despesas
familiares.
Peguei minha bolsinha amarela de cima do banco de couro do carro
e, junto com Ezequiel, fui andando até o quiosque onde jovens saiam
patinando como se não houvesse amanhã. Um frio na barriga percorreu meu
estômago só de lembrar da sensação do vento sobre os cabelos, de saber
que toda a estrutura do corpo estaria sobre rodas mais uma vez.
Ezequiel cumprimentou o homem do outro lado do balcão, pedindo
informações quanto ao aluguel, e eu aproveitei para observar as pessoas ao
redor. Uma família reunida, bem próxima de mim, chamou a atenção.
Parecia aquelas típicas reuniões familiares de propaganda de margarina,
uma esposa bem-vestida, com cabelos brilhantes, crianças comportadas, o
homem elegante, com direito a mocassim, e até mesmo um pequeno
cachorro.
Fiquei um tempo encarando-os, só então, quando o homem virou na
minha direção, que eu percebi que era.
— Olha, ali é o Tibério, professor de Geografia. — Toquei no braço
de Ezequiel, chamando sua atenção e indiquei com a cabeça, de modo
disfarçado. — Acho que vou lá falar com ele.
Tibério me viu de longe e abriu um sorriso, mas assim que ele
percebeu que Ezequiel estava ao meu lado, seu rosto se fechou em uma
careta.
— Não vá lá. — Sua fala saiu mais como um pedido e menos como
uma ordem e eu só balancei a cabeça, concordando com sua decisão.
Ezequiel percebeu que eu fiquei curiosa e então continuou. — Depois eu te
explico.
Confiei nele e dei meu melhor sorriso amarelo em direção a Tibério,
que apenas virou o rosto para o outro lado. Eu não entendi o que tinha
acabado de acontecer, mas deixei para lá.
— Uma hora de aluguel é trinta reais — Ezequiel comentou. —
Qual a sua pontuação?
— Trinta e cinco — falei abrindo minha bolsa, pronta para pegar o
dinheiro para pagar, quando uma voz baixa, porém sombria, enunciou perto
de mim.
— Ninguém se mexe que é um assalto.
Minha mão já estava dentro da bolsa. Eu podia sentir entre os dedos
o tecido esfarelado da minha carteira, mas também pude sentir o gelado de
um cilindro. E então, como eu tinha dito a mim mesma, meu cérebro não
pensou, porque se tivesse pensado, eu não teria cometido o erro que cometi.
♪ Eu não deveria deixar acontecer tão rápido
Garota, por que você teve que me quebrar desse jeito? ♪
:::Middle of the night – Monsta X:::

ISAAC ALMEIDA

A vida passando diante dos meus olhos. Foi isso que pensei que iria
ocorrer quando morresse. O sangue esvaindo do meu corpo, a dor invadindo
cada célula do meu ser, e por último, não menos importante, a vida
passando diante dos meus olhos. Só que a morte deu as caras e não
aconteceu nada do que eu estava esperando.
Nada de flashes do passado, nada de dor ou sangue, ainda assim um
pavor terrível, de um tipo que nunca imaginei sentir.
Tudo começou quando eu baixei a guarda. Porque era isso que
acontecia quando estava ao lado de Isabela. Eu não me sentia o policial
atento vinte e quatro horas e infiltrado nos mais diversos tipos de falcatruas.
Eu me sentia o homem que, se tivesse escolhido outro caminho, estaria
naquele parque com a mulher e dois filhos e vários cachorros em um
programa semanal que insistiria em manter. O problema começou justo aí.
Eu não era a porra desse homem e a mulher que eu queria que
estivesse ao meu lado, simplesmente puxou um gás de pimenta para jogar
no assaltante.
Na minha cabeça, os anos de prática, as várias faixas coloridas de
artes marciais, fariam eu ser capaz de facilmente derrubar aquele bandido.
Mas quando Isabela entrou na equação, a mão apertando o spray e o jato
saindo desengonçado, eu vi que não tinha experiência no mundo que me
fizesse estar preparado para aquilo.
O homem com o rosto coberto por uma máscara chegou de modo
furtivo, anunciando o assalto e eu só tive tempo de ver que ele segurava um
revólver Taurus. Antes que eu pudesse fazer qualquer outra análise, Isabela
se movimentou.
Foi apenas um segundo, mas o suficiente para meu corpo gelar. Sim,
ela reagiu ao assalto com um spray de pimenta, e a sorte foi que, mesmo
que o jato tenha ido longe do rosto do assaltante, foi suficiente para assustá-
lo. No susto, duas coisas aconteceram: o homem puxou o gatilho e eu
avancei sobre ele.
Um barulho seco estourou próximo ao meu ouvido e meu corpo
trombou com o do homem nos derrubando no chão. Virei meu rosto um
segundo para ter a certeza de que Isabela não havia sido atingida e, quando
vi que ela estava bem, voltei minha atenção ao meliante. Com o baque no
chão, a arma deslizou de sua mão e eu chutei-a para longe, para garantir que
ele não fosse conseguir pegá-la. Ele era um homem magro e alto e em
algum momento conseguiu ficar por cima de mim. Não podia negar, ele
tinha força, mas ficou claro para mim que faltavam técnicas, focando
apenas na brutalidade. Com um giro, consegui colocar seu braço entre
minhas pernas, segurando seu punho com minhas mãos. Com meu quadril
fiz uma alavanca, aplicando o arm-lock e o assaltante parou de se debater.
Até mesmo ele sabia que, caso se mexesse, eu poderia facilmente quebrar
seu braço.
— Alguém chama a polícia. — Um dos responsáveis pelo quiosque
gritou e um jovem saiu correndo pelo parque.
Pensei em minha algema dentro do guarda-roupa e no quanto ela
seria eficiente se estivesse ali. Permaneci aplicando o golpe de jiu-jitsu no
homem, até que o jovem voltou com alguns guardas municipais que
costumavam fazer a ronda no parque.
— Uau, você foi incrível. —A voz de Isabela chegou aos meus
ouvidos, quando eu larguei o bandido e deixei o resto da ação para os
guardas, e só então eu percebi que estava agindo no automático e me deixei
desabar.
Encarei ela, os olhos brilhantes na minha direção, o resquício de um
quase sorriso nos lábios. Eu poderia sorrir para ela, afinal tudo tinha dado
certo, mas vendo-a ali, diante de mim, só trouxe a ideia do que poderia ter
acontecido.
— Caralho, Isabela, você é maluca? — perguntei, me aproximando
e tocando os ombros dela. — Você poderia ter morrido, tem noção disso?
Eu estava furioso. Como ela tinha agido daquela maneira, de forma
tão irracional? Ela poderia ter levado um tiro. A bala poderia ter
atravessado seu pescoço acertando a aorta, e o sangue jorrado, fazendo o
corpo sucumbir em segundos. Seus olhos poderiam ter perdido o brilho da
vida e a boca permaneceria para sempre aberta, como se quisesse ter tido
uma última palavra, mas não tivesse tido a oportunidade. O sangue poderia
manchar minhas mãos, minhas roupas e, por mais que eu as limpasse, a
ideia de que estavam sujas jamais desapareceria.
— Ezequiel...
— Você não pode simplesmente agir como se seus atos não tivessem
consequências. — Cuspi as palavras com raiva, as mãos ainda em seus
ombros. — Não tem o direito de fazer o que bem entender achando que é
imortal ou algo do tipo. Não pode achar que é a porra de um super-herói e...
— Ezequiel! — Isabela chamou minha atenção e só então percebi
que ela estava assustada.
Soltei seus ombros na hora, me encolhendo. Eu a havia machucado?
— Ezequiel... — Isabela começou e eu esperei sua confirmação, a
respiração travada, com medo da resposta. — Por que você está chorando?
— Eu não estou chorando. — Levei meus dedos aos olhos, para
provar que ela estava errada, só então percebi que a umidade escorria pelo
meu rosto, o gosto salgado chegando à minha boca. — Eu...
— Está tudo bem. — Isabela me envolveu com seus braços, as mãos
se firmando em minhas costas, a cabeça apoiada em meu peito. —Está tudo
bem.
O cheiro de seu shampoo me pegou em cheio, uma mistura de erva
doce e baunilha. A delicadeza de suas mãos, roçando minhas costas,
fizeram eu fechar meus olhos e me deixei levar pelo momento. Ter ela ali,
ao meu lado, viva, era uma benção.
Não. Não estava nada bem, mas iria ficar. O fato de Isabela estar
bem era o suficiente para mim, mesmo que naquele momento eu tenha
percebido que meu pai não era um herói, era só um homem que morreu na
minha frente reagindo a um assalto. Mas ele não precisava ser herói, ele já
tinha sido meu pai e bastava.
— Está tudo bem. — Isabela repetiu em um mantra.
Seguimos de mãos dadas até um dos bancos de madeira que tinha no
parque, que àquela altura estava agitado com as pessoas comentando sobre
o assalto.
Isabela se sentou ao meu lado, jamais soltando minha mão, e mais
uma vez vi minha guarda baixando diante dela. Sabia que não precisava
contar, ainda assim senti que era o certo a fazer.
— Meu pai morreu diante dos meus olhos em uma reação a um
assalto. Eu tinha dezessete anos — declarei, a voz fraca.
— Eu sinto muito. — Ela apertou minha mão entre a sua, a textura
de seus dedos se fundindo aos meus. — Me desculpe, eu não pensei quando
agi, não queria trazer más recordações.
Encarei Isabela, eu podia ver a dor em seu semblante, a preocupação
que ela tinha por mim.
— Você não entendeu, o que me deixou abalado não foi pensar no
meu pai, foi imaginar perder você. — Levei minha mão até seu rosto,
passando meu polegar por sua bochecha em um vai e vem, sem pressa.
Eu era um ótimo mentiroso, havia treinado para me infiltrar, para me
passar por outras pessoas. Mas eu não conseguia mais mentir para mim
mesmo, não quando era óbvio o que estava acontecendo.
— O que você quer dizer com isso? — ela perguntou, os olhos
seguindo minhas mãos, a voz trêmula, o rosto quase se aninhando ao meu
toque.
— Que você é importante para mim.
— Ezequiel... — Isabela sussurrou e eu notei quando seus olhos
foram à minha boca em um gesto rápido.
Era um sinal. Ela queria me beijar tanto quanto eu queria beijá-la,
mas antes disso acontecer eu precisava fazer uma coisa.
— Vou conversar com os guardas, saber se a gente precisa depor,
mas depois eu vou te levar para casa — falei, me levantando, e o rosto de
Isabela se contraiu, quase como se estivesse decepcionada.
Virei as costas para ela e fui em direção aos guardas. Eles me
informaram que o rapaz era um adolescente e que a arma era de brinquedo.
O som que escutei não foi de tiro, mas sim de outro barulho qualquer que
acabou me assustando. O garoto ainda disse, aos prantos, que só queria
dinheiro para comprar os remédios para mãe doente, por isso decidi não
prestar queixa.
Voltei para onde Isabela estava, ela não perguntou mais nada, nem
mesmo protestou e, para uma pessoa que sempre falava muito, permaneceu
calada quando entrou no meu carro. Não ligou o som e nem brincou durante
o caminho, apenas manteve as mãos sobre as pernas, em silêncio. Eu queria
quebrar o gelo. Na verdade, queria beijá-la até ela implorar para eu tirar sua
roupa, mas eu precisava me controlar.
— Ei. — Chamei Isabela quando ela desceu do carro em frente ao
seu prédio, ela virou o rosto na minha direção e eu continuei. — Volto daqui
a pouco para planejarmos sobre a feira de línguas, ok?
— OK! — respondeu.
Eu quis saltar do carro e chacoalhá-la, implorar para ela me rebater
ou brigar comigo, contanto que ela tivesse uma reação melhor do que
apenas aquele olhar apático, mas tudo o que fiz foi acenar, dando tchau.
Acelerei o carro quando dobrei na esquina e segui não até meu
apartamento, mas até o de Fernando. O episódio do assalto tinha me
quebrado, imaginar Isabela ferida foi demais até mesmo para mim, que
estava acostumado com violência. E por mais que eu tenha pensado em
várias alternativas só cheguei em uma resposta.
O porteiro, que me conhecia, abriu a porta para mim, e eu peguei as
escadas ao invés do elevador, porque estava apressado e sem paciência.
Subi os degraus em velocidade recorde e esmurrei a porta de madeira
sentindo o impacto da estrutura entre os nós dos meus dedos.
— Ei, ei, você vai derrubar minha porta desse jeito. — Fernando
gritou do outro lado, antes de abri-la. — Existe uma coisa chamada
telefone, você sabia?
— O que tenho para te falar é urgente — disse, permanecendo no
corredor, sentindo o cansaço de subir as escadas ameaçando se apoderar do
meu corpo.
— Entre. — Apontou para dentro de casa, mas eu não me movi. —
O que é tão urgente?
— Eu vou deixar a missão.
Eu pensei que essa decisão viria depois de muito pensar, quando o
peso de ser um infiltrado fosse grande demais para minhas costas, qual foi
minha surpresa ao perceber que era um veredito simples. Eu não queria
continuar naquilo.
Fernando sorriu, o sorriso tão grande a ponto de se curvar,
colocando as mãos sobre os joelhos.
— O sexo com a mulher foi tão bom que chegou a foder seu
cérebro? — perguntou.
Trinquei minha mandíbula no mesmo instante, não achando nem um
pouco de graça na sua brincadeira.
— Ela tem nome, se chama Isabela, e eu não transei com ela —
respondi, os braços cruzando sobre o peito.
— Você não pode estar falando sério. É seu sonho, sempre foi. —
Meu amigo colocou a mão na cabeça, quase em um desespero. — Entre,
não quero discutir com você no corredor do prédio.
— Eu só queria avisar você antes de falar com nosso chefe —
comentei, tocando seu ombro.
Só a simples ideia de que qualquer coisa ruim pudesse acontecer
com Isabela me deixava em pânico. Como eu iria finalizar uma missão
como se não me importasse com ela? Como conseguiria continuar me
infiltrando se quando desvendasse o caso da escola, fosse para outro caso,
fingindo ser outra pessoa, quando na verdade eu só queria ser a porra do
Ezequiel?
Comecei a compreender por que minha mãe não me queria naquela
profissão. O medo de enterrar um filho deveria ser grande demais e eu,
assim como meu pai, não era nenhum super-herói. Eu era de carne e osso e
fadado a levar um tiro em qualquer ocasião e como eu queria proteger
Isabela, minha mãe queria me proteger, embora na época eu só pensasse
que ela odiasse minha escolha de vida. E não eu não odiava a polícia. Eu
ainda amava estar na ativa, a adrenalina de cada nova missão, a sensação de
dever cumprido com os cidadãos. Mas, pela primeira vez, eu queria me
firmar como um dos personagens, porque aquele papel que eu estava
interpretando parecia melhor do que minha própria vida fora dele.
— Isaac, você está cansado, você mesmo disse que precisava de
férias — ele disse, tentando argumentar.
— Nunca demorei tanto em uma missão sem avançar na
investigação. Sabe por quê? Porque outra coisa está na minha cabeça. Eu
não consigo me concentrar, pois toda minha atenção está focada em uma
pessoa. Nela.
Eu já tinha participado de várias missões, desde envolvimento com
cartel a grupo de tráfico humano. Eu tinha sido torturado e torturei pessoas
pelo bem dos casos. Eu fingi ser um milhão de pessoas que nada pareciam
comigo. E depois de tantos anos assumindo diferentes identidades, não
criando vínculo com ninguém, eu acabei esquecendo quem era o Isaac de
verdade.
— Você não pode fazer algo precipitado, sem pensar — Fernando
sussurrou, já sem forças para discutir comigo. Ele me conhecia, sabia que
quando eu botava uma coisa na cabeça nada ou ninguém era capaz de tirar.
— Acredite, eu estou pensando e antes que diga, não, não é com a
cabeça de baixo. — Abri um sorriso para meu amigo, eu imaginava que ele
estava em choque, mas queria que compreendesse. — Eu quero poder ter
uma conversa normal sem ficar me policiando a cada segundo sobre o que
estou falando. Quero usar minhas roupas, meu nome, e até mesmo meu jeito
de penteado de cabelo, que definitivamente não é o de lado que costumo
usar na escola. E, principalmente, quero não ter que mentir para Isabela,
contando meias verdades, quando tudo que eu desejo é poder ser sincero
com ela.
— É meu amigo... — Fernando suspirou, tocando o nariz com a
ponta dos dedos, finalmente se deixando vencer. — Você não transou, mas
está igualmente fodido.
— Sim, eu estou. — Cocei minha cabeça.
Não sabia onde estava me metendo, mas eu era Isaac Almeida e não
iria desistir. Eu só precisava passar um final de semana ainda sendo o
Ezequiel, antes de poder começar a ser eu mesmo. Era simples, eu já tinha
passado quase uma década tendo outras identidades, que mal poderia
acontecer em dois dias?
♪ Falando sobre como eu nunca vou encontrar um homem igual a você
Você me entendeu errado ♪
:::Irreplaceable – Beyoncé:::

ISABELA MARTINS

Eu odiava o Google! Odiava mais ainda a tal de inteligência


artificial chamada Chat GPT. Todos eles davam respostas genéricas sobre
minha pergunta: O que faz um homem chorar? O idiota do Google não
conseguia responder o que poderia ter feito o Ezequiel chorar. Talvez nem o
próprio Elon Musk ou Einstein seria capaz de saber essa resposta. Ainda
assim eu seguia buscando na internet se algo podia me ajudar a
compreender o que tinha acontecido.
Uma hora ele estava dando um golpe no meliante, como se fosse o
próprio Jackie Chan, na outra estava tremendo, aos prantos, desesperado. E
ele disse que todo aquele desespero era preocupação comigo. COMIGO!!!
Poderia ser real? Tudo bem, a gente tinha uma vibe cão e gato maravilhosa
e se fosse o contrário eu também me preocuparia com ele. Mas será que eu
choraria por ele? Nunca saberia, porque ele não seria estúpido como eu a
ponto de reagir a um assalto!
Fui idiota pra caralho, principalmente depois de saber que o pai dele
morreu daquela forma, mas eu tinha quase certeza de que aquela arma era
de brinquedo, levando em consideração minha expertise em filmes de ação
e, para minha sorte, eu estava certa. Mas eu não podia confiar na sorte
daquela maneira.
Fechei a tampa do notebook com força, nem me importando se
ainda faltavam duas parcelas para terminar de pagar. Eu estava frustrada.
Ezequiel já estava há quase uma hora fora e nenhum sinal dele. Eu dizia a
mim mesma que estava ansiosa porque queria começar nosso planejamento
sobre a feira de línguas, mas quem eu queria enganar? Eu sentia uma
necessidade bizarra de sempre querer ter ele perto de mim.
Estava pronta para puxar meu celular sobre a mesinha de cabeceira
quando tudo silenciou. Meu ventilador parou de girar logo quando o calor
estava ameaçando fritar meus miolos. Será que não paguei a conta de
energia? Eu era esquecida a esse ponto. Pulei da cama tentando lembrar
onde tinha deixado o talão de energia, mas uma batida na porta chamou
minha atenção. Ezequiel tinha chegado. Só que quando eu abri a porta, foi
Iago que encontrei diante de mim.
— Oi, vizinha, faltou luz aí também? — questionou, o peito despido
e usando apenas um shortinho de academia que deixava metade das coxas
de fora.
— Sim, pensei que tinha esquecido de pagar a conta — comentei,
desviando os olhos do peitoril de Iago, que dava quase na altura do meu
rosto.
— Eu estava malhando — tocou no próprio bíceps. — Quando o ar-
condicionado desligou. Ninguém merece ficar no calor, né?
Iago apoiou a mão na parede ao lado da porta.
— Sim, ninguém merece o calor, mas sabe outra coisa que ninguém
merece? Ficar tendo que ver você sem roupa. — A voz de Ezequiel soou
grave pelo corredor e eu virei meu rosto para vê-lo andando de braços
cruzados, a cara de poucos amigos.
— Você de novo? — Iago olhou para Ezequiel com desdém e, à
medida que Ezequiel se aproximava, notei um clima tenso no ar, quase
como se ambos os homens estivessem travando uma briga silenciosa.
— Faltou luz, acho que não vamos conseguir planejar nada — falei
para Ezequiel, dando de ombros.
— Não se preocupe, vamos para minha casa, lá tem energia. —
Ezequiel entrou no pequeno espaço que tinha entre mim e Iago e segurou
minha mão.
Meu vizinho arqueou uma das sobrancelhas, incrédulo, e então
pigarreou.
— Foi bom te ver, Isa. — Iago piscou na minha direção e foi
embora.
— Vamos? — Ezequiel perguntou, mal dando tempo para eu
processar tudo o que estava acontecendo.
Eu estava louca ou os dois pareciam possessivos diante de mim?
Não, era coisa da minha cabeça. Certeza.
Tranquei a porta do apê e curiosamente, mesmo Iago não estando
mais ali, Ezequiel ofereceu a mão para mim. Entrelacei meus dedos nos
seus e seguimos até seu carro, me acomodei sobre o banco que parecia cada
vez mais moldado ao meu corpo, pronta para conhecer a casa de Ezequiel.
Ok, o apartamento de Ezequiel não era nada parecido com o que
imaginei. Primeiro, porque ele era enorme. Tudo bem, eu sabia que ele
tinha um carro legal, mas ainda continuava sendo um professor. No
mínimo, a mãe médica tinha que ter ajudado, porque nem fodendo que um
professor conseguiria ter um tipo de imóvel desse tipo.
Segundo, porque nem parecia que alguém vivia no espaço que era
cerca de três vezes maior que o meu. Não via porta-retratos, quadros, nem
mesmo um tapete felpudo. Nada. Apenas o básico no quesito de móveis,
embora todos muito luxuosos. Se um dia Ezequiel fizesse eu dormir em seu
sofá como eu fiz com ele, eu acharia uma benção, afinal seu sofá parecia
bem mais confortável do que minha cama.
— Tá tudo bem? — Perguntou quando me abaixei para tocar a
maciez de seu sofá.
— Sim, está tudo ótimo. — Me ergui no mesmo instante, abrindo
um sorriso amarelo.
— O que vamos precisar para planejar a feira? — questionou,
depositando as chaves da BWM no chaveiro fixo na parede ao lado da porta
de entrada.
— Temos que decidir um tema, conversar com os alunos, preparar
as apresentações, slides... — falei, puxando uma agenda da bolsa e várias
canetas coloridas e as espalhando sobre a sua mesa de centro.
— Uau, é muita coisa. Temos quanto tempo para fazer isso? — Ele
questionou, se sentando no sofá e eu aproveitei para também me sentar,
quase gemendo ao perceber que realmente era um estofado perfeito.
— Uma semana — respondi.
— UMA SEMANA? — Ezequiel colocou a mão nas cabeças,
bagunçando os cabelos. — Eu sinto em dizer, mas não acho que a gente vai
dar conta.
— Pensei que você sabia quando seria o evento quando topou
participar. — Girei minhas pernas no sofá, me virando em sua direção e ele
fez o mesmo, nos deixando cara a cara.
A ponta de seu nariz estava tão próxima que eu tinha quase certeza
de que nossas respirações estavam se misturando. Ezequiel mordeu a boca e
eu me senti compelida a saber que gosto ela teria, me inclinei em sua
direção, como se ele exercesse uma força que eu não pudesse evitar, mas
quando seu perfume inundou meus sentidos não pude evitar e espirrei.
BEM. NA. CARA. DELE.
— Ay, Dios mío! Me desculpe. — Cobri minha boca com as mãos,
incapaz de acreditar no que tinha acontecido.
Ezequiel tocou o rosto, e eu me preparei para sua fúria, pelo menos
uma série de xingamentos e gritos. Ele, entretanto, apenas sorriu.
— Por acaso tem alergia ao meu perfume?
— Tenho rinite. Quase tudo me faz espirrar. — Fechei os olhos,
envergonhada.
— Ei, está tudo bem, já tive coisas piores do que espirro em contato
com meu rosto.
— Você não acha que já passou por muita coisa? Quer dizer, você
foi socado por um soco inglês e o que pode ser pior do que um espirro na
cara, ao menos que você ache...
Calei minha boca. Na minha mente só tinha algo pior do que uma
espirrada na cara... uma gozada na cara. Será que era aquilo que ele estaria
se referindo. Eu não achava nojento, longe disso, mas conhecia vários
homens que não gostavam de “se sujar”. Imaginar Ezequiel no meio das
pernas de alguém fez eu me remexer no sofá e até ali tudo bem, até minha
imaginação fértil imaginar ele no meio das minhas pernas.
Me levantei de uma vez, assustada por meu próprio pensamento, o
problema foi que minhas pernas não aguentaram meu peso, não quando elas
pareciam ser feitas de manteiga derretidas.
— Ei, o que houve? — Ezequiel questionou, se levantando com
rapidez e passando o braço por minha cintura, me impedindo de cair.
— Nada — respondi rápido demais, minha pele formigando em
cada lugar que ele tocava.
— Você acha que vamos ter tempo de fazer algo para essa feira?
Quer dizer, nem sei como você se inscreveu, sendo que não tinha nada
preparado. — Ezequiel me soltou e senti falta de sua presença em contato
com meu corpo.
— Eu sempre me inscrevo, mesmo que vá lá apenas para ficar em
último lugar.
Continuei em pé, tentando manter distância de Ezequiel, mas ao
mesmo tempo desejando que ele continuasse perto de mim. Ali, na sua casa,
parecia impossível me concentrar, então tive uma ideia.
— E se a gente for no Centro de Convenções? À essa altura do
campeonato algumas escolas já devem estar começando as montagens dos
estandes, então podemos nos inspirar.
— Bela, você quer espionar os inimigos? — Ezequiel questionou,
segurando um sorriso.
— Inimigos é uma palavra muito forte — comentei.
— Por falar em inimigo, acabei esquecendo de te contar sobre o
professor Tibério — Ezequiel falou, pegando a chave do carro e abrindo a
porta do apartamento para eu passar.
Ezequiel parecia uma nova pessoa, como se tivesse tirado um peso
grande das costas e agora estivesse leve. Seu sorriso aparecia mais vezes,
mostrando seus dentes claros e linheiros, ele já não enfiava a mão nos
bolsos como quando estava sem saber como agir. Algo tinha mudado, eu só
não sabia o quê.
— Não acredito que o Tibério escondeu a aliança durante o jogo de
poker!!! Ele parecia tão feliz com sua família lá na Potycabana — comentei
quando chegamos no Centro de Convenções após Ezequiel me contar,
durante o caminho, o que tinha ocorrido na noite do poker.
— As aparências enganam — Ezequiel respondeu.
— Você tem razão, uma vez o vi brigando com Seu João por causa
de um lixo, dizendo que ele havia tirado o lixo no dia errado — declarei.
Ezequiel franziu a testa, formando um vinco entre as sobrancelhas, e
então balançou a cabeça, voltando à expressão neutra.
Achei sua atitude estranha, mas logo desviei minha atenção quando
chegamos à porta de correr, que abriu no momento que chegamos perto.
Entramos no espaço coberto que devia ter no mínimo uns mil metros
quadrados. Algumas pessoas já montavam painéis e testavam apresentações
em data show. Eu ainda tinha esperança de que conseguiria apresentar algo
decente na semana que vem, mas a cada passo que eu dava dentro do
Centro de Convenções um pedaço da esperança que eu tinha ia sendo
consumida.
— Não sei se foi uma boa ideia ter vindo aqui — falei quando vi
que um dos grupos de professores tinha até mesmo camiseta personalizada.
— Realmente não foi. — Ezequiel apontou o indicador para um
homem que vinha na nossa direção e só então percebi que era Martin.
— Você é maluca? — meu ex perguntou, as veias saltando por sua
testa suada e os olhos arregalados de fúria. — Recebi uma intimação por
assédio.
Recuei, dando um passo para trás, sem saber sobre o que ele estava
falando e Ezequiel agiu na mesma hora.
Ele avançou na direção de Martin, tocando o peito dele com o
indicador.
— Se você tem amor à própria vida é melhor se afastar. — A voz de
Ezequiel soou como um ultimato, grave e alta.
A atenção de Martin finalmente saiu de mim e caiu sobre Ezequiel e
reconheci um sorriso carregado de desprezo marcando os lábios do meu ex.
— Quem é ele? — Martin questionou, voltando a me encarar. — É
seu novo namorado?
Não tive tempo nem de formular uma resposta, Ezequiel foi mais
rápido.
— E se eu for? — perguntou, puxando minha mão e entrelaçando
seus dedos nos meus com firmeza.
Martin abriu a boca em choque, como se não esperasse que eu e
Ezequiel estivéssemos em um relacionamento.
— Não pense que ele vai te proteger. Os homens são todos iguais, só
querem uma foda fácil.
Meu corpo todo tremeu e Ezequiel desfez o contato entre nossos
dedos. Olhei para ele, querendo enxergar o que se passava em sua mente,
com medo do que veria ali, mas tudo o que notei foi ódio, não de mim,
nunca de mim, mas de Martin. Sem aviso, ele avançou sobre meu ex,
socando o rosto dele.
Martin cambaleou e Ezequiel aproveitou para, com as duas mãos,
segurar sua camisa, ficando o rosto de ambos muito próximos. Ezequiel
colou a boca na orelha de Martin e cuspiu as palavras:
— Escuta aqui, eu poderia prender você agora mesmo pelo crime de
difamação e descumprimento das medidas de proteção, mas eu não vou
fazer isso, sabe por quê? Porque a cadeia é um lugar tranquilo demais para
alguém como você. Então se você não for embora agora, eu vou te levar
para o lugar que realmente você merece. Vou te levar até o inferno.
Martin recuou, dando dois passos para trás, e o medo que vi em seu
semblante me deixou perplexa. Ele foi embora, sem rebater, e sem olhar
para trás.
Ezequiel se virou de volta para mim, o rosto ainda com traços de
raiva, a mão vermelha devido ao contato com a cara de Martin, e passou a
mão pela minha cintura.
— Vamos embora — declarou, a respiração bufante.
Eu acenei com a cabeça, concordando, e antes que tivéssemos dado
um passo, uma mulher de cabelos cacheados e rosto nada amigável
apareceu na nossa frente e falou:
— Me acompanhem, por favor.
♪ Estou com minha mente no seu corpo
E seu corpo na minha mente ♪
:::Cool for the Summer – Demi Lovato:::

ISAAC ALMEIDA

A pior coisa que Isabela poderia fazer comigo era ficar em silêncio.
Mas foi assim que ela ficou quando entramos no carro e quando chegamos
ao meu apartamento. Eu sabia que a culpa era minha, porém não me
arrependia nem por um segundo.
— Vamos, não fique calada, eu sei que você quer falar — disse,
quase implorando que ela comentasse alguma coisa. Seu silêncio era
ensurdecedor aos meus ouvidos acostumados com sua voz.
— Eu não sei o que falar. — Ela abriu os braços, no meio da minha
sala, o rosto quase em uma careta, e os cabelos caindo do rabo de cavalo
folgado. — Quero apenas pegar minha agenda e canetas que acabei
esquecendo aqui.
Ela era linda, mesmo furiosa.
— Sim, você sabe. — Me aproximei, prendendo a respiração, me
preparando para o que viria a seguir.
— Você tem razão, eu sei. — Isabela deu um passo no meu sentido,
enfiando a unha do indicador no meu peito e me perguntei se ela conseguia
sentir a vibração do meu coração. — Não acredito que você causou a minha
expulsão da feira de línguas.
— Nossa expulsão — comentei, baixando minha cabeça.
— Argh! — ela socou meu peito. — Eu não acredito, Ezequiel!
Você estragou minha chance de conhecer a Espanha.
Ela estava muito furiosa, o rosto vermelho de raiva, os cabelos já
tinham se desfeito totalmente do rabo de cavalo, caindo sobre seus ombros
em cascata, a mão ainda batendo contra meu coração. Segurei sua mão
quando ela veio mais uma vez na direção do meu tórax, prendendo-a.
— Você nem sabe se ia ganhar esse prêmio.
— Não interessa, quem sabe um ano eu ganhasse. Agora não tenho
mais a chance, porque você fez com que eu nunca mais possa participar.
Isabela tentou soltar o próprio braço, mas eu a puxei na minha
direção, pressionando seu corpo contra o meu, sentindo nossas curvas se
encaixarem de forma perfeita.
— Qual é, você queria que eu fizesse o quê? Deixasse o idiota do
seu ex falar merda?
Ela arregalou os olhos, finalmente desistindo de me bater eu a soltei,
só que ela não mexeu nem um músculo, continuou na mesma posição.
— Ser agressivo com um agressor não faz de você um super-herói
— ela comentou, desviando o olhar, e eu soube que nem ela acreditava nas
suas próprias palavras.
— Não, mas faz de você uma mulher viva. Só Deus sabe o que
aconteceria se eu não estivesse lá. — Cuspi as palavras, sentindo a fúria
penetrar meu corpo mais uma vez.
Em um movimento, Isabela recuou, a boca abrindo em surpresa.
— Foi você, não é? Você que denunciou ele? — perguntou,
incrédula.
— Sim, fui eu.
Não costumava me envolver com os problemas dos outros, mas a
partir do momento que o problema pudesse se transformar em um crime eu
não ia ficar alheio à situação. Eu não tinha falado para Isabela, nem mesmo
para Fernando, mas tinha feito uma denúncia anônima acusando Martin de
agressão por conta do episódio que ocorrera no dia da Reunião de Pais e
Mestres.
— Você deveria ter me falado.
— Para quê? Ele merece sofrer, merece ir para a cadeia e pagar
pelos crimes que cometeu. — A verdade saiu de dentro de mim antes que
eu notasse, e um sentimento nocivo que insistia em corroer meu peito
começou a se formar. Raiva.
— Porque eu pensei que contávamos as coisas um para o outro, que
éramos amigos. — Isabela girou os calcanhares, ficando de costas para
mim, juntou suas coisas de cima da mesinha da sala e colocou dentro da
bolsa. Ela então se dirigiu até a porta do meu apartamento, mas antes de
tocar na maçaneta, voltou sua atenção para mim — Eu pouco me importo
com ele, mas eu me importo com você. Você foi expulso da feira, você vai
ser notificado pelo conselho educativo. Todo mundo vai saber o que
aconteceu e você vai ser malvisto pelos pais e alunos.
A resposta de Isabela chegou como um soco no meu estômago e eu
sabia exatamente como era a sensação. A falta de ar, devido à pancada
próxima ao pulmão, a dor intensa que faz a pessoa ter vontade de se dobrar,
o xingamento que sempre sobe à cabeça. Fechei minha boca, incapaz de ter
uma resposta para sua confissão. Ela se importava comigo!
— Vamos lá, você sempre tem uma resposta para tudo, não é?
Quero saber o que está na ponta da sua língua. — Isabela provocou, a mão
avançando sobre o trinco da porta, mostrando que eu tinha uma última
chance antes de ela ir embora.
Eu queria que ela ficasse, queria que soubesse o quanto ela também
era importante para mim. Mas, acima de tudo, queria que entendesse que eu
a desejava e que ser amigo não era o suficiente.
— Eu não tenho uma resposta na ponta da língua. Mas posso te
mostrar o que ela é capaz de fazer.
Foi um movimento discreto, rápido, mas eu notei quando suas íris
castanhas pararam na minha boca. Isabela apoiou o corpo contra a estrutura
da porta e eu aproveitei sua reação para me aproximar. Primeiro um passo,
depois o outro. Não tinha pressa. Quando meus pés bateram sobre o piso
porcelanato a poucos centímetros dos de Isabela, eu olhei para seu rosto,
avançando com minha mão até sua bochecha.
— Vamos lá, Bela, chegou sua vez de me rebater — sussurrei com
minha boca rente ao seu ouvido.
Esperei um soco, murro ou até mesmo suas respostas sempre tão
afiadas. Só não esperei que ela fosse segurar meu pescoço, as unhas
roçando minha pele, fazendo cada parte do meu corpo arrepiar.
— Antes de rebater eu preciso saber o que ela faz. — Foi a vez de
Isabela sussurrar, a voz em uma mistura de sensualidade e divertimento. —
Até porque, contra fatos não há argumentos.
Aquilo era uma permissão e, para quem não tinha pressa, me movi
rápido demais, mergulhando minha boca sobre a sua.
Isabela tinha gosto de tudo que eu amava: sorvete, menta e
adrenalina. Pressionei seu corpo contra a porta, escutando a estrutura ranger
sobre o peso de nossos corpos, e deslizei minhas mãos até sua nuca,
emaranhado meus dedos por seus cabelos macios.
Não tive que pedir passagem para enfiar minha língua dentro da sua
boca, afinal ela já estava pronta, esperando por aquilo. Por isso, mesmo em
meio ao beijo quente, sorri quando sua própria língua se enroscou na minha,
em uma dança sensual e gostosa. Isabela me puxou para si, ficando na ponta
dos pés para vencer nossa diferença de altura e eu aproveitei para erguê-la,
segurando sua bunda com as duas mãos e a levando em direção ao meu
quarto.
Ela não protestou, mas gemeu quando o beijo se tornou mais
urgente. Abri a porta, que estava apenas encostada, com o pé, quase em um
chute, e, mesmo sem ver, segui pelo quarto sabendo exatamente as posições
dos móveis, depositando Isabela sobre a cama. Cobri a totalidade de seu
corpo com o meu, apoiando meu peso sobre os cotovelos.
— Ezequiel... — Isabela sussurrou, os olhos fixos em mim.
— Por favor, diga para eu parar. Diga que eu não devo continuar. —
Implorei, sentindo meu pau pulsar dentro da calça, as forças do autocontrole
esvaindo como o ar deixando meus pulmões.
— É isso o que você quer? — Isabela questionou. — Que a gente
pare?
— Doce Bela, isso é o que menos quero na vida, por isso, nesse
momento, preciso que você seja a pessoa racional, porque eu perdi a ideia
de razão desde o momento em que te conheci.
A dualidade nunca tinha sido tão forte dentro de mim. Uma parte de
mim dizia que eu estava enganando Isabela, que embora eu fosse desistir da
missão eu ainda estava nela e que tudo aquilo era um erro. Mas como
poderia ser um erro se cada célula do meu corpo gritava pela necessidade de
tê-la? Não poderia ser errado quando nossa boca se encaixava com tanta
perfeição, quando nosso corpo ansiava um pelo outro e, principalmente,
quando era ao lado dela que eu me sentia eu mesmo.
— Sinto muito Ezequiel, mas não vou pedir para você parar, e
acredite, eu estou sendo racional.
Beijei a boca de Isabela mais uma vez, só que agora sem urgência,
apreciando cada nota de seu sabor. O azedo do cajá trazendo um contraste
com a ardência da menta de seu creme dental, mas nenhum dos sabores era
tão prazeroso quanto o da adrenalina. Sim, eu conseguia sentir esse sabor
vindo dela, porque eu reconhecia quando a emoção corria dentro das veias.
— Quer dizer que você quer que eu continue? — perguntei, pronto
para respeitar qualquer que fosse sua decisão.
— Por favor, não faça eu implorar. — Ela gemeu embaixo de mim,
abrindo as pernas para eu me encaixar.
Mordi meu lábio, segurando um gemido.
— Eu adoraria ver você implorar — falei baixando a manga bufante
de seu vestido vermelho, deixando seu sutiã à mostra.
Desci, sem pressa, o tecido preto rendado expondo seu seio.
Aproximei minha mão com verdadeira devoção, sentindo meu pau latejar
quando meu dedo roçou seu mamilo enrijecido. Isabela lambeu os lábios,
em uma cena que fez eu querer arrancar suas roupas, e eu me segurei para
não avançar muito rápido. A pele de seu colo estava quente sobre minha
mão, se encaixando perfeitamente, como se seu seio tivesse sido criado para
mim e apenas para mim. Não perdi tempo e inclinei meu rosto em sua
direção, abocanhando seu mamilo.
Isabela gemeu, o corpo arqueando, e uma de suas mãos pousou em
meus cabelos, se fixando ali, exigindo morada. A outra mão de Isabela se
agarrou em meus lençóis, apertando o tecido com força quando eu mordi
seu seio. Desci a outra manga do vestido e afastei seu sutiã, deixando o par
de seios à mostra, como duas esferas perfeitas. Eu já estava duro há tempos,
mas queria fazer Isabela sentir tudo que eu tinha a lhe oferecer. Mordi,
lambi e chupei-a, levando em conta cada uma de suas respostas aos meus
estímulos.
— Zeck, por favor... — Isabela sussurrou quando levei minhas mãos
até o tecido de sua calcinha, notando que ali já estava úmido. Pronto para
mim.
— Calma, Bela, ainda estamos no começo.
Afastei seu tecido de renda, introduzindo um dedo na sua boceta
molhada e ela arfou, um gemido manhoso atravessando o quarto. Fechei os
olhos absorvendo seu grito de prazer, tentando manter a racionalidade que
eu sabia que tinha ido ao espaço faz tempo. Isabela era minha perdição, a
responsável por cada bater acelerado do meu coração e a dona das malditas
borboletas que invadiam meu estômago.
Eu queria ser paciente, mas uma necessidade crescente fazia com
que cada vez mais eu quisesse a pele de Isabela sobre minha boca, por isso
empurrei a calcinha para o lado, afastando o pedaço de pano indesejado e
libertando a parte que eu tanto queria. Ela se mostrou surpresa, os dentes
mordendo o lábio inferior, quando eu lambi a parte interna de sua coxa.
Tirei meus dedos de sua umidade e, quando coloquei minha boca no meio
de sua boceta, Isabela fechou as pernas em volta do meu rosto.
— O que você... está... fazendo? — perguntou, subitamente sem
fôlego, o peito subindo e descendo com velocidade, para meu deleite.
— Você sabe muito bem, mostrando o que a ponta da minha língua é
capaz de fazer — falei e voltei a lamber sua umidade, sentindo o sabor de
sua boceta sobre minha boca, o gosto de Isabela infiltrando cada partícula
minha.
Mordi a ponta de seu clitóris e ela gritou, as duas mãos vindo até
meu cabelo e eu esperei que ela me impedisse de continuar, mas ela apenas
guiou minha cabeça para mais perto de seu centro.
— Eu vou te mostrar, Bela, o que um homem de verdade faz.
Passei a língua por sua boceta gostosa, enxarcada, pronta pra mim e
senti meu pau quase explodindo de desejo. Me concentrei em fazê-la gozar,
introduzindo meu dedo dentro de Isabela ao mesmo tempo que com a boca
eu chupava seu ponto mais sensível. Isabela se remexia embaixo de mim, as
pernas se abrindo mais e mais, os xingamentos em espanhol se misturando
aos gemidos, até que o ápice invadiu seu corpo, o orgasmo vindo como
ondas e eu, como o mar, estava preparado para receber seu rio. As pernas de
Isabela tremeram, mas eu continuei ali, a boca em seu centro, a língua
recebendo mais e mais de seu sabor. Perfeita. Ela era toda perfeita.
— Vou fazer você gritar e gemer sem sentir dor — disse, encarando
seus olhos castanhos, firmando meu compromisso. — A porra de um
homem de verdade jamais machuca sua mulher.
— Repita o que disse.
— Que vou fazer você gritar e gemer sem sentir...
— Não essa parte. A parte que você disse que nenhum homem deve
machucar sua mulher. O que quer dizer com isso? Que sou sua?
— Sim. Você é minha e de mais ninguém — respondi, o desejo
latente de posse me dominando por completo, como nunca antes. — Ou
você tem algo contra?
Prendi a respiração aguardando ansiosamente sua resposta e quando
Isabela sorriu, o barulho de sua risada reverberando pelo quarto, eu só
desejei poder ouvir aquele som todos os dias da minha vida.
♪ Se você gosta do seu café quente
Me deixe ser a sua cafeteira ♪
::: I wanna be yours – Arctic Monkeys:::

ISABELA MARTINS

Eu era sua! Eu era sua! Eu era sua!


A sentença reverberou em meu ouvido a cada segundo, como um
mantra penetrando minha mente. Eu ainda estava na cama, Ezequiel sobre
mim, o rosto na altura das minhas pernas fracas, molhadas. Minha
respiração beirava a velocidade máxima permitida pelas leis da física e os
batimentos cardíacos estavam tão rápidos que fiquei com medo de ter um
colapso.
Eu havia gozado na sua boca e foi o melhor orgasmo da minha vida.
Não sabia se aquilo era um sonho ou se realmente estava acontecendo. As
coisas aconteceram rápido, muito rápido, mas parecia natural a ponto de eu
não ter medo. Por isso, quando Ezequiel saiu do meio de minhas pernas, eu
puxei seu rosto na direção do meu, beijando sua boca, ainda sentindo meu
gosto vindo de seus lábios. Desci minha mão pelo seu peito, indo parar na
ponta de sua camisa e a puxei de uma vez, tirando-a de seu corpo.
A cicatriz na testa não era a única marca presente em seu corpo.
Apenas no tronco eu podia observar as mais diversas, entretanto, um
conjunto delas chamou minha atenção. Passei os dedos por seu tórax,
parando a mão sobre seu peito, onde algumas linhas finas marcavam a pele.
Com o indicador tracei as inúmeras cicatrizes que seguiam de seu
mamilo esquerdo até o meio de suas costelas. Eu reconheci o formato, a
aspereza e a origem. Ezequiel, assim como eu, era marcado. Os vestígios de
unhas afiadas perpetuados no corpo para sempre.
— Quem? — perguntei, como ele tinha feito comigo, pronta para
mandar o responsável para o quinto dos infernos.
A mandíbula de Ezequiel travou no mesmo instante, a sombra
conhecida invadindo seus olhos.
— Cada cicatriz representa uma pessoa que eu machuquei. —
Ezequiel me encarou, as palavras saindo com dificuldade. — Causei dor a
mim mesmo para jamais esquecer a dor que causei nos outros. Uma que
jamais pretendo causar a você.
Abri a boca, chocada com a verdade. Ele se automutilou em um
gesto de punição, um que ele conviveria para sempre, cravado em cima do
coração. Eu não sabia o que tinha levado ele a machucar alguém, mas
conhecia Ezequiel, ele se odiava por isso, e era o suficiente.
— Eu acredito em você — comentei, estendendo a palma da minha
mão sobre seu coração, sentindo seu órgão palpitar.
— Eu prometo que não vou machucar você — ele disse, passando a
mão pelo meu cabelo.
— Você não está fazendo promessas demais para mim? —
questionei, sorrindo, tentando amenizar o clima, trazendo de volta nosso
vibe cão e gato.
Deu certo. Ele sorriu, primeiro um sorriso contido, depois uma
gargalhada.
— Sim, estou, mas não consigo resistir. A igreja está perdendo
tempo, o papa poderia te contratar para angariar fiéis, os jovens certamente
também fariam promessas para você.
— Dios mio! Não é pecado falar de igreja enquanto transa?
— Bela, ainda nem começamos. Por isso preciso saber, você tem
certeza de que quer continuar? — Ezequiel perguntou, o olhar fixo em mim,
suas pupilas dilatadas.
A minha última experiência com homem tinha sido uma merda, mas
eu não podia comparar Martin com Ezequiel quando ambos eram tão
diferentes. Ezequiel não só fazia eu me sentir segura, protegida, como
também fazia eu me sentir bem sendo eu mesma.
Concordei com a cabeça, mas Ezequiel não se mexeu. Ele queria
uma resposta concreta, em alto e bom som.
— Tenho certeza — falei, confirmando meu desejo.
Ezequiel soltou a respiração, a máscara da seriedade dando lugar ao
alívio. Ele também queria e era importante que eu quisesse também. Toquei
sua testa, bem em cima da cicatriz e então levei meus lábios até ali.
Beijando a marca recém cicatrizada. Ele era cheio de mistérios, e eu estava
disposta a desvendar cada um deles.
— Tenho preservativo no guarda-roupa. — Sua voz saiu em um tom
rouco, quase como se estivesse fazendo esforço para conseguir falar.
— Eu vou lá pegar — comentei, e ele saiu de cima de mim, me
dando espaço para eu pular da cama e tirar meu vestido, ficando apenas de
sutiã e calcinha.
— Você vai encontrar na primeira gaveta, quando abrir a porta
dupla. — Ezequiel se remexeu sobre a cama, apoiando o cotovelo sobre o
colchão e a mão no queixo, e ficou me observando.
Me vi corar e, antes que ele ficasse mais tempo me secando, fui até
seu guarda-roupa. Puxei a gaveta em busca da camisinha, mas o que
encontrei foi algo muito mais inusitado. O brilho prateado do objeto
chamou minha atenção e puxei-o só para ter certeza de que realmente era o
que estava pensando. Dei meia volta e segui até a cama, o pacotinho de
preservativo em uma mão e a algema na outra.
— O que é isso? — questionei, segurando uma das argolas com meu
indicador.
Ezequiel abriu a boca sem emitir nenhum som e então se ajeitou
sobre a cama, passando as mãos pelos cabelos logo após se sentar sobre a
beirada do colchão.
— É uma algema.
— Não me diga! — retruquei, irônica, vendo que havia deixado ele
sem jeito. — Não sabia que você era do tipo dominador.
Ezequiel se levantou e veio andando na minha direção. Os passos
calculados, o tórax de fora exibindo seu corpo viril. Os cabelos bagunçados
completavam o conjunto. Um conjunto irresistível. Não é que Margareth
tinha razão?! Ezequiel era um gato e eu demorei a perceber o fato.
— A questão de ser dominador ou dominado nada tem a ver com
mandar ou obedecer. É um ponto onde você tem que escolher se quer dar
prazer ao seu parceiro ou receber — Ele arqueou uma das sobrancelhas bem
desenhadas e pegou a algema da minha mão. — Então, Isabela, me diga.
Você aceita o que tenho a oferecer?
Com um movimento rápido, Ezequiel me prensou contra a parede
do quarto, o corpo se colando ao meu a ponto de eu sentir sua ereção.
Minhas pernas ficaram bambas e, como lendo minha mente, ele segurou
minha cintura, o braço firme me mantendo em pé. Com a mão livre, ele
puxou o preservativo que eu segurava e jogou sobre a cama.
— Aceito — respondi, engolindo a saliva que se formou em minha
garganta.
Com minha resposta, as mãos de Ezequiel pararam nas minhas, e
com a agilidade de um especialista, ele prendeu minhas mãos com a
algema. Meu coração acelerou, sentindo uma euforia que nunca tinha
sentido antes. Entrelaçando nossos dedos ele levou minhas mãos até o alto,
acima da minha cabeça, e então encostou o rosto na curva do meu pescoço,
sua respiração sendo suficiente para os pelos do meu corpo se arrepiarem.
— Eu vou fazer valer a pena — murmurou, o pau novamente
roçando em mim e eu gemi como resposta, desejando tê-lo por completo.
Ezequiel abaixou a mão direita e levou-a até a minha garganta. Por
instinto fechei meus olhos, mas ele sequer fechou os dedos sobre minha
pele.
— Olhe para mim — ordenou e eu abri os olhos para vê-lo sério. —
Violência não é sinal de boa foda. A partir de hoje quero que se lembre que
uma mão no pescoço pode ser muito mais do que um ato de abuso físico.
Seus dedos tocaram minha pele, da mesma forma que um dia foram
os de Martin, a diferença é que Ezequiel não pressionou, apenas deslizou a
superfície áspera de seu polegar contra meu pescoço.
— Quero que sinta prazer, quero lhe dar prazer. Mas quero,
principalmente, que ao ver essas marcas, saiba que tem uma pessoa disposta
a tudo para impedir que o mesmo jamais aconteça de novo.
Encarei Ezequiel com os olhos ardendo, sentindo o peso de sua
declaração mexer comigo. Segurei as lágrimas e disse a mim mesma que, se
não estivesse algemada, o abraçaria.
— Obrigada. — Me deixei agradecer em meio às batidas aceleradas
do meu coração.
— Não é hora de agradecer, o melhor ainda estar por vir. —
Ezequiel se afastou, indo até o pacote de camisinha que estava em cima da
cama, pegou-o e voltou. — Primeiro vou foder você contra essa parede.
Me encostei na estrutura de alvenaria, sentindo-a segurando meu
corpo mole. Eu queria Ezequiel dentro de mim, desejava-o
desesperadamente. O coração acelerado, a calcinha encharcada em contato
com a minha pele. Ele retirou as calças, largando-as pelo quarto, o volume
do pau se destacando dentro da boxer preta. Ezequiel então rasgou o pacote
de preservativo com os dentes e retirou a extensão de dentro da cueca.
Grosso, pulsante, grande. Vestiu a camisinha em um gesto lento,
despretensioso e ainda assim tão erótico. Dois passos foram suficientes para
ficarmos colados um no outro e ele tirou minha calcinha com a mesma
lentidão que fazia cada um dos atos.
As mãos grandes foram até minha bunda e me ergueram com
facilidade, o pau roçando minha entrada.
— Você é linda — sussurrou em meu ouvido, colando o nariz em
minhas cicatrizes, inalando meu cheiro.
— Você me acha linda mesmo com as marcas?
— Você não entendeu! Você é linda do jeito que você é, com
cicatrizes, manchas de catapora e olheiras bizarras. É linda mesmo que
goste de novela coreana e que resmungue em espanhol. É linda quando
veste seus pijamas esquisitos e também quando revira seus olhos. Me atrevo
a dizer que seria linda até se tivesse chulé e roncasse a noite. Resumindo,
você é linda por unicamente ser você.
Não resisti e sorri, sua declaração me aquecendo por dentro.
Ezequiel tirou uma das mãos que me sustentavam e a colocou nas correntes
da algema que me prendia, sobre minha cabeça, e me penetrou. Centímetro
por centímetro, devagar, se acomodando dentro de mim e eu gemi, me
acostumando mais e mais com sua grossura. Apertei minhas pernas contra
seu tronco, desejando tê-lo por completo e, percebendo meu gesto, ele
continuou a entrar.
— Está tudo bem, Bela, posso me mexer? — questionou quando seu
pau já estava todo dentro de mim.
Eu estava algemada, ele podia fazer o que quisesse, ainda assim
permanecia sempre preocupado comigo, buscando minha aprovação.
Encarei seus olhos, que naquele momento não tinham nenhuma sombra de
mistério, apenas brilho, um que eu conhecia e que me peguei gostando cada
vez mais.
— Pode — falei, a voz em meio a um gemido.
Quando Ezequiel se mexeu dentro de mim, um gemido rouco saindo
de sua garganta, os olhos sempre nos meus, eu me vi rendida. Não podia
negar que o sentimento que cruzava meu peito ameaçava explodir. Eu o
queria, não só dentro de mim, mas ao meu lado, comprando sorvete,
cuidando de mim, reclamando de meus doramas. Queria sentir seu perfume
que constantemente irritava meu nariz e observar aquela cicatriz peculiar
em sua testa que aos poucos eu começava a achar charmosa. Era ele, tudo
nele me atraía como um imã e, como uma boa aluna de física, eu sabia que
não tinha como resistir ao magnetismo.
Ezequiel aumentou as investidas, se movendo rápido, me fodendo
com força, entrando e saindo de mim como se já tivéssemos feito aquilo mil
vezes. Como se pertencêssemos um ao outro. A mão em minha bunda
apertando minha carne, exigente, e a que segurava meus braços me
tomando como sua, como se eu fosse capaz de oferecer resistência.
— Zeck...
— Diga, Bela, diga o que quer — ele questionou, a voz rouca, as
estocadas me levando ao paraíso.
— Não para, eu estou perto de...
— Goza junto comigo, Bela. — Ezequiel introduziu seu pau com
força, uma, duas, três vezes, e eu senti o orgasmo vindo, as pernas tremendo
ao redor do seu corpo, o gemido saindo por minha garganta de forma
descontrolada e ele estocou mais uma vez, forte, necessitado. Ele gemeu e
eu pude sentir o pulsar de seu pau dentro de mim, tão acelerado quanto meu
coração, como se tivéssemos em sintonia. Como se fossemos um só.
E naquele momento éramos exatamente isso.
Um só.
♪ Sou uma parte da cura?
Ou sou parte da doença? Cantando ♪
::: Clocks – Coldplay:::

ISAAC ALMEIDA

— Pensei que você tinha fugido.


Foi a primeira coisa que ouvi de Isabela pela manhã. A afirmativa
não veio como uma acusação, ainda assim pude notar certo medo em seus
olhos. Eu estava sem camisa, com o pano de prato sobre um dos ombros e a
frigideira no fogo alto. E ela tinha acabado de sair do corredor do
apartamento, parecendo ainda sonolenta. Isabela me olhou curiosa, de um
jeito singelo, como se tivesse receio de me perder, e aquilo mexeu comigo.
Ela realmente achou que ia ser só um caso de uma noite?
— Como vou fugir se essa é minha casa? — comentei rindo,
levando sua pergunta a sério, mas tornando o momento mais leve.
As lembranças da noite passada vieram em flashes e eu abri um
sorriso ao ver a dona da minha alegria tão perto de mim. Ela estava
enganada se pensou que iria se livrar de mim.
— Venha cá. — Abri meus braços em sua direção, e ela veio,
encostando o rosto em meu peito, se aninhando em mim.
Beijei o topo de sua cabeça mesmo que seus cabelos estivessem
bagunçados. Ela não tinha noção do quanto era linda ao acordar,
principalmente porque só vestia minha camiseta do Asa Noturno e nada
mais além disso.
— Você fugiria se estivesse na minha? — foi a vez de Isabela rir,
mas pude notar um certo pavor em seu tom de voz.
— Foi isso que seu ex fez? — questionei, sentindo meu sangue
ferver à menção do babaca.
Ela ficou calada, mas levantou a cabeça e me analisou, e eu senti em
seu olhar a resposta.
— Eu jamais faria isso, não sou um moleque — comentei, me
aproximando de Isabela e passando a mão pelos seus cabelos.
Curiosamente, senti a necessidade de confirmar minhas palavras. — E
como prova, que tal se repetirmos agora o que fizemos ontem?
Não esperei pela confirmação, beijei seu pescoço despido, sentindo
sua pele quente em contato com a minha boca.
Isabela gemeu e instantaneamente meu pau latejou dentro da boxer
escura. Essa mulher me deixava louco. Não conseguia raciocinar direito
perto dela. Não conseguia ser o homem que planejava tudo e tinha tudo
sobre controle. Perto dela meu equilíbrio ia para o saco e os planos, por
água abaixo.
Deixei o café da manhã de lado, apagando o fogo, e em um gesto
rápido virei o corpo de Isabela sobre a bancada, deixando-a de costas para
mim, a bunda empinada próxima ao meu pau. Agarrei sua cintura e fui
beijando seu pescoço, tentando decorar o sabor dela em cada toque.
— Alguém já acordou sem sono — ela comentou em meio a uma
risada, quando sentiu meu membro rígido próximo à sua bunda.
— Impossível meu pau dormir quando você é minha companhia.
Isabela reagiu à minha fala empinando a bunda na minha direção, o
sorriso atravessando seus lábios. Suas mãos pousaram nos próprios seios, se
acariciando. O gesto foi suficiente para me deixar mais rígido ainda, me
fazendo desejar fodê-la de quatro. Acordar com Isabela no meu
apartamento era aquilo: deixava meu pau duro e a cabeça fodida.
Toquei seus seios por debaixo da camisa folgada com verdadeira
devoção, reivindicando-os para mim, sentindo-os se encaixando
perfeitamente em minhas mãos. Ela jogou a cabeça para trás, os cabelos
caindo sobre as costas de forma sensual e eu aproveitei que seus olhos
estavam fechados para analisar cada detalhe dela. Isabela era uma mulher
incrível, não apenas por sua beleza estonteante, mas por cada pequeno
aspecto que a tornava única. A boca levando um sorriso, o toque quente e
envolvente, a selvageria de um vendaval e os olhos famintos que, naquele
momento em específico, se abriram e fixaram nos meus.
— O que você tanto observa? — questionou, tocando minhas
próprias mãos sobre seus seios, fazendo-me mais excitado ainda.
— Você é incrível. — Fui sincero.
Segurei seus cabelos com uma das mãos e os puxei trazendo-a para
mais perto de mim. Isabela não protestou e, com a mão para trás, abaixou
minha bermuda e tirou meu pau de dentro da cueca.
Se no dia anterior o encontro de nossos corpos foi um misto de
paixão e euforia, ali, naquele momento, o desejo sexual era de um nível que
fez tanto eu quanto ela gemerem apenas pela fricção de nossos corpos
sedentos.
A mão de Isabela passou pelo pau, subindo e descendo, o calor de
seus dedos se propagando pela minha dureza. Toquei seu sexo que já estava
inchado, sentindo a umidez daquele local delicioso. Isabela gemeu e
aproveitei o momento para continuar os movimentos em sua boceta.
— Zeck, não para. — Ela arfou, os olhos fechados mais uma vez
enquanto eu trabalhava lá.
Eu poderia ter parado ao ouvir um nome que não era o meu saindo
de sua boca. Poderia ter parado porque eu estava mentindo para Isabela e
pensar naquilo me deixava confuso, mas a verdade é que eu só parei porque
alguém estava batendo na porcaria da porta de entrada.
O som estridente nos assustou e tirei os dedos carregados da
umidade de Isabela para colocá-los na minha boca. Suguei seu sabor,
sentindo o salgado sobre meus lábios, e ela gemeu baixinho, se
aproximando mais ainda de mim.
— Não podemos fingir que não tem ninguém?
— Eu preciso atender, pode ser algo sério — disse, suspirando.
Saí detrás dela e guardei meu pau dentro da boxer.
— Vou para o seu quarto arranjar uma roupa — ela falou e saiu da
cozinha a passos apressados.
Meu membro ainda estava rígido, desejando sentir a carne quente de
Isabela, mas me obriguei a pensar com a outra cabeça. Não vesti uma
camisa, apenas esperei minha ereção desaparecer antes de ir atender a porta.
Eu já sabia que era Fernando antes mesmo de vê-lo ali, parado
diante de mim, já que ele era o único que eu autorizava o porteiro a deixar
entrar sem precisar interfonar.
— Por que demorou a atender? — Fernando me questionou
entrando na sala sem nem ao menos ser convidado.
— Eu estava ocupado — falei emburrado para o atrapalha foda.
Ele ergueu uma sobrancelha e vi a curiosidade estampada em seus
olhos ávidos, mas deixei ele na curiosidade, eu não iria falar o que estava
fazendo. Ou melhor dizendo, o que IRIA fazer, se ele não tivesse
atrapalhado.
Fernando não se convenceu com meu silêncio, já que colocou a mão
no queixo, me encarou com firmeza e disse:
— Você fez sexo. — Não saiu nem um pingo de dúvida no tom de
sua voz e usei toda a minha experiência em trabalhos infiltrados para fazer
cara de paisagem.
— De onde tirou essa informação? — tentei me fazer de incrédulo,
cruzando os braços sobre o peito.
— Me poupe, eu te conheço. — Fernando abriu uma risada sacana,
daquelas que só ele sabia fazer.
— Por que você veio aqui? Eu tenho mais o que fazer do que
escutar suas asneiras. — Tentei desviar sua atenção do assunto, mas mesmo
eu sabia que ele não iria cair naquela mudança de assunto.
— Foi bom?
— O que? — indaguei confuso.
— O sexo, óbvio.
Minhas mãos foram à cabeça, estava incrédulo com a audácia dele.
Quer dizer, conhecia-o havia anos e sabia do que ele era capaz, ainda assim
ele era do tipo que conseguia me surpreender com suas perguntas sem
sentido.
— Acho que está na hora de você ir embora. — Apontei para a
saída, nem um pouco feliz por ter que escutar aquele tipo de
questionamento.
Fernando não se mexeu em direção à porta, pelo contrário, sentou-se
no sofá como se ele próprio fosse o dono do apartamento.
— Pelo seu jeito emburrado não foi tão bom assim. — Pude sentir o
escárnio em seu comentário e principalmente a curiosidade, ele estava
jogando comigo. Queria me deixar zangado a ponto de eu soltar algum
comentário sobre minha intimidade.
— Pode esquecer, sua artimanha não vai colar.
E então o impensável aconteceu, meu amigo se levantou em um
pulo e caminhou em direção ao meu quarto. Eu fui mais rápido e, em um
passo, segurei seu braço com força.
— Você está extrapolando os limites. — Minha voz saiu como um
aviso.
— Ela ainda está aqui, não é? — questionou, dessa vez sem o
característico humor.
Não respondi, não precisava colocar mais lenha na fogueira e, como
se lesse meus pensamentos, Fernando bufou e tocou meu ombro com sua
mão.
— Por favor, diga que não se envolveu com ela.
Ele não precisou falar o nome. Eu sabia que ele estava falando sobre
Isabela. Engoli o nó que se formou em minha garganta e lutei para não
desviar meus olhos em um sinal de fraqueza. Fernando, entretanto,
percebeu tudo. Bastou um suspiro seu para eu perceber que estava chateado,
e com razão.
Eu estava metido em uma furada, mas era a melhor furada que havia
acontecido na minha vida. Encarei meu amigo, desejando dizer muitas
coisas, mas tudo o que fiz foi vê-lo se dirigindo à saída.
— Eu vim aqui para fazer você desistir dessa ideia maluca de
abandonar a missão, mas pelo visto não tem mais volta. Eu espero que você
não a machuque — Meu melhor amigo comentou, com uma mão já tocando
o trinco da porta. — Mas te conhecendo, o meu real desejo é que você não
machuque a si mesmo.
Ele foi embora sem nem olhar para trás, sem se atrever a me encarar.
E a honestidade dita naquelas palavras tão frias fez meu estômago remoer.
Jamais machucaria Isabela, ela era especial para mim. Mas a verdade é que
eu estava entrando em um terreno perigoso e estava fazendo algo do qual eu
não tinha controle. E mesmo que eu fosse sair da missão, da vida de
infiltrado, eu ainda estava ali, sendo o Ezequiel e não o Isaac.
Eu era um cara que sempre planejava todas as etapas da vida, mas
estava fazendo a coisa que mais odiava fazer.
Improvisando.
♪ Não me conte seus segredos, eu não quero saber
É difícil imaginar como você era antes ♪
::: Secrets – Monsta X:::

ISABELA MARTINS

As lágrimas rolaram dos meus olhos assim que o alçapão foi aberto.
Eu já sabia o que ia acontecer, ainda assim me peguei chorosa, em meio ao
desespero de uma possível captura.
— Não acredito que você me convenceu a assistir isso. — Ezequiel
protestou, os braços cruzados sobre o peito.
— Me diz, é perfeito, né? — perguntei, girando meu corpo no sofá e
ficando de frente para ele.
Ezequiel bufou e então, depois de tocar a testa por um segundo,
arranhou a garganta.
— Tudo bem, é bom.
— Bom? Você está de brincadeira. Pousando no amor é perfeito,
uma obra de arte.
— Você está exagerando. — Ele deu de ombros e eu revirei os
olhos.
Depois que seu amigo foi embora, tomamos café da manhã e eu
decidi mostrar para Ezequiel o mundo maravilhoso dos doramas.
— Não consegue sentir a química entre os atores? — perguntei
apontando para televisão, onde o protagonista tascou um beijo na sua
companheira de tela, para ajudá-la a não ser pega pelos vilões. — Eles se
casaram na vida real!
— A única química que sinto é entre mim e você — ele sussurrou, o
rosto subitamente se aproximando do meu e, tal qual a cena da série, me
beijou de súbito.
Meu estômago se remoeu no mesmo instante, como se o simples
tocar de lábios despertasse as borboletas que viviam adormecidas por ali.
— Bom, poderíamos ter visto onde nossa química teria nos levado
se não fosse por seu amigo — resmunguei, me sentindo ousada, querendo
repetir o que fizemos na noite anterior, porque assim era eu quando estava
perto dele. Eu mesma, sem anseios ou medos. — O que ele queria mesmo?
Ezequiel soltou um muxoxo alto e deu de ombros, as sobrancelhas
se juntando em um vinco, como se a mera lembrança de pensar em seu
amigo o deixasse chateado. Eu podia entendê-lo, o cara tinha atrapalhado
um momento para lá de quente.
— Fernando queria me falar uma coisa, mas não era nada demais.
— Não podia ter usado o telefone? — questionei, curiosa.
— Também não sei porque não usou. — Ezequiel tocou a garganta
com o indicador e completou.
— Você nunca tinha falado sobre esse seu amigo — disse e percebi
que Ezequiel ficou rígido com minha fala, a mandíbula trincada, os olhos
tentando demonstrar tranquilidade, mas eu o conhecia o suficiente para
saber que ele estava acuado.
— Quer dizer que você se inspirou nessa cena para me salvar
naquele dia na escola? — apontou para a televisão.
Ele tentou mudar de assunto virando o rosto para a televisão, mesmo
que seus olhos não focassem na cena que passava na tela. O dia estava
nublado, as janelas abertas traziam os barulhos escassos dos pássaros. Era
um domingo gostoso, daqueles que eu costumava passar o dia inteiro na
cama, mas ali estava eu, ao lado de Ezequiel, sua mão na minha coxa, uma
cena nada parecida com o que eu estava acostumada, mas que de certo
modo me trazia um conforto que não sentia há muito tempo.
Era natural tê-lo ali, como minha companhia, mesmo quando ele me
irritava. Ele cuidava de mim, e eu comecei a pensar que talvez também
precisasse cuidar dele. Então, arranhando minha garganta, respondi à sua
pergunta.
— Sim, e graças a esse dorama que você não se encrencou —
respondi.
— Eu não teria me encrencado se você não estivesse lá. — Ele
apontou para mim.
— Nossa, seu pai tinha razão, você realmente é orgulhoso.
Soube que tinha falado merda logo após fechar a boca. O pai de
Ezequiel havia morrido em um assalto, e não fazia nem vinte e quatro horas
que, graças a mim, as lembranças daquele fatídico dia tinham atingido-o.
Ele, entretanto, balançou a cabeça e depois passou a mão pelos cabelos. Os
olhos fixos em um ponto que eu não soube identificar.
— Você está certa — falou sem sarcasmo ou chances para eu
protestar.
Um nó se formou em minha garganta. Eu não estava ajudando em
nada. Na verdade, estava atrapalhando tudo, mas antes que eu pudesse
sequer me redimir, os dedos de Ezequiel roçaram meu queixo, trazendo meu
rosto para perto do seu.
Suas pupilas dilatadas deixavam pouco espaço para o castanho das
íris e ele tombou a cabeça para o lado me admirando. Ezequiel ficou em
silêncio por um tempo, o polegar em um vai e vem pela minha pele e então,
subitamente, se afastou, se ajeitando sobre o sofá, a coluna ficando reta.
— Eu amo sua espontaneidade — disse, a voz suave contrastando
com suas feições rígidas. — Amo que você não tem papas na língua e que
se entregue em tudo que se preza a fazer.
Ezequiel suspirou e eu pude sentir no ar que suas palavras saíam
com certa dificuldade, o peito subindo e descendo em um ritmo acelerado.
— Acima de tudo, amo sua sinceridade e é por isso que quero te
contar uma coisa. — Ele passou a mão pelos cabelos e depois mordeu o
lábio. — Eu...
Um barulho estridente soou vindo da porta. Não eram apenas
batidas, eram socos desferidos com força.
— Preciso falar com você, abre a porta. — Uma voz soou do outro
lado e Ezequiel se levantou, fechando a mão em punho.
Ele abriu a porta não dando passagem para a pessoa do outro lado e
cruzou os braços sobre o peito.
— Fernando, não é uma boa hora. — Meus pelos se arrepiaram só
de escutar o tom grave saindo da boca de Ezequiel, mas pelo jeito, seu
amigo não se importou, já que continuou de pé na sua frente e não fugiu
correndo pelo corredor como eu teria feito.
— Cadê seu celular, por que você não atende a porra do telefone? —
o tal de Fernando rugiu, o desespero visível não só em seu rosto, os olhos
apertados, rugas cruzando sua testa, como também em seu corpo, as pernas
se mexendo exageradamente e as mãos na cabeça onde a careca reluzia.
— Ei, que xingamentos são esses? — Ezequiel questionou, a fúria
reverberando dentro dele.
— Foda-se os xingamentos. — Fernando segurou o braço de
Ezequiel, que travou no mesmo instante, a atmosfera amena se tornando fria
rapidamente, antes, entretanto, que qualquer um dos dois se mexesse,
Fernando continuou. — Acharam um suspeito de assassinato do seu pai.

O trajeto foi feito em um silêncio ensurdecedor. A mão de Ezequiel


segurava a minha com firmeza e eu, sempre tão tagarela, não ousei proferir
uma palavra enquanto Fernando dirigia sua caminhonete 4x4. O amigo de
Ezequiel parecia tão tenso quanto nós. Seu olhar vez ou outra se cruzava
com o meu através do retrovisor interno. Suas íris castanhas me fitavam
com tanta intensidade que faltavam furar meu crânio. Minha atenção,
entretanto, não estava nele, e sim no homem que a horas atrás havia
compartilhado não só o corpo, mas também a alma comigo.
Ezequiel manteve os olhos fechados desde que entrou no banco
traseiro do carro, o peito subindo e descendo em compasso com sua
respiração acelerada. Ele mordia o lábio a ponto de sua boca estar um
vermelho vivo. A mão que não segurava a minha se fechava com tanta
força que as veias se sobressaíam. Eu sabia como a mente poderia ser cruel,
como mesmo após tempos, tinha o poder de trazer à tona todos os nossos
pesadelos de uma só vez. Por isso, eu acariciei seu rosto, a barba curta,
áspera, sobre meus dedos. Ele me encarou no mesmo instante, o olhar
marrom escuro repleto de uma súplica silenciosa que somente aqueles que
possuíam um passado conturbado conseguiam entender.
— Eu estou com você — sussurrei assim que o carro parou no
estacionamento da delegacia.
Ele não respondeu, era visível seu olhar atônito, mas apertou minha
mão entre a sua, o calor aquecendo todas as partes do meu corpo como só
ele era capaz de fazer. Fernando abriu a porta do passageiro para mim e
entrou no edifício, me deixando para trás com Ezequiel.
O movimento estava agitado para um domingo, pessoas entrando e
saindo, uma equipe de reportagem à espreita de qualquer notícia
catastrófica para compartilhar em rede local. Ezequiel observou a fachada
do prédio, os pés parados em frente à porta dupla de vidro, as mãos no
bolso da calça como de costume. Pude perceber seus lábios se movendo em
uma contagem regressiva, “três, dois, um” e então empurrou a folha de
vidro que dava acesso ao hall de entrada.
A recepcionista balançou a cabeça, em um aceno, assim que
passamos por seu balcão, mas Ezequiel não parou ali para pedir
informações e supus que ele já havia feito aquele caminho algumas vezes
em busca do culpado pela morte de seu pai. Um calafrio percorreu meu
corpo só de imaginar a busca incansável que ele havia feito durante esse
tempo. Seus passos ecoavam sobre o chão de cimento polido, o corredor se
tornando longo demais. Algumas pessoas que transitavam por ali olhavam
para Ezequiel com o semblante repleto de pesar, quase como se o
conhecessem e assumissem sua dor. A atmosfera não podia ser mais fria, o
silêncio só sendo preenchido pelos cochichos das pessoas e pelo barulho
das minhas sandálias que se misturavam aos da pisada de Ezequiel.
Ele parou de frente a uma sala e a porta se escancarou, dando lugar a
uma mulher alta, de cabelos curtos e escuros, e um olhar sombrio. Um que
me pareceu familiar.
— Mãe? — a voz de Ezequiel saiu em um sussurro, sem forças para
falar algo mais.
A mulher desviou os olhos do filho e me fitou, depois se voltou à
Ezequiel mais uma vez.
— Querem mostrar novas fotos de suspeitos — ela comentou. —
Um homem foi preso por dirigir embriagado e durante o depoimento
afirmou anteriormente ter matado um policial.
Ezequiel assentiu, digerindo tudo o que estava acontecendo. Ele
entrou na sala e eu fiquei parada, sem saber se deveria acompanhá-lo ou
não.
— Você sabe que deve fazer o reconhecimento sozinho. — Um
homem apareceu ao seu lado, tocando seu ombro, em apoio.
— Não se preocupe, eu fico com ela aqui fora — a mãe de Ezequiel
falou, se referindo a mim, e eu me senti travada quando a porta foi fechada,
afinal eu sabia que Ezequiel e a mulher que estava ao meu lado não se
davam bem. — Eu sou Maria do Carmo. Qual seu nome?
— Isabela — respondi, estalando os dedos em um gesto de defesa.
Ela me analisou de baixo para cima, os olhos fitando a calça de
moletom larga que eu havia pegado emprestado, e acabou demorando
tempo demais analisando a camisa do Asa Noturno que pertencia a seu
filho. A mãe de Ezequiel estava elegante em sua saia midi cor nude e
camisa de manga longa verde. Eu sabia que ela era médica, rica, mas nada
tinha me preparado para ser julgada por usar uma roupa que peguei às
pressas.
— Você é namorada dele? — ela perguntou, andando até um
banquinho de metal que ficava colado em uma das paredes do corredor.
— Somos amigos — respondi a verdade. Não sabia se éramos
namorados ou não, mas sem dúvidas éramos amigos. Daqueles que
compartilhavam segredos e se apoiavam mutuamente. Daqueles que
tiravam a roupa e faziam um sexo incrível, mas ela não precisava saber
disso.
— Não precisa ter medo de mim. — Maria do Carmo abriu um
sorriso, apontando para o banco, indicando para eu me sentar ao seu lado, e
eu me encostei sobre as barras metálicas, mantendo uma certa distância da
mulher. — Sei que meu filho não deve ter falado muito bem ao meu
respeito, mas em minha defesa eu só queria que ele não cometesse os
mesmos erros que o pai.
A mãe de Ezequiel não parecia rancorosa, nem mesmo chateada,
apenas cansada e eu sabia que meus próprios pais, ambos dentistas, haviam
ficado com um pé atrás quando eu falei que queria ser professora. Havia
sido uma batalha árdua mostrar que era aquilo que eu queria.
— Acredite, ele é a pessoa que menos comete erros na vida e se
comete é tentando acertar. — Me senti na obrigação de defendê-lo.
— Esse é exatamente o problema. O pai dele também era assim e
veja como acabou, morto por um momento de irresponsabilidade. — Ela
bufou, os olhos se estreitando, formando algumas rugas na testa. Ela
guardava uma tristeza profunda. Tinha raiva que seu marido havia sido
assassinado enquanto protegia uma pessoa.
— Não se preocupe, Ezequiel sabe o que faz.
Maria do Carmo abriu o zíper da bolsinha que carregava e puxou
um cigarro lá de dentro.
— Quem é Ezequiel? — ela questionou e eu ergui uma sobrancelha,
confusa.
— É proibido fumar aqui dentro. — Fernando apareceu de súbito,
me assustando, os braços cruzados sobre o peito. — Você sabe disso, Dona
Maria.
— Tenha dó de mim, meu filho está prestes a descobrir quem matou
o pai.
Fernando nem piscou, mantendo a postura ereta e firme, a cabeça
raspada refletia o brilho das luzes ligadas.
— Se quiser fumar vai ter que ir para fora — ele foi curto e grosso,
mas Maria do Carmo nem pestanejou, deu de ombros e se levantou.
— Você é igualzinho a ele, dois homens que pensam que podem
carregar o mundo nas costas, mas esquecem que Atlas suportava o peso da
Terra como forma de castigo, não de benção. — A mãe de Ezequiel puxou o
isqueiro e, sem cerimônia, acendeu o cigarro ali, soltando fumaça no espaço
após uma tragada. — Ser policial não é uma dádiva, é uma maldição. Você
e ele ainda vão perceber isso.
Ela saiu caminhando, uma risada grotesca saindo da boca, mas nada
chamou mais minha atenção do que suas palavras, que ainda reverberavam
em minha mente.
— Agente Mascarenhas, o delegado quer falar com você. — A
recepcionista, que vi lá na entrada da delegacia, apareceu correndo em
nossa direção e parou em frente à Fernando.
Fernando fechou a cara e levou uma mão à cabeça, passando os
dedos pelo cabelo raspado, os músculos se contraindo. Depois de um
suspiro longo, olhou para mim. Um olhar rápido, mas cheio de sentido. Ele
foi embora, me deixando mais confusa do que eu já estava.
“Agente Mascarenhas.”, “Quem é Ezequiel?”, as informações
começavam a se conectar como quebra cabeças em minha mente. Aquilo
não podia ser real. Quanto mais eu pensava, mais fazia sentido. A ausência
de redes sociais. O desconforto em falar de assuntos pessoais. Cicatrizes
espalhadas pelo corpo, sempre envolvendo violência. A algema dentro do
guarda-roupa.
A porta da sala se abriu e Ezequiel saiu, mas assim que me viu, ele
parou. Os olhos se arregalaram e a boca se abriu pronta para falar, não
saindo, entretanto, nenhum som. Ele deu um passo e, em resposta à sua
aproximação, eu me encolhi sobre o banco. Ele recuou no mesmo instante,
uma careta se formando em seu rosto, como se me ver fazendo aquilo
doesse nele.
— Isabela... — sussurrou meu nome, que parecia tão certo saindo de
seus lábios, o que só fez com que eu desejasse que tudo não passasse de um
engano.
— Diga que não é verdade, Ezequiel. Por favor. — Lutei contra
tremores que insistiam em me invadir.
Ele fixou as íris em mim, o marrom sendo invadido pelas sombras
que sempre estiveram ali.
— Isaac.
— O quê?
— Meu nome é Isaac.
Sua declaração curta, porém cheia de significado, foi o ponto final
que eu não queria. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto e eu toquei meus
lábios onde o gosto salgado se acumulou.
O homem, que eu já não reconhecia como sendo Ezequiel, fez
menção de se aproximar, o corpo vindo na minha direção, mas eu estendi a
palma da minha mão em um gesto de impedimento. Ele parou no mesmo
instante e um pequeno pedaço dentro de mim torceu para ele insistir, para
ele não me obedecer. Mas a maior parte, aquela que fazia os soluços do
choro preencher meu corpo, só queria distância.
Me levantei ainda que as pernas parecessem sem força e me deixei
arrastar pelo corredor, me afastando cada vez mais da pessoa que chamava
meu nome repetidas vezes. Como alguém que já havia sofrido fisicamente,
o tipo de dor que eu sentia naquele momento parecia pior, ameaçava me
sufocar. Porque as cicatrizes que eu carregava na pele não machucavam
tanto quanto as que eu carregava na alma.
♪ Eu queria poder apagar
Fazer seu coração acreditar ♪
:::Bad Liar – Imagine Dragons:::

ISAAC ALMEIDA

— Isaac, levante-se! — Fernando me chamou pela terceira vez, mas


não me mexi. Estranhamente aquele nome não parecia me pertencer. O
nome que eu levava desde o nascimento não se encaixava em meus
ouvidos, não como a voz melodiosa de Isabela. — Você tem que sair dessa,
passou o dia enfurnado nessa cama.
— Me deixe em paz, Nando. Eu não preciso de babá — resmunguei.
Meus olhos arderam quando ele puxou a cortina e os raios solares
do fim de tarde invadiram minhas pálpebras ainda fechadas. Desgraçado!
Enfiei o travesseiro sobre meu rosto, abafando o grito que cruzou minha
garganta.
Uma pontada em minha cabeça martelou meu cérebro, e eu percebi
que a ressaca não ia me dar trégua só porque estava com o coração partido.
Pelo contrário, ela me mostrava que eu estava daquele jeito justamente por
isso. Havia bebido não para esquecer Isabela, mas para lembrar que eu era o
cara que machucava as pessoas em prol da minha profissão. A profissão que
me distanciou dela. Que fez eu ser um mentiroso filho da puta.
— E eu não preciso cuidar de uma criança mimada. — Meu amigo
puxou o travesseiro do meu rosto e jogou uma camisa na minha direção. —
Se vista, vamos correr.
Fernando havia decidido dormir no meu apê depois de eu ter sofrido
dois baques em um único dia. Saber que o assassino do meu pai ainda não
havia sido descoberto e continuava impune me deixou mal, mas presenciar
Isabela descobrindo a verdade vindo de qualquer outra pessoa que não de
mim me deixou na fossa. Na minha cabeça fodida, tudo ia se sair bem, eu ia
contar a verdade para ela e ela iria me perdoar mesmo sabendo que tinha
todos os motivos para não fazer isso. Só que, obviamente, tudo deu errado.
Eu ainda não sabia se quem tinha contado a verdade havia sido minha mãe
ou Fernando, mas, àquela altura, não me importava. Eu havia mentido e a
culpa era única e exclusivamente minha e de mais ninguém.
— Eu sabia que isso ia acontecer. — Fernando jogou um balde de
água fria em mim e me sentei na cama disposto não a correr, mas a socar
meu amigo.
— Fernando, é melhor você ir embora, não estou com paciência
para ouvir seus sermões — retruquei, me levantando e indo até o banheiro.
Abri a torneira e molhei a face, desejando apagar o que tinha
acontecido no dia anterior. Levantei o rosto, me olhando pelo espelho, a
imagem de um homem acabado mais uma vez por uma missão, mas por
motivos diferentes.
Meu amigo me seguiu, aparecendo no reflexo do espelho, e eu
bufei, zangado. Eu sabia que ele queria o meu melhor, que havia me
avisado para me afastar e ter cuidado para não magoar Isabela, mas era
tarde demais. Eu havia quebrado o coração dela e só de pensar nesse fato
me dava vontade de vomitar. Passei a noite em claro, revendo o momento
em que as lágrimas escorreram do seu rosto, a voz quebrada perguntando se
era verdade. Tudo o que eu consegui dizer foi o meu nome, um nome que
eu desejava mais do que tudo que aquela mulher que chegou bagunçando
minha vida aceitasse.
— Eu nunca vi você assim antes. — Fernando falou em meio a um
suspiro.
— Eu nunca me senti assim antes, como se tudo dentro de mim
doesse.
— Eu sei que você está se sentindo um lixo, mas vai passar.
LIXO! Eu realmente estava me sentindo a porra de um lixo. Eu
tinha destruído todos os bons momentos que havia passado ao lado de
Isabela. Tinha falhado em tantas promessas feitas e quebrado o principal elo
que nos conectava: a confiança. Sim, eu era um lixo. Era um filho da puta
mentiroso, passei tempo demais focado no trabalho, como se ele fosse
capaz de ser suficiente. Eu precisava dela, como se o ar em meus pulmões
só conseguisse ser expelido em sua presença. Precisava para que meu peito
parasse de doer e para que a vida tivesse mais sentido. Então sim, eu era um
LIXO.
L. I. X.O!
A palavra se fixou em meu cérebro como um mantra, se repetindo
várias e várias vezes e então, como um passe de mágica, eu tive uma
eureka.
— Fernando, você precisa ir embora. Agora — falei fechando a
torneira e o empurrando para fora do meu banheiro.
— Ei, como assim? O que foi? — ele questionou, mas não tinha
tempo para perder com ele, precisava focar no que minha mente tinha
acabado de descobrir.
— Depois a gente se fala. — Empurrei seu corpo, sem paciência, até
a porta de entrada, jogando sua mochila ali no corredor, sem a menor
cerimônia.
Fechei a porta sem nem olhar para trás e nem dar atenção às batidas
que Fernando desferia ali. Tinha que me concentrar. Puxei o notebook da
mesma gaveta onde guardava minha arma e assim que a tela do Google
abriu eu pesquisei o que não saía da minha cabeça. O dia e horário que
passava o caminhão de lixo na escola!
A resposta, estampada no site da prefeitura, foi o suficiente para eu
saber que tinha algo errado. A coleta passava apenas às quartas feiras pela
manhã, o que não se encaixava com o fato de que seu João estava tirando o
lixo, à noite, no dia que me pegou no flagra com Isabela. Eu pensei que ele
estava nervoso porque tinha me visto na sala do diretor, mas pensando bem,
ele não parecia nem um pouco preocupado comigo e sim... com ele mesmo.
Eu que o peguei no flagra. Ele derrubou a sacola do chão e o barulho não
parecia de resíduos e sim de algo mais pesado. Ainda tinha o fato de que
Isabela falou que Tibério brigou com ele sobre tirar o lixo na hora errada
também, o que só confirmava que o vigia estava tirando outra coisa naquela
sacola e não os detritos produzidos pela escola.
Algo estava errado e Seu João não só sabia como participava do
esquema. Era típico das organizações envolver pessoas menos favorecidas
como bodes expiatórios e eu tinha certeza de que, se prendesse o vigia, ele
ia ficar de boca fechada e não iria dedurar ninguém. Aquilo não parecia
desvio de verbas e sim algo pior.
Em uma busca rápida pelo site da escola, descobri o nome completo
do vigia e, com seu nome, foi fácil obter seu CPF. Em uma vistoria no
banco de dados, verifiquei que sua ficha era limpa, tinha apenas levado uma
multa por conta de um IPVA atrasado. O que chamou a atenção, entretanto,
foi o carro que usava: um Corolla avaliado em mais de cem mil reais.
Meu coração bateu acelerado com a informação. Eu ainda não tinha
falado com o chefe sobre meu desligamento do caso, mas aquela epifania
parecia um sinal para que ao menos fizesse uma última investigação. Peguei
a camiseta deixada por Fernando e a vesti rapidamente, colocando-a
primeiro pelo pescoço e depois pelos braços. Apanhei a chave do carro,
pronto para me afundar de vez, quando um barulho soou do notebook.
Uma notificação de recebimento de e-mail. Um e-mail para
Ezequiel, não para mim. Vacilei por um segundo. Eu não era Ezequiel, por
mais que nos últimos dias quisesse desesperadamente ser. Abri a página do
e-mail, vendo que era um convite para uma palestra de última hora sobre
como se portar diante dos pais dos alunos. Olhei a hora da palestra e um
riso escapou dos meus lábios quando vi que seria dali a trinta minutos,
típico das repartições públicas avisar sempre em cima da hora. Larguei as
chaves do carro e passei a mão pelos cabelos, me deixando afundar sobre o
tecido macio da cama. Eu sabia que tinha todos os motivos para ir à
reunião, concluir minha missão e seguir adiante. O único motivo,
entretanto, que aparecia em minha mente tinha nome: Isabela. Eu teria uma
última chance de vê-la, uma última oportunidade de gravar seu rosto.
Levantei do sofá e me dirigi ao banheiro, disposto a tomar um banho
e me deixar ao menos apresentável, lavando minha cara de ressaca. A água
percorreu meu corpo cheio de marcas e a cada toque do sabonete, meu
pensamento inevitavelmente se voltava para Isabela . As lembranças de
seus dedos em contato com minha pele, o calor intenso que irradiava de
nossos corpos quando estávamos próximos. Cada pedaço meu foi invadido
por sensações ardilosas. Fechei os olhos e alisei as linhas que cruzavam
meu peito. Eu ainda lembrava de cada rosto agonizante, cada súplica, mas
eu sabia que tinha feito o que fiz por um bem maior. Então, por que eu não
me sentia da mesma forma em relação a Isabela? Por que meu desejo por
ela era maior que meu desejo de desmantelar qualquer que fosse o crime
que ocorria na escola?
A resposta era clara, não era porque eu estava me importando menos
com meu emprego, afinal, eu ainda tinha aquela sede de justiça, a vontade
de fazer o certo correndo em minhas veias. Era porque meus sentimentos
por Isabela tinham superado qualquer desejo profissional. Deixei o banheiro
com a toalha cobrindo metade do corpo e a certeza de que não a deixaria
escapar pelos dedos.
Puxei uma camisa de botão do cabide, o tecido impecavelmente liso,
e uma calça escura. Desenterrei o coturno da parte de baixo do guarda-
roupa, adicionando ao look formal uma pegada militar. Eu queria estar
confortável, mas ao mesmo tempo pronto para a ação. Seria minha última
missão infiltrado e, independentemente do que acontecesse, quase desejava
uma certa dose de adrenalina. Guardei as algemas usadas em Isabela no
bolso da calça e caminhei até a gaveta que ficava ao lado da minha cama,
girando a chave na pequena fechadura que ficava ali. Minha mão direita se
fechou firmemente sobre o cabo da Glock G19, enquanto a esquerda
deslizou suavemente pelo cano da arma. Puxei também um coldre que
ficava ali, e guardei a arma nele, desejando que não fosse necessário usá-la.
Conferi o relógio digital com letreiros vermelhos em cima da mesa de
cabeceira e notei que faltavam apenas alguns minutos para o início da
palestra.
Minhas mãos suaram sobre a direção do carro com acabamento em
couro, e o motor roncava cada vez que pisava no acelerador. Pela primeira
vez em muitos anos, senti a ansiedade rugir dentro do peito, como um
lembrete de que era a última vez.
Quando desci do carro, estacionando do lado de fora da rua que
dava acesso à escola, percebi que a movimentação estava pouca, talvez
devido ao convite de última hora. Alguns poucos automóveis ocupavam o
estacionamento e uma pequena decoração enfeitava a porta de entrada.
Professores adoravam balões, embora não tivesse nenhuma criança ali. O
coturno não fazia barulho pelo piso do corredor que dava acesso às salas,
mas não era necessário preocupação, já que ele estava vazio. Baixei a vista
para olhar o celular e, nesse pequeno movimento, fui surpreendido.
O cheiro conhecido de clorofórmio inundou minhas narinas antes
mesmo de eu perceber que tinha alguém atrás de mim. Por mais que meus
reflexos fossem rápidos, o composto químico foi mais veloz. Ainda
consegui perceber as mãos arrancando a arma de mim antes de ser arrastado
pelo chão. Em meu cérebro confuso, apenas uma ideia se formava. A que
aquela realmente parecia ser minha última missão.
♪ Todos os caminhos que pegou te trouxeram de volta pra mim
Então estou seguindo o mapa que me guia até você ♪
:::Maps – Maroon 5:::

ISABELA MARTINS

Eu odiava o homem que se chamava Isaac! Odiava por ter mentido


para mim o tempo todo, por ter fingido ser outra pessoa, por ter se
aproximado e conquistado uma parte do meu coração e, principalmente, por
ter feito com que eu começasse a odiar sorvete.
De pijamas furados ao final da tarde, os cabelos bagunçados em um
coque, e a música da Shakira que falava sobre o ex-marido na maior altura
que o os vizinhos permitiam, eu achava a taça cheia da sobremesa gelada
sem o característico gosto que eu amava.
Meu espanhol saía em meio a soluços e eu tinha certeza de que até
mesmo Shakira, que havia sido trocada por uma novinha, teria pena de
mim. A aula que dei pela manhã havia sido a pior da minha vida, tanto que
nem culpei os alunos que saíram para o banheiro e não voltaram mais. O
espanhol fluía naturalmente devido aos ensinamentos do meu avô. Meu
cérebro, entretanto, não conseguia parar de pensar em todas as vezes que a
verdade estava ali, pairando entre mim e Ezeq... quer dizer, Isaac. Por isso,
minha voz ficou parecida com a do Chaves quando falava rápido sobre o
professor Linguiça, só que na versão espanhola, não em português do SBT.
Eu pensei que chegar em casa, tirar minhas sandálias de salto médio
e a calça colada, faria eu me sentir melhor. Não podia estar mais enganada.
O simples fato de tirar meu sutiã foi o suficiente para me inundar com as
lembranças das mãos de Isaac ali, no primeiro dia que nos conhecemos. Me
olhar no espelho e ver as pequenas marcas de catapora também trouxeram à
minha mente o homem que eu queria esquecer. Por isso, quanto aceitei a
derrota e peguei o pote de sorvete que havia trazido do supermercado logo
após o fim das aulas, eu apenas deslizei pelo sofá colocando uma playlist
inteira apenas com músicas em espanhol. Naquele território, o professor de
inglês, que na verdade era a porra de um policial, não tinha como se
infiltrar. E foi assim, até a música de traição da Shakira rolar, e junto com
ela minhas lágrimas também.
Isaac tinha chegado de mansinho e capturado um pedaço do meu
coração. E agora eu não sabia o que fazer com a parte que ele havia
reivindicado mesmo sem perceber.
Uma batida na porta fez eu passar a mão pelos olhos, afastando as
lágrimas. Um toque de esperança ousou me atingir, mas logo foi substituída
por uma fúria avassaladora. Avancei até a estrutura de madeira com
velocidade e escancarei a porta já no ponto para batalha.
— O que você quer aqui? — gritei, esperando ver Isaac na minha
frente, só que quem estava ali era Iago. — Opa, pensei que era outra pessoa.
— Uau, eu não queria ser ele. — Iago riu, as bochechas ficando
levemente rubras.
— Quem disse que é um homem?
— Bem, não sei muito espanhol, mas sei quem é o Piqué. — Iago
continuou sorrindo e covinhas, que eu nunca tinha visto, surgiram ali perto
de sua boca. O fato de que aquele homem tão bonito não mexia com meus
batimentos cardíacos foi a resposta que eu não queria confirmar.
Eu que tinha reagido ao assalto, mas havia sido Isaac o responsável
por fazer eu me sentir como se tivesse levado um soco no estômago. Eu
compartilhei meus segredos, sentimentos, corpo e alma. E o que ele tinha
dado em troca? Mentiras? Tudo não passou de um teatro barato? Então
porque eu insistia em reviver as memórias, tentando provar a mim mesma
que havia sido real?
— Está tudo bem? — Iago questionou quando passei os braços pelo
meu próprio corpo, tentando evitar o frio que me assolava desde que
descobri a verdade.
— Sim — menti, percebendo que a inverdade saiu naturalmente.
Teria sido assim para Isaac?
Iago não acreditou nas minhas palavras, mas não insistiu, apenas se
apoiou no batente da porta.
— Eu vim aqui para perguntar se você tinha farinha de trigo —
comentou, mordendo o lábio inferior.
— Você está fazendo um bolo à prestação? — questionei,
lembrando que ele veio um dia em busca de açúcar.
Ele gargalhou, a ponto de colocar a mão sobre a barriga, e então
apontou para mim.
— Isabela, você é divertida, mesmo que esteja usando pijamas
furados.
Mierda! Olhei para baixo, analisando o tecido velho, e passei a mão
pelos cabelos presos. Eu não podia estar pior!
— Bem, os furinhos servem para entrar ar, sabe como é, Teresina
não é conhecida como Terehell à toa. — Tentei brincar, sabendo que minha
piada tinha sido horrível, porque falar de calor em uma das cidades mais
quentes do Brasil era no mínimo redundante.
— Que tal a gente deixar a farinha de lado, que, por sinal, você
nunca pegou e eu te levar para jantar? Só não pode ir com esses pijamas, lá
no restaurante tem ar-condicionado e não quero que sinta frio pela
“ventilação” da sua roupa.
Encarei Iago por um tempo, analisando desde seus cabelos
castanhos claros, rebeldes, até seus olhos azuis. Ele era totalmente diferente
de Isaac, começando pela fisionomia, finalizando pelo jeito de se vestir,
sempre com uma roupa que lembrava academia. E era esse o problema.
Iago não era Isaac, e ainda que eu mesma não soubesse quem era o homem
que fingia ser Ezequiel, algo dentro de mim me fazia acreditar que o cara
que me protegeu, cuidou de mim e estava presente sempre que eu precisava
era o verdadeiro Isaac e não um personagem fictício.
— Eu vou ter que recusar seu convite. — Meu celular apitou sobre a
mesinha de centro e eu voltei à sala para buscar o aparelho, jurando ser
mais uma ligação de Isaac, só que era um convite. Um convite da escola. —
Na verdade eu tenho um compromisso agora, então eu realmente preciso
me arrumar.
— Tudo bem, quem sabe da próxima vez eu venha atrás de ovos —
ele comentou, piscando um dos olhos na minha direção.
— Acho que você está precisando ir ao supermercado — respondi.
Eu não pude deixar de sorrir, não porque Iago estava dando a
entender que não iria desistir, mas porque a resposta na ponta da minha
língua me fez inconscientemente lembrar de Isaac.

Eu não estava com sorte. Primeiro, porque um caminhão de lixo


bloqueava a entrada do estacionamento, então tive que deixar o carro do
lado de fora, na rua. Depois, demorei uma eternidade para fazer uma baliza
e, na hora que abri a porta do carro e coloquei o pé para fora, vi que enfiei
meu scarpin branco em uma poça de água. Para completar, uma chuva fina
começou e eu não tinha levado guarda-chuva. Enquanto corria sobre os
saltos em direção à entrada da escola, minha maquiagem, que não era a
prova água, ameaçava se desmanchar, fazendo com que eu corresse o risco
de chegar na palestra parecendo o Coringa e não uma musa como eu tinha
planejado.
Quase escorrego no tapete emborrachado com a inscrição de “bem-
vindo”, bastou, entretanto, ouvir a voz de Margareth que me senti aliviada.
— Uau, você está vestida para matar — ela comentou, olhando do
meu vestido vermelho para si própria, que trajava uma calça jeans e uma
camiseta azul bebê da Lady Whistledown. — E talvez precise mesmo,
porque na reunião de pais e mestres quase rolou morte.
Margareth riu da própria piada e se eu não soubesse que estava
falando a verdade, talvez eu também risse. A última reunião foi um horror,
não só porque encontrei Martin, mas porque as coisas saíram do controle a
ponto de ter que fazer uma palestra de emergência para tentar amenizar a
situação.
— Você não parece bem, aconteceu alguma coisa? — questionou,
estreitando os olhos.
— A chuva estragou minha maquiagem, preciso ir ao banheiro
retocar — desconversei.
Caminhei apressada até o banheiro, apenas acenando com a cabeça
para um professor ou outro que passava por mim. Entrei no cômodo que só
tinha duas cabines, ambas com as portas defeituosas, e fui direto ao espelho.
Eu estava linda. A maquiagem ainda permanecia no lugar, o que mostrava
que cada centavo gasto valeu a pena. As olheiras estavam escondidas com
corretivo, a boca marcada com um batom vermelho, ainda assim, o fogo
que costumava ter em meus olhos estava morno, quase como se a chuva
tivesse tido o poder de apagá-lo.
Margareth estava errada. Não tinha acontecido uma coisa. Tinham
acontecido várias coisas, e o pior foi perceber, apenas diante do meu
próprio reflexo, que eu não sabia se podia compartilhar aquilo com outra
pessoa. Isaac mentiu para mim, e na minha cabeça só isso importava, até eu
perceber que ele era um policial. E se estava ali, isso queria dizer que
provavelmente investigava algum crime. Que crime? Contra quem? As
perguntas começaram a surgir na minha cabeça e apoiei as mãos sobre o
balcão gelado de granito para tentar conter os inúmeros motivos que
poderiam ter trazido ele para a escola. Seria comercialização de drogas
entre alunos? A busca de um serial killer?
Olhei para os lados com medo de subitamente ver alguém ali, mas a
única pessoa no banheiro era eu. Talvez estivesse cansada demais.
Imaginando coisas. Suspirei assim que pisei no corredor, um pequeno
barulho já podia ser ouvido perto da sala que servia como auditório, mas ao
invés dos meus pés seguirem esse caminho, como se tivessem vida própria,
eles foram na direção oposta, no sentido do almoxarifado. Ali, uma pequena
luz podia ser vista pelo vitrô que ficava na parte superior da porta. Eu sabia
que à noite ninguém ficava naquela sala, então a curiosidade bateu dentro
de mim.
Os saltos barulhentos não ajudavam a ser silenciosa, por isso retirei-
os, pisando com a sola dos pés no piso, que àquela altura da noite, estava
frio. Segurei os sapatos scarpin com uma mão e a outra fechei em punho,
enfiando o polegar dentro da boca, roendo a unha. Fiquei na ponta dos pés
para conseguir enxergar pelo vitrô e o que vi fez eu derrubar os calçados no
pé da porta, chamando a atenção das pessoas que estavam na sala, inclusive
de Isaac.
Tive apenas tempo suficiente para pegar o celular e enviar uma
mensagem para Margareth dizendo "190 freezer", antes que a porta se
abrisse e eu fosse puxada para dentro.
♪ Você pode me beijar com sua tortura
Me amarre em correntes de ouro ♪
:::My Obsession – Cinema Bizarre:::

ISAAC ALMEIDA

Eu tinha que estar dentro da porra de um pesadelo. Porque era o


único cenário possível onde eu estaria algemado ao lado de Isabela, sem
que isso fosse o paraíso ou um sonho erótico.
Meus pulsos ardiam em contato com o metal gelado, os braços
presos para trás da cadeira de madeira. Uma fita adesiva amarrava minhas
pernas e outra cobria minha boca. A sala estava semi-escura, apenas uma
lâmpada incandescente de baixa potência iluminava o local que era
abarrotado de prateleiras e caixas. O suor se misturava ao sangue que
escorria do meu nariz, consequência de alguns socos tomados. Embora o
cenário não fosse nem um pouco favorável, se tornou pior quando Isabela
entrou no meu campo de visão, um sorriso congelado no rosto. Um sorriso
de quem tinha medo do que estava prestes a acontecer.
Seu nome naturalmente escapou de meus lábios, só que morreu
preso na fita tape. Seu João a segurava pelas mãos, como tinha feito
comigo, mas ao invés de amarrá-la, apenas pediu para que ela se sentasse
em uma cadeira semelhante à minha.
— Encontrei ela no corredor — comentou, a voz baixa, os olhos
arregalados de quem estava com medo.
— Deixe-a aí. — Tibério ordenou, saindo das sombras, os nós dos
dedos tingidos de vermelho pelo meu sangue. — Depois que eu acabar com
ele ou vejo o que faço com ela.
Quando acordei, depois do efeito do clorofórmio passar, não me
surpreendi ao perceber que estava preso. Também não me surpreendi ao ver,
ali, seu João e Tibério. O vigia com certeza era um peão no jogo, eu só não
esperava que o professor de geografia fosse o rei a ponto de controlar o
próprio diretor, que estava apoiado sobre um freezer horizontal, nervoso, a
mão branquela e gorda tremendo. Pascoal não parecia nem um pouco o
homem confiante que eu tinha conhecido. Ainda estava confuso sobre como
as coisas funcionavam, mas eu só queria que Isabela pudesse sair ilesa
daquela situação.
Ela, por sinal, se remexeu sobre a cadeira e meu coração acelerou só
de pensar que poderia reagir, como fez no assalto, mas ela ficou quieta, a
respiração rápida, marcada pelo vestido colado ao corpo. Isabela estava
linda, como sempre havia sido, mas dessa vez me deixei analisar cada
pedaço seu, como se pudesse ser a última vez que a veria na vida. Porque
realmente poderia ser. Eu não costumava ter medo durante os casos, nem
mesmo quando parecia estar na pior situação possível. Mas naquele
momento, tendo Isabela como expectadora do que se desenrolava, eu tive
medo.
Tibério puxou um pano do bolso da calça de linho e limpou as gotas
de suor que brotavam de sua testa proeminente. Tirando meu sangue em
suas mãos, ele estava impecável em uma calça formal e camisa polo bem
passada. Ele andou na minha direção, os passos calculados a ponto de
parecer ansioso. Mas eu conhecia aquele olhar, o brilho da excitação, de ter
sido pego no flagra, mas já pensando nas opções de escape.
— Você disse que ninguém sabia o que fazemos aqui, apenas você
— ele anunciou, a mão vindo direto ao meu rosto e tirando a fita que cobria
minha boca. — Mas ela apareceu espionando.
Tibério apontou para Isabela, que permanecia quieta sobre a cadeira,
os orbes varrendo tudo que acontecia ao redor.
— Você acha que ela é minha parceira? — ri, uma gargalhada
sombria, sem um pingo de emoção. Eu não poderia deixar que Tibério
assumisse que Isabela estava de algum modo envolvida comigo. — Me
poupe, eu só trabalho sozinho.
O professor ficou um tempo quieto, o polegar coçando o queixo,
pensativo, enquanto seu João permanecia do lado de Isabela, vigiando-a.
— Seu João me comunicou que pegou vocês aqui de noite. Depois
eu vi vocês no parque. E agora estão ambos, de novo, no meio das minhas
atividades — Tibério falou, enumerando nos dedos cada evento comentado.
— Posso lhe garantir que não passou de coincidência — comentei,
não ousando olhar para Isabela, temendo ser descoberto em minhas
mentiras.
— Você é um homem interessante. — O professor se encurvou a
ponto de seus olhos ficarem na mesma altura que os meus. — Eu não teria
suspeitado se não tivesse agido de modo estranho na noite do poker.
Primeiro, você não parecia à vontade, depois eu fiz uma busca nas redes
sociais e vi que você não era adepto de nenhuma delas. Um homem jovem,
elegante, sem redes sociais? Algo não cheirava bem. Mas eu realmente só
comecei a ligar os pontos quando nos vimos no parque.
Ele se levantou e virou as costas para mim, andando de modo
despretensioso até o outro lado do almoxarifado.
— Sabe, é curioso o que fazemos quando temos medo — ele
continuou. — Você me viu guardando minha aliança e depois me observou
com minha família. Fiquei receoso de que, de alguma forma, você pudesse
destruir todo o bem-estar que envolve minha esposa, meus filhos e eu.
Então eu precisava saber de algo sobre você também, algo que o fizesse
ficar calado, caso necessário.
— E foi assim que você me descobriu? Por que ficou com medo de
eu estragar seu conto de fadas, enquanto você, nas noites de jogo, se
embebeda e fica com garotas contra a vontade delas? — questionei.
— Eu queria apenas chantageá-lo. Acredite, sou bom nisso. —
Tibério olhou de relance para Pascoal, e o diretor apenas se encolheu, a mão
apertando a superfície do freezer com força. Ele não precisou falar mais
nada, eu sabia que ele usava daquele método para mandar em todos ao seu
redor. — Minha curiosidade sobre você cresceu cada vez mais e investiguei
a ponto de ver que seu nome realmente estava na lista dos classificados do
concurso no site da escola. No entanto, eu sabia que era mentira, já que fui
um dos responsáveis pela contagem de pontos e sabia que uma pessoa com
o nome de Ezequiel não havia participado das provas.
Jamais imaginei que ele chegaria tão fundo, o que só mostrava que
era um homem meticuloso e que eu precisava ter cuidado.
— Bem, você me pegou no flagra. — Dei de ombros, como se não
me importasse com a situação que estava metido. — Demorei a perceber
que o “lixo” que estava sendo retirado na verdade eram drogas. Foi um
esquema bem inteligente, confesso, mas a culpa foi minha por estar relapso
nesse caso.
Tibério foi até a porta do almoxarifado e a trancou, o que ligou um
sinal de alerta na minha mente. Eu estava algemado, preso em minhas
próprias algemas, e para piorar, Isabela estava ali e eu não poderia fazer
nada que a colocasse em perigo. A situação não estava nem um pouco
favorável. Seu João e Pascoal pareciam duas moscas mortas, assustados,
amedrontados, mas Tibério tinha minha arma e aquilo era suficiente para
que um estrago acontecesse.
— Qual a necessidade dessa falcatrua? — Isabela questionou, e eu
prendi a respiração só de pensar que ela poderia enfurecer o criminoso. —
Você tem uma família perfeita, por que vender drogas?
O professor de geografia, que até então não tinha dado tanta atenção
à Isabela, se virou na direção dela. Seus olhos enfurecidos a observaram de
baixo para cima, o nariz pontudo deixando-o parecido com um vilão da DC
Comics, talvez o Charada.
— Você acha que é fácil manter uma vida de luxo? Ganhei uma
herança do meu pai e quando o dinheiro começou a acabar, os problemas
surgiram, as brigas e desafetos aumentaram, tudo por causa do dinheiro.
Tempos desesperados requerem medidas desesperadas.
— Tudo isso por dinheiro? — Isabela perguntou, incrédula.
Dessa vez foi seu João que sorriu, um sorriso tímido, mas cheio de
significado. O dinheiro, ou melhor, a falta dele, era um dos principais
motivos que levavam as pessoas a ingressarem no mundo do crime, mas a
questão era que tinham pessoas necessitadas que nunca cometeriam atos
ilícitos.
— Dinheiro é bom, mas não é tudo — eu disse, enojado que aquela
fosse a resposta para o crime.
— Fácil dizer quando se tem tudo. — Tibério ergueu o tom da voz,
me observando com desprezo.
— Não tem dinheiro no mundo capaz de trazer meu pai de volta, ou
capaz de apagar as lembranças que eu gostaria de esquecer — rebati. —
Como você consegue deitar a cabeça sobre o travesseiro e dormir?
Tibério deixou Isabela de lado e veio até mim, passando o indicador
pela minha testa, indo parar na minha cicatriz, depois segurou minha
garganta com força, apertando minha traqueia a ponto de eu sentir minha
respiração falhar.
— É muito simples, meu travesseiro tem tecnologia da Nasa e
plumas de ganso. — Uma risada cruel deixou sua boca. Ele era grotesco, os
olhos de um louco, o sorriso de um maníaco, e a sede de quem estava preso
em um deserto. — Não tenho tempo para perder com vocês. O
carregamento está quase completo e eu preciso ir para a palestra. Faltar
poderia chamar a atenção para mim.
Ele jogou minha arma para Pascoal e trancou a sala do lado de fora
logo depois de sair. O diretor finalmente se moveu, puxando a camisa que
grudava no corpo devido ao suor presente, e arranhou a garganta antes de
falar:
— Eu realmente não queria fazer isso, mas Tibério me tem nas
mãos. Depois que se entra num esquema desses, sair com vida é quase
impossível. —Sua voz tremeu ao tocar o indicador no gatilho da minha
Glock e apontou a arma para Isabela.
— Ela não tem nada a ver com isso — respondi, tentando
demonstrar confiança, mas desesperado por sequer imaginar um cenário
onde ela acabaria baleada.
— Mate ela logo, eles estão juntos nisso e ela é o ponto fraco dele
— Seu João comentou, arrastando Isabela para perto de mim, colocando-a
do meu lado, como em uma fila de execução.
Ela se debateu e o vigia, sem pensar duas vezes, a empurrou no
chão. Isabela caiu de frente para o piso cimentado, a cabeça tocando a
superfície áspera, e o vigia se deitou sobre suas costas, prendendo-a,
puxando as mãos dela para trás.
— TIRE AS MÃOS DELA, SEU FILHO DE UMA PUTA. — O
grito rasgou minha garganta com uma fúria sem tamanho.
Me remexi sobre a cadeira sentindo a algema cortando a pele dos
meus pulsos. Quem ele pensava que era para tocar na minha mulher? Foda-
se que Pascoal estava armado. Foda-se que eu estava preso. Ninguém tinha
a porra do direito de encostar em Isabela.
Fechei os olhos quando a dor atravessou minha mão. Eu sabia que
era arriscado, que poderia dar uma merda grande, mas o que era a dor
quando o que eu estava fazendo era para proteger Isabela?
Mordi os lábios evitando que o grito cortasse minha garganta e
quando consegui deslocar o polegar, deslizando minha mão pela algema e
me soltando, eu fui direto não para o cara que estava com a arma, mas para
o homem que estava machucando Isabela. Afinal, Seu João estava errado.
Ela não era meu ponto fraco. Pelo contrário, era meu ponto forte. E
seria a nossa salvação.
♪ Eu quero reconciliar a violência no seu coração
Eu quero reconhecer que a sua beleza não é só uma máscara ♪
:::Undisclosed Desires – Muse:::
ISABELA MARTINS
Tudo aconteceu rápido. Tão rápido que era capaz de nem o Flash
entender o que estava ocorrendo, quem dirá eu. Seu João me empurrou com
força sobre o chão, as pernas se encaixando sobre minhas costas, como se
eu que fosse a criminosa e merecesse sofrer um baculejo, e não o contrário.
Fechei os olhos pronta para sentir a bala perfurando algum canto do
meu corpo, mas tudo o que senti foi um peso sendo arrancado de cima de
mim. Virei meu corpo, me sentando sobre o chão gelado, presenciando a
cena em que Isaac socava Seu João sem um pingo de piedade. Eu ainda
estava tentando processar tudo, o fato de Tibério ser um traficante, tendo
Seu João e o diretor como cúmplices, quando uma movimentação chamou
minha atenção. Pascoal girou o corpo, se postando de frente para Isaac, a
arma pronta para atirar. E ali, mais uma vez, eu agi. A diferença era que eu
sabia exatamente o que estava fazendo e também sabia que era uma arma de
verdade.
Me levantei com agilidade e me joguei contra Pascoal, que atirou
assim que me viu em sua direção. O barulho seco do disparo ecoou ao lado
do meu ouvido esquerdo e o diretor se assustou com a própria ousadia,
deixando a arma cair. Fui rápida e alcancei a pistola antes dele, tremendo
por ter que segurar um objeto como aquele, mas pronta para o que fosse
necessário.
— Todo mundo com as mãos para o alto — gritei o máximo que
minha garganta permitiu. Era a primeira vez segurando uma arma, sentindo
o peso não só da estrutura formada de plástico e de metal, mas também do
poder que um equipamento como aquele tinha de tirar a vida de uma
pessoa.
Pascoal foi o primeiro a levantar as mãos, esticou os braços tão alto
que a barriga ficou exposta pela camisa de botão. A cena seria cômica,
afinal aquele Pascoal era totalmente diferente do rabugento que
perambulava pela escola, mas eu não tive tempo de pensar sobre isso. Seu
João também levantou as mãos, a contragosto. Eu estava tão nervosa,
empunhando o armamento, que acabei me virando para Isaac.
— Você também.
Ele ergueu umas das sobrancelhas, surpreso, mas não fez o que eu
pedi. Demorei a perceber que ficou com os braços imóveis não porque não
levasse a sério minha ordem, mas porque ele tinha levado um tiro em um
dos ombros.
— Dios mio! — falei, a boca aberta em choque, tontura ameaçando
me atingir ao ver o líquido vermelho escorrendo por seu braço.
Meu estômago se remexeu por dentro, e lágrimas ameaçaram saltar
dos meus olhos. Eu nunca tinha visto alguém baleado antes, e o fato desse
alguém ser o Isaac só fez eu me sentir pior. Abaixei a arma e dei um passo
em sua direção. Mas ao mesmo tempo que fiz isso, seu João também se
moveu.
— Não faça isso. Mantenha a arma em punho. — Isaac ordenou, e
automaticamente eu segurei a arma, como se nossa vida dependesse disso, o
que provavelmente era verdade. — Puxe o gatilho se ele se mexer. —
Apontou para o vigia e veio na minha direção, sem pressa, talvez com medo
de mim. — Aponte para o joelho dele.
Eu segui todas as instruções de Isaac, sentindo minha respiração se
tornar cada vez mais escassa, meu coração acelerado, a realidade finalmente
me atingindo em cheio.
— Você se saiu muito bem. — Isaac estendeu o braço saudável na
minha direção, cauteloso, sua mão cobrindo a minha que agarrava o punho
da pistola. — Você foi perfeita, agora me entregue a arma.
Eu assenti com a cabeça e, prendendo a respiração, afastei o
indicador do gatilho, lhe entregando o objeto.
Isaac arquejava como se tivesse corrido uma maratona e eu mesma
estava esbaforida, por mais que não tivesse feito muita coisa. Seu peito
subia e descia, marcado pela camisa que um dia havia sido branca, mas que
nesse momento estava em um misto de sujeira e sangue. Seu rosto estava
um caos, o nariz ensanguentado, um dos olhos começando a ficar roxo, o
braço atingido permanecia imóvel, colado ao corpo, e o polegar daquele
mesmo braço parecia em um formato estranho. Ele estava pior do que
quando o havia confundido com o alcoólatra, ainda assim sorri. Isaac estava
perfeito. Estava vivo, e qualquer outro acontecimento da noite se tornou
pequeno demais diante desse fato.
— Fique perto de mim — disse, com a voz assumindo um tom de
comando, e seu olhar passando de caloroso para frio ao desviar-se de mim e
fixar-se em Seu João . — E você, vire-se de costas e coloque as mãos na
cabeça, devagar.
Seu João, que já estava bem perto da porta de entrada, vacilou, um
xingamento cruzou seus lábios e ele, sem ver outra saída, colocou as mãos
para cima. Pascoal repetiu o gesto antes mesmo que Isaac solicitasse e eu
quase tive pena do homem que fungou, evitando que o choro ecoasse pela
sala.
— Eu sinto muito. Eu realmente sinto muito — o diretor se
lamentou.
— Isabela, pegue a chave da minha algema dentro do meu bolso. —
Isaac pediu e eu tateei seu bolso da frente, as mãos trêmulas, a adrenalina
ainda percorrendo meu corpo. — Cuidado, você está se distanciando do...
objetivo.
Percebi que estava indo em direção ao seu pau e recuei, voltando a
vasculhar seu bolso até que achei o pequeno objeto prateado. A algema
estava presa em um de seus pulsos, deixando uma marca horrível em sua
pele. Com um pouco de dificuldade, consegui soltar o fecho que o prendia.
— Muito bem, agora quero que...
Um estrondo gigante interrompeu o que Isaac estava falando. A
porta foi abaixo com uma velocidade que eu nem sabia ser possível, e
vários homens uniformizados entraram empunhando fuzis.
— Polícia federal! — O grito do grupo ecoou e minha resposta
rápida foi levantar as mãos, esperando que não atirassem em mim ali
mesmo.
Os agentes foram cirúrgicos e rápidos, dando voz de prisão para o
diretor e o vigia, algemando-os. Minhas pernas perderam as forças depois
de tudo o que tinha acontecido, mas um braço forte segurou minha cintura,
me impedindo de cair. Olhei para o lado e vi Ezequiel me encarando. As íris
em um misto de alívio e dor.
— Está tudo bem — sussurrou em meu ouvido, encostando a cabeça
em meu ombro. — Está tudo bem.
Só então percebi que se apoiava em mim, sangue passando de seu
corpo ao meu, manchando meu vestido que já era vermelho. O toque de sua
pele sempre tão quente, agora estava fria em cada pedaço. Passei meus
braços ao seu redor, como se proximidade fosse o suficiente para aquecê-lo,
o suficiente para mantê-lo vivo. Eu queria dizer tantas coisas, mas nada
veio à minha cabeça. Os acontecimentos me deixaram tão anestesiada que
só consegui me segurar para não chorar. E em fração de segundos a
comodidade que eu tinha ali desmoronou, um dos policiais o puxou de
mim, afastando qualquer resquício de contato.
— Isaac... — seu nome saiu pelos meus lábios pela primeira vez e,
enquanto o levavam para longe de mim, eu só pedi que não fosse pela
última.
— A senhorita está bem? — Uma voz chamou minha atenção e vi
Fernando tocando meu supercílio. — Você tem um corte aqui.
— Isaac está bem? Por favor, me diga se ele vai ficar bem. —
Minhas palavras saíram atropeladas e o amigo de Isaac passou os dedos em
minhas costas, me guiando para o corredor, onde uma pequena multidão de
professores se formava.
— Não se preocupe, ele vai ficar bem — comentou, porém não senti
confiança em sua fala.
— Isso é algo padrão que vocês costumam falar? — perguntei, os
pés descalços seguindo pelo corredor, a atenção voltada apenas para
Fernando e não para Tibério, que estava algemado e sendo colocado na
viatura. Vi até Margareth pulando do outro lado da faixa policial, com os
braços levantados. Mas meu foco só era Isaac. Minha amiga teria que
esperar.
Fernando não respondeu e eu me perguntei se ele me prenderia caso
eu o socasse. Eu queria respostas, queria entender o que estava acontecendo
naquela droga de escola, mas todos os questionamentos foram para o
espaço no exato momento em que entrei no estacionamento e vi Isaac. Ele
estava deitado sobre uma maca enquanto paramédicos prestavam os
primeiros socorros.
— Ainda não foram ao hospital? — Fernando perguntou, os braços
se cruzando sobre o peito largo. — Ele precisa de uma cirurgia, o que estão
esperando?
— Eu não vou a lugar nenhum antes de falar com Isabela. — Isaac
resmungou em meio a um gemido. A camisa rasgada mostrava o estrago
feito na pele do ombro e mais uma vez tive vontade de vomitar.
— Isaac, você pode ter essa conversa depois... — Fernando se calou
quando Isaac fez menção de levantar e um gemido escapou de seus lábios.
— É urgente. — Isaac se remexeu na maca, e o paramédico se
afastou dando espaço para eu me aproximar.
Fernando passou a mão pela cabeça raspada, refletindo sobre o
pedido do amigo, e então se virou, nos deixando com o máximo de
privacidade que poderíamos ter naquela situação.
O silêncio permeou entre nós, a troca de olhares intensa, as palavras
não ditas falando mais do que qualquer outra coisa. Meu coração martelava
dentro do peito de uma forma desesperada. Abri a boca para falar, mas Isaac
foi mais rápido e o que ele falou foi como um balde de água fria.
— Você reagiu de novo.
Não foi uma pergunta, ainda assim me senti na necessidade de
responder.
— Eu não ia ficar sem fazer nada. — Cruzei os braços sobre os
seios, chateada que aquela tenha sido sua primeira frase.
— Você é muito impetuosa, mulher. — Isaac passou a mão pelos
cabelos, bagunçando-os mais do que já estavam. A voz soando em um leve
tom de desespero.
— O que queria que eu fizesse? Que deixasse você morrer? —
perguntei, zangada. Ele queria brigar? Não iria ao menos agradecer depois
de tudo o que aconteceu?
— Não conseguiria fazer isso? — ele perguntou, uma careta
atravessando o rosto quando tentou mudar de posição sobre a maca.
A dor não foi em mim, mesmo assim me vi encolher, como se o seu
sofrimento me afetasse também.
— Não, sabe por quê? Porque eu me importo com você — gritei a
verdade que assolava meu peito. — E eu faria tudo de novo.
— Inferno! Você foi imprudente nas duas situações e nas duas
poderia ter levado a pior — ele gritou de volta, os olhos enfurecidos fixos
nos meus.
— Por acaso isso é um pedido de desculpas? — questionei, levando
os braços às alturas. — Porque era a única coisa que eu estava esperando de
você, depois de tudo o que fez, e não um esporro.
— Isabela! — Meu nome saindo de sua boca de modo tão firme fez
meus pelos se arrepiarem. — Eu não estou brincando.
— Nem eu. Qual é o seu problema? Já passou, estamos bem, então
por que diabos você está zangado desse jeito?
— Porra, Isabela, porque eu te amo e por duas vezes eu poderia ter
te perdido. — Isaac fechou os olhos, levando os dedos até a testa. — Porque
esse sentimento começou a nascer dentro de mim em meio a mentiras que
eu precisava contar. Em meio a um personagem que eu precisava assumir. E
cada vez mais eu me sentia sufocado, já que pela primeira vez não era só eu
em meio ao caos. Éramos eu e você. Nós dois, como uma dupla imbatível
em um jogo onde eu não tinha o controle. Porque você Isabela, você é
indomável.
Estanquei no lugar, processando tudo o que Isaac estava falando, a
boca aberta pronta para continuar a discussão, mas sem palavras diante do
que ele declarou.
— Droga! — ele continuou, passando as mãos pelos olhos,
afastando lágrimas que começavam a se formar ali. — O problema não foi
o tiro que levei. Foi o que você poderia ter levado. Eu levaria mil tiros que
isso significasse que você estaria bem. Eu só queria que você não se
machucasse.
Meu próprio rosto foi tomado pela umidade, onde lágrimas
escorriam deliberadamente. Aquele era o homem que eu conhecia, e eu
pouco me importava se o seu nome era Isaac, Ezequiel, ou até mesmo
Francisco. O nome poderia mudar, ele poderia jurar que usava uma
máscara, mas eu sabia quem ele era de verdade. Funguei o nariz, sentindo
que uma crise de rinite me visitaria no futuro, mas naquele momento, tudo o
que consegui fazer foi sorrir.
— Eu não sei se você percebeu, mas o único que está machucado
aqui é você — comentei, um soluço cruzando o peito.
— Isabela...
— Apenas cale a boca e me beije.
E foi isso o que ele fez. Isaac me puxou com o braço bom, a mão se
fechando em volta da minha cintura, e eu me inclinei em sua direção,
colando minha boca na sua, relembrando o sabor já familiar. Minha cabeça
começava a doer devido ao corte sofrido ali, uma umidade pegajosa se
espalhou próximo ao meu peito e eu suspeitava que era o sangue de Isaac
mais uma vez se misturando à minha roupa, mas nada importava, apenas eu,
Isaac e o nosso beijo. Em meio a um crime cometido na escola, um
sequestro relâmpago e um tiroteio, meu cérebro só se focou nos lábios de
Isaac e em como eles tinham sabor de lar.
♪ Aí onde você está é onde eu estou
Eu sou seu homem, eu sou seu homem ♪
::: Mariners Apartment Complex – Lana Del Rey:::

ISAAC ALMEIDA

De todas as fraturas que eu já sofri, aquela foi a mais séria. Eu sabia


que não era invencível, mas perceber que precisaria ficar de repouso por
semanas e fazer acompanhamento com o fisioterapeuta por meses me
deixou abalado.
Em cima da cama hospitalar, com um braço em uma tipóia e uma
canja de frango sem gosto repousando ao meu lado, eu notei a adrenalina
voltando ao corpo quando Fernando apareceu no cômodo.
— O que você tem para mim? Um caso novo? —questionei,
estendendo a única mão útil em sua direção.
— Você não disse que ia parar de se infiltrar? —perguntou,
segurando o envelope de papel claro.
— Vou, mas continuo sendo policial. — Aos poucos eu entendia que
a vida dentro de cartéis ou outros antros de crime tinha acabado. E por uma
razão. Uma boa razão.
Olhei para o lado para ver Isabela dormindo na cadeira vizinha,
metade do corpo inclinado sobre minha cama. Ela tinha ficado comigo
desde que deixei a sala de recuperação.
— Você realmente foi fisgado. — Fernando jogou o envelope sobre
minhas pernas e sentou-se no sofá acinzentado no qual Isabela costumava
passar a noite.
— Eu não sou um peixe — comentei, pegando o envelope e abrindo
para ver a papelada da licença por motivo de saúde autorizada.
Devolvi o envelope para Fernando, tentando me sentar sobre a cama
sem acordar Isabela.
— Eu sei que você vai sentir falta da adrenalina, mas não se
preocupe, eu conto tudo o que acontecer nas missões. — Meu amigo piscou
um dos olhos na minha direção, tentando me distrair do fato de que eu não
voltaria tão cedo a atuar. Só que ele havia entendido errado. Eu não estava
arrependido. Pelo contrário, eu finalmente percebi o que eu precisava.
Quem eu precisava.
— Você já conheceu Isabela, né? Tédio não é uma opção. — Sorri e
passei os dedos em seus cabelos, sentindo os fios levemente ressecados.
Ela não havia sequer voltado para casa depois que eu entrei na sala
de cirurgia e só tinha roupas limpas para usar porque sua amiga Margareth
havia trazido isso e produtos de higiene pessoal em troca de fofocas.
— Estou começando a ficar com inveja, vocês formam uma dupla e
tanto. — Fernando sorriu e então estalou os dedos. — Por falar em dupla,
quer dizer, em trio, Tibério, João e Pascoal estão prestando depoimento
neste instante.
O clima na sala hospitalar se tornou frio no mesmo instante. Os três
patetas tinham sido presos em flagrante, o caminhão de lixo com as drogas
ainda estava no estacionamento da escola quando a polícia chegou. Ainda
assim, tudo poderia ter terminado em uma tragédia. Eu poderia ter morrido.
Isabela poderia ter morrido.
— Tibério, durante o interrogatório, assumiu o crime tentando
diminuir sua pena. Ele descobriu que Pascoal desviava verbas da
alimentação dos alunos e viu nessa informação uma forma de chantagear o
diretor e usar o terreno da escola para movimentar seu negócio de heroína.
Ele acabou usando Seu João que, querendo melhorar de vida, aceitou
participar. — Fernando continuou. — Você podia ter me avisado, eu teria
ido com você, nada disso teria acontecido.
Ele apontou para o meu ombro, as sobrancelhas erguidas, formando
um vinco entre elas.
— Eu sei — suspirei. — Em minha defesa, eu tenho feito burradas
desde que entrei nesse caso.
Meu amigo não protestou, embora eu soubesse que ele queria fazê-
lo. Ele se levantou e caminhou até o pé da cama hospitalar.
— Para o melhor da turma do curso de formação, você foi burro
para caramba.
— Você não perde tempo, né?
— Só digo que se não fosse por Isabela, você poderia não estar mais
aqui. A mensagem de texto dela foi suficiente para a amiga entrar em
contato com a polícia militar. Com isso, nossa inteligência rastreou a
chamada e acionou a equipe. Depois da cozinha, o único local que tinha um
freezer era o almoxarifado. — Ele deu de ombros e apontou para Isabela. —
Ela daria uma ótima policial.
— Sim, daria, uma que certamente me deixaria com os cabelos
brancos antes do tempo. — Sorri e aproveitei para perguntar o que queria
desde que Fernando havia entrado por aquela porta. — Você se lembrou de
ir ao meu apê, pegar o que pedi?
— Ah, claro, já estava me esquecendo. — Ele retirou um envelope
de dentro do bolso e me entregou. — O que é isso?
— Um presente — respondi, segurando o papel com força a ponto
de quase amassar o que tinha dentro. — Obrigado.
Ele assentiu, em confirmação, e, percebendo que eu queria ficar só,
como apenas ele era capaz de fazer, saiu da sala me deixando com uma
Isabela sonolenta.
Me deixei admirá-la por um bom tempo. Sua boca aberta começava
a formar uma baba sobre o lençol que cobria minhas pernas, um curativo
marcava o supercílio onde ela tinha pegado alguns pontos devido ao
empurrão que o vigia tinha dado. Ela teria mais uma marca de violência,
mas eu estava disposto a mostrá-la, todos os dias, que ela era uma
sobrevivente, resiliente.
— Oi, linda — sussurrei, repousando minha mão em seus ombros.
Isabela se mexeu, abrindo um dos olhos primeiro, depois o outro. — Por
que você não vai para o sofá? Lá é mais confortável.
— Eu estou ótima aqui. Você dormiu bem? Está sentindo dor? Quer
que eu chame alguém? — A sequência de perguntas saiu como uma
metralhadora, e por um segundo imaginei como seria um interrogatório
feito por ela. — Ah, sua mãe passou aqui enquanto você estava dormindo e
disse que, mesmo odiando sua profissão e temendo por sua vida, iria tentar
fazer as pazes com você.
Isabela se levantou da cadeira, passando a mão pelos cabelos,
tentando em vão assentá-los.
— Está tudo bem, porque eu não vou mais trabalhar como infiltrado.
Na verdade eu queria te entregar isso. — Estendi o envelope para Isabela,
que me olhou com uma curiosidade genuína.
— O que quer dizer com isso? — perguntou, sem esticar a mão na
minha direção, os olhos vidrados nos meus.
— Que eu já tive minha cota de ação para uma vida inteira e agora a
única ação que quero ter é escolher entre andar de patins ou assistir
doramas. — Sacodi o envelope na sua direção e Isabela demorou para
pegar o objeto. — Abra.
Subitamente fiquei nervoso, sem saber se ela iria gostar ou não do
que eu tinha feito. Isabela abriu a aba do envelope, retirando de lá dois
tickets. Ela correu os olhos pelo pedaço de papel, a boca se abrindo à
medida que lia o conteúdo.
— O que é isso? — questionou.
— Eu...hum...comprei no dia que você dormiu lá em casa —
comentei, sabendo que meu próprio rosto estava corando, lembrando da
noite quente que passamos juntos. — Nossas passagens para a Espanha, já
que não vencemos o prêmio da feira de línguas.
— Eu... — Isabela leu o ticket mais uma vez, como que para ter
certeza de que não era falso. — Isaac, custou uma fortuna. Não precisava
ter feito isso.
Isabela pegou o ticket com seu nome e o estendeu em direção à luz
do quarto, olhando todos os lados minuciosamente, à procura de algum
elemento que comprovasse a falsidade do bilhete.
— Isso não é uma nota de cinquenta reais — comentei, o coração
batendo acelerado dentro do peito.
— Eu não sei o que dizer. — Ela deixou os tickets sobre a cama e
me encarou. — Você não precisava dos meus dados para emitir uma
passagem?
— Sabe que eu sou policial federal, né? — o comentário escapou
dos meus lábios de forma natural e, ao perceber o que tinha acabado de
falar, me encolhi.
Ainda não tinha pedido desculpas pelo que tinha feito a Isabela, não
sabia sequer se o beijo que havíamos trocado depois do caos que acontecera
na escola foi por conta da euforia do momento. Cada pequena partícula
dentro de mim desejada que ela me perdoasse, e o medo de que isso não
acontecesse era suficiente para fazer eu prender a respiração.
— Bela, eu...
— O quanto era o Isaac que estava ao meu lado quando eu precisei?
— perguntou com os olhos fixos em mim, não com acusação, mais com
curiosidade genuína. — Que parte de você era Ezequiel, que parte era
Isaac?
—Era eu o tempo todo — desabafei. — Acredite, Ezequiel foi o
personagem mais difícil de interpretar, porque em algum momento eu me
misturei com ele de tal forma que não consegui mais distinguir quando isso
aconteceu.
— Você está falando sério sobre tudo? Sobre deixar de ser infiltrado,
sobre essa viagem para a Espanha? — ela questionou mais para si mesma.
— Claro. Continuo sendo policial, mas não é necessário que eu
trabalhe como infiltrado para me sentir realizado. Na verdade, eu já me
sinto completo porque você me faz sentir asism. — fiz questão de
confirmar.
Era ela, desde o momento em que socou meu rosto. A responsável
por atrapalhar minha missão, por confundir minha cabeça e por fazer eu
acreditar que estava enlouquecendo. Desde que me vi compelido a estar ao
seu lado e meus pensamentos não saíam de sua imagem de pijamas. Eu não
tinha dúvidas. Era ela.
— Então tudo era verdade? As histórias sobre seu pai, os motivos de
suas cicatrizes? — Isabela olhou para meu peito, coberto por um pijama, e
eu esperei pela pergunta sobre as pessoas que eu havia machucado, ela
entretanto, foi além — O gosto pela DC comics?
Gargalhei com seu último comentário, conseguindo finalmente
soltar a respiração prendida.
— Sim, tudo era verdade. — Passei a mão pelos cabelos.
— Você queria que eu descobrisse, não era? Quer dizer, camisa do
Asa Noturno? Quem teria ele como herói favorito, um policial amigo do
Batman... a não ser que a própria pessoa fosse um policial — ela comentou,
se aproximando da cama e se inclinando na minha direção, levando o
indicador até o meio do meu rosto. — E aquelas algemas não eram de
nenhum sex shop que eu conhecia.
— Quer dizer que você conhece muitos sex shops? — perguntei, a
voz saindo rouca, a garganta falhando por um segundo, e o pau dando sinais
de que, mesmo que eu tivesse levado um tiro e perdido muito sangue, ainda
estava tudo bem na minha parte de baixo.
— Bom, você vai ter que descobrir, senhor policial. — Isabela
piscou um dos olhos, e em seguida deu uma mordida no lábio inferior. Eu
praguejei baixinho, desejando que não estivesse com um dos braços
imobilizado.
— Isso não se faz — comentei, sentindo as bolas doerem só pelo
simples fato de pensar em Isabela dentro de um sex shop.
Isabela cobriu a boca, escondendo um sorriso, o barulho gostoso
atravessando o quarto e fazendo meus próprios lábios se esticarem em um
riso.
— Eu sei que você vai sentir falta da ação — ela declarou, se
sentando na beirada da cama, a bunda perto demais do meu quadril. —
Então vou te dar a chance de escolher o próximo dorama que vamos assistir
juntos. Que tal?
— Ah, não! Dorama não!
Ela empurrou minhas costelas com o cotovelo e eu gemi baixinho,
um vislumbre de dor atravessando meu ombro.
— Perdón, fue sin querer — ela falou em um espanhol rápido, a
mão indo até minha tipóia, preocupação estampando seu semblante.
Ela era linda falando aquela língua. Era linda por ser única, sincera e
por ter uma ousadia que poderia ser facilmente confundida com insensatez.
— Está tudo bem — eu disse com a voz suave.
— Quando não estiver você vai dizer?
— Pode apostar que sim. Lie is not an option! — respondi em inglês
sem saber se ela entenderia ou não, mas pelo sorriso que deu, aquele que
fazia meu mundo girar e os momentos mais escuros se iluminarem, eu tive
certeza que sim.
Estendi minha mão na sua direção, alçando seu rosto entre meus
dedos, a superfície macia e quente de sua pele transmitindo eletricidade em
cada parte do meu corpo. Uma energia que só ela era capaz de irradiar,
fosse em espanhol, inglês ou português.
♪ Serena, tranquila eu seguia minha vida
antes que você chegasse ♪
::: Quiero verte más – Francisca Valenzuela:::

Meses depois

ISABELA MARTINS

— Não acredito que vou ser presa no aeroporto de Madrid —


resmunguei quando um dos funcionários do guichê barrou Isaac. — Perdón,
¿puedo pasar?
Pedi para uma loira alta e magra, que poderia muito bem ser uma
modelo, para se afastar para que eu pudesse passar. Em seguida, me vi
quase correndo em direção a Isaac, a mala quase voando devido à
velocidade.
— Qual o problema? — questionei quando cheguei ao seu lado, e
me xinguei mentalmente por ter ido ao banheiro e perdido o lugar ao lado
dele na fila.
— Eu não sei, ele fala muito rápido e eu não entendo muito bem o
espanhol. — Isaac franziu o cenho, juntando as sobrancelhas, como se
estreitar os olhos fizesse dele um aluno avançado em espanhol do Duolingo.
— Deixe comigo. — Faltei arregaçar as mangas, pronta para colocar
em prática meus anos da língua. — ¿qué está sucediendo?
O homem começou a explicar a situação enquanto Isaac olhava para
mim, esperando que eu traduzisse. Senti um orgulho danado de entender
tudo que o funcionário do aeroporto dizia e mais ainda por ele não reclamar
em nenhum momento do meu sotaque.
— Ele falou que você declarou que trouxe carne. Você é um policial
federal mesmo, né? — perguntei cruzando os braços. — Ou não sabe que
não pode levar alimentos frescos para outro país?
— Claro que eu sei, mas eu não trouxe carne — Isaac respondeu,
revirando os olhos.
— Ele disse que você trouxe toucinho — falei baixo.
— Toucinho? Não, eu falei docinho. — Isaac riu pela primeira vez
desde que foi barrado.
— Docinho? Por que diabos você traria docinhos? — perguntei,
confusa. Esperando que não fosse deportada por causa de um brigadeiro.
Isaac passou a mão nos cabelos. Eu sabia, por sua mordida no lábio
inferior e pelo leve tom rosado que subiu em sua bochecha, que tinha
pegado ele no flagra.
— Desembucha logo.
— Eu trouxe brigadeiros para você. — Ele deu de ombros, como se
aquela declaração fizesse sentido. Percebendo que eu ainda não tinha
entendido, ele continuou. — Eu sei que você gosta de doces, principalmente
após o almoço, e como não podia trazer sorvetes, pensei em trazer
brigadeiro.
Ok. A atitude dele foi fofa pra caralho e eu tive vontade de beijá-lo
ali mesmo, na frente do funcionário e no meio do aeroporto que talvez fosse
o único pedaço da Espanha que eu conheceria, mas tudo o que fiz foi sorrir.
— Você sabe que na Espanha existem doces também, né? —
questionei, deixando a mala de lado e pegando sua mão, entrelaçando-a
com a minha.
— Eu... — Isaac suspirou e antes que ele falasse qualquer coisa eu o
interrompi.
— Está tudo bem, eu vou explicar a confusão que aconteceu.
Eu iniciei uma conversa com o espanhol, indicando que havia sido
apenas um problema com a língua e ele prontamente deixou Isaac passar, já
que a política do aeroporto de Madrid não considerava docinho como
produto fresco.
Passamos a viagem de Uber apontando para construções diferentes
que passavam pela janela e quando chegamos no hotel eu fui direto para a
varanda, aproveitar a vista que dava direto para Puerta del Sol, um dos
principais pontos turísticos da cidade.
O sol estava se pondo, as escassas luzes refletindo na fonte que
ficava logo em frente à edificação, que mais parecia um palácio. Ainda não
era inverno, mas dava para sentir o clima frio presente na sensação do ar,
um clima do qual eu não era nem um pouco acostumada.
— Que vista linda — Isaac falou e eu me virei para vê-lo com as
mãos nos bolsos, na porta que dava acesso à varanda. Seus olhos estavam
inteiramente focados em mim e não em tudo que Madrid poderia oferecer.
Senti meu rosto corar, as pernas levemente adquirindo a fluidez de
uma manteiga derretida. Isaac caminhou até parar ao meu lado, envolveu
minha cintura com sua mão grande e firme, e só então olhou para a cidade.
— Está gostando? — questionou, inalando o ar gelado da tarde.
— Claro, é perfeito — comentei, apoiando minha cabeça em seu
peito, me deixando admirar a beleza na cidade. — Pena que quase não
chegamos aqui. Quer dizer, fomos parados em todos os detectores de metal
dos aeroportos e foi por pouco que você não precisou ficar pelado. Depois
ainda teve a história do docinho.
Isaac beijou o topo da minha cabeça e então, segurando meus
ombros, me afastou para encará-lo.
— Ei, se você não tivesse reagido, eu poderia não ter inúmeros
pinos de metal no ombro — disse, tentando ficar sério, mas um pequeno
sorriso escapou por seus lábios.
— Ou então você estaria a sete palmos do chão — revidei,
mordendo meu lábio inferior, me impedindo de também sorrir. — Nós
parecemos meus pais.
Meus velhos viviam em um jogo de gato e rato desde que eu me
entendia por gente e agora eu entendia por que eles se davam super bem.
— Por favor, diga que eles ainda estão juntos.
— Casados há trinta e dois anos. Estou pensando em visitá-los em
Bom Jesus nas próximas férias. Vamos?
— Claro, adoraria. — Isaac me puxou de volta e beijou meu
pescoço, fazendo os pelos do meu corpo se arrepiarem no mesmo instante.
— O hotel deixou um champanhe para gente como um presente, parece que
eles pensam que estamos em lua de mel. Você sabe algo sobre isso?
— Eu posso ter confundido as palavras.
— Eu pensei que você era craque em espanhol... Bela. — Isaac
gargalhou, tocando meus cabelos. — Vou pegar taças para nós.
Ele deixou a varanda, sumindo pela porta dupla de vidro que dava
acesso ao nosso quarto. Eu não gostaria de imaginar a pequena fortuna que
ele havia gastado por aquela viagem, eu só queria aproveitar cada pequeno
detalhe.
— Um brinde para nós. — Isaac apareceu segurando duas taças e
entregou uma para mim, depois, em um gesto super clichê, cruzou o braço
sobre o meu e bebeu um gole da bebida. Eu fiz o mesmo, saboreando
quando o líquido desceu, aquecendo minha garganta.
— Estou orgulhosa de você — comentei, vendo que a bebida não
tinha trazido nenhuma careta em sua face, como fazia no começo.
Isaac arranhou a garganta e deixou sua taça sobre o parapeito da
varanda. Ele enfiou a mão no bolso da calça e eu aproveitei para analisá-lo
naquela jaqueta de couro preta. Um cachecol atravessava seu pescoço e por
mais que estivesse frio ele não usava luvas, como eu.
— Eu nunca agradeci por você não perguntar sobre o passado —
disse, as íris escuras fixas nas minhas, o rosto em uma seriedade que só ele
era capaz de transmitir. Eu podia compreender se os bandidos tivessem
medo dele. Isaac sério parecia o Batman. Eu, entretanto, só conseguia
pensar no quanto ele estava tremendamente sexy.
— O chat GPT disse que seria antiético lhe perguntar sobre as
missões que já participou — falei, dando de ombros. — E eu sei que você é
certinho demais.
Ele abriu um sorriso, quebrando toda aquela máscara de seriedade e
meu coração aqueceu por saber que eu era responsável por aquela mudança.
— Eu não sou certinho demais. Se fosse, estaria fazendo isso? —
Isaac abriu o zíper da minha calça, enfiando os dedos por debaixo da minha
calcinha, dentro de mim. — Tenho certeza de que deve ser crime de
conduta sexual indecente aqui na Espanha. Se algum vizinho pegar a gente
fazendo sexo na varanda e denunciar para polícia, podemos nos dar mal.
Ele tirou os dedos de dentro de mim e eu choraminguei com sua
ausência, desejando tê-lo mais.
— Então vamos ter cuidado para não sermos pegos.
Ele piscou na minha direção e depois se ajoelhou. Com uma
delicadeza que eu não queria naquele momento, abaixou minha calça me
expondo ao frio de Madrid, que àquela hora já não tinha os raios solares
dando o ar da graça. Eu, no entanto, não senti frio, não quando o calor de
sua boca tomou minha boceta. E entre gemidos e espasmos, xingamentos
em espanhol e gritos, eu soube que Isaac não só havia me conquistado, mas
também me tinha por completo na ponta da língua.
♪ Não adianta tentar evitar minha armadilha,
eu te peguei ♪
:::SPY – Super Junior:::

04 anos depois

ISAAC ALMEIDA

Eu estava munido de uma pistola e um sonho, no caso que seria o


mais difícil da minha vida. O suor escorregava pela testa, sobre a cicatriz
que eu tinha há anos, ao mesmo tempo que um nó se formava em minha
garganta. Nem mesmo as sessões de terapia que estava fazendo, em razão
dos traumas pós operações, seriam suficientes para diminuir a ansiedade
desse momento.
Olhei para os lados em busca de qualquer resquício de curiosos e
segui a passos rápidos até a loja. Os óculos escuros estilo aviador
permaneceram sobre meus olhos, mesmo quando a escuridão do interior da
loja quase me deixou sem enxergar nada. A funcionária me encarou com
um sorriso no rosto, acenando na minha direção, e eu cumpri meu papel me
aproximando, estendendo a mão sobre o balcão.
— Você está com a encomenda? — perguntei.
— Sim, aqui está. — Ela puxou uma sacola preta e me entregou
com cuidado.
— Aqui está o pagamento, conforme combinamos. — Retirei a
carteira do bolso e dali puxei uma boa quantia de dinheiro. Contei as notas
de forma rápida e a entreguei de modo que não chamasse a atenção das
outras pessoas da loja.
Com o pacote em mãos, atravessei a rua até minha BMW,
colocando-o com cuidado sobre o banco de couro.
Respirei fundo e retirei o celular do bolso, conectando o bluetooth
no som multimídia do carro. Liguei para Fernando, sentindo cada vez mais
meu coração acelerado, os dedos chegando a tremer sobre o volante.
— Oi. — Fernando atendeu e eu pigarrei antes de falar.
— Está tudo pronto?
— Sim, o helicóptero já está à espera — ele respondeu, a voz tão
tensa quanto a minha.
— Ótimo. Nos vemos mais tarde.
Desliguei a chamada acelerando até meu destino, a respiração mais
rápida a cada ultrapassagem feita.
Olhei para a sacola e a peguei com uma das mãos, enquanto a outra
eu segurava o volante com firmeza. Puxei a pequena caixinha que estava ali
dentro e a abri para ver a pedra preciosa brilhando na minha direção. Era
linda, perfeita e adequada para minha missão.
Ainda não havia sentido uma adrenalina como aquela, todo meu
corpo tomado por uma profunda sensação de euforia. Mas aquele era eu,
um policial que amava a ação e que estava disposto a tudo para completar,
enfim, meu último caso: pedir Isabela em casamento.
Agradeço ao meu esposo que não deixou eu desisti, mesmo quando
a maternidade bateu na porta no meio desse livro, e que ficou dias cuidando
da nossa filha para que eu conseguisse concluir a história.
À Olivia Uviplais, por sempre se empolgar com minhas histórias e
que faz eu ficar com um sorriso de ponta à outra com cada surto. Você é a
madrinha de todos os meus projetos.
Obrigada à Júlia Santiago, amiga que a engenharia me deu. Você é
incrível em tudo que se preza a fazer. Eu não vejo a hora de ler seus
próprios lançamentos.
Meu muito obrigada à Láiza de Oliveira, minha amiga querida, beta
e autora do coração. Que venha a banana, porque não vejo a hora de ler
sobre o Ronaldinho. Agradeço também à Tatiana Stolf, que sempre me
apoia com suas palavras de conforto e com sua empolgação. Agradeço à
Raquel Leiane, a mistura perfeita entre autora e advogada. Deixo minha
gratidão à Pauline Cavalcante que fez uma ilustração linda e que me ajudou
em um momento muito difícil, jamais vou esquecer seu apoio. Agradeço
também à Gabi, que ilustrou como se fosse o próprio Flash e que foi muito
prestativa.
Por fim eu deixo meu MUITO OBRIGADA a você, que tirou um
tempinho para gastar com minhas histórias. Sou eternamente grata por você
acompanhar este livro e espero que tenha gostado de Isabela e Isaac tanto
quanto eu gostei de escrevê-los. Sem você, nada disso seria possível!
Não esqueça de fazer uma avalição após a leitura. Seu feedback é
importante!
HELLEN R. P. passou dos trinta, é piauiense, professora, mãe e
amante dos livros desde pequena. Escreve quando não está dando aulas e
ilustra os personagens mesmo que não vá mostrar para ninguém.
Vive pensando em enredos de livros e tem o desejo de conseguir
escrever todos. Gosta de chocolate depois no almoço e é apaixonada por
mangás e animes. Quando o tempo permite assiste doramas de ação ou
suspense.
Você pode acompanhar as novidades e lançamentos da autora nas
redes sociais autorahellenrp (Instagram, Twitter e TikTok), além de bater
um papo sobre os mais diversos assuntos.

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