Baixe no formato PDF, TXT ou leia online no Scribd
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 16
Baba Yaga e Vasilissa, a bela
Alexander Afanasyev 1855
Em um certo Czarado[1], além de três vezes nove reinos, depois de altas
cadeias montanhosas, vivia um mercador. Ele fora casado por doze anos, mas nesse tempo lhe foi concedida apenas uma criança, uma filha, que desde o berço foi chamada Vasilissa[2], a Bela. Quando a garotinha tinha oito anos, sua mãe adoeceu e, após poucos dias, via-se claramente que ela morreria. Então ela chamou sua filhinha para junto de si e, pegando uma bonequinha de madeira de debaixo do cobertor da cama, colocou-a em suas mãos, dizendo: — Minha pequena Vasilissa, minha querida filha, escute o que eu digo; lembre-se bem de minhas últimas palavras e não falhe em cumprir os meus desejos. Eu estou morrendo e, com a minha bênção, deixo a você essa bonequinha. Ela é muito preciosa, pois não há outra igual no mundo todo. Carregue-a sempre com você, em seu bolso, e nunca a mostre a ninguém. Quando o mal a ameaçar ou a tristeza cair sobre você, vá até um cantinho, pegue a boneca de seu bolso e dê a ela alguma coisa para comer e beber. Ela vai comer e beber um pouquinho, e então você poderá contar-lhe sua aflição e pedir-lhe conselhos. Ela lhe dirá como agir em horas de necessidade. Assim dizendo, ela beijou a filhinha na testa, abençoou-a e, pouco depois, morreu. A pequena Vasilissa sofreu muito a perda da mãe, e sua tristeza foi tão profunda que, quando a noite escura veio, ela deitou-se em sua cama e chorou sem conseguir dormir. Passado algum tempo, lembrou-se da bonequinha, então se levantou, retirou-a do bolso de seu vestido e, pegando também um pedaço de pão e um copo de kvass[3], pôs tudo diante dela: — Aqui está, minha bonequinha, pegue. Coma e beba um pouco, e escute o meu pesar. Minha querida mãe está morta e eu sinto a falta dela. Então os olhos da bonequinha começaram a brilhar como pirilampos e, de repente, ela ganhou vida. Ela comeu um pedaço do pão e tomou um gole da kvass e, quando já havia comido e bebido, disse: — Não chore, pequena Vasilissa. A dor é pior à noite. Deite-se, feche seus olhos, console-se e vá dormir. A manhã é mais sábia do que a noite. Então Vasilissa, a Bela, deitou-se, consolou-se e dormiu. No dia seguinte, sua tristeza era menos profunda e, suas lágrimas, menos amargas. Depois da morte de sua esposa, o mercador manteve o luto por muitos dias, como era apropriado, mas ao final desse tempo, começou a querer casar-se novamente e procurou por uma esposa adequada. Isso não foi difícil de encontrar, pois ele possuía uma boa casa, com um estábulo com cavalos velozes, além de ser um bom homem, que doava bastante aos pobres. De todas as mulheres que ele viu, porém, a que lhe era, em sua opinião, a mais compatível, era uma viúva mais ou menos de mesma idade que a sua, com duas filhas. E ela, ele pensou, além de ser uma boa dona de casa, poderia ser uma gentil madrasta para sua pequena Vasilissa. Então, o mercador casou-se com a viúva e a trouxe para casa como sua esposa, mas a garotinha logo descobriu que sua madrasta estava bem longe de ser o que seu pai imaginara. Ela era uma mulher fria e cruel, que desejara o mercador por conta de sua fortuna e que não tinha amor nenhum por sua filha. Vasilissa era a maior beleza de todo o vilarejo, enquanto as filhas da viúva eram tão dispensáveis e medíocres como dois corvos; por causa disso, as três a invejavam e a odiavam. O trio dava a ela todos os tipos de incumbências e tarefas difíceis de realizar, de modo que a labuta a fizesse magra e desgastada e que seu rosto ficasse queimado do sol e do vento[4]; elas a tratavam tão cruelmente para que a menina tivesse poucas alegrias na vida. Mas tudo isso a pequena Vasilissa suportou sem reclamar e, enquanto as duas filhas de sua madrasta cresciam sempre mais magras e feias, a despeito do fato de não terem tarefas difíceis a cumprir, de nunca saírem quando estava frio ou chovendo e de sentarem sempre com os braços dobrados como damas de uma Corte, Vasilissa possuía bochechas como sangue e leite e ficava a cada dia mais e mais bela. A razão disso era a bonequinha, sem cuja ajuda a pequena Vasilissa jamais poderia dar conta de todo o trabalho que lhe era atribuído. A cada noite, quando todos os outros já estavam em sono profundo, Vasilissa levantava da cama, levava a bonequinha até um aposento e, fechando a porta, dava-lhe algo comer e beber, e dizia: — Aqui está, minha bonequinha, pegue. Coma e beba um pouco, e escute o meu pesar. Vivo na casa de meu pai, mas minha madrasta maldosa deseja me expulsar do mundo branco[5]. Diga-me! Como devo agir, o que devo fazer? E então os olhos da bonequinha começavam a brilhar como vagalumes, e ela ganhava vida. Ela comia um pouco da comida, tomava um gole da bebida, e então confortava e dizia a Vasilissa como agir. Enquanto Vasilissa dormia, a bonequinha fazia todo seu trabalho do dia seguinte, para que a Vasilissa só restasse descansar na sombra das árvores e colher flores, já que a bonequinha já havia retirado as ervas daninhas do quintal, regado os pés de repolho, pegado baldes de água fresca do poço e aquecido o fogão na temperatura certa. E, além disso, a bonequinha lhe ensinara a fazer um unguento de uma certa erva que a protegia de queimaduras de sol. Então, toda a alegria da vida de Vasilissa vinha por causa da bonequinha que ela sempre carregava consigo, em seu bolso. Os anos se passaram, até que Vasilissa cresceu e chegou à idade em que é melhor se casar. Todos os jovens na vila, nobres e vassalos, ricos e pobres, pediam sua mão, enquanto nenhum deles parava para sequer olhar as filhas da madrasta, tão desfavorecidas que eram. Isso aumentou ainda mais a raiva que a madrasta nutria por Vasilissa; ela respondia a cada jovem galante que batia à sua porta com a mesma frase: — Nunca a mais nova se casará antes que as mais velhas! E, a cada vez em que um pretendente saía porta afora, a madrasta acalmava sua raiva e ódio batendo na enteada. Assim, ainda que Vasilissa crescesse cada dia mais amável e graciosa, estava frequentemente infeliz e, se não fosse pela bonequinha em seu bolso, ela já teria tido vontade de deixar o mundo branco. Chegou um tempo em que se tornou necessário para o mercador deixar a sua casa e viajar para um distante Czarado. Ele se despediu de sua esposa e de suas duas filhas, beijou Vasilissa, deu-lhe suas bênçãos e partiu, incumbindo-as todas de fazerem uma prece todos os dias pelo seu retorno a salvo. Mal ele saiu da vista do vilarejo, porém, e a madrasta vendeu sua casa, encaixotou todos os seus bens e mudou-se com elas para outro domicílio, distante da cidade, em uma vizinhança sombria à beira de uma floresta selvagem. Lá, todos os dias, enquanto suas filhas trabalhavam dentro de casa, a esposa do mercador mandava Vasilissa em uma tarefa ou outra floresta adentro, fosse para achar um galho de um arbusto raro ou para trazer-lhe flores ou frutinhas. Mas lá nas profundezas da floresta, como a madrasta bem sabia, existia uma clareira verde[6], e nessa clareira havia uma cabaninha miserável construída sobre pés de galinha, onde vivia uma Baba Yaga[7], uma velha bruxa. Ela vivia sozinha e ninguém ousava se aproximar da cabana, pois ela comia pessoas como se come galinhas. A esposa do mercador mandava Vasilissa floresta adentro todo dia, esperando que ela encontrasse a velha bruxa e fosse devorada; porém, a garota sempre voltava para casa sã e salva, porque sua bonequinha mostrava-lhe onde os arbustos, as flores e frutinhas cresciam, e não a deixava chegar perto da choupana que ficava sobre pés de galinha. E cada vez a madrasta a odiava mais e mais por não ter sofrido nenhum mal. Numa noite de outono, a madrasta chamou as três garotas e deu uma tarefa a cada uma. A uma de suas filhas ela incumbiu tecer um pedaço de renda; a outra, mandou tricotar um par de calçolas; e, para Vasilissa, deu uma bacia de linho para ser fiado. Ela ordenou que cada uma terminasse sua parte, e então apagou todas as fogueiras da casa, deixando apenas uma única vela acesa no quarto onde as três trabalhavam e foi dormir. Elas trabalharam por uma, por duas, por três horas, até que uma das irmãs mais velhas pegou uma pinça para ajeitar o pavio da vela e, desajeitadamente (como sua mãe a havia instruído), a apagou, como que por acidente. — O que faremos agora? — perguntou a outra irmã. — As fogueiras estão todas apagadas, não há qualquer luz em toda a casa, e nós não acabamos as nossas tarefas! — Nós devemos sair e arranjar fogo — disse a que havia apagado a vela. — A única casa por perto é uma cabana na floresta, onde vive uma Baba Yaga. Uma de nós deve ir e pedir fogo a ela. — Eu tenho luz suficiente, que vem dos meus alfinetes de aço — disse a irmã que estava fazendo o rendado. — E não vou. — E eu tenho bastante luz das minhas agulhas prateadas — disse a outra, que tricotava as calçolas. — E não vou. — Você, Vasilissa — as duas irmãs disseram —, deve ir e conseguir o fogo, pois não tem nem alfinetes de aço e nem agulhas de prata, e não tem como enxergar para fiar o seu linho! As duas irmãs se levantaram, empurraram Vasilissa para fora da casa e trancaram a porta, gritando: — Você não vai entrar enquanto não tiver trazido fogo! Vasilissa sentou-se nos degraus em frente à porta, tirou a boneca minúscula de dentro de um bolso e de outro ela tirou o jantar que estava preparado para ela; pôs a comida diante da boneca e disse: — Aqui está, minha bonequinha, pegue. Coma e beba um pouco, e escute o meu pesar. Eu devo ir até a cabana da velha Baba Yaga, lá na floresta escura, para pegar emprestado um pouco de fogo, mas tenho medo de que a bruxa me devore. Diga-me! O que devo fazer? Então os olhos da bonequinha começaram a brilhar como duas estrelas e ela ganhou vida. Ela comeu um pouco e disse: — Não tema, pequena Vasilissa. Vá até onde foi mandada. Enquanto eu estiver com você, nenhum mal a velha bruxa lhe causará. Então, Vasilissa colocou a bonequinha de volta no bolso, fez o sinal da cruz e começou a entrar na floresta escura e selvagem. Se ela caminhou muito ou pouco é fácil contar, mas a jornada foi difícil[8]. A floresta era muito escura, e ela não podia deixar de tremer de medo. De repente, ouviu o som dos cascos de um cavalo e um homem passou a galope por ela. Ele estava vestido todo de branco, e o cavalo que montava também era branco como o leite, assim como os arreios que usava; e, assim que ele passou por ela, anoiteceu. Ela seguiu um pouco mais adiante e mais uma vez ouviu o som dos cascos de um cavalo, e então outro homem passou por ela a galope. Ele estava vestido todo de vermelho, e o cavalo que montava era vermelho como o sangue, assim como os arreios que usava. Assim que ele passou por ela, o sol se ergueu no horizonte. Durante aquele dia inteiro, Vasilissa caminhou, pois havia se perdido. Ela não conseguia achar qualquer caminho na floresta escura e não tinha comida nenhuma para pôr diante da bonequinha e fazê-la criar vida. Mas, à noite, ela chegou enfim à clareira verde onde a cabaninha miserável ficava, sobre seus pés de galinha. A parede ao redor da cabana era feita de ossos humanos e no seu teto havia caveiras. Havia um portão no muro, cujas dobradiças eram ossos de pés humanos e, as fechaduras, ossos de mandíbulas humanas, com dentes afiados. Esta visão horrorizou Vasilissa e ela parou, imóvel como uma coluna enterrada no chão. Enquanto ela permanecia imóvel, um terceiro homem a cavalo veio galopando. Sua face era preta, e ele estava todo vestido de preto; o cavalo que ele montava era da cor do carvão. Ele galopou até ao portão da cabana e desapareceu ali, como se houvesse afundado no chão; e, naquele momento, a noite chegou e a floresta escureceu. Mas não estava escuro na clareira verde, pois instantaneamente todos os olhos das caveiras no muro se acenderam e brilharam até o local se tornar claro como o dia. Quando viu isso, Vasilissa tremeu tanto de medo que não pôde correr. Então, de repente, a floresta se encheu de um barulho terrível; as árvores começaram a gemer, os galhos a chiar e as folhas secas a se agitar, e a Baba Yaga veio voando da floresta. Ela estava cavalgando um grande almofariz de ferro, dirigindo-o com o pilão, e, enquanto se aproximava, varria o caminho atrás dela com uma vassoura de cozinha. Ela cavalgou até o portão e, parando, disse: — Casinha, casinha! Mamãe não te pôs assim; vire as costas para a floresta e fique de frente para mim! — E a cabaninha virou-se de frente para ela e ficou parada. Então, farejando em volta, a Baba Yaga gritou: — Fu! Fu! Eu sinto um cheiro russo! Quem está aí? Vasilissa, num grande temor, aproximou-se da velha e, curvando-se muito baixo, disse: — É somente Vasilissa, vovó. As filhas de minha madrasta me mandaram à senhora para pegar um pouco de fogo emprestado. — Bem… — disse a velha bruxa. — Eu as conheço. Mas se lhe der o fogo, você vai ficar comigo um tempo e fazer alguns trabalhos para pagar por ele. Se não, você será a comida da minha ceia. — Então, ela se voltou ao portão e gritou: — Olá! Vocês, minhas fechaduras sólidas, destranquem- se! Você, meu robusto portão, abra! Instantaneamente, as fechaduras se destrancaram, o portão abriu sozinho e a Baba Yaga adentrou assoviando. Vasilissa entrou logo atrás dela e, de imediato, o portão fechou de novo e as fechaduras estalaram com força ao fechar. Quando elas entraram na cabana, a velha bruxa atirou-se em frente ao forno, esticou suas pernas ossudas e disse: — Ande, pegue e ponha já sobre a mesa tudo o que está nesse forno! Eu estou com fome! Vasilissa correu, acendeu uma lasca de madeira em uma das caveiras na parede, pegou a comida do forno e pôs diante da bruxa. Havia carne cozida suficiente para alimentar três homens fortes. Ela trouxe ainda, da adega, kvass, mel, e vinho tinto; e a Baba Yaga comeu e bebeu de tudo, deixando para a garota apenas um pouco de sopa de repolho, uma crosta de pão e um naco de leitão. Quando sua fome estava saciada, a velha bruxa, ficando sonolenta, deitou-se sobre o forno e disse: — Escute-me bem e me obedeça: amanhã, quando eu for embora, limpe o quintal, varra o chão e cozinhe meu jantar. Então, pegue um quarto da medida de trigo da minha despensa e cate todos os grãos pretos e as ervilhas bravas. Cuide para fazer tudo o que ordenei, senão será a comida da minha ceia. Dentro em pouco, a Baba Yaga virou-se para a parede e começou a roncar; e Vasilissa soube que ela tinha caído em sono profundo. Ela foi até o canto, pegou a bonequinha do seu bolso, pôs diante dela um pouquinho de pão e sopa de repolhos que tinha guardado e, caindo no choro, disse: — Aqui está, minha bonequinha, pegue. Coma e beba um pouco, e escute o meu pesar. Estou aqui na casa da velha bruxa e o portão no muro está trancado e eu estou com medo. Ela me deu uma tarefa difícil e, se eu não fizer tudo que ordenou, vai me comer amanhã. Diga-me, o que devo fazer? Os olhos da bonequinha começaram a brilhar como duas velas. Ela comeu um pouquinho de pão, bebeu um pouquinho da sopa e disse: — Não tenha medo, Vasilissa, a Bela. Reconforte-se. Ore e vá dormir; a manhã é mais sábia que a noite. Então, Vasilissa acreditou na bonequinha e reconfortou-se. Ela rezou, deitou-se no chão e dormiu profundamente. Quando acordou, muito cedo na manhã seguinte, ainda estava escuro. Ela levantou e olhou pela janela e viu que os olhos das caveiras que ficavam em cima do muro estavam esmaecendo. Enquanto ela olhava, o homem todo trajado em branco, cavalgando o cavalo branco como leite, galopou rapidamente ao redor da cabana, pulou o muro e desapareceu; e, quando o fez, o céu ficou bastante claro e os olhos das caveiras tremeluziram e se apagaram. A velha bruxa estava no quintal; neste momento, começou a assoviar, e o grande almofariz de ferro, o pilão e a vassoura de cozinha voaram para fora da cabana até ela. Enquanto ela entrava no almofariz, o homem vestido todo em vermelho, montado em seu cavalo vermelho como sangue, galopou como o vento ao redor da cabana, pulou sobre o muro e sumiu e, naquele momento, o sol nasceu. Então a Baba Yaga gritou: — Olá! Vocês, minhas fechaduras sólidas, destranquem-se! Você, meu robusto portão, abra! E as fechaduras destrancaram-se, o portão abriu e ela partiu no almofariz, dirigindo-o com o pilão e varrendo o caminho atrás de si com a vassoura. Quando Vasilissa viu-se sozinha, examinou a cabana e teve a impressão de que ela tinha uma abundância de tudo. Passou um tempo parada, lembrando de todo o trabalho que fora ordenada a fazer e pensando por onde começar. Mas, quando voltou a si e olhou ao seu redor, esfregou os olhos, pois o quintal já estava cuidadosamente limpo, todo o chão estava bem varrido e a bonequinha estava sentada no armazém, separando os últimos grãos pretos e ervilhas bravas da quarta medida do trigo. Vasilissa correu e pegou a bonequinha em seus braços. — Minha querida bonequinha! — ela gritou. — Você me salvou do meu problema! Agora eu tenho só que cozinhar o jantar da Baba Yaga, já que todas as outras tarefas estão feitas! — Cozinhe, então, com a ajuda dos céus — disse a bonequinha. — E então descanse, e que o cozinhar a faça saudável! E, assim dizendo, ela rastejou para o bolso de Vasilissa e se tornou novamente apenas uma bonequinha de madeira. Assim, Vasilissa descansou todo o dia e ficou revigorada; quando estava perto de anoitecer, ela pôs a mesa para a ceia da velha bruxa e sentou-se, olhando pela janela, esperando-a chegar. Depois de um tempo, ouviu o som dos cascos de um cavalo e o homem trajado de preto, montado em um cavalo preto como carvão, galopou acima do portão do muro, desaparecendo como uma grande sombra escura. Instantaneamente, escureceu muito, e os olhos de todas as caveiras começaram a reluzir e brilhar. Subitamente, as árvores passaram a chiar e gemer, as folhas e arbustos a carpir e suspirar, e a Baba Yaga veio pela floresta escura, montada no enorme almofariz de ferro, conduzindo-o com o pilão e varrendo o chão atrás de si com a vassoura de cozinha. Vasilissa deixou-a entrar; e a bruxa, cheirando tudo a sua volta, perguntou: — Bem, você fez perfeitamente todas as tarefas que ordenei, ou devo comê-la no meu jantar? — Faça o favor e veja por si mesma, vovó — respondeu Vasilissa. A Baba Yaga foi a todo lugar, batendo com seu pilão de ferro e examinando tudo cuidadosamente. Mas a bonequinha havia feito o seu trabalho tão bem que, por mais que ela tentasse, não conseguia achar um defeito do qual reclamar. Não havia erva daninha restante no quintal, nem mancha de poeira no chão, ou sequer um grão preto ou ervilha brava misturada ao trigo. A velha bruxa ficou muito irritada, porém foi obrigada a fingir que estava satisfeita: — Bom, você fez tudo bem — ela disse e, batendo palmas, gritou. — Olá! Meus fiéis servos! Amigos de meu coração! Apressem-se e moam meu trigo! Imediatamente, três pares de mãos apareceram, apanharam a medida de trigo e levaram-na embora. A Baba Yaga sentou-se para jantar e Vasilissa pôs diante dela toda a comida do forno, com kvass, mel e vinho tinto. A velha bruxa comeu tudo, até os ossos, até quase o último pedaço, o suficiente para saciar quatro homens fortes e, então, ficando sonolenta, esticou suas pernas ossudas em frente ao forno e disse: — Amanhã, faça tudo como fez hoje; e, além dessas tarefas, pegue de meu armazém meia medida de sementes de papoula e limpe-as, uma a uma. Alguém misturou terra com elas para me tapear e enfurecer, e eu as quero perfeitamente limpas. Assim dizendo, ela se virou para a parede e logo começou a roncar. Quando ela adormeceu, Vasilissa foi a um cantinho, pegou a bonequinha de seu bolso, colocou diante dela uma parte da comida que havia sobrado e pediu por seu conselho. E a bonequinha, quando ganhou vida e comeu um pouquinho de comida e bebericou um golinho de bebida, disse: — Não se preocupe, bela Vasilissa! Reconforte-se. Faça exatamente como fez noite passada: ore e vá dormir. Então, Vasilissa reconfortou-se. Ela rezou e foi dormir, e não acordou até a manhã seguinte, quando ouviu a velha bruxa assoviando no quintal. Correu até a janela bem a tempo de vê-la se acomodar no almofariz; e, enquanto ela o fazia, também o homem trajado em vermelho, montando o cavalo como sangue, saltou sobre o muro e se foi, exatamente quando o sol nasceu na floresta selvagem. Assim como aconteceu na primeira manhã, aconteceu na segunda. Quando Vasilissa olhou, descobriu que a bonequinha tinha acabado todas as tarefas, exceto a de cozinhar o jantar. O quintal estava varrido e em ordem, o chão estava tão limpo quanto madeira nova, e não existia um grão de terra sequer na meia medida de sementes de papoula. Ela descansou e refrescou- se até a tarde, quando cozinhou o jantar; e, quando a noite chegou ela pôs a mesa e sentou-se para esperar a velha bruxa chegar. Logo, o homem de preto, no cavalo como o carvão, galopou por cima do portão, e a escuridão caiu e os olhos das caveiras começaram a brilhar como o dia; e então o chão começou a tremer, e as árvores da floresta começaram a gemer e as folhas secas a farfalhar, e a Baba Yaga chegou montada em seu almofariz, dirigindo-o com seu pilão e varrendo o chão atrás de si com a vassoura. Quando ela entrou, cheirou tudo ao seu redor e andou pela cabana, batendo com o seu pilão; mas, mesmo examinando e vasculhando como pôde, novamente ela não achou motivo para reclamar e ficou com mais raiva que nunca. Bateu palmas e gritou: — Olá! Meus fiéis servos! Amigos de minha alma! Apressem-se e prensem o óleo das sementes de papoula! — E instantaneamente, os três pares de mãos apareceram, pegaram a medida de sementes de papoula e levaram-na embora. Pouco depois, a velha bruxa sentou-se para jantar e Vasilissa trouxe tudo que havia cozinhado, o suficiente para alimentar cinco homens crescidos; colocou diante dela, trouxe cerveja e mel, e ficou esperando silenciosamente. A Baba Yaga comeu e bebeu tudo, cada pedaço, deixando um pouco menos de um farelo de pão; e disse abruptamente: — Bem, por que não diz nada, mas fica aí parada como se fosse estúpida? — Eu nada falei — Vasilissa respondeu — porque não me atrevi. Mas se me permitir, vovó, eu desejo fazer algumas perguntas. — Bem… — disse a velha bruxa. — Só lembre que cada pergunta não levará a nada bom. Se sabe demais, envelhecerá muito cedo. O que deseja perguntar? — Peço que fale dos homens em seus cavalos — disse Vasilissa. — Quando vim para a sua cabana, um cavaleiro passou por mim. Ele estava todo vestido de branco e galopava em um cavalo branco como o leite. Quem era ele? — Aquele era meu dia branco e brilhante — respondeu a Baba Yaga com raiva. — Ele é um servo meu, mas não pode machucá-la. Pergunte-me mais. — Depois disso… — prosseguiu Vasilissa. — Um segundo cavaleiro me ultrapassou. Ele estava todo vestido em vermelho e cavalgava um cavalo vermelho como o sangue. Quem era ele? — Esse era meu servo, o sol, redondo e vermelho; e ele, também, não pode feri-la — respondeu a Baba Yaga, rangendo seus dentes. — Pergunte- me mais. — Um terceiro cavaleiro — continuou Vasilissa — veio galopando sobre o portão; ele era negro, suas vestes também eram negras e seu cavalo negro como o carvão. Quem era ele? — Esse era meu servo, a noite negra e escura! — respondeu a velha bruxa, furiosamente. — Mas ele também não pode fazer mal a você. Pergunte-me mais! Mas Vasilissa, lembrando que a Baba Yaga havia dito que nem toda pergunta leva ao bem, ficou em silêncio. — Pergunte-me mais! — gritou a velha bruxa. — Por que não me pergunta mais? Pergunte-me dos três pares de mãos que me servem! Mas Vasilissa viu como a bruxa rosnou para ela e respondeu: — As três perguntas são o suficiente para mim. Como a senhora disse, vovó, eu não quero, por saber demais, envelhecer muito cedo. — É bom para você — disse a Baba Yaga — que não tenha perguntado sobre elas, mas só do que viu fora dessa cabana. Se tivesse perguntado deles, meus servos, os pares de mãos levariam você também, como fizeram com o trigo e as sementes de papoula, para se tornar minha comida. Agora é a minha vez de fazer-lhe uma pergunta. Como foi capaz, em tão pouco tempo, de executar perfeitamente todas as tarefas que lhe dei? Diga-me! Vasilissa estava com tanto medo ao ver como a velha bruxa rangia os dentes que quase lhe contou sobre sua bonequinha, mas caiu em si a tempo de responder: — A benção de minha falecida mãe me ajuda. Então a Baba Yaga levantou-se, tomada pela fúria. — Ponha-se para fora da minha casa já! — ela gritou. — Não quero ninguém que carrega uma bênção cruzando meus domínios! Suma daqui! Vasilissa correu para o quintal e, lá atrás, ouviu a velha bruxa gritando para as fechaduras e para o portão. As fechaduras se abriram, o portão abriu-se, e ela correu para fora da clareira. A Baba Yaga pegou da muralha uma das caveiras de olhos brilhantes e arremessou-a em Vasilissa. — Tome! — uivou. — É o fogo para as filhas da sua madrasta! Pegue! Foi para isso que elas a mandaram aqui; que elas fiquem felizes! Vasilissa pôs a caveira na ponta de uma vara e lançou-se pela floresta, correndo tão rápido quanto podia, achando seu caminho graças a luz que saía dos olhos da caveira, que se se apagou quando a manhã chegou. Quer tenha ela corrido um caminho longo ou curto, ou tenha sido o caminho fácil ou difícil, por volta da noite do dia seguinte, quando os olhos da caveira começaram a cintilar, ela saiu da floresta escura e selvagem e chegou à casa de sua madrasta. Quando chegou perto do portão, pensou: Com certeza, a esta altura, elas já devem ter achado algum fogo. — E jogou a caveira na cerca-viva, mas a caveira falou com ela: — Não me jogue fora, bela Vasilissa; leve-me para sua madrasta. Então, olhando para a casa e não vendo nenhuma centelha de luz vinda de nenhuma das janelas, ela pegou a caveira novamente e a levou com ela. Desde que Vasilissa partira, a madrasta e suas duas filhas não tiveram nem fogo e nem luz na casa. Quando elas batiam pedras ou aço, a estopa não acendia; e o fogo que traziam dos vizinhos apagava-se imediatamente ao cruzar os limites do seu terreno, de modo que elas não puderam iluminar a casa, aquecer-se, ou cozinhar algo para comer. Portanto agora, pela primeira vez em sua vida, Vasilissa sentiu-se bem-vinda. Elas lhe abriram a porta, e a esposa do mercador, sua madrasta, rejubilou-se ao descobrir que o fogo da caveira não se apagou tão logo fora trazido: — Talvez o fogo da bruxa resista — disse e levou a caveira para dentro do melhor quarto. Colocou-a sobre um castiçal e chamou suas duas filhas para admirá-la. Contudo, os olhos da caveira de repente começaram a brilhar e lampejar como carvões vermelhos e, para onde quer que as três se virassem ou corressem, os olhos as perseguiam, crescendo, ficando mais largos e mais brilhantes, até queimarem como duas fornalhas, quentes e mais quentes. Assim, a esposa do mercador e suas duas filhas perversas pegaram fogo e se reduziram a pó. Só Vasilissa, a Bela, fora poupada. Pela manhã, Vasilissa cavou um buraco profundo no chão e enterrou a caveira. Então, trancou a casa e partiu para a vila, onde foi viver com uma mulher idosa que era pobre e não tinha filhos. Assim ela permaneceu por muitos dias, esperando pelo retorno de seu pai do longínquo Czarado. Mas, sentido-se solitária, o tempo logo começou a arrastar-se mais e mais. Um dia, disse à velha senhora: — É tedioso para mim, vovó, sentar-me ociosa toda hora. Minhas mãos querem trabalho para fazer. Vá, pois, e compre para mim algum linho, o melhor e mais fino que possa ser encontrado, e pelo menos eu poderei fiá-lo. A velha apressou-se e comprou um pouco de linho do melhor tipo e Vasilissa sentou-se para trabalhar. Tão bem ela fiou que a linha saiu uniforme e fina como um fio de cabelo, e logo já havia o suficiente para começar a tecer. Porém, a linha era tão fina que nenhuma armação sobre a qual tecer pôde ser achada, nem nenhum tecelão concordou em construir uma. Desse modo, Vasilissa foi até seu armário, pegou a bonequinha de seu bolso, colocou diante dela comida e bebida e pediu por sua ajuda. Depois que ela comeu e bebericou um pouquinho, a bonequinha ganhou vida e disse: — Traga para mim uma armação velha, uma cesta velha e alguns cabelos da crina de um cavalo, e vou arranjar tudo para você. Vasilissa se apressou para trazer tudo o que a bonequinha pediu e, quando a noite chegou, rezou e foi dormir. Na manhã seguinte, achou uma armação pronta, feita perfeitamente para tecer suas linhas finas. Ela teceu por um mês; teceu por dois meses; por todo o inverno, Vasilissa teceu sua linha fina até que toda a peça de tecido ficasse completa, de uma textura tão fina que poderia ser passada, como um fio, pelo buraco de uma agulha. Quando a primavera chegou, ela branqueou o tecido, que ficou tão branco que nem à neve se poderia comparar. Então, disse à velha senhora: — Pegue esta peça de tecido e leve ao mercado, vovó, e a venda; o dinheiro que conseguir deve bastar para pagar por minha comida e alojamento aqui. Quando a velha senhora examinou a peça, porém, disse: — Eu jamais venderia tal tecido no mercado; ninguém deve usar isto exceto o próprio Czar, e amanhã levarei ao Palácio. No dia seguinte, como havia dito, a senhora foi ao esplêndido Palácio do Czar e decidiu ficar andando de um lado para outro, em frente às janelas. Os servos vieram perguntar-lhe o que desejava, mas ela nada respondeu, e continuou andando de um lado para o outro. Eventualmente, o Czar abriu sua janela e perguntou: — O que quer, senhora, já que veio até aqui? — Ó, Majestade, Czar… — respondeu a velha senhora. — Eu tenho comigo uma maravilhosa peça de tecido de linho tão espantosamente tecida que não mostrarei a ninguém além de vós! O Czar ordenou que a trouxessem diante de si e, quando viu o linho, foi acometido de grande espanto por sua beleza e delicadeza. — Quanto deseja por isso, velha senhora? — perguntou. — Não há dinheiro que possa comprá-lo, paizinho Czar[9] — ela respondeu. — Mas eu o trouxe como um presente para vós. O Czar não pôde agradecê-la o suficiente. Ele pegou o tecido e mandou- a para casa com muitos presentes valiosos. Costureiras foram chamadas para fazer camisas daquele tecido para ele; mas, quando o tecido foi cortado, era tão fino que não havia ninguém que fosse proficiente e habilidoso o suficiente para costurá-lo. A melhor costureira em todo o Czarado foi convocada, todavia não se atreveu a assumir a responsabilidade. Então, finalmente o Czar mandou chamar pela velha senhora e disse: — Se a senhora sabe como fiar tal tipo de linha e tecer tal tecido, deve também saber como costurar dele camisas para mim. A velha senhora respondeu: — Ó Majestade, Czar, não fui eu quem teceu a peça: este foi o trabalho de minha filha adotiva. — Então pegue o tecido — disse o Czar — e ordene-a que o faça para mim. A velha pegou a peça, trouxe-a para casa e contou a Vasilissa a ordem do Czar: — Bem, eu sabia bem que este trabalho teria de ser feito por minhas próprias mãos — disse Vasilissa e, trancando-se em seu quarto, começou a fazer as camisas. Tão bem e tão rápido ela fez o trabalho que logo uma dúzia de camisas estava pronta. Então, a senhora carregou-as para o Czar, enquanto Vasilissa lavou seu rosto, arrumou seus cabelos, colocou seu melhor vestido e sentou-se à janela para ver o que aconteceria. Em pouco tempo, um servo vestido com a farda do Palácio veio até a casa e, entrando, disse: — O Czar, nosso senhor, deseja ele mesmo ver a hábil costureira que fez essas camisas e recompensá-la com suas próprias mãos. Vasilissa levantou-se e foi imediatamente ao Palácio; logo que o Czar a viu, apaixonou-se por ela com toda sua alma. Ele a tomou por sua alva mão e a fez sentar-se ao seu lado. — Bela donzela… — ele disse. — Nunca vou me separar de vós; e vós deverás ser minha esposa. Assim, o Czar e Vasilissa, a Bela, se casaram. O pai dela retornou do longínquo Czarado; e ele e a velha senhora viviam sempre com Vasilissa em seu Palácio esplêndido, com toda alegria e contentamento. E quanto à pequena bonequinha de madeira, ela a carregou consigo em seu bolso por toda a vida.