O-DESEJO-PEDOFÍLICO-EM-CONTOS-DE-AUTRAN-DOURADO
O-DESEJO-PEDOFÍLICO-EM-CONTOS-DE-AUTRAN-DOURADO
O-DESEJO-PEDOFÍLICO-EM-CONTOS-DE-AUTRAN-DOURADO
O DESEJO PEDOFÍLICO EM
CONTOS DE AUTRAN DOURADO
Bibliografia: f. 96-98.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros -Unimontes,
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários/PPGL, 2019.
Agradeço ao Deus eterno, que esteve e sempre estará comigo, que colocou um
sonho no meu coração, me capacitou, me deu forças e direcionou meus passos para
conquistá-lo e aos meus pais, por estarem sempre ao meu lado.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — CAPES —
e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais — FAPEMIG — ao
financiarem, direta ou indiretamente, este projeto de pesquisa e os trabalhos produzidos
ao longo do mestrado.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários da Universidade
Estadual de Montes Claros por acreditar neste.
Ao professor Dr. Osmar Pereira Oliva por orientar os meus estudos desde a
graduação.
Muito obrigada!
“A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém ainda
pensou sobre aquilo que todo mundo vê.”
(Arthur Schopenhauer)
RESUMO
The present dissertation aims to analyze the pedophilic desire in short stories penned by
Autran Dourado. Our research is part of the deductive theoretical method of
bibliography, since it is an attentive reading accompanied by careful annotations that
will serve for the theoretical foundation of our study. The corpus consists of seven short
stories by Autran Dourado, being: “Mr. Moore”, “Às Seis e Meia no Largo do Carmo”
and “A Extraordinária Senhorita do País dos Sonhos”, from the book Armas e Corações
(1978), “Mulher Menina Mulher”, “Violetas e Caracóis” and “Remembranças de
Hollywood”, from the book Violetas e Caracóis (1987) and “Queridinha da Família
from the book As Imaginações Pecaminosas (1981). Our study will be based on
psychoanalytic and anthropological concepts on pedophilia, supported by the studies of
Sigmund Freud (2003, 2010), Carl Gustav Jung (1977, 1991, 2002) and Jacques Lacan
(1985, 2008). We will also discuss how pedophiles are seen before the law and what
penalties are provided for in the penal code and the Child and Adolescent Status (ECA)
for the crime of pedophilia. The research will present a discussion featuring theory,
criticism and psychoanalytic studies that involve pedophilia, contemplating the short
stories of Autran Dourado, corpus of this study.
KEYWORDS: Autran Dourado; Brazilian Literature; Minas Gerais' Literature;
Pedophilic desire; Short Stories.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 8
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 96
8
INTRODUÇÃO
Santo e o ginásio na cidade de São Sebastião do Paraíso. Em 1940 foi morar em Belo
Horizonte. Começou a cursar a Faculdade de Direito, ao mesmo tempo em que
trabalhava como jornalista e taquígrafo da Assembleia Legislativa. Sua estreia na
literatura deu-se com a novela Teia, em 1947. Autran mudou-se para o Rio de Janeiro,
em 1954, onde trabalhou como serventuário da justiça. A literatura de Autran Dourado é
formada de conteúdo quase sempre trágico, mas onde está presente um clima poético, e
suas personagens, em geral, são criaturas solitárias, tipos primitivos, figuras inadaptadas
à vida que as cerca. A novela Uma Vida em Segredo foi adaptada para o cinema, e o
romance Ópera dos Mortos foi escolhido pela UNESCO para integrar sua coleção de
Obras Representativas da Literatura Universal.
No primeiro capítulo, apresentamos os conceitos antropológicos e psicanalíticos
sobre pedofilia, e também uma reflexão sobre como esse assunto vem sendo abordado
na literatura, no cinema e nas artes em geral. Estudos de Sigmund Freud (2003; 2010),
Carl Gustav Jung (1977; 1991; 2002) e Jacques Lacan (1985; 2008) serviram de suporte
para a compreensão desse tipo de parafilia, a qual se dá pelo processo de formação do
consciente do indivíduo ainda criança. Neste capítulo também discutimos sobre o conto
“Queridinha da Família”, da obra As imaginações pecaminosas.
No segundo e terceiro capítulos, analisamos os contos das obras de Autran
Dourado — Armas e Corações e Violetas e Caracóis — nos quais o desejo pedofílico se
manifesta nos personagens masculinos. Os contos analisados no segundo capítulo são
“Violetas e Caracóis” e “A Extraordinária Senhorita no País dos Sonhos”, contos que,
de formas distintas, nos mostram como se dá o desejo pedofílico mediante a descrição
do perfil psicológico e das atitudes das personagens. No terceiro capítulo, analisamos
uma série de desastres ocorridos em virtude do desejo, como nos contos “Às Seis e
Meia no Largo do Carmo”, “Mr. Moore” e “Mulher, Menina, Mulher”.
CAPÍTULO I
serem livres para suas escolhas sexuais. Mas somente por volta de 1960 a 1980, tendo
como um de seus precursores o psiquiatra alemão Wilhelm Reich, que esses
movimentos de revolução sexual ou liberação sexual desafiaram a conduta social das
pessoas. O que antes era proibido, condenado e reprimido, começou a ganhar espaço de
maneira rápida, levando a “panela de pressão” de todos os desejos enrustidos a explodir.
A liberdade resultante propiciou não somente a quebra de tabus sobre assuntos sexuais,
como também acarretou diversos problemas. Os diferentes tipos de violência sexual
tornaram-se frequentes por toda a parte, sendo os maiores alvos mulheres e crianças.
Dentre esses problemas, a pedofilia se destaca como desvio de conduta, e o número de
abusos sexuais dessa natureza crescem cada vez mais desde a metade do século XX até
os dias de hoje.
Com tanta repercussão, o tema “pedofilia” começou a ganhar espaço de
comercialização. No cinema, diversos filmes, uns em forma de denúncia, outros não,
começaram a ser produzidos e nesse cenário configura-se um embate social, em que a
pedofilia fica entre a denúncia e a aceitação pelo viés da comercialização e da
industrialização. Essa exposição transformou-se numa cultura de massa, fazendo com
que o problema seja meio de retorno financeiro para os interessados em ganhar com tal
abordagem, sem interesse algum de incentivar o combate desse transtorno, o qual pode
gerar um tipo de violência sexual. Theodor Adorno e Max Horkheimer, no livro
Indústria Cultural e Sociedade (1951), argumentam que:
totalmente exposta, contracenando com homens que tinham o dobro ou o triplo da sua
idade, e que a idolatravam. A pequena atriz foi protagonista de vários filmes que, em
sua classificação, não eram considerados filmes infantis, e cujos títulos são bastante
sugestivos para analisá-los como transmissores de uma aceitação social da pedofilia.
Dentre eles, temos Olhos Encantados (1934), Queridinha da Família (1934), A Mascote
do Regimento (1935), A Pequena Órfã (1935) e A Pequena Princesa (1939) e também
vemos Shirley Temple em dois contos de Autran Dourado como representação do
desejo pedofílico que será discutido posteriormente. Além dessa ideia de aceitação da
pedofilia, o cinema também retratou o assunto de maneira bruta e violenta, como
podemos constatar nos filmes Um Olhar no Paraíso (2009) e A Serbian Film: terror sem
limites (2010). Ambos os filmes mostram a pedofilia como uma forma de violência
sexual seguida de morte, relatam a dor e o sofrimento e a desumanização do ser
humano. Porém, recentemente, com lançamento do filme Vazante, lançado em 2017 e
dirigido por Daniela Thomas, vemos, em geral, que o filme explora a solidão, as raças e
gêneros no Brasil colonial, contudo detectou-se a presença de um ato pedofílico em que
uma menina, ainda em sua pré-adolescência, é obrigada a se casar com um homem com
triplo de sua idade. No entanto, houve uma cena do longa que foi explorada de maneira
extremamente natural.
A cena é rápida, mas é marcada por uma grande carga de erotismo, é
protagonizada pelo o homem e a menina, ainda criança, e vemos claramente uma
relação pedófila entre os dois, mas a imagem do pedófilo passada é de maneira sutil sem
causar repulsas e julgamentos. A troca de olhares entre eles, a situação romântica a qual
eles se encontram deixa transparecer todo o jogo de sedução, porém não há um ato
sexual consumado entre os dois, no que dá a entender que não havendo uma relação
sexual permanece uma espécie de situação “saudável” e aceita socialmente.
Na literatura, temos a repercussão da famosa Lolita, de Vladimir Nabokov,
romance publicado em 1955, cuja história se baseia em um homem de meia-idade,
professor, que cria uma obsessão por Dolores (Lolita), uma menina de 12 anos. O
romance ganhou fama rapidamente e é considerado um dos clássicos da literatura do
século XX. Foi adaptado para o cinema em 1962 e 1967 e também para musicais e
teatro. Além de ser considerado um livro erótico, podemos classificá-lo como um
romance totalmente pedofílico. Além de Lolita, outras obras literárias abordam o
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Este trabalho tem por tema o desejo pedofílico nos contos de Autran Dourado. Em
algumas de suas narrativas curtas, o escritor aborda o desejo pedofílico, nas entrelinhas
do texto, mostrando uma realidade presente por toda a formação de nossa sociedade.
Nesses contos, contudo, o tema é tratado de maneira subjetiva e implícita ao mesmo
tempo. O interesse pelo tema surgiu após a leitura de um dos contos, onde o narrador
insinua que a personagem principal possui uma “alma pedofílica”. Diante dessa pista do
narrador, despertou-nos o interesse em abordar a temática nos contos, procurando
entender o porquê, e de que maneira o autor trata esse desejo delicado e complexo.
Quase todas as narrativas de Autran Dourado têm como cenário a cidade de
Duas Pontes, no interior de Minas Gerais. Nessa cidade imaginária, predomina a
sociedade patriarcal que preserva a moral e os bons costumes, e quase todos os seus
personagens se preocupam com essa conduta social. O desejo pedofílico nas narrativas é
exposto como uma luta interior que se transforma em temor e medo, a partir do
momento em que os personagens que nutrem esse desejo temem ser descobertos pela
sociedade. Além disso, buscar entender o interior e o que leva o ser humano a ter tais
desejos é bastante relevante no estudo, pois, por meio do texto literário, também
podemos compreender problemas sociais que estão presentes nas famílias ou próximos
a elas. Ainda não há uma crítica sobre a obra de Dourado em relação ao tema, então
propomos pensar seus personagens pelo viés psicanalítico, uma vez que há mais conflito
interior do que realmente a descrição da pedofilia seguida de abuso sexual.
Com base nos estudos psicanalíticos, a pedofilia deve ser estudada com um
pouco mais de atenção. Como já citado, a pedofilia se enquadra no ramo das parafilias,
um desvio da conduta sexual. Assim, temos um transtorno de preferência sexual. Em
artigo intitulado “Erotização dos Corpos Infantis, Pedofilia e Pedofilização na
Contemporaneidade”, Jane Felipe e Liliane Madruga Prestes apresentam o conceito de
parafilia de acordo com o Catálogo Internacional de Doenças – CID:
Para quem sofre desse transtorno, tais situações são excitantes, o que torna esse
comportamento recorrente. As fantasias manifestadas pelos indivíduos portadores
desses transtornos advêm do processo de abstração que eles retiram dos objetos que
desejam. Carl Gustav Jung, em seu livro Tipos Psicológicos (1991), explica essa
abstração de objeto (colocando-se no lugar do sujeito), afirmando que quando se assume
uma atitude
[…] abstrativa em relação ao objeto, não deixo que ele atue sobre mim como
um todo; tomo uma parte, que separo de suas conexões, e excluo as partes
que não interessam. Minha intenção é livrar-me do objeto enquanto
totalidade única e individual e só aproveitar uma parte. Evidentemente tenho
a visão do todo, mas não me aprofundo nesta visão; meu interesse não vai
para o todo, mas sai do objeto como um todo e volta para mim com a parte
escolhida, isto é, volta ao mundo de meus conceitos que já está pronto ou
constelado para abstrair uma parte do objeto (Só é possível abstrair do objeto
mediante uma constelação subjetiva de conceitos). Considero o interesse
como energia=libido que atribuo como valor ao objeto ou que este atrai
sobre si, eventualmente, contra minha vontade ou sem que eu esteja
consciente disso. Visualizo, portanto, o processo de abstração como a
retirada da libido do objeto, como um refluir do valor que abandona o objeto
para um conteúdo subjetivo e abstrato (JUNG, 1991, p. 385).
Portanto, o objeto como símbolo de perversão sexual não será totalizado pelo
indivíduo, o que interessa aqui é apenas a parte que se abstrai dele. A abstração desse
objeto é aquilo que é interessante para o indivíduo e, ao voltar para o consciente, a parte
escolhida faz com que o indivíduo desperte a libido para com aquele objeto. O portador
desse tipo de parafilia não controla seus desejos, pois não há consciência do desejo que
sente ao ver o objeto sem que este desperte o seu interesse. No caso do pedófilo, o
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Por meio dessas informações, o narrador nos deixa uma pista do que poderia ser
esse outro que ninguém sabia que poderia existir em Valdemar, mas, além da admiração
pelos Macedônios, foi a fascinação por Shirley Temple que fez com que Filgueiras
descesse de sua conduta moral e respeitável e fosse contra o que era até então, os seus
princípios e valores. Antonio Candido, discutindo o caráter da personagem de ficção,
afirma que:
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[…] a primeira ideia que nos vem, quando refletimos sobre isso, é a de que
tal fato ocorre porque não somos capazes de abranger a personalidade do
outro com a mesma unidade com que somos capazes de abranger a sua
configuração externa. E, concluímos, talvez, que esta diferença é devida a
uma diferença da natureza dos próprios objetos da nossa percepção[…]. Esta
impressão se acentua quando investigamos os fragmentos de ser, que nos são
dados por uma conversa, um ato, uma sequência de atos, uma afirmação,
uma informação. (CANDIDO, 1970, p. 55 e 56)
Ah, Shirley Temple das nossas aflições, das nossas alegrias, dos nossos
pecados![…] Ah quem vive hoje não pode saber o que era a emoção que
Shirley Temple provocava na tela e na plateia como mascote querida do
regimento colonial! Quem não apreciou ela cantar On The Good Ship
Lollipot, quem não chorou as mais sentidas lágrimas e não vibrou com
aquelas músicas todas, com todas aquelas histórias, não sabe de nada. Os
vestidinhos curtos, pregueados ou plissados, feitos especialmente para
facilitar a dança e mostrar as coxinhas, os passos corridos e aéreos. Ah, as
pernas e as coxas! Diziam os mais taludinhos e safados já no vício da
masturbação. Ah, as roupas depois imitadas, o uniformezinho do regimento,
os sapatinhos de verniz e pulseirinha, com chapinhas de ferro na ponta!
Diziam as comportadas meninas boazinhas de repente todas elas estudando
21
fantasias.
Todos nós somos propensos a desenvolver uma patologia que se enquadra no
grupo das parafilias, pois o processo de construção se dá em dimensões. A primeira
dimensão, que é a realidade na qual o sujeito se insere, está ligada ao mundo externo, às
regras e limitações às quais o sujeito é submetido e na qual se insere o objeto. A partir
do momento em que o indivíduo sofre uma espécie de corte, que geralmente ocorre na
infância, ele se vê impedido de ter aquilo que deseja, fazendo com que chegue ao
inconsciente de forma estimulante, de maneira que o desejo pelo que é proibido seja
ainda maior. O inconsciente, portador da bolha, faz com que se teça uma luta entre o
desejo e a realidade, sendo essa a segunda dimensão. Por fim, a terceira dimensão é
onde ocorre a perturbação do que foi cortado e do que é desejado. A terceira dimensão,
onde se criam as fantasias e os fantasmas, faz com que o indivíduo desperte dentro de si
uma obsessão por aquilo que lhe foi cortado. Quando esse mesmo indivíduo não
consegue se desvencilhar e administrar essas dimensões, nem reconhecer o limite delas,
deixando com que esses fantasmas saiam rompendo a barreira dos limites do
inconsciente, forma-se assim o distúrbio psíquico, tornando-se um perverso, quebrando
as regras sociais, surgindo, assim, o ser que deturpa, no caso em questão, o pedófilo.
Os pedófilos induzem as crianças e ganham a sua confiança com o intuito de se
satisfazerem sexualmente e, na maioria das vezes, esses impulsos causam sofrimento e
tormento para o seu alvo. As cargas emocionais trazidas da infância contribuem para a
formação do sujeito pedófilo. Ao descobrir sua sexualidade, a criança está sujeita a
novas descobertas do seu próprio corpo e do corpo do outro. O interesse pelo corpo do
outro incita, geralmente, repreensão daquela curiosidade que não pode ser saciada. Os
bloqueios sexuais sofridos quando criança podem acarretar transtornos psíquicos
ligados à sexualidade na fase adulta.
Filgueiras perdeu a sua postura de dominador e assumiu a função de dominado,
ele não mais controlava os seus impulsos e queria apenas satisfazer o seu desejo, que
era entregar-se totalmente aos encantos de Shirley Temple. Comprou todas as fitas, não
saía do cinema, fez com que todas as meninas da cidade se vestissem idênticas à
princesinha de Hollywood, fabricou várias Shirleys e “[…] como tinha muito dinheiro
foi fácil para ele interessar toda a cidade na incrível figurinha de Shirley Temple […]” (
DOURADO, 2005, p. 41).
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O desejo pedofílico neste conto é bastante perceptível, tendo como base as ações
de Valdemar Filgueiras. Vemos que ele só começa a viver de novo ao se “apaixonar”
pela garotinha, e ao adotar essa postura ridícula perante a sociedade, começou a viver
cercado de meninas,
uma proximidade com o pai, o menino sente raiva do pai e quer tirá-lo de sua mãe,
caracterizando, assim, uma espécie de paixão. Para o rompimento da ligação incestuosa,
é necessário que ocorra uma espécie de castração. O complexo da castração foi
percebido por Freud a partir de uma análise feita em um caso de fobia em um menino de
cinco anos.
Freud (2006a) especificou esse processo em quatro momentos, momentos estes
que são vividos pelo menino em relação à mãe e, posteriormente, com a menina em
relação ao pai. No primeiro momento da castração, o menino descobre que ele tem o
pênis e pressupõe que todas as pessoas também tenham. A menina, por sua vez, nesse
primeiro momento, também parte da premissa de que todas as pessoas têm um pênis, e,
para ambos, a mãe cumpre um papel muito importante na vida deles. É importante
ressaltar que todo o processo de castração ocorre em prol da formação do inconsciente.
No segundo momento de castração, o menino sofre uma espécie de ameaça, pois não
pode substituir o pai e recebe punições e proibições, construindo a ideia de que se
continuar a manter esse tipo de desejo e tendo certos comportamentos, será castrado em
forma de castigo. Já no caso da menina, esse segundo momento se dá pela descoberta da
diferença. Assim que ela percebe que o clitóris é pequeno demais para ser um pênis,
deduz que já passou pelo processo de castração e deseja que não tivesse ocorrido isso, e
passa a sofrer pela falta. No terceiro momento do complexo da castração, o menino vê
que há uma diferença entre homens e mulheres, elas não têm o mesmo que eles, fazendo
assim uma associação de que a menina foi castigada, ou seja, já passou pela castração.
Na menina, no terceiro momento, ela descobre a sua semelhança com a mãe e a
culpa por ter transmitido a ela essa deficiência. No quarto e último momento, ocorre a
angustia no menino, pois ele vê que sua mãe não tem pênis e deseja ser como ela — a
menina não tem esse quarto momento, pois já se dá no terceiro momento essa castração,
mas ao invés de querer ser igual à mãe, ela a culpa por não ser igual ao pai.
Após passar por todas essas etapas, a menina poderá seguir três caminhos
diferentes: a aceitação de não possuir o pênis e manter-se afastada da sexualidade, ou a
inconformação de não ter um pênis e a não aceitação da castração, o que possibilita,
mais tarde, levá-la à homossexualidade, sendo essa a solução para o complexo de
castração. Há uma aceitação da falta, ela transfere a paixão pela mãe para o pai, assim a
vontade de ter o pênis se transforma no desejo de apenas tê-lo para relações sexuais.
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[…]Ainda uma vez tudo lhe acontecera de repente na vida. Como aquela
noite em que o destino o levou o Cinema Odeon e ele descobriu Shirley
Temple. Estava Valdemar Filgueiras sentado num banco na academia,
quando veio sentar junto dele a menina mais velha e por sinal a mais
parecida com a artista. Tinha não só o vestido e o penteado, mas o queixo, os
olhos, as sobrancelhas – até covinha na cara possuía -, iguaizinhos aos da
princesa. Era a Elvirinha, filha de seu Gabriel de Sousa, dono de um
armarinho de miudezas na Rua de Cima, antigo administrador de uma das
fazendas do coronel Tibúrcio. Vinha cansada e ofegante, se deixou cair junto
de Valdemar Filgueiras.
Valdemar sentiu o quentume que evolava da menina, o cheiro ardente de
suor novo, a respiração de pomba. O gogó de Valdemar Filgueiras subiu e
não desceu, mesmo em seco não conseguia engolir. Os olhos vítreos, o
coração desgovernado, as mãos trêmulas. Num curto espaço de tempo um
tempo enorme se passou. O gogó de Valdemar Filgueiras agora subia e
descia apressadamente, ele achava que ninguém podia vê-lo. A mão trêmula
foi deslizando pela casimira da calça até encontrar a pequenina, quente e
suada mão de Elvirinha. Encontrou-a, e ela sedutoramente não a retirou. Os
dois ficaram de mãos dadas durante o resto do ensaio. E assim foi no dia
seguinte, e no outro.
A felicidade de Valdemar Filgueiras durou pouco. Uma tarde, quando era
mais forte a canícula, entrou em sua sala no banco (naquela mesma sala
fatídica onde ficava agora o relógio-armário e onde morrera Vítor
Macedônio) o jagunço Xambá e lhe desfechou seguidamente três tiros no
peito. (DOURADO, 2005, p. 43 e 44)
Este trecho nos deixa bem claro sobre o desejo pedofílico expresso por
Filgueiras, e a ideia de que tenha aflorado nele tal sentimento torna-se latente ao vermos
que o impulso de tocar na menina foi bem mais forte do que ele. Essa reação permite-
nos interpretar que ele sentiu algo bem mais do que uma admiração pela menina. Ao
descrever as características de Elvirinha, o narrador enfatiza o desejo erótico que fez
com que Filgueiras perdesse o juízo. Para ele, era a princesinha de Hollywood que
estava vendo. O queixo, as covinhas, o suor novo e ardente da menina deixam claro que
o interesse dele por ela ia além do que uma simples admiração.
Freud aponta que a “[…] neurose perturba de algum modo a relação do paciente
com a realidade servindo-lhe de um meio de se afastar da realidade, e que, em suas
formas graves, significa concretamente uma fuga da vida real” (FREUD, 1969, p.229).
A neurose vai se expressar na reação contra a repressão e quando esta tiver sido
fracassada. Os que não conseguem romper com esses transtornos e repressões oriundas
da infância virão a ter sérios danos e doenças psicológicas que normalmente se
desenvolverão na vida adulta. Assim, o indivíduo vive uma luta constante entre o seu
mundo interno contra o mundo externo. O pedófilo sofre de transtornos psicológicos
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que necessitam de tratamento. As ações que geram a pedofilia podem levar o indivíduo
a cometer crimes e violências contra crianças, mas não podemos afirmar ou concluir
que um pedófilo seja somente um criminoso ou um doente, temos apenas fatores que
explicam as causas das perversões sexuais.
O narrador nos deixa claro que a atitude da menina foi sedutora, o que nos dá a
ideia de que ela também procurou tal envolvimento e que o encontro dos dois tornou-se
diário. Por meio de tais pistas e pelo envolvimento amoroso dos dois, temos o desfecho
trágico de Filgueiras, que foi a sua morte. A morte do nosso fanático Filgueiras não
encerra e não acaba com nossas perguntas, não se sabe se a sua perda de juízo foi quem
deu fim à sua felicidade. Mas Autran Dourado, em sua sutileza e sua arte em dominar as
palavras, não poderia deixar tudo explícito ao leitor, pois o que é implícito nos autoriza
interpretar que a personagem se envolvera sexualmente com uma criança. E que poderia
ter sido o pai dela que contratara o jagunço Xambá para pôr fim a esse hediondo crime
de violência contra a ingênua infância, conforme a lei do Estatuto da Criança e
Adolescente — ECA, no art. 217, que pune o indivíduo que pratica ato sexual contra
vulnerável.
Podemos perceber também em Valdemar Filgueiras sua dupla personalidade. Na
teoria de JUNG (1991), persona é a personalidade que o sujeito apresenta aos outros,
como real, mas na verdade é uma variante muito diferente da verdadeira. Para
entendermos melhor sobre persona, é preciso refletir sobre o que Jung discute em
relação ao indivíduo extrovertido e o introvertido. Segundo Jung:
O extrovertido não tem dificuldade em sua expressão pessoal, faz valer sua
presença quase involuntariamente, pois, de acordo com sua natureza, tende a
transferir-se para o objeto. Gosta de entregar-se ao mundo que o rodeia e
necessariamente de forma compreensível e, por isso, aceitável. O
introvertido, ao contrário, que, em princípio, só reage internamente, não
exterioriza, normalmente, suas reações (com exceção das explosões
afetivas). Ele cala suas reações que, no entanto, podem ser tão rápidas
quanto as do extrovertido. Elas não aparecem e, por isso, o introvertido dá a
impressão de ser lento. Pelo fato de as reações imediatas terem sempre forte
caráter pessoal, o extrovertido não pode fazer outra coisa do que deixar
transparecer sua personalidade. O introvertido, porém, esconde sua
personalidade ao calar suas reações imediatas. Não procura a empatia ou a
transferência de seus conteúdos para o objeto, mas a abstração do objeto
(JUNG, 1991, p. 310).
sua personalidade. O que ele transfere para o objeto não tem um filtro de controle, para
o que é de valor e para o que não, e suas atrações, pensamento e afetos são
exteriorizados de forma rápida. Por essa razão, tudo se torna simples, pois não há uma
elaboração de conteúdo, tudo o que é produzido de imediato é bem recebido pelo
público. Já o introvertido é o tipo de indivíduo que, no lugar de exteriorizar suas
reações, prefere guardá-las no íntimo e só manifestar-se quando julgar ser a hora certa.
Seus conteúdos não são entendidos, porque não há deixas de sua personalidade, visto
que ele tenta ao máximo abstrair sua personalidade do mundo externo.
É evidente que não se pode afirmar que todo indivíduo introvertido irá
manifestar várias personalidades, mas existe uma possibilidade de uma dissociação de
personalidade e uma divisão de caráter. Sobre essa divisão, JUNG (1991) afirma:
A reflexão sobre a citação acima leva-nos a concluir que, mesmo uma pessoa
considerada normal, não está livre de assumir diferentes personalidades, em contextos
diferentes e, portanto, a dissociação da personalidade deve ser compreendida e estudada
a partir de elementos psicológicos que o indivíduo fornece e que podem ser observáveis
de acordo com um padrão pré-estabelecido daquilo que é considerado normal ou
anormal. As pessoas que têm dissociação de personalidade, ou ainda dualidade de
caráter, enganam os outros e, principalmente, a si mesmos sobre seu verdadeiro caráter.
Esses indivíduos vivem de máscaras; para cada ambiente, uma máscara diferente. Jung
denomina essa máscara de persona, pois era esse nome que designava as máscaras
usadas pelos atores de antigamente. O psicólogo ainda acrescenta que: “A persona é,
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um dos distúrbios sexuais que pode ser gerado desde a infância. Tanto a vítima quanto o
agressor sofrem por causa desse impulso sexual, e ambos necessitam de compreensão e
de cuidados psicológicos para a sua saúde mental.
Nos próximos capítulos, continuaremos nossas análises de como o desejo
pedofílico se manifesta em outros contos de Autran Dourado: “Remembranças de
Hollywood”, “Violetas e Caracóis”, “A Extraordinária Senhorita do País do Sonho”,
“Às Seis e Meia no Largo do Carmo” “Mr. Moore” e “Mulher Menina Mulher”.
CAPÍTULO II
A EXPRESSÃO DO DESEJO
PEDOFÍLICO NOS CONTOS DE
AUTRAN DOURADO
34
Autran possui uma refinada arte de narrar, utilizando a técnica do discurso livre
sem, contudo, alterar a norma culta da língua. Além dessa peculiaridade que enriquece
sua narrativa, Dourado utiliza as memórias e os sentimentos como matéria-prima para
construir suas histórias. Esses sentimentos e essas memórias possuem uma marca
psicológica que vai além de um simples interiorano. Eneida Maria de Souza, em seu
livro Autran Dourado (1996), pontua as semelhanças entre a escrita de Autran Dourado
e as de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, afirmando que “Autran comporá, ao lado
de Guimaraes Rosa, um universo ficcional mítico, no qual a história passa a ser regida
pela natureza espiralada do tempo” (SOUZA, 1996, p. 20). João Luiz Lafetá, em seu
ensaio “Uma Fotografia na Parede” (2004), declara que “Autran Dourado é também um
contador de ‘assombros e anedotas’, um cronista dos anais do vento, um noveleiro
atento para sabedoria e disparates popular […]” (LAFETÁ, 2004, p. 29). Lafetá, nesse
mesmo ensaio, discute que essas personalidades “[…] é [são ]” muitas vezes o disfarce
do
35
‘espírito de Minas’, que encobre loucuras e ‘quarta feirices’ […]” (LAFETÁ, 2004, p.
29). No decorrer do ensaio Lafetá diz que Autran Dourado dever ser estudado
psicanaliticamente, pois sua escrita mostra o tempo inteiro um estilo fosco e contido e
que expressa angústias. Ele ainda afirma que Autran é um escritor sempre atormentado,
o que faz com que suas obras sejam escritas de maneira meio psicológica e meio
metafísica, centrando seus conflitos internos. O que Autran passa para sua escrita serve
[...] também para exprimir uma vivência local da cidade onde ‘ puxar
angustia” era prática existencial e literária, cotidiana, de jovens que se
sentiam emparedados, nem tanto pelas montanhas de Minas, mas pela
rigidez moral daqueles tempos de tradicional família mineira”
(LAFETÁ, 2004, p.31).
No decorrer do seu ensaio, Lafetá diz que em Autran vimos a solidão, a loucura,
o sufoco da vida, a culpa e a morte, constante em suas obras, como por exemplo no
conto “Violetas e Caracóis”, que analisaremos posteriormente. Ao falar sobre o conto,
Lafetá diz mais uma vez que, o conhecimento da psicanalise é um aspecto
importantíssimo na obra de Autran, que sabe manejar com a perícia e a delicadeza de
artista fazendo todos os símbolos e imagens transformarem em beleza enigmática. Em
“Violetas e Caracóis” Autran retrata a volta da luz da razão para
Ah, Shirley Temple das nossas aflições, das nossas alegrias, dos nossos
pecados![…] Ah, quem vive hoje não pode saber o que era a emoção que Shirley
Temple provocava na tela e na plateia como mascote querida do regimento colonial!
Quem não apreciou ela cantar On The Good Ship Lollipot, quem não chorou as mais
sentidas lágrimas e não vibrou com aquelas músicas todas, com todas aquelas
histórias, não sabe de nada. Os vestidinhos curtos, pregueados ou plissados, feitos
especialmente para facilitar a dança e mostrar as coxinhas, os passos corridos e
aéreos. Ah, as pernas e as coxas! Diziam os mais taludinhos e safados já no vício
da masturbação. Ah, as roupas depois imitadas, o uniformezinho do regimento, os
sapatinhos de verniz e pulseirinha, com chapinhas de ferro na ponta! Diziam as
comportadas meninas boazinhas de repente todas elas estudando música e dança
com dona Ordália (DOURADO, 2005, p. 11, grifo nosso).
família”, que foi analisado no capítulo anterior. Essa mesma passagem encontra-se em
contos distintos e em livros diferentes. No conto em questão a queridinha da família é
vista como responsável por todos os sentimentos que eram despertados em quem assistia
as suas fitas. Não havia como decifrar a emoção sentida pelo público (principalmente
masculino), as belas sensações que aquela menina fazia emergir. Shirley Temple é uma
criança que acaba sendo erotizada e, ao ser descrita pelo narrador, ressaltam-se as
características que causavam prazer, a ponto de levar seus espectadores a se entregarem
ao vício da masturbação, são enaltecidas. A ousadia dos vestidos curtos usados pela
personagem de Shirley Temple, deixando à mostra pernas e coxas, despertava prazer,
fazendo desaparecer a figura da criança inocente e dando lugar a uma imagem
sensualizada. Todas as novidades cinematográficas recém-chegadas a Duas pontes são
vivenciadas pelo escritor João da Fonseca Nogueira1, conforme descrito no final dessa
narrativa:
Tudo isso foi Hollywood na meninice do escritor João da Fonseca Nogueira. Como
recuperar o tempo e reviver? Como voltar à mítica Duas Pontes, submersa pelas
areias do tempo? É bom não forçar a mão por causa das coronárias. Tudo passou, só
isso, nunca mais (DOURADO, 2005, p. 13).
Várias narrativas e histórias foram contadas por João da Fonseca Nogueira nos
contos de Autran, e algumas dessas histórias nos revelam o desejo pedofílico das
personagens, abarcando o aspecto psicológico e os conflitos interiores que fazem com
que a explicitação desse desejo seja a causa da danação dos que não conseguem
controlar seus impulsos sexuais.
1 João da Fonseca Nogueira é uma figura recorrente na obra autraniana, pode-se dizer que ele se
enquadra como o alter ego de Autran em suas narrativas.
38
ataques de histeria, que a levam a ter crises de risos. O gênero conto apresenta dois
planos de histórias, a história 1, que é o visível e o que norteia o tema da narrativa, e a
história 2, que é a que se encontra nas entrelinhas da história, ou que vai surgindo de
acordo com o desenrolar da primeira história. Sobre o conto, Ricardo Piglia, em Formas
Breves (2004), explica:
aquele que só transmite pelo narrar a informação, visto que escreve não para narrar a
ação da própria experiência, mas o que aconteceu com x ou y em tal lugar e tal hora”
(SANTIAGO, 2002, p. 40). E é esse narrador jornalista que vemos na narrativa de
Autran:
[…] a gente depois ficou sabendo de tudo através do Mané Canhoto, ele tudo viu e
presenciou, só não escutando o que o médico falou para Luizinha lá nas alturas.
Como não sabia da conversa que depois se deu no quarto entre o médico, dona
Clementina e o major Porto. Muito menos foi do conhecimento da gente o diálogo
Luizinha – dr. Viriato, no quarto. A gente teve de imaginar […] (DOURADO, 2005,
p. 190).
AINDA MENINA LUIZINHA PORTO (por que o diminutivo, se sempre foi uma
criança desenvolvida?) era triste, fechada e solitária. Mais tarde, já mocinha, ela
teria amigas e seria chegada ao riso. Apesar de que o seu riso era agudo e estridente,
tinindo feito ferido cristal, tímpano ou prata (DOURADO, 2005, p. 171).
Como já apontamos, o narrador sabe muita coisa, mas não sabe tudo sobre as
personagens, e isso fica evidente nesse excerto, pelo uso dos verbos no futuro do
pretérito “teria”, “seria”, provocando o efeito hipotético, dedutivo. No trecho anterior a
este, o que o narrador soube foi intermediado por outra pessoa, o Mané Canhoto, o
mais, teve que imaginar. Podemos perceber que, mesmo menina, Luizinha Porto já se
apresentava bastante desenvolvida para a idade que tinha. O narrador nos apresenta esta
característica da personagem ao ironizar o uso do diminutivo para nomear Luiza:
Luizinha, apelido que não se encaixava ao físico desenvolvido da criança. Ninguém
imaginava que a menina triste e sossegada viria a ser a mocinha eufórica, com risadas
altas, sem nenhum pudor. Apesar de viver em uma época em que as crianças não eram
percebidas pelos adultos, Luizinha começou a receber a atenção da avó, que insistia em
dizer aos pais que a menina era doente, pois frequentemente sentia dores de cabeça e
ataques de nervos. Porém, os pais da menina não confiavam nos remédios naturais
feitos pela avó Georgina, “[…] com seu olho clínico, certa na mezinha caseira, infalível
nas simpatias […]” (DOURADO, 2005, p. 171).
Levaram Luizinha para os cuidados do Dr. Alcebíades, que “[…] não achou
nada demais na menina. Esquisitice de criança arredia, disse na sua modesta ciência”
40
[…] Luizinha Porto foi crescendo não só em sabedoria mas no corpo. Sua
precocidade era não só intelectual, mas física também – num instante virou moça
feita. Quem olhava para ela dizia que Luizinha tinha dezoito ou dezenove anos,
quando na verdade não passava dos catorze (DOURADO, 2005, p. 173).
Neste trecho, o narrador nos mostra que, apesar de ainda ser uma menina,
Luizinha já tinha corpo de mulher, o que já era notado por todos na cidade, pois
aparentava ter uma idade que não tinha.
Até aqui, temos uma história em primeiro plano, tida como historia 1, que é a
base visível do conto: a vida meio conturbada de Luizinha Porto, com seus problemas
de saúde e com seus nervos à flor da pele. Mas, como já exposto, um conto não se
mantém apenas na superfície. A história 2, ou seja, o segredo que é necessário ser
revelado ao final ou no decorrer do conto, começa a aparecer sutilmente na narrativa.
Piglia (2004), ilustrando com Jorge Luis Borges, afirma que:
41
Charles Kiefer, em A Poética do Conto (2011), diz que “[…] para a contista
Elisabeth Bowen, um história, se é para ser uma história, precisa ter um instante de
transformação psicológica” (KIEFER, 2011, p. 45). No conto “Violetas e Caracóis” não
é diferente. Para manter essa estrutura clássica, colocada por Piglia e Kiefer,
acontecimentos sutis começam a surgir na narrativa de Autran, nos revelando o oculto, e
confirmando o que Piglia afirma em seu texto sobre a finalidade do conto: “O conto é
construído para revelar artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre
renovada de uma experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida,
uma verdade secreta” (PIGLIA, 2004, p. 94).
A história 2, ou seja, o tema oculto em "Violetas e Caracóis" é o
desencadeamento do desejo pedofílico por parte dos médicos Dr. Alcebíades e Dr.
Viriato em relação a Luizinha Porto. A precocidade da menina que, aos catorze anos, já
possui um corpo sensual e chamativo de mulher, vai trazendo esse desejo à tona,
revelando a inquietude dos médicos. De acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant,
espaço em seu Dicionário de Símbolos, a violeta significa “cor da temperança, de
lucidez e de ação refletida, de equilíbrio entre a terra e o céu, também é vista como a cor
do segredo: atrás dela realizar-se-á o invisível mistério da reencarnação ou, da
transformação” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1999, p.960). Já o caracol, ainda de
acordo com Chavalier & Gheerbrant (1999) é o “símbolo lunar, indica a regeneração
periódica, e do mesmo modo que os moluscos em geral, o caracol apresenta um
simbolismo sexual: analogia com, matéria, movimento e mucosidade. Entre os astecas,
o caracol simbolizava comumente a concepção, a gravidez e o parto” (CHAVALIER &
GHEERBRANT, 1999, p. 186). Potanto o tema oculto já estaria prenunciado no título
do conto e é desvendado ao leitor no decorrer da narrativa.
Após uma crise de risos histéricos, em um baile da cidade, Luizinha Porto sofre
um desmaio e é atendida pelo Dr. Alcebíades – médico respeitoso, de boa conduta e
querido por todas as famílias de Duas Pontes. Apesar de ser inteligentíssimo e de ter
grande conhecimento de medicina, ele não consegue achar na menina nenhum problema
neurológico grave, afirmando que deveria ser apenas uma crise de nervos. Logo, o
42
médico sugere que ela faça jardinagem, porém a menina não se continha ao ver as
plantas morrerem e se agitava ainda mais. Como o problema da garota não se resolveu
com a atividade de jardinagem, ela volta ao consultório. Contudo, sua inteligência
desperta no Dr. Alcebíades um sentimento de incômodo, um certo desejo por aquela
menina:
[…] você é delicada como uma violeta, disse o dr. Alcebíades, a voz rouca e
trêmula feito suas mãos pálidas, os dedos compridos e brancos, débeis. […]
O coração lhe batia incontrolável no peito, como em plena crise cardíaca.
Olhou o belo rosto da adolescente em idade, no corpo já mulher. Os olhos
brilhantes, profundos, o sorriso ambíguo. […] De repente tudo ameaçava
ruir. A máscara que de tanto usar se colara à pele ameaçava soltar, cair.
Detrás dele podia surgir um ser fantasmal, vindo de outras eras, que tomara
conta do seu frágil corpo e fazia estremecer o inseguro coração. Como se
fosse não ele mesmo mas um outro, um outro terrível e estranho habitante
das trevas […] (DOURADO, 2005, p. 180-181).
O médico Alcebíades passa alguns momentos lutando contra essa sombra, com
pensamentos voltados para si mesmo, os quais o escravizam. Para se livrar desses
pensamentos e desse outro que o faz escravo,
O dr. Alcebíades desviou os olhos dos olhos que para ele eram
44
O Dr. Alcebíades não podia deixar o Dionísio que existia dentro de si se revelar.
Ao conseguir livrar-se da sombra do outro, o médico justifica seu devaneio com a ideia
de que a menina poderia cultivar violetas para ver se ela, enfim, acalmaria os nervos e se
distrairia de suas crises histéricas. A menina, entusiasmada com a ideia do médico,
enche-o de perguntas sobre o cultivo da flor, fazendo o outro desaparecer. A proposta do
cultivo de violetas fez com que Luizinha encontrasse no seu tratamento um sentido para
sua própria vida. As violetas tornaram-se a sua paixão, um verdadeiro auxílio para as
suas crises de histeria, além dos calmantes que já tomava. Os pais de Luizinha ficaram
entusiasmados, esperançosos de que o cultivo das flores ajudasse a filha a melhorar seu
comportamento. “[…] Ela porém se comportava diferentemente de todas as outras
moças conhecidas. O interesse limitou-se e se circunscreveu exclusivamente à família
das violáceas.[…]” (DOURADO, 2005, p. 182-183).
A violeta representa a calma, a pureza, a dignidade de menina, uma alma
celestial:
45
[…] a mesma flor que Luizinha, com os olhos melosos e mornos, sonhosos,
chamava de viola odorata. Porque essas palavras estavam para ela carregadas
de sentido e transportavam a regiões etéreas celestiais. Luizinha Porto era
um coração disponível, uma alma de genovês acorrentado: os olhos fitos no
azul, fascinado pelo que fica mais distante. […] Conforme lhe prometera, o
dr. Alcebíades trouxe para ela um vaso de violeta africana. […] era uma
violeta branca, com as bordas lilases, os pistilos amarelos (DOURADO,
2005, p. 183).
p. 184).
Para o Dr. Alcebíades, as visitas constantes da menina em seu consultório
estavam tornando-se insuportáveis, pois a atração que sentia por ela já estava quase
impossível de controlar. A presença dela lhe atordoava; ao olhar para ela, tinha fantasias
que somente a cabeça dos mais pervertidos poderia interpretar. Em outro episódio, em
que esteve a sós com Luizinha, o médico ficou totalmente alterado e inquieto, e fez com
que ela fosse embora rapidamente dali. Passado o sufoco, sozinho no consultório, ele
volta à antiga calmaria e retoma a “[…] máscara do antigo, santo, íntegro e bom dr.
Alcebíades Silveira, usada durante toda uma vida. […]” (DOURADO, 2005, p. 186). O
médico sentia
Aqui, o desejo pela menina torna-se explícito; o médico precisa se afastar de sua
paciente para não cometer um ato criminoso. Tudo nela o provocava, os olhos e
principalmente o corpo. Ao longo de toda a narrativa, é perceptível a contradição entre
o corpo e idade da personagem; corpo de dezoito, mas catorze anos de idade, mostrando
para o leitor a impossibilidade do médico em satisfazer sua vontade e a sua dificuldade
em controlar o outro. Por isso, o melhor jeito era livrar-se da paciente para não se
perder. Assim foi. Em uma crise de Luizinha, que nem ele conseguiu resolver, disse aos
pais que o que ela carecia era de outro médico, um médico que entendesse os artifícios
da psiquiatria. Assim sendo, e com muita resistência, os pais da menina mandaram
chamar o Dr. Viriato, o médico sem nenhum pudor, conhecido pelas famílias de Duas
Pontes como alguém que, apesar da inteligência, não era um exemplo de conduta e
honra.
O tratamento com o Dr. Viriato resumia-se a sessões de hipnóse. Com o tempo,
ela disse ao médico que enjoara do cultivo de violetas. O médico receita a criação de
47
O Dr. Viriato começa a desejar Luizinha Porto, sem nenhum receio em imaginar
e em fantasiar a garota de maneira a se satisfazer sexualmente. Enquanto a incentiva a
criar caracóis, desejava-a incessantemente, jurando mais tarde ir sanar seus desejos com
as mulheres da casa da ponte.
A figura do outro em Dr. Viriato é constantemente notada. Ao vermos esse outro
pecaminoso, voltado para uma menina, apesar do corpo de mulher, o desejo pedofílico é
exposto; contudo, até então, ele conseguia lidar com a situação e não se sentia
incomodado com a presença de Luizinha, tampouco com o desejo proibido.
Uma noite, Luizinha tem um novo surto de sonho e realidade: seu inconsciente
começou a intercalar as figuras das violetas do Dr. Alcebíades e os caracóis do Dr.
Viriato. O homem sem face lhe aparece com uma violeta na mão e, atordoada, ela sai
pela rua, à noite, ao encontro do Dr. Viriato: “[…] Se vestiu de um vestido preto
abotoado na frente de cima a baixo. Nua sob o vestido, ela caminhou sonambúlica […]”
48
[…] ele se aproximou mais dela e ela percebeu que o excitava, um forte
amor tomava conta dele. Ela poderia ser sua. Ele a tomou nos braços, lhe
beijou com ternura. Ele lhe desabotoava o vestido desajeitadamente,
tremulamente, ela o ajudava. Ele a viu nua e agora lhe beijava os seios, o
ventre, as coxas, que ela afastava instintivamente mulher. Foi então, quando
depois ele voltou para lhe beijar a boca, que o ataque de rigidez histérica se
deu. O dr. Viriato cuidou de despertá-la, lhe chegando um vidro de amônia
no nariz. Depois que ela voltou a si, medicou-a com uma forte dose de
valeriana e passiflora incarnata. Ele levou-a para casa, amparando-a. Ela
estava tonta e vacilante, não dava muito acordo de si. É capaz de que pelo
efeito do remédio, não ouviu as palavras ternas que ele lhe disse quando a
deitou no canapé de palhinha da casa do major Porto (DOURADO, 2005, p.
214,).
Naquela noite ela teve um sonho terrível. Tinha a certeza de que daquele dia
em diante não teria mais ninguém para lhe interpretar os sonhos. Com sua
gosma nojenta um caracol babujava uma gigantesca pétala de violeta, as
bordas vermelho-sangue (DOURADO, 2005, p. 214).
Teteu Mão de Onça, era filho do coronel Aristóteles Armond Silveira e Evangelina
Montserrat Silveira, uma família tradicional de Duas Pontes, onde ninguém imaginaria
que algo escandaloso pudesse acontecer. A narração gira em torno do que foi a perdição
e decadência do invencível brutamontes:
Aristeu não era um homem comum. Muito nervoso e agitado desde pequeno, era
filho único do coronel Tote. Sempre teve tudo o que desejou, mas não passava
despercebido pelas correções violentas do pai. O nome Aristeu é de origem grega, e
deriva da palavra àristos, que significa o que é melhor, aquele que se distingue, sendo
muito conhecido na mitologia grega como o protetor dos caçadores. As características
externas de Aristeu são de homem feito, tinha o respeito de todos, fazia jus ao
significado de seu nome, se distinguia de todos os outros e era absoluto na região por
seu temperamento muito forte e violento.
O temperamento do indivíduo está intimamente ligado ao processo de
construção do caráter e ao desenvolvimento da personalidade, estando também
vinculado aos tipos psicológicos. O temperamento está ligado à personalidade como
uma característica de herança genética que influencia de maneira significativa o sistema
nervoso, aspecto muito importante para o desenvolvimento da personalidade. Eugen
Bleuler, em seu livro Tratado de Psiquiatria (1971), afirma que não existe um âmbito
das personalidades independentes e que a nossa personalidade é intensamente
susceptível de ser modelada, mesmo que em diferentes graus (BLEUER, 1971). Assim,
o nosso temperamento diz muito a respeito do nosso modo de ser. Bleuler também
destaca o efeito das vivências infantis precoces, responsáveis por configurar e
determinar o desenvolvimento da personalidade, fazendo com que, apesar de terem
funções e significados diferentes, sejam fundamentais na construção da personalidade e
51
Nesse conto, o Complexo de Édipo faz-se presente na relação entre mãe e filho.
Lacan, em O Seminário: livro 5: as formações do inconsciente (1999), relaciona o édipo
à noção de constituição psicológica do indivíduo, sendo ele — o édipo — um dos
fatores que determinam o desejo e a falta. Como já exposto anteriormente no primeiro
capítulo, o Complexo de Édipo é formulado por três tempos lógicos, apontados para
diferentes relações com o campo do outro e com a castração. Quando não ocorre a
superação desses três momentos, não há uma ruptura total com o édipo, levando à
internalização do amor carnal pela mãe no subconsciente do sujeito. Foi exatamente isso
que ocorreu com Aristeu, o seu lado infantil precisava do aconchego do colo da mãe,
pois ela despertava nele a sensibilidade que, aparentemente, ninguém diria que ele
52
possuía.
Um aspecto importante nesse conto, e que o conecta ao nosso tema, é a presença
constante da música através de dois instrumentos: o piano e o violino. Primeiramente,
discorreremos sobre a melodia do piano, elemento que fortalece a relação de Aristeu
com sua mãe, despertando nele emoções e desejos puros. As notas tocadas por Dona
Evangelina levavam Aristeu ao mundo das nuvens: “Na companhia de Aristeu, se o via
nas nuvens das notas macias e redondas, degustava as horas mais felizes, delicadas e
tranquilas da sua vida. E envaidecia diante da sensibilidade do filho, dizia Aristeu
puxou foi a mim” (DOURADO, 2006, p. 141).
A psicanálise interpreta essa ligação com o artístico como uma relação de
parentesco com a psiconeurose. FREUD (2006a) nos mostra que o sujeito, ao se rebelar
contra a realidade que se opõe à satisfação dos seus desejos, torna-se um ser neurótico.
Porém, ao se conectar com a arte, como no conto em questão, com a música, ele
encontra um desvio que o levará de volta à realidade. Para Freud, a arte pode ser uma
grande força motivadora para o controle das neuroses e dos conflitos interiores
(FREUD, 2006a). O som do piano, com suas notas macias e redondas, conectava mãe e
filho, proporcionando momentos que os desconectavam do mundo; naquele momento
eram apenas os dois. Freud ainda destaca que o artista revela ao outro, pela arte, suas
fantasias pessoais repletas de desejo, que chegam ao outro como uma sedução,
proporcionando-lhe, também, uma gratificação prazerosa. O elo entre mãe e filho revela
o prazer entre os dois em uma constante troca de sentimentos: ela, ao tocar o piano, traz
o filho para junto de si; ele encontra o refúgio que precisa, entrando no mundo da
fantasia e acalmando os seus nervos. Podemos conceber o piano como o elemento que
liga Aristeu a sua mãe, e faz despertar dentro de si a criança pura e inocente:
Quando Aristeu olhava a mãe que tanto amava, e via a cara rugosa, os dedos
engelhados e manchados calcando as teclas do piano, os olhos daquele
homão, de todo tamanho se enchiam de poderosas lágrimas. Ali sozinho com
ela, sem sentir vergonha de chorar, achava até bem bom: as lágrimas valiam
como carinho que ele, arisco nessas coisas, não tinha coragem de fazer
(DOURADO, 2006, p. 164).
No entanto, o som do piano que trazia o consolo e a calma para Aristeu estava
com os dias contados, pois dona Evangelina começava a ser enganada pela própria
memória. Cada dia mais longe em seu esquecimento, o fato e sua gravidade só foram
53
percebidos por Aristeu quando as tardes musicais começaram a ser interrompidas pelo
esquecimento: um nome, uma nota musical perdida, um tempo que deixava de ser
marcado no piano, até sumir por completo uma composição inteira. Quando isso
aconteceu, dona Evangelina, em sua aflição e desespero, esmurrou o teclado do piano,
chorando e afirmando que nunca mais tocaria: “[…] Aristeu viu os olhos da mãe —
apesar do brilho das lágrimas, eram vagos e distantes, mais distantes do que onde o pai
devia estar. Foi uma tristeza” (DOURADO, 2006, p. 165).
Findados os momentos de harmonia, onde encontrava seu porto seguro, longe da
proteção da mãe e da melodia do piano, Aristeu voltava a ser o truculento, violento e
bruto de sempre, sempre arrumando confusão por onde passava. Era o intocável e
invencível Aristeu, até se ver encantado pela melodia aguda e sedutora do violino e pela
extraordinária senhorita do país dos sonhos, Jezabel Kislány. Diante da imagem e do
comportamento que apavorava a todos, Aristeu não havia se casado e nem tido filhos.
Todas as noites, satisfazia seus desejos carnais com as mulheres do bordel da cidade,
mas nunca havia se encantado por ninguém. Quando questionado pela mãe sobre ter
uma namorada, ele dizia “[…] ainda é cedo, quando eu escolher vai ser uma moça tão
extraordinária, vai ser assim que nem uma rainha, que a senhora nem vai acreditar”
(DOURADO, 2006, p. 166). Ninguém acreditava que esse dia chegaria para Aristeu, até
a chegada do Circo Milano, dos irmãos Ramurazzi, na cidade.
Os circos eram a paixão de Aristeu. Sempre que uma companhia circense se
apresentava na cidade, comprava um camarote para família para toda a temporada, e
não foi diferente com o Circo Milano. Empolgadíssimo com a promessa do espetáculo
circense “Aristeu decidiu-se dar umas férias da fazenda. O Circo chegou, Aristeu se
iluminou. Era assim com todo circo desde menino” (DOURADO, 2006, p. 168). O circo
levava-o para o mundo da fantasia. De acordo com Jung (1991), a psique está
relacionada com a fantasia, visto que
sensível e imaginosa de cada um. […] Uma mulher, uma menina, uma
boneca que andava, de uns noventa centímetros de altura. […] Aquele ser
etéreo e minúsculo era realmente uma mulher, uma mulher em miniatura.
Certas horas parecia uma menina, a cara pintada, fingindo de adulta, que o ar
desembaraçado e um certo sorriso malicioso desmentiam. A malicia do
sorriso e do olhar suscitava nos mais afoitos e imaginosos algumas safadezas
acerca da anatomia e outras peculiaridades ligadas às partes mais escondidas
da criação. […] Perfeita e bem proporcionada era realmente uma
mulherzinha. […] As mulheres diziam uma bonequinha de relógio, um
alfenim, perfeito gnomo do país dos sonhos (DOURADO, 2006, p. 172,).
Os grandes sentidos de Aristeu se aguçaram tanto, que ele quase podia captá-
la toda. Ele era só nariz, ouvido, olhos, pele – todo arrepiadinho. Podia vê-la
por inteiro e à vontade, tão perto que acreditava sentir não apenas a sua
respiração e o piscar de olhos de boneca, mas o quentume do corpo. O
cabelo, que tentava o tato e o olfato de Aristeu, bem que merecia um
diadema de pedras verdadeiras, pensou ele pródigo. Os olhos faiscantes, de
um verde-azulino, eram vivos e inquietos e belos. A boca bem riscada e
úmida, os lábios avivados pelo carmim, o nariz curto, os dentes bem
torneados e bem postos completavam para Aristeu Silveira uma figura
certinha e perfeita, nunca vista, uma beleza nunca sentida. […] Foi o amor à
primeira vista mais à primeira vista de que se teve notícia na cidade.
Instantâneo, fulminante, arrasador (DOURADO, 2006, p. 178,).
ele não está contemplando-a como mulher e sim como uma criança.
A maneira delicada e detalhada que o narrador descreve Jezabel, segundo a
visão de Aristeu, nos dá uma ideia de como era a imagem que ele construía: o quentume
do corpo, os olhos faiscantes, a boca bem riscada e úmida, lábios vivos pelo carmim,
tudo despertava nele o que ele nunca havia sentido, um desejo totalmente diferente.
Percebemos o desejo pelo corpo infantil pela forma como Jezabel é descrita. Ela não
possuía características de um corpo de uma mulher adulta, também não tinha a altura de
uma mulher, apesar de não ser mais uma menina, mas era esse corpo pequeno e miúdo e
a figura de menina que haviam chamado a atenção de Aristeu. A paixão entre eles foi
totalmente correspondida, ele a idolatrava. Imaginava os dois em sua fazenda, ela
tocando para ele o tempo inteiro. Todas as noites ele ia ao circo e se perdia em suas
fantasias com a pequena violonista.
Aristeu fez da sua fazenda seu país dos sonhos. Apaixonados um pelo o outro, e
com medo de perder a sua amada, após a ida ao circo, ele a sequestrou e levou-a para
sua fazenda, e lá montou o seu país dos sonhos. Podemos ver também uma semelhança
entre Jezabel e Aristeu, com o casal bíblico, Rei Acabe e Rainha Jezabel, localizado em
1 Reis a partir do capítulo 16. Acabe foi um rei de Israel e reinou por vinte e dois anos,
ele foi tido como mau perante ao senhor, pois seus pecados não agradavam a Deus,
casou-se com Jezabel, uma mulher que servia outros deuses e que não ao Deus de Israel.
Jezabel tinha total controle sobre Acabe, ele fazia todas as suas vontades, ela era
persuasiva e sempre conseguia o que queria com o rei. Certa ocasião o rei queria
comprar a vinha de um jezrelita que ficava ao lado de seu palácio em Jezreel, porém,
Nabote, o jezreelita, não aceitou vender sua terra ao rei por ser uma herança de seus
pais, voltou então Acabe triste e desgostoso, feito criança, para a sua casa por não ter
conseguido o que queria. Jezabel vendo a tristeza de Acabe, pediu-lhe que não ficasse
triste pois ela daria a ele a vinha de Nabote. Como o rei era fraco perante a Jezabel,
deixou que a mulher tomasse as decisões no lugar dele, ela escreveu cartas em nome do
rei para os anciãos e nobres da cidade para que levassem Nabote a frente do povo e o
condenassem por blasfêmia contra Deus e contra o rei, e logo após o apedrejassem até a
morte. Depois de terem feito o que ordenara Jezabel, ela então avisou Acabe que Nabote
estava morto, ele então desceu e foi tomar posse das vinhas daquele homem.
O rei Acabe se assemelha a Aristeu pela infantilidade e pela fraqueza diante da
57
mulher, pois fazia todas as vontades da esposa o que levou a sua ruina. As duas
mulheres se assemelham na posição de rainha que comanda tudo, na história bíblica
temos uma mulher que possui tudo o que deseja e domina o marido, no conto de Autran
a anãzinha Jezabel, primeiramente, é a rainha do circo e posteriormente vira a rainha de
Aristeu. A menina no trono possui o controle daquele pequeno castelo que Aristeu havia
feito para ela reinar.
Ninguém sabia o que se passava na fazenda, apenas rumores daqueles que se
atreviam passar por lá; o resto era fruto da imaginação das pessoas. Quem vinha da
fazenda afirmava que apenas se ouvia o som violino, como música vinda do céu. O
violino pode ser o símbolo da exteriorização do desejo pedofílico de Aristeu, pois ao ser
tocado por Jezabel, a melodia o atraía para ela de maneira mágica, fazendo com que ele
a desejasse. Ao retornar à cidade depois de meses, “uma grande transformação se
processara em Aristeu, parecia mais manso, mais delicado. […] Quase não se
reconhecia, senão por alguns gestos e falas, o antigo Aristeu” (DOURADO, 2006, p.
206). Todos tentavam imaginar como era a relação entre os dois, pois até a casa da
ponte deixara de frequentar.
Porém, nem tudo o que se imaginava acontecia na fazenda. Logo todos ficaram
sabendo do que acorria no país dos sonhos. A idolatria de Aristeu por Jezabel era
surreal, ele a fez sua deusa. Enchia-lhe de joias, tratava-a como uma rainha, abandonou
a mãe e não mais retornava a cidade para visita-la, todo ele era de Jezabel e ela tornou-
se propriedade exclusiva de Aristeu. O desejo pedofílico de Aristeu pela anãzinha
manifestava-se de forma contemplativa. Ela era uma mulher em corpo de menina, e era
intocável. Ele satisfazia seus desejos apenas contemplando aquela figura em miniatura,
que o seduzia com a música e o violino. Jezabel viu-se perdida diante daquele homem
que a encantara e fizera dela sua divindade, viu-se escrava do desejo dele.
Ao final do conto, o desejo louco e a fascinação que sentia por Jezabel, levaram
Aristeu a cometer uma loucura, culminando com uma tragédia impensada por todos. Foi
para a cidade, comprou comida e vários tipos de bebida e buscou as mulheres da casa da
ponte para uma festa em sua fazenda. Quando lá estavam,
[…] Jezabel Kislány tocou o melhor que sabia, talvez tenha sido esta a
melhor audição da sua vida. Não tocou para elas, era como se só ele e ela
existisse na sala. E ela obedeceu ao seu rei e senhor. Os olhos de Aristeu
brilharam de lágrimas, ele não tinha mais vergonha de chorar. Chorou como
menino. E ia pedir bis quando a mulher de pedra e enigmática se levantou
ríspida. Jezabel Kislány, de pé sobre a cadeira de sola trabalhada, num gesto
violento, quebrou no joelho o seu pequeno violino (DOURADO, 2006, p.
220).
Ao ver esse ato de rebeldia da mulher, Aristeu se levantou em fúria para atacá-la
, no entanto tropeçou e caiu aos pés de Jezabel. Desacordado, ela deu ordens às
mulheres para que o levasse para o quarto e depois fossem embora dali. Naquela noite,
ao ver aquele homem monstruoso deitado, tomou uma atitude inusitada:
Trancada com Aristeu no quarto, ela viu como ele roncava asquerosamente.
Se lembrou de velhas e imemoriais humilhações. De sua infância,
adolescência e mocidade. Não chorou, porém, toda a sua vida parecia de
outra pessoa, opaca, negra, dura. Foi até a cômoda e tirou da primeira gaveta
uma garrucha com desenhos de prata. Dobrou os canos, e um vivíssimo
sorriso nos olhos, verificou que estava carregada. Com dificuldade armou o
primeiro cão, depois o outro, com medo que eles caíssem antes do tempo.
Foi para junto de Aristeu, que dormia no chão, a boca aberta, a língua suja
esbranquiçada. E Jezabel mergulhou a pistola na boca aberta de Aristeu. Ele
chupou os canos. Aristeu fez um movimento, deu um engulho. E Jezabel,
com as duas mãos, calcou os gatilhos simultaneamente (DOURADO, 2006,
59
p. 221).
A narrativa termina com o trágico fim de Aristeu Silveira, morto pelo próprio
desejo. Nesse conto, a imagem infantil se faz muito presente. Primeiro, por meio do
homem gigante e monstruoso que tem atitudes totalmente infantis, fazendo-o um
homem-meninão. Depois, por meio da imagem de Jezabel Kislány, uma mulher adulta
presa em um corpo de criança. Em “A Extraordinária Senhorita do País dos Sonhos”,
Autran Dourado nos apresenta uma nova perspectiva de análise do desejo pedófilico em
seus contos, o qual pode ser expresso de formas e maneiras diferentes.
CAPÍTULO III
Neste capítulo, iniciaremos com a análise do desejo pedofílico no conto “Às Seis
e Meia no Largo do Carmo” inserido no livro Armas e Corações (1978). Nesta
narrativa, temos uma história de acerto de contas entre Juvenal e Quincas pela honra de
Natália, uma jovem seduzida aos seus treze anos e expulsa de casa pelo pai. Depois de
ver sua irmã desonrada perante a sociedade, Juvenal decide limpar o nome da família
planejando a morte de Quincas, o sedutor de Natália. Porém, o que não se esperava era
uma terceira pessoa que entraria nessa história e que também havia caído nas graças da
menina.
Natália era a filha caçula de uma família tradicional, que prezava pelos bons
costumes e pela honra. No entanto a jovem moça deixou levar-se pelos galanteios de
Quincas, um homem que vivia com os ganhos da fazenda do pai e ia até sua janela todas
as noites. Segundo a narrativa, a moça tinha o corpo bem desenvolvido para a sua idade
e uma sexualidade muito aflorada, características que, para os olhos masculinos,
despertavam desejos e fantasias sexuais com a garota. Aos olhos de Quincas, podemos
ver detalhes de Natália deixam transparecer a sensualidade precoce da jovem:
Desde o primeiro dia ele viu. Pelos olhos sedosos lumeando arregalados, a
boca grande e carnuda, os lábios molhados, a respiração ofegante. Gata no
cio, quando os telhados ficam polvilhados de lua. Quando, nem bem ele
tinha descansado o ofego, ela disse não quer mais? Se sirva. Já abraçando-o,
apertando-o contra os peitos quentes e desembaraçados. Querendo,
encapetada. O risinho que ele desconfiou meio safado, na escuridão não dava
para ver direito (DOURADO, 2006, p. 42,).
Aqui temos a descrição de uma menina que, por meio dos seus traços erotizados,
atiça os homens e desperta desejos sexuais. O brilho provocante dos olhos, a boca
carnuda, os lábios molhados e a respiração ofegante denotam a excitação da moça que
se encontra atraída pelo desejo de Quincas. Podemos ver, pela descrição acima, que a
maneira com a qual ele a descreve denota o desejo pedofílico por ela que, ainda com
treze anos, deixou-se seduzir pelo moço que a desonrou, culminando a sua expulsão de
casa, no que lhe restou como única opção o bordel da cidade. Esse desejo não era apenas
despertado em Quincas, mas também por outros homens da cidade:
62
Aquela vez, quando Joca Pereira disse uma graça mais pesada sobre Natália,
então só com treze anos, mas os peitinhos já apontando, balançando debaixo
da blusa, espetados. Os peitinhos então que nem dois limões, mas
prometendo. Depois cresceram, até sobram na mão. Pontudos e durinhos,
latejando quentes. Peitos de cabra, bem apartado. Grandes para a idade, hoje
quinze anos. Vai ser uma mulher e tanto: peituda, peituda e quente, peituda e
encapetada, arteira no futuro. Quando tiver mais tempo de Casa da Ponte.
Mais experimentada, por enquanto só dele, enquanto puder manter,
passarinho não voa (DOURADO, 2006, p. 44,).
Juvenal não gostava da maneira com a qual sua irmã era vista por todos, como
podemos ver na citação acima. O desejo ardente de Joca Pereira pela menina,
manifestado pela descrição de seus seios que exalavam sensualidade desde muito nova,
a repetição da característica “peituda”, acompanhada de outros adjetivos pejorativos nos
mostra o quão ela é desejada e, por ainda ser uma menina que não passa dos seus quinze
anos, podemos ver esse desejo pedofílico expressado de maneira intensa e obcecada. É
notório também que esse desejo não é apenas contemplativo, mas sim que há uma
relação mais intima entre Natália, que já se encontra na casa da ponte, e Joca Pereira,
que afirma que ela é só dele pelo tempo o qual ele quiser, sendo também um comentário
abusivo.
O narrador não explicita a idade exata de Joca Pereira, mas vê-se que se trata de
um homem mais velho, pois ele tem condições financeiras suficientes para manter
Natália com exclusividade. E onde fica o aspecto pedofílico? Antigamente, pelo foco
das relações serem entre homens mais velhos e mulheres mais novas, não se pensava a
pedofilia ou não era norma se pensar que a pedofilia poderia advir também das
mulheres. Aqui não há uma questão de ser homem ou mulher: a pedofilia é uma
patologia que pode se manifestar em qualquer pessoa, indiferente do sexo. O desejo
pedofílico pode ser exteriorizado por qualquer um, podendo acarretar o abuso e a
exploração do outro, que é vulnerável. Não devemos generalizar todos os tipos de
relacionamentos, como percebemos em comentários quando há uma diferença
exorbitante entre o casal, comentários estes que surgem em forma de piada. É necessário
que a sociedade veja a pedofilia como algo sério que precisa ser combatido, e não
motivo de gracejo. Nesse caso, todos são vítimas, tanto a criança que, geralmente, é o
alvo principal do pedófilo, quanto o próprio pedófilo, que sofre desse transtorno, pois a
pedofilia vai além do que apenas a diferença da idade, é algo que, se não for combatido
e tratado, gera transtornos sociais bem maiores, como violência sexual,
63
É uma luta constante para que o índice de crimes contra crianças caia e o Brasil
mude essa realidade. Porém, está cada dia mais difícil diminuir esses índices. Até a
década de 1980, o Brasil não possuía uma lei específica de proteção à criança. Desde a
elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA, em 1990, as crianças e os
jovens menores de idade são amparados pelo estatuto. No entanto, não podemos
entender a pedofilia apenas como um ato criminoso. Na Parte Especial, Título VI —
Dos Crimes contra a Dignidade Sexual, Capítulo II do Código Penal Brasileiro, artigo
217, consta que:
O artigo 217 foi revogado pela Lei nº 11.106 de 28 de março de 2005, e passou a
ser intitulado, com o advento da lei número 12.051/2009, como estupro de vulnerável,
que é quando ocorre a conjunção carnal ou o ato libidinoso com pessoa menor de 14
anos de idade. Esse artigo prevê uma penalidade de 8 a 15 anos de reclusão para o
64
Joca Pereira disse e ficou esperando. O riso debochado parecia não querer
acabar mais, sestroso. Juvenal se afastou devagar, foi tomando distancia,
esperava-se galeio. De repente sacou do revolver. Joca Pereira estacou o
riso, catou a faca na cintura, estava sem arma de fogo aquele dia. E nada do
outro atirar. A mão foi caindo, caindo feito ele tivesse câimbra no braço, o
revolver pesado além da conta. A cara pálida, os beiços tremendo
esbranquiçados. Na cara um repuxado doloroso na boca, que nem ele fosse
chorar. Todos em volta olhando espantados, esperando Joca Pereira avançar
para ele, dar uns tabefes. A maior humilhação, fugia-se de ver. É ruim, da
fundura no peito, comichão na boca do estomago, ver homem borrado. Mas
Joca Pereira não avançou, disse foi seja homem! O outro se afastou mais,
nem olhava para a própria mão pesada e inútil. Um Smith- Wesson 38,
novinho em folha. Os dedos, antes duros e paralíticos, foram se afrouxando,
65
Mas o rancor e a vergonha de ter sua irmã na casa da ponte e com a cidade o
acusando de covarde por não ter feito nada com Quincas, resolveu então fazer justiça
com as próprias mãos. Com o encontro marcado às seis e meia no Largo do Carmo para
o acerto de contas, ele não esperava que uma terceira pessoa também estaria ali para um
outro acerto de contas. Orozimbo Preto, que ouvira o recado dado à Quincas, também
estaria no Largo para matar Quincas, pois ele tinha certeza que Juvenal não teria essa
coragem. Orozimbo era um capanga de um velho coronel da região, Coronel Justino,
este que, há muito tempo, se encantara pela moça. Portanto, o capanga decide se
esconder na torre da igreja do Largo do Carmo para ter uma visão mais ampla do que
acontecia e para atirar em Quincas sem levantar suspeitas quem tenha sido, e por meio
do que ele via de cima da torre da igreja temos o desfecho de toda a história:
Não podia saber as horas, o tempo coagulado. Devia estar quase na hora.
Quincas, antes parado, agora se mexia. Deu o primeiro passo, vinha
apressado, certamente para chegar com o ponteiro, na batida do sino, no
cruzeiro. Olhou pela janela e viu Juvenal correndo de volta para o
morrinh0o. De lá vai fugir, que bosta de homem! E eu que perdi tempo com
ele![…] Orozimbo Preto alisa a arma, confira a mira. Quicas certinho na
linha do tiro. […] Quincas abriu os braços, olhava para cima feito rezando. É
bom rezar, na hora da morte, na hora da morte é sempre bom rezar. Agora e
na hora da nossa morte, amém, disse. De repente, o que ele menos esperava,
um estampido. Quincas encurvando para frente, caído no chão, o eco
repetindo o tiro. Olhou para a direita. Lá embaixo: no morrinho, Juvenal.
Deitado, a carabina ainda fumegante na mão. Que homem mais diferente me
saiu este bosta do Juvenal, disse decepcionado. É, a gente não pode mesmo
confiar em ninguém. Nem em corno, quanto mais irmão. […] Se Juvenal
tivesse ido no cruzeiro se encontrar com Quincas, era de mais coragem. De
tocaia mas de qualquer maneira um homem. Fez o que lhe competia. […] Só
para conferir coloca o novo homem na mira, a cabeça cerinha no ângulo e na
quina da massa. O dedo caiu certinho no gatilho. Um arranque no ombro, a
explosão, o cheiro de pólvora. O corpo de Juvenal dá um salto, efeito do tiro,
se vira de braços abertos, a cara para o ar. Dois homens mortos, o dia está
mesmo pra urubu, disse. […] Quem podia dize que Juvenal não se
acostumava com a coragem e vinha querer tirar a vingança por cima de seu
coronel? Sabia, se lembrou como era o coronel Justino. Agora que a menina
ia ficar só por sua conta. O senhor sabe, seu coronel, onça que já provou
sangue de gente, foi dizendo enquanto descia a escada da torre. Já falava o
coronel Justino Pessegueiro de Sousa, seu patrão (DOURADO, 2006, 76-
78).
66
O conto finaliza como uma surpresa para o leitor, vemos a coragem inusitada e
duvidosa de Juvenal aparecer, efetuando o disparo que matou Quincas e a mudança de
plano de Orozimbo Preto, que não esperava que Juvenal fosse capaz de efetuar o
disparo. Diante daquela cena, o capanga não viu outra saída a não ser matar aquele
rapaz, pois ele agora seria uma ameaça para o coronel, que havia caído nas graças de
Natalia. Podemos perceber no conto dois tipos de ações criminais em que não há
nenhuma intervenção judicial e legal para que fosse resolvida. A primeira é o ato
pedofílico, que não é exposto como crime, pois apesar de termos a exposição do desejo
pedofílico e a violação da menina, a punição para o indivíduo não gira em torno desse
ato. No conto, temos uma cobrança de defesa para com a honra da família da moça que
foi seduzida, pois ter uma filha desonrada dentro de casa só se resolvia com a morte,
atitude essa que era bastante cobrada na sociedade da época, e foi o que aconteceu. Com
o Quincas morto, Juvenal limpou o nome da família dele e da menina que, após ter
perdido sua virtude, aos olhos sociais, teve seu destino traçado indo morar no bordel da
cidade e levar a vida na prostituição. No próximo conto que iremos analisar, veremos
uma situação diferente para a punição do ato pedofílico e como este desejo é exposto na
narrativa.
(Érico Veríssimo)
Seria muita humilhação. A sua reputação estaria perdida, pois o “outro lado” de Daniel
Moore seria descoberto. Que outro “eu” era esse? Essas são perguntas que confundem o
leitor e que vão encontrando suas respostas ao decorrer da narrativa. Mediante esse
conflito interior, aos poucos vamos descobrindo as deixas que revelam esse outro “eu”
do Pastor Daniel Moore.
Autran Dourado escreve essa narrativa de maneira muito subjetiva. É nas
entrelinhas que o segredo se revela, isso faz com que a narrativa seja tão instigante. No
início da narrativa, o narrador nos mostra duas diferenças entre os protestantes e os
católicos e deixa bem claro que essas duas crenças não se misturam. Enquanto a igreja
católica era localizada na praça e destacada pela torre, a igreja dos protestantes era
aquela pequenininha que se encontrava na rua de baixo. Os católicos eram vistos pelos
protestantes como os acomodados, festivos e incultos e, para os católicos, os
protestantes eram aqueles que, “[…] por mais pobres que fossem […], não tinham
nenhum respeito humano ou vergonha de exibir sua fé” (DOURADO, 2006, p. 81).
Porém, havia algo a mais que marcava os crentes na cidade de Duas Pontes: todos eram
contraditórios ao que pregavam. Ao invés da verdadeira alegria e felicidade que eles
diziam ter, o que transparecia era “[…] um misto de orgulho e arrogância, […] nos seus
olhos era uma densa penumbra, uma profunda tristeza” (DOURADO, 2006, p. 81). Não
viviam o que acreditavam; o peso da religião os sobrecarregava de maneira com que os
entristecia, era essa a divisão entre os católicos e os crentes de Duas Pontes, mas essa
diferença também existia dentro da própria igreja dos protestantes. A figura do primeiro
reverendo da cidade, Mr. Kernan, pairava constantemente nas lembranças de Mr.
Moore.
Mr. Kernan era um solteiro solitário que amava falar sobre o apóstolo Paulo bem
mais que sobre o próprio Cristo. “[…] Romanos era sua epístola preferida.”
(DOURADO, 2006, p. 82), condenava o pecado, era praticamente um juiz, sua função
era condenar. Em sua altivez era “[…] só espírito, nem sombra de carne e coração. Tal
sua fé, tal sua força.” (DOURADO, 2006, p. 82), ele era a sombra de Daniel. As coisas
com o Pastor Daniel Moore eram diferentes: ele tinha um comportamento mais humano,
seus sermões voltavam-se para o discípulo João, o discípulo do amor. Enquanto o
primeiro acusava, Daniel Moore vinha ao encontro dos mais necessitados, era como um
advogado que com “[…] a voz mansa e baixa falava de Jesus e pregava o amor”
68
(DOURADO, 2006, p. 83). Com isso, o pastor Moore e sua esposa, Annabel Moore,
ganharam o amor e o apreço dos fiéis. Como um homem tão puro e tão santo, bondoso e
transbordando de compaixão poderia ter um íntimo tão obscuro e um segredo tão
escondido? Segredo este que o fazia suar frio e temer o tempo todo? O conflito interior
às vezes era percebido em seus sermões como podemos ver no trecho seguinte:
Não se podia dizer que Mr. Moore meditava sistematicamente algum tema,
tão tênues e esgarçados eram os pensamentos. Um misto de vaga lembrança
e saudade, de serenidade e paz mansamente sofrida, devia habitar o espírito
do pastor. Se fosse possível vê-lo apenas de uma pequena distância, teríamos
uma figura esquálida, a cabeça branca que devia outrora ter sido loura, os
olhos fundos e as bochechas chupadas, uma boca carnuda e úmida que
contrariava em tudo a figura grave e mística, esquálida e pura, do reverendo
Daniel Moore (DOURADO, 2006, p. 85).
Percebemos no conto que Daniel Moore, em todo o tempo, luta contra seus
próprios medos, vivendo sob a opressão causada por Mr. Kernan e sob a compaixão de
Mrs. Annabel Moore. Esse voltar-se para dentro mediante seus devaneios mostra-nos
um Daniel Moore aflito, ele já não consegue dominar a si mesmo, é como se essas duas
figuras que o afligisse tornassem ao final uma luta contra ele mesmo. O desejo
pedofílico está presente nesse conflito interior de Daniel Moore e começa a ser
percebido quando o narrador descreve a figura da esposa do pastor. Uma mulher que
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não despertava em ninguém nenhum tipo de desejo ou interesse, pois não havia nela
nenhuma característica de uma mulher. Como percebemos no seguinte trecho:
O pesadelo de Daniel nos faz ver alguém aflito e desesperado que se culpa por
tais acontecimentos. Se houvesse continuado nos caminhos da oração, talvez ele não
estivesse passando por provações que o deixava tão vulnerável ou simplesmente essa
fraqueza provinha da sensualidade transmitida pelos verdes e o ar quente do lugar.
Sozinho ele não se contém e implora para que sua Annabel e o Senhor tenham piedade
dele. E encontra em estudos teológicos e em orações uma válvula de escape para que
pesadelos como estes não acontecessem mais. O “outro” só insistiu em aparecer porque
ele se afastou das coisas de Deus, por isso se punia o tempo inteiro e passou a se dedicar
mais à obra do senhor. Mas, por mais que essa dedicação ultrapassasse os limites do
pastor, não era o suficiente. Os seus pesadelos continuavam constantes, a figura
acusadora de Mr. Kernan nos dá a sensação de que só o antigo pastor sabe sobre o
segredo e o pecado que tanto atormentava Daniel. Enquanto um o incrimina, aparece a
figura de Annabel, a consoladora de Daniel, o tempo todo, sugerindo que ela faz parte
desse passado.
Em um desses pesadelos, vemos uma estranha cena que denota o desejo
pedofílico de Daniel Moore por sua amada Annabel. Descrita como alguém com uma
fisionomia de uma criança, a narrativa deixa claro que era impossível alguém ter algum
desejo ou fantasia por ela, com suas mãos tão miúdas, o socorrendo quando era preciso
e ele “[…] gostava de chamá-la, veladamente carinhoso, a minha Annabel”
(DOURADO, 2006, p. 88). Nesse pesadelo absurdo, Mr. Moore se via tão preso a ele
que só Annabel, essa mulher menina parecida com um anjo, o acalmava dizendo
palavras que o libertava daquela culpa. Como podemos ver no trecho:
71
[…] além das sombras e figuras disformes que Mr. Kernan projetava na
parede, dos gritos e olhos fuzilantes, esbugalhados, dos fogos e clarões, eles
falavam uma linguagem cifrada, só entendida pelos três. Mrs. Annabel Luce
Moore tinha a roupa preta brilhosa como langerie, o colarinho prateado, e
toda ela vinha envolta numa luz, numa aura extraterrena. […] Era a
atmosfera dos primeiro tempos bíblicos, pensava aterrado e lívido Daniel
Moore, das batalhas cósmicas, o flamejar dos anjos e potestades, quando
Deus acabou por vencer e expulsar o mal. Diante de potências
incontroláveis, quase desfalecido, Mr. Moore não entendia mais nada. Fez-se
de repente o silêncio. […] A pequenina Annabel Luce Moore acabou
vencendo e expulsando o infatigável acusador Mr.Kernan. Exausta da
batalha, Annabel veio para junto dele enxugou-lhe a testa e a face com um
lenço alvíssimo, cerrou-lhe os olhos, e os seus dedos eram frios e acetinados,
e disse-lhe mansamente nos ouvidos Daniel, meu puríssimo Daniel, não faça
mais. Nada além disso e ele tudo entendeu. E Annabel se deitou ao seu lado,
aninhou a mão na dele, e ele podia ouvir-lhe a respiração ofegante e quente,
se sentia excitado. Annabel ali de comprido, o vestido preto de lingerie
rebrilhava, os olhos fechados, suando muito, os lábios úmidos e brilhantes
entreabertos, e os dois rentinhos, bem juntos (DOURADO, 2006, p. 89 e 90).
As acusações que Daniel Moore via em seus pesadelos, vindas de Mr. Kernan,
sempre eram expulsas por Annabel. A mulher com corpo de criança afastava todo o mal
de Daniel, pois ele via nela um alto refúgio, ela era o anjo e, ao mesmo tempo, era uma
mulher que o satisfazia. A lingerie preta e brilhosa aqui representa o desejo, a
sensualidade e o prazer em contraponto com a luz de aura extrema nos mostra a
inocência de um anjo. Essa mulher parecida com uma menina e a cor preta da roupa que
ela usava despertam todo o desejo de Mr. Moore. Ele sentia desejo e prazer ao
contemplar aquela imagem, fazendo-o ficar excitado. Vemos aqui que a perversão está
ligada à “[…] castidade e à inocência podem ser a outra face da perversão […]”
(NOLASCO apud BEIRÃO, 1993, p. 130).
Com a invasão de João Piló à igreja, um criminoso que havia fugido da prisão,
vários fatos começam a aparecer e torna-se mais notável o desejo pedofílico em Mr.
Moore, mais evidente por meio do relacionamento entre eles. Mr. Moore se viu
obrigado a ajudar João Piló a fugir da polícia, pois, além de perigoso, ele estava armado
e um escândalo daqueles em sua igreja não era bem-vindo para o pastor. João Piló
estava preso devido a um crime que havia cometido por estuprar uma menina de doze
anos, porém Daniel Moore ainda não sabia de tal crime quando João o obrigou a ajudá-
lo. Apesar de não saber do crime de João Piló, houve uma estranha atração entre o
pastor e o criminoso, era como se algo entre eles fosse muito familiar, como se os
medos e o outro Daniel, antes existentes apenas em seus pensamentos, houvessem se
72
exteriorizado mediante a figura de João Piló. A aproximação de ambos foi muito rápida;
ao cruzarem o olhar, o incômodo de Daniel e a intimidação de João explicitam essa
ligação existente entre eles:
[…] ia olhar bem no branco dos olhos de seu Moore, pra ver se descobria
alguma sombra, algum brilho e relampeado, qualquer sinal de traição.
Incomodado com os olhos de João Piló (se sentiu de repente nu,
vermelhinho, como se o outro pudesse ver o que lhe passava no coração),
Mr. Moore abaixou a cabeça se escondendo […] (DOURADO, 2006, p. 94 e
95).
No trecho acima vemos que o pastor se sente estranho diante de João Piló.
Segundo Freud em seu texto “O Estranho”, inserido no livro Além do princípio do
prazer: história de uma neurose infantil (1919), o estranho é aquilo que retorna e que se
repete, mas que se apresenta como algo diferente. Freud (1919) explica que em nosso
consciente há uma predominância dos impulsos que vem dos nossos próprios instintos
naturais fazendo com que haja uma compulsão à repetição. Se temos alguma situação
guardada em nosso inconsciente que provoca uma compulsão poderosa desde a
infância, esta situação nos aparece repetidamente de maneira involuntária em um
aspecto demoníaco da mente. Freud (1919) afirma que “[...] todas essas considerações
preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima
compulsão à repetição é percebido como estranho” (FREUD, 1919, p. 297).
Na citação anterior, o olhar de João no olhar do pastor parece penetrar-lhe a alma
de tal forma como se o criminoso pudesse desvendar todos os seus segredos. De certa
forma, o pastor estava preso a João, em pouco tempo “[…] o plural os aproximava […]”
(DOURADO, 2006, p. 95). Sem ao menos perceberem, já não eram mais duas pessoas
separadas; João intimidava o pastor, e este se permitia ser intimidado por ele. Além da
pluralidade no tratamento entre os dois, outro componente que ligava João Piló a Mr.
Moore era o cheiro de João, aquele cheiro que impregnava no ambiente e penetrava nas
narinas do pastor. A cada dia que se passava, o cheiro dele o fazia sentir mais horror. No
escuro, João se tornava para o pastor apenas o outro. O “[…] outro era uma sombra mais
pesada, sofrida, um bicho fedorento. Uma falta de caridade pensar assim, mas não podia
conter o horror daquele homem ali próximo […]” (DOURADO, 2006, p. 99).
João era o outro a quem Daniel tanto temia; ele representa a exteriorização dos
73
sentimentos perversos do Pastor. Na escuridão, João era apenas uma sombra e nela
“[…] a imaginação se misturava com a memória na zona indecisa e brumosa […]”
(DOURADO, 2006, p, 101) de Daniel Moore. Como já foi dito anteriormente, Lacan
(1985), afirma que a sombra é o reflexo do eu que faz do outro como se fosse uma
projeção de um espelho. Para Jung (1991), sombra “é a parte negativa da personalidade,
isto é, a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções mal desenvolvidas
e dos conteúdos do inconsciente pessoal” (1991, p. 58). A sombra faz parte do nosso
inconsciente pessoal e se encontra por trás dos aspectos de nossa personalidade que nos
considera malignos e que não somos capazes de assumir, portanto a sombra faz parte de
nós mesmos.
O fugitivo era a externalização da sombra do pastor e com o tempo, eles já
haviam desenvolvido um código de comunicação entre eles, a afinidade crescia
juntamente com a semelhança, mas que semelhança era essa? O que fazia com que o
pastor, um homem de Deus, se sentisse tão ligado a um criminoso? Daniel desprezava
qualquer contato com João, aquilo o enjoava, mas ao mesmo tempo o atraía e o deixava
com nojo de si mesmo, tinha que tirá-lo o mais rápido possível daquele lugar.
Ao descobrir, por sua empregada, o crime que João havia cometido, percebemos
o que atraía o pastor a João Piló. O desejo pedofílico de Mr. Moore se assemelhava ao
crime violento de João. Quando soube do que João havia feito:
[…] Dentro dele foi como se desse um terremoto, alguma coisa ruindo.
Cuidava ser instrumento do amor, da caridade, da piedade, e abrigava
justamente na casa de Deus a concupiscência e o mais vil pecado. O horror e
a angústia o sufocavam, como se duas mãos, duas mãos de ferro, as mãos de
Deus, o apertassem, estrangulando-o […] (DOURADO, 2006, p. 115, grifo
nosso).
Ele estava sendo cúmplice de si próprio; ele que havia ganhado tanto perdão pelo
seu passado de sombras agora abrigava na casa de Deus alguém impuro como João.
Depois de descobrir o que João havia feito, foi ter-se com ele, precisava de vê-lo, não
admitia esse tipo de crime, considerava um crime imperdoável, todos eram perdoáveis,
menos aquele. Notamos aqui que Mr. Moore começa a condenar João pelo seu crime,
mas o que tornava o crime sexual mais pecaminoso do que os outros? Por que o pastor o
abominava tanto? Talvez fosse pelo fato de, no passado, Mr. Moore ter tido esse mesmo
sentimento e, ao ver toda essa externalização de sentimentos por meio
74
de João Piló, horrorizava-se. Diante disso, a narrativa nos mostra o quanto esse desejo
pedofílico ainda está presente na vida de Daniel Moore, bem como toda essa rejeição a
João Piló faz com que esse passado se torne mais vivo no presente do que ele consegue
controlar. Para entendermos melhor sobre o crime cometido por João Piló,
discorreremos um pouco como é posto por lei os crimes de pedofilia na legislação
brasileira e quais punições são aplicadas aos pedófilos.
O ato pedofílico vai além do que é explícito na lei, visto que as razões que levam
o indivíduo a cometer a pedofilia estão relacionadas a fatores psíquicos. O pedófilo está
preso a lembranças do passado e a repressões da infância, que são explicadas e
analisadas por meio de estudos psicanalíticos. Na perspectiva psicanalítica, como já
vimos no capítulo I deste estudo, a pedofilia é classificada como uma parafilia, distúrbio
psíquico que se caracteriza pela preferência ou obsessão por práticas sexuais
socialmente não aceitas, como a pedofilia, o sadomasoquismo, o exibicionismo, etc. O
pedófilo não pode ser considerado apenas um criminoso, mas também uma pessoa
doente, o que é comprovado pelos estudos psicanalíticos e psiquiátricos. Na visão
psicanalítica, o pedófilo sofre de transtornos psicológicos que necessitam de tratamento.
As ações que geram a pedofilia podem levar o indivíduo a cometer crimes e violências
contra crianças, mas não é possível concluir que um pedófilo seja somente um
criminoso ou um doente, pois não há, no Código Penal, uma lei específica que condene
um pedófilo, nem na psicanálise uma afirmação precisa de que o distúrbio seja uma
doença, apenas fatores que explicam as causas das perversões sexuais. O artigo 218 da
Lei nº 12.015 de 2009, elucida sobre o delito de corrupção de menores:
Corrupção de menores
Art. 218. Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia
de outrem: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente
(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou
induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de
satisfazer lascívia própria ou de outrem: (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009).
Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de
criança ou adolescente ou de vulnerável. (Redação dada pela Lei nº 12.978,
de 2014).
Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de
exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para
75
O artigo 218 que dispõe sobre a corrupção de menores de catorze anos teve seu
parágrafo único vetado pela lei número 12.015 de 2009, sendo incluído nessa mesma lei
os artigos 218-A e 218- B, que preveem penalidade contra o sujeito que facilita a
indução do menor ao ato libidinoso e à conjunção carnal. É necessário saber distinguir o
artigo 218 do artigo 217, pois há uma diferença entre os crimes contra menores de 14
anos. Por exemplo, duas pessoas acusadas de indução de um menor ao ato libidinoso
podem ter suas penas diferentes devido à intenção de cada sujeito ao praticar o delito. É
necessário estudar em qual tipo de crime ele se enquadra. Se o sujeito tiver cometido o
delito de corrupção de menores previsto no artigo 218, em que o agente induz a vítima a
praticar um ato que a satisfaça, ocorrendo a conjunção carnal, o agente indutor será
responsabilizado por estupro de vulnerável de acordo com o artigo 217-A. Caso o
agente convença a vítima a satisfazer a lascívia de outrem, o crime será julgado pelo
artigo 218-B, que tratará do favorecimento da prostituição e exploração sexual de
vulnerável. Para os delitos previstos nesses artigos, não é necessário que, para a
consumação do crime, o agente tenha sua luxúria satisfeita. Porém, não é lícito dizer
que se trata de um crime formal, mas material, pois para de fato haver a consumação, é
preciso que a vítima pratique o ato a que foi induzida.
O capítulo V, que trata do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de
prostituição ou outra forma de exploração sexual, artigo 227, prevê as seguintes penas:
A nova redação dos artigos do ECA representa uma segurança maior para
crianças e adolescentes, visto que o Código Penal Brasileiro não traz uma lei que
criminalize o pedófilo. O ECA deixa claro que há uma preocupação em mostrar na
78
[…] Foi num desses sonhos, quando já rompia a manhã, que de novo lhe
apareceu a figura de Annabel Luce Moore. Vinha no seu vestido preto de
sempre, que nos sonhos ganhava o brilho de cetim, como o colarinho se
prateava. No ombro direito um sinistro pássaro branco. Desta vez na
pesada corrente de ouro no pescoço, em vez da medalha luminosa, uma
79
grande âncora. Mr. Moore não sabia a que atribuir o significado daquela
mudança, como não entendia o fogo nos olhos de ordinário tão
parecidamente mansos detrás dos óculos grossos. Mas ela hoje vinha sem
óculos, não precisava deles para ver ou se proteger. As narinas palpitavam
na respiração quente. Mr. Moore, embora ela longe, podia sentir o quentume
na cara. Ela umedecia os lábios com a língua, e a língua era grossa,
luminosa, carnosamente vermelha. Falava baixinho um segredo para o
pássaro, que piava ainda mais sinistro e arrepiado.
Ao contrário do que acontecia das outras vezes, Annabel não trazia a paz
mas o fogo. O peito abrasado, um amor tão forte como nunca antes sentira
por ela. Havia qualquer coisa porém de grotesco na sua figura, que ele nunca
antes percebera. Tinha urgência de que ela se deitasse ao seu lado, de beijá-
la e amá-la. Embora repetisse que ela era sua mulher perante Deus e os
homens, pesava-lhe no coração um difuso sentimento de pecado que jamais
havia sentido. E o medo de que Mr. Kernan ou o próprio apóstolo lhe
aparecessem…
As mãos de Annabel não eram mais aquelas pequeninas mãos que ele
amava tanto, mãos de menina, e que costumava guardar nas dele como um
pássaro. Eram desproporcionais ao corpo, muito brancas e pesadas.
Annabel fazia um grande esforço para levantá-las. E as mãos de Annabel
acenavam para longe, em direção ao fundo azulado e deserto, os braços
penosamente estendidos á espera de alguém. O horizonte era uma linha
luminosa, uma fumaça trêmula e sonora como ondas de um sol de verão
reverberando no ar do meio-dia, tal a luminosidade que o sonho de repente
adquiriu.
Uma menina de branco, o vestido rendado e vaporoso, surgiu da linha do
horizonte, a princípio muito pequenina, e foi crescendo, crescendo, e saltava
sem peso sobre as ondas sonoras e luminosas. Vinha em direção a ele, em
direção aos braços estendidos de Annabel Luce Moore. Annabel abraçou-a,
colocou-a no colo. Disse-lhe baixinho qualquer coisa no ouvido (o mesmo
que dissera ao pássaro?), tão baixinho que ele não podia escutar. Sabia
porém que era alguma coisa de muito suspeito, o pássaro piava
terrivelmente arrepiado e sinistro. E Annabel alisava o cabelo da
menina, beijava-lhe o rosto quente e corado. As narinas, os olhos e os
lábios da menina tinham o mesmo quentume e brilhos dos de Annabel.
E ele não pôde ver inteiramente, a escabrosidade o acordou, mas
vislumbrava no final do sonho: as duas se entregavam a algo
terrivelmente pecaminoso […] (DOURADO, 2006, p. 133 e 134, grifos
nossos).
O que Daniel sentia por Annabel era incomum. Ele desejava aquela mulher com
porte de menina, “[…] A mulher aparece ora como santa ora como prostituta ora como
demônio […]” (NOLASCO, 1993, p. 133). Neste último devaneio de Mr. Moore,
podemos perceber que Annabel já não vem como a figura de um anjo, ela não traz a paz
que tranquiliza Daniel, ela ainda possui o corpo de uma menina, mas há fogo em seus
olhos. O fogo representa o mal, o desejo de Daniel, ao vê-la ele sente a necessidade
absurda de amá-la, a visão da boca carnuda, da língua grossa e dela molhando os lábios
80
com a língua, e a quentura de seu corpo nos dá uma cena erótica, despertando o desejo
de prazer de Mr. Moore. “[…] A dimensão da santidade e da vulgaridade presentes na
mulher aparece na representação que um homem deve ter para si. […]” (NOLASCO,
1993, p. 134). Mesmo sabendo que era sua mulher, ele temia tê-la para si, pois algo o
condenava, ao mesmo tempo em que ela transmitia uma certa santidade ela também
apresentava algo vulgar, essa vulgaridade era transmitida pelo fogo e pelo quentume de
seu rosto e isso fazia com que Daniel quisesse tomá-la para si. Annabel tinha mãos de
menina e se parecia com uma, porém essas mãos já não eram as dela, as mãos brancas e
pesadas eram as próprias mãos do pastor, talvez por isso a sombra de Mr. Kernan o
ameaçava tanto. Ao ver a menina junto a Annabel, elas duas se tornam uma só, como se
fizessem parte do mesmo passado e da mesma história. Tamanha era a junção das duas
que a certo ponto as mesmas características da menina eram as de Annabel. Ao colocar
a menina no colo temos uma relação intensa entre Annabel e a menina, as carícias
trocadas e o quentume no rosto e a respiração ofegante das duas, nos revela um ato
sexual entre elas, sendo isso algo terrivelmente pecaminoso para o pastor.
A figura do pássaro que piava e era terrivelmente arrepiado remete-se a João,
que o tempo todo representa a externalização do outro de Mr. Moore, fazendo-os ser
também apenas um. E assim a mulher, com características de menina, e a menina, que
ganha a sensualidade da mulher, tornam-se vítimas do mesmo ato terrivelmente
pecaminoso. Ao final da narrativa, quando Daniel Moore se vê livre de João Piló, é
como se ele finalmente conseguisse fazer com que o outro adormecesse de vez dentro de
si. “[…] era como se uma parte dele mesmo, a sua sombra se afastasse, para só restar a
claridade” (DOURADO, 2006, p. 136). Tudo voltaria ao normal.
Vimos como a separação dos dois foi um alívio para o pastor. A primeira
impressão que temos é a de que João, um criminoso e pedófilo, não existe nenhuma
possibilidade de estar associado a Daniel Moore, um pastor politicamente correto e
temente a Deus. Mas ao vermos que o pastor guarda em si um segredo e um mistério
que só ele conhece, João Piló pode ser a exteriorização do seu segredo. O narrador
dissocia o pastor do criminoso quando os separa em duas pessoas distintas e ao final
junta-os como se fossem um só, porém o bom lado (o lado correto do pastor) prevalece
e a representação do mal (João Piló) morre ou adormece voltando tudo ao normal outra
vez.
81
Neste conto, o desejo pedofílico expressado por Daniel Moore é tão subjetivo
que se mostra como uma luta constante consigo mesmo, e o lado acusador é o seu juízo,
mostrando-lhe o que parece certo, e a sombra do seu outro é o lado pecaminoso que
insiste em se revelar. A religião torna-se uma fuga para esconder o desejo pedofílico
que há nessa personagem tão complexa e aflita que se condena o tempo todo por possuir
um desejo tão perverso. Diferentemente do próximo e último conto a ser analisado,
“Mulher Menina Mulher”, que veremos uma espécie de aceitação da pedofilia na
sociedade por meio da instituição matrimonial.
Ninguém deve culpar-se pelo que sente, não somos responsáveis pelo que nosso corpo
deseja, mas sim, pelo que fizemos com ele.
(Érico Veríssimo)
quais afirmam que: “Em Roma, Tibério — imperador — romano possuía interesses
sexuais por crianças. Há relatos de que ele as levava para a ilha de Capri, onde as
obrigava a satisfazer seus impulsos sexuais com mais diversos atos” (CARTER-
LOURENZ e JOHSON-POWELL apud CARVALHO, 2011, p. 18-19).
Portanto, é fato que essas práticas faziam parte da cultura daquela época. Ainda
em Roma, era normal o pai ter relações sexuais com os filhos, pois eles acreditavam que
o pai possuía total poder sobre a vida dos filhos, os quais dependiam dele. Em vários
outros lugares, havia a prática de atos sexuais que hoje remetem à pedofilia. No Egito,
os faraós satisfaziam os seus desejos sexuais com crianças, os árabes possuem registros
de histórias dos samurais que faziam meninas, ainda crianças, prisioneiras, e mantinham
relações sexuais com elas até completarem idade adulta, quando eram libertas.
Como a maioria desses casos era encoberta por uma questão cultural, no Brasil
também não foi diferente. Antigamente, a prática do casamento arranjado era muito
comum. Os pais permitiam que as meninas, assim que passasse a menarca (a primeira
menstruação), se casassem com homens muito mais velhos, o que garantia a herança
familiar e a preservação da honra da família. Muitos pais, por serem pobres, entregavam
suas filhas para homens mais velhos por não terem condições de criá-las, garantindo
assim um futuro para elas. Essa cultura de casamentos arranjados, aqui no Brasil, durou
muito tempo, quando o patriarcalismo prevalecia. Carvalho (2011) ressalta que
[…] tais casamentos eram culturalmente aceitos, sem serem vistos como
uma prática pedofílica. No entanto, com o passar dos tempos, as concepções
foram mudando, não sendo mais aceita essa desproporção entre as idades,
além da desigualdade física e psíquica (CARVALHO, 2011, p. 21).
Com o passar do tempo, esse tipo de casamento entre meninas muito jovens com
homens mais velhos tornou-se meio incomum, pois, de certa maneira, esse era um ato
pedofílico camuflado pela instituição do casamento, mas que não deixava de ser um tipo
de pedofilia. Esses casamentos eram entre homens mais velhos e meninas novas. Por
que não o inverso? Por que não era e ainda não é bem-visto um relacionamento em que
a mulher seja mais velha do que o homem? A justificativa dessa não aceitação está
inserida na cultura da qual fazemos parte, e na posição social da mulher na época em
que esses casamentos arranjados eram aceitos, uma época em que as mulheres não
tinham direito de escolherem seus destinos, muito menos seus relacionamentos.
83
de Glória, pois esta não a tinha, mas sim, além dos modos de etiquetas, o jeito dela de
ser parecida com uma menina. No decorrer da narrativa, a figura da mulher infantilizada
vai aparecendo de forma perceptível e devagar e a personalidade de Margarino vai se
revelando, mostrando à sua maneira possessiva de amar:
[…] as demandas do coração dele conforme ele queria. Era terna, de voz
macia e pausada, sabia tocar música. […] Inteligente conhecia também por
intuição e prática a arte de se aproximar da alma humana (DOURADO,
2005, p. 21).
Aqui, percebemos que o desejo de Margarino por uma criança é expresso pelas
histórias que um contava ao outro relatando sua infância perdida, durante essas histórias
ele se transformava em um menino carente e queria chamar Ordália de mãe. Ao mesmo
tempo em que ele era um menino, era um homem que se satisfazia sexualmente com a
idealização de uma mulher menina. O desejo de pedofilia expresso por Margarino
levou-o a cantar para Ordália canções que sua mãe cantava para niná-lo, mesmo
desafinado ele transferia para ela o cuidado de uma mãe, a embalava nas suas canções
tratando-a como uma menininha. Este trecho nos remete ao complexo de Édipo
discutido por Freud em seu texto “A Dissolução do Complexo de Édipo”. Segundo
Freud, no complexo de Édipo, o sujeito mantém a sua mãe como objeto de amor, pois
esta é quem o satisfaz quando criança,
[…] Nessa relação reside a raiz da importância única sem paralelo, de uma
mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais
forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas
posteriores — para ambos os sexos (FREUD, 1940, p. 202).
[…] Estendeu a mão para ela, sentiu a pressão da mão dela, pequena e
macia. Meu Deus, como ela é bonita, que viva formosura! Os olhos grandes
e verdes, as sobrancelhas finas e arqueadas, o nariz e a boca sensual e bem
desenhados. Os cabelos castanhos, repuxados e presos por um pente no alto
da cabeça, tornavam o pescoço mais esguio, o que a fazia parecida como
uma bela girafinha. Tão jovem, podia ser uma filha caçula, devia ter uns
catorze anos (DOURADO, 2005, p. 36, grifos nossos).
do nariz e da boca sensual que prenuncia o desejo erótico proibido. A partir daí o desejo
pedofílico expresso por Margarino Vivas torna-se claro para o leitor, pois ela era uma
menina de catorze anos e ele um homem de cinquenta. Podemos afirmar que esse
interesse se torna um ato pedofílico, pois, conforme aponta Maria da Graça Blacene
Lisboa, em sua dissertação de mestrado Pedofilia um Olhar Interdisciplinar, a pedofilia
é a perversão sexual na qual a atração sexual de um indivíduo adulto está dirigido
primariamente para crianças pré-púberes (LISBOA, 2012, p. 13). Margarino não mediu
esforços para conquistar Esmeralda: ele a queria para si. Aquela ideia de mulher
infantilizada já não era o suficiente para satisfazê-lo, queria agora a menina mulher.
Como era um homem extremamente possessivo e ciumento, não suportou a ideia
de não ter aquela menina para ele, quando seu filho Gaspar veio lhe falar que queria se
casar com Esmeralda e esperava que seu pai pedisse a mão da bela jovem para ele,
como era de costume da época. Margarino fez totalmente o contrário: pediu a mão da
menina para ele próprio, despertando a ira de Gaspar e rompendo a relação entre pai e
filho. Esmeralda, que já havia se deixado encantar com a sensibilidade exposta por
Margarino, aceitou o pedido e casou-se com ele, porém não foi feliz, por causa do
ciúme de seu marido e de sua infância e inocência podadas antes do tempo: “ […]
Esmeralda se sentia infeliz, escolhera muito mal entre Gaspar e Margarino.[…] O ciúme
de Margarino, sem motivo, a humilhava, a fazia sofrer […]” (DOURADO, 2005, p. 45).
O casamento de Margarino e Esmeralda não foi saudável, porque ele na sua maneira
possessiva de amar, na sua desconfiança e no seu ciúme doentio a fazia infeliz.
Esmeralda era muito nova, uma criança que queria viver, e na sua meninice e no seu
espírito infantil, queria mesmo era brincar com Manuel, o jardineiro da casa onde ficava
quando Margarino ia trabalhar. Um dia ela pediu a Manuel que lhe abotoasse o vestido
nas costas e ele, ao ver sua nuca,
[…] sentiu o calor e o perfume dela. Suas mãos tremiam, seu coração
tuquetuqueava apressado. Ele aproximou bem o nariz da carne, para melhor
sentir o quentume e o cheiro, foi chegando os lábios na nuca de Esmeralda,
beijou-a. Ela se voltou, mirou-o bem nos olhos e lhe entregou os lábios
entreabertos. Se beijaram com avidez de dois apaixonados que eles, se
declararem, eram (DOURADO, 2005, p. 47).
A paixão entre os dois foi inevitável, o que não impediu o beijo entre eles.
Margarino não soube do ocorrido, porém dona Silvéria o advertiu dizendo que seria
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perigoso, em seu estado de gravidez, continuar com suas molecagens com Manuel.
Disse isso, pois não queria que o adultério ocorresse dentro de sua casa. Então o conto
se encerra, dando a ideia de que o casamento de Esmeralda e Margarino nunca daria
certo e que o adultério permaneceria entre os dois, pois ele já não conseguiria controlar
o auge da mocidade de Esmeralda.
Assim podemos analisar no conto “Mulher Menina Mulher”, de Autran
Dourado, o desejo pedofílico expresso por Margarino Vivas, que foi um homem que
viveu sua extrema discrição em seu primeiro casamento, mas não pode esconder esse
desejo, aflorando seus segredos ocultos e revelando sua alma pedofílica, depois que sua
esposa morreu, pois era com Glória e Ordália que suas fantasias sexuais, de uma mulher
infantilizada e com jeito de menina, eram supridas. Elas eram as mulheres que viravam
meninas, e ao conhecer Esmeralda, esse desejo ultrapassa os limites sociais, fazendo
com que ele se perca em seus impulsos e se case com uma menina, não precisaria mais
idealizar aquela mulher infantil, pois agora ele teria a menina que seria mulher. No
entanto, essa expectativa é quebrada, quando o casamento se concretiza. O
encantamento acaba, restando só angústia, dor e sofrimento, de um homem que se
entregou aos seus impulsos e desejos em busca da satisfação da sua alma, deixando
marcas incuráveis e uma menina com a infância perdida e sem nenhuma esperança de
poder viver um amor de verdade. Ao final da narrativa, percebemos que o ciúme
possessivo de Margarino aumentou ainda mais, pois ele sabia que não conseguiria
controlar a juventude de Esmeralda. O sorriso e a alegria da menina lhe incomodavam,
proibiu-a a sair de casa e até mesmo se chegar à janela, e nunca confiaria nela. Ordália
ficou no segundo plano de Margarino, já não era mais a mesma coisa entre eles apesar
de não se separar dela. Esmeralda foi forçada a amadurecer e a sujeitar-se ao ciúme do
marido, mas a esperteza e a juventude da menina deixam implícito o adultério.
Assim, Autran Dourado parece nos guiar para uma construção de uma moral da
narrativa que, quando há infrações às leis da natureza e na sociedade, o custo disto é
uma punição a qual acomete a todos os indivíduos relacionados, sejam os ativos, como
pode ser percebido no caso de Margarino, que fez com que os seus desejos
prevalecessem acima da razão. Finalizamos assim as análises dos contos de Autran
Dourado que apresentam a presença do desejo pedofílico e, diante desse estudo,
percebeu-se que os narradores dos contos parecem sugerir uma evolução do pensamento
90
legal e social sobre a pedofilia, ou seja, o casamento civil como uma permissão jurídica,
no passo que para a família tradicional é a aceitação social e pública do ato, como
podemos ver neste último conto.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação teve por objetivo analisar o desejo pedofílico nos contos de
Autran Dourado, tendo como objetos de análises os contos “Queridinha da Família”,
“Remembranças de Hollywood”, “Violetas e Caracóis”, “A Extraordinária Senhorita do
País dos Sonhos”, “Às Seis e Meia no Largo do Carmo”, “Mr. Moore” e “Mulher
Menina Mulher”. É interessante ressaltar que a obra de Autran Dourado engloba vários
assuntos sociais e envolve principalmente o lado psicológico das personagens. Isso traz
um enriquecimento para suas narrativas, permitindo-nos explorá-las e admirar ainda
mais esse autor. Mediante tal oportunidade, percebemos que o desejo pedofílico era
recorrente em algumas de suas narrativas e escolhemos, inicialmente, quatro dentre
delas para objetos de análise. Posteriormente, acrescentamos mais três contos que foram
utilizados na monografia para fazer parte do objeto de estudo, pois percebemos que
estes contos trariam maior contribuição para atestar a veracidade da nossa pesquisa.
Nossas hipóteses de pesquisa foram alcançadas, pois todos os personagens
masculinos manifestam o desejo pedofílico por meio de desejo compulsivo que eles
sentem por mulheres com traços de meninas, pela infantilização que eles fazem da
mulher adulta por não conseguirem se relacionar sexualmente com elas e pelo valor
emocional que as personagens masculinas colocam sobre a mulher infantilizada. Tais
hipóteses puderam ser confirmadas por meio do nosso aprofundamento teórico, crítico,
analítico e legislativo que fizemos sobre o tema. Os conceitos e os estudos
psicanalíticos foram inseridos nas análises dos contos, assim como a legislação penal e
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que possibilitou uma explanação maior
sobre o que é a pedofilia, quem é o pedófilo e como a pedofilia é retratada na sociedade,
nas artes, no cinema e na literatura.
Ao longo da dissertação, discorremos sobre como a pedofilia instaurou-se na
sociedade e como tem sido recebida na atualidade, dissertamos sobre um breve histórico
de atos pedofílicos desde a antiguidade e como foi sendo repudiado com o passar dos
séculos. Vimos também como a pedofilia foi explicada pela psicanálise onde mostramos
sobre os distúrbios e repressões sofridas pelos indivíduos que tem esse tipo de parafilia.
Juntamente com esses conceitos e estudos psicanalíticos, analisamos o primeiro conto
“Queridinha da Família”.
92
nos sonhos e delírios que o desejo pedofílico transparece, quando a figura da esposa do
pastor, já morta, e a figura da menina violentada, são erotizadas, tornando-se, para o
pastor, uma mesma imagem. Nessa passagem, vimos que a tentativa de regular esse
desejo faz com que o pastor tenha vários surtos de ansiedade e, ao conseguir se livrar da
presença do criminoso “real”, é como se controlasse toda perversão dentro de si.
No último conto analisado desse capítulo, “Mulher Menina Mulher”, podemos
concluir que o desejo pedofílico está na fantasia que a personagem masculina tem em
infantilizar uma mulher para manter relação sexual com ela. No conto, vemos três
figuras femininas que são infantilizadas pela personagem masculina. A primeira mulher
que aparece no conto é a esposa de Margarino, uma mulher feita, porém com o jeito
parecido com uma menina. Não tinha beleza alguma, nada que chamasse a atenção dos
homens, mas Margarino encontrava nessa mulher com traços de menina pleno prazer e
satisfação, chamando- a de menininha. A segunda imagem feminina que aparece no
conto é Ordália, uma mulher bonita que trabalhava no bordel de Duas Pontes, com a
qual Margarino se encontrava quando sua mulher morreu. Com o tempo, Ordália
percebeu a necessidade de Margarino de fantasiar uma imagem infantil para se
satisfazer com ela. Ao descobrir a alma pedofílica de Margarino, ela começa a se vestir
como uma criança, transformando-se em uma mulher menina. A terceira imagem
feminina que aparece no conto é uma menina de catorze anos de nome Esmeralda, com
a qual Margarino se encantou. Ao vê-la, tão nova e tão menina, Margarino não mediu
esforços para tê-la para si, queria a todo custo a menina mulher. A juventude, a
inocência e a inexperiência da menina contribuíram para ser objeto de desejo para
Margarino. Notamos neste conto a presença marcante da infantilização da mulher,
Glória e Ordália, e a sexualização da menina, Esmeralda. Como procuramos
demonstrar, essa foi a maneira de o narrador nos mostrar a presença do desejo
pedofílico.
Nosso estudo sobre o desejo pedofílico nos contos de Autran Dourado nos
possibilitou analisar e estudar um assunto que é bastante recorrente na sociedade atual.
Com as análises, percebemos que Autran Dourado parece nos guiar para uma
construção de uma moral da narrativa que, quando há infrações às leis da natureza e na
sociedade, o custo disto é uma punição a qual acomete a todos os indivíduos
relacionados. Podemos perceber que ainda há questões para serem tratadas nessas
95
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