Na Ponta da Lingua - Hellen R. P_
Na Ponta da Lingua - Hellen R. P_
Na Ponta da Lingua - Hellen R. P_
Na Ponta da Língua
1ª Edição
ISAAC ALMEIDA
ISABELA MARTINS
ISAAC ALMEIDA
Puta merda. Onde foi que eu errei? Será que foi o cabelo partido de
lado de modo tão exagerado ou as roupas sociais que pareciam não se
encaixar comigo? Talvez não tenha sido nenhum desses detalhes e sim
minhas olheiras aparentes e o corpo esguio. Merda. O tempo no cartel me
deixou um caco a ponto de pensarem que eu era um alcóolatra! O que até
poderia ser real depois de tanto beber durante aqueles meses.
A mulher, baixa, de corpo bem marcado pela calça jeans e blusa
branca, me olhou em choque e eu continuei com minha mão estendida em
sua direção, depois de me apresentar. Ela finalmente segurou o envelope
sobre o peito com uma mão e apertou a minha com a outra. Sua pele era
macia, delicada, em nada parecida com a minha, áspera e rugosa.
— Sou Isabela Martins, a professora de espanhol. — O tom dela
saiu alto e eu encarei seus olhos castanhos, com curiosidade.
Ela provavelmente estava com medo de mim e eu não podia julgá-
la, não quando eu mesmo havia tomado um susto ao finalmente me olhar,
com atenção, no espelho antes de ir à escola. Eu estava horrível, isso era um
fato. Ainda assim, ver aquela professora me encarando daquele jeito me
deixou furioso.
Eu precisava exercer um papel e, pela primeira vez, eu não parecia
preparado para aquilo. A corporação não deu tempo suficiente e eu tinha
que dar um jeito de não chamar a atenção.
— Me desculpe pela aparência, acabei sofrendo um acidente ontem.
— Toquei minha testa em um movimento ensaiado, nem sentindo a mentira
corroer minha alma, e vi o exato momento em que Isabela se encolheu ao
notar minha cicatriz recém-formada.
— Eu... eu preciso ir para a sala de aula. — Isabela desviou o olhar
de mim e então apontou para uma sala. — Ali fica a sala dos professores, os
horários das aulas estão no mural.
Ela saiu sem nem ao menos se despedir, o barulho do salto ecoando
pelo chão cimentado, e eu fiquei inerte, me xingando mentalmente por ter
vacilado logo no primeiro dia.
Segui para a sala dos professores e percebi que ela estava vazia, com
exceção de um senhor careca que parecia absorto com seus fones de
ouvidos imensos cobrindo as orelhas. Ele nem olhou para mim e eu segui
até o mural, tentando entender em que sala eu teria que dar aula.
A planilha era autoexplicativa e percebi que a primeira turma era a
do sexto ano. Estalei os dedos e segui direto para o corredor, passando os
olhos pelas plaquinhas de papel coladas sobre as portas, indicando as
turmas. O sexto ano parecia uma turma normal quando entrei na sala, um
amontoado de crianças perambulando pelo espaço, os gritos agudos se
misturando a tosses e risadas. Nada fora do comum para garotos de dez ou
onze anos. Pigarrei tentando chamar a atenção, mas a algazarra continuou.
— Bom dia turma, sou Ezequiel e serei o novo professor de vocês
— disse com o tom firme, que só chamou a atenção de duas garotas que se
sentavam na frente.
O restante pareceu pouco se importar com minha presença e eu senti
um pouco de frustração. Eu sabia que crianças eram agitadas, eu mesmo
havia sido um garoto travesso, ainda assim mantinha-me quieto durante as
aulas.
— Voltem aos seus lugares, por favor — pedi, batendo palmas para
chamar a atenção.
Nada.
A gritaria não tinha fim e eu senti a cabeça latejando onde a costura
ainda estava recente. Um garoto enfiou o dedo no nariz e ousou a jogar a
meleca na minha direção e aquilo foi a gota d’água.
O soco veio tão espontaneamente que até mesmo eu me assustei. Os
olhos arregalados daquelas crianças pousaram em mim, assustados. Minha
mão se enterrava na estrutura de madeira da mesa, quase rachada. O punho
fechado ainda sentia o ardor em contato com o objeto, mas a única coisa
que passou por meu pensamento foi que eu tinha passado dos limites.
O que eu estava fazendo ao assustar aqueles meninos daquela
forma? Eles estavam com medo de mim e mais uma vez senti o peso dos
olhares acuados na minha direção. Primeiro tinha sido a professora de
espanhol, depois aquelas pobres crianças.
— Eu estava brincando — falei abrindo um sorriso falso, algo que
estava fazendo cada vez com uma maior frequência. — Eu sou o Ezequiel,
mas podem me chamar de Zeck. Formem um círculo, hoje vamos ter uma
aula divertida.
Os alunos acabaram empolgados com minha ideia do círculo e eu
passei a mão pelos cabelos lisos, deixando um suspiro escapar pela minha
boca. Eu estava fazendo tudo errado, o que acabava por me deixar com
mais raiva do que eu já estava. Eu odiava sair do controle, mas nada estava
saindo conforme planejado, o que era uma merda. Mas não podia deixar
aquelas pessoas inocentes à mercê de um diretor que roubava o dinheiro
destinado a eles. Eu simplesmente não podia.
O sorriso falso, congelado em meu rosto, se manteve quando me
postei no meio do círculo e comecei a conversar com as crianças. Iniciei me
apresentando, quer dizer, apresentando o tal de Ezequiel, um homem
totalmente diferente de mim. Zeck era formado em letras, tinha mestrado, já
havia viajado pela Inglaterra e gostava de séries e músicas pop. Eu era um
homem totalmente diferente, quase um idoso em um corpo de jovem, o
máximo que ainda assistia eram as séries da DC. Havia ficado tanto tempo
infiltrado que não parecia me encaixar na sociedade sendo eu mesmo.
Uma aluna levantou o braço me libertando dos meus devaneios e eu
aproveitei a deixa para entrar no personagem.
— Pois não, querida — usei minha voz mais doce, depois do soco
não queria vacilar de novo.
— Posso ir ao banheiro?
— Claro — disse um tanto decepcionado.
A menina pulou da cadeira e os outros alunos começaram a se
apresentar. Atento, escutei sobre a vida de cada um dos trinta estudantes e
quando percebi a campainha tocou indicando o fim da aula.
Poderia ter sido pior! Foi o mantra que enfiei em minha mente
enquanto andei pelo corredor indo em direção, mais uma vez, à sala dos
professores. Embora aquele ambiente ainda fosse estranho, me deixei sentar
sobre o sofá de cor quase bege, sentindo meu corpo rígido finalmente
relaxar.
Fechei os olhos por um instante, tentando inspirar o ar puro, mas
tudo o que consegui foi sentir o cheiro forte de café. Minhas mãos
tremerem diante do cheiro, curiosamente me lembrando do sabor do álcool
sobre os lábios. O amargor das bebidas ingeridas durante os meses
anteriores era quase palpável e eu me levantei de supetão, tentando
controlar o nervosismo que queria se instalar dentro de mim.
— Carajo! — uma voz feminina rugiu.
O quase xingamento, vindo em outra língua, chamou minha atenção
e percebi que havia, sem querer, esbarrado na professora de espanhol,
derramando café sobre sua blusa.
— Sinto muito — falei sentindo a cor do meu rosto sumir. O que eu
tinha feito para merecer aquilo? Tudo estava dando errado!
— Você de novo? — Isabela me olhou com desdém e, sem pensar,
puxei seu pulso em direção ao lado de fora da sala. — O que você está
fazendo?
— Onde fica o banheiro? — perguntei, olhando as placas sobre as
portas. — Não quero que se queime.
Com a cara fechada, ela apontou para uma porta à direita e, com
pressa, entrei no ambiente com ela. Eu sabia primeiros socorros, por isso
abri a torneira com velocidade e comecei a jogar água sobre a camisa da
professora. Meus dedos iam da água que escorria pela torneira até sua
camisa de botão, em um vai e vem, tentando impedir que o calor do líquido
quente e escuro a machucasse.
Quando eu disse que ia assumir o papel do Ezequiel, eu não
esperava que tudo começasse a dar errado logo no primeiro dia. Eu tinha
um plano, mas a cada passo que eu dava em direção à sua execução,
acontecia algo inusitado, fazendo eu não me ater à estratégia. Eu não era
daquele jeito, era um homem prático, objetivo e focado, então por que eu
estava naquele exato momento tocando os seios de uma mulher no banheiro
feminino?
Despertei dos devaneios ao notar que meus dedos estavam sobre o
tecido da camisa encharcada, tocando duas esferas redondas e macias. Dei
um salto para trás, sentindo o frio da bancada de granito da pia em minhas
costas.
A respiração estava tão agitada quanto no dia que capturei Cabrón.
O que era estranho, já que eu não conseguia, sequer, ver uma semelhança
entre os dois atos. Até que meus olhos pousaram em Isabela e então eu
percebi por que eu estava nervoso. Porque tanto ela quanto o traficante
tinham a morte cravada nos olhos.
Isabela me olhou com um uma fúria tão grande que eu tentei dar um
passo para trás, mas eu tinha esquecido que já estava colado na pia. Meu
cotovelo bateu na torneira que ainda se mantinha ligada e nem mesmo a
água de temperatura ambiente me livrou do arrepio que percorreu a minha
espinha.
— Eu... me desculpe...
O soco veio rápido, e, por mais que meus instintos fossem aguçados,
fui pego de surpresa. A pele de Isabela não parecia nada macia contra a
aspereza da minha barba por fazer e, para uma mulher daquele tamanho, ela
era tremendamente forte.
— Seu cretino tarado. — A fúria presente em sua voz me deixou
perplexo.
Diante de toda a confusão na qual minha vida estava metida, fiz a
última coisa que eu não costumava fazer. Eu recuei.
♪ Não estou aqui para terminar
Só pra ver quão longe isso vai se desdobrar ♪
:::Make it Wit Chu – Queens of the stone age:::
ISABELA MARTINS
Eu não acreditava que aquele bastardo estava com medo depois de
segurar nos meus peitos. Na hora que me tocou parecia tão corajoso, então
por que de repente estava assustado, analisando os próprios sapatos?
— Você está mesmo evitando o meu olhar? — perguntei, incrédula.
O semblante de Ezequiel fechou-se ainda mais, passeando pela
escuridão em questão de segundos, e então lá estava a faísca em seus olhos
mais uma vez.
— Eu sinto muito, de verdade. — Ele levantou as mãos em um
gesto de rendição. — Acho que não começamos com o pé direito.
— Você acha? — indaguei, sentindo a fúria me possuir.
Tudo bem, eu tinha sido uma otária por julgá-lo um alcoólatra, ainda
mais quando ele havia me ajudado a pegar as avaliações que haviam caído
no chão, mas ele não tinha o direito de me tocar daquele jeito, nem que suas
intenções fossem as melhores.
Ezequiel passou a mão pelos cabelos em um gesto que eu estava
começando a odiar e então estendeu a mão na minha direção.
— Podemos fingir que estamos nos conhecendo agora? — ele
questionou com a voz quase rouca. — Estou nervoso com meu primeiro dia
de aula.
Sua voz pareceu sincera e a mão estendida na minha direção,
convidativa, fez eu me aproximar. Eu lembrei do meu primeiro dia de aula,
do quão apavorada eu estava e ali, diante de mim, pude notar que Ezequiel
sentia o mesmo. Crianças podiam ser difíceis, principalmente longe dos
pais, por isso, e só por isso, dei um desconto.
— Tudo bem — disse, segurando sua mão calejada.
— Você está bem? — Ezequiel questionou, ainda segurando meus
dedos sobre os seus.
— Sim, não foi nada demais. — Tirei minha mão da sua e
instintivamente levei-a a seu rosto, onde eu havia batido. — E você?
Ele se retesou ao meu toque, encarando minha mão com os olhos
arregalados, e eu rapidamente puxei-a de volta, como se sua pele fosse
capaz de me queimar.
— Não se preocupe, já levei muitos socos na vida. — Ezequiel
sorriu, o primeiro sorriso sincero que eu vi em seus lábios, mas no mesmo
instante sua boca se fechou, se tornando sério.
Não entendi sua mudança repentina, mas naquele momento só
queria saber o porquê de alguém bater nele. Será que de fato ele era um
tarado cretino? Não, não parecia ser o tipo, ele realmente parecia
preocupado comigo. Mas eu não era exatamente o exemplo de pessoa que
sabia julgar os outros. Principalmente depois do que havia acontecido
comigo.
Passei os braços pelo meu corpo em um gesto protetor, tentando me
livrar das lembranças, mas Ezequiel pareceu pensar que eu estava me
afastando dele, já que recuou em direção à porta diante do meu gesto.
— Tem certeza de que está bem? Posso te levar ao hospital. — Sua
voz saiu fraca, a preocupação presente em seus olhos castanhos, que
pararam sobre os meus por um tempo maior do que deveria ser permitido
por lei.
— Eu vou indo. — Apontei para o lado de fora, desejando ao
máximo sair daquele ambiente que, de repente, parecia pequeno demais.
Meus pés quase tropeçaram na soleira da porta e, quando finalmente
saí do banheiro, senti o ar livre percorrer meus pulmões. Segui a passos
rápidos em direção à sala dos professores, sem olhar para trás.
O ambiente estava lotado, era horário de troca de turma, mas
nenhuma pessoa olhou para mim quando adentrei o cômodo, com exceção
de Margareth, que arqueou uma das sobrancelhas na minha direção.
— O que aconteceu com você? — questionou, olhando minha blusa
molhada.
— O novo professor de inglês derrubou café em mim. — disse
olhando ao redor, esperando não encontrar Ezequiel ali, mas sentindo uma
pontada de decepção ao notar que de fato ele não estava presente.
— Você já começou uma briga com ele? — Margareth indagou,
rindo. — Como ele é? Ainda não tive o desprazer de conhecê-lo.
Eu sabia que minha amiga compartilhava meu ódio pelos
professores de inglês, tudo porque queria me proteger, mas eu não podia
deixar que ela detestasse uma pessoa que nem conhecia.
— Ainda não tenho opinião formada sobre o Ezequiel — disse a
verdade, dando de ombros.
— Ezequiel? Que nome curioso, você sabia que Ezequiel foi um
sacerdote profeta? — Margareth questionou e eu sorri para ela.
— Por que você sempre tem informações estranhas nessa sua
cachola? — apontei para sua cabeça.
— Não sei. — Ela deu de ombros. — Gosto de saber de tudo um
pouco.
O problema era que Margareth sabia de tudo e não era só um pouco.
Era quase uma enciclopédia ambulante de dados aleatórios e isso por
diversas vezes fazia eu rir.
— Você é doida — falei, me sentando ao seu lado no sofá.
Margareth passou o braço pelo meu ombro, me puxando para perto e
quase colou a boca no meu ouvido ao cochichar.
— Mas não vai me dizer que aquele gostoso ali é o tal de Ezequiel?!
Virei para onde os olhos verdes da minha amiga estavam fixos e ali
vi o motivo de toda a minha frustração. Ezequiel parecia deslocado diante
de tantas pessoas. As mãos pousavam nos bolsos da calça social de
tonalidade cinza.
— Gostoso? Você tá louca, né? — rebati em voz baixa.
— Qual é, ele tem o sorriso perfeito e os olhos encantadores. —
Margareth encarou Ezequiel de baixo para cima. — Eu sei que as olheiras
podem ser um pouco assustadoras, mas você mesma tem um par delas bem
aí, embaixo dos seus olhos.
Ok. Margareth tinha razão! Não quanto ao Ezequiel ser gostoso, mas
quanto eu mesma ter olheiras gigantes.
— Você deve estar com fome, a falta de alimentos só pode estar
afetando seu cérebro. — disse, na defensiva, mas meus olhos traiçoeiros
correram em direção à Ezequiel.
Talvez eu tenha exagerado, ele não era horrível, embora gostoso
fosse uma definição que não se encaixasse no seu perfil. Analisei seus
cabelos castanhos escuros, que se mantinham de lado, quase alinhados, e
depois seu sorriso, que de fato era bonito, mas nada se comparava aos
olhos. Uma hora eles pareciam apagados, sem vida, em outros momentos
pareciam acesos, cheios de um brilho único.
— Para quem não achou ele um gato você bem que está secando ele
faz uns bons minutos — Margareth comentou e eu desviei os olhos em
direção à minha amiga.
— Não sei do que você está falando — disse, pulando do sofá e
puxando a mochila na minha direção. — Minhas aulas de hoje acabaram,
vou para casa, tenho muitas provas para corrigir.
— Você está fugindo do assunto.
— Não, estou fugindo de você — falei, mostrando a língua para
minha amiga. — Até amanhã, Marga.
Segui para fora, desviando de um professor ou outro até que
encontrei Ezequiel em frente à porta. Ele sorriu para mim e eu apenas
encarei seu rosto, sem retribuir. Por mais que ele não fosse metido como
Raquel ou não se parecesse nem um pouco com... com Martin, isso não
queria dizer que ele era uma boa pessoa e a mágoa que eu tinha contra o
cargo ainda não tinha se curado.
Passei rapidamente ao seu lado e quando cheguei ao meu carro, no
estacionamento na lateral do terreno da escola, coloquei o envelope sobre o
banco do passageiro. Segui para casa escutando música no rádio do
automóvel, os dedos batucando o volante. A tarde prometia ser desgastante,
por isso, ao passar por um posto de gasolina, parei na loja de conveniência e
comprei um pote de sorvete.
Ao chegar no prédio, estacionei o carro na vaga destinada a mim e
subi os lances de escadas com a mochila nas costas, o envelope em uma
mão e o pote de sorvete em outra. Eu odiava aquelas escadas, sempre
chegava sem fôlego no meu apartamento, ao menos elas serviam como
exercício diário, já que para mim era um sacrifício ir à academia ou fazer
qualquer outro tipo de atividade física.
Com um pouco de suor se formando na testa e a respiração
entrecortada, abri a porta e só não joguei a mochila sobre o sofá porque o
notebook estava dentro dela e eu ainda estava pagando as parcelas do
aparelho. Com cuidado, coloquei a bolsa sobre o sofá e fui direto à
geladeira guardar o sorvete, que no calor de Teresina estava prestes a
derreter. Após aproveitar um pouquinho de frio proveniente da geladeira,
fui até o banheiro.
Olhei a camisa manchada de café e desabotoei-a vendo que até
mesmo meu sutiã estava sujo. A pele do meu colo estava um pouco
avermelhada, mas nada muito grave. Tirei também o sutiã e coloquei as
duas peças no cesto de roupa suja. Já que estava quase totalmente despida,
aproveitei para tomar um banho, tentando não pensar na quase centena de
provas que eu teria que corrigir.
Com os cabelos molhados e usando um pijama mesmo ainda sendo
o começo da tarde, me debrucei sobre a cama puxando as avaliações do
envelope e espalhando-as ao meu redor. Peguei uma caneta na mesa de
cabeceira e comecei a percorrer as avaliações, analisando as respostas dos
alunos.
A turma do sexto ano estava de parabéns, havia muitas notas boas e
assim que terminei a correção das provas, me estiquei sobre a cama,
sentindo os efeitos da dor na coluna me atingindo. Não sabia por que, mas
não conseguia corrigir sentada em uma cadeira, como uma pessoa normal, é
como se na cama eu me sentisse mais à vontade em realizar o trabalho.
Me levantei esticando os braços sobre a cabeça e notei, entre as
avaliações, um punhado de papéis que definitivamente não era meu. Dei
uma olhada no documento e abri um sorriso incrédulo.
Larguei o papel sobre a cama e fui diretamente à geladeira pegar um
pouco de sorvete. Coloquei duas bolas generosas em uma xícara, sem me
preocupar em procurar as taças de sobremesa, e, quando o gelado da
sobremesa mergulhou em minha boca, um gemido escapou por meus lábios.
Mal tinha me deleitado com o sabor de chocolate sobre a boca quando a
campainha tocou.
Curiosa, segui até a porta, escancarando-a sem saber o que esperar,
mas nem nos meus sonhos imaginei que veria aquele homem diante de
mim.
♪ Algumas noites, eu fico acordado contando minha má sorte,
algumas noites, eu chamo de um empate ♪
:::Some Nights – Fun.:::
ISAAC ALMEIDA
— Pera aí, deixa ver se eu entendi. Isa, você segurou os seios da
professora de espanhol? — Fernando questionou, abrindo um sorriso. —
Como eles eram, macios?
— Você só escutou isso de tudo o que eu te falei? — questionei
emburrado, cruzando os braços. — Não percebeu que todo o plano que fiz
deu errado?
Fernando se ajeitou sobre a poltrona da sala e então o riso
desapareceu de seu rosto. Eu havia ligado para ele assim que cheguei em
casa e acabei contando toda a tragédia que tinha acontecido no primeiro dia
de aula.
— Falando sério agora. Ela é gostosa?
— Você tá de brincadeira comigo, né? — perguntei, jogando o
travesseiro do sofá, no qual estava sentado, em sua direção.
— Cara, você está muito rabugento. Está precisando de sexo. —
Fernando falou, segurando o travesseiro sem esforço. — Faz quanto tempo
que você não afoga o ganso?
Revirei os olhos e não o respondi. Não tinha como eu ter vida sexual
no tempo que fiquei no cartel. Eu não ia transar com as mulheres da máfia,
muito menos com as garotas menores de idade que eles traziam de outros
países latinos para servir como um pedaço de carne.
— Nando, eu não liguei para você para falar sobre sexo. —
Resmunguei com a incapacidade do meu amigo levar as coisas a sério. —
Se Isabela quisesse, eu poderia ter sido demitido ou até mesmo preso.
Passei a mão pelos cabelos, quase esquecendo da cicatriz que se
alojava ali. Admitir a derrota tão cedo era um desastre, principalmente para
mim, que sempre tinha tudo sobre o controle. Mas naquela escola, eu não
tinha controle sobre as crianças e, ainda menos, sobre Isabela. Antes de ir
embora, ela tinha me lançado um olhar ameaçador e só de pensar na
intensidade presente nele, um calafrio percorreu meu corpo.
— Logo após meu encontro... polêmico com Isabela eu fui atrás do
diretor, me apresentar, mas ele não estava lá. O vice-diretor, Afonso, não
estava presente também.
— Mas você não ia entregar ao vice-diretor um documento? —
Fernando indagou.
— Ia. — Me levantei do sofá e fui até o balcão que separava a sala
da cozinha, abrindo minha bolsa carteiro. — No telefonema ele pediu meu
currículo, porque ele falou sobre estratégias para uma feira de línguas
estrangeiras.
Fernando deu de ombros, não entendendo sobre o que estava
falando, mas nem eu mesmo sabia. Só sabia que o vice-diretor queria o
documento e eu ia entregá-lo. Revirei a bolsa procurando o papel, mas não
encontrei. Eu tinha certeza de que ele estava em minhas mãos quando entrei
na escola, então por que tinha sumido de repente? Minha mente vagou até o
momento que cheguei no colégio e então a ficha caiu.
— Merda — praguejei.
— O que foi? — Fernando arqueou umas das sobrancelhas, curioso.
— Acabei, sem querer, colocando meu currículo dentro do envelope
que Isabela derrubou no chão.
— Amanhã você pega com ela.
— Ela não pode ver meu currículo, Nando. — Andei de um lado
para o outro, pensando em um modo de reaver a papelada antes que ela
visse.
— Por que não? — Fernando questionou.
— Você acha mesmo que ela vai acreditar que fiz um mestrado em
Estudos de Língua e Literatura na Universidade de Harvard? — perguntei,
sentindo um nó se formando em minha garganta. — Olha para mim, eu mal
pareço um professor, quanto mais um que tem uma carreira impecável. E se
ela não acreditar ela pode começar a me investigar.
Me xinguei mentalmente inúmeras vezes e fechei a mão em punho,
frustrado por ter cometido um erro bobo. Como eu poderia ter errado
daquele jeito em uma missão tão importante? Não podiam desconfiar da
minha farsa, eu não poderia ser pego. E meu cansaço da operação anterior
não podia ser desculpa para esse desleixo.
— Eu preciso pegar o documento antes que Isabela veja. — falei,
determinado.
— E como pretende fazer isso? — Fernando questionou.
— Vou na casa dela. — Puxei o celular do bolso, decidido.
Fernando se levantou e cruzou os braços sobre o peito. Ele não
pareceu gostar da minha ideia, já que o sorriso, sempre presente, sumiu.
— Você vai usar o banco de dados da corporação para conseguir o
endereço dela?
Eu sabia que era ilegal conseguir informações daquela forma, até
porque Isabela não estava envolvida com minha investigação.
— Não, claro que não, vou vasculhar as redes sociais dela,
certamente vou encontrar alguma pista de onde ela mora.
Minha resposta fez Fernando relaxar e eu comecei a procurar
inúmeras redes sociais em busca de Isabela. No começo não foi fácil, mas
eu sabia o sobrenome dela e era muito bom em encontrar dados na internet
e logo consegui achá-la.
Corri os olhos pelas fotos de Isabela, que tinha o perfil aberto ao
público, vendo que seu sorriso, nunca antes dirigido a mim, era muito
bonito. Encontrei uma foto dela abraçada a uma mulher que me parecia
familiar e na foto estava marcado o endereço. Bingo!
Peguei a chave do carro e coloquei a bolsa carteiro sobre o ombro.
Será que àquela hora Isabela já teria visto meu currículo mentiroso?
— Vamos, Fernando, está na hora de você ir embora, eu estou
apressado — falei, empurrando suas costas para fora do meu apê.
— Caraca, você é um péssimo anfitrião. — Fernando não estava
nem um pouco sério, o sorriso tinha voltado ao seu rosto anguloso. — Da
próxima vez, pelo menos ofereça uma cerveja e quem sabe uns petiscos.
Revirei os olhos e ri, Fernando era impossível, com seu jeito
impertinente. Fechei a porta assim que ele saiu e praticamente saí correndo
em direção ao meu carro, sem nem esperar pelo meu amigo. Afundei sobre
o banco de couro e dei partida no carro de 184 cavalos. Atravessei metade
da cidade até o prédio no qual Isabela morava e estacionei o carro na
calçada, em frente ao edifício, que tinha apenas uma mureta baixa e um
gradeado.
O local pelo menos tinha uma guarita, mas o porteiro me encarou
sem ânimo. Os cabelos do homem já eram totalmente grisalhos e ele
perguntou qual apartamento era meu destino. Eu não sabia o número do
apartamento, por isso falei o nome de Isabela e disse que era um colega de
profissão. O senhor não pareceu preocupado em verificar se aquela
informação era verdadeira e me deixou entrar sem nem mesmo interfonar
para a professora de espanhol. Aquilo era totalmente errado, ainda assim
entrei no prédio.
O imóvel tinha um aspecto um pouco antigo, com boa parte da
pintura se descascando e pude notar que as vagas de estacionamento não
eram cobertas, o que era péssimo, já que morávamos em uma das cidades
mais quentes do Brasil. Coloquei a mão sobre os olhos, tentando evitar que
os raios solares me cegassem, e segui até o bloco B, número 34,
apartamento no qual o porteiro me informou ser o de Isabela. O local não
tinha elevador e ficava no terceiro andar, sorte que eu era um homem
atlético e mal senti o peso de subir aquela quantidade de lances.
Respirei fundo e bati na porta duas vezes. Isabela logo escancarou a
porta e seus olhos arregalados me mostraram que ela tomou um susto ao me
ver ali.
— Ezequiel, o que está fazendo aqui? — Sua voz saiu em um misto
de surpresa e rancor e eu me vi mudo por um segundo.
Escutei uma voz masculina vinda de dentro do apartamento e meu
corpo logo retesou. Ela estava acompanhada e eu estava ali atrapalhando.
— Sinto muito, acabei colocando um documento meu dentro do seu
envelope — falei rapidamente, querendo sair dali o mais rápido possível.
Isabela continuou com os olhos em mim por mais um tempo, até que
ela saiu da frente da porta apontado para o apartamento.
— Entre.
Não querendo entrar, mas também não querendo ser mal-educado,
me arrastei, meio sem jeito, pela sua sala de estar. Um homem estava
sentado no sofá, uma perna cruzada sobre a outra, de modo elegante. Ele
vestia uma roupa de academia, um short escuro e uma camiseta colada no
corpo forte.
— Não sabia que estava esperando visitas, Isa. — Meu apelido
saindo dos lábios daquele homem me deixou confuso, e só então percebi
que ele estava se dirigindo a Isabela.
— Eu não estava, Iago — Isabela falou, direta. — Ezequiel só veio
pegar uns papéis.
— Eu já vou indo. Obrigado pelo açúcar. — O tal de Iago se
levantou e pegou um pote de plástico em cima da mesinha de centro.
Isabela pareceu um pouco decepcionada, mas não protestou, apenas
o acompanhou até a saída. Depois de fechar a porta se virou para mim e
cruzou os braços sobre os seios. Não pude evitar de olhá-los, o pijama,
composto por um shortinho rosa e uma blusa regata verde limão, deixando
muita pele à mostra e então desviei meus olhos, incapaz de continuar
admirando aquela mulher que parecia me odiar.
— Você está de pijama? — foi a primeira coisa que perguntei,
sentindo minha garganta seca.
— Estou, porque curiosamente, dois homens vieram ao meu
apartamento sem me avisar. — Isabela passou a mão pelos cabelos e notei
que ela não perecia nem um pouco constrangida por usar aquelas peças de
roupa pequenas demais. — Aliás, como conseguiu meu endereço?
— Redes sociais. — Dei de ombro falando a verdade. — Você
deveria ser mais cuidadosa, o porteiro do prédio não fez nem questão de
avisar para você.
— O síndico não se importa muito com isso. — Isabela andou pelo
apartamento, indo em direção a uma porta. — Venha, você não quer seu
documento? Eu poderia ter entregado ele amanhã para você.
— Eu preciso dele hoje, preciso consertar algo que errei — inventei
uma desculpa qualquer.
— Então quer dizer que você se enganou que havia feito mestrado
em Harvard? Ou errou sobre o emprego na Apple? Não sabia que
professores de inglês poderiam trabalhar fazendo Iphone.
A pergunta não soou acusatória, ainda assim, a sobrancelha erguida
de Isabela na minha direção fez eu me xingar mentalmente. Ela havia lido
meu currículo e, como suspeitei, não acreditou muito nas mentiras
colocadas no pedaço de papel.
— Na verdade, errei o meu e-mail — falei colocando a mão no
bolso, enquanto Isabela abriu a porta do que seria o quarto dela.
Inúmeros papéis se espalhavam pela cama, mas, tirando esse fato,
ela parecia ser uma pessoa organizada. Eu não vi peças de roupas
espalhadas pelos cantos e a mesinha de cabeceira estava com tudo em
ordem. Isabela se curvou sobre a cama, a posição sugestiva veio de forma
tão natural que me peguei observando suas pernas cobertas apenas pelo
short minúsculo.Desviei os olhos para o chão, mais uma vez fugindo de
encarar aquela mulher que eu conhecia há menos de vinte e quatro horas e
só voltei a fitá-la quando escutei seu pigarreio.
— Aqui está. — Isabela estendeu o papel na minha direção. Me
aproximei dela e peguei o documento composto por inúmeras mentiras —
Como foi lá?
— Lá onde? — questionei, confuso.
— Em Harvard, é claro. — Isabela seguiu de volta à sala e saí em
seu encalço.
Eu não sabia se ela estava desconfiada ou se realmente era
curiosidade, por isso apenas respondi de forma objetiva.
— Foi ótimo, Cambridge é uma cidade maravilhosa. — Abri um
sorriso e continuei. — Infelizmente o inverno pode ser cruel com quem
nasceu no Brasil, ainda assim foi bom.
As pessoas sempre falavam do clima quando viajavam para o
exterior então eu só segui a onda. Isabela se mostrou satisfeita com minha
resposta, já que sorriu.
— Imagino que tenha sido difícil, eu mesma sinto frio até quando
estou na sessão de frios de um supermercado — comentou, sentando-se no
sofá e indicando-o para eu me sentar também.
— Eu preciso ir, ainda tenho que ajeitar meu e-mail. — disse, já me
encaminhando para a porta. — Obrigado e desculpa.
Me virei para ir embora, ficar perto de Isabela era perigoso, mas
algo me impediu de sair. Olhei para baixo, especificamente para meu pulso,
e percebi que a professora de espanhol o segurava com sua mão.
— Pelo que exatamente está se desculpando? Por ter vindo à minha
casa sem me avisar, por ter tocado em meus seios sem minha permissão ou
por ter sido pego no flagra mentindo em seu currículo?
Ela então me soltou. Virei meu corpo em direção à Isabela,
encarando aqueles olhos ameaçadores. Mais uma vez ela estava rindo, mas
eu percebi que não era alegria que marcava seus lábios bem desenhados. Eu
pensei que o primeiro dia já havia atingido sua cota de tragédias, mas é
claro que ainda tinha sobrado espaço para mais.
♪ Oh, não, vocês garotos nunca vão se importar
Não, vocês garotos nunca se importam em como uma garota se sente ♪
:::No you girls – Franz Ferdinand:::
ISABELA MARTINS
A cara que Ezequiel fez na minha direção foi impagável: uma
mistura de choque com aflição. Eu sabia que havia sido maléfica, mas quem
mandou ele chegar de supetão na minha casa quando o gato do Iago estava
me dando bola?
Eu mal acreditei quando abri a porta e vi que meu vizinho, que
parecia saído dos filmes de super-heróis da Marvel, estava ali diante de
mim, pedindo açúcar. Era raro eu ver Iago pelo prédio, por isso, quando ele
surgiu na minha frente, quase me engasguei. Eu havia acordado após um
sonho frustrado com Henry Cavill, mas ali, na minha frente, estava um
homem tão bonito quanto. Quando o convidei a entrar e ele se sentou no
meu sofá, eu faltei suspirar. Eu ia pedir o telefone dele, quem sabe a gente
marcasse uma saída. Mas ele foi embora cedo demais, e tudo por culpa do
Ezequiel que apareceu do nada no meu apê.
— Sinto muito por ter aparecido sem avisar, mas eu não sabia seu
telefone — Ezequiel comentou, a fisionomia voltando a parecer uma
máscara indecifrável.
— Mas arranjar meu endereço foi fácil, né? — rebati. Estava irritada
por seu intrometimento.
— Você está realmente zangada comigo? — questionou.
— Claro que sim. — Cruzei os braços sobre os seios.
Ezequiel me olhou por um segundo e então um pequeno riso se
formou em seu rosto. Eu não gostava de quando ele ria, principalmente
porque os dentes pareciam perfeitos demais.
— Entendi, eu atrapalhei o que estava acontecendo aqui. Não tenho
culpa se ele foi embora quando eu cheguei.
Pude notar um leve tom de sarcasmo na sua voz e logo soube que
ele estava falando de Iago. Revirei os olhos e resolvi cutucar a fera com
vara curta.
— Quer dizer que você fez mesmo mestrado em Harvard? —
questionei, erguendo uma das sobrancelhas.
Sei que não devia ter lido o currículo, mas estava ali, na minha cara
e não resisti. A formação dele era impecável, perfeita demais para ser
verdade e eu sei que metade da minha desconfiança era inveja, mas a outra
metade era de fato real. Poderia alguém que parecia ser tão novo ter aquela
quantidade de experiência?
— Claro que fiz, você acha que eu mentiria no meu currículo? —
Ezequiel questionou me olhando com cara feia, tocando o pescoço com o
indicador.
— Quem nunca mentiu no currículo que atire a primeira pedra.
— Fique à vontade de pesquisar meu nome no Google — ele disse
virando-se mais uma vez para ir embora.
— Talvez eu faça isso — retruquei.
Os pés de Ezequiel vacilaram, ainda assim ele girou a maçaneta e
foi embora me deixando ali, abismada com todos os acontecimentos do dia.
Aquele homem era irritante e a vontade que eu tinha era de socá-lo, mais
uma vez, por ele ser tão presunçoso.
Me debrucei sobre o sofá, puxei o celular, abri o Google e coloquei
o nome dele no campo de busca, desejando desesperadamente que tudo que
tivesse naquele currículo fosse mentira, mas o que encontrei só me deixou
pior. Não só tudo era verdade, como a foto dele que surgiu na tela me
deixou em choque. Parecia uma foto 3x4, no entanto, ele estava
tremendamente lindo. O rosto não estava tão magro, os cabelos se
destacavam, mais compridos, e os olhos sempre com aquele estúpido brilho.
Joguei o celular sobre o sofá e me levantei indo até à cozinha, beber um
gole de água. Subitamente o ambiente tinha se tornado mais quente do que
já era.
Voltei ao quarto e recomecei a corrigir as avaliações das outras
turmas. Me foquei nas respostas dos alunos e não nos acontecimentos
sinistros do dia. Quando finalmente acabei de passar as notas dos alunos
para o sistema acadêmico, me deixei relaxar. Meus olhos se fecharam quase
automaticamente, devido ao cansaço, e acabei pegando no sono. Não sonhei
com Henry Cavill, mas sim com Iago e Ezequiel brigando entre si em uma
banheira cheia de sabão.
Acordei assustada, imaginando de onde meu subconsciente tinha
tirado aquela ideia para o sonho que tive. Esfreguei os olhos e me levantei
da cama percebendo que já era noite. Pela janela do quarto pude ver que as
estrelas pareciam tímidas no céu e que a temperatura havia dado uma
amenizada. Sem sono, depois de ter cochilado, fui até a sala e liguei a
televisão. O jornal local falava sobre a prisão de um traficante de drogas
caribenho e me peguei pensando o que diabos um homem que nasceu no
Caribe veio fazer no Piauí. Se eu fosse ele estaria curtindo as praias do
Caribe e não a quentura da única capital do Nordeste que não era litorânea.
O jornalista comentou sobre o caso por um bom tempo e, sentindo
um pouco de medo da violência crescente, fui até a porta verificar se estava
realmente trancada. Como Ezequiel tinha dito, o porteiro deixava qualquer
um passar e talvez fosse bom conversar com o síndico para mudar a
situação.
O telefone tocou sobre o sofá e abri um sorriso ao notar o nome de
Margareth no visor. Ainda que trabalhássemos no mesmo local, nós
vivíamos ligando uma para outra.
— Oi, Marga — falei ao atender a chamada.
— Você não vai acreditar no que aconteceu. — A voz empolgada de
Margareth soou no meu ouvido.
— O quê?!
— Não tem o Otávio, aluno do sétimo ano? — ela questionou.
— Sim, que que tem ele?
— O pai dele me adicionou no Facebook e mandou um direct me
convidando para jantar.
— O quê? — meu grito ecoou pela sala e eu dei graças a Deus que
Iago àquela altura provavelmente não estava em casa porque ele era
enfermeiro e trabalhava boa parte das noites dando plantão. — Você
aceitou?
— Tá maluca? Não saio com pais de alunos. Seria uma confusão
desnecessária se não desse certo. Já pensou como seria na reunião de pais e
mestres?
— E você quer adivinhar o que aconteceu comigo hoje à tarde? —
questionei, pronta para contar o que tinha ocorrido.
— Você sabe que eu odeio tentar adivinhar. Conta logo.
— Meu vizinho, o Iago, veio aqui em casa, pedir um pouco de
açúcar — eu disse, me remexendo no sofá.
— Não acredito! Ele é muito gato, que sorte a sua — Margareth
comentou e olha que ela só tinha visto Iago uma vez, no corredor do prédio,
quando veio me visitar.
— Sorte seria se o Ezequiel não tivesse aparecido aqui — disse
estreitando os olhos, mesmo que ela não pudesse ver.
— Como assim?
Eu respirei fundo e contei tudo, como ele magicamente havia
aparecido no meu apartamento, falei sobre o currículo dele e também sobre
nossa interação. Margareth parecia estar se divertindo, já que eu pude
escutar seu sorriso do outro lado da linha.
— Não tem graça — falei, emburrada.
— Claro que tem, vocês parecem cão e gato e como ele é o gato
você só pode ser o cão.
Revirei os olhos, inconformada com a atitude da minha amiga. Ela
não tinha jeito, sempre levando tudo na brincadeira.
— Qual é, ele nem é tão gato assim — comentei, tentando não
pensar na foto de Ezequiel que achei na internet.
— Como dizia meu avô: o pior cego é aquele que não quer ver. —
Margareth riu e eu bufei.
— Preciso preparar minha aula de amanhã. — disse, cortando o
assunto.
— Ok, ok, não vou mais implicar, mas se hoje, no primeiro dia, ele
já foi na sua casa, o que será que ele vai aprontar amanhã?
— Não quero nem imaginar, só quero distância — falei me
levantando do sofá. — Eu realmente preciso ir, até amanhã.
— Até.
Desliguei o telefone e voltei para o quarto, a minha vontade era de
preparar minhas aulas do outro dia, mas a curiosidade foi maior e acabei
aproveitando o tempo para pesquisar mais sobre Ezequiel.
Não encontrei muitas coisas sobre ele, nenhuma rede social, o que
era estranho, apenas o currículo e um documento mostrando sua nomeação
no concurso. Tirei o nome dele do Google e coloquei o meu próprio e vi um
punhado de resultados a mais. Talvez ele fosse um homem discreto e eu
uma pessoa enxerida. Fechei a tela do computador me sentindo uma stalker
da pior categoria.
Eu não tinha motivos para desconfiar de Ezequiel e, por mais que
odiasse seu cargo, não podia simplesmente detestá-lo por ele estar fazendo
sua função. O que tinha acontecido entre mim e Martin nada tinha a ver
com Ezequiel. Um frio não condizente com a temperatura ambiente
perpassou meu corpo e eu suspirei ao notar meus próprios braços se
fechando sobre meu corpo em um gesto semiautomático. Eu precisava
superar, sabia daquilo, mas, enquanto a solução do problema não parecia
surgir diante de mim, resolvi fazer o que fazia de melhor. Me distanciar.
Estava decidido. Eu não iria mais interagir com Ezequiel.
♪ Vou trocar essa vida por fortuna e fama
Até cortaria meu cabelo e mudaria o meu nome ♪
:::Rockstar – Nickelback:::
ISAAC ALMEIDA
Aquela mulher era ardilosamente perigosa. Deitado na cama, horas
depois de chegar em casa, eu ainda pensava no estrago que ela poderia fazer
na missão. Sabia que ao colocar meu nome no buscador ela não acharia
nada demais, afinal a polícia fazia um trabalho bem-feito. Ainda assim, eu
tinha medo. Uma mulher desconfiada era suficiente para se transformar em
uma arma perigosa.
Fechei os olhos, tentando dormir, mas as cenas, ainda frescas das
atrocidades cometidas pelo Cabrón, perpassaram minha mente já
perturbada. Eu precisava impedir o que quer que acontecesse naquela
escola. Crianças passavam o dia naquele ambiente que, muito
provavelmente, era uma fachada para o crime. Só conseguiria dormir em
paz depois que aquele caso terminasse e minha tranquilidade só duraria até
mais uma nova missão surgir.
Não era o ideal para minha saúde mental, porém era daquele jeito.
Me obrigava a fazer o meu melhor, o que exigia muito não só fisicamente
de mim, mas o retorno fazia tudo valer a pena.
Decidido, me sentei de uma vez do colchão semiortopédico e puxei
uma folha de papel da escrivaninha, onde minha arma permanecia
guardada. Ia traçar um plano e executá-lo o mais rápido possível. Se as
evidências não vinham até mim, eu iria até elas e assim terminaria aquele
trabalho o mais rápido possível, antes mesmo que Isabela tivesse mais
motivos para desconfiar de mim.
Passei a madrugada acordado, a adrenalina fluindo pelo meu corpo
tão acostumado à ação. Na manhã seguinte as olheiras estavam um pouco
piores, mas não me importei, ia concluir a missão.
Ao chegar na escola fui direto à sala de aula, pronto para colocar
todo meu plano em prática, mas o universo não parecia tão disposto a me
ajudar. Mal cheguei na porta e vi que a algazarra estava feita. Crianças
corriam de um lado para o outro, algumas assustadas, outras com o dedo
apontado para o fim da sala. Os berros e gritos se misturavam a risos e,
confuso, saí andando até o ponto onde boa parte dos alunos se
aglomeravam.
Primeiro tomei um susto, depois, quando me recuperei, xinguei
mentalmente em todas as línguas que conhecia, porque o que vi me deixou
tão indignado que meu cérebro não conseguiu se controlar.
Um aluno com catapora.
Isso mesmo, os pais de um dos alunos simplesmente resolveram que
seria sensato enviar o filho com catapora para uma sala cheia de outras
crianças. O caos, já instalado, só ficou pior quando o aluno, cheio de marcas
pelo corpo, começou a chorar.
Suspirei e contei até dez antes de fazer algo do qual me arrependeria
e, com uma paciência que costumava não ter, me dirigi até o garoto chorão.
Segurei sua mão com firmeza, lancei um sorriso nível de premiação
mundial de atuação e o convidei para ir até o lado de fora da sala comigo. A
última coisa que precisava era ter um surto de catapora na minha turma.
— Qual seu nome e o telefone do seus pais? — indaguei.
O garoto não respondeu nada, apenas continuou chorando, uma
meleca verde saindo por uma de suas narinas. Ele fungava, esfregando as
mãos sobre os olhos molhados.
— Não precisa chorar, todo mudo já teve catapora um dia.
O aluno desatou a chorar mais ainda e eu olhei para os lados,
desesperado, sem saber o que fazer. Uma mulher passava pelo corredor,
carregando uma pasta nas mãos, e sem pensar duas vezes fui até ela.
— Será que você pode me ajudar? — implorei, quase como se
minha vida dependesse disso, porque afinal, não só minha vida dependia
desse caso.
A mulher olhou para o aluno chorão e depois para mim. Ela então
abriu um sorriso de compreensão e chamou o aluno.
— Otávio, querido, venha aqui, não precisa ter vergonha. — Sua
voz saiu de forma tão carinhosa que até eu me acalmei.
O tal de Otávio chegou de mansinho e abraçou a mulher de olhos
verdes. O choro finalmente cessou e ela tocou no meu ombro antes de dizer.
— Não se preocupe, deixa que eu resolvo o caso dele.
Suspirei, aliviado, e ajeitei os fios do meu cabelo que, no desespero,
tinham saído do lugar.
— Eu sou Ezequiel, a propósito — falei, me apresentando.
— Eu sei. — A mulher de olhos claros, falou, mordendo o lábio
inferior para conter um riso. — Sou a Margareth, professora de história,
mas pode me chamar de Marga.
Ela me analisou por completo, sem um pingo de pudor, e eu inventei
uma tosse falta, incapaz de sustentar seu olhar lascivo.
— Eu vou voltar à sala de aula. — falei, sentindo minha garganta
travar. — Muito obrigado pela ajuda.
Margareth estendeu a mão na minha direção e eu apertei a dela,
pronto para ir embora. Ela, entretanto, segurou a minha com força.
— Você sabia que o profeta Ezequiel ficou muito tempo em
cativeiro, na Babilônia? — questionou, sem me soltar e eu ergui uma
sobrancelha, curioso. — A esposa dele faleceu, durante o episódio, mas ele
era um homem de fé.
Esperei pela continuação de sua história sobre o profeta Ezequiel,
mas ela se calou e soltou minha mão. Margareth chamou Otávio mais uma
vez e foi embora, seguida dele.
Fiquei um tempo parado, chocado demais para me movimentar. Foi
uma troca de olhar, mas senti ser o suficiente para ela saber que eu estava
mentindo, como se conseguisse ler todos meus passos meticulosos como
falsos. Tal qual Ezequiel, eu vivia em eterno cativeiro, preso de lugar em
lugar por conta da minha profissão e ela pareceu saber exatamente aquilo ao
falar aquelas palavras.
Fechei a mão em punho, inconformado por precisar ter cuidado com
mais uma pessoa. Primeiro era Isabela, que prometeu investigar meu nome,
depois era Margareth com seu olhar crítico sobre mim. Eu precisava sair
dessa escola o mais rápido possível, de forma que meu disfarce
permanecesse intacto.
Voltei à sala de aula, mas minha cabeça permaneceu na missão, em
como eu faria para conhecer o diretor e descobrir se ele realmente estava
envolvido no mundo dos crimes ou não. Por isso, logo que a aula acabou,
segui a passos firmes até a sala da diretoria.
Bati na porta duas vezes, pronto para me apresentar e fazer o
homem confiar em mim, só que quem abriu a porta não foi o diretor, e sim
o vice, Afonso.
— Professor Ezequiel. Que bom vê-lo por aqui, entre. — O senhor
careca e de estatura elevada me abraçou como se fossemos velhos amigos.
— Queria mesmo conversar com você.
Afonso afastou uma das cadeiras da sala para eu sentar e ele próprio
se sentou na robusta cadeira que ficava diante da mesa de madeira. O
homem cruzou os braços sobre o peito e abriu um sorriso em meio a seus
dentes amarelos.
— Trouxe seu currículo? — questionou.
Puxei o envelope da mochila e entreguei ao homem, deixando a
máscara da seriedade cobrir minha face.
Afonso analisou os papéis com atenção, abrindo a boca, surpreso,
em alguns momentos e eu me preparei para o bombardeamento de
perguntas, mas nada veio, apenas palmas.
— Desconheço um professor com tantas qualificações, você
realmente é um profissional exemplar. Fico muito feliz que esteja com a
gente. Pena que isso só aconteceu porque Raquel foi afastada devido ao
acidente.
A atmosfera mudou na mesma hora. Afonso olhou, de modo rápido,
para uma foto em cima de sua mesa. A imagem mostrava uma reunião de
várias pessoas e, como reconheci Isabela e também Margareth, supus que
era uma foto com todos os professores. Percorri os olhos pelos rostos e fixei
em uma mulher loira, alta, e de nariz pontudo. Aquela era Raquel, a antiga
professora de inglês.
O que tinha acontecido com ela nada tinha a ver comigo. Ela havia
sofrido um acidente de moto, estava andando acima da velocidade
permitida, e, felizmente, sobreviveu ao estrago quando bateu em um poste.
Teve que se afastar e ali eu entrei. A polícia fez um trabalho meticuloso, me
colocando em seu lugar como se eu fosse o próximo candidato na lista do
concurso, mas a verdade é que apagamos todos os registros de afastamento
de Raquel, para que o verdadeiro candidato jamais soubesse que ela havia
saído do cargo. Era uma coisa complexa, mas para mim só importava que
eu estava ali para resolver um crime.
— Você tem alguma pergunta? — questionou, depois de suspirar.
Apagando a tristeza em seu semblante e voltando a uma atmosfera gentil.
— Quando irei conhecer o diretor? — perguntei, demonstrando uma
empolgação genuína. Não via a hora de prendê-lo, se fosse culpado.
— O diretor Pascoal é muito ocupado, mas não se preocupe, você
vai ter várias oportunidades para conhecê-lo.
Trinquei a mandíbula com sua resposta. Eu não tinha tempo, nem
um pouco. Não queria ficar meses infiltrado se pudesse resolver o quanto
antes. Esse diretor estava me tirando do sério e, se por um acaso, não o
prendesse por lavagem de dinheiro ou o que quer que fizesse às escondidas,
estava seriamente pensando em o prender por não trabalhar.
Afonso se levantou, já pronto para me despachar, mas quando abriu
a porta tocou a testa e suspirou alto.
— Como sou esquecido, sei a oportunidade perfeita para vocês se
encontrarem logo. Você sabe jogar poker?
Um sorriso naturalmente se abriu em meus lábios. Se tinha uma
coisa que eu sabia fazer era blefar, principalmente quando minha profissão
dependia disso. Embora poker não fosse um jogo de azar, senti que a sorte
estava ao meu favor e eu estava pronto para jogar.
♪ Será que estou sob um feitiço
Que me impede de ver a realidade? ♪
:::Love Hurts – Incubus:::
ISABELA MARTINS
— Não acredito que você que transou e eu que ganhei catapora! —
comentei, colocando o termômetro embaixo da axila.
— Isa, eu sinto muito. Eu estava querendo, ele também, foi natural.
— Margareth juntou as palmas das mãos em uma prece, implorando por
perdão pela décima vez nos últimos dois minutos.
— O que foi natural? Você me passar catapora ou transar com o pai
do seu aluno? — questionei, incrédula.
Minha amiga suspirou, olhando para o teto, e o termômetro embaixo
da axila apitou indicando que eu estava com febre mais uma vez. Ela
choramingou, mas não fiquei com pena dela. A safada havia ido ao meu
apartamento contar tudo o que tinha acontecido entre ela e o pai do Otávio,
não deixando de fora nenhum dos detalhes sórdidos e ainda havia me
deixado doente.
— Eu sei que falei que não sairia com pai de aluno, mas Manuel é
um fofo, comprou até flores como forma de agradecimento por eu ter
ajudado o Otávio. — Margareth abriu um sorriso bobo e eu bufei.
Ela havia tido uma noite de sexo maravilhosa, em compensação
contraiu catapora, o que não foi problema, já que ela tinha pegado quando
criança. O desastre foi ter passado a maldita doença para mim, que, aos
vinte e nove anos, estava parecendo uma árvore de Natal, de tanta bolinha
espalhada pelo corpo.
— Eu preciso ir para a escola, só vim ver se você estava melhor.
Você promete que vai ficar bem sozinha? — questionou.
— Não se preocupe, se eu precisar de algo vou atrás do Iago. Ele é
enfermeiro, pode me ajudar.
— Boa ideia, ele pode te ajudar a trocar de roupa, por exemplo. —
Margareth riu e eu não pude deixar de sorrir também, só minha amiga para
ter ideias como essa.
Ela se despediu, mas não antes de falar o nome de Manuel mais uma
infinidade de vezes. Marga realmente estava gamada nesse homem. Ter um
relacionamento com um pai de aluno não era o melhor dos cenários, mas
também não era proibido ou algo do tipo. Só poderia ser complicado e eu
sabia, melhor que ninguém, que quando o relacionamento com alguém
próximo ao ambiente de trabalho não dava certo, muitos problemas
estariam envolvidos.
Liguei a televisão e, mesmo sendo abril, comecei a assistir um filme
natalino. Já que eu estava parecendo uma árvore de Natal, iria entrar no
clima. Estava tentando não ficar irritada com a situação, mesmo que
estivesse com febre, dor de cabeça, e uma coceira chata pelo corpo.
Eu costumava ver o lado positivo da situação, e o lado positivo era
que os coleguinhas não iam rir de mim, como aconteceria se eu tivesse
ficado doente na infância, e eu estava de atestado médico por uma semana.
Se eu pensasse bem era quase férias antecipadas, só que com direito a muita
coceira e banho roxo.
O filme acabou e aproveitei para pegar um cobertor no quarto
porque mesmo tendo tomado o remédio de febre ainda estava sentindo frio.
Voltei à sala e dei o play em mais outro filme natalino, desejando cada vez
mais que o Natal chegasse logo.
Depois de passar a manhã entre filmes, pipoca e cochilos, dei uma
de Garfield e pedi uma lasanha à bolonhesa por um aplicativo de comida, já
que não estava com coragem para preparar algo. Estava quase com tédio,
indo para o quarto filme cheio de presentes e milagres amorosos, quando
uma batida na porta chamou minha atenção.
Girei a maçaneta de uma vez, pronta para ver minha comida
quentinha sendo entregue e não um homem de estatura elevada e olhar
penetrante.
— Ezequiel?
O que diabos o culpado pela minha doença estava fazendo na minha
casa? Deixei toda a vibe de carpe diem de escanteio.
— Você é um idiota! — foi a primeira coisa que disse, zangada.
Ele recuou um passo, surpreso com minha atitude, mas logo se
recuperou.
— O que foi que eu fiz? — questionou e eu revirei os olhos. Ele
tinha mestrado, não poderia ser tão estúpido!
— Por sua culpa Margareth pegou catapora e passou para mim.
— Jamais imaginei que você seria prejudicada nessa confusão. —
Ele comentou, sorrindo, os dentes retilíneos, brancos, bonitos demais para
meu gosto.
O som sereno de sua risada me irritou e, se eu tivesse poderes,
certamente seria o Ciclope e soltaria laser por meus olhos. Me aproximei de
Ezequiel a ponto de sentir o cheiro discreto de seu perfume amadeirado.
— Você não pode chegar na escola achando que o é o maioral só
porque fez um mestrado nos Estados Unidos se não sabe nem lidar com
uma criança chorando por conta de catapora. Que tipo de professor de
merda você é?
O riso fechou no mesmo instante e, apenas por um segundo, vi
medo perpassando seu semblante. O medo, entretanto, deu lugar a algo que
eu não soube identificar e, quando Ezequiel me encarou com seu par de
olhos castanhos, eu me vi calada, pensando se não teria ido longe demais.
— Você tem razão. Eu sinto muito, isso não vai mais se repetir. —
Ezequiel disse, determinado. — Prometo que não vou mais lhe causar
problemas, Isabela.
Meu nome, saindo de forma tão séria de sua boca, trouxe um
desconforto no meu estômago e, por um breve momento, eu quis desfazer
tudo e trazer de volta o Ezequiel sarcástico. Antes de eu falar qualquer outra
coisa, ele passou por mim, entrando no meu apê e deixou uma sacola em
cima da bancada da cozinha. Só então percebi que ele havia feito compras.
— O que é isso? — perguntei, confusa.
— Soube de você por Margareth e como me senti culpado pelo que
aconteceu, resolvi trazer algumas coisas para você. Trouxe um antialérgico,
remédio para febre, suco e água de coco. — Informou tirando uma
infinidade de coisas da sacola ecológica com estampa de filhotes de
cachorros. — Ah, trouxe também chocolate e frutas.
Ezequiel descarregou tudo, quase como se agir dessa forma,
trazendo comida para mim, fosse natural, e depois enfiou a mão no bolso da
calça jeans. Sua roupa, casual, de nada parecia com a que usava na escola.
Uma camiseta preta cobria seu corpo e seu look se completava com um
tênis da mesma cor. Os cabelos estavam bagunçados, dando um ar
desleixado e curiosamente atraente, e eu balancei a cabeça tentando afastar
essa linha de pensamento perigosa.
— Para sua informação, nos Estados Unidos, a maioria dos pais
fazem questão que as crianças peguem catapora, pois acreditam que é mais
seguro que elas desenvolvam imunidade natural à doença em uma idade
jovem, em vez de serem vacinadas. — Ezequiel comentou, dando de
ombros.
E então, todo o encanto que parecia surgir vindo dele, se quebrou.
— Você sempre tem que rebater o que falo? — questionei, incrédula
por todas as vezes ele ter uma resposta na ponta da língua.
Ezequiel me analisou, pronto para responder, e então tocou a ponta
dos seus dedos na cicatriz recém-formada, fazendo por fim uma careta.
— É um hábito que tenho desde criança. Meu pai dizia que era um
dos meus grandes defeitos, ser uma pessoa orgulhosa, sempre ter a última
palavra.
Uma nuvem sombria pareceu se instalar em suas íris marrom e não
soube dizer se era pela dor que a cicatriz trazia ou se pelas lembranças que
ele recordava. De alguma forma me senti tentada a afastar a escuridão de
perto dele.
— Quais eram os seus outros defeitos? — perguntei, curiosa por
saber mais um pouco sobre Ezequiel.
Para minha surpresa ele riu e andou a passos curtos até a porta de
entrada.
— Se eu te dissesse teria que te matar — falou piscando um dos
olhos para mim e virou as costas para ir embora, mas, antes de sair, girou os
pés na minha direção. — Se hidrate muito bem e não esqueça de tomar os
remédios na hora certa.
Balancei a cabeça, concordando, e ele foi embora, me deixando
plantada no meio da minha sala, chocada demais para processar tudo o que
tinha acontecido.
Quase que instantaneamente senti sua falta, mas talvez fosse melhor
desse jeito, quanto menos contato com Ezequiel, melhor. Afinal, seu cargo
de professor de inglês parecia mais amaldiçoado que o cargo de Defesa
Contra as Artes das Trevas de Harry Potter.
Respirei fundo e voltei ao sofá, pronta para continuar na minha vibe
de férias, porém, uma batida na porta soou mais uma vez. Girei a maçaneta
e vi Ezequiel do outro lado, quase esbaforido. Sua respiração ofegante
indicava que ele havia corrido os lances da escada.
— Eu esqueci de uma coisa. — Olhei para trás, pronta para ver a
chave do seu carro jogada em cima da bancada ou coisa do tipo. Ezequiel,
entretanto, não se moveu.
Depois de um minuto de silêncio, como se subitamente tivesse se
lembrando do que veio fazer ali, ele disparou:
— Esqueci de dizer que enquanto estiver doente, venho cuidar de
você. — Sua voz saiu fraca, rápida, mesmo assim tive certeza de que o
havia escutado muito bem.
Ezequiel abriu um sorriso, dessa vez contido, mas não menos
bonito, e eu me deixei encarar sua boca. Foi questão de um segundo, mas
suficiente para sentir uma onda de calor perpassando meu corpo. No
entanto, culpei a febre, que devia ter passado. Quando Ezequiel foi embora,
entretanto, senti que levou consigo um pouco da minha sanidade.
♪ Eu quero jogar como se faz no Texas, por favor
Dobrá-los, deixarem me bater, aumente a aposta, querido, fique comigo (eu
amo isso) ♪
::: Poker Face – Lady gaga:::
ISAAC ALMEIDA
ISABELA MARTINS
Bastou um dia completo sem dar aula que lembrei que não gostava
tanto assim de férias. Como uma pessoa agitada, odiava o tédio e nem todos
os filmes de Natal foram capazes de me tirar do torpor que senti quando o
sol se pôs.
A febre havia cessado, em compensação a coceira pelo corpo estava
insuportável e nada no mundo parecia capaz de amenizar. Nem mesmo
pensar em Ezequiel e sua promessa inusitada fazia meu corpo sair do estado
de comichão, na verdade só me deixava pior, como se meu cérebro também
estivesse cheio de bolhas.
Ele era o culpado? Sim, mas não precisava cuidar de mim, eu podia
me cuidar muito bem sozinha. Bastou sentir vontade de comer um sorvete,
entretanto, que toda a minha lógica caiu por terra. O pote que eu comprei já
tinha acabado e eu realmente queria mais um pouco da minha sobremesa
favorita. Eu não podia sair de casa e arriscar contaminar outras pessoas e os
aplicativos de comida demoravam tanto para entregar que provavelmente
chegaria um caldo e não um sorvete. Pensei em cobrar esse favor à
Margareth, afinal, ela era tão culpada quanto Ezequiel, mas algo dentro de
mim disse que eu deveria aproveitar a oportunidade. Já que ele prometeu
que iria cuidar de mim, eu iria usufruir dos benefícios e fazê-lo de gato e
sapato, para que aprendesse a não me deixar doente de novo.
Eu não tinha o contato dele, mas bastou uma ligação para a escola.
A técnica de assuntos educacionais, que àquela altura já estava quase no fim
do período de trabalho, me passou o telefone que Ezequiel tinha fornecido à
instituição. Peguei o celular em cima da mesinha da sala e sem pensar
demais mandei a mensagem.
Passei alguns minutos ansiosa, esperando uma resposta, mas nada
veio. Eu sabia que sua promessa havia sido coisa do momento e que ele não
ia perder o tempo dele fazendo minhas vontades. Bufei, sentindo uma
pontada de decepção, e aproveitei que estava com o celular em mãos para
navegar um pouco nas redes sociais.
Minutos depois, uma batida soou na porta, me despertando. Ao abri-
la, tomei um susto ao notar que Ezequiel estava ali.
— Eu não acredito que você veio! — exclamei, cobrindo a boca
com a mão, tentando esconder o riso idiota que insistiu em aparecer em
meus lábios.
— Promessa é dívida. — Ezequiel falou, mas algo em sua voz
chamou minha atenção. Ela não parecia tão confiante como sempre. — Será
que posso entrar?
Pensei por um segundo. Mal conhecia Ezequiel e realmente não
imaginei que viria, por isso fiquei sem reação com seu aparecimento. Na
minha cabeça, seria fácil recusar sua visita e me afastar desse homem, como
eu havia premeditado. No entanto, a realidade era que, por mais que
Ezequiel fosse um rabugento que sempre retrucava, eu estava começando a
gostar de sua companhia, nem que fosse para entrar em atrito.
— Claro. — Abri mais um pouco a porta e deixei o caminho livre
para ele, que se sentou no sofá, afundando sobre o tecido escuro.
Curiosa, olhei para suas mãos, esperando encontrar meu sorvete
nelas, mas elas estavam vazias.
— Não acredito que você esqueceu meu sorvete. — Acusei-o, ainda
próxima à porta de entrada.
— Eu... me desculpe. — Ezequiel passou a mão pelos cabelos.
— Você não se cansa de pedir desculpas? — perguntei, fitando-o, e
só então percebi que sua mão, que ainda estava tocando seus fios escuros,
tremia. — Aconteceu alguma coisa?
— Nada demais. — Ezequiel desconversou, mas ali percebi que
algo não estava certo.
Dei três passos em sua direção, chegando tão próximo que pude ver
cada detalhe de sua pequena cicatriz que cruzava o lado esquerdo da testa.
E então o cheiro me invadiu, suave, mas ao mesmo tempo marcante.
— Você está bêbado? — perguntei quando identifiquei o odor de
whisky.
— Não. — Ezequiel se mexeu, desconfortável, o que só me deu a
impressão de que havia pego-o no flagra. — Claro que não.
Sua afirmação não me convenceu e ele percebeu, porque se levantou
na mesma hora e pigarreou.
— Eu mal bebi um copo durante o jogo de poker — disse, os olhos
desviando dos meus e a bochecha adquirindo um leve tom rubro. — Acho
que é melhor eu ir embora.
E então minha mente clareou. Poker!
— Não acredito que você já foi convidado para jogar com o diretor,
enquanto eu estou na instituição há anos e nunca fui. — Cruzei os braços,
na defensiva, indignada de que apenas os homens eram chamados para
aquela confraternização que mais parecia uma seita.
— Você tinha que agradecer por nunca ter sido convidada. —
Ezequiel enfiou as mãos no bolso.
— Como é lá? — perguntei, curiosa.
Várias histórias circulavam na sala dos professores sobre o famoso
jogo de poker. Por um momento cheguei a pensar que era apenas uma
mentira que contavam para deixar quem não era convidado com inveja, mas
eu soube que era real quando Martin foi convidado. Ele, entretanto, não
quis me falar nada sobre o que aconteceu lá e, quando insisti, gritou
comigo. Foi a primeira vez. A primeira vez de muitas.
Olhei ansiosa para Ezequiel, o homem que ocupava o mesmo cargo
que meu ex-namorado, e esperei uma resposta tão ruim, se não pior, do que
Martin havia me dado. O que ele fez, entretanto, foi sorrir. A sombra que
pairava em seu semblante finalmente sumindo.
— Um antro que jamais mereceria uma visita sua.
— Qual é, quero detalhes. — Apontei para o sofá onde antes
Ezequiel estava sentado.
Ele observou a porta de entrada, como se ponderasse se era melhor
ir embora ou ficar, e então voltou ao sofá, suspirando logo após se sentar.
— O que você quer saber? — perguntou depois de cruzar os braços
sobre o peito.
— O que acontece lá? Nenhum professor comenta sobre as
atividades realizadas na “Noite do Poker”. — Fiz aspas com os dedos,
porque na minha cabeça, poker deveria ser tipo um codinome para uma
caça a animais silvestres, ou o que quer que acontecesse.
— Jogamos poker — Ezequiel respondeu e eu bufei, não acreditava
que ele tinha ficado para me contar algo tão patético, então, para minha
surpresa ele continuou. — Mulheres seminuas passeiam oferecendo
bebidas, enquanto homens casados fingem não ter uma esposa esperando
em casa.
Embora surpresa, parecia bem o tipo de coisa que aconteceria em
uma reunião em que somente homens eram convidados. Aquilo parecia a
perfeição para qualquer mente masculina, então por que Ezequiel parecia
irritado?
Em um gesto rápido olhei suas mãos. Nenhum sinal de aliança.
— Você tem namorada, é esse o problema? — perguntei, pensando
se realmente ele era o último dos românticos.
— Não, quem dera esse fosse meu problema. — Arqueei uma
sobrancelha com sua escolha de palavras. — A questão é que aquelas
garotas pareciam... assustadas.
— Você quer dizer que estavam sendo obrigadas a estar ali? —
questionei, indignada, sentindo as pernas falharem e me sentando ao seu
lado. — Porque se for eu vou já chamar a polícia.
— NÃO. — Ezequiel rebateu no mesmo instante. — Não é uma boa
ideia, quer dizer, podemos estar nos precipitando e fazer a polícia perder
tempo, quando poderia estar atuando em um caso de verdade, é pior. E não
acho que elas estavam lá obrigadas, só acho que se pudessem ter dinheiro
de outra forma, não estariam fazendo aquilo.
— Mas e se rolar uma suruba ilegal lá?
— Não acredito que role sexo, ao menos não pareceu ser esse o
caso.
Toquei meu queixo com o indicador, pensativa. Por mais que em
minha mente passassem cenários obscuros sobre o que acontecia na noite
do poker, jamais pensei que usassem mulheres daquela forma. Ezequiel se
mostrou tremendamente enojado, o que só fez com que eu percebesse que
os demais professores que participavam daquele evento eram verdadeiros
cretinos.
— A Noite do Poker ocorre há anos e ninguém nunca comentou
sobre o que acontecia lá.
— Difícil comentar quando é o diretor que promove. Ele pode
inventar uma desculpa qualquer para demitir. — Ezequiel suspirou.
— O diretor Pascoal pode até promover, mas quem teve a ideia do
poker não foi ele, foi o Afonso — comentei.
— Como assim? — Ezequiel estreitou os olhos, se aproximando
mais de mim. Seu tronco se inclinou na minha direção e mais uma vez pude
sentir o cheiro de seu perfume amadeirado ameaçando inundar minhas
narinas. Podia notar meu nariz querendo coçar, como uma resposta da
minha rinite, mas felizmente nenhum espirro veio.
Travei minha respiração, me sentindo perto demais daquele homem
que mexia com meus sentidos.
— Antes de Pascoal assumir a direção, Afonso era o diretor e o jogo
do poker começou durante a gestão dele. Quando Pascoal foi eleito para o
cargo, ele continuou com a tradição. Claro que nunca convidou nenhuma
das mulheres.
Ezequiel ficou calado por um tempo, digerindo o que eu tinha
falado, e então colou a boca na minha bochecha em um beijo. A barba rala
pinicou meu rosto, mas, ao invés de fazer cosquinhas, deixou meus pelos da
nuca arrepiados. Nossas respirações se cruzaram e, antes que eu
conseguisse sequer esboçar alguma reação, ele se afastou, se levantando e
indo em direção à porta.
— Obrigada, Isabela — disse, já colocando um pé para fora do apê.
— Espera...
Tarde demais. Ezequiel tinha ido embora e, como havia prometido
que cuidaria de mim, sabia que amanhã teria muito mais.
♪ Todas estas palavras não são da boca para fora
E nada mais importa ♪
::: Nothing Else Matters – Metallica:::
ISAAC ALMEIDA
ISABELA MARTINS
Ezequiel estava nervoso. Uma gota de suor cruzou sua testa, sobre a
cicatriz, e seu pomo de adão subiu e desceu com rapidez, mostrando que ele
havia engolido em seco. Ele estava com medo, mas tudo o que eu queria era
sorrir.
Sim, eu era má, mas algo em seu desespero me confortou. Eu
conhecia pessoas, afinal, ensinava um bando delas todos os dias e se
Ezequiel estava desse jeito era porque ele se importava com o que tinha
dito. Não eram palavras ditas da boca para fora e eu não precisava ser
nenhuma Sherlock Holmes para saber que isso me levava a duas
conclusões.
Primeiro: ele me achava bonita, já que ele mesmo havia dito isso,
não só uma vez, mas duas vezes.
Segundo: ele se preocupava comigo, uma vez que prometeu cuidar
de mim e até mesmo de me levar em uma sorveteria.
A recém-descoberta fez eu levantar meu rosto e encarar o homem na
minha frente. Poucos dias haviam se passado desde que havia o conhecido,
ainda assim, ele aparentava ser uma pessoa diferente, com uma energia que
não tinha quando esbarrei com ele pelo corredor da escola.
Ezequiel possuía um maxilar levemente anguloso, o nariz tinha uma
leve saliência para um dos lados, quase como se tivesse sido quebrado em
algum momento na vida. As sobrancelhas bem marcadas chamavam a
atenção para os olhos e estes, mesmo cercados por olheiras que
demonstravam cansaço, tinham um brilho único. O castanho das íris ora era
como uma terra batida em um dia de verão, quente e reconfortante, ora era
como uma caverna escura, misteriosa e cheia de segredos. E então havia a
marca em sua testa, pequena, porém em destaque contra sua pele.
— O que aconteceu aqui? — tirei meu indicador de seu peito e
apontei-o para sua testa, sentindo a curiosidade invadir meu coração.
Talvez eu estivesse confusa, provavelmente pelo calor que Teresina
sempre exalava, ou até mesmo pela febre que ia e voltava com frequência,
mas, vendo o conjunto que cada detalhe do rosto de Ezequiel formava, eu
pude entender o que Margareth quis dizer. Ele realmente era bonito.
Ezequiel arqueou uma sobrancelha, surpreso por minha pergunta
repentina, e então arranhou a garganta.
— Alguém me bateu com um soco inglês — falou como se não
fosse nada demais e eu abri a boca em choque.
— Você não mentiu quando disse que já tinha apanhado muito —
argumentei. — O que leva um professor de inglês a sofrer tantas agressões?
— Você sabe como eu sou. — Ezequiel sorriu e então tocou o
pescoço com o indicador. — Não levo desaforo para casa.
Sorri com sua resposta, ele realmente tinha razão. Eu mesma já tinha
tido vontade de socá-lo, mas usar um soco inglês já era demais.
— Você deveria ter cuidado. Às vezes as pessoas não são tão
pacientes quanto eu — comentei, girando meus calcanhares e indo até o
sofá. — Mas falando sério agora, não precisa ficar me vigiando, eu estou
bem.
Ezequiel me olhou dos pés à cabeça, se demorando uma fração de
segundos a mais quando seu olhar cruzou o meu e então ele desviou a
atenção para a televisão.
— Eu sei que você está bem, afinal passa o dia inteiro assistindo
Netflix, como se estivesse de férias. — Ele apoiou o cotovelo sobre a
bancada, tocando o queixo com o polegar. — E, antes que você rebata, não
estou dizendo que você está errada, se fosse eu também estaria fazendo a
mesma coisa.
— Quer dizer que o senhor rabugento gosta de séries? — questionei,
pegando o controle de cima do sofá e aumentando volume mesmo que não
estivesse prestando atenção no que passava na tela. — Pensei que no seu
tempo livre você seria do tipo que cozinharia crianças dentro de um
caldeirão.
— Qual é, isso é fora da lei, jamais faria isso. — Ele gargalhou,
puxando uma das banquetas, que ficavam dispostas ao lado da bancada, e se
sentando sobre ela de um jeito despojado, quase como se estivesse se
sentindo confortável na minha casa.
— Então, além de rabugento, você é careta? — me remexi no sofá,
me virando para sua direção e me esquecendo totalmente que na televisão
passava O Professor elaborando o plano de assaltar um banco. Eu poderia
assistir a série depois.
— As regras existem para serem cumpridas. — O riso ainda estava
ali, mas algo a mais também. Seria seriedade?
— As regras existem para serem quebradas.
— É por isso que você está fazendo tudo errado quando o assunto é
cuidar de si mesma? — Ezequiel questionou, se levantando e encurtando a
distância que nos separava. — Por que você gosta de quebrar regras?
Mesmo sem ser convidado, Ezequiel se sentou ao meu lado e então,
sem o menor pudor, varreu meu corpo com os olhos. Primeiro suas íris
passearam pelas pernas, subindo até minhas coxas, depois elas pararam em
meus braços, onde uma vermelhidão na pele mostrava o ato que gerara todo
o conflito de minutos atrás.
— Para sua informação eu não gosto de quebrar regras, só quando é
necessário. E acredite, quando sua alma parece que vai sair do corpo de
tanta comichão, um ou outro delito podem ser cometidos.
— Se você usasse a pomada direito não sentiria tanto — reclamou,
parecendo meu pai dando um sermão, a diferença é que ele não tinha trinta
anos a mais do que eu.
— Eu não alcanço todos os lugares, por isso achei que passar só em
uma parte do corpo não adiantaria. — Dei de ombros, cansada daquele
assunto. Eu queria que ele me trouxesse sorvetes ou me paparicasse, não
que fosse um chato de galochas.
— Posso passar para você. — Ezequiel estendeu a mão, esperando,
e eu me perguntei se ele realmente estava falando sério. Quando vi que sua
mão continuava ali, estirada diante de mim, me dei por vencida e me
levantei.
Fui até meu quarto e abri a primeira gaveta da mesinha de cabeceira,
retirando dali um tubo trazido por Margareth em meio a sua crise de culpa.
Era fato que a pomada aliviava, mas eu não tinha paciência e nem espelho
de corpo todo para conseguir localizar cada pequena elevação na pele para
usar o produto.
Voltei para a sala e vi Ezequiel um tanto eufórico. Entreguei o tubo
em suas mãos, revirando os olhos logo em seguida, incapaz de conter uma
leve faísca que atingiu meu peito.
— Por aqui não vamos mais quebrar regras, ok? — ele perguntou,
ficando de pé, mas eu não estava pronta para dar o braço a torcer, não
quando se tratava de Ezequiel.
— Calma lá garotão, você está pedindo demais.
Ezequiel soltou um muxoxo alto, segurou meus ombros e me girou
com delicadeza, me deixando de costas para ele. Primeiro senti a frieza do
produto pastoso sobre minha perna direita, ainda nem havia me acostumado
com a sensação quando o toque de Ezequiel se fez presente em minha pele.
A superfície de seus dedos era calejada, ainda assim, a delicadeza no
qual me tocava, passando o creme de um lado para o outro, fez meu coração
errar uma batida. Ezequiel demorou um tempo considerável em minhas
pernas o que me levou a pensar que ele estava certo e eu realmente estava
me negligenciando.
— Você está parecendo um céu estrelado — disse, após esfregar o
produto por um de meus cotovelos.
— Uau, essa comparação foi quase poética — debochei, sentindo
um nó se formando em minha garganta.
— Bom, de médico, poeta e louco, todos nós temos um pouco —
respondeu e eu não pude evitar de sorrir.
— Quantos anos você tem? — perguntei genuinamente interessada
em saber se ele era um velho em corpo de jovem ou apenas um jovem com
uma alma velha.
— Trinta e três.
— Poxa! — me virei para ele, quase colando o indicador em seu
rosto — Você é só quatro anos mais velho e fica querendo me dar lições de
vida!
— Ei, não tente fugir, vire de costas que eu ainda não terminei.
Cruzei os braços girando para ficar mais uma vez de costas para ele,
contando os segundos para que acabasse logo, mas quando suas mãos
passaram por meus cabelos, afastando-os das costas, minha respiração
acelerou.
Esperei uma reação vinda de Ezequiel, mas no primeiro momento
ele ficou imóvel, a única coisa que eu conseguia sentir era sua respiração
que, assim como a minha, parecia rápida. Fechei os olhos, pensando em
uma desculpa para me afastar, meus pés, entretanto, não se moveram. E
então o inevitável aconteceu. Ezequiel passou a ponta do polegar em uma
das marcas, seu toque em minhas cicatrizes ameaçando me deixar em
pânico.
Minhas pernas então voltaram à vida, porém sem a força necessária.
Meu joelho vacilou e, apesar de uma de suas mãos ainda estar em meu
pescoço, Ezequiel me segurou com a outra. Seu aperto forte em minha
cintura foi o suficiente para eu me manter de pé, e o principal, com a cabeça
erguida.
Tentei controlar minha respiração, mas foi a de Ezequiel, acelerada,
sobre a pele da minha nuca, que fez eu perceber que ele estava furioso.
— Quem foi que fez isso? — Curiosamente sua voz saiu em um
sussurro, como se ela pudesse me machucar tanto quanto quem havia feito
as cicatrizes em mim.
Pensei em Martin, em como seus dedos longos e frios eram
diferentes dos de Ezequiel, em como sua voz imperiosa e nociva não tinha
nada a ver com o tom carinhoso e reconfortante do atual professor de
inglês.
Por um segundo quis mentir, dizer que não sabia do que ele estava
falando. Tendo, entretanto, seus dedos tocando um a um os oito vestígios
em meu pescoço, sentindo a maciez e suavidade que eles tratavam meu
corpo, não pude evitar de contar a verdade.
— Foi meu ex-namorado.
O braço de Ezequiel, que ainda estava sobre minha cintura, se
apertou contra mim e ouvi um leve suspiro saindo de sua boca. Ele então
envolveu o outro braço ao redor da minha cintura, pressionando seu peito
contra minhas costas e aproximando sua boca do meu ouvido.
— Isabela, eu sei que você é forte. Mesmo assim, estarei aqui para
protegê-la.
Não precisei olhar para Ezequiel. Ele nem mesmo havia feito um
juramento. Mas ali, sentindo seu corpo junto do meu e a seriedade presente
em sua voz, eu soube que sua fala era uma promessa e, mesmo sendo uma
pessoa cética, que havia perdido a fé em homens, eu acreditei nas suas
palavras.
♪ Eu sinto algo tão certo
Fazendo a coisa errada ♪
::: Counting Stars – One Republic:::
ISAAC ALMEIDA
— Ei, ei, ei! Você precisa é afogar o ganso, não a mão na minha
cara. — Fernando retrucou quando um jab de direita acertou seu queixo.
O suor escorria pelo seu peito despido, deixando a pele escura
reluzente. A respiração ofegante se misturava ao barulho da televisão, que
transmitia um jogo qualquer de basquete, e a mão enfaixada segurava uma
das cordas que delimitavam o ringue.
— O filho da puta abusou fisicamente dela. Você tem noção disso?
— questionei, irritado, ainda chocado pelo que tinha descoberto. — As
marcas produzidas pelas unhas dele estavam ao redor do seu pescoço.
Fechei os olhos sentindo a ira percorrer cada pedaço do meu corpo.
Ele havia enforcado ela e o mero pensamento foi o suficiente para eu querer
vomitar. Eu, o homem que trabalhou infiltrado em um cartel durante meses,
que presenciou crimes dos mais diversos tipos, não podia sequer imaginar
um desgraçado machucando Isabela.
— Embora eu não concorde, você sabe como é: briga de marido e
mulher ninguém mete a colher. É o senso comum. — Fernando mexeu na
própria mandíbula, no local que eu desferi o soco, e eu tive vontade de
repetir o ato. — Infelizmente as pessoas pensam dessa forma.
— Isso é o que me irrita, Fernando. Todo dia mulheres são
assassinadas pelos ex-parceiros. Eu não me importo com o senso comum.
Meu amigo veio na minha direção, o short azul de academia era
curto demais para suas pernas longas, quase deixando-o parecido com um
cosplay do Sagat de Street Fighter.
— Isa, não se meta. — Fernando tocou meu peito nu, bem no ponto
onde as finas cicatrizes se acumulavam, tão diferentes das outras que
estampavam meu tronco. — Você não deve se envolver, esqueceu que está
infiltrado? Faça seu trabalho e caia fora.
Eu sabia que ele estava certo, mas algo dentro de mim fazia com
que eu me importasse. Fazia com que eu não pudesse deixar para lá.
— Eu não posso. — Minha voz saiu em um sussurro e eu desabei
sobre o chão, me sentando sobre a superfície fria e cinzenta do octógono.
Estalei meus dedos, sentindo o ardor sobre minha pele. Socar
Fernando pareceu uma boa ideia quando ele me telefonou me convidando
para ir à academia, só não imaginava que fosse me sentir perdido.
Fernando se sentou ao meu lado, cruzando uma perna sobre a outra,
e seus olhos percorreram dos meus pés descalços até meu peito.
— Você pode e você vai. Há anos você é o cara que vive em função
do trabalho, que leva, literalmente, no peito as marcas nocivas pelas quais
passou durante as missões. Isaac, você sempre foi um cara apaixonado pelo
que faz, então por que agora seria diferente?
Inevitavelmente, a imagem de meu pai veio à minha mente. Ele
pertenceu ao batalhão de operações especiais e, embora eu tivesse seguido
um caminho diferente, indo para a polícia federal, ele ainda era meu herói e
o modelo que eu queria seguir. Um homem justo, leal, que colocava a
segurança dos outros acima da sua e era isso que eu estava fazendo sendo
infiltrado, não era? Então por que de repente eu não me sentia satisfeito?
Quando meus olhos bateram no pescoço de Isabela, eu soube o que
tinha ocorrido. Eu não era idiota e as marcas formavam um padrão de
machucados causados por unhas, um padrão que eu conhecia muito bem.
Olhei para meu próprio peito, para o local onde minhas próprias unhas
mutilavam a carne quando eu cometia alguma barbárie.
Balancei a cabeça, tentando afastar as lembranças dolorosas, e
percebi que tinha feito o certo em ter ido embora da casa de Isabela depois
da descoberta. Ela estava envergonhada, pude notar por seu silêncio
contínuo, embora não houvesse motivos para isso. No entanto, eu
compreendia seus sentimentos e preferi não tocar mais no assunto,
preferindo ir embora.
Já eu precisava colocar a cabeça no lugar para não ir atras do
maldito filho da puta que fez isso com ela e socá-lo até eu não ter mais
forças.
— Por favor, diga que não está apaixonado. — Fernando tocou meu
ombro e eu bati em sua mão com rispidez.
— Claro que não, você tá maluco? — bufei a contragosto. — Estou
em uma missão, você sabe que não posso me envolver com ninguém.
A questão era que Isabela havia sofrido violência e eu era a porra de
um policial. Era meu dever como profissional, e também como cidadão, me
preocupar com sua integridade física.
Fernando se levantou e esticou a mão na minha direção. Segurei-a e
em um puxão ele me colocou de pé.
— Me poupe. Mesmo quando não está em uma missão você não se
envolve com ninguém.
— É complicado, você sabe, não podemos compartilhar com outras
pessoas o que fazemos no trabalho — respondi, socando o ar, pronto para
outra rodada de treino. — Quando chegar o momento certo, eu paro.
Eu sabia que meu prazo de validade sendo um agente infiltrado era
limitado. Não tinha como formar uma família com uma profissão como
essa, por isso, quando achasse que fosse o momento certa, eu iria parar. Não
deixaria de ser policial, só não aceitaria mais os casos em que precisasse de
infiltração.
— Você não precisa se apegar para pegar. — Fernando deu um jab
na minha direção e eu desviei com certa facilidade.
— É isso que você faz com a filha dos outros? — respondi com uma
rasteira, mas meu amigo estava preparado e segurou minha perna.
— Não, o que eu faço com elas é algo mais parecido com isso. —
Fernando puxou minha perna com as duas mãos e, com o ombro empurrou,
meu tórax, me derrubando no chão. Ele então ficou sobre mim, o riso
convencido nos lábios, o que me irritou.
— Quando é que você vai crescer? — perguntei, sem acreditar que
um marmanjo de quase quarenta anos ainda agia desse jeito.
— Você não faz meu tipo, mas se quiser pode até ser que eu
consiga... “crescer”.
— Idiota. — Empurrei ele com força e me sentei. Precisava treinar
mais, como poderia defender as pessoas se não conseguia nem ganhar do
meu amigo? Tinha que ficar em forma o mais rápido possível. — Como
você está? Algum novo caso?
— Não. — Meu amigo passou a mão pela cabeça raspada. — Estou
de férias.
— Porra, e você nem me disse?
— Não queria que você ficasse com inveja. Você sempre deixa as
suas acumularem e depois acaba perdendo.
Fernando tinha razão. Eu queria férias? Lógico. Mas gostava de
estar na ativa também. Para mim, trabalhar era saber que alguém estava
tentando deter criminosos. Por isso, sempre deixava para depois e acabava
me envolvendo em um caso após o outro.
Revirei os olhos para Fernando e me deitei sobre o piso
emborrachado. Observei a estrutura metálica do telhado, enquanto minhas
costas latejavam sobre o tapete. Meu peito subia e descia conforme a
respiração tentava voltar ao normal. Eu estava cansado, suado e dolorido,
ainda assim não conseguia tirar da minha cabeça o fato de que Isabela havia
sido vítima de violência nas mãos de um homem escroto. Repassei os
nossos momentos juntos e compreendi por que ela parecia não me tolerar.
Porra, eu havia tocado nos seios dela! Tinha certeza de que na sua mente eu
era tão cretino quanto o ex.
— Merda! — exclamei, tocando minha testa.
— O que foi? — Fernando indagou, arqueando uma das
sobrancelhas na minha direção. — Alguma câimbra?
— Não, apenas lembrei de uma burrada que fiz.
— Isa, você é o cara que eu conheço que menos comete erros. Na
verdade, nunca vi uma pessoa tão certa, chega a ser irritante.
— Eu sei. — Fechei os olhos, colocando minhas mãos embaixo da
cabeça, como se fossem um travesseiro. — Mas esse caso... tenho cometido
erros desde o começo.
Era difícil admitir falhas, principalmente porque eu gostava de
sempre ter tudo do jeito certo.
— Você está cansado, acabou de sair de um cartel.
— Tem razão. — Abri os olhos e voltei a me sentar.
— Quer beber uma gelada depois daqui? É sábado, dia para
aproveitar. — Fernando levantou os braços, se espreguiçando, esticou as
cordas do ringue e passou o corpo grande pelo espaço.
— Não, vou ficar mais um pouco.
Fernando balançou a cabeça em concordância e foi em direção ao
vestiário, enquanto eu me levantei e comecei a fazer flexão. Não estava
brincando quando disse que ia voltar aos treinos. O suor se acumulava em
meu rosto, bem na ponta do nariz, os braços doendo a cada nova série do
exercício. Meu amigo voltou do vestiário trajando uma jaqueta preta por
cima de uma camisa branca e uma calça jeans escura.
— Ei, essa jaqueta é minha — resmunguei, terminando a última
flexão e ficando de pé.
— Nós dois sabemos que fica melhor em mim. Tem certeza de que
não quer vir?
— Tenho, preciso fazer uma coisa depois daqui — respondi,
decidido.
Meu amigo foi embora e eu segui até o vestiário, parando em frente
ao espelho e olhando meu tronco nu. Estava magro, mas os músculos ainda
podiam ser vistos. Quando entrei no último caso, estava totalmente
diferente, pesando dez quilos a mais e com cicatrizes a menos. Sabia que as
marcas não tinham volta, sempre estariam cravadas em minha pele. Mas, ao
menos meu peso, estava disposto a conquistar.
Entrei embaixo do chuveiro, sentindo alívio por finalmente me
livrar do suor e do calor que Teresina insistia em manter em qualquer época
do ano. Chuveiros elétricos não eram necessários na cidade, não quando a
temperatura quase nunca abaixava dos trinta graus. Minhas mãos passaram
pelos cabelos, enxaguando-os, e, quando toquei meu pescoço,
automaticamente pensei em Isabela.
Sabia que não deveria me meter na vida particular de pessoas que
não estavam relacionadas ao caso, mas eu não conseguia separar as coisas.
Não podia usar o banco de dados da inteligência para buscar o escroto do
ex, mas eu devia estar preparado para se ele ousasse aparecer.
Não conhecia ele, não sabia seu nome, aparência ou tipo físico. Mas
eu não me importava, ele poderia ser até mesmo um Sylvester Stallone.
Para defender Isabela de um desgraçado abusador, eu seria a porra do
Chuck Norris.
♪ Mas eu nunca poderia encontrar as palavras para dizer
Fique, fique ♪
::: Stay – Hurts:::
ISABELA MARTINS
ISAAC ALMEIDA
ISABELA MARTINS
ISAAC ALMEIDA
ISABELA MARTINS
ISAAC ALMEIDA
ISABELA MARTINS
ISAAC ALMEIDA
Talvez Isabela tenha conseguido dormir, mas eu definitivamente
não. Suas últimas palavras ficaram ecoando na minha cabeça. Sim, ela
estava certa, eu iria segurá-la, independentemente do motivo da queda, e
isso mostrava o quão perdido eu estava.
Eu tinha participado de mais casos do que minha memória era capaz
de lembrar e em nenhum deles saí fazendo coisas fora do meu
planejamento. Alguma coisa em Isabela, entretanto, mexia com meu
cérebro, me deixando sempre confuso e perdido. E uma prova disso foi
quando ela entrou na sala vestindo apenas um pijama e meu pau deu sinal
de vida. Sim, provavelmente porque era de manhã cedo, o que era comum
de acontecer, e não porque ela estava deslumbrante usando roupas
semitransparentes e pequenas.
— Bom dia — ela disse, passando por detrás do sofá e indo até a
geladeira, onde retirou uma garrafa d’água e despejou o conteúdo em um
copo, mandando depois, goela adentro.
— Bom dia. — Minha voz saiu rouca e eu cobri minha ereção com a
mão mesmo sabendo que dali de onde ela estava não veria nada.
Isabela não precisava que eu a assustasse com meu pau duro,
quando na noite passada tinha confiado em mim para protegê-la.
— Você está bem? Parece rouco.
— O ventilador deve ter irritado minha garganta — menti
descaradamente, enquanto tentava, via pensamento, fazer minha ereção
desaparecer.
— Quer um pouco de água? — Ainda segurando o próprio copo,
Isabela deu um passo em direção à sala, mas eu me sentei subitamente e
estendi a palma da minha mão na sua direção, fazendo um gesto para que
parasse.
— NÃO!!! — gritei meio desesperado, o que fez Isabela parar onde
estava. Por isso, inventei a primeira desculpa que veio à minha cabeça. —
Beber água em jejum faz mal.
— Não é o contrário? — ela perguntou, coçando o queixo com a
mão livre.
Merda! Eu era muito burro!
— Você tem razão. — Cocei minha nuca, tentando despistar. —
Acho que me confundi. Desculpe.
Isabela então continuou a caminhar em minha direção, e eu senti
alívio por ter conseguido normalizar a minha situação.
— Você parece que é devagar quando acorda — falou se sentando
ao meu lado e colocando os pés sobre a mesinha de centro redonda,
exatamente como Fernando costumava fazer em meu apartamento.
Ela não tinha noção do quanto eu poderia ser veloz, e era justamente
por esse tipo de pensamento que eu não sabia o que fazer quando estava
próximo à Isabela. Só balancei a cabeça, confirmando, e ela pegou o
controle e ligou a televisão.
— O que você pretende fazer hoje? — perguntou, passando pelos
canais sem parar em nenhum em específico.
— Por quê? Está querendo me convidar para alguma coisa? —
indaguei, com um sorriso nos lábios.
— Na verdade estava querendo cobrar sua promessa. — Ela deixou
o copo sobre a mesinha, tirou os pés dali e se virou para mim.
Algumas pequenas marquinhas de catapora ainda podiam ser vistas
em sua pele, uma no braço, outra próxima do colo e uma pequenininha na
ponta do nariz. Incrível como tudo nela ficava lindo.
— Qual delas? — arqueei as sobrancelhas, formando um vinco entre
elas.
— A de me levar na sorveteria.
Ela gostava mesmo de sorvetes. Eu podia compreender que Teresina
era quente e algo gelado sempre era bom, mas começava a achar que seu
amor pela sobremesa era quase um vício.
— Seu desejo é uma ordem — falei, fazendo uma reverência estilo
os príncipes da Disney faziam diante de suas princesas.
— Não, sua promessa é uma dívida.
Sorri, ela estava de bom humor e isso significava que o puto do
Martin não a havia destruído a ponto de não se reerguer. Isabela era uma
guerreira e cada vez mais eu a admirava.
— Tem razão. Vou para casa me arrumar e volto para buscar você,
tudo bem? — me levantei e segui até a porta, pegando meus sapatos no
caminho.
— Ótimo!
Me despedi e fui para casa, me jogando sobre a cama assim que
entrei no meu quarto. Eu estava com sono, cansado e bem que merecia tirar
uma soneca, mas sabia que não dava tempo, então deixei a maciez do
colchão e entrei debaixo do chuveiro. Teresina merecia ser estudada, era
uma cidade quente, ainda assim, de manhã, a água que saía pelo chuveiro
era sempre gelada.
Saí do banheiro desperto, despido, e perambulei pelo quarto até o
guarda-roupa. Abri a porta de correr e vi minha algema ali, repousando
dentro da primeira gaveta, aquela que usava para guardar cuecas e meias.
Puxei uma boxer preta e peguei também uma calça e uma blusa do Asa
Noturno. Àquela altura do campeonato, eu já tinha mostrado tanto do meu
verdadeiro eu à Isabela que roupas diferentes das que usava não seriam
necessárias.
Quando eu cheguei no prédio de Isabela, não precisei entrar no
edifício, já que ela estava na portaria, conversando com o porteiro. Fiquei
um tempo dentro do carro, apreciando cada detalhe da mulher que
ameaçava minha sanidade. O vestido vermelho cheio de florzinhas seguia
até o meio da coxa, mostrando a sua vivacidade. As sandálias de tom
marfim possuíam saltos, ainda assim ela estaria longe da minha altura.
O que chamou a atenção, entretanto, não foi o batom vermelho
sobre a boca, ou a leve maquiagem que ela possuía nos olhos: foram os
cabelos. Pela primeira vez, vi Isabela de cabelo amarrado. Seus fios
castanhos balançavam em um rabo de cavalo, deixando boa parte do
pescoço à mostra, sem escondê-lo, e para mim aquilo só podia significar
uma coisa. Liberdade.
Saí do carro chegando de fininho, percebendo que ela conversava
sobre doramas e eu não aguentei e sorri. Isabela virou na minha direção,
surpresa por me ver ali, e então se despediu do senhorzinho.
— Está rindo de quê? — perguntou, me seguindo até meu carro.
Abri a porta para ela, que se acomodou sobre o banco de couro. Fiz
a volta no carro e me sentei sobre o banco do motorista, girando a chave na
ignição. Só então a respondi.
— Você realmente acha que as pessoas assistem esse negócio de
dorama?
— Claro! Você está desatualizado, os doramas estão famosos, até
mesmo a Netflix já percebeu. E fique sabendo que a esposa de seu Ramón
ama as novelas coreanas. — Ela cruzou os braços, ressentida.
— Vou acreditar em você. — Revirei os olhos, e contive meu
sorriso, que insistia em aparecer toda vez que Isabela estava presente.
— Posso ligar seu som? — perguntou quando acelerei.
— Fique à vontade. — Apontei para o painel touchscreen e ela
começou a mexer nos ícones procurando alguma música que a agradasse.
— Qual é, você só tem música velha, só som da década de oitenta.
— Eu sou da década de oitenta. Está me chamando de velho? —
tirei meus olhos da rodovia por um segundo e a observei. Peguei-a
encarando minha mão na marcha e quando ela percebeu que tinha sido
descoberta, desviou a atenção para meu rosto.
— Você não é velho, é só careta.
— Por que diz que sou careta? — perguntei, genuinamente curioso.
Fernando vez ou outra me chamava assim também.
Isabela apontou para minha camisa e franziu o nariz. A pequena
marquinha de catapora ficando um pouco mais nítida.
— Você gosta de super-heróis.
— Eles não estão mais na moda? — indaguei, estacionando o carro
em frente ao parque Potycabana.
— Claro que não, a época de ouro dos filmes da Marvel já passou.
— Estalou os dedos, enfatizando o tempo passado.
— Mas o Asa Noturno não é da Marvel. — Desliguei o carro e
apoiei meus cotovelos sobre a direção, as mãos apoiando meu queixo.
— Eu sei, o problema, Ezequiel, é que a DC nunca teve uma época
de ouro.
— Ai, isso doeu. — Coloquei as mãos sobre o meu coração,
fingindo sentir um aperto ali, mas assim que olhei para ela ao meu lado,
encostada no banco de couro e com um sorriso nos lábios, a dor se tornou
realidade.
— Não sabia que aqui tinha uma sorveteria — ela disse, olhando
pela praça, os olhos semicerrados por conta da luz do sol.
Eu saí do carro e abri a porta para ela, como um cavalheiro, e ela
agradeceu com um balançar de cabeça. Isso não era um encontro, então por
que eu estava começando a me sentir nervoso? Enfiei a mão nos bolsos,
sem saber o que fazer com elas, e segui ao lado de Isabela, andando a esmo
pela praça. Algumas pessoas caminhavam pelo local, principalmente
famílias, e um toque de nostalgia me invadiu, me lembrando dos tempos
que eu ia ali, logo após me mudar do Mato Grosso do Sul para o Piauí.
— Ali. — Apontei para uma barraquinha colorida, onde uma
senhora montava sorvete para um par de crianças.
— Fazia tanto tempo que eu não vinha a esse local — Ela olhou ao
redor do parque, se admirando com o espaço arborizado e as quadras
esportivas.
— Eu e meu pai viemos algumas vezes aqui antes da reforma.
— Por que sua família deixou o Mato Grosso do Sul e veio para o
Piauí? — ela perguntou, andando quase saltitante em direção à pequena fila
formada somente por crianças.
— Meu pai passou no concurso da polícia militar daqui, então
viemos, eu, ele e minha mãe — respondi, com as mãos ainda nos bolsos.
— É a primeira vez que você fala da sua mãe — ela pontuou e eu
percebi que esperava uma resposta.
Eu poderia mentir, mudar de assunto, ou qualquer outra coisa do
tipo, mas curiosamente me vi compelido a dizer a verdade. Isabela tinha
esse poder sobre mim, fazer com que eu sempre quisesse ser honesto.
— Depois que meu pai morreu nos afastamos. Ela não aceitou
minha profissão, queria que eu fosse como ela, que é médica, que eu
salvasse vidas de verdade...
Senti o nó se formando em minha garganta. Toda vez que o assunto
vinha à tona eu me ressentia. Minha mãe dizia que médicos que salvavam
vidas, não policiais. Segundo ela policiais apenas davam a própria vida em
prol de outras pessoas, como se a vidas deles fossem insignificantes. Eu
sabia que ela tinha ficado abalada com a morte do Senhor Plínio, mas ele
não era insignificante por ter protegido aquela grávida durante o assalto, ele
era um herói, mas minha mãe, enlutada, nunca aceitou a decisão de meu pai
e depois a minha de seguir a carreira dele.
— Pode não parecer, mas a educação salva vidas sim — Isabela
comentou, parando de frente para mim e quase fazendo eu trombar com ela.
Abaixei meu rosto para fitar Isabela, uns centímetros mais baixa que
eu, e quis sorrir, ela realmente era uma mulher extraordinária.
— Você tem razão — me limitei a dizer, incapaz de me sentir bem
sabendo que estava mentindo para ela sobre quem eu era.
Ela girou os calcanhares de novo e seguiu até a barraquinha, onde as
crianças já haviam ido embora e a vendedora já esperava-nos com um
sorriso no rosto.
— Olá, bom dia. Esse sorvete amarelo é de quê? — Isabela apontou
para um dos depósitos que ficavam dentro do freezer.
— Bom dia, meus amores, é de cajá. — A senhora respondeu.
— Uau, amo sorvete de cajá e faz tempo que não como um, difícil
ver desse sabor nos supermercados — Isabela tagarelou.
— Toda a produção daqui eu mesma que faço. — Exibiu com
orgulho a velhinha.
— Eu vou querer o de cajá então. — Isabela bateu palmas. — E
você, Zeck?
— Zeck? — questionei, surpreso com o apelido que ela usou para
me chamar.
Isabela deu de ombros, como se fosse normal termos aquela
intimidade, mesmo após ela ter socado meu rosto há poucos dias.
— Eu não vou querer. Quanto deu? — puxei minha carteira e paguei
pelo sorvete dela e seguimos andando pelo parque, aproveitando o calor que
só a cidade era capaz de ofertar.
Várias pessoas caminhavam por uma pista de cooper e alguns casais
faziam piquenique em cima da grama. Eu sabia que ir àquele parque era
uma programação familiar. Eu mesmo já tinha ido diversas vezes com o Sr.
Plínio, enquanto a Sra. Maria do Carmo, minha mãe, estava atolada em
plantões médicos.
— Aqui é incrível — Isabela comentou, parando próximo a um
grupo que cantava ao som de violão. — Deveríamos vir mais vezes.
Suas palavras, vindas de forma tão natural, fizeram minha
respiração acelerar. Ela queria fazer aquilo mais vezes. Queria fazer aquilo
mais vezes COMIGO! E o mais importante, eu também queria.
Encarei Isabela, que me olhou de lado, o sorriso estampando os
lábios, o sorvete já na altura da boca, a língua pronta para lamber a
sobremesa gelada, e foi inevitável não engolir a saliva que se formou em
minha garganta.
Ela era linda em cada pequeno gesto, mesmo que muitos deles
fossem formados pelo caos. E, para alguém que buscava a calmaria, eu
aceitaria uma ou duas bagunças na minha vida, desde que vindas dela.
♪ Sou a vela que brinda com o fogo
Sou a dor e o esporro em quem se queimar ♪
::: Rosa dos ventos – Bruno Batista:::
ISABELA MARTINS
ISAAC ALMEIDA
A vida passando diante dos meus olhos. Foi isso que pensei que iria
ocorrer quando morresse. O sangue esvaindo do meu corpo, a dor invadindo
cada célula do meu ser, e por último, não menos importante, a vida
passando diante dos meus olhos. Só que a morte deu as caras e não
aconteceu nada do que eu estava esperando.
Nada de flashes do passado, nada de dor ou sangue, ainda assim um
pavor terrível, de um tipo que nunca imaginei sentir.
Tudo começou quando eu baixei a guarda. Porque era isso que
acontecia quando estava ao lado de Isabela. Eu não me sentia o policial
atento vinte e quatro horas e infiltrado nos mais diversos tipos de falcatruas.
Eu me sentia o homem que, se tivesse escolhido outro caminho, estaria
naquele parque com a mulher e dois filhos e vários cachorros em um
programa semanal que insistiria em manter. O problema começou justo aí.
Eu não era a porra desse homem e a mulher que eu queria que
estivesse ao meu lado, simplesmente puxou um gás de pimenta para jogar
no assaltante.
Na minha cabeça, os anos de prática, as várias faixas coloridas de
artes marciais, fariam eu ser capaz de facilmente derrubar aquele bandido.
Mas quando Isabela entrou na equação, a mão apertando o spray e o jato
saindo desengonçado, eu vi que não tinha experiência no mundo que me
fizesse estar preparado para aquilo.
O homem com o rosto coberto por uma máscara chegou de modo
furtivo, anunciando o assalto e eu só tive tempo de ver que ele segurava um
revólver Taurus. Antes que eu pudesse fazer qualquer outra análise, Isabela
se movimentou.
Foi apenas um segundo, mas o suficiente para meu corpo gelar. Sim,
ela reagiu ao assalto com um spray de pimenta, e a sorte foi que, mesmo
que o jato tenha ido longe do rosto do assaltante, foi suficiente para assustá-
lo. No susto, duas coisas aconteceram: o homem puxou o gatilho e eu
avancei sobre ele.
Um barulho seco estourou próximo ao meu ouvido e meu corpo
trombou com o do homem nos derrubando no chão. Virei meu rosto um
segundo para ter a certeza de que Isabela não havia sido atingida e, quando
vi que ela estava bem, voltei minha atenção ao meliante. Com o baque no
chão, a arma deslizou de sua mão e eu chutei-a para longe, para garantir que
ele não fosse conseguir pegá-la. Ele era um homem magro e alto e em
algum momento conseguiu ficar por cima de mim. Não podia negar, ele
tinha força, mas ficou claro para mim que faltavam técnicas, focando
apenas na brutalidade. Com um giro, consegui colocar seu braço entre
minhas pernas, segurando seu punho com minhas mãos. Com meu quadril
fiz uma alavanca, aplicando o arm-lock e o assaltante parou de se debater.
Até mesmo ele sabia que, caso se mexesse, eu poderia facilmente quebrar
seu braço.
— Alguém chama a polícia. — Um dos responsáveis pelo quiosque
gritou e um jovem saiu correndo pelo parque.
Pensei em minha algema dentro do guarda-roupa e no quanto ela
seria eficiente se estivesse ali. Permaneci aplicando o golpe de jiu-jitsu no
homem, até que o jovem voltou com alguns guardas municipais que
costumavam fazer a ronda no parque.
— Uau, você foi incrível. —A voz de Isabela chegou aos meus
ouvidos, quando eu larguei o bandido e deixei o resto da ação para os
guardas, e só então eu percebi que estava agindo no automático e me deixei
desabar.
Encarei ela, os olhos brilhantes na minha direção, o resquício de um
quase sorriso nos lábios. Eu poderia sorrir para ela, afinal tudo tinha dado
certo, mas vendo-a ali, diante de mim, só trouxe a ideia do que poderia ter
acontecido.
— Caralho, Isabela, você é maluca? — perguntei, me aproximando
e tocando os ombros dela. — Você poderia ter morrido, tem noção disso?
Eu estava furioso. Como ela tinha agido daquela maneira, de forma
tão irracional? Ela poderia ter levado um tiro. A bala poderia ter
atravessado seu pescoço acertando a aorta, e o sangue jorrado, fazendo o
corpo sucumbir em segundos. Seus olhos poderiam ter perdido o brilho da
vida e a boca permaneceria para sempre aberta, como se quisesse ter tido
uma última palavra, mas não tivesse tido a oportunidade. O sangue poderia
manchar minhas mãos, minhas roupas e, por mais que eu as limpasse, a
ideia de que estavam sujas jamais desapareceria.
— Ezequiel...
— Você não pode simplesmente agir como se seus atos não tivessem
consequências. — Cuspi as palavras com raiva, as mãos ainda em seus
ombros. — Não tem o direito de fazer o que bem entender achando que é
imortal ou algo do tipo. Não pode achar que é a porra de um super-herói e...
— Ezequiel! — Isabela chamou minha atenção e só então percebi
que ela estava assustada.
Soltei seus ombros na hora, me encolhendo. Eu a havia machucado?
— Ezequiel... — Isabela começou e eu esperei sua confirmação, a
respiração travada, com medo da resposta. — Por que você está chorando?
— Eu não estou chorando. — Levei meus dedos aos olhos, para
provar que ela estava errada, só então percebi que a umidade escorria pelo
meu rosto, o gosto salgado chegando à minha boca. — Eu...
— Está tudo bem. — Isabela me envolveu com seus braços, as mãos
se firmando em minhas costas, a cabeça apoiada em meu peito. —Está tudo
bem.
O cheiro de seu shampoo me pegou em cheio, uma mistura de erva
doce e baunilha. A delicadeza de suas mãos, roçando minhas costas,
fizeram eu fechar meus olhos e me deixei levar pelo momento. Ter ela ali,
ao meu lado, viva, era uma benção.
Não. Não estava nada bem, mas iria ficar. O fato de Isabela estar
bem era o suficiente para mim, mesmo que naquele momento eu tenha
percebido que meu pai não era um herói, era só um homem que morreu na
minha frente reagindo a um assalto. Mas ele não precisava ser herói, ele já
tinha sido meu pai e bastava.
— Está tudo bem. — Isabela repetiu em um mantra.
Seguimos de mãos dadas até um dos bancos de madeira que tinha no
parque, que àquela altura estava agitado com as pessoas comentando sobre
o assalto.
Isabela se sentou ao meu lado, jamais soltando minha mão, e mais
uma vez vi minha guarda baixando diante dela. Sabia que não precisava
contar, ainda assim senti que era o certo a fazer.
— Meu pai morreu diante dos meus olhos em uma reação a um
assalto. Eu tinha dezessete anos — declarei, a voz fraca.
— Eu sinto muito. — Ela apertou minha mão entre a sua, a textura
de seus dedos se fundindo aos meus. — Me desculpe, eu não pensei quando
agi, não queria trazer más recordações.
Encarei Isabela, eu podia ver a dor em seu semblante, a preocupação
que ela tinha por mim.
— Você não entendeu, o que me deixou abalado não foi pensar no
meu pai, foi imaginar perder você. — Levei minha mão até seu rosto,
passando meu polegar por sua bochecha em um vai e vem, sem pressa.
Eu era um ótimo mentiroso, havia treinado para me infiltrar, para me
passar por outras pessoas. Mas eu não conseguia mais mentir para mim
mesmo, não quando era óbvio o que estava acontecendo.
— O que você quer dizer com isso? — ela perguntou, os olhos
seguindo minhas mãos, a voz trêmula, o rosto quase se aninhando ao meu
toque.
— Que você é importante para mim.
— Ezequiel... — Isabela sussurrou e eu notei quando seus olhos
foram à minha boca em um gesto rápido.
Era um sinal. Ela queria me beijar tanto quanto eu queria beijá-la,
mas antes disso acontecer eu precisava fazer uma coisa.
— Vou conversar com os guardas, saber se a gente precisa depor,
mas depois eu vou te levar para casa — falei, me levantando, e o rosto de
Isabela se contraiu, quase como se estivesse decepcionada.
Virei as costas para ela e fui em direção aos guardas. Eles me
informaram que o rapaz era um adolescente e que a arma era de brinquedo.
O som que escutei não foi de tiro, mas sim de outro barulho qualquer que
acabou me assustando. O garoto ainda disse, aos prantos, que só queria
dinheiro para comprar os remédios para mãe doente, por isso decidi não
prestar queixa.
Voltei para onde Isabela estava, ela não perguntou mais nada, nem
mesmo protestou e, para uma pessoa que sempre falava muito, permaneceu
calada quando entrou no meu carro. Não ligou o som e nem brincou durante
o caminho, apenas manteve as mãos sobre as pernas, em silêncio. Eu queria
quebrar o gelo. Na verdade, queria beijá-la até ela implorar para eu tirar sua
roupa, mas eu precisava me controlar.
— Ei. — Chamei Isabela quando ela desceu do carro em frente ao
seu prédio, ela virou o rosto na minha direção e eu continuei. — Volto daqui
a pouco para planejarmos sobre a feira de línguas, ok?
— OK! — respondeu.
Eu quis saltar do carro e chacoalhá-la, implorar para ela me rebater
ou brigar comigo, contanto que ela tivesse uma reação melhor do que
apenas aquele olhar apático, mas tudo o que fiz foi acenar, dando tchau.
Acelerei o carro quando dobrei na esquina e segui não até meu
apartamento, mas até o de Fernando. O episódio do assalto tinha me
quebrado, imaginar Isabela ferida foi demais até mesmo para mim, que
estava acostumado com violência. E por mais que eu tenha pensado em
várias alternativas só cheguei em uma resposta.
O porteiro, que me conhecia, abriu a porta para mim, e eu peguei as
escadas ao invés do elevador, porque estava apressado e sem paciência.
Subi os degraus em velocidade recorde e esmurrei a porta de madeira
sentindo o impacto da estrutura entre os nós dos meus dedos.
— Ei, ei, você vai derrubar minha porta desse jeito. — Fernando
gritou do outro lado, antes de abri-la. — Existe uma coisa chamada
telefone, você sabia?
— O que tenho para te falar é urgente — disse, permanecendo no
corredor, sentindo o cansaço de subir as escadas ameaçando se apoderar do
meu corpo.
— Entre. — Apontou para dentro de casa, mas eu não me movi. —
O que é tão urgente?
— Eu vou deixar a missão.
Eu pensei que essa decisão viria depois de muito pensar, quando o
peso de ser um infiltrado fosse grande demais para minhas costas, qual foi
minha surpresa ao perceber que era um veredito simples. Eu não queria
continuar naquilo.
Fernando sorriu, o sorriso tão grande a ponto de se curvar,
colocando as mãos sobre os joelhos.
— O sexo com a mulher foi tão bom que chegou a foder seu
cérebro? — perguntou.
Trinquei minha mandíbula no mesmo instante, não achando nem um
pouco de graça na sua brincadeira.
— Ela tem nome, se chama Isabela, e eu não transei com ela —
respondi, os braços cruzando sobre o peito.
— Você não pode estar falando sério. É seu sonho, sempre foi. —
Meu amigo colocou a mão na cabeça, quase em um desespero. — Entre,
não quero discutir com você no corredor do prédio.
— Eu só queria avisar você antes de falar com nosso chefe —
comentei, tocando seu ombro.
Só a simples ideia de que qualquer coisa ruim pudesse acontecer
com Isabela me deixava em pânico. Como eu iria finalizar uma missão
como se não me importasse com ela? Como conseguiria continuar me
infiltrando se quando desvendasse o caso da escola, fosse para outro caso,
fingindo ser outra pessoa, quando na verdade eu só queria ser a porra do
Ezequiel?
Comecei a compreender por que minha mãe não me queria naquela
profissão. O medo de enterrar um filho deveria ser grande demais e eu,
assim como meu pai, não era nenhum super-herói. Eu era de carne e osso e
fadado a levar um tiro em qualquer ocasião e como eu queria proteger
Isabela, minha mãe queria me proteger, embora na época eu só pensasse
que ela odiasse minha escolha de vida. E não eu não odiava a polícia. Eu
ainda amava estar na ativa, a adrenalina de cada nova missão, a sensação de
dever cumprido com os cidadãos. Mas, pela primeira vez, eu queria me
firmar como um dos personagens, porque aquele papel que eu estava
interpretando parecia melhor do que minha própria vida fora dele.
— Isaac, você está cansado, você mesmo disse que precisava de
férias — ele disse, tentando argumentar.
— Nunca demorei tanto em uma missão sem avançar na
investigação. Sabe por quê? Porque outra coisa está na minha cabeça. Eu
não consigo me concentrar, pois toda minha atenção está focada em uma
pessoa. Nela.
Eu já tinha participado de várias missões, desde envolvimento com
cartel a grupo de tráfico humano. Eu tinha sido torturado e torturei pessoas
pelo bem dos casos. Eu fingi ser um milhão de pessoas que nada pareciam
comigo. E depois de tantos anos assumindo diferentes identidades, não
criando vínculo com ninguém, eu acabei esquecendo quem era o Isaac de
verdade.
— Você não pode fazer algo precipitado, sem pensar — Fernando
sussurrou, já sem forças para discutir comigo. Ele me conhecia, sabia que
quando eu botava uma coisa na cabeça nada ou ninguém era capaz de tirar.
— Acredite, eu estou pensando e antes que diga, não, não é com a
cabeça de baixo. — Abri um sorriso para meu amigo, eu imaginava que ele
estava em choque, mas queria que compreendesse. — Eu quero poder ter
uma conversa normal sem ficar me policiando a cada segundo sobre o que
estou falando. Quero usar minhas roupas, meu nome, e até mesmo meu jeito
de penteado de cabelo, que definitivamente não é o de lado que costumo
usar na escola. E, principalmente, quero não ter que mentir para Isabela,
contando meias verdades, quando tudo que eu desejo é poder ser sincero
com ela.
— É meu amigo... — Fernando suspirou, tocando o nariz com a
ponta dos dedos, finalmente se deixando vencer. — Você não transou, mas
está igualmente fodido.
— Sim, eu estou. — Cocei minha cabeça.
Não sabia onde estava me metendo, mas eu era Isaac Almeida e não
iria desistir. Eu só precisava passar um final de semana ainda sendo o
Ezequiel, antes de poder começar a ser eu mesmo. Era simples, eu já tinha
passado quase uma década tendo outras identidades, que mal poderia
acontecer em dois dias?
♪ Falando sobre como eu nunca vou encontrar um homem igual a você
Você me entendeu errado ♪
:::Irreplaceable – Beyoncé:::
ISABELA MARTINS
ISAAC ALMEIDA
A pior coisa que Isabela poderia fazer comigo era ficar em silêncio.
Mas foi assim que ela ficou quando entramos no carro e quando chegamos
ao meu apartamento. Eu sabia que a culpa era minha, porém não me
arrependia nem por um segundo.
— Vamos, não fique calada, eu sei que você quer falar — disse,
quase implorando que ela comentasse alguma coisa. Seu silêncio era
ensurdecedor aos meus ouvidos acostumados com sua voz.
— Eu não sei o que falar. — Ela abriu os braços, no meio da minha
sala, o rosto quase em uma careta, e os cabelos caindo do rabo de cavalo
folgado. — Quero apenas pegar minha agenda e canetas que acabei
esquecendo aqui.
Ela era linda, mesmo furiosa.
— Sim, você sabe. — Me aproximei, prendendo a respiração, me
preparando para o que viria a seguir.
— Você tem razão, eu sei. — Isabela deu um passo no meu sentido,
enfiando a unha do indicador no meu peito e me perguntei se ela conseguia
sentir a vibração do meu coração. — Não acredito que você causou a minha
expulsão da feira de línguas.
— Nossa expulsão — comentei, baixando minha cabeça.
— Argh! — ela socou meu peito. — Eu não acredito, Ezequiel!
Você estragou minha chance de conhecer a Espanha.
Ela estava muito furiosa, o rosto vermelho de raiva, os cabelos já
tinham se desfeito totalmente do rabo de cavalo, caindo sobre seus ombros
em cascata, a mão ainda batendo contra meu coração. Segurei sua mão
quando ela veio mais uma vez na direção do meu tórax, prendendo-a.
— Você nem sabe se ia ganhar esse prêmio.
— Não interessa, quem sabe um ano eu ganhasse. Agora não tenho
mais a chance, porque você fez com que eu nunca mais possa participar.
Isabela tentou soltar o próprio braço, mas eu a puxei na minha
direção, pressionando seu corpo contra o meu, sentindo nossas curvas se
encaixarem de forma perfeita.
— Qual é, você queria que eu fizesse o quê? Deixasse o idiota do
seu ex falar merda?
Ela arregalou os olhos, finalmente desistindo de me bater eu a soltei,
só que ela não mexeu nem um músculo, continuou na mesma posição.
— Ser agressivo com um agressor não faz de você um super-herói
— ela comentou, desviando o olhar, e eu soube que nem ela acreditava nas
suas próprias palavras.
— Não, mas faz de você uma mulher viva. Só Deus sabe o que
aconteceria se eu não estivesse lá. — Cuspi as palavras, sentindo a fúria
penetrar meu corpo mais uma vez.
Em um movimento, Isabela recuou, a boca abrindo em surpresa.
— Foi você, não é? Você que denunciou ele? — perguntou,
incrédula.
— Sim, fui eu.
Não costumava me envolver com os problemas dos outros, mas a
partir do momento que o problema pudesse se transformar em um crime eu
não ia ficar alheio à situação. Eu não tinha falado para Isabela, nem mesmo
para Fernando, mas tinha feito uma denúncia anônima acusando Martin de
agressão por conta do episódio que ocorrera no dia da Reunião de Pais e
Mestres.
— Você deveria ter me falado.
— Para quê? Ele merece sofrer, merece ir para a cadeia e pagar
pelos crimes que cometeu. — A verdade saiu de dentro de mim antes que
eu notasse, e um sentimento nocivo que insistia em corroer meu peito
começou a se formar. Raiva.
— Porque eu pensei que contávamos as coisas um para o outro, que
éramos amigos. — Isabela girou os calcanhares, ficando de costas para
mim, juntou suas coisas de cima da mesinha da sala e colocou dentro da
bolsa. Ela então se dirigiu até a porta do meu apartamento, mas antes de
tocar na maçaneta, voltou sua atenção para mim — Eu pouco me importo
com ele, mas eu me importo com você. Você foi expulso da feira, você vai
ser notificado pelo conselho educativo. Todo mundo vai saber o que
aconteceu e você vai ser malvisto pelos pais e alunos.
A resposta de Isabela chegou como um soco no meu estômago e eu
sabia exatamente como era a sensação. A falta de ar, devido à pancada
próxima ao pulmão, a dor intensa que faz a pessoa ter vontade de se dobrar,
o xingamento que sempre sobe à cabeça. Fechei minha boca, incapaz de ter
uma resposta para sua confissão. Ela se importava comigo!
— Vamos lá, você sempre tem uma resposta para tudo, não é?
Quero saber o que está na ponta da sua língua. — Isabela provocou, a mão
avançando sobre o trinco da porta, mostrando que eu tinha uma última
chance antes de ela ir embora.
Eu queria que ela ficasse, queria que soubesse o quanto ela também
era importante para mim. Mas, acima de tudo, queria que entendesse que eu
a desejava e que ser amigo não era o suficiente.
— Eu não tenho uma resposta na ponta da língua. Mas posso te
mostrar o que ela é capaz de fazer.
Foi um movimento discreto, rápido, mas eu notei quando suas íris
castanhas pararam na minha boca. Isabela apoiou o corpo contra a estrutura
da porta e eu aproveitei sua reação para me aproximar. Primeiro um passo,
depois o outro. Não tinha pressa. Quando meus pés bateram sobre o piso
porcelanato a poucos centímetros dos de Isabela, eu olhei para seu rosto,
avançando com minha mão até sua bochecha.
— Vamos lá, Bela, chegou sua vez de me rebater — sussurrei com
minha boca rente ao seu ouvido.
Esperei um soco, murro ou até mesmo suas respostas sempre tão
afiadas. Só não esperei que ela fosse segurar meu pescoço, as unhas
roçando minha pele, fazendo cada parte do meu corpo arrepiar.
— Antes de rebater eu preciso saber o que ela faz. — Foi a vez de
Isabela sussurrar, a voz em uma mistura de sensualidade e divertimento. —
Até porque, contra fatos não há argumentos.
Aquilo era uma permissão e, para quem não tinha pressa, me movi
rápido demais, mergulhando minha boca sobre a sua.
Isabela tinha gosto de tudo que eu amava: sorvete, menta e
adrenalina. Pressionei seu corpo contra a porta, escutando a estrutura ranger
sobre o peso de nossos corpos, e deslizei minhas mãos até sua nuca,
emaranhado meus dedos por seus cabelos macios.
Não tive que pedir passagem para enfiar minha língua dentro da sua
boca, afinal ela já estava pronta, esperando por aquilo. Por isso, mesmo em
meio ao beijo quente, sorri quando sua própria língua se enroscou na minha,
em uma dança sensual e gostosa. Isabela me puxou para si, ficando na ponta
dos pés para vencer nossa diferença de altura e eu aproveitei para erguê-la,
segurando sua bunda com as duas mãos e a levando em direção ao meu
quarto.
Ela não protestou, mas gemeu quando o beijo se tornou mais
urgente. Abri a porta, que estava apenas encostada, com o pé, quase em um
chute, e, mesmo sem ver, segui pelo quarto sabendo exatamente as posições
dos móveis, depositando Isabela sobre a cama. Cobri a totalidade de seu
corpo com o meu, apoiando meu peso sobre os cotovelos.
— Ezequiel... — Isabela sussurrou, os olhos fixos em mim.
— Por favor, diga para eu parar. Diga que eu não devo continuar. —
Implorei, sentindo meu pau pulsar dentro da calça, as forças do autocontrole
esvaindo como o ar deixando meus pulmões.
— É isso o que você quer? — Isabela questionou. — Que a gente
pare?
— Doce Bela, isso é o que menos quero na vida, por isso, nesse
momento, preciso que você seja a pessoa racional, porque eu perdi a ideia
de razão desde o momento em que te conheci.
A dualidade nunca tinha sido tão forte dentro de mim. Uma parte de
mim dizia que eu estava enganando Isabela, que embora eu fosse desistir da
missão eu ainda estava nela e que tudo aquilo era um erro. Mas como
poderia ser um erro se cada célula do meu corpo gritava pela necessidade de
tê-la? Não poderia ser errado quando nossa boca se encaixava com tanta
perfeição, quando nosso corpo ansiava um pelo outro e, principalmente,
quando era ao lado dela que eu me sentia eu mesmo.
— Sinto muito Ezequiel, mas não vou pedir para você parar, e
acredite, eu estou sendo racional.
Beijei a boca de Isabela mais uma vez, só que agora sem urgência,
apreciando cada nota de seu sabor. O azedo do cajá trazendo um contraste
com a ardência da menta de seu creme dental, mas nenhum dos sabores era
tão prazeroso quanto o da adrenalina. Sim, eu conseguia sentir esse sabor
vindo dela, porque eu reconhecia quando a emoção corria dentro das veias.
— Quer dizer que você quer que eu continue? — perguntei, pronto
para respeitar qualquer que fosse sua decisão.
— Por favor, não faça eu implorar. — Ela gemeu embaixo de mim,
abrindo as pernas para eu me encaixar.
Mordi meu lábio, segurando um gemido.
— Eu adoraria ver você implorar — falei baixando a manga bufante
de seu vestido vermelho, deixando seu sutiã à mostra.
Desci, sem pressa, o tecido preto rendado expondo seu seio.
Aproximei minha mão com verdadeira devoção, sentindo meu pau latejar
quando meu dedo roçou seu mamilo enrijecido. Isabela lambeu os lábios,
em uma cena que fez eu querer arrancar suas roupas, e eu me segurei para
não avançar muito rápido. A pele de seu colo estava quente sobre minha
mão, se encaixando perfeitamente, como se seu seio tivesse sido criado para
mim e apenas para mim. Não perdi tempo e inclinei meu rosto em sua
direção, abocanhando seu mamilo.
Isabela gemeu, o corpo arqueando, e uma de suas mãos pousou em
meus cabelos, se fixando ali, exigindo morada. A outra mão de Isabela se
agarrou em meus lençóis, apertando o tecido com força quando eu mordi
seu seio. Desci a outra manga do vestido e afastei seu sutiã, deixando o par
de seios à mostra, como duas esferas perfeitas. Eu já estava duro há tempos,
mas queria fazer Isabela sentir tudo que eu tinha a lhe oferecer. Mordi,
lambi e chupei-a, levando em conta cada uma de suas respostas aos meus
estímulos.
— Zeck, por favor... — Isabela sussurrou quando levei minhas mãos
até o tecido de sua calcinha, notando que ali já estava úmido. Pronto para
mim.
— Calma, Bela, ainda estamos no começo.
Afastei seu tecido de renda, introduzindo um dedo na sua boceta
molhada e ela arfou, um gemido manhoso atravessando o quarto. Fechei os
olhos absorvendo seu grito de prazer, tentando manter a racionalidade que
eu sabia que tinha ido ao espaço faz tempo. Isabela era minha perdição, a
responsável por cada bater acelerado do meu coração e a dona das malditas
borboletas que invadiam meu estômago.
Eu queria ser paciente, mas uma necessidade crescente fazia com
que cada vez mais eu quisesse a pele de Isabela sobre minha boca, por isso
empurrei a calcinha para o lado, afastando o pedaço de pano indesejado e
libertando a parte que eu tanto queria. Ela se mostrou surpresa, os dentes
mordendo o lábio inferior, quando eu lambi a parte interna de sua coxa.
Tirei meus dedos de sua umidade e, quando coloquei minha boca no meio
de sua boceta, Isabela fechou as pernas em volta do meu rosto.
— O que você... está... fazendo? — perguntou, subitamente sem
fôlego, o peito subindo e descendo com velocidade, para meu deleite.
— Você sabe muito bem, mostrando o que a ponta da minha língua é
capaz de fazer — falei e voltei a lamber sua umidade, sentindo o sabor de
sua boceta sobre minha boca, o gosto de Isabela infiltrando cada partícula
minha.
Mordi a ponta de seu clitóris e ela gritou, as duas mãos vindo até
meu cabelo e eu esperei que ela me impedisse de continuar, mas ela apenas
guiou minha cabeça para mais perto de seu centro.
— Eu vou te mostrar, Bela, o que um homem de verdade faz.
Passei a língua por sua boceta gostosa, enxarcada, pronta pra mim e
senti meu pau quase explodindo de desejo. Me concentrei em fazê-la gozar,
introduzindo meu dedo dentro de Isabela ao mesmo tempo que com a boca
eu chupava seu ponto mais sensível. Isabela se remexia embaixo de mim, as
pernas se abrindo mais e mais, os xingamentos em espanhol se misturando
aos gemidos, até que o ápice invadiu seu corpo, o orgasmo vindo como
ondas e eu, como o mar, estava preparado para receber seu rio. As pernas de
Isabela tremeram, mas eu continuei ali, a boca em seu centro, a língua
recebendo mais e mais de seu sabor. Perfeita. Ela era toda perfeita.
— Vou fazer você gritar e gemer sem sentir dor — disse, encarando
seus olhos castanhos, firmando meu compromisso. — A porra de um
homem de verdade jamais machuca sua mulher.
— Repita o que disse.
— Que vou fazer você gritar e gemer sem sentir...
— Não essa parte. A parte que você disse que nenhum homem deve
machucar sua mulher. O que quer dizer com isso? Que sou sua?
— Sim. Você é minha e de mais ninguém — respondi, o desejo
latente de posse me dominando por completo, como nunca antes. — Ou
você tem algo contra?
Prendi a respiração aguardando ansiosamente sua resposta e quando
Isabela sorriu, o barulho de sua risada reverberando pelo quarto, eu só
desejei poder ouvir aquele som todos os dias da minha vida.
♪ Se você gosta do seu café quente
Me deixe ser a sua cafeteira ♪
::: I wanna be yours – Arctic Monkeys:::
ISABELA MARTINS
ISAAC ALMEIDA
ISABELA MARTINS
As lágrimas rolaram dos meus olhos assim que o alçapão foi aberto.
Eu já sabia o que ia acontecer, ainda assim me peguei chorosa, em meio ao
desespero de uma possível captura.
— Não acredito que você me convenceu a assistir isso. — Ezequiel
protestou, os braços cruzados sobre o peito.
— Me diz, é perfeito, né? — perguntei, girando meu corpo no sofá e
ficando de frente para ele.
Ezequiel bufou e então, depois de tocar a testa por um segundo,
arranhou a garganta.
— Tudo bem, é bom.
— Bom? Você está de brincadeira. Pousando no amor é perfeito,
uma obra de arte.
— Você está exagerando. — Ele deu de ombros e eu revirei os
olhos.
Depois que seu amigo foi embora, tomamos café da manhã e eu
decidi mostrar para Ezequiel o mundo maravilhoso dos doramas.
— Não consegue sentir a química entre os atores? — perguntei
apontando para televisão, onde o protagonista tascou um beijo na sua
companheira de tela, para ajudá-la a não ser pega pelos vilões. — Eles se
casaram na vida real!
— A única química que sinto é entre mim e você — ele sussurrou, o
rosto subitamente se aproximando do meu e, tal qual a cena da série, me
beijou de súbito.
Meu estômago se remoeu no mesmo instante, como se o simples
tocar de lábios despertasse as borboletas que viviam adormecidas por ali.
— Bom, poderíamos ter visto onde nossa química teria nos levado
se não fosse por seu amigo — resmunguei, me sentindo ousada, querendo
repetir o que fizemos na noite anterior, porque assim era eu quando estava
perto dele. Eu mesma, sem anseios ou medos. — O que ele queria mesmo?
Ezequiel soltou um muxoxo alto e deu de ombros, as sobrancelhas
se juntando em um vinco, como se a mera lembrança de pensar em seu
amigo o deixasse chateado. Eu podia entendê-lo, o cara tinha atrapalhado
um momento para lá de quente.
— Fernando queria me falar uma coisa, mas não era nada demais.
— Não podia ter usado o telefone? — questionei, curiosa.
— Também não sei porque não usou. — Ezequiel tocou a garganta
com o indicador e completou.
— Você nunca tinha falado sobre esse seu amigo — disse e percebi
que Ezequiel ficou rígido com minha fala, a mandíbula trincada, os olhos
tentando demonstrar tranquilidade, mas eu o conhecia o suficiente para
saber que ele estava acuado.
— Quer dizer que você se inspirou nessa cena para me salvar
naquele dia na escola? — apontou para a televisão.
Ele tentou mudar de assunto virando o rosto para a televisão, mesmo
que seus olhos não focassem na cena que passava na tela. O dia estava
nublado, as janelas abertas traziam os barulhos escassos dos pássaros. Era
um domingo gostoso, daqueles que eu costumava passar o dia inteiro na
cama, mas ali estava eu, ao lado de Ezequiel, sua mão na minha coxa, uma
cena nada parecida com o que eu estava acostumada, mas que de certo
modo me trazia um conforto que não sentia há muito tempo.
Era natural tê-lo ali, como minha companhia, mesmo quando ele me
irritava. Ele cuidava de mim, e eu comecei a pensar que talvez também
precisasse cuidar dele. Então, arranhando minha garganta, respondi à sua
pergunta.
— Sim, e graças a esse dorama que você não se encrencou —
respondi.
— Eu não teria me encrencado se você não estivesse lá. — Ele
apontou para mim.
— Nossa, seu pai tinha razão, você realmente é orgulhoso.
Soube que tinha falado merda logo após fechar a boca. O pai de
Ezequiel havia morrido em um assalto, e não fazia nem vinte e quatro horas
que, graças a mim, as lembranças daquele fatídico dia tinham atingido-o.
Ele, entretanto, balançou a cabeça e depois passou a mão pelos cabelos. Os
olhos fixos em um ponto que eu não soube identificar.
— Você está certa — falou sem sarcasmo ou chances para eu
protestar.
Um nó se formou em minha garganta. Eu não estava ajudando em
nada. Na verdade, estava atrapalhando tudo, mas antes que eu pudesse
sequer me redimir, os dedos de Ezequiel roçaram meu queixo, trazendo meu
rosto para perto do seu.
Suas pupilas dilatadas deixavam pouco espaço para o castanho das
íris e ele tombou a cabeça para o lado me admirando. Ezequiel ficou em
silêncio por um tempo, o polegar em um vai e vem pela minha pele e então,
subitamente, se afastou, se ajeitando sobre o sofá, a coluna ficando reta.
— Eu amo sua espontaneidade — disse, a voz suave contrastando
com suas feições rígidas. — Amo que você não tem papas na língua e que
se entregue em tudo que se preza a fazer.
Ezequiel suspirou e eu pude sentir no ar que suas palavras saíam
com certa dificuldade, o peito subindo e descendo em um ritmo acelerado.
— Acima de tudo, amo sua sinceridade e é por isso que quero te
contar uma coisa. — Ele passou a mão pelos cabelos e depois mordeu o
lábio. — Eu...
Um barulho estridente soou vindo da porta. Não eram apenas
batidas, eram socos desferidos com força.
— Preciso falar com você, abre a porta. — Uma voz soou do outro
lado e Ezequiel se levantou, fechando a mão em punho.
Ele abriu a porta não dando passagem para a pessoa do outro lado e
cruzou os braços sobre o peito.
— Fernando, não é uma boa hora. — Meus pelos se arrepiaram só
de escutar o tom grave saindo da boca de Ezequiel, mas pelo jeito, seu
amigo não se importou, já que continuou de pé na sua frente e não fugiu
correndo pelo corredor como eu teria feito.
— Cadê seu celular, por que você não atende a porra do telefone? —
o tal de Fernando rugiu, o desespero visível não só em seu rosto, os olhos
apertados, rugas cruzando sua testa, como também em seu corpo, as pernas
se mexendo exageradamente e as mãos na cabeça onde a careca reluzia.
— Ei, que xingamentos são esses? — Ezequiel questionou, a fúria
reverberando dentro dele.
— Foda-se os xingamentos. — Fernando segurou o braço de
Ezequiel, que travou no mesmo instante, a atmosfera amena se tornando fria
rapidamente, antes, entretanto, que qualquer um dos dois se mexesse,
Fernando continuou. — Acharam um suspeito de assassinato do seu pai.
ISAAC ALMEIDA
ISABELA MARTINS
ISAAC ALMEIDA
ISAAC ALMEIDA
Meses depois
ISABELA MARTINS
04 anos depois
ISAAC ALMEIDA