O-DESEJO-PEDOFÍLICO-EM-CONTOS-DE-AUTRAN-DOURADO

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 99

DANIELA RODRIGUES SOARES

O DESEJO PEDOFÍLICO EM
CONTOS DE AUTRAN DOURADO

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS


MONTES CLAROS
Abril/2019
DANIELA RODRIGUES SOARES

O Desejo Pedofílico em Contos de


Autran Dourado

Dissertação de mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Letras:
Estudos Literários, da Universidade Estadual
de Montes Claros, como parte dos requisitos
para obtenção do título de Mestre em
Letras/Estudos Literários.

Área de Concentração: Literatura Brasileira

Linha de Pesquisa: Literatura de Minas Gerais

Orientador: Dr. Osmar Pereira Oliva

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS


MONTES CLAROS
Abril/2019
Soares, Daniela Rodrigues.
S676d O desejo pedofílico em Contos de Autran Dourado [manuscrito] / Daniela
Rodrigues Soares. – Montes Claros, 2019.
98 f.

Bibliografia: f. 96-98.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros -Unimontes,
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários/PPGL, 2019.

Orientador: Prof. Dr. Osmar Pereira Oliva.

1. Contos. 2. Desejo pedofílico. 3. Literatura brasileira. 4. Literatura de Minas


Gerais. 5. Dourado, Autran – 1926-2012. I. Oliva, Osmar Pereira. II. Universidade
Estadual de Montes Claros. III. Título.

Catalogação: Biblioteca Central Professor Antônio Jorge


AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Deus eterno, que esteve e sempre estará comigo, que colocou um
sonho no meu coração, me capacitou, me deu forças e direcionou meus passos para
conquistá-lo e aos meus pais, por estarem sempre ao meu lado.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — CAPES —
e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais — FAPEMIG — ao
financiarem, direta ou indiretamente, este projeto de pesquisa e os trabalhos produzidos
ao longo do mestrado.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários da Universidade
Estadual de Montes Claros por acreditar neste.
Ao professor Dr. Osmar Pereira Oliva por orientar os meus estudos desde a
graduação.
Muito obrigada!
“A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém ainda
pensou sobre aquilo que todo mundo vê.”

(Arthur Schopenhauer)
RESUMO

A presente dissertação tem por finalidade analisar o desejo pedofílico em contos de


Autran Dourado. A nossa pesquisa se insere no método dedutivo teórico bibliográfico,
pois se trata de uma leitura atenta acompanhada de anotações e fichamentos que
servirão para a fundamentação teórica do nosso estudo. O corpus é constituído de sete
contos de Autran Dourado, sendo eles: “Mr. Moore”, “Às Seis e Meia no Largo do
Carmo” e “A Extraordinária Senhorita do País dos Sonhos”, do livro Armas e corações
(1978), “Mulher Menina Mulher”, “Violetas e Caracóis” e “Remembranças de
Hollywood”, do livro Violetas e Caracóis (1987) e “Queridinha da Família”, do livro As
Imaginações Pecaminosas (1981). O nosso estudo se embasará em conceitos
psicanalíticos e antropológicos sobre a pedofilia, por meio dos estudos de Sigmund
Freud (2003; 2010), Carl Gustav Jung (1977; 1991; 2002) e Jacques Lacan (1985;
2008). Também discutiremos sobre como os pedófilos são vistos perante a lei e quais
são as punições previstas no código penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) para o crime de pedofilia. A pesquisa apresentará uma discussão relacionando à
teoria, à crítica e aos estudos psicanalíticos que envolvem pedofilia, contemplando os
contos de Autran Dourado, corpus deste estudo.
PALAVRAS-CHAVE: Autran Dourado; Contos; Desejo pedofílico; Literatura
Brasileira; Literatura de Minas Gerais.
ABSTRACT

The present dissertation aims to analyze the pedophilic desire in short stories penned by
Autran Dourado. Our research is part of the deductive theoretical method of
bibliography, since it is an attentive reading accompanied by careful annotations that
will serve for the theoretical foundation of our study. The corpus consists of seven short
stories by Autran Dourado, being: “Mr. Moore”, “Às Seis e Meia no Largo do Carmo”
and “A Extraordinária Senhorita do País dos Sonhos”, from the book Armas e Corações
(1978), “Mulher Menina Mulher”, “Violetas e Caracóis” and “Remembranças de
Hollywood”, from the book Violetas e Caracóis (1987) and “Queridinha da Família
from the book As Imaginações Pecaminosas (1981). Our study will be based on
psychoanalytic and anthropological concepts on pedophilia, supported by the studies of
Sigmund Freud (2003, 2010), Carl Gustav Jung (1977, 1991, 2002) and Jacques Lacan
(1985, 2008). We will also discuss how pedophiles are seen before the law and what
penalties are provided for in the penal code and the Child and Adolescent Status (ECA)
for the crime of pedophilia. The research will present a discussion featuring theory,
criticism and psychoanalytic studies that involve pedophilia, contemplating the short
stories of Autran Dourado, corpus of this study.
KEYWORDS: Autran Dourado; Brazilian Literature; Minas Gerais' Literature;
Pedophilic desire; Short Stories.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 8

CAPÍTULO I: DESEJO PEDOFÍLICO — HISTÓRIA E MANIFESTAÇÕES ... 10

1.1 — Pedofilia e a Sociedade Atual .................................................................. 11


1.2 — Como a Psicanálise Teorizou o Comportamento Pedofílico ..................... 15

CAPÍTULO II: A EXPRESSÃO DO DESEJO PEDOFÍLICO NOS CONTOS DE


AUTRAN DOURADO .............................................................................................. 33

2.1 — “Violetas e Caracóis” — o Desabrochar Visco Rubro do Desejo


Pedofílico........................................................................................................... 37
2.2 — “A Extraordinária Senhorita do País dos Sonhos” — as Claves que
Despertam o Desejo Pedofílico .......................................................................... 49

CAPÍTULO III: PEDOFILIA, CRIME, VIOLÊNCIA E PUNIÇÃO .................... 60

3.1 — “Às Seis e Meia no Largo do Carmo” — um Encontro Marcado, um Acerto


de Contas ........................................................................................................... 61
3.2 — “Mr. Moore” — o Encarceramento do Desejo Pedofílico ......................... 66
3.3 — “Mulher Menina Mulher” — a Mulher Infantilizada ................................ 81

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 91

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 96
8

INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem por objetivo analisar o desejo pedofílico em contos de


Autran Dourado. Analisaremos como esse desejo se manifesta nos contos “Mr. Moore”,
“Às Seis e Meia no Largo do Carmo” e “A Extraordinária Senhorita do País dos
Sonhos”, do livro Armas e Corações (1978), “Mulher Menina Mulher”, “Violetas e
Caracóis” e “Remembranças de Hollywood”, do livro Violetas e Caracóis (1987) e
“Queridinha da Família”, do livro As Imaginações Pecaminosas (1981).
A presente pesquisa iniciou-se por meio de um projeto de iniciação cientifica
orientado pelo Professor Dr. Osmar Oliva que se intitulava “ As formas breves de
Autran Dourado”, com o intuito de estudar as narrativas curtas do autor, os contos.
Conforme se desenvolvia a pesquisa encontramos em uma das narrativas alguns
aspectos que denotavam o desejo pedofílico em alguns contos. A partir daí sentimos a
necessidade de abordar sobre o assunto no trabalho de conclusão de curso e seguirmos
com o aprofundamento do tema nesta dissertação, pois não havia na crítica do autor
nenhum estudo em que abordasse esta temática nos contos e nem sobre a pedofilia na
ficção de Autran. O que torna o nosso objeto de pesquisa bastante relevante, pois
contribuirá para a crítica literária do autor.
Nossa hipótese é que o desejo pedofílico, representado nos personagens
masculinos dos contos autranianos, se expressa no desejo compulsivo que eles sentem
por mulheres com traços de meninas. Esse desejo também pode estar ligado à maneira
exagerada como esses personagens infantilizam as mulheres, demonstrando a sua
dificuldade de se relacionarem sexualmente com mulheres adultas. A figura
infantilizada da mulher possui um grande valor emocional para os personagens
masculinos, pois preenchem algo vazio dentro de si. Também se nota as consequências
e o desfecho trágico de cada personagem que manifesta esse sentimento, culminando
com a sua morte.
Em “Autran Dourado: escritor brasileiro” (2015), Dilva Frazão traça um breve
perfil da vida e da obra de Dourado, escritor brasileiro que recebeu o Prêmio Camões,
pelo conjunto de sua obra, o Prêmio Machado de Assis, o Prêmio Jabuti, entre outros.
Dourado nasceu na cidade de Patos, em Minas Gerais, no dia 18 de janeiro de 1926.
Filho de um juiz, morou em várias cidades. Estudou o primário na cidade de Monte
9

Santo e o ginásio na cidade de São Sebastião do Paraíso. Em 1940 foi morar em Belo
Horizonte. Começou a cursar a Faculdade de Direito, ao mesmo tempo em que
trabalhava como jornalista e taquígrafo da Assembleia Legislativa. Sua estreia na
literatura deu-se com a novela Teia, em 1947. Autran mudou-se para o Rio de Janeiro,
em 1954, onde trabalhou como serventuário da justiça. A literatura de Autran Dourado é
formada de conteúdo quase sempre trágico, mas onde está presente um clima poético, e
suas personagens, em geral, são criaturas solitárias, tipos primitivos, figuras inadaptadas
à vida que as cerca. A novela Uma Vida em Segredo foi adaptada para o cinema, e o
romance Ópera dos Mortos foi escolhido pela UNESCO para integrar sua coleção de
Obras Representativas da Literatura Universal.
No primeiro capítulo, apresentamos os conceitos antropológicos e psicanalíticos
sobre pedofilia, e também uma reflexão sobre como esse assunto vem sendo abordado
na literatura, no cinema e nas artes em geral. Estudos de Sigmund Freud (2003; 2010),
Carl Gustav Jung (1977; 1991; 2002) e Jacques Lacan (1985; 2008) serviram de suporte
para a compreensão desse tipo de parafilia, a qual se dá pelo processo de formação do
consciente do indivíduo ainda criança. Neste capítulo também discutimos sobre o conto
“Queridinha da Família”, da obra As imaginações pecaminosas.
No segundo e terceiro capítulos, analisamos os contos das obras de Autran
Dourado — Armas e Corações e Violetas e Caracóis — nos quais o desejo pedofílico se
manifesta nos personagens masculinos. Os contos analisados no segundo capítulo são
“Violetas e Caracóis” e “A Extraordinária Senhorita no País dos Sonhos”, contos que,
de formas distintas, nos mostram como se dá o desejo pedofílico mediante a descrição
do perfil psicológico e das atitudes das personagens. No terceiro capítulo, analisamos
uma série de desastres ocorridos em virtude do desejo, como nos contos “Às Seis e
Meia no Largo do Carmo”, “Mr. Moore” e “Mulher, Menina, Mulher”.
CAPÍTULO I

DESEJO PEDOFÍLICO — HISTÓRIA E


MANIFESTAÇÕES
11

1.1 — PEDOFILIA E A SOCIEDADE ATUAL

A pedofilia é um assunto que interessa a toda a sociedade atual. Durante todos os


períodos da história, houve atos pedofílicos nas diversas culturas pelo mundo. Relatos
históricos comprovam que, na Grécia e em Roma, a prática pedofílica, além de dispor das
crianças para serem objetos de satisfação sexual dos adultos, era permitida por lei como
parte da educação que introduzia crianças na vida sexual. Na cultura oriental, como na
China, por exemplo, os meninos eram castrados e vendidos para aqueles que seriam seus
pederastas. No Islamismo, a pedofilia foi praticada para compensar a proibição de outros
relacionamentos que não fossem entre homem e mulher. Assim, crianças eram abusadas
sexualmente para que as regras não fossem quebradas. Essas práticas pedofílicas foram
aceitas por alguns países até meados do século XX.
Com a expansão do Cristianismo pelo mundo, as práticas que faziam das
crianças vítimas de explorações diminuíram. Porém, apesar da condenação religiosa,
não cessaram os relatos de abusos sexuais infantis, e hoje a pedofilia é um dos
problemas mais graves enfrentados pela sociedade, mesmo com a existência de leis
específicas para a proteção do menor, vítima dessa ação, e penas para o agressor.
Após o surgimento dos estudos de psicanálise no final do século XIX pelo
austríaco Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise, a pedofilia passa a ser
analisada como transtorno sexual psíquico, tema que discutiremos mais adiante no
próximo tópico. Os estudos de Freud causaram alvoroço no mundo ocidental, mas
foram bem recebidos socialmente.
A sociedade patriarcal, defensora da moral e dos bons costumes, ditava as regras
de como ter uma família tradicional perfeita. Desde cedo, as crianças eram reprimidas
pelas suas atitudes inocentes, e mulheres eram orientadas a não sentirem nenhum desejo
sexual, pois tal manifestação era considerada pecado e feria a boa conduta social. Os
homens, enquanto maridos, também sofriam dessa repressão sexual, porém, podiam
viver suas fantasias sexuais com outras mulheres, que não fossem suas esposas, em
bordéis, preservando, assim, a moral e as boas maneiras da época.
Como consequência de repressão e tabus, surge o desejo de liberdade sexual, por
meio de movimentos que surgiram no século XVIII por uma descoberta de intelectuais
que defendiam que homens e mulheres tinham necessidade de sexo e teriam o direito de
12

serem livres para suas escolhas sexuais. Mas somente por volta de 1960 a 1980, tendo
como um de seus precursores o psiquiatra alemão Wilhelm Reich, que esses
movimentos de revolução sexual ou liberação sexual desafiaram a conduta social das
pessoas. O que antes era proibido, condenado e reprimido, começou a ganhar espaço de
maneira rápida, levando a “panela de pressão” de todos os desejos enrustidos a explodir.
A liberdade resultante propiciou não somente a quebra de tabus sobre assuntos sexuais,
como também acarretou diversos problemas. Os diferentes tipos de violência sexual
tornaram-se frequentes por toda a parte, sendo os maiores alvos mulheres e crianças.
Dentre esses problemas, a pedofilia se destaca como desvio de conduta, e o número de
abusos sexuais dessa natureza crescem cada vez mais desde a metade do século XX até
os dias de hoje.
Com tanta repercussão, o tema “pedofilia” começou a ganhar espaço de
comercialização. No cinema, diversos filmes, uns em forma de denúncia, outros não,
começaram a ser produzidos e nesse cenário configura-se um embate social, em que a
pedofilia fica entre a denúncia e a aceitação pelo viés da comercialização e da
industrialização. Essa exposição transformou-se numa cultura de massa, fazendo com
que o problema seja meio de retorno financeiro para os interessados em ganhar com tal
abordagem, sem interesse algum de incentivar o combate desse transtorno, o qual pode
gerar um tipo de violência sexual. Theodor Adorno e Max Horkheimer, no livro
Indústria Cultural e Sociedade (1951), argumentam que:

A unidade visível de macrocosmo e de microcosmo mostra aos homens o


modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular. Toda a
cultura de massa em sistema de economia concentrada é idêntica, e o seu
esqueleto, a armadura conceptual daquela, começa a delinear-se. Os
dirigentes não estão mais tão interessados em escondê-la; a sua autoridade se
reforça quanto mais brutalmente é reconhecida. O cinema e o rádio não têm
mais necessidade de serem empacotados como arte. A verdade de que nada
são além de negócios lhes serve de ideologia. Esta deverá legitimar o lixo
que produzem de propósito. O cinema e o rádio se auto definem como
indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais
tiram qualquer dúvida sobre a necessidade social de seus produtos
(ADORNO e; HORKHEIMER, 1951, p. 3).

Diante do interesse em retorno financeiro a partir desse tema polêmico e


considerado tabu, no cinema surgiu a figura da Shirley Temple, a garotinha que era o
encanto do exército americano durante a guerra. Nesse filme, vemos a figura infantil
13

totalmente exposta, contracenando com homens que tinham o dobro ou o triplo da sua
idade, e que a idolatravam. A pequena atriz foi protagonista de vários filmes que, em
sua classificação, não eram considerados filmes infantis, e cujos títulos são bastante
sugestivos para analisá-los como transmissores de uma aceitação social da pedofilia.
Dentre eles, temos Olhos Encantados (1934), Queridinha da Família (1934), A Mascote
do Regimento (1935), A Pequena Órfã (1935) e A Pequena Princesa (1939) e também
vemos Shirley Temple em dois contos de Autran Dourado como representação do
desejo pedofílico que será discutido posteriormente. Além dessa ideia de aceitação da
pedofilia, o cinema também retratou o assunto de maneira bruta e violenta, como
podemos constatar nos filmes Um Olhar no Paraíso (2009) e A Serbian Film: terror sem
limites (2010). Ambos os filmes mostram a pedofilia como uma forma de violência
sexual seguida de morte, relatam a dor e o sofrimento e a desumanização do ser
humano. Porém, recentemente, com lançamento do filme Vazante, lançado em 2017 e
dirigido por Daniela Thomas, vemos, em geral, que o filme explora a solidão, as raças e
gêneros no Brasil colonial, contudo detectou-se a presença de um ato pedofílico em que
uma menina, ainda em sua pré-adolescência, é obrigada a se casar com um homem com
triplo de sua idade. No entanto, houve uma cena do longa que foi explorada de maneira
extremamente natural.
A cena é rápida, mas é marcada por uma grande carga de erotismo, é
protagonizada pelo o homem e a menina, ainda criança, e vemos claramente uma
relação pedófila entre os dois, mas a imagem do pedófilo passada é de maneira sutil sem
causar repulsas e julgamentos. A troca de olhares entre eles, a situação romântica a qual
eles se encontram deixa transparecer todo o jogo de sedução, porém não há um ato
sexual consumado entre os dois, no que dá a entender que não havendo uma relação
sexual permanece uma espécie de situação “saudável” e aceita socialmente.
Na literatura, temos a repercussão da famosa Lolita, de Vladimir Nabokov,
romance publicado em 1955, cuja história se baseia em um homem de meia-idade,
professor, que cria uma obsessão por Dolores (Lolita), uma menina de 12 anos. O
romance ganhou fama rapidamente e é considerado um dos clássicos da literatura do
século XX. Foi adaptado para o cinema em 1962 e 1967 e também para musicais e
teatro. Além de ser considerado um livro erótico, podemos classificá-lo como um
romance totalmente pedofílico. Além de Lolita, outras obras literárias abordam o
14

assunto, apresentando a pedofilia de maneira romantizada. A criança tem o seu corpo


infantil sexualizado, levando o leitor a pensar e interpretar como esse assunto está
arraigado em nossa sociedade e em nossa cultura e como a literatura anuncia essa
violência — muitas vezes escondida dentro da própria casa — que se infiltra nos lares,
criando enredos que desmascaram a hipocrisia da sociedade atual.
Além da literatura e do cinema, a pedofilia também é abordada como tema em
outras formas de arte, e as opiniões são divididas: uma parcela da sociedade manifesta
certa revolta diante da exposição de crianças em representações artísticas com apelos
sensuais ou eróticos, e outra parcela revela uma aceitação pedofílica. Recentemente, em
uma exposição de arte no Museu de Arte Moderna (MAM), no Ibirapuera, zona sul de
São Paulo, uma mãe permitiu que a filha menor de idade apalpasse um homem nu, em
uma apresentação que aconteceu na estreia do 35º Panorama de Arte Brasileira, com a
justificativa de que seria importante para a criança conhecer, por meio da arte, o corpo
humano. Esse acontecimento gerou revolta e contradições de ideias por parte da
população e a mídia divulgou o fato de diversas maneiras e pontos de vista, o que
possibilitou a participação geral das pessoas pelas redes sociais. A apresentação artística
foi bastante criticada devido à exposição da criança e ao comportamento da mãe, por ter
permitido que sua filha passasse por algo tão constrangedor, e os organizadores do
evento foram acusados de incentivo à pedofilia. Enquanto isso, o Museu afirmou que a
exposição não tinha conteúdo erótico, pois se tratava de uma leitura interpretativa da
obra “Bicho”, de Lygia Clark.
No entanto, por mais ampla que seja a noção de pedofilia pela sociedade, há,
ainda, certa hipocrisia em relação ao seu combate. Ao mesmo tempo em que surgem
campanhas contra a pedofilia e contra o abuso sexual infantil, temos a exposição
exagerada de crianças nas redes sociais, como no Facebook, Instagram, e em outras
mídias. Pais que expõem seus filhos em busca de visualizações, como forma de ganhar
dinheiro, incentivando as danças que revelam a sensualidade infantil, principalmente
nas meninas, por meio de músicas funk cujas letras, muitas vezes, são apologias ao
sexo. Essa hipocrisia social atesta que, mesmo com a pedofilia sendo cada vez mais
criminalizada ao longo dos últimos séculos, a mesma não deixa de ser explorada por
outros vieses, especialmente se for implícita e, sobretudo, se puder gerar retorno
comercial.
15

Este trabalho tem por tema o desejo pedofílico nos contos de Autran Dourado. Em
algumas de suas narrativas curtas, o escritor aborda o desejo pedofílico, nas entrelinhas
do texto, mostrando uma realidade presente por toda a formação de nossa sociedade.
Nesses contos, contudo, o tema é tratado de maneira subjetiva e implícita ao mesmo
tempo. O interesse pelo tema surgiu após a leitura de um dos contos, onde o narrador
insinua que a personagem principal possui uma “alma pedofílica”. Diante dessa pista do
narrador, despertou-nos o interesse em abordar a temática nos contos, procurando
entender o porquê, e de que maneira o autor trata esse desejo delicado e complexo.
Quase todas as narrativas de Autran Dourado têm como cenário a cidade de
Duas Pontes, no interior de Minas Gerais. Nessa cidade imaginária, predomina a
sociedade patriarcal que preserva a moral e os bons costumes, e quase todos os seus
personagens se preocupam com essa conduta social. O desejo pedofílico nas narrativas é
exposto como uma luta interior que se transforma em temor e medo, a partir do
momento em que os personagens que nutrem esse desejo temem ser descobertos pela
sociedade. Além disso, buscar entender o interior e o que leva o ser humano a ter tais
desejos é bastante relevante no estudo, pois, por meio do texto literário, também
podemos compreender problemas sociais que estão presentes nas famílias ou próximos
a elas. Ainda não há uma crítica sobre a obra de Dourado em relação ao tema, então
propomos pensar seus personagens pelo viés psicanalítico, uma vez que há mais conflito
interior do que realmente a descrição da pedofilia seguida de abuso sexual.

1.2 — COMO A PSICANÁLISE TEORIZOU O COMPORTAMENTO


PEDOFÍLICO

Com base nos estudos psicanalíticos, a pedofilia deve ser estudada com um
pouco mais de atenção. Como já citado, a pedofilia se enquadra no ramo das parafilias,
um desvio da conduta sexual. Assim, temos um transtorno de preferência sexual. Em
artigo intitulado “Erotização dos Corpos Infantis, Pedofilia e Pedofilização na
Contemporaneidade”, Jane Felipe e Liliane Madruga Prestes apresentam o conceito de
parafilia de acordo com o Catálogo Internacional de Doenças – CID:

As parafilias são caracterizadas por anseios, fantasias ou comportamentos


sexuais recorrentes e intensos que envolvem objetos, atividades ou situação
16

incomuns e causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no


funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida
do indivíduo. As características essenciais de uma parafilia consistem de
fantasias, anseios sexuais ou comportamentos recorrentes, intensos e
sexualmente excitantes, em geral envolvendo: 1) objetos não-humanos, 2)
sofrimento ou humilhação, próprios ou do parceiro, ou 3) crianças ou outras
pessoas sem o seu consentimento (FELIPE e PRESTES, 2012, s/p).

Para quem sofre desse transtorno, tais situações são excitantes, o que torna esse
comportamento recorrente. As fantasias manifestadas pelos indivíduos portadores
desses transtornos advêm do processo de abstração que eles retiram dos objetos que
desejam. Carl Gustav Jung, em seu livro Tipos Psicológicos (1991), explica essa
abstração de objeto (colocando-se no lugar do sujeito), afirmando que quando se assume
uma atitude

[…] abstrativa em relação ao objeto, não deixo que ele atue sobre mim como
um todo; tomo uma parte, que separo de suas conexões, e excluo as partes
que não interessam. Minha intenção é livrar-me do objeto enquanto
totalidade única e individual e só aproveitar uma parte. Evidentemente tenho
a visão do todo, mas não me aprofundo nesta visão; meu interesse não vai
para o todo, mas sai do objeto como um todo e volta para mim com a parte
escolhida, isto é, volta ao mundo de meus conceitos que já está pronto ou
constelado para abstrair uma parte do objeto (Só é possível abstrair do objeto
mediante uma constelação subjetiva de conceitos). Considero o interesse
como energia=libido que atribuo como valor ao objeto ou que este atrai
sobre si, eventualmente, contra minha vontade ou sem que eu esteja
consciente disso. Visualizo, portanto, o processo de abstração como a
retirada da libido do objeto, como um refluir do valor que abandona o objeto
para um conteúdo subjetivo e abstrato (JUNG, 1991, p. 385).

Portanto, o objeto como símbolo de perversão sexual não será totalizado pelo
indivíduo, o que interessa aqui é apenas a parte que se abstrai dele. A abstração desse
objeto é aquilo que é interessante para o indivíduo e, ao voltar para o consciente, a parte
escolhida faz com que o indivíduo desperte a libido para com aquele objeto. O portador
desse tipo de parafilia não controla seus desejos, pois não há consciência do desejo que
sente ao ver o objeto sem que este desperte o seu interesse. No caso do pedófilo, o
17

objeto que propicia o desejo é, geralmente, a criança, ou em casos excepcionais, adultos


que possuem características ou traços infantis. A CID classifica a pedofilia da seguinte
forma:

Uma preferência sexual por crianças, usualmente de idade pré-pubere ou no


início da puberdade. Alguns pedófilos são atraídos apenas por meninos,
outros apenas por meninas e outros ainda estão interessados em ambos os
sexos. A pedofilia raramente é identificada por mulheres (FELIPE;
PRESTES, 2012, s/p).

As características infantis, somadas aos traços delicados e geralmente frágeis,


formam um quadro atrativo em jovens de idade pré-púbere que chamam a atenção de
pedófilos. Estes, por sua vez, podem desenvolver mais de um tipo de interesse
pedofílico, podendo ter desejos por meninas, meninos ou ambos. O pedófilo procura
aproximar-se do seu alvo, muitas vezes, ganhando a sua confiança e fazendo-se
“amigo” para, em um momento oportuno, realizar seu objetivo, que é exteriorizar a sua
perversão. Para isso, procura um ambiente que favoreça a sua ação ou “constrói” estes
lugares para garantir a discrição e a não ameaça do seu propósito.
Diante desses apontamentos, podemos tecer uma discussão sobre como a pedofilia
é vista na psicanálise. A pedofilia, diferentemente de outras parafilias, não é identificada
de imediato. O sujeito pedófilo pode trazer uma carga emocional e psicológica muito
grande, que se acumulou desde sua infância. Essa carga emocional pode emergir devido
a um bloqueio que teve quando criança no momento em que se descobria sexualmente e
também descobria a sexualidade do outro. Sigmund Freud, em O Ego e o ID e Outros
Trabalhos (1969) explica que esse tipo de perversão geralmente está ligada à infância
do indivíduo por um acontecimento em que ele foi repreendido: “[…] todas as
inclinações à perversão tinham suas raízes na infância, que as crianças têm uma
predisposição a todas elas e põem-nas em execução numa medida correspondente à sua
maturidade” (FREUD, 1969, p. 363). A percepção de uma relação de sexualidade
pervertida manifesta-se quando o indivíduo sente dificuldade em manter um
relacionamento sexual normal, ou quando tem a privação dessa satisfação. Segundo
Freud, a perversão sexual está presente nessa pessoa de maneira constante e

[…] se procede o fato de que um aumento da dificuldade em obter satisfação


sexual normal da vida real, ou a privação desta satisfação, põe a mostra as
18

inclinações pervertidas de pessoas que, anteriormente, nada disso tinham


demonstrado, devemos supor que nessas pessoas havia algo que já se
encontrava a meio caminho das perversões; ou , se preferirem, as perversões
devem ter estado presentes, nessas pessoas em forma latente (FREUD, 1969,
p. 363).

O pedófilo, aparentemente uma pessoa normal, convive socialmente, não


existindo uma característica exata que o defina como portador dessa neurose. Podemos
dizer que esse tipo de indivíduo pode passar despercebido, visto que ele investe numa
vida familiar e social aparentemente normal e convencional, mas mantém, em seu
mundo subjetivo, em espectro, um fantasma, uma sombra que carrega uma tensão do
desejo recalcado. Freud, em História de uma Neurose Infantil (“O Homem dos Lobos”),
Além do Princípio do Prazer e outros textos (1917-1920) (2010), define fantasma ou
fantasia como marcas inconscientes da estrutura do psíquico do sujeito, que se impõe
como formas de apreensão de uma realidade que se contrapõe com o ser desejante.
No conto “Queridinha da Família”, do livro As Imaginações Pecaminosas,
publicado em 1981, o narrador nos traz uma história na qual se revela o outro lado da
moeda de um homem que tinha a sua conduta moral bastante respeitada. Esta narrativa nos
apresenta Valdemar Filgueiras, um homem que viveu sua vida em função de preservar o
banco da cidade de Duas Pontes e que tinha por espelho a família dos Macedônios. “FOI A
MORTE QUE NOS REVELOU de repente e por inteiro quem era Valdemar Filgueiras”
(DOURADO, 2005, p. 30). O conto inicia-se com esta afirmação, induzindo-nos a conhecer
ainda mais quem era esse homem. Como podemos ver, notamos que o narrador, ao afirmar
que Valdemar foi revelado só após a morte, nos coloca uma interrogação e uma suspeita de
que ele escondia algo em si jamais percebido por alguém. Mas quem era Valdemar
Filgueiras? E o que provocou sua morte?
Antonio Candido, em seu texto “A Personagem do Romance” (1970), afirma que
a personagem é vista apenas como algo fictício, tornando-se algo paradoxo, pois não há
como existir algo que não existe:

[…] no entanto, a criação literária repousa sobre esse paradoxo, e o


problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um
ser fictício, […] o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de
relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem,
que é a concretização deste. […] (CANDIDO, 1970, p. 55)
19

Por meio da afirmação de Candido, podemos perceber que Valdemar Filgueiras


é uma personagem que mantém essa relação entre o vivo e o fictício. No decorrer da
narrativa, descobriremos como a realidade fundir-se-á na ficção autraniana de maneira
intrínseca e perceptível.
Valdemar Filgueiras é descrito como um homem ambíguo que, por um bom
tempo, só se mostrava um lado da sua personalidade. Antes da fatalidade que deu fim à
sua vida, o narrador nos descreve um Valdemar ainda menino, quando era apenas um
garoto de recados do antigo dono do banco de Duas Pontes, o velho coronel Julio
Macedônio. De porte pequeno “[…] miúdo e engravatado […] (DOURADO, 2005, p.
30), mais tarde tornou-se diretor-gerente do banco quando Vítor Macedônio assumiu o
lugar do pai. Depois da morte de Vítor e com a chegada do novo diretor do banco, Elias
Nasser, Valdemar Filgueiras se viu completamente à frente do Banco de Duas Pontes,
prosperou ainda mais e fez do banco “[…] sua catedral e morada, força e poder […]”
(DOURADO, 2005, p. 37). Seguindo sua idealização pelos Macedônios e espelhando-se
em Elias Nasser, Filgueiras prosperou ainda mais. Mas essa prosperidade fez com que o
outro lado da moeda virasse e que o outro Filgueiras fosse revelado, como o “[…] velho
e mirrado Filgueiras de olhinhos de rato e mãos pequeninas […]” (DOURADO, 2005,
p. 33). Ele era um dos homens mais importantes de Duas Pontes, por isso ninguém
imaginava no que ele poderia se transformar, pois

[…] só duas coisas eram capazes de comover o empedernido Valdemar


Filgueiras, que pra gente representava o capital nacional e a pátria brasileira.
[…] ele não era um homem sem coração, a gente dizia mais pra defender a
pátria brasileira, o poder nacional. Só duas coisas: o culto à memória
silenciosa dos Macedônios, principalmente Vítor, e a preciosa e popular
figurinha e superestrela do cinema, a adorável Shirley Temple […]
(DOURADO, 2005, p. 35)

Por meio dessas informações, o narrador nos deixa uma pista do que poderia ser
esse outro que ninguém sabia que poderia existir em Valdemar, mas, além da admiração
pelos Macedônios, foi a fascinação por Shirley Temple que fez com que Filgueiras
descesse de sua conduta moral e respeitável e fosse contra o que era até então, os seus
princípios e valores. Antonio Candido, discutindo o caráter da personagem de ficção,
afirma que:
20

[…] a primeira ideia que nos vem, quando refletimos sobre isso, é a de que
tal fato ocorre porque não somos capazes de abranger a personalidade do
outro com a mesma unidade com que somos capazes de abranger a sua
configuração externa. E, concluímos, talvez, que esta diferença é devida a
uma diferença da natureza dos próprios objetos da nossa percepção[…]. Esta
impressão se acentua quando investigamos os fragmentos de ser, que nos são
dados por uma conversa, um ato, uma sequência de atos, uma afirmação,
uma informação. (CANDIDO, 1970, p. 55 e 56)

A primeira impressão que temos de Filgueiras é de um homem politicamente


correto e incorruptível. Porém, o narrador vai deixando sugestões que fazem com que essa
impressão se dissolva no decorrer dos fatos. Ainda sobre o conceito de personagem,
Candido (1970) complementa dizendo que “[…] os seres são, por sua natureza, mistérios
inesperados. […]” (CANDIDO, 1970, p. 56). E como é difícil de se conhecer totalmente
uma pessoa e o coração humano, veremos como tudo aconteceu. Shirley Temple era uma
atriz mirim de Hollywood, e foi a responsável pela reviravolta na vida de Filgueiras. Essa
ilustre figura surgiu como atriz cinematográfica na década de 1930, e foi para os norte-
americanos a “salvação” em um período de grande depressão. Muito elogiada por todos
entre 1933 e 1945, o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, chegou a dizer
naquela época que, “desde que nosso país tenha Shirley Temple nós vamos ficar bem” (G1,
2014). Assim como essa garotinha “salvou” a crise de um país, também salvou a crise
interior do tão respeitável Filgueiras, que vivia trancafiado no banco Duas Pontes e se
dedicava completamente aos seus afazeres. “[…] Como quase nada sabia da sua vida
particular (a mulher e os dois filhos praticamente não existiam)” (DOURADO, 2005, p. 37),
a população de Duas Pontes presenciou a perda do juízo de Filgueiras causado pela figura
da inocente criança. É por meio dessa “loucura” que vemos as marcas do desejo pedofílico
em “Queridinha da Família”:

Ah, Shirley Temple das nossas aflições, das nossas alegrias, dos nossos
pecados![…] Ah quem vive hoje não pode saber o que era a emoção que
Shirley Temple provocava na tela e na plateia como mascote querida do
regimento colonial! Quem não apreciou ela cantar On The Good Ship
Lollipot, quem não chorou as mais sentidas lágrimas e não vibrou com
aquelas músicas todas, com todas aquelas histórias, não sabe de nada. Os
vestidinhos curtos, pregueados ou plissados, feitos especialmente para
facilitar a dança e mostrar as coxinhas, os passos corridos e aéreos. Ah, as
pernas e as coxas! Diziam os mais taludinhos e safados já no vício da
masturbação. Ah, as roupas depois imitadas, o uniformezinho do regimento,
os sapatinhos de verniz e pulseirinha, com chapinhas de ferro na ponta!
Diziam as comportadas meninas boazinhas de repente todas elas estudando
21

música e dança com dona Ordália. Sobretudo quem não apreciou o


mirabolante e fantástico sapateado não pode conhecer na sua completa e vera
extensão a calamidade que foi para Valdemar Filgueiras o conhecimento de
Shirley Temple – toda a vida e paixão do rico homem de negócios em que
ele se transformou (DOURADO, 2005, p. 36 e 37).

A queridinha da família é vista como responsável por todos os sentimentos de


quem assistia às suas fitas. Não havia como decifrar a emoção sentida pelo público
(principalmente masculino), as belas sensações que aquela menina trazia. Shirley
Temple é uma criança que acaba sendo erotizada, ao ser descrita pelo narrador com suas
características que causavam prazer a ponto de levar seus espectadores a se entregarem
ao vício da masturbação. A ousadia de seus vestidos curtos, com o intuito de deixar à
mostra as pernas e as coxas, despertava prazer e a sensualizava ao ponto de a figura da
criança inocente desaparecer, dando lugar à imagem de uma criança sensual fantasiada
na mente de todos. Essa fantasia ou fantasma será explicado por Jacques Lacan, em A
Lógica do Fantasma (2008), reforçando que o fantasma é portado dentro de uma bolha,
e que essa bolha remete ao desejo e à realidade, fazendo com que possamos entender,
então, que o fantasma é tudo o que se constrói entre o objeto e o sujeito (LACAN,
2008). Quando o sujeito é barrado de expressar-se mediante o que deseja, ocorre uma
espécie de bloqueio que o impede de chegar ao objeto de desejo e, a partir daí, cria-se a
fantasia ou o fantasma. A vontade de possuir aquilo que não é permitido faz com que o
fantasma comece a ser formado no inconsciente do sujeito, causando uma perseguição
para consigo mesmo.
A primeira vez que Valdemar Filgueiras deparou-se com Shirley Temple foi no
cinema da cidade, o Cinema Odeon. Depois de sua ascensão no banco, não se importava
mais com ninguém, mas a sua desilusão o levou ao cinema naquela noite: “[…] o que
ele queria era a escuridão solitária, o relaxamento, o abandono, a morte provisória […]”
(DOURADO, 2005, p. 39). Ao ver a menina dançando freneticamente, Valdemar
Filgueiras despertou algo dentro de si que nunca antes manifestara. Os seus olhos
brilhavam com a cena e “[…] ele por dentro e por fora se iluminou […]”(DOURADO,
2005, p.39). A partir daí, Valdemar fez de Shirley Temple a sua razão de viver e se
antes ninguém existia para ele, agora a queridinha da família era sua queridinha
também. O fanatismo pela fadinha nos revela o desejo pedofílico nesta narrativa, que
fez com que Valdemar Filgueiras se tornasse um homem totalmente vulnerável por suas
22

fantasias.
Todos nós somos propensos a desenvolver uma patologia que se enquadra no
grupo das parafilias, pois o processo de construção se dá em dimensões. A primeira
dimensão, que é a realidade na qual o sujeito se insere, está ligada ao mundo externo, às
regras e limitações às quais o sujeito é submetido e na qual se insere o objeto. A partir
do momento em que o indivíduo sofre uma espécie de corte, que geralmente ocorre na
infância, ele se vê impedido de ter aquilo que deseja, fazendo com que chegue ao
inconsciente de forma estimulante, de maneira que o desejo pelo que é proibido seja
ainda maior. O inconsciente, portador da bolha, faz com que se teça uma luta entre o
desejo e a realidade, sendo essa a segunda dimensão. Por fim, a terceira dimensão é
onde ocorre a perturbação do que foi cortado e do que é desejado. A terceira dimensão,
onde se criam as fantasias e os fantasmas, faz com que o indivíduo desperte dentro de si
uma obsessão por aquilo que lhe foi cortado. Quando esse mesmo indivíduo não
consegue se desvencilhar e administrar essas dimensões, nem reconhecer o limite delas,
deixando com que esses fantasmas saiam rompendo a barreira dos limites do
inconsciente, forma-se assim o distúrbio psíquico, tornando-se um perverso, quebrando
as regras sociais, surgindo, assim, o ser que deturpa, no caso em questão, o pedófilo.
Os pedófilos induzem as crianças e ganham a sua confiança com o intuito de se
satisfazerem sexualmente e, na maioria das vezes, esses impulsos causam sofrimento e
tormento para o seu alvo. As cargas emocionais trazidas da infância contribuem para a
formação do sujeito pedófilo. Ao descobrir sua sexualidade, a criança está sujeita a
novas descobertas do seu próprio corpo e do corpo do outro. O interesse pelo corpo do
outro incita, geralmente, repreensão daquela curiosidade que não pode ser saciada. Os
bloqueios sexuais sofridos quando criança podem acarretar transtornos psíquicos
ligados à sexualidade na fase adulta.
Filgueiras perdeu a sua postura de dominador e assumiu a função de dominado,
ele não mais controlava os seus impulsos e queria apenas satisfazer o seu desejo, que
era entregar-se totalmente aos encantos de Shirley Temple. Comprou todas as fitas, não
saía do cinema, fez com que todas as meninas da cidade se vestissem idênticas à
princesinha de Hollywood, fabricou várias Shirleys e “[…] como tinha muito dinheiro
foi fácil para ele interessar toda a cidade na incrível figurinha de Shirley Temple […]” (
DOURADO, 2005, p. 41).
23

O desejo pedofílico neste conto é bastante perceptível, tendo como base as ações
de Valdemar Filgueiras. Vemos que ele só começa a viver de novo ao se “apaixonar”
pela garotinha, e ao adotar essa postura ridícula perante a sociedade, começou a viver
cercado de meninas,

[…] todas vestidas à Shirley Temple, penteadas à Shirley Temple – os


fantásticos cachinhos, aquele fabuloso penteado que coroava a cabeça da
fada, da deusa, da rainha. E Valdemar Filgueiras distribuía balas, bombons e
caramelos para a plateia e mesmo para o poleiro, a festança era toda a noite
por sua conta, a gente se divertia e gozava a vida. Tudo era iluminação, tudo
mistério e luz. […] (DOURADO, 2005, p. 41).

Valdemar Filgueiras começa a ter comportamentos de um pedófilo, as suas


adorações pela criança tomem novos rumos e nos mostrem o outro que estava
adormecido dentro dele. Mas como fundamentar tal comportamento?
Freud, em Totem e Tabu e Outros Trabalhos (1913-1914), discute a iniciação
do despertar sexual da criança, ligada ao que é proibido, e assim esclarece:

A psicanálise nos ensinou que a primeira escolha sexual do menino é


incestuosa, concerne aos objetos proibidos, à mãe e à irmã, e também nos
deu a conhecer as vias pelas quais ele se liberta, ao crescer, da atração do
incesto. Já o neurótico representa para nós um quê de infantilismo psíquico,
ele não conseguiu libertar-se das condições infantis da psicossexualidade ou
reverteu a elas (inibição no desenvolvimento e regressão). Em sua vida
psíquica inconscientemente, então, as fixações infantis incestuosas da libido
têm ainda- ou novamente- um papel determinantes. Por isso chegamos a ver
a relação com os pais, dominada por anseios incestuosos, como o complexo
nuclear da neurose (FREUD, 2006a, p. 23).

Toda relação íntima de afetividade com cunho sexual em relação à família de


sangue é considerada incesto. Relações entre pai e filha, mãe e filho, entre irmãos, não
se enquadram na normalidade social do ser humano. Freud explica que a primeira
escolha sexual do menino é a mãe ou a irmã, e isso ocorre porque há toda uma
construção do inconsciente em andamento na cabeça da criança. Esse inconsciente,
ainda em construção, fará com que a criança produza uma série de descobertas em razão
da sua sexualidade. A partir do momento em que o menino percebe que ele e o pai
possuem o mesmo órgão genital, começa a desejar a mãe e a querer substituir o pai,
originando o Complexo de Édipo, o desejo de tirar o pai da mãe. Ao descobrir que o
corpo feminino é diferente do seu, que só o pai tem o mesmo que ele e que a mãe tem
24

uma proximidade com o pai, o menino sente raiva do pai e quer tirá-lo de sua mãe,
caracterizando, assim, uma espécie de paixão. Para o rompimento da ligação incestuosa,
é necessário que ocorra uma espécie de castração. O complexo da castração foi
percebido por Freud a partir de uma análise feita em um caso de fobia em um menino de
cinco anos.
Freud (2006a) especificou esse processo em quatro momentos, momentos estes
que são vividos pelo menino em relação à mãe e, posteriormente, com a menina em
relação ao pai. No primeiro momento da castração, o menino descobre que ele tem o
pênis e pressupõe que todas as pessoas também tenham. A menina, por sua vez, nesse
primeiro momento, também parte da premissa de que todas as pessoas têm um pênis, e,
para ambos, a mãe cumpre um papel muito importante na vida deles. É importante
ressaltar que todo o processo de castração ocorre em prol da formação do inconsciente.
No segundo momento de castração, o menino sofre uma espécie de ameaça, pois não
pode substituir o pai e recebe punições e proibições, construindo a ideia de que se
continuar a manter esse tipo de desejo e tendo certos comportamentos, será castrado em
forma de castigo. Já no caso da menina, esse segundo momento se dá pela descoberta da
diferença. Assim que ela percebe que o clitóris é pequeno demais para ser um pênis,
deduz que já passou pelo processo de castração e deseja que não tivesse ocorrido isso, e
passa a sofrer pela falta. No terceiro momento do complexo da castração, o menino vê
que há uma diferença entre homens e mulheres, elas não têm o mesmo que eles, fazendo
assim uma associação de que a menina foi castigada, ou seja, já passou pela castração.
Na menina, no terceiro momento, ela descobre a sua semelhança com a mãe e a
culpa por ter transmitido a ela essa deficiência. No quarto e último momento, ocorre a
angustia no menino, pois ele vê que sua mãe não tem pênis e deseja ser como ela — a
menina não tem esse quarto momento, pois já se dá no terceiro momento essa castração,
mas ao invés de querer ser igual à mãe, ela a culpa por não ser igual ao pai.
Após passar por todas essas etapas, a menina poderá seguir três caminhos
diferentes: a aceitação de não possuir o pênis e manter-se afastada da sexualidade, ou a
inconformação de não ter um pênis e a não aceitação da castração, o que possibilita,
mais tarde, levá-la à homossexualidade, sendo essa a solução para o complexo de
castração. Há uma aceitação da falta, ela transfere a paixão pela mãe para o pai, assim a
vontade de ter o pênis se transforma no desejo de apenas tê-lo para relações sexuais.
25

Para o menino, a solução do Complexo de Édipo só se quebra com o rompimento do


complexo de castração, pois ele vê que não pode competir com o pai nem quer ser
castigado pela castração. Assim, ele sofre a renuncia à mãe, assume que se insistir
poderá ficar sem seu pênis. Tudo isso é construído inconscientemente. No entanto,
quando a criança não consegue se desvencilhar do Complexo de Édipo, nem passar pelo
complexo de castração, ocorre uma falha de formação no inconsciente que,
possivelmente, levará ao desenvolvimento de algum distúrbio sexual na vida adulta.
É perceptível que, quando a criança começa a entender a questão da sexualidade,
seu primeiro desejo é voltado para o lado do incesto, em que o filho tem sua atração
pela mãe e pela irmã, ou também quando a menina sente essa atração pelo pai. A
psicanálise nos dá o entendimento de como essa atração incestuosa é quebrada, de
acordo com o crescimento da criança. Contudo, quando não consegue se libertar desse
desejo, ocorre um bloqueio que faz com que essa criança cresça com algum tipo de
neurose, a qual está vinculada ao inconsciente do sujeito, e que pode ter ocorrido devido
a uma repressão.
A neurose pode estar relacionada às situações externas que ocorrem na vida do
sujeito, provocando uma desordem mental e na personalidade do indivíduo, gerando
assim angústia e ansiedade. Diferencia-se da normalidade pela incapacidade do sujeito
em resolver seus conflitos interiores. O termo neurose deriva-se da palavra neuron
(nervo) e osis (doença ou condição anormal). Freud e Jung especificam a neurose como
consequência de um fracasso, de uma frustração sexual. As neuroses são divididas em
tipos, sendo os mais comuns: a neurose fóbica, em que o sujeito exterioriza a angústia
por meio de fobias, mantendo-se afastado do objeto de desejo por medo; a neurose
histérica dissociativa, caracterizada pela forma como o sujeito lida com seus conflitos
por meio da dissociação, causando confusão mental, amnesia ou personalidade múltipla;
e neurose obsessiva, marcada pela multiplicidade de pensamentos obsessivos, os quais
levam o sujeito a um conflito permanente entre o mundo exterior e os seus fantasmas
interiores.
Já é sabido que os transtornos sexuais aparecem na infância, sendo um tipo de
repressão que pode causar a neurose infantil. Jung (1991) discorre que, a partir do
momento em que ocorre a repressão, o inconsciente começa a produzir o conflito,
criando a neurose infantil. Jung afirma:
26

Quando o conflito atinge certa intensidade, a falta de formação da concepção


intelectual passa a atuar como impedimento, repelindo de volta a libido para
os rudimentos da sexualidade; é isto que constitui a causa de esses
rudimentos ou germes serem desviados precocemente para um
desenvolvimento anormal. Forma-se deste modo uma neurose infantil.
Principalmente as crianças bem-dotadas, nas quais as exigências na ordem
do pensar começam a desenvolver-se muito cedo devido a esses dotes
intelectuais, correm perigo muito sério de descambar para a atividade sexual
precoce, provocada pelas repressões pedagógicas de uma curiosidade tida
como inconveniente (JUNG, 1991, p. 4-5).

Dessa forma, é possível afirmar que a construção psíquica do indivíduo ocorre


na infância, determinando, em grande medida, a sua personalidade na vida adulta.
Porém, quando há o desencadeamento de angústias que começam a ser trabalhadas no
inconsciente, ainda em formação, a criança passa a ter vários conflitos internos,
causando a neurose infantil. A angústia que causa a neurose infantil, segundo FREUD
(2006a), vem de uma tensão física sexual que gera fobia e obsessão. Jung reafirma essa
questão ao informar que esse impedimento volta à libido, causando, assim, um desvio
de conduta, ou seja, um desvio que é anormal quando comparado com o que se espera
de um indivíduo psicologicamente saudável. Essas fobias estão ligadas aos sintomas de
histeria, gerando o medo exagerado do escuro, da morte, de animais, ou fobias de coisas
simples, como medo de andar na rua e medo de multidões. A causa dessa neurose é a
tensão sexual, que provoca a abstinência sexual ou uma excitação mal consumada. A
angústia também pode derivar do recalque, que se vincula ao medo da castração,
revelando assim a fantasia do desejar o objeto proibido.
A tensão sexual, causadora dos sintomas da neurose, faz com que todas as
aberrações referentes às variações sexuais normais, na cabeça dos neuróticos, resultem
em manifestações de doenças patológicas. Freud, em Um Caso de Histeria, Três
Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade e Outros Trabalhos (1901-1905), afirma:

(a) na vida anímica de todos os neuróticos (sem exceção) encontram-se


moções de inversão, de fixação da libido em pessoas do mesmo sexo. (b) no
inconsciente dos psiconeuróticos é possível demonstrar, como formadoras de
sintoma, todas as tendências à transgressão anatômica. (c) um papel muito
destacado entre os formadores de sintomas das psiconeuroses é
desempenhado pelas pulsões parciais, que na maioria das vezes aparecem
como pares de opostos e das quais já tomamos conhecimento como
27

portadoras de novos alvos sexuais – a pulsão do prazer de ver e do


exibicionismo, e a pulsão de crueldade em suas formas passivas e ativas
(FREUD, 2006c, p. 44-45).

Portanto, de acordo com as considerações de Freud, as pessoas que sofrem de


alguma “anomalia” neurótica desenvolverão algum transtorno de cunho sexual, que será
dividido entre as pulsões de ver e de exibir. A pulsão do prazer de ver, desenvolvida por
alguns pedófilos, é caracterizada pelo prazer em apenas contemplar o objeto; as
fantasias e desejos são satisfeitas pelo ato de ver e pela exibição do corpo do outro. Por
outro lado, essa neurose pode levar a uma pulsão de crueldade, com formas passivas e
ativas, quando, por exemplo, o pedófilo não se satisfaz apenas com o olhar; é preciso
tocar e apalpar o corpo do outro para que aquela fantasia construída em seu inconsciente
seja realizada. Às vezes, quando não satisfeito, o pedófilo ultrapassa o limite da
passividade e ocorre o abuso, pois a pulsão sexual é tamanha que ele só se satisfaz ao
possuir o objeto que almeja. Tomo como exemplo o pedófilo, por ser a pedofilia objeto
deste estudo, mas essas neuroses, causadas pelas tensões sexuais, podem acarretar várias
parafilias. FREUD (2006c) ainda afirma que essas pulsões são a delimitação entre o
anímico e o físico. Logo, todos os que sofrem de psiconeurose aproximam-se dos
perversos em sua conduta sexual, e se distanciam dos normais na mesma medida.
Mas como identificar a doença parafílica nos psiconeuróticos? Na maioria das
vezes, a doença só aparece após a puberdade, quando o indivíduo fica mais propenso à
vida sexual normal, e podendo, também, manifestar-se mais tarde, quando a libido ficar
privada das satisfações. As parafilias são conhecidas como interesses sexuais anormais
e englobam um grupo de indivíduos com preferências e condutas sexuais que desviam
do que é aceito pela sociedade. É característica essencial do indivíduo que sofre algum
tipo de parafilia agir de acordo com os impulsos sexuais que causam sofrimento a ele
mesmo. Essas perturbações normalmente afetam homens e, em casos excepcionais,
mulheres. As parafilias são várias, sendo as de maior evidência social o masoquismo, o
sadismo, o fetichismo e a pedofilia. Em outras palavras, a parafilia ocorre na mente da
pessoa, e se conecta à sua personalidade, pois nenhum sujeito portador desse transtorno
é apenas um, há sempre outro dentro de si, que o faz ter dualidade de personalidade e
caráter. Ao final do conto “Queridinha da Família”, presenciamos um fato que deixa
claro sobre esse desejo pedofílico expresso por Filgueras, como podemos ver:
28

[…]Ainda uma vez tudo lhe acontecera de repente na vida. Como aquela
noite em que o destino o levou o Cinema Odeon e ele descobriu Shirley
Temple. Estava Valdemar Filgueiras sentado num banco na academia,
quando veio sentar junto dele a menina mais velha e por sinal a mais
parecida com a artista. Tinha não só o vestido e o penteado, mas o queixo, os
olhos, as sobrancelhas – até covinha na cara possuía -, iguaizinhos aos da
princesa. Era a Elvirinha, filha de seu Gabriel de Sousa, dono de um
armarinho de miudezas na Rua de Cima, antigo administrador de uma das
fazendas do coronel Tibúrcio. Vinha cansada e ofegante, se deixou cair junto
de Valdemar Filgueiras.
Valdemar sentiu o quentume que evolava da menina, o cheiro ardente de
suor novo, a respiração de pomba. O gogó de Valdemar Filgueiras subiu e
não desceu, mesmo em seco não conseguia engolir. Os olhos vítreos, o
coração desgovernado, as mãos trêmulas. Num curto espaço de tempo um
tempo enorme se passou. O gogó de Valdemar Filgueiras agora subia e
descia apressadamente, ele achava que ninguém podia vê-lo. A mão trêmula
foi deslizando pela casimira da calça até encontrar a pequenina, quente e
suada mão de Elvirinha. Encontrou-a, e ela sedutoramente não a retirou. Os
dois ficaram de mãos dadas durante o resto do ensaio. E assim foi no dia
seguinte, e no outro.
A felicidade de Valdemar Filgueiras durou pouco. Uma tarde, quando era
mais forte a canícula, entrou em sua sala no banco (naquela mesma sala
fatídica onde ficava agora o relógio-armário e onde morrera Vítor
Macedônio) o jagunço Xambá e lhe desfechou seguidamente três tiros no
peito. (DOURADO, 2005, p. 43 e 44)

Este trecho nos deixa bem claro sobre o desejo pedofílico expresso por
Filgueiras, e a ideia de que tenha aflorado nele tal sentimento torna-se latente ao vermos
que o impulso de tocar na menina foi bem mais forte do que ele. Essa reação permite-
nos interpretar que ele sentiu algo bem mais do que uma admiração pela menina. Ao
descrever as características de Elvirinha, o narrador enfatiza o desejo erótico que fez
com que Filgueiras perdesse o juízo. Para ele, era a princesinha de Hollywood que
estava vendo. O queixo, as covinhas, o suor novo e ardente da menina deixam claro que
o interesse dele por ela ia além do que uma simples admiração.
Freud aponta que a “[…] neurose perturba de algum modo a relação do paciente
com a realidade servindo-lhe de um meio de se afastar da realidade, e que, em suas
formas graves, significa concretamente uma fuga da vida real” (FREUD, 1969, p.229).
A neurose vai se expressar na reação contra a repressão e quando esta tiver sido
fracassada. Os que não conseguem romper com esses transtornos e repressões oriundas
da infância virão a ter sérios danos e doenças psicológicas que normalmente se
desenvolverão na vida adulta. Assim, o indivíduo vive uma luta constante entre o seu
mundo interno contra o mundo externo. O pedófilo sofre de transtornos psicológicos
29

que necessitam de tratamento. As ações que geram a pedofilia podem levar o indivíduo
a cometer crimes e violências contra crianças, mas não podemos afirmar ou concluir
que um pedófilo seja somente um criminoso ou um doente, temos apenas fatores que
explicam as causas das perversões sexuais.
O narrador nos deixa claro que a atitude da menina foi sedutora, o que nos dá a
ideia de que ela também procurou tal envolvimento e que o encontro dos dois tornou-se
diário. Por meio de tais pistas e pelo envolvimento amoroso dos dois, temos o desfecho
trágico de Filgueiras, que foi a sua morte. A morte do nosso fanático Filgueiras não
encerra e não acaba com nossas perguntas, não se sabe se a sua perda de juízo foi quem
deu fim à sua felicidade. Mas Autran Dourado, em sua sutileza e sua arte em dominar as
palavras, não poderia deixar tudo explícito ao leitor, pois o que é implícito nos autoriza
interpretar que a personagem se envolvera sexualmente com uma criança. E que poderia
ter sido o pai dela que contratara o jagunço Xambá para pôr fim a esse hediondo crime
de violência contra a ingênua infância, conforme a lei do Estatuto da Criança e
Adolescente — ECA, no art. 217, que pune o indivíduo que pratica ato sexual contra
vulnerável.
Podemos perceber também em Valdemar Filgueiras sua dupla personalidade. Na
teoria de JUNG (1991), persona é a personalidade que o sujeito apresenta aos outros,
como real, mas na verdade é uma variante muito diferente da verdadeira. Para
entendermos melhor sobre persona, é preciso refletir sobre o que Jung discute em
relação ao indivíduo extrovertido e o introvertido. Segundo Jung:

O extrovertido não tem dificuldade em sua expressão pessoal, faz valer sua
presença quase involuntariamente, pois, de acordo com sua natureza, tende a
transferir-se para o objeto. Gosta de entregar-se ao mundo que o rodeia e
necessariamente de forma compreensível e, por isso, aceitável. O
introvertido, ao contrário, que, em princípio, só reage internamente, não
exterioriza, normalmente, suas reações (com exceção das explosões
afetivas). Ele cala suas reações que, no entanto, podem ser tão rápidas
quanto as do extrovertido. Elas não aparecem e, por isso, o introvertido dá a
impressão de ser lento. Pelo fato de as reações imediatas terem sempre forte
caráter pessoal, o extrovertido não pode fazer outra coisa do que deixar
transparecer sua personalidade. O introvertido, porém, esconde sua
personalidade ao calar suas reações imediatas. Não procura a empatia ou a
transferência de seus conteúdos para o objeto, mas a abstração do objeto
(JUNG, 1991, p. 310).

Portanto, para o extrovertido, a exteriorização de seus sentimentos faz parte de


30

sua personalidade. O que ele transfere para o objeto não tem um filtro de controle, para
o que é de valor e para o que não, e suas atrações, pensamento e afetos são
exteriorizados de forma rápida. Por essa razão, tudo se torna simples, pois não há uma
elaboração de conteúdo, tudo o que é produzido de imediato é bem recebido pelo
público. Já o introvertido é o tipo de indivíduo que, no lugar de exteriorizar suas
reações, prefere guardá-las no íntimo e só manifestar-se quando julgar ser a hora certa.
Seus conteúdos não são entendidos, porque não há deixas de sua personalidade, visto
que ele tenta ao máximo abstrair sua personalidade do mundo externo.
É evidente que não se pode afirmar que todo indivíduo introvertido irá
manifestar várias personalidades, mas existe uma possibilidade de uma dissociação de
personalidade e uma divisão de caráter. Sobre essa divisão, JUNG (1991) afirma:

O provérbio anjo na rua e demônio em casa traduz a experiência quotidiana


do fenômeno da divisão da personalidade. Cada meio ambiente requer uma
atitude especial. Quanto mais for exigida esta atitude pelo respectivo meio
ambiente, mais rapidamente ela se tornará habitual. Muitas pessoas da classe
culta têm que mover-se em dois meios completamente distintos: no lar e no
ambiente profissional. Estes dois ambientes bem distintos exigem duas
atitudes totalmente diversas que, dependendo do grau de identificação (v.)
do eu com a atitude do momento, condicionam uma duplicação do caráter.
De acordo com as condições e necessidades sociais, o caráter social se
orienta, de um lado, pelas expectativas ou exigências do ambiente
profissional e, de outro, pelas intenções e aspirações sociais do indivíduo. O
caráter caseiro molda-se em geral pela busca de comodidade, donde vem que
pessoas muito enérgicas, briosas, teimosas, obstinadas e grosseiras na vida
pública, em casa e no seio da família são bondosas, brandas,
condescendentes e fracas. Qual é o verdadeiro caráter? A verdadeira
personalidade? Às vezes é impossível responder (JUNG, 1991, p. 881).

A reflexão sobre a citação acima leva-nos a concluir que, mesmo uma pessoa
considerada normal, não está livre de assumir diferentes personalidades, em contextos
diferentes e, portanto, a dissociação da personalidade deve ser compreendida e estudada
a partir de elementos psicológicos que o indivíduo fornece e que podem ser observáveis
de acordo com um padrão pré-estabelecido daquilo que é considerado normal ou
anormal. As pessoas que têm dissociação de personalidade, ou ainda dualidade de
caráter, enganam os outros e, principalmente, a si mesmos sobre seu verdadeiro caráter.
Esses indivíduos vivem de máscaras; para cada ambiente, uma máscara diferente. Jung
denomina essa máscara de persona, pois era esse nome que designava as máscaras
usadas pelos atores de antigamente. O psicólogo ainda acrescenta que: “A persona é,
31

pois, um complexo funcional que surgiu por razões de adaptação ou de necessária


comodidade, mas que não é idêntico à individualidade. O complexo funcional da
persona diz respeito exclusivamente à relação com os objetos” (JUNG, 1991, p. 881).
A relação do indivíduo com o objeto externo tem que ser distinta da relação com
o sujeito. Na psicanálise, o sujeito como objeto interno é o nosso inconsciente, pois é de
onde vêm a emoção, os sentimentos, as sensações e os pensamentos. Assim, temos um
relacionamento com o objeto externo, que é a atitude externa, e o relacionamento com o
objeto interno, que é a atitude interna, sendo possível conceituá-la pelos humores,
sentimentos vagos, fragmentos de fantasias e inibições que perturbam o indivíduo
considerado normal, ocasionando um embate do externo com o inconsciente. Também
podemos relacionar os sonhos com a realidade e algumas pessoas que se deixam ser
afetadas — pelo fato de não conseguirem desconectar o interno do externo — estão
sujeitas ao grau máximo de embates.
Com a dificuldade de dissociar o interno, essas pessoas produzem uma fantasia
vinda do inconsciente. Há uma sensação estranha, um pressentimento que se torna uma
ruminação diária. A personalidade interna revela-se totalmente divergente da
personalidade externa. Portanto, assim como é aceitável a existência do objeto externo,
é necessário reconhecer que, também, há o objeto interno. Essa atitude interna é a
maneira pela qual funciona a relação com os processos psíquicos internos, a qual Jung
(1991) denomina de anima, ou alma; enquanto a atitude externa é denominada persona
(JUNG, 1991).
A partir dessa breve exposição teórica em conversa com o conto de Autran
Dourado, é possível considerar que o pedófilo pode apresentar várias personalidades,
pois aparentemente se revela uma pessoa normal, porém há internamente e
inconscientemente um outro ser com traços de perversão e de opressão que se
externaliza de maneira bruta e, muitas vezes, criminal, fazendo com que seu objeto de
desejo seja outra pessoa, que poderá sofrer danos psicológicos, tanto quanto seu
agressor.
Até aqui, buscamos apresentar de que forma o desejo pedofílico sempre esteve
presente na história da humanidade. Em algumas sociedades, era tolerável legalmente;
em outras, até os nossos dias, constitui-se como tabu, um tipo de violência, um ato
criminoso contra um sujeito vulnerável. Vimos que o desejo pedofílico é expressão de
32

um dos distúrbios sexuais que pode ser gerado desde a infância. Tanto a vítima quanto o
agressor sofrem por causa desse impulso sexual, e ambos necessitam de compreensão e
de cuidados psicológicos para a sua saúde mental.
Nos próximos capítulos, continuaremos nossas análises de como o desejo
pedofílico se manifesta em outros contos de Autran Dourado: “Remembranças de
Hollywood”, “Violetas e Caracóis”, “A Extraordinária Senhorita do País do Sonho”,
“Às Seis e Meia no Largo do Carmo” “Mr. Moore” e “Mulher Menina Mulher”.
CAPÍTULO II

A EXPRESSÃO DO DESEJO
PEDOFÍLICO NOS CONTOS DE
AUTRAN DOURADO
34

Neste capítulo, pretendemos analisar o desejo pedofílico em três contos de


Autran Dourado, publicados nos livros Violetas e Caracóis (2005) e Armas e Corações
(2006). Autran Dourado foi um escritor mineiro, cuja obra focaliza o interior de Minas
Gerais. Em suas narrativas, são marcantes temas como solidão, morte e crime, que
desencadeiam nas personagens sentimentos bem apurados em termos de
verossimilhança. Dourado possui uma obra muito ampla, reconstruindo ficcionalmente
assuntos sociais relativos ao contexto de Minas Gerais do início do século XX,
complementando o lado psicológico de suas personagens. Dentre suas várias
publicações destacam-se Teia (1947), Uma Vida em Segredo (1964), Ópera dos Mortos
(1967), O Risco do Bordado (1970), Os Sinos da Agonia (1974), Armas e Corações
(1978), As Imaginações Pecaminosas (1981) e Violetas e Caracóis (1987). Alfredo
Bosi, em seu livro História Concisa da Literatura Brasileira (1999), afirma que:

A refinada arte de narrar de Autran Dourado […] move-se à força de monólogos


interiores. Que se sucedem e se combinam em estilo indireto livre até acabarem
abraçando todo o corpo do romance, sem que haja, por isso, alterações nos traços
propriamente verbais da escritura. O que há é uma redução dos vários “universos
pessoais” à corrente de consciência, a qual, dadas as semelhanças de linguagem dos
sujeitos que monologam assumem um fácies transindividual. Assim, embora a
matéria pré-literária de Autran Dourado seja a memória e o sentimento, a sua prosa
afasta-se dos módulos intimistas que marcaram o romance psicológico tradicional
(BOSI, 1969, p. 445).

Autran possui uma refinada arte de narrar, utilizando a técnica do discurso livre
sem, contudo, alterar a norma culta da língua. Além dessa peculiaridade que enriquece
sua narrativa, Dourado utiliza as memórias e os sentimentos como matéria-prima para
construir suas histórias. Esses sentimentos e essas memórias possuem uma marca
psicológica que vai além de um simples interiorano. Eneida Maria de Souza, em seu
livro Autran Dourado (1996), pontua as semelhanças entre a escrita de Autran Dourado
e as de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, afirmando que “Autran comporá, ao lado
de Guimaraes Rosa, um universo ficcional mítico, no qual a história passa a ser regida
pela natureza espiralada do tempo” (SOUZA, 1996, p. 20). João Luiz Lafetá, em seu
ensaio “Uma Fotografia na Parede” (2004), declara que “Autran Dourado é também um
contador de ‘assombros e anedotas’, um cronista dos anais do vento, um noveleiro
atento para sabedoria e disparates popular […]” (LAFETÁ, 2004, p. 29). Lafetá, nesse
mesmo ensaio, discute que essas personalidades “[…] é [são ]” muitas vezes o disfarce
do
35

‘espírito de Minas’, que encobre loucuras e ‘quarta feirices’ […]” (LAFETÁ, 2004, p.
29). No decorrer do ensaio Lafetá diz que Autran Dourado dever ser estudado
psicanaliticamente, pois sua escrita mostra o tempo inteiro um estilo fosco e contido e
que expressa angústias. Ele ainda afirma que Autran é um escritor sempre atormentado,
o que faz com que suas obras sejam escritas de maneira meio psicológica e meio
metafísica, centrando seus conflitos internos. O que Autran passa para sua escrita serve

[...] também para exprimir uma vivência local da cidade onde ‘ puxar
angustia” era prática existencial e literária, cotidiana, de jovens que se
sentiam emparedados, nem tanto pelas montanhas de Minas, mas pela
rigidez moral daqueles tempos de tradicional família mineira”
(LAFETÁ, 2004, p.31).

No decorrer do seu ensaio, Lafetá diz que em Autran vimos a solidão, a loucura,
o sufoco da vida, a culpa e a morte, constante em suas obras, como por exemplo no
conto “Violetas e Caracóis”, que analisaremos posteriormente. Ao falar sobre o conto,
Lafetá diz mais uma vez que, o conhecimento da psicanalise é um aspecto
importantíssimo na obra de Autran, que sabe manejar com a perícia e a delicadeza de
artista fazendo todos os símbolos e imagens transformarem em beleza enigmática. Em
“Violetas e Caracóis” Autran retrata a volta da luz da razão para

[...]as trevas do inconsciente onde nascem nossos desejos, anseios,


angústias. [...] Neste que é uma das obras primas do conto brasileiro,
“Violetas e Caracóis”, a habilitade de Autran Dourado logra
retransformar o conhecimento racional dos conflitos interiores.
(LAFETÁ, 2004, p. 33-34)

O estudo do desejo pedofílico nos contos de Autran Dourado iniciou-se em um


trabalho de conclusão de curso de graduação em Letras Português, também orientado
pelo professor Dr. Osmar Oliva. Nas análises dos contos, percebemos que Autran, em
suas narrativas, expõe o monstro que existe em suas personagens e a luta constante com
o seu interior. As personagens autranianas representam da loucura do homem; os
impulsos, as repressões, as limitações, que caracterizam o povo mineiro, e é com esse
intuito que Dourado tenta decifrá-las. Nos contos analisados, as personagens femininas
são minuciosamente expostas, propiciando ao leitor a percepção do erotismo reprimido
que existe em Minas Gerais. Segundo Autran Dourado, em “Depoimento” (1996), essa
“[…] repressão, que obriga à disciplina, esse culto ao grande superego que há em
36

Minas, é o que forma, de certa maneira, a consciência do mineiro” (DOURADO, 1996,


p. 52), fazendo com que essa repressão seja uma das razões do bem escrever mineiro.
Os contos discutidos no trabalho de conclusão de curso foram “Mulher Menina
Mulher”, procurando analisar a infantilização da mulher adulta; “Mr. Moore”, no qual
temos o desejo pedofílico encarcerado, estes dois contos serão retomados e analisados
no terceiro capítulo desta dissertação, e em “Queridinha da Família”, onde se analisou a
violação da infância feminina, como já discutimos no capítulo I. Esse desejo pedofílico
é recorrente e notório em outros contos de Autran Dourado, e nesta dissertação daremos
continuidade à discussão do tema por meio das análises dos contos já citados no início
deste capítulo.
Um dos contos que aqui analisamos é “Remembranças de Hollywood”,
publicado no livro Violetas e Caracóis (1987). Esta narrativa é um recorte da história
“Queridinha da Família”, do livro As Imaginações Pecaminosas (1981), e podemos
dizer que ele é uma introdução ao que viria a ser narrado sobre o Sr. Valdemar
Filgueiras em “Queridinha da Família”. Por ser muito curta e um recorte de outra, em
“Remembranças de Hollywood” o narrador nos apresenta as novidades
cinematográficas que chegavam a Duas Pontes: o Cine Teatro-Estrela deslumbrava os
moradores daquela cidade os filmes de Hollywood, que traziam as novas do mundo
moderno para o interior, despertando-lhes sensações e desejos, principalmente nos
homens e nos adolescentes. As atrizes são descritas de maneira sensual e erotizada,
dentre elas Shirley Temple e Hedy Lammar, sendo a primeira uma criança sensualizada,
que perde suas características de menina por ser vista pelos homens de maneira
totalmente erotizada, desde o início da narrativa:

Ah, Shirley Temple das nossas aflições, das nossas alegrias, dos nossos
pecados![…] Ah, quem vive hoje não pode saber o que era a emoção que Shirley
Temple provocava na tela e na plateia como mascote querida do regimento colonial!
Quem não apreciou ela cantar On The Good Ship Lollipot, quem não chorou as mais
sentidas lágrimas e não vibrou com aquelas músicas todas, com todas aquelas
histórias, não sabe de nada. Os vestidinhos curtos, pregueados ou plissados, feitos
especialmente para facilitar a dança e mostrar as coxinhas, os passos corridos e
aéreos. Ah, as pernas e as coxas! Diziam os mais taludinhos e safados já no vício
da masturbação. Ah, as roupas depois imitadas, o uniformezinho do regimento, os
sapatinhos de verniz e pulseirinha, com chapinhas de ferro na ponta! Diziam as
comportadas meninas boazinhas de repente todas elas estudando música e dança
com dona Ordália (DOURADO, 2005, p. 11, grifo nosso).

A citação acima, como podemos ver, também é vista no conto “ A queridinha da


37

família”, que foi analisado no capítulo anterior. Essa mesma passagem encontra-se em
contos distintos e em livros diferentes. No conto em questão a queridinha da família é
vista como responsável por todos os sentimentos que eram despertados em quem assistia
as suas fitas. Não havia como decifrar a emoção sentida pelo público (principalmente
masculino), as belas sensações que aquela menina fazia emergir. Shirley Temple é uma
criança que acaba sendo erotizada e, ao ser descrita pelo narrador, ressaltam-se as
características que causavam prazer, a ponto de levar seus espectadores a se entregarem
ao vício da masturbação, são enaltecidas. A ousadia dos vestidos curtos usados pela
personagem de Shirley Temple, deixando à mostra pernas e coxas, despertava prazer,
fazendo desaparecer a figura da criança inocente e dando lugar a uma imagem
sensualizada. Todas as novidades cinematográficas recém-chegadas a Duas pontes são
vivenciadas pelo escritor João da Fonseca Nogueira1, conforme descrito no final dessa
narrativa:

Tudo isso foi Hollywood na meninice do escritor João da Fonseca Nogueira. Como
recuperar o tempo e reviver? Como voltar à mítica Duas Pontes, submersa pelas
areias do tempo? É bom não forçar a mão por causa das coronárias. Tudo passou, só
isso, nunca mais (DOURADO, 2005, p. 13).

Várias narrativas e histórias foram contadas por João da Fonseca Nogueira nos
contos de Autran, e algumas dessas histórias nos revelam o desejo pedofílico das
personagens, abarcando o aspecto psicológico e os conflitos interiores que fazem com
que a explicitação desse desejo seja a causa da danação dos que não conseguem
controlar seus impulsos sexuais.

2.1 — “VIOLETAS E CARACÓIS” — O DESABROCHAR VISCO RUBRO DO


DESEJO PEDOFÍLICO

Nesta seção, buscaremos analisar o desejo pedofílico presente no conto


“Violetas e Caracóis”, de Autran Dourado, que está inserido no livro homônimo
publicado pela primeira vez em 1981. Nessa narrativa curta, Autran nos apresenta, em
primeiro plano, a vida histérica de Luizinha Porto, uma menina que sofre de supostos

1 João da Fonseca Nogueira é uma figura recorrente na obra autraniana, pode-se dizer que ele se
enquadra como o alter ego de Autran em suas narrativas.
38

ataques de histeria, que a levam a ter crises de risos. O gênero conto apresenta dois
planos de histórias, a história 1, que é o visível e o que norteia o tema da narrativa, e a
história 2, que é a que se encontra nas entrelinhas da história, ou que vai surgindo de
acordo com o desenrolar da primeira história. Sobre o conto, Ricardo Piglia, em Formas
Breves (2004), explica:

O conto clássico narra em primeiro plano a história 1 e constrói em segredo a


história 2. A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da
história 1. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico
e fragmentário. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta
aparece na superfície. Cada uma das duas histórias é contada de modo distinto.
Trabalhar com duas histórias quer dizer trabalhar com dois sistemas diferentes de
causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas
narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são
empregados de maneira diferente em cada uma das duas histórias. Os pontos de
interseção são o fundamento da construção (PIGLIA, 2004, p. 89-90).

Em geral, os contos de Autran Dourado mantêm essa estrutura do conto clássico,


em que há uma história cifrada na outra, revelando algo oculto. Em suas narrativas,
nada é casual, sempre haverá um elemento tido como “detalhe”, e é esse detalhe o ponto
metafórico que não pode deixar de ser reparado.
Na contemporaneidade, o gênero conto também se caracteriza por apresentar
uma narrativa curta, e que mantém o seu tempo e espaço em um mesmo núcleo
estrutural. A história de “Violetas e Caracóis” se passa na pequena e pacata cidade de
Duas Pontes e restringe-se à casa de Luizinha Porto e os consultórios dos médicos Dr.
Alcebíades e Dr. Viriato. O tempo dessa narrativa percorre desde a infância da menina
até os anos iniciais da puberdade e pré-adolescência, havendo uma ordem cronológica
na narração dos fatos, apesar do recuo no tempo por meio da recuperação psicológica do
passado.
O narrador em terceira pessoa, de maneira onisciente, relata os fatos ocorridos
com a moça e os dois médicos. Não podemos afirmar que esse narrador sabe de tudo o
que acontece, pois percebemos que ele narra de acordo com o que os moradores da
cidade relatam. Isso pode ser comprovado na própria narrativa, quando o narrador
confirma que nem tudo ele sabe em todo o tempo como, por exemplo, uma das crises
histéricas da menina. O narrador passa a conhecer os fatos somente depois de
acontecidos, assemelhando-se a um narrador jornalista. A esse respeito, Silviano
Santiago, em “O Narrador Pós-Moderno” (2002), diz que o narrador jornalista é “[…]
39

aquele que só transmite pelo narrar a informação, visto que escreve não para narrar a
ação da própria experiência, mas o que aconteceu com x ou y em tal lugar e tal hora”
(SANTIAGO, 2002, p. 40). E é esse narrador jornalista que vemos na narrativa de
Autran:

[…] a gente depois ficou sabendo de tudo através do Mané Canhoto, ele tudo viu e
presenciou, só não escutando o que o médico falou para Luizinha lá nas alturas.
Como não sabia da conversa que depois se deu no quarto entre o médico, dona
Clementina e o major Porto. Muito menos foi do conhecimento da gente o diálogo
Luizinha – dr. Viriato, no quarto. A gente teve de imaginar […] (DOURADO, 2005,
p. 190).

O conto inicia-se com a descrição das características de Luizinha Porto, em


como era quando criança, seu comportamento, e como ficou ao chegar à puberdade:

AINDA MENINA LUIZINHA PORTO (por que o diminutivo, se sempre foi uma
criança desenvolvida?) era triste, fechada e solitária. Mais tarde, já mocinha, ela
teria amigas e seria chegada ao riso. Apesar de que o seu riso era agudo e estridente,
tinindo feito ferido cristal, tímpano ou prata (DOURADO, 2005, p. 171).

Como já apontamos, o narrador sabe muita coisa, mas não sabe tudo sobre as
personagens, e isso fica evidente nesse excerto, pelo uso dos verbos no futuro do
pretérito “teria”, “seria”, provocando o efeito hipotético, dedutivo. No trecho anterior a
este, o que o narrador soube foi intermediado por outra pessoa, o Mané Canhoto, o
mais, teve que imaginar. Podemos perceber que, mesmo menina, Luizinha Porto já se
apresentava bastante desenvolvida para a idade que tinha. O narrador nos apresenta esta
característica da personagem ao ironizar o uso do diminutivo para nomear Luiza:
Luizinha, apelido que não se encaixava ao físico desenvolvido da criança. Ninguém
imaginava que a menina triste e sossegada viria a ser a mocinha eufórica, com risadas
altas, sem nenhum pudor. Apesar de viver em uma época em que as crianças não eram
percebidas pelos adultos, Luizinha começou a receber a atenção da avó, que insistia em
dizer aos pais que a menina era doente, pois frequentemente sentia dores de cabeça e
ataques de nervos. Porém, os pais da menina não confiavam nos remédios naturais
feitos pela avó Georgina, “[…] com seu olho clínico, certa na mezinha caseira, infalível
nas simpatias […]” (DOURADO, 2005, p. 171).
Levaram Luizinha para os cuidados do Dr. Alcebíades, que “[…] não achou
nada demais na menina. Esquisitice de criança arredia, disse na sua modesta ciência”
40

(DOURADO, 2005, p. 171). Mesmo diante do diagnóstico do médico, a menina


continuou a dar sinais de que não estava bem mentalmente, pois continuava sendo uma
menina estranha, tinha convulsões, não saía com suas irmãs, ficava acanhada entre os
adultos. Devido às inconstâncias de temperamento da menina, seus pais não quiseram
colocá-la no colégio comum, como todas as outras crianças “normais”, pois sua saúde
exigia cuidados. Assim foi contratada uma professora particular para a menina. Só
depois de crescida, resolveram matriculá-la em uma escola mista, o Colégio Progresso
de Duas Pontes.
Luizinha mostrou-se uma aluna brilhante, e a professora, dona Ofélia, “[…]
passou a emprestar livros de Bernardo Guimarães, José de Alencar e de Machado de
Assis. Deste último nem todos, só os da fase romântica […]” (DOURADO, 2005, p.
173). Podemos perceber que a indicação de livros realistas ajuda na construção da
personagem Luizinha, porque os livros realistas apresentam mulheres com seus desejos
e sexualidade aflorada e guiadas por seus instintos naturais, o que poderia “influenciar”
na liberação de sua sexualidade precoce. É o controle dos instintos que produz a
histeria, o que será sublimado pelos seus cuidados com as violetas. A menina aprendeu
francês sozinha, e foi adquirindo sabedoria e conhecimento devido à sua esperteza e
curiosidade:

[…] Luizinha Porto foi crescendo não só em sabedoria mas no corpo. Sua
precocidade era não só intelectual, mas física também – num instante virou moça
feita. Quem olhava para ela dizia que Luizinha tinha dezoito ou dezenove anos,
quando na verdade não passava dos catorze (DOURADO, 2005, p. 173).

Neste trecho, o narrador nos mostra que, apesar de ainda ser uma menina,
Luizinha já tinha corpo de mulher, o que já era notado por todos na cidade, pois
aparentava ter uma idade que não tinha.
Até aqui, temos uma história em primeiro plano, tida como historia 1, que é a
base visível do conto: a vida meio conturbada de Luizinha Porto, com seus problemas
de saúde e com seus nervos à flor da pele. Mas, como já exposto, um conto não se
mantém apenas na superfície. A história 2, ou seja, o segredo que é necessário ser
revelado ao final ou no decorrer do conto, começa a aparecer sutilmente na narrativa.
Piglia (2004), ilustrando com Jorge Luis Borges, afirma que:
41

A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em


fazer da construção da historia 2 o tema do relato. Borges, narra as manobras de
alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais de uma
historia visível (PIGLIA, 2004, p. 93).

Charles Kiefer, em A Poética do Conto (2011), diz que “[…] para a contista
Elisabeth Bowen, um história, se é para ser uma história, precisa ter um instante de
transformação psicológica” (KIEFER, 2011, p. 45). No conto “Violetas e Caracóis” não
é diferente. Para manter essa estrutura clássica, colocada por Piglia e Kiefer,
acontecimentos sutis começam a surgir na narrativa de Autran, nos revelando o oculto, e
confirmando o que Piglia afirma em seu texto sobre a finalidade do conto: “O conto é
construído para revelar artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre
renovada de uma experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida,
uma verdade secreta” (PIGLIA, 2004, p. 94).
A história 2, ou seja, o tema oculto em "Violetas e Caracóis" é o
desencadeamento do desejo pedofílico por parte dos médicos Dr. Alcebíades e Dr.
Viriato em relação a Luizinha Porto. A precocidade da menina que, aos catorze anos, já
possui um corpo sensual e chamativo de mulher, vai trazendo esse desejo à tona,
revelando a inquietude dos médicos. De acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant,
espaço em seu Dicionário de Símbolos, a violeta significa “cor da temperança, de
lucidez e de ação refletida, de equilíbrio entre a terra e o céu, também é vista como a cor
do segredo: atrás dela realizar-se-á o invisível mistério da reencarnação ou, da
transformação” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1999, p.960). Já o caracol, ainda de
acordo com Chavalier & Gheerbrant (1999) é o “símbolo lunar, indica a regeneração
periódica, e do mesmo modo que os moluscos em geral, o caracol apresenta um
simbolismo sexual: analogia com, matéria, movimento e mucosidade. Entre os astecas,
o caracol simbolizava comumente a concepção, a gravidez e o parto” (CHAVALIER &
GHEERBRANT, 1999, p. 186). Potanto o tema oculto já estaria prenunciado no título
do conto e é desvendado ao leitor no decorrer da narrativa.
Após uma crise de risos histéricos, em um baile da cidade, Luizinha Porto sofre
um desmaio e é atendida pelo Dr. Alcebíades – médico respeitoso, de boa conduta e
querido por todas as famílias de Duas Pontes. Apesar de ser inteligentíssimo e de ter
grande conhecimento de medicina, ele não consegue achar na menina nenhum problema
neurológico grave, afirmando que deveria ser apenas uma crise de nervos. Logo, o
42

médico sugere que ela faça jardinagem, porém a menina não se continha ao ver as
plantas morrerem e se agitava ainda mais. Como o problema da garota não se resolveu
com a atividade de jardinagem, ela volta ao consultório. Contudo, sua inteligência
desperta no Dr. Alcebíades um sentimento de incômodo, um certo desejo por aquela
menina:

[…] você é delicada como uma violeta, disse o dr. Alcebíades, a voz rouca e
trêmula feito suas mãos pálidas, os dedos compridos e brancos, débeis. […]
O coração lhe batia incontrolável no peito, como em plena crise cardíaca.
Olhou o belo rosto da adolescente em idade, no corpo já mulher. Os olhos
brilhantes, profundos, o sorriso ambíguo. […] De repente tudo ameaçava
ruir. A máscara que de tanto usar se colara à pele ameaçava soltar, cair.
Detrás dele podia surgir um ser fantasmal, vindo de outras eras, que tomara
conta do seu frágil corpo e fazia estremecer o inseguro coração. Como se
fosse não ele mesmo mas um outro, um outro terrível e estranho habitante
das trevas […] (DOURADO, 2005, p. 180-181).

No trecho acima, o oculto aflora; o médico se sente totalmente atraído pela


menina. Luizinha ainda é uma violeta intocada, delicada, uma criança. O desejo
pedofílico começa a transparecer na narrativa como o outro, o habitante das trevas, o
desejo do tormento. A máscara, usada pelos médicos em seu cotidiano, é empregada de
forma metafórica, revelando a personalidade oculta do médico e homem íntegro, e
indicando o desejo pedofílico escondido. O olho da menina, brilhante e provocante,
profundo e intenso, perturba o médico, ameaçando seu fantasma interior que deve ser
liberto. Fantasma que vem de outras eras, de outra época, instigando-nos a pensar que o
Dr. Alcebíades não fora sempre o que aparentava ser. O fantasma aqui é a passagem
necessária para o campo do outro, o sujeito se vê preso entre os pontos de intercessão do
que é realidade ou não.
Lacan (2008) aponta o fantasma como o responsável por fornecer o objeto de
desejo, pois o desejo é o sinal de que algo foi colocado no lugar dessa falta, deixando o
fantasma como forma privilegiada de satisfação da pulsão. O fantasma torna-se,
também, a sombra desse indivíduo. Em O Seminário: livro 2: o eu na teoria de Freud e
na técnica da psicanálise (1985), Lacan coloca essa sombra como o reflexo do Eu, e
esse Eu resulta da precipitação que o sujeito tem a partir da imagem do outro, fazendo
com que o objeto seja o resultado do ponto de interseção entre o sujeito e o Outro, como
se fosse uma projeção de um espelho. Lacan diz que:
43

[…] aquilo que existe no homem de desvinculado, de despedaçado, de


anárquico, estabelece sua relação com suas percepções no plano de uma
tensão totalmente original. É a imagem do seu corpo que é o princípio de
toda unidade que ele percebe nos objetos. Ora, desta própria imagem, ele só
percebe a unidade do lado de fora, e de maneira antecipada. Devido a esta
relação dupla que tem consigo mesmo, é sempre ao redor da sombra errante
do seu próprio eu que vão se estruturando todos os objetos do seu mundo.
Terão todos um caráter fundamentalmente antropomórfico, podemos até
dizer egomórfico. É nesta percepção que é evocada para o homem, a todo
instante, sua unidade ideal, que, como tal, nunca é atingida e que a todo
instante lhe escapa. O objeto, para ele, nunca é definitivamente o derradeiro
objeto, a não ser em certas experiências excepcionais (LACAN, 1985, p.
211).

Destacamos que a projeção do Eu não significa que o imaginário seja


indefinindo, visto que Lacan, em sua estruturação, evidencia o imaginário e o
simbólico. Assim, podemos afirmar que o Eu irá se estender até o ponto em que o outro
se torna grande, fazendo com que entre no que é real. A psicanálise lacaniana mostra
que, desde Freud, há um regime de dualidade que faz permanecer a tensão como
princípio de prazer e além do princípio de prazer, a pulsão de vida e a pulsão de morte,
e o consciente e o inconsciente. Percebemos, então, que esse quadro de tensões será
mantido no que é o fantasma, pois o fantasma representa o real como impossível, e o
não real como possível, fazendo com que o fantasma funcione como uma janela para o
real. A possibilidade do que se pode saber ser real permite que o fantasma faça com que
o sujeito se veja preso na fala e no excesso, como acontece com o Dr. Alcebiades: seu
corpo responde a esse desejo por meio de arrepios e estremece, ansiando libertar esse
outro. De acordo com Ballone e Moura, em “Alucinação e Delírio” (2008):

Voltar-se para o mundo interno significa que o pensamento se manifesta sob


a forma de devaneios – uma espécie de servidão das ideias às nossas
necessidades mais íntimas, aos nossos afetos e paixões. Enquanto há saúde
mental, entretanto, nossos devaneios são sempre voluntários e reversíveis;
eles devem ser nossos servos e não nossos senhores (BALLONE; MOURA,
2008, s/p).

O médico Alcebíades passa alguns momentos lutando contra essa sombra, com
pensamentos voltados para si mesmo, os quais o escravizam. Para se livrar desses
pensamentos e desse outro que o faz escravo,

O dr. Alcebíades desviou os olhos dos olhos que para ele eram
44

chamativos e ofídicos, abaixou a cabeça. Suava frio, limpou com o lenço a


testa úmida. Num esforço inaudito, conseguiu, conseguiu espantar para
longe as sombras noturnas, devolver a remotas eras os seres dionisíacos e
fantásticos, ameaçadores e perigosos. E de novo senhor de si, sentia
ressurgir o perfil sereno, o risco de formas puras e medidas, redivivo das
cinzas e das sombras, das chamas que tentaram sufocá-lo e destruí-lo. Era
novamente puro equilíbrio, límpida e geométrica superfície
(DOURADO, 2005, p. 181, grifos nossos).

Neste trecho do conto, temos um contraste entre o apolíneo e dionisíaco.


Nietzsche, em seu livro O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo (2000),
mostra que a arte apolínea vem da necessidade de transmitir uma imagem boa e alegre.
O homem apolíneo é aquele que traz o espírito de ordem, de racionalidade e de
harmonia intelectual, já o homem dionisíaco revela o espírito da vida espontânea e
extasiada. Nietzsche descreve bem essa oposição:

Apolo e Dionísio. Reconheço neles os representantes vivos e evidentes de


dois mundos artísticos diferentes em sua essência mais funda e em suas
metas mais altas. Vejo Apolo diante de mim como o gênio transfigurador de
principium individuationis, único através do qual se pode alcançar de
verdade redenção na aparência, ao passo que, sob o grito de júbilo místico de
Dionísio, é rompido o feitiço da individuação e fica franqueado o caminho
para as Mães do Ser, para o cerne mais íntimo das coisas (NIETZSCHE,
2000, p. 97).

O Dr. Alcebíades não podia deixar o Dionísio que existia dentro de si se revelar.
Ao conseguir livrar-se da sombra do outro, o médico justifica seu devaneio com a ideia
de que a menina poderia cultivar violetas para ver se ela, enfim, acalmaria os nervos e se
distrairia de suas crises histéricas. A menina, entusiasmada com a ideia do médico,
enche-o de perguntas sobre o cultivo da flor, fazendo o outro desaparecer. A proposta do
cultivo de violetas fez com que Luizinha encontrasse no seu tratamento um sentido para
sua própria vida. As violetas tornaram-se a sua paixão, um verdadeiro auxílio para as
suas crises de histeria, além dos calmantes que já tomava. Os pais de Luizinha ficaram
entusiasmados, esperançosos de que o cultivo das flores ajudasse a filha a melhorar seu
comportamento. “[…] Ela porém se comportava diferentemente de todas as outras
moças conhecidas. O interesse limitou-se e se circunscreveu exclusivamente à família
das violáceas.[…]” (DOURADO, 2005, p. 182-183).
A violeta representa a calma, a pureza, a dignidade de menina, uma alma
celestial:
45

[…] a mesma flor que Luizinha, com os olhos melosos e mornos, sonhosos,
chamava de viola odorata. Porque essas palavras estavam para ela carregadas
de sentido e transportavam a regiões etéreas celestiais. Luizinha Porto era
um coração disponível, uma alma de genovês acorrentado: os olhos fitos no
azul, fascinado pelo que fica mais distante. […] Conforme lhe prometera, o
dr. Alcebíades trouxe para ela um vaso de violeta africana. […] era uma
violeta branca, com as bordas lilases, os pistilos amarelos (DOURADO,
2005, p. 183).

Os olhos melosos, de sonhos, representam as características de uma criança. As


cores serenas da violeta nos remetem a inocência da alma da menina. Luizinha sentiu-se
totalmente seduzida com o presente e começou a cuidar da violeta, pois “[…] Esse seu
primeiro vaso passou a ter para ela um significado todo especial – era um presente do
atencioso e nunca assaz louvado dr. Alcebíades […] e dele cuidaria como um filho do
seu ventre […]” (DOURADO, 2005, p. 183). O ato de cuidar da violeta como se fosse
um filho é uma metáfora da maternidade precoce. Dessa forma, a menina vivencia a
maternidade antes do tempo como forma de acalmá-la. A importância da flor para a
menina fazia com que ela tivesse sonhos e devaneios, que se ligavam ao episódio
vivenciado no consultório do médico:

[…] Ela a si mesma fingia ter esquecido (conscientemente, esquecera


mesmo), mas nos seus devaneios e sonhos às vezes lhe vinha aquela troca de
olhar tão funda, demorada e penetrante, que tanto perturbara por instantes
um desamparado dr. Alcebíades. A coisa vivia tão escondida da consciência,
abafada no porão da alma, no fundo do coração, que ela quis mas não
conseguiu saber com as amigas qual o significado de violeta no código das
linguagens das flores, tão usado entre os namorados. De qualquer maneira,
mesmo que quando mais tarde ela mudou de rumo e interesse,
Luizinha guardaria aquele primeiro vaso para sempre […] (DOURADO,
2005, p. 183,).

Percebemos que o episódio ocorrido no consultório médico instalou-se no


inconsciente da menina de tal forma, que a violeta lhe aparecia em sonhos. Mesmo sem
conseguir interpretar o significado dessas violetas, ainda assim, a menina continuaria a
cuidar do vaso de violeta africana, presenteado pelo médico, pois se tornara importante
para ela. O tempo passou, mas os sonhos da menina continuaram; dizia que em seus
sonhos aparecia “[…] um homem sem face que costumava aparecer com um vaso de
violeta lilás no ombro e lhe oferecia uma flor para ela beijar […]” (DOURADO, 2005,
46

p. 184).
Para o Dr. Alcebíades, as visitas constantes da menina em seu consultório
estavam tornando-se insuportáveis, pois a atração que sentia por ela já estava quase
impossível de controlar. A presença dela lhe atordoava; ao olhar para ela, tinha fantasias
que somente a cabeça dos mais pervertidos poderia interpretar. Em outro episódio, em
que esteve a sós com Luizinha, o médico ficou totalmente alterado e inquieto, e fez com
que ela fosse embora rapidamente dali. Passado o sufoco, sozinho no consultório, ele
volta à antiga calmaria e retoma a “[…] máscara do antigo, santo, íntegro e bom dr.
Alcebíades Silveira, usada durante toda uma vida. […]” (DOURADO, 2005, p. 186). O
médico sentia

[…] na testa o duro frio cristal. O coração batia apressado descontrolado,


impossível latejante como o inquieto e temeroso coração de uma pomba
apertada nas mãos de uma menina. […] Aquela visita noturna de Luizinha o
perturbara muito. Como aquela outra vez em que os olhos se encontraram e
ele abaixou os seus por não poder suportar durante muito tempo o olhar
ofídico de uma menina que no fundo vinha provocá-lo. Sim, uma menina de
catorze anos, embora com o desenvolvimento de dezoito. Essas coisas não
ficavam bem para ele, para sua reputação, só agora reparava. Tinha de se
livrar daquela jovem que poderia ser a sua perdição (DOURADO, 2005, p.
186-187,).

Aqui, o desejo pela menina torna-se explícito; o médico precisa se afastar de sua
paciente para não cometer um ato criminoso. Tudo nela o provocava, os olhos e
principalmente o corpo. Ao longo de toda a narrativa, é perceptível a contradição entre
o corpo e idade da personagem; corpo de dezoito, mas catorze anos de idade, mostrando
para o leitor a impossibilidade do médico em satisfazer sua vontade e a sua dificuldade
em controlar o outro. Por isso, o melhor jeito era livrar-se da paciente para não se
perder. Assim foi. Em uma crise de Luizinha, que nem ele conseguiu resolver, disse aos
pais que o que ela carecia era de outro médico, um médico que entendesse os artifícios
da psiquiatria. Assim sendo, e com muita resistência, os pais da menina mandaram
chamar o Dr. Viriato, o médico sem nenhum pudor, conhecido pelas famílias de Duas
Pontes como alguém que, apesar da inteligência, não era um exemplo de conduta e
honra.
O tratamento com o Dr. Viriato resumia-se a sessões de hipnóse. Com o tempo,
ela disse ao médico que enjoara do cultivo de violetas. O médico receita a criação de
47

uma espécie de caramujo. “[…] O escargot é uma espécie de caracol [ …] E a palavra


caracol lhe soou como um sininho de Pavlov. […] Você vai cultivar caracóis, disse ele
[…]” (DOURADO, 2005, p. 194). Após seguir a orientação do Dr. Viriato, a menina
largou de vez o cultivo das violetas. “Se não fosse Mané Canhoto, as famosas e custosas
violetas africanas teriam morrido, tal o abandono em que Luizinha as deixou […]”
(DOURADO, 2005, p. 196). Todo empenho e entusiasmo que teve para com as violetas,
agora a menina dedicava aos caracóis.
Os dois médicos eram totalmente diferentes, enquanto o Dr. Alcebíades era
considerado o santo, o Dr. Viriato tinha a fama de mulherengo e de praticar artes
pecaminosas. O corpo e a sedução de Luizinha não passaram despercebidos pelo
médico cheio de malícias e segundas intenções. Ele era um homem bom e respeitoso,
porém os pensamentos pervertidos pairavam em sua cabeça durante as sessões de
terapia com a menina:

[…] carecia de recompor, não deixar se conduzir pela mente pecaminosa,


pelos instintos enfurecidos. Seu bode porco, disse ele na sua memória. […]
Sim, os fabulosos caracóis, disse ele. (Brincarei com os caracóis dos teus
louros cabelos e os beijarei com ternura a princípio, furiosamente depois).
Continue com eles, minha filha, se isso lhe faz bem. Assim se juntaria o útil
ao agradável (o útero ao agradável, disse a mente suja) […] (DOURADO,
2005, p. 200,).

O Dr. Viriato começa a desejar Luizinha Porto, sem nenhum receio em imaginar
e em fantasiar a garota de maneira a se satisfazer sexualmente. Enquanto a incentiva a
criar caracóis, desejava-a incessantemente, jurando mais tarde ir sanar seus desejos com
as mulheres da casa da ponte.
A figura do outro em Dr. Viriato é constantemente notada. Ao vermos esse outro
pecaminoso, voltado para uma menina, apesar do corpo de mulher, o desejo pedofílico é
exposto; contudo, até então, ele conseguia lidar com a situação e não se sentia
incomodado com a presença de Luizinha, tampouco com o desejo proibido.
Uma noite, Luizinha tem um novo surto de sonho e realidade: seu inconsciente
começou a intercalar as figuras das violetas do Dr. Alcebíades e os caracóis do Dr.
Viriato. O homem sem face lhe aparece com uma violeta na mão e, atordoada, ela sai
pela rua, à noite, ao encontro do Dr. Viriato: “[…] Se vestiu de um vestido preto
abotoado na frente de cima a baixo. Nua sob o vestido, ela caminhou sonambúlica […]”
48

(DOURADO, 2005, p. 207).


O médico estava em seu consultório perdido em seus livros; a moça encontra um
médico que nunca tinha visto. Ele havia bebido, e estava com a voz enrolada, disse a ele
que não estava se sentindo bem. Viriato, ao perceber a sua proximidade com a menina
no meio da noite, fica surpreso com aquela presença, “ele sabido e experimentado se
deixando vencer por quase uma garota” (DOURADO, 2005, p. 212). Achava-se perdido
diante da menina. O desejo pedofílico toma seu espaço maior na narrativa quando o
médico não consegue controlar seus desejos e em sua crise de insanidade,

[…] ele se aproximou mais dela e ela percebeu que o excitava, um forte
amor tomava conta dele. Ela poderia ser sua. Ele a tomou nos braços, lhe
beijou com ternura. Ele lhe desabotoava o vestido desajeitadamente,
tremulamente, ela o ajudava. Ele a viu nua e agora lhe beijava os seios, o
ventre, as coxas, que ela afastava instintivamente mulher. Foi então, quando
depois ele voltou para lhe beijar a boca, que o ataque de rigidez histérica se
deu. O dr. Viriato cuidou de despertá-la, lhe chegando um vidro de amônia
no nariz. Depois que ela voltou a si, medicou-a com uma forte dose de
valeriana e passiflora incarnata. Ele levou-a para casa, amparando-a. Ela
estava tonta e vacilante, não dava muito acordo de si. É capaz de que pelo
efeito do remédio, não ouviu as palavras ternas que ele lhe disse quando a
deitou no canapé de palhinha da casa do major Porto (DOURADO, 2005, p.
214,).

Neste excerto, o ato pedofílico é exposto na narrativa, o desejo incontrolável


pela menina levou o médico a entregar-se ao desejo de possuí-la sem estar em perfeito
juízo mental. Silenciosamente a teve e silenciosamente deixou-a em casa na calada da
noite. Conforme o narrador:

Naquela noite ela teve um sonho terrível. Tinha a certeza de que daquele dia
em diante não teria mais ninguém para lhe interpretar os sonhos. Com sua
gosma nojenta um caracol babujava uma gigantesca pétala de violeta, as
bordas vermelho-sangue (DOURADO, 2005, p. 214).

Ao final do conto, o desejo pedofílico, exposto na narrativa pelos dois médicos,


é demonstrada de maneiras diferentes, metaforicamente nas figuras da violeta e do
caracol. No trecho acima, o sonho do homem bom e sem face que lhe entregava uma
violeta, e que não lhe causava espanto, era massacrado pela baba nojenta de um caracol.
Podemos inferir, por meio das metáforas, que o ato sexual abusivo com a menina foi
consumado. A gosma representaria o gozo sexual – que vinha de um caracol,
49

representando o órgão genital masculino e o esperma; a pétala da violeta metaforiza a


genitália feminina e as bordas vermelho-sangue representam a perda da virgindade.
Nunca mais ela seria a menina inocente, seus sonhos não precisariam ser interpretados
por outras pessoas, pois ela teve a revelação prática dos seus significados.
Freud, em sua obra A Interpretação dos Sonhos (2006b), afirma que o sonho é a
estrada que conduz para o inconsciente. Ele ainda discorre sobre a necessidade do
homem de dormir, para descansar o corpo e sonhar, pois o sonho é realização dos
desejos reprimidos quando o homem está consciente. Assim, ao dormir o consciente, o
inconsciente entra em atividade e produz os sonhos e faz com que os desejos reprimidos
sejam realizados. Freud acredita que os traumas geram certos comportamentos anormais
e ficam escondidos no inconsciente das pessoas, que é onde estão os desejos reprimidos
(FREUD, 2006b). Luizinha Porto teve seu sonho concretizado ao ver o desejo reprimido
do outro se exteriorizar, por isso não haveria mais a necessidade de alguém interpretá-
lo.
Concluímos essa análise, ressaltando a divisão dos temas expostos no conto,
sendo que a história 1 consiste em apresentar uma menina em transição, da fase infantil
para a adolescência, vivendo suas descobertas, seus desejos corporais, incompreendida
pela família e, talvez, pelos médicos, devido ao tradicionalismo e conservadorismo
quanto à sexualidade, tema tabu ainda em nossa sociedade. A história 2 revela o desejo
pedofílico dos médicos Alcebíades e Viriato, conduzindo a adolescente à descoberta de
sua sexualidade, mas com homens mais velhos e mais instruídos cientificamente, e
expondo o desejo recalcado, interdito pelas normas sociais a um (suposto) abuso sexual.

2.2 — “A EXTRAORDINÁRIA SENHORITA DO PAÍS DOS SONHOS” — AS


CLAVES QUE DESPERTAM O DESEJO PEDOFÍLICO

Nesta seção, analisaremos como o desejo pedofílico se apresenta no conto “A


Extraordinária Senhorita do País dos Sonhos”, publicado no livro Armas e Corações,
publicado pela primeira vez em 1978. A narrativa é a história de Aristeu Silveira, muito
conhecido por sua brutalidade e pelos escândalos que protagonizava por onde passava.
Logo no início do conto, o narrador nos informa uma característica muito forte de
Aristeu, que é o fato de ser um homem-meninão. Aristeu Silveira, mais conhecido como
50

Teteu Mão de Onça, era filho do coronel Aristóteles Armond Silveira e Evangelina
Montserrat Silveira, uma família tradicional de Duas Pontes, onde ninguém imaginaria
que algo escandaloso pudesse acontecer. A narração gira em torno do que foi a perdição
e decadência do invencível brutamontes:

Aristeu, um homão daqueles, espadaúdo, alto e cheio. As manopolas grossas


e peludas alcançavam os joelhos, e pegando um de jeito, esse um já podia ir
rezando pela sua alma. Desde menino foi assim, de mão bruta pesada, daí o
apelido de Mão de Onça, que ele na sua vaidade, não desgostava. […] Era
rude e violento, quase um selvagem, que vivia só e senhor rei absoluto na
sua fazenda de Pedrão, desde que o pai morreu. […] Quando vinha à cidade
era em ocasiões muito especiais, além dos sábados naturalmente. Quando
havia circo de cavalinho ou circo de tourada, de que gostava muito. Aos
sábados visitava o céu e o inferno, a mãe e o bordel da Ponte. Eram, com o
perdão do uso da palavra, duas visitas sagradas. Visitava a mãe o dia inteiro,
dona Evangelina Montserrat da Silveira (DOURADO, 2006, p. 140).

Aristeu não era um homem comum. Muito nervoso e agitado desde pequeno, era
filho único do coronel Tote. Sempre teve tudo o que desejou, mas não passava
despercebido pelas correções violentas do pai. O nome Aristeu é de origem grega, e
deriva da palavra àristos, que significa o que é melhor, aquele que se distingue, sendo
muito conhecido na mitologia grega como o protetor dos caçadores. As características
externas de Aristeu são de homem feito, tinha o respeito de todos, fazia jus ao
significado de seu nome, se distinguia de todos os outros e era absoluto na região por
seu temperamento muito forte e violento.
O temperamento do indivíduo está intimamente ligado ao processo de
construção do caráter e ao desenvolvimento da personalidade, estando também
vinculado aos tipos psicológicos. O temperamento está ligado à personalidade como
uma característica de herança genética que influencia de maneira significativa o sistema
nervoso, aspecto muito importante para o desenvolvimento da personalidade. Eugen
Bleuler, em seu livro Tratado de Psiquiatria (1971), afirma que não existe um âmbito
das personalidades independentes e que a nossa personalidade é intensamente
susceptível de ser modelada, mesmo que em diferentes graus (BLEUER, 1971). Assim,
o nosso temperamento diz muito a respeito do nosso modo de ser. Bleuler também
destaca o efeito das vivências infantis precoces, responsáveis por configurar e
determinar o desenvolvimento da personalidade, fazendo com que, apesar de terem
funções e significados diferentes, sejam fundamentais na construção da personalidade e
51

desenvolvimento do temperamento. E é nessa exposição temperamental de Aristeu


Silveira, apresentada na narrativa, que descobrimos a sua personalidade.
O coronel Tote, pai de Aristeu, tinha uma relação muito severa com o filho. Era
tradicional e conservador, mas nunca conseguiu impor limites ao rapaz, que o
enfrentava para conseguir o que queria. Por outro lado, temos a figura da mãe, bastante
enfatizada na narrativa. Dona Evangelina era uma mulher totalmente santificada, de
acordo com os dizeres da tradição, de boa família, culta e elegante. A exaltação e a
importância da figura materna na narrativa são muito fortes e significativas. Apesar do
seu temperamento forte, somente a mãe conseguia acalmar Aristeu de sua raiva e de
seus impulsos. Ao contrário da relação de competição que tinha com o pai, Aristeu era
apaixonado por sua mãe, visto que nela encontrava o refúgio e a calmaria, ela era seu
porto seguro. O amor de Evangelina pelo filho era incondicional, pois apesar do
destempero do filho, ela era a única que conseguia acalmá-lo, e só conseguia fazê-lo por
intermédio da música. A música que a mãe tocava no piano transformava o bruto
Aristeu em um cordeiro:

Como antigamente, o menino grandalhão, passava horas e horas, manso e


dominado, junto ao piano, ouvindo os tons pesados e vagarosos de algum
estudo que ela caprichava na lentidão e no peso, para que os dois pudessem
gozar mais tempo a solene e triste harmonia das notas. O grande e
abrutalhado Aristeu virava um cordeirinho, tal era o poder da música no seu
espírito. Entre uma e outra peça, a mãe enfiava carinhosa e agradecida os
dedos na cabeleira rebelde e dura do filho. Assim o amansava mais e mais,
ao ponto das lágrimas, e ela o sentia de novo o seu menininho, se ele foi
algum dia, só mais tarde (DOURADO, 2006, p. 140).

Nesse conto, o Complexo de Édipo faz-se presente na relação entre mãe e filho.
Lacan, em O Seminário: livro 5: as formações do inconsciente (1999), relaciona o édipo
à noção de constituição psicológica do indivíduo, sendo ele — o édipo — um dos
fatores que determinam o desejo e a falta. Como já exposto anteriormente no primeiro
capítulo, o Complexo de Édipo é formulado por três tempos lógicos, apontados para
diferentes relações com o campo do outro e com a castração. Quando não ocorre a
superação desses três momentos, não há uma ruptura total com o édipo, levando à
internalização do amor carnal pela mãe no subconsciente do sujeito. Foi exatamente isso
que ocorreu com Aristeu, o seu lado infantil precisava do aconchego do colo da mãe,
pois ela despertava nele a sensibilidade que, aparentemente, ninguém diria que ele
52

possuía.
Um aspecto importante nesse conto, e que o conecta ao nosso tema, é a presença
constante da música através de dois instrumentos: o piano e o violino. Primeiramente,
discorreremos sobre a melodia do piano, elemento que fortalece a relação de Aristeu
com sua mãe, despertando nele emoções e desejos puros. As notas tocadas por Dona
Evangelina levavam Aristeu ao mundo das nuvens: “Na companhia de Aristeu, se o via
nas nuvens das notas macias e redondas, degustava as horas mais felizes, delicadas e
tranquilas da sua vida. E envaidecia diante da sensibilidade do filho, dizia Aristeu
puxou foi a mim” (DOURADO, 2006, p. 141).
A psicanálise interpreta essa ligação com o artístico como uma relação de
parentesco com a psiconeurose. FREUD (2006a) nos mostra que o sujeito, ao se rebelar
contra a realidade que se opõe à satisfação dos seus desejos, torna-se um ser neurótico.
Porém, ao se conectar com a arte, como no conto em questão, com a música, ele
encontra um desvio que o levará de volta à realidade. Para Freud, a arte pode ser uma
grande força motivadora para o controle das neuroses e dos conflitos interiores
(FREUD, 2006a). O som do piano, com suas notas macias e redondas, conectava mãe e
filho, proporcionando momentos que os desconectavam do mundo; naquele momento
eram apenas os dois. Freud ainda destaca que o artista revela ao outro, pela arte, suas
fantasias pessoais repletas de desejo, que chegam ao outro como uma sedução,
proporcionando-lhe, também, uma gratificação prazerosa. O elo entre mãe e filho revela
o prazer entre os dois em uma constante troca de sentimentos: ela, ao tocar o piano, traz
o filho para junto de si; ele encontra o refúgio que precisa, entrando no mundo da
fantasia e acalmando os seus nervos. Podemos conceber o piano como o elemento que
liga Aristeu a sua mãe, e faz despertar dentro de si a criança pura e inocente:

Quando Aristeu olhava a mãe que tanto amava, e via a cara rugosa, os dedos
engelhados e manchados calcando as teclas do piano, os olhos daquele
homão, de todo tamanho se enchiam de poderosas lágrimas. Ali sozinho com
ela, sem sentir vergonha de chorar, achava até bem bom: as lágrimas valiam
como carinho que ele, arisco nessas coisas, não tinha coragem de fazer
(DOURADO, 2006, p. 164).

No entanto, o som do piano que trazia o consolo e a calma para Aristeu estava
com os dias contados, pois dona Evangelina começava a ser enganada pela própria
memória. Cada dia mais longe em seu esquecimento, o fato e sua gravidade só foram
53

percebidos por Aristeu quando as tardes musicais começaram a ser interrompidas pelo
esquecimento: um nome, uma nota musical perdida, um tempo que deixava de ser
marcado no piano, até sumir por completo uma composição inteira. Quando isso
aconteceu, dona Evangelina, em sua aflição e desespero, esmurrou o teclado do piano,
chorando e afirmando que nunca mais tocaria: “[…] Aristeu viu os olhos da mãe —
apesar do brilho das lágrimas, eram vagos e distantes, mais distantes do que onde o pai
devia estar. Foi uma tristeza” (DOURADO, 2006, p. 165).
Findados os momentos de harmonia, onde encontrava seu porto seguro, longe da
proteção da mãe e da melodia do piano, Aristeu voltava a ser o truculento, violento e
bruto de sempre, sempre arrumando confusão por onde passava. Era o intocável e
invencível Aristeu, até se ver encantado pela melodia aguda e sedutora do violino e pela
extraordinária senhorita do país dos sonhos, Jezabel Kislány. Diante da imagem e do
comportamento que apavorava a todos, Aristeu não havia se casado e nem tido filhos.
Todas as noites, satisfazia seus desejos carnais com as mulheres do bordel da cidade,
mas nunca havia se encantado por ninguém. Quando questionado pela mãe sobre ter
uma namorada, ele dizia “[…] ainda é cedo, quando eu escolher vai ser uma moça tão
extraordinária, vai ser assim que nem uma rainha, que a senhora nem vai acreditar”
(DOURADO, 2006, p. 166). Ninguém acreditava que esse dia chegaria para Aristeu, até
a chegada do Circo Milano, dos irmãos Ramurazzi, na cidade.
Os circos eram a paixão de Aristeu. Sempre que uma companhia circense se
apresentava na cidade, comprava um camarote para família para toda a temporada, e
não foi diferente com o Circo Milano. Empolgadíssimo com a promessa do espetáculo
circense “Aristeu decidiu-se dar umas férias da fazenda. O Circo chegou, Aristeu se
iluminou. Era assim com todo circo desde menino” (DOURADO, 2006, p. 168). O circo
levava-o para o mundo da fantasia. De acordo com Jung (1991), a psique está
relacionada com a fantasia, visto que

A psique cria a realidade todos os dias. A única expressão que me ocorre


para designar esta atividade é fantasia. A fantasia é tanto sentimento quanto
pensamento, é tanto intuição quanto sensação. Não há função psíquica que
não esteja inseparavelmente ligada pela fantasia com as outras funções
psíquicas. As vezes aparece em sua forma primordial, às vezes é o produto
último e mais audacioso da síntese de todas as capacidades. Por isso, a
fantasia me parece a expressão mais clara da atividade específica da psique.
É sobretudo a atividade criativa donde provêm as respostas a todas as
54

questões passíveis de resposta; é a mãe de todas as possibilidades onde o


mundo interior e exterior formam uma unidade viva, como todos os opostos
psicológicos. A fantasia foi e sempre será aquela que lança a ponte entre as
exigências inconciliáveis do sujeito e objeto, da introversão e extroversão
(JUNG, 1991, p. 63).

Só a fantasia penetra o conhecimento da diferença psicológica entre dois pontos


de vista, sentimento e pensamento. Para a ciência, a fantasia é tabu, assim como o
sentimento. Portanto, fica ao encargo da psicologia reconhecer o ponto de vista do
sentimento, e do que intermedia a fantasia, surgindo assim uma grande dificuldade, pois
a fantasia, em sua maior parte, é produto do inconsciente. Ao observar a relação do
homem com sua fantasia, percebemos que se trata de uma relação condicionada com o
inconsciente em geral. O relacionamento condiciona-se pelo espírito da razão que está
predominante, e deixa o indivíduo inclinado a abandonar o inconsciente. A razão,
vinculada ao meio social, causa a repressão do indivíduo e faz com que todo o desejo
reprimido se volte para o inconsciente, construindo, assim, sua fantasia que, geralmente,
ganha formas simbólicas solidamente estruturadas, fazendo com que o sujeito volte seus
desejos reprimidos para esses símbolos. O circo, para Aristeu, representa o seu mundo
de fantasia, onde ele se perde em seu inconsciente e esquece do mundo real. “O Circo
Milano ficou famoso na cidade por muitos anos, foi dos melhores que por lá passaram.
E mais: famoso pelas suas consequências. Disso ninguém pode duvidar” (DOURADO,
2006, p. 169). Dessa vez, o circo traria à tona todos os desejos reprimidos de Aristeu,
desconhecidos por todos e por ele mesmo, desejos proibidos que marcariam sua história.

Na primeira noite de espetáculo, a arena encontrava-se lotada e Aristeu estava


no camarote reservado para ele e sua família como sempre fora. “Logo na noite de
estreia Aristeu viu que o Circo Milano era dos seus, dos bons. E tudo aconteceu foi
mesmo no primeiro dia. Para sempre e nunca mais. Ele muito alegre e feliz”
(DOURADO, 2006, p. 169). Naquela noite, assim que começasse o último quadro do
espetáculo com a figura da anãzinha violinista Jezabel kislány, Aristeu descobriria o
amor e o fascínio mais oculto de suas fantasias.

A extraordinária senhorita Jezabel Kislany, [era] o fantástico, o milagre de


natureza, a mulher do país mítico, onde todos são assim com ela. Um
número de sonho e sensibilidade, cuja beleza vai depender muito da alma
55

sensível e imaginosa de cada um. […] Uma mulher, uma menina, uma
boneca que andava, de uns noventa centímetros de altura. […] Aquele ser
etéreo e minúsculo era realmente uma mulher, uma mulher em miniatura.
Certas horas parecia uma menina, a cara pintada, fingindo de adulta, que o ar
desembaraçado e um certo sorriso malicioso desmentiam. A malicia do
sorriso e do olhar suscitava nos mais afoitos e imaginosos algumas safadezas
acerca da anatomia e outras peculiaridades ligadas às partes mais escondidas
da criação. […] Perfeita e bem proporcionada era realmente uma
mulherzinha. […] As mulheres diziam uma bonequinha de relógio, um
alfenim, perfeito gnomo do país dos sonhos (DOURADO, 2006, p. 172,).

A imagem da anãzinha, uma mulher com corpo e altura de criança, um milagre


da natureza vinda de um país mítico, faz com todos se voltem para o mundo de
fantasias, dando asas à imaginação, ficando atordoados com a presença daquela figura
que era uma mulher e “ao mesmo tempo” uma menina. Se a chegada de Jezabel foi uma
surpresa inigualável para todos, para Aristeu foi o arrebatamento. Completamente
enfeitiçado por ela, ele se perdeu em suas imaginações e só despertou após cessar a
última nota do violino que ela tocava em sua apresentação. O consolo que ele
encontrava na música da mãe, agora ele reencontrava na melodia do violino, que o
chamava ao aconchego de Jezabel, que de maneira mágica o levava ao êxtase.
A partir daquele dia, Aristeu era presença certa para assistir as apresentações de
Jezabel. Porém, Aristeu não se contentou apenas com a contemplação. Ao vê-la tocar
para sua mãe:

Os grandes sentidos de Aristeu se aguçaram tanto, que ele quase podia captá-
la toda. Ele era só nariz, ouvido, olhos, pele – todo arrepiadinho. Podia vê-la
por inteiro e à vontade, tão perto que acreditava sentir não apenas a sua
respiração e o piscar de olhos de boneca, mas o quentume do corpo. O
cabelo, que tentava o tato e o olfato de Aristeu, bem que merecia um
diadema de pedras verdadeiras, pensou ele pródigo. Os olhos faiscantes, de
um verde-azulino, eram vivos e inquietos e belos. A boca bem riscada e
úmida, os lábios avivados pelo carmim, o nariz curto, os dentes bem
torneados e bem postos completavam para Aristeu Silveira uma figura
certinha e perfeita, nunca vista, uma beleza nunca sentida. […] Foi o amor à
primeira vista mais à primeira vista de que se teve notícia na cidade.
Instantâneo, fulminante, arrasador (DOURADO, 2006, p. 178,).

No trecho acima, vemos outro aspecto que denota a presença de um desejo


pedofílico expresso por Aristeu. A maneira pela qual ele observa e descreve a anãzinha
minunciosamente, aguçando todos os seus sentidos, remete a um desejo proibido, pois
56

ele não está contemplando-a como mulher e sim como uma criança.
A maneira delicada e detalhada que o narrador descreve Jezabel, segundo a
visão de Aristeu, nos dá uma ideia de como era a imagem que ele construía: o quentume
do corpo, os olhos faiscantes, a boca bem riscada e úmida, lábios vivos pelo carmim,
tudo despertava nele o que ele nunca havia sentido, um desejo totalmente diferente.
Percebemos o desejo pelo corpo infantil pela forma como Jezabel é descrita. Ela não
possuía características de um corpo de uma mulher adulta, também não tinha a altura de
uma mulher, apesar de não ser mais uma menina, mas era esse corpo pequeno e miúdo e
a figura de menina que haviam chamado a atenção de Aristeu. A paixão entre eles foi
totalmente correspondida, ele a idolatrava. Imaginava os dois em sua fazenda, ela
tocando para ele o tempo inteiro. Todas as noites ele ia ao circo e se perdia em suas
fantasias com a pequena violonista.
Aristeu fez da sua fazenda seu país dos sonhos. Apaixonados um pelo o outro, e
com medo de perder a sua amada, após a ida ao circo, ele a sequestrou e levou-a para
sua fazenda, e lá montou o seu país dos sonhos. Podemos ver também uma semelhança
entre Jezabel e Aristeu, com o casal bíblico, Rei Acabe e Rainha Jezabel, localizado em
1 Reis a partir do capítulo 16. Acabe foi um rei de Israel e reinou por vinte e dois anos,
ele foi tido como mau perante ao senhor, pois seus pecados não agradavam a Deus,
casou-se com Jezabel, uma mulher que servia outros deuses e que não ao Deus de Israel.
Jezabel tinha total controle sobre Acabe, ele fazia todas as suas vontades, ela era
persuasiva e sempre conseguia o que queria com o rei. Certa ocasião o rei queria
comprar a vinha de um jezrelita que ficava ao lado de seu palácio em Jezreel, porém,
Nabote, o jezreelita, não aceitou vender sua terra ao rei por ser uma herança de seus
pais, voltou então Acabe triste e desgostoso, feito criança, para a sua casa por não ter
conseguido o que queria. Jezabel vendo a tristeza de Acabe, pediu-lhe que não ficasse
triste pois ela daria a ele a vinha de Nabote. Como o rei era fraco perante a Jezabel,
deixou que a mulher tomasse as decisões no lugar dele, ela escreveu cartas em nome do
rei para os anciãos e nobres da cidade para que levassem Nabote a frente do povo e o
condenassem por blasfêmia contra Deus e contra o rei, e logo após o apedrejassem até a
morte. Depois de terem feito o que ordenara Jezabel, ela então avisou Acabe que Nabote
estava morto, ele então desceu e foi tomar posse das vinhas daquele homem.
O rei Acabe se assemelha a Aristeu pela infantilidade e pela fraqueza diante da
57

mulher, pois fazia todas as vontades da esposa o que levou a sua ruina. As duas
mulheres se assemelham na posição de rainha que comanda tudo, na história bíblica
temos uma mulher que possui tudo o que deseja e domina o marido, no conto de Autran
a anãzinha Jezabel, primeiramente, é a rainha do circo e posteriormente vira a rainha de
Aristeu. A menina no trono possui o controle daquele pequeno castelo que Aristeu havia
feito para ela reinar.
Ninguém sabia o que se passava na fazenda, apenas rumores daqueles que se
atreviam passar por lá; o resto era fruto da imaginação das pessoas. Quem vinha da
fazenda afirmava que apenas se ouvia o som violino, como música vinda do céu. O
violino pode ser o símbolo da exteriorização do desejo pedofílico de Aristeu, pois ao ser
tocado por Jezabel, a melodia o atraía para ela de maneira mágica, fazendo com que ele
a desejasse. Ao retornar à cidade depois de meses, “uma grande transformação se
processara em Aristeu, parecia mais manso, mais delicado. […] Quase não se
reconhecia, senão por alguns gestos e falas, o antigo Aristeu” (DOURADO, 2006, p.
206). Todos tentavam imaginar como era a relação entre os dois, pois até a casa da
ponte deixara de frequentar.
Porém, nem tudo o que se imaginava acontecia na fazenda. Logo todos ficaram
sabendo do que acorria no país dos sonhos. A idolatria de Aristeu por Jezabel era
surreal, ele a fez sua deusa. Enchia-lhe de joias, tratava-a como uma rainha, abandonou
a mãe e não mais retornava a cidade para visita-la, todo ele era de Jezabel e ela tornou-
se propriedade exclusiva de Aristeu. O desejo pedofílico de Aristeu pela anãzinha
manifestava-se de forma contemplativa. Ela era uma mulher em corpo de menina, e era
intocável. Ele satisfazia seus desejos apenas contemplando aquela figura em miniatura,
que o seduzia com a música e o violino. Jezabel viu-se perdida diante daquele homem
que a encantara e fizera dela sua divindade, viu-se escrava do desejo dele.
Ao final do conto, o desejo louco e a fascinação que sentia por Jezabel, levaram
Aristeu a cometer uma loucura, culminando com uma tragédia impensada por todos. Foi
para a cidade, comprou comida e vários tipos de bebida e buscou as mulheres da casa da
ponte para uma festa em sua fazenda. Quando lá estavam,

[…] as mulheres de repente viram uma cadeira ou trono coberto de um brocado


roxo. Aristeu, as pernas incertas, chegou junto da cadeira em cima do último
patamar do estrado e desvelou a estátua. E elas viram, imóvel, de pedra, sem o
mais leve esgar, sentada na cadeira como um trono, a pequena e
58

extraordinária Jezabel Kilány. Toda de branco. Branca e pálida, tinha a cara


iluminada por dentro, entre opalina e luar. E Aristeu bêbado, se limitava a
gritar alegria, alegria, embora a cara fechada, o cenho carregado. Só Jezabel
Kislány estava lúcida e viva (DOURADO, 2006, p. 218).

Explicitamente, a figura de Jezabel é apresentada como símbolo do desejo


pedofílico de Aristeu. Ele apenas a queria como exposição. Seu desejo transformou-se
em um abuso do uso da imagem de Jezabel. Ela em seu trono via toda humilhação que
ele a fazia passar, se divertindo com todas as mulheres da casa da ponte. Beijava-as sem
demonstrar nenhum respeito à Jezabel, como se a presença dela naquele lugar fosse
apenas estática, até ordenar a ela que tocasse para eles. Aristeu fez da sua sala um
picadeiro de circo, onde novamente a atração principal era a extraordinária senhorita do
país dos sonhos. Jezabel tocou para ele como nunca havia tocado antes, expôs sua
humilhação e sofrimento em todas as notas e melodias que podia arrancar daquele
pequeno violino:

[…] Jezabel Kislány tocou o melhor que sabia, talvez tenha sido esta a
melhor audição da sua vida. Não tocou para elas, era como se só ele e ela
existisse na sala. E ela obedeceu ao seu rei e senhor. Os olhos de Aristeu
brilharam de lágrimas, ele não tinha mais vergonha de chorar. Chorou como
menino. E ia pedir bis quando a mulher de pedra e enigmática se levantou
ríspida. Jezabel Kislány, de pé sobre a cadeira de sola trabalhada, num gesto
violento, quebrou no joelho o seu pequeno violino (DOURADO, 2006, p.
220).

Ao ver esse ato de rebeldia da mulher, Aristeu se levantou em fúria para atacá-la
, no entanto tropeçou e caiu aos pés de Jezabel. Desacordado, ela deu ordens às
mulheres para que o levasse para o quarto e depois fossem embora dali. Naquela noite,
ao ver aquele homem monstruoso deitado, tomou uma atitude inusitada:

Trancada com Aristeu no quarto, ela viu como ele roncava asquerosamente.
Se lembrou de velhas e imemoriais humilhações. De sua infância,
adolescência e mocidade. Não chorou, porém, toda a sua vida parecia de
outra pessoa, opaca, negra, dura. Foi até a cômoda e tirou da primeira gaveta
uma garrucha com desenhos de prata. Dobrou os canos, e um vivíssimo
sorriso nos olhos, verificou que estava carregada. Com dificuldade armou o
primeiro cão, depois o outro, com medo que eles caíssem antes do tempo.
Foi para junto de Aristeu, que dormia no chão, a boca aberta, a língua suja
esbranquiçada. E Jezabel mergulhou a pistola na boca aberta de Aristeu. Ele
chupou os canos. Aristeu fez um movimento, deu um engulho. E Jezabel,
com as duas mãos, calcou os gatilhos simultaneamente (DOURADO, 2006,
59

p. 221).
A narrativa termina com o trágico fim de Aristeu Silveira, morto pelo próprio
desejo. Nesse conto, a imagem infantil se faz muito presente. Primeiro, por meio do
homem gigante e monstruoso que tem atitudes totalmente infantis, fazendo-o um
homem-meninão. Depois, por meio da imagem de Jezabel Kislány, uma mulher adulta
presa em um corpo de criança. Em “A Extraordinária Senhorita do País dos Sonhos”,
Autran Dourado nos apresenta uma nova perspectiva de análise do desejo pedófilico em
seus contos, o qual pode ser expresso de formas e maneiras diferentes.
CAPÍTULO III

PEDOFILIA, CRIME, VIOLÊNCIA


E PUNIÇÃO
61

3.1 — “ÀS SEIS E MEIA NO LARGO DO CARMO” — UM ENCONTRO


MARCADO, UM ACERTO DE CONTAS

Neste capítulo, iniciaremos com a análise do desejo pedofílico no conto “Às Seis
e Meia no Largo do Carmo” inserido no livro Armas e Corações (1978). Nesta
narrativa, temos uma história de acerto de contas entre Juvenal e Quincas pela honra de
Natália, uma jovem seduzida aos seus treze anos e expulsa de casa pelo pai. Depois de
ver sua irmã desonrada perante a sociedade, Juvenal decide limpar o nome da família
planejando a morte de Quincas, o sedutor de Natália. Porém, o que não se esperava era
uma terceira pessoa que entraria nessa história e que também havia caído nas graças da
menina.
Natália era a filha caçula de uma família tradicional, que prezava pelos bons
costumes e pela honra. No entanto a jovem moça deixou levar-se pelos galanteios de
Quincas, um homem que vivia com os ganhos da fazenda do pai e ia até sua janela todas
as noites. Segundo a narrativa, a moça tinha o corpo bem desenvolvido para a sua idade
e uma sexualidade muito aflorada, características que, para os olhos masculinos,
despertavam desejos e fantasias sexuais com a garota. Aos olhos de Quincas, podemos
ver detalhes de Natália deixam transparecer a sensualidade precoce da jovem:

Desde o primeiro dia ele viu. Pelos olhos sedosos lumeando arregalados, a
boca grande e carnuda, os lábios molhados, a respiração ofegante. Gata no
cio, quando os telhados ficam polvilhados de lua. Quando, nem bem ele
tinha descansado o ofego, ela disse não quer mais? Se sirva. Já abraçando-o,
apertando-o contra os peitos quentes e desembaraçados. Querendo,
encapetada. O risinho que ele desconfiou meio safado, na escuridão não dava
para ver direito (DOURADO, 2006, p. 42,).

Aqui temos a descrição de uma menina que, por meio dos seus traços erotizados,
atiça os homens e desperta desejos sexuais. O brilho provocante dos olhos, a boca
carnuda, os lábios molhados e a respiração ofegante denotam a excitação da moça que
se encontra atraída pelo desejo de Quincas. Podemos ver, pela descrição acima, que a
maneira com a qual ele a descreve denota o desejo pedofílico por ela que, ainda com
treze anos, deixou-se seduzir pelo moço que a desonrou, culminando a sua expulsão de
casa, no que lhe restou como única opção o bordel da cidade. Esse desejo não era apenas
despertado em Quincas, mas também por outros homens da cidade:
62

Aquela vez, quando Joca Pereira disse uma graça mais pesada sobre Natália,
então só com treze anos, mas os peitinhos já apontando, balançando debaixo
da blusa, espetados. Os peitinhos então que nem dois limões, mas
prometendo. Depois cresceram, até sobram na mão. Pontudos e durinhos,
latejando quentes. Peitos de cabra, bem apartado. Grandes para a idade, hoje
quinze anos. Vai ser uma mulher e tanto: peituda, peituda e quente, peituda e
encapetada, arteira no futuro. Quando tiver mais tempo de Casa da Ponte.
Mais experimentada, por enquanto só dele, enquanto puder manter,
passarinho não voa (DOURADO, 2006, p. 44,).

Juvenal não gostava da maneira com a qual sua irmã era vista por todos, como
podemos ver na citação acima. O desejo ardente de Joca Pereira pela menina,
manifestado pela descrição de seus seios que exalavam sensualidade desde muito nova,
a repetição da característica “peituda”, acompanhada de outros adjetivos pejorativos nos
mostra o quão ela é desejada e, por ainda ser uma menina que não passa dos seus quinze
anos, podemos ver esse desejo pedofílico expressado de maneira intensa e obcecada. É
notório também que esse desejo não é apenas contemplativo, mas sim que há uma
relação mais intima entre Natália, que já se encontra na casa da ponte, e Joca Pereira,
que afirma que ela é só dele pelo tempo o qual ele quiser, sendo também um comentário
abusivo.
O narrador não explicita a idade exata de Joca Pereira, mas vê-se que se trata de
um homem mais velho, pois ele tem condições financeiras suficientes para manter
Natália com exclusividade. E onde fica o aspecto pedofílico? Antigamente, pelo foco
das relações serem entre homens mais velhos e mulheres mais novas, não se pensava a
pedofilia ou não era norma se pensar que a pedofilia poderia advir também das
mulheres. Aqui não há uma questão de ser homem ou mulher: a pedofilia é uma
patologia que pode se manifestar em qualquer pessoa, indiferente do sexo. O desejo
pedofílico pode ser exteriorizado por qualquer um, podendo acarretar o abuso e a
exploração do outro, que é vulnerável. Não devemos generalizar todos os tipos de
relacionamentos, como percebemos em comentários quando há uma diferença
exorbitante entre o casal, comentários estes que surgem em forma de piada. É necessário
que a sociedade veja a pedofilia como algo sério que precisa ser combatido, e não
motivo de gracejo. Nesse caso, todos são vítimas, tanto a criança que, geralmente, é o
alvo principal do pedófilo, quanto o próprio pedófilo, que sofre desse transtorno, pois a
pedofilia vai além do que apenas a diferença da idade, é algo que, se não for combatido
e tratado, gera transtornos sociais bem maiores, como violência sexual,
63

levando para o lado do crime.


A exploração e o abuso sexual de crianças sempre estiveram presentes na
sociedade. São várias as formas de violência sexual, como a pedofilia, a pornografia, a
prostituição infantil, dentre outras. Essas violências mostram como é difícil resolver
esse grave problema. Paiva (2008), citada por Carvalho (2011), diz que:

[…] O Brasil, muito conhecido internacionalmente como a terra do sol


possuidor de belezas naturais, mostra um cenário aterrorizante. Em 2006, por
exemplo, liderou o ranking dos principais polos de pedofilia na internet.
Hoje embora ainda esteja entre dez mais, atuam em campanhas que buscam
conscientizar pessoas a denunciarem os indivíduos que praticam qualquer
ato referente à violência sexual contra menores (PAIVA, 2008, apud
CARVALHO, 2011, p. 11).

É uma luta constante para que o índice de crimes contra crianças caia e o Brasil
mude essa realidade. Porém, está cada dia mais difícil diminuir esses índices. Até a
década de 1980, o Brasil não possuía uma lei específica de proteção à criança. Desde a
elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA, em 1990, as crianças e os
jovens menores de idade são amparados pelo estatuto. No entanto, não podemos
entender a pedofilia apenas como um ato criminoso. Na Parte Especial, Título VI —
Dos Crimes contra a Dignidade Sexual, Capítulo II do Código Penal Brasileiro, artigo
217, consta que:

CAPÍTULO II - DOS CRIMES SEXUAIS CONTRA VULNERÁVEL


(Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Sedução
Art. 217 — (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005).
Estupro de vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor
de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com
alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não
pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) (BRASIL,
2009, grifos do autor).

O artigo 217 foi revogado pela Lei nº 11.106 de 28 de março de 2005, e passou a
ser intitulado, com o advento da lei número 12.051/2009, como estupro de vulnerável,
que é quando ocorre a conjunção carnal ou o ato libidinoso com pessoa menor de 14
anos de idade. Esse artigo prevê uma penalidade de 8 a 15 anos de reclusão para o
64

praticante do ato. Porém, se o agente praticar o estupro mediante violência ou ameaça, o


delito não está previsto no artigo 217-A, mas sim no artigo 213, onde está observado o
crime de estupro de vulnerável, estando a vítima inconsciente, ou possuir doença mental
que seja do conhecimento do agente. Somente nesses casos a violência sofrida é
presumida como estupro de vulnerável. Dessa forma, o abuso sexual praticado de forma
ativa, por homem ou mulher, conhecedor da vulnerabilidade da vítima, contra pessoa do
mesmo sexo ou não, se enquadra no artigo supracitado. Portanto, todo menor de 14
anos, independente da sua vontade, é sujeito passivo do delito devido à sua imaturidade,
sendo o delito contra esse menor também entendido como estupro de vulnerável.
Natália, no conto em questão, era uma menina que despertava os desejos dos
homens de Duas Pontes, e que em sua puberdade foi seduzida por Quincas, perdendo
sua virtude e sendo expulsa de casa por seu pai aos treze anos, no que resultou a ida dela
para o bordel da cidade, tendo aqui também um caso de prostituição infantil. Diante de
tudo o que aconteceu com a irmã, somado ao fato de desonra que ela trouxe para a
família, questão muito importante e prezada na época, e cobrado constantemente pelas
pessoas uma atitude, já que seu pai era um homem debilitado, Juvenal decidiu que iria
limpar o nome da família matando o sedutor de Natália. O aviso para o encontro no
Largo do Carmo foi dado por um moleque de recados no bar da cidade. “Às seis e meia,
foi o que disse o moleque, e ele vinha. Seu Juvenal manda dizer que espera no cruzeiro
do Largo do Carmo, para uma conversa de homem. Amanhã às seis e meia da tarde”
(DOURADO, 2006, p. 44). Porém, nem sempre Juvenal fora assim tão valente, na
verdade não era, quando fora insultado por Joca Pereira, não conseguiu executar um tiro
contra o provocador, aumentando ainda mais sua humilhação:

Joca Pereira disse e ficou esperando. O riso debochado parecia não querer
acabar mais, sestroso. Juvenal se afastou devagar, foi tomando distancia,
esperava-se galeio. De repente sacou do revolver. Joca Pereira estacou o
riso, catou a faca na cintura, estava sem arma de fogo aquele dia. E nada do
outro atirar. A mão foi caindo, caindo feito ele tivesse câimbra no braço, o
revolver pesado além da conta. A cara pálida, os beiços tremendo
esbranquiçados. Na cara um repuxado doloroso na boca, que nem ele fosse
chorar. Todos em volta olhando espantados, esperando Joca Pereira avançar
para ele, dar uns tabefes. A maior humilhação, fugia-se de ver. É ruim, da
fundura no peito, comichão na boca do estomago, ver homem borrado. Mas
Joca Pereira não avançou, disse foi seja homem! O outro se afastou mais,
nem olhava para a própria mão pesada e inútil. Um Smith- Wesson 38,
novinho em folha. Os dedos, antes duros e paralíticos, foram se afrouxando,
65

a arma caiu no chão. Juvenal abaixou a cabeça, escondendo os olhos, deu as


costas, não teve coragem de correr (DOURADO, 2006, p. 44).

Mas o rancor e a vergonha de ter sua irmã na casa da ponte e com a cidade o
acusando de covarde por não ter feito nada com Quincas, resolveu então fazer justiça
com as próprias mãos. Com o encontro marcado às seis e meia no Largo do Carmo para
o acerto de contas, ele não esperava que uma terceira pessoa também estaria ali para um
outro acerto de contas. Orozimbo Preto, que ouvira o recado dado à Quincas, também
estaria no Largo para matar Quincas, pois ele tinha certeza que Juvenal não teria essa
coragem. Orozimbo era um capanga de um velho coronel da região, Coronel Justino,
este que, há muito tempo, se encantara pela moça. Portanto, o capanga decide se
esconder na torre da igreja do Largo do Carmo para ter uma visão mais ampla do que
acontecia e para atirar em Quincas sem levantar suspeitas quem tenha sido, e por meio
do que ele via de cima da torre da igreja temos o desfecho de toda a história:

Não podia saber as horas, o tempo coagulado. Devia estar quase na hora.
Quincas, antes parado, agora se mexia. Deu o primeiro passo, vinha
apressado, certamente para chegar com o ponteiro, na batida do sino, no
cruzeiro. Olhou pela janela e viu Juvenal correndo de volta para o
morrinh0o. De lá vai fugir, que bosta de homem! E eu que perdi tempo com
ele![…] Orozimbo Preto alisa a arma, confira a mira. Quicas certinho na
linha do tiro. […] Quincas abriu os braços, olhava para cima feito rezando. É
bom rezar, na hora da morte, na hora da morte é sempre bom rezar. Agora e
na hora da nossa morte, amém, disse. De repente, o que ele menos esperava,
um estampido. Quincas encurvando para frente, caído no chão, o eco
repetindo o tiro. Olhou para a direita. Lá embaixo: no morrinho, Juvenal.
Deitado, a carabina ainda fumegante na mão. Que homem mais diferente me
saiu este bosta do Juvenal, disse decepcionado. É, a gente não pode mesmo
confiar em ninguém. Nem em corno, quanto mais irmão. […] Se Juvenal
tivesse ido no cruzeiro se encontrar com Quincas, era de mais coragem. De
tocaia mas de qualquer maneira um homem. Fez o que lhe competia. […] Só
para conferir coloca o novo homem na mira, a cabeça cerinha no ângulo e na
quina da massa. O dedo caiu certinho no gatilho. Um arranque no ombro, a
explosão, o cheiro de pólvora. O corpo de Juvenal dá um salto, efeito do tiro,
se vira de braços abertos, a cara para o ar. Dois homens mortos, o dia está
mesmo pra urubu, disse. […] Quem podia dize que Juvenal não se
acostumava com a coragem e vinha querer tirar a vingança por cima de seu
coronel? Sabia, se lembrou como era o coronel Justino. Agora que a menina
ia ficar só por sua conta. O senhor sabe, seu coronel, onça que já provou
sangue de gente, foi dizendo enquanto descia a escada da torre. Já falava o
coronel Justino Pessegueiro de Sousa, seu patrão (DOURADO, 2006, 76-
78).
66

O conto finaliza como uma surpresa para o leitor, vemos a coragem inusitada e
duvidosa de Juvenal aparecer, efetuando o disparo que matou Quincas e a mudança de
plano de Orozimbo Preto, que não esperava que Juvenal fosse capaz de efetuar o
disparo. Diante daquela cena, o capanga não viu outra saída a não ser matar aquele
rapaz, pois ele agora seria uma ameaça para o coronel, que havia caído nas graças de
Natalia. Podemos perceber no conto dois tipos de ações criminais em que não há
nenhuma intervenção judicial e legal para que fosse resolvida. A primeira é o ato
pedofílico, que não é exposto como crime, pois apesar de termos a exposição do desejo
pedofílico e a violação da menina, a punição para o indivíduo não gira em torno desse
ato. No conto, temos uma cobrança de defesa para com a honra da família da moça que
foi seduzida, pois ter uma filha desonrada dentro de casa só se resolvia com a morte,
atitude essa que era bastante cobrada na sociedade da época, e foi o que aconteceu. Com
o Quincas morto, Juvenal limpou o nome da família dele e da menina que, após ter
perdido sua virtude, aos olhos sociais, teve seu destino traçado indo morar no bordel da
cidade e levar a vida na prostituição. No próximo conto que iremos analisar, veremos
uma situação diferente para a punição do ato pedofílico e como este desejo é exposto na
narrativa.

3.2 — “MR. MOORE” — O ENCARCERAMENTO DO DESEJO PEDOFÍLICO

Todos nós somos um mistério para os outros… E para nós mesmos.

(Érico Veríssimo)

O conto “Mr. Moore”, também do livro Armas e Corações, publicado em 1978,


será o nosso próximo objeto de análise. Nesta narrativa curta, Autran apresenta-nos a
vida pacata de Daniel Moore, o bondoso e tranquilo pastor da pequena igreja dos
protestantes da cidade de Duas Pontes. Daniel Moore carregava no próprio nome,
Daniel, a força de sua fé, de fervoroso ímpeto. Tão santo transparecia ser, que
comparado com o antigo pastor da cidade, era mais humano e olhava com mais amor
para os seus fiéis. Porém, o pastor havia algo que ninguém sabia. Daniel Moore
mantinha uma turbulência de sensações, onde a culpa e o juízo caem sobre ele o tempo
inteiro. Mas que culpa? Quem o via por fora não poderia imaginar o que se passava
dentro de Mr. Moore, e o seu maior temor era ser descoberto. E se essa muralha caísse?
67

Seria muita humilhação. A sua reputação estaria perdida, pois o “outro lado” de Daniel
Moore seria descoberto. Que outro “eu” era esse? Essas são perguntas que confundem o
leitor e que vão encontrando suas respostas ao decorrer da narrativa. Mediante esse
conflito interior, aos poucos vamos descobrindo as deixas que revelam esse outro “eu”
do Pastor Daniel Moore.
Autran Dourado escreve essa narrativa de maneira muito subjetiva. É nas
entrelinhas que o segredo se revela, isso faz com que a narrativa seja tão instigante. No
início da narrativa, o narrador nos mostra duas diferenças entre os protestantes e os
católicos e deixa bem claro que essas duas crenças não se misturam. Enquanto a igreja
católica era localizada na praça e destacada pela torre, a igreja dos protestantes era
aquela pequenininha que se encontrava na rua de baixo. Os católicos eram vistos pelos
protestantes como os acomodados, festivos e incultos e, para os católicos, os
protestantes eram aqueles que, “[…] por mais pobres que fossem […], não tinham
nenhum respeito humano ou vergonha de exibir sua fé” (DOURADO, 2006, p. 81).
Porém, havia algo a mais que marcava os crentes na cidade de Duas Pontes: todos eram
contraditórios ao que pregavam. Ao invés da verdadeira alegria e felicidade que eles
diziam ter, o que transparecia era “[…] um misto de orgulho e arrogância, […] nos seus
olhos era uma densa penumbra, uma profunda tristeza” (DOURADO, 2006, p. 81). Não
viviam o que acreditavam; o peso da religião os sobrecarregava de maneira com que os
entristecia, era essa a divisão entre os católicos e os crentes de Duas Pontes, mas essa
diferença também existia dentro da própria igreja dos protestantes. A figura do primeiro
reverendo da cidade, Mr. Kernan, pairava constantemente nas lembranças de Mr.
Moore.
Mr. Kernan era um solteiro solitário que amava falar sobre o apóstolo Paulo bem
mais que sobre o próprio Cristo. “[…] Romanos era sua epístola preferida.”
(DOURADO, 2006, p. 82), condenava o pecado, era praticamente um juiz, sua função
era condenar. Em sua altivez era “[…] só espírito, nem sombra de carne e coração. Tal
sua fé, tal sua força.” (DOURADO, 2006, p. 82), ele era a sombra de Daniel. As coisas
com o Pastor Daniel Moore eram diferentes: ele tinha um comportamento mais humano,
seus sermões voltavam-se para o discípulo João, o discípulo do amor. Enquanto o
primeiro acusava, Daniel Moore vinha ao encontro dos mais necessitados, era como um
advogado que com “[…] a voz mansa e baixa falava de Jesus e pregava o amor”
68

(DOURADO, 2006, p. 83). Com isso, o pastor Moore e sua esposa, Annabel Moore,
ganharam o amor e o apreço dos fiéis. Como um homem tão puro e tão santo, bondoso e
transbordando de compaixão poderia ter um íntimo tão obscuro e um segredo tão
escondido? Segredo este que o fazia suar frio e temer o tempo todo? O conflito interior
às vezes era percebido em seus sermões como podemos ver no trecho seguinte:

Não se podia dizer que Mr. Moore meditava sistematicamente algum tema,
tão tênues e esgarçados eram os pensamentos. Um misto de vaga lembrança
e saudade, de serenidade e paz mansamente sofrida, devia habitar o espírito
do pastor. Se fosse possível vê-lo apenas de uma pequena distância, teríamos
uma figura esquálida, a cabeça branca que devia outrora ter sido loura, os
olhos fundos e as bochechas chupadas, uma boca carnuda e úmida que
contrariava em tudo a figura grave e mística, esquálida e pura, do reverendo
Daniel Moore (DOURADO, 2006, p. 85).

As lembranças de Daniel Moore se refletiam em seus sermões e até mesmo em


sua fisionomia. Uma mistura de saudade, paz e sofrimento vinha de seu interior e
revelava-se em suas palavras. A sua fisionomia retratava o tempo passado por meio dos
seus cabelos brancos, os olhos fundos e as bochechas chupadas, mostrando-nos o
cansaço. Tudo nele era contraditório, pois seu conflito interior não permitia que o seu
interior fosse o mesmo que o seu exterior. Seus pensamentos o perturbaram
constantemente e estes conflitos que acontecem em seu interior o prendem em um
mundo que não é real. De acordo com Ballone e Moura:

Voltar-se para o mundo interno significa que o pensamento se manifesta sob


a forma de Devaneios — uma espécie de servidão das ideias às nossas
necessidades mais íntimas, aos nossos afetos e paixões. Enquanto há saúde
mental, entretanto, nossos devaneios são sempre voluntários e reversíveis;
eles devem ser nossos servos e não nossos senhores (BALLONE e MOURA,
2008, p. 1).

Percebemos no conto que Daniel Moore, em todo o tempo, luta contra seus
próprios medos, vivendo sob a opressão causada por Mr. Kernan e sob a compaixão de
Mrs. Annabel Moore. Esse voltar-se para dentro mediante seus devaneios mostra-nos
um Daniel Moore aflito, ele já não consegue dominar a si mesmo, é como se essas duas
figuras que o afligisse tornassem ao final uma luta contra ele mesmo. O desejo
pedofílico está presente nesse conflito interior de Daniel Moore e começa a ser
percebido quando o narrador descreve a figura da esposa do pastor. Uma mulher que
69

não despertava em ninguém nenhum tipo de desejo ou interesse, pois não havia nela
nenhuma característica de uma mulher. Como percebemos no seguinte trecho:

Porque a ideia de amor ou de qualquer sentimento parecido não cabia bem


na figura de Mrs. Annabel Moore. Magra, peito liso, baixa e agitadinha, as
mãos pequeninas, a cara pintalgada de sardas, os olhos miúdos e azuis detrás
das lentes grossas dos óculos de aro de metal, o vestido preto até o meio das
canelas e a gola branca que mais parecia um colarinho clérigo, […] Mrs.
Annabel Luce Moore afastava de qualquer um menos exigente na matéria, o
mais remoto desejo, fantasia, sensualismo ou amor (DOURADO, 2006, p.
85,).

Annabel Moore é descrita como uma menina que transparecia ingenuidade e


pureza, não havendo nada que a caracterizava como uma mulher feita. Era magra, peito
liso e agitada como uma criança, até sua maneira de vestir a infantilizava. Era uma
menina aos olhos dos moradores de Duas Pontes, mas não ao ver de Daniel Moore que
“[…] teve em Annabel o seu único e definitivo amor” (DOURADO, 2006, p. 86).
Diante das pessoas, o comportamento de Daniel Moore com a sua esposa era de uma
extrema e estranha formalidade, “Quando na presença dos outros ele era todo polido e
formal, chamava-a de Mrs. Moore, e ela não dizia nunca Daniel diante de estranhos, tão
pudicos os dois” (DOURADO, 2006, p. 85). Annabel tinha um certo respeito pelo
marido e o obedecia em tudo, e Daniel mantinha sobre ela uma certa autoridade, mas
era um homem muito discreto, raramente notava-se alguma lágrima em seus olhos, pois
a cobrança sobre si mesmo era intensa. A sua solidão era somente sua, pois ele era o
pastor e devia dar exemplo.
Depois que Annabel, o seu porto seguro, morreu, a solidão de Daniel Moore
aumentou ainda mais, seus anseios e seus medos também. A figura de Mr. Kernan o
condenando pelo seu passado e a imagem de Annabel o confortando perturbavam os
seus sonhos. Mas que passado era esse que ele tanto temia em ser descoberto? O
narrador nos propicia pistas que começam a desvendar o pecado que tanto atormentava
o pastor, os pesadelos constantes mostram-nos a sua alma aflita, o medo e o temor. O
outro Daniel Moore insistia em aparecer e o pastor sofria com a tentativa de fazê-lo
sumir. Como podemos ver em um trecho de um de seus pesadelos:
70

[…] Expulsando de si o outro e as trevas, a cara pálida e magra lavada em


lágrimas, a voz frágil e abemolada, Daniel Moore, na maior pequenez, todo
humilde, não conteve o grito. E do seu peito, mais do dos lábios, saiu
Piedade, Annabel! Piedade, Senhor! Felizmente sozinho: ninguém na igreja,
ninguém em casa, ninguém na rua, ninguém ouviu. […] Atento ao pedido do
seu humilde servo, o senhor veio em auxílio do desamparado Daniel Moore.
Mr. Moore dominou o desespero, a sofreguidão, as lembranças. E tudo foi
conforme o desejo do Senhor, desde toda a eternidade. […] Agora Mr.
Moore […] mergulhava em seríssimos estudos teológicos […] se entregava
às orações até cair exausto em sua escrivaninha. Aquilo aconteceu porque
vinha abandonando as suas obrigações, se deixava levar pela lassidão, pelo
relaxamento, pela preguiça, pela sensualidade morna dos verdes e quentes
trópicos […] se punia em pensamento (DOURADO, 2006, p. 86 e 87,).

O pesadelo de Daniel nos faz ver alguém aflito e desesperado que se culpa por
tais acontecimentos. Se houvesse continuado nos caminhos da oração, talvez ele não
estivesse passando por provações que o deixava tão vulnerável ou simplesmente essa
fraqueza provinha da sensualidade transmitida pelos verdes e o ar quente do lugar.
Sozinho ele não se contém e implora para que sua Annabel e o Senhor tenham piedade
dele. E encontra em estudos teológicos e em orações uma válvula de escape para que
pesadelos como estes não acontecessem mais. O “outro” só insistiu em aparecer porque
ele se afastou das coisas de Deus, por isso se punia o tempo inteiro e passou a se dedicar
mais à obra do senhor. Mas, por mais que essa dedicação ultrapassasse os limites do
pastor, não era o suficiente. Os seus pesadelos continuavam constantes, a figura
acusadora de Mr. Kernan nos dá a sensação de que só o antigo pastor sabe sobre o
segredo e o pecado que tanto atormentava Daniel. Enquanto um o incrimina, aparece a
figura de Annabel, a consoladora de Daniel, o tempo todo, sugerindo que ela faz parte
desse passado.
Em um desses pesadelos, vemos uma estranha cena que denota o desejo
pedofílico de Daniel Moore por sua amada Annabel. Descrita como alguém com uma
fisionomia de uma criança, a narrativa deixa claro que era impossível alguém ter algum
desejo ou fantasia por ela, com suas mãos tão miúdas, o socorrendo quando era preciso
e ele “[…] gostava de chamá-la, veladamente carinhoso, a minha Annabel”
(DOURADO, 2006, p. 88). Nesse pesadelo absurdo, Mr. Moore se via tão preso a ele
que só Annabel, essa mulher menina parecida com um anjo, o acalmava dizendo
palavras que o libertava daquela culpa. Como podemos ver no trecho:
71

[…] além das sombras e figuras disformes que Mr. Kernan projetava na
parede, dos gritos e olhos fuzilantes, esbugalhados, dos fogos e clarões, eles
falavam uma linguagem cifrada, só entendida pelos três. Mrs. Annabel Luce
Moore tinha a roupa preta brilhosa como langerie, o colarinho prateado, e
toda ela vinha envolta numa luz, numa aura extraterrena. […] Era a
atmosfera dos primeiro tempos bíblicos, pensava aterrado e lívido Daniel
Moore, das batalhas cósmicas, o flamejar dos anjos e potestades, quando
Deus acabou por vencer e expulsar o mal. Diante de potências
incontroláveis, quase desfalecido, Mr. Moore não entendia mais nada. Fez-se
de repente o silêncio. […] A pequenina Annabel Luce Moore acabou
vencendo e expulsando o infatigável acusador Mr.Kernan. Exausta da
batalha, Annabel veio para junto dele enxugou-lhe a testa e a face com um
lenço alvíssimo, cerrou-lhe os olhos, e os seus dedos eram frios e acetinados,
e disse-lhe mansamente nos ouvidos Daniel, meu puríssimo Daniel, não faça
mais. Nada além disso e ele tudo entendeu. E Annabel se deitou ao seu lado,
aninhou a mão na dele, e ele podia ouvir-lhe a respiração ofegante e quente,
se sentia excitado. Annabel ali de comprido, o vestido preto de lingerie
rebrilhava, os olhos fechados, suando muito, os lábios úmidos e brilhantes
entreabertos, e os dois rentinhos, bem juntos (DOURADO, 2006, p. 89 e 90).

As acusações que Daniel Moore via em seus pesadelos, vindas de Mr. Kernan,
sempre eram expulsas por Annabel. A mulher com corpo de criança afastava todo o mal
de Daniel, pois ele via nela um alto refúgio, ela era o anjo e, ao mesmo tempo, era uma
mulher que o satisfazia. A lingerie preta e brilhosa aqui representa o desejo, a
sensualidade e o prazer em contraponto com a luz de aura extrema nos mostra a
inocência de um anjo. Essa mulher parecida com uma menina e a cor preta da roupa que
ela usava despertam todo o desejo de Mr. Moore. Ele sentia desejo e prazer ao
contemplar aquela imagem, fazendo-o ficar excitado. Vemos aqui que a perversão está
ligada à “[…] castidade e à inocência podem ser a outra face da perversão […]”
(NOLASCO apud BEIRÃO, 1993, p. 130).
Com a invasão de João Piló à igreja, um criminoso que havia fugido da prisão,
vários fatos começam a aparecer e torna-se mais notável o desejo pedofílico em Mr.
Moore, mais evidente por meio do relacionamento entre eles. Mr. Moore se viu
obrigado a ajudar João Piló a fugir da polícia, pois, além de perigoso, ele estava armado
e um escândalo daqueles em sua igreja não era bem-vindo para o pastor. João Piló
estava preso devido a um crime que havia cometido por estuprar uma menina de doze
anos, porém Daniel Moore ainda não sabia de tal crime quando João o obrigou a ajudá-
lo. Apesar de não saber do crime de João Piló, houve uma estranha atração entre o
pastor e o criminoso, era como se algo entre eles fosse muito familiar, como se os
medos e o outro Daniel, antes existentes apenas em seus pensamentos, houvessem se
72

exteriorizado mediante a figura de João Piló. A aproximação de ambos foi muito rápida;
ao cruzarem o olhar, o incômodo de Daniel e a intimidação de João explicitam essa
ligação existente entre eles:

[…] ia olhar bem no branco dos olhos de seu Moore, pra ver se descobria
alguma sombra, algum brilho e relampeado, qualquer sinal de traição.
Incomodado com os olhos de João Piló (se sentiu de repente nu,
vermelhinho, como se o outro pudesse ver o que lhe passava no coração),
Mr. Moore abaixou a cabeça se escondendo […] (DOURADO, 2006, p. 94 e
95).

No trecho acima vemos que o pastor se sente estranho diante de João Piló.
Segundo Freud em seu texto “O Estranho”, inserido no livro Além do princípio do
prazer: história de uma neurose infantil (1919), o estranho é aquilo que retorna e que se
repete, mas que se apresenta como algo diferente. Freud (1919) explica que em nosso
consciente há uma predominância dos impulsos que vem dos nossos próprios instintos
naturais fazendo com que haja uma compulsão à repetição. Se temos alguma situação
guardada em nosso inconsciente que provoca uma compulsão poderosa desde a
infância, esta situação nos aparece repetidamente de maneira involuntária em um
aspecto demoníaco da mente. Freud (1919) afirma que “[...] todas essas considerações
preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima
compulsão à repetição é percebido como estranho” (FREUD, 1919, p. 297).
Na citação anterior, o olhar de João no olhar do pastor parece penetrar-lhe a alma
de tal forma como se o criminoso pudesse desvendar todos os seus segredos. De certa
forma, o pastor estava preso a João, em pouco tempo “[…] o plural os aproximava […]”
(DOURADO, 2006, p. 95). Sem ao menos perceberem, já não eram mais duas pessoas
separadas; João intimidava o pastor, e este se permitia ser intimidado por ele. Além da
pluralidade no tratamento entre os dois, outro componente que ligava João Piló a Mr.
Moore era o cheiro de João, aquele cheiro que impregnava no ambiente e penetrava nas
narinas do pastor. A cada dia que se passava, o cheiro dele o fazia sentir mais horror. No
escuro, João se tornava para o pastor apenas o outro. O “[…] outro era uma sombra mais
pesada, sofrida, um bicho fedorento. Uma falta de caridade pensar assim, mas não podia
conter o horror daquele homem ali próximo […]” (DOURADO, 2006, p. 99).

João era o outro a quem Daniel tanto temia; ele representa a exteriorização dos
73

sentimentos perversos do Pastor. Na escuridão, João era apenas uma sombra e nela
“[…] a imaginação se misturava com a memória na zona indecisa e brumosa […]”
(DOURADO, 2006, p, 101) de Daniel Moore. Como já foi dito anteriormente, Lacan
(1985), afirma que a sombra é o reflexo do eu que faz do outro como se fosse uma
projeção de um espelho. Para Jung (1991), sombra “é a parte negativa da personalidade,
isto é, a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções mal desenvolvidas
e dos conteúdos do inconsciente pessoal” (1991, p. 58). A sombra faz parte do nosso
inconsciente pessoal e se encontra por trás dos aspectos de nossa personalidade que nos
considera malignos e que não somos capazes de assumir, portanto a sombra faz parte de
nós mesmos.
O fugitivo era a externalização da sombra do pastor e com o tempo, eles já
haviam desenvolvido um código de comunicação entre eles, a afinidade crescia
juntamente com a semelhança, mas que semelhança era essa? O que fazia com que o
pastor, um homem de Deus, se sentisse tão ligado a um criminoso? Daniel desprezava
qualquer contato com João, aquilo o enjoava, mas ao mesmo tempo o atraía e o deixava
com nojo de si mesmo, tinha que tirá-lo o mais rápido possível daquele lugar.
Ao descobrir, por sua empregada, o crime que João havia cometido, percebemos
o que atraía o pastor a João Piló. O desejo pedofílico de Mr. Moore se assemelhava ao
crime violento de João. Quando soube do que João havia feito:

[…] Dentro dele foi como se desse um terremoto, alguma coisa ruindo.
Cuidava ser instrumento do amor, da caridade, da piedade, e abrigava
justamente na casa de Deus a concupiscência e o mais vil pecado. O horror e
a angústia o sufocavam, como se duas mãos, duas mãos de ferro, as mãos de
Deus, o apertassem, estrangulando-o […] (DOURADO, 2006, p. 115, grifo
nosso).

Ele estava sendo cúmplice de si próprio; ele que havia ganhado tanto perdão pelo
seu passado de sombras agora abrigava na casa de Deus alguém impuro como João.
Depois de descobrir o que João havia feito, foi ter-se com ele, precisava de vê-lo, não
admitia esse tipo de crime, considerava um crime imperdoável, todos eram perdoáveis,
menos aquele. Notamos aqui que Mr. Moore começa a condenar João pelo seu crime,
mas o que tornava o crime sexual mais pecaminoso do que os outros? Por que o pastor o
abominava tanto? Talvez fosse pelo fato de, no passado, Mr. Moore ter tido esse mesmo
sentimento e, ao ver toda essa externalização de sentimentos por meio
74

de João Piló, horrorizava-se. Diante disso, a narrativa nos mostra o quanto esse desejo
pedofílico ainda está presente na vida de Daniel Moore, bem como toda essa rejeição a
João Piló faz com que esse passado se torne mais vivo no presente do que ele consegue
controlar. Para entendermos melhor sobre o crime cometido por João Piló,
discorreremos um pouco como é posto por lei os crimes de pedofilia na legislação
brasileira e quais punições são aplicadas aos pedófilos.
O ato pedofílico vai além do que é explícito na lei, visto que as razões que levam
o indivíduo a cometer a pedofilia estão relacionadas a fatores psíquicos. O pedófilo está
preso a lembranças do passado e a repressões da infância, que são explicadas e
analisadas por meio de estudos psicanalíticos. Na perspectiva psicanalítica, como já
vimos no capítulo I deste estudo, a pedofilia é classificada como uma parafilia, distúrbio
psíquico que se caracteriza pela preferência ou obsessão por práticas sexuais
socialmente não aceitas, como a pedofilia, o sadomasoquismo, o exibicionismo, etc. O
pedófilo não pode ser considerado apenas um criminoso, mas também uma pessoa
doente, o que é comprovado pelos estudos psicanalíticos e psiquiátricos. Na visão
psicanalítica, o pedófilo sofre de transtornos psicológicos que necessitam de tratamento.
As ações que geram a pedofilia podem levar o indivíduo a cometer crimes e violências
contra crianças, mas não é possível concluir que um pedófilo seja somente um
criminoso ou um doente, pois não há, no Código Penal, uma lei específica que condene
um pedófilo, nem na psicanálise uma afirmação precisa de que o distúrbio seja uma
doença, apenas fatores que explicam as causas das perversões sexuais. O artigo 218 da
Lei nº 12.015 de 2009, elucida sobre o delito de corrupção de menores:

Corrupção de menores
Art. 218. Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia
de outrem: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente
(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou
induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de
satisfazer lascívia própria ou de outrem: (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009).
Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de
criança ou adolescente ou de vulnerável. (Redação dada pela Lei nº 12.978,
de 2014).
Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de
exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para
75

a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: (Incluído


pela Lei nº 12.015, de 2009) (BRASIL, 2009,).

O artigo 218 que dispõe sobre a corrupção de menores de catorze anos teve seu
parágrafo único vetado pela lei número 12.015 de 2009, sendo incluído nessa mesma lei
os artigos 218-A e 218- B, que preveem penalidade contra o sujeito que facilita a
indução do menor ao ato libidinoso e à conjunção carnal. É necessário saber distinguir o
artigo 218 do artigo 217, pois há uma diferença entre os crimes contra menores de 14
anos. Por exemplo, duas pessoas acusadas de indução de um menor ao ato libidinoso
podem ter suas penas diferentes devido à intenção de cada sujeito ao praticar o delito. É
necessário estudar em qual tipo de crime ele se enquadra. Se o sujeito tiver cometido o
delito de corrupção de menores previsto no artigo 218, em que o agente induz a vítima a
praticar um ato que a satisfaça, ocorrendo a conjunção carnal, o agente indutor será
responsabilizado por estupro de vulnerável de acordo com o artigo 217-A. Caso o
agente convença a vítima a satisfazer a lascívia de outrem, o crime será julgado pelo
artigo 218-B, que tratará do favorecimento da prostituição e exploração sexual de
vulnerável. Para os delitos previstos nesses artigos, não é necessário que, para a
consumação do crime, o agente tenha sua luxúria satisfeita. Porém, não é lícito dizer
que se trata de um crime formal, mas material, pois para de fato haver a consumação, é
preciso que a vítima pratique o ato a que foi induzida.
O capítulo V, que trata do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de
prostituição ou outra forma de exploração sexual, artigo 227, prevê as seguintes penas:

CAPÍTULO V – DO LENOCÍNIO E DO TRÁFICO DE PESSOA


PARA FIM DE PROSTITUIÇÃO OU OUTRA FORMA DE
EXPLORAÇÃO SEXUAL (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Mediação para servir a lascívia de outrem
Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem:
Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 1o Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se
o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão,
tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de
tratamento ou de guarda: (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)
Pena - reclusão, de dois a cinco anos.
§ 2º - Se o crime é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou
fraude:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, além da pena correspondente à
violência.
§ 3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa
76

(BRASIL, 2009, grifos do autor).

No artigo 227, é explícito o ato de explorar. A conduta do agente é convencer a


vítima, maior de 14 anos e menor de 18 anos, a satisfazer o desejo sexual de outro que
não seja ele próprio. A prática é voltada apenas a uma determinada pessoa, porém, caso
a vítima receba uma quantia em dinheiro ou algo em troca, tal delito deverá ser julgado
pelo artigo 228, que trata do favorecimento da prostituição. A vítima poderá ser
qualquer pessoa maior de 14 anos e menor de 18, se o delito se enquadrar nesses termos,
configurando, então, crime qualificado previsto no art. 227, § 1º. Tal qualificação se
dará se o agente for parente próximo da vítima, como cônjuge, irmão, tutor ou qualquer
pessoa que esteja responsável por ela. O art. 227, §2º, prevê pena mais alta, caso o crime
cometido seja seguido de violência ou ameaça com o intuito de constranger a vítima. É
necessário saber diferenciar os crimes dos artigos 213 e 227, § 2º. Essa distinção se dá
pelo consentimento ou não da vítima: no §2º do art. 227, o consentimento da vítima está
presente, mesmo sendo induzido; já no art. 213, ele é inexistente, pois se trata
exclusivamente do ato de estupro.
Por último, o §3º elucida que a exploração sexual, com intuito de obter lucro,
também é crime qualificado, como nos outros incisos. Nessa questão de prostituição, há
uma grande discussão, pois há uma habitualidade em sua prática. É necessário que se
analise o crime de ponto a ponto, focando em qual modalidade foi realizado, sendo elas,
a indução, a atração, a submissão ou a facilitação. Somente mediante essa análise, o
agente poderá ser julgado em sua ação, se crime cometido por ele foi consumado ou
tentado. Caso a vítima seja levada pelo agente a se submeter aos serviços sexuais,
considera-se imediatamente um crime instantâneo. A partir do momento em que a
vítima se torna presa e impossibilitada pelo agente de abandonar a vida de prostituição,
o crime que já se encontra em estado de execução, passa a ser um crime permanente
reconhecido por lei, e o agente sofre, se julgado e condenado, reclusão de dois a cinco
anos.
No Estatuto da Criança e do Adolescente, os Artigos 240, 241, 241-A, 241-B,
241-C, 241-D e 241-E passaram por uma nova redação e foram alterados pela Lei
11.289, de 2008, acabando com as diversas interpretações sobre a pornografia e a cena
de sexo implícito:
77

Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras


providências.
Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por
qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança
ou adolescente:
(Redação dada pela Lei nº 11.829, 2008)
Pena- reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei
nº 11.829, 2008).
Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que
contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou
adolescente: (Redação dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
Pena- reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos e multa. (Redação dada pela Lei
nº 11.289, de 2008).
Art. 241- A. oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar
ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática
ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo
explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: (Incluído pela
Lei nº 11.289, de 2008).
Pena- reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei 11.289,
de 2008).
Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia
vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou
pornográfica envolvendo criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº
11.289, de 2008).
Pena- reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro anos, e multa (Incluído pela Lei nº
11.289, de 2008)
Art. 241-C. simular a participação de criança ou adolescente em cena de
sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou
modificaçãoo de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação
visual: (Incluído pela Lei nº 11.289, de 2008).
Pena- reclusão, de 1 (um) a 3 ( três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº
11.289, de 2008).
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda,
disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire,
possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo.
(Incluído pela Lei nº 11.289, de 2008).
Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de
comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso:
(Incluído pela Lei nº 11.289, de 2008).
Pena- reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº
11.289, de 2008).
Art. 241-E. Para o efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena
de sexo explícito ou pornográfico” compreende qualquer situação que
envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou
simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente
para fins primordialmente sexuais. (Incluído pela Lei nº 11.289, de 2008)
(BRASIL, 2008, grifos do autor).

A nova redação dos artigos do ECA representa uma segurança maior para
crianças e adolescentes, visto que o Código Penal Brasileiro não traz uma lei que
criminalize o pedófilo. O ECA deixa claro que há uma preocupação em mostrar na
78

legislação a intolerância às práticas ilícitas e o desejo de combater os chamados


pedófilos e os crimes de pedofilia. O artigo 241 mostra que há uma nova ação contra os
crimes de pedofilia na internet, pois atualmente a prática pedofílica tem sido o alimento
do comércio sexual da rede virtual. Com isso, exige-se uma polícia específica para
combater esses casos, sendo necessário o monitoramento constante da rede virtual,
como o intuito de descobrir conteúdos proibidos de cunho pornográfico infantil.
O objetivo da Lei 11.289 de 2008 foi, primordialmente, combater a produção e a
venda de pornografia infantil e criminalizar quem adquirisse tal conteúdo. Podemos
afirmar que essa atitude jurídica reforça a preservação da conduta moral da criança que
não pode se proteger do criminoso. O agente ativo desses crimes, geralmente, é alguém
que gosta de manter registros e fotos de crianças e adolescentes que acabam se tornando
suas vítimas. Na lei fica claro que a conduta do agressor pode ser múltipla; é um crime
de vontade livre e consciente do agente, e consuma-se com a prática de colecionar
conteúdos pornográficos ou se for pego em flagrante policial. Assim, há punição ao que
antecede o ato de acordo com o §1º do art. 240. O artigo 241 prevê o aumento de pena
para quem possui relações domésticas de intimidade, como, por exemplo, integrantes da
mesma família. Dessa forma, o agente, além de ser punido pelos artigos 240 e 241
estabelecidos pelo ECA, também será penalizado mediante os artigos sobre o estupro de
vulnerável, com aumento do tempo de reclusão.
Tanto o Código Penal, quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente
estabelecem penas para os crimes de pedofilia, garantindo, de certa forma, a integridade
física, moral e psicológica de crianças e adolescentes.
Assim, retornando aos estudos do conto de Dourado, o pastor tinha plena
consciência do crime cometido por aquele homem o qual estava ajudando. Mediante
essa carga de conflitos interiores, emoções e perseguição, o desejo se revela por meio
dos sonhos que atormentam o pastor. O passado se mistura com o presente e Daniel
Moore, Annabel Moore, a garotinha violentada e João Piló viram um só, como podemos
ver no seguinte trecho:

[…] Foi num desses sonhos, quando já rompia a manhã, que de novo lhe
apareceu a figura de Annabel Luce Moore. Vinha no seu vestido preto de
sempre, que nos sonhos ganhava o brilho de cetim, como o colarinho se
prateava. No ombro direito um sinistro pássaro branco. Desta vez na
pesada corrente de ouro no pescoço, em vez da medalha luminosa, uma
79

grande âncora. Mr. Moore não sabia a que atribuir o significado daquela
mudança, como não entendia o fogo nos olhos de ordinário tão
parecidamente mansos detrás dos óculos grossos. Mas ela hoje vinha sem
óculos, não precisava deles para ver ou se proteger. As narinas palpitavam
na respiração quente. Mr. Moore, embora ela longe, podia sentir o quentume
na cara. Ela umedecia os lábios com a língua, e a língua era grossa,
luminosa, carnosamente vermelha. Falava baixinho um segredo para o
pássaro, que piava ainda mais sinistro e arrepiado.
Ao contrário do que acontecia das outras vezes, Annabel não trazia a paz
mas o fogo. O peito abrasado, um amor tão forte como nunca antes sentira
por ela. Havia qualquer coisa porém de grotesco na sua figura, que ele nunca
antes percebera. Tinha urgência de que ela se deitasse ao seu lado, de beijá-
la e amá-la. Embora repetisse que ela era sua mulher perante Deus e os
homens, pesava-lhe no coração um difuso sentimento de pecado que jamais
havia sentido. E o medo de que Mr. Kernan ou o próprio apóstolo lhe
aparecessem…
As mãos de Annabel não eram mais aquelas pequeninas mãos que ele
amava tanto, mãos de menina, e que costumava guardar nas dele como um
pássaro. Eram desproporcionais ao corpo, muito brancas e pesadas.
Annabel fazia um grande esforço para levantá-las. E as mãos de Annabel
acenavam para longe, em direção ao fundo azulado e deserto, os braços
penosamente estendidos á espera de alguém. O horizonte era uma linha
luminosa, uma fumaça trêmula e sonora como ondas de um sol de verão
reverberando no ar do meio-dia, tal a luminosidade que o sonho de repente
adquiriu.
Uma menina de branco, o vestido rendado e vaporoso, surgiu da linha do
horizonte, a princípio muito pequenina, e foi crescendo, crescendo, e saltava
sem peso sobre as ondas sonoras e luminosas. Vinha em direção a ele, em
direção aos braços estendidos de Annabel Luce Moore. Annabel abraçou-a,
colocou-a no colo. Disse-lhe baixinho qualquer coisa no ouvido (o mesmo
que dissera ao pássaro?), tão baixinho que ele não podia escutar. Sabia
porém que era alguma coisa de muito suspeito, o pássaro piava
terrivelmente arrepiado e sinistro. E Annabel alisava o cabelo da
menina, beijava-lhe o rosto quente e corado. As narinas, os olhos e os
lábios da menina tinham o mesmo quentume e brilhos dos de Annabel.
E ele não pôde ver inteiramente, a escabrosidade o acordou, mas
vislumbrava no final do sonho: as duas se entregavam a algo
terrivelmente pecaminoso […] (DOURADO, 2006, p. 133 e 134, grifos
nossos).

O que Daniel sentia por Annabel era incomum. Ele desejava aquela mulher com
porte de menina, “[…] A mulher aparece ora como santa ora como prostituta ora como
demônio […]” (NOLASCO, 1993, p. 133). Neste último devaneio de Mr. Moore,
podemos perceber que Annabel já não vem como a figura de um anjo, ela não traz a paz
que tranquiliza Daniel, ela ainda possui o corpo de uma menina, mas há fogo em seus
olhos. O fogo representa o mal, o desejo de Daniel, ao vê-la ele sente a necessidade
absurda de amá-la, a visão da boca carnuda, da língua grossa e dela molhando os lábios
80

com a língua, e a quentura de seu corpo nos dá uma cena erótica, despertando o desejo
de prazer de Mr. Moore. “[…] A dimensão da santidade e da vulgaridade presentes na
mulher aparece na representação que um homem deve ter para si. […]” (NOLASCO,
1993, p. 134). Mesmo sabendo que era sua mulher, ele temia tê-la para si, pois algo o
condenava, ao mesmo tempo em que ela transmitia uma certa santidade ela também
apresentava algo vulgar, essa vulgaridade era transmitida pelo fogo e pelo quentume de
seu rosto e isso fazia com que Daniel quisesse tomá-la para si. Annabel tinha mãos de
menina e se parecia com uma, porém essas mãos já não eram as dela, as mãos brancas e
pesadas eram as próprias mãos do pastor, talvez por isso a sombra de Mr. Kernan o
ameaçava tanto. Ao ver a menina junto a Annabel, elas duas se tornam uma só, como se
fizessem parte do mesmo passado e da mesma história. Tamanha era a junção das duas
que a certo ponto as mesmas características da menina eram as de Annabel. Ao colocar
a menina no colo temos uma relação intensa entre Annabel e a menina, as carícias
trocadas e o quentume no rosto e a respiração ofegante das duas, nos revela um ato
sexual entre elas, sendo isso algo terrivelmente pecaminoso para o pastor.
A figura do pássaro que piava e era terrivelmente arrepiado remete-se a João,
que o tempo todo representa a externalização do outro de Mr. Moore, fazendo-os ser
também apenas um. E assim a mulher, com características de menina, e a menina, que
ganha a sensualidade da mulher, tornam-se vítimas do mesmo ato terrivelmente
pecaminoso. Ao final da narrativa, quando Daniel Moore se vê livre de João Piló, é
como se ele finalmente conseguisse fazer com que o outro adormecesse de vez dentro de
si. “[…] era como se uma parte dele mesmo, a sua sombra se afastasse, para só restar a
claridade” (DOURADO, 2006, p. 136). Tudo voltaria ao normal.
Vimos como a separação dos dois foi um alívio para o pastor. A primeira
impressão que temos é a de que João, um criminoso e pedófilo, não existe nenhuma
possibilidade de estar associado a Daniel Moore, um pastor politicamente correto e
temente a Deus. Mas ao vermos que o pastor guarda em si um segredo e um mistério
que só ele conhece, João Piló pode ser a exteriorização do seu segredo. O narrador
dissocia o pastor do criminoso quando os separa em duas pessoas distintas e ao final
junta-os como se fossem um só, porém o bom lado (o lado correto do pastor) prevalece
e a representação do mal (João Piló) morre ou adormece voltando tudo ao normal outra
vez.
81

Neste conto, o desejo pedofílico expressado por Daniel Moore é tão subjetivo
que se mostra como uma luta constante consigo mesmo, e o lado acusador é o seu juízo,
mostrando-lhe o que parece certo, e a sombra do seu outro é o lado pecaminoso que
insiste em se revelar. A religião torna-se uma fuga para esconder o desejo pedofílico
que há nessa personagem tão complexa e aflita que se condena o tempo todo por possuir
um desejo tão perverso. Diferentemente do próximo e último conto a ser analisado,
“Mulher Menina Mulher”, que veremos uma espécie de aceitação da pedofilia na
sociedade por meio da instituição matrimonial.

3.3 — “MULHER MENINA MULHER” — A MULHER INFANTILIZADA

Ninguém deve culpar-se pelo que sente, não somos responsáveis pelo que nosso corpo
deseja, mas sim, pelo que fizemos com ele.

(Érico Veríssimo)

Antes de passar a para análise do conto, discutiremos alguns conceitos


antropológicos sobre a pedofilia que nos servirão para a compreensão da análise desta
última narrativa deste estudo que denota um sentimento pedofílico na obra de Autran
Dourado.
A pedofilia é um termo que se origina do grego pados (criança) e filia (atração,
amizade, afeição, preferência), ou seja, atração por criança(s). Podemos dizer que há
diversas formas de comportamento que podem ser tidas com práticas pedofílicas.
Segundo Roger Spode Brutti (2008) em seu artigo “Tópicos Cruciais sobre a Pedofilia”,
a pedofilia é uma doença que se manifesta no sujeito adulto e que, segundo a psiquiatria,
pode ser explicada pelo medo que o sujeito tem de se relacionar sexualmente com outro
adulto, fazendo com que surja, a partir de uma construção patológica, um adulto que
direciona seu impulso sexual para crianças.
A pedofilia é uma prática antiga e há relatos dela desde a antiguidade, embora
não houvesse reconhecimento desse termo. Na Grécia antiga, era cultural a relação
sexual entre jovens e adultos do sexo masculino. Faziam parte da aprendizagem apenas
os meninos acima de 12 anos, aos quais era permitida a iniciação da vida sexual com
parceiros adultos. Vanessa Carneiro Bandeira Carvalho, em sua dissertação O que é
Pedofilia e quem é o Pedófilo? (2011), cita Carter-Lourenz e Johnson-Powell (1999), os
82

quais afirmam que: “Em Roma, Tibério — imperador — romano possuía interesses
sexuais por crianças. Há relatos de que ele as levava para a ilha de Capri, onde as
obrigava a satisfazer seus impulsos sexuais com mais diversos atos” (CARTER-
LOURENZ e JOHSON-POWELL apud CARVALHO, 2011, p. 18-19).
Portanto, é fato que essas práticas faziam parte da cultura daquela época. Ainda
em Roma, era normal o pai ter relações sexuais com os filhos, pois eles acreditavam que
o pai possuía total poder sobre a vida dos filhos, os quais dependiam dele. Em vários
outros lugares, havia a prática de atos sexuais que hoje remetem à pedofilia. No Egito,
os faraós satisfaziam os seus desejos sexuais com crianças, os árabes possuem registros
de histórias dos samurais que faziam meninas, ainda crianças, prisioneiras, e mantinham
relações sexuais com elas até completarem idade adulta, quando eram libertas.
Como a maioria desses casos era encoberta por uma questão cultural, no Brasil
também não foi diferente. Antigamente, a prática do casamento arranjado era muito
comum. Os pais permitiam que as meninas, assim que passasse a menarca (a primeira
menstruação), se casassem com homens muito mais velhos, o que garantia a herança
familiar e a preservação da honra da família. Muitos pais, por serem pobres, entregavam
suas filhas para homens mais velhos por não terem condições de criá-las, garantindo
assim um futuro para elas. Essa cultura de casamentos arranjados, aqui no Brasil, durou
muito tempo, quando o patriarcalismo prevalecia. Carvalho (2011) ressalta que

[…] tais casamentos eram culturalmente aceitos, sem serem vistos como
uma prática pedofílica. No entanto, com o passar dos tempos, as concepções
foram mudando, não sendo mais aceita essa desproporção entre as idades,
além da desigualdade física e psíquica (CARVALHO, 2011, p. 21).

Com o passar do tempo, esse tipo de casamento entre meninas muito jovens com
homens mais velhos tornou-se meio incomum, pois, de certa maneira, esse era um ato
pedofílico camuflado pela instituição do casamento, mas que não deixava de ser um tipo
de pedofilia. Esses casamentos eram entre homens mais velhos e meninas novas. Por
que não o inverso? Por que não era e ainda não é bem-visto um relacionamento em que
a mulher seja mais velha do que o homem? A justificativa dessa não aceitação está
inserida na cultura da qual fazemos parte, e na posição social da mulher na época em
que esses casamentos arranjados eram aceitos, uma época em que as mulheres não
tinham direito de escolherem seus destinos, muito menos seus relacionamentos.
83

Porém, a partir do momento em que a mulher começa a ganhar espaço social,


mediante a força do movimento feminista, e a ter autonomia sobre suas escolhas, os
relacionamentos entre mulheres mais novas e homens mais velhos tornaram-se
frequentes nos dias atuais. No entanto, mesmo com toda a participação ativa da mulher
na sociedade, ainda vivemos em um ambiente de predomínio machista e preconceituoso
em relação a esse tipo de relacionamento. A cultura dos casamentos arranjados foi
mudando com o passar dos anos e passou a não ser aceita pela sociedade, mas, em
contrapartida, o preconceito e a repulsa contra essas relações aumentaram de maneira
negativa, principalmente quando as mulheres são mais velhas do que seus
companheiros. Tudo se torna uma questão de dominação machista. O homem mais
velho com uma mulher mais jovem não causa o mesmo alvoroço quando se trata de um
relacionamento em que a mulher é mais velha. Isso ocorre justamente pela carga cultural
que carregamos, como se esses relacionamentos possivelmente não fossem “normais” e
que não há sentimento, apenas troca de interesses.
Na obra de Autran Dourado, o desejo pedofílico é bastante recorrente, como
vimos nos contos analisados anteriormente, mediante a expressão do desejo compulsivo
que as personagens masculinas têm por mulheres com traços de meninas, a maneira
exagerada como elas infantilizam as mulheres e a sua dificuldade de se relacionarem
sexualmente com adultos. A figura infantilizada da mulher possui um grande valor
emocional para as personagens masculinas, pois preenchem algo vazio dentro delas.
Em “Mulher Menina Mulher”, Dourado nos traz o relato da vida de Margarino
Vivas, o escrivão do cartório da pequena cidade de Duas Pontes. Um homem ciumento,
possessivo, formal e exageradamente discreto que, quando visto pelas pessoas, era um
exemplo a ser seguido, mas havia nele um conflito interior, angústia e medo, a luta
constante entre sentimentos e aflição.
No início da narrativa, o narrador nos diz como Margarino conheceu sua esposa
Glória e o que fez com que ele se apaixonasse perdidamente por ela, começando assim a
mostrar pequenos indícios de um desejo pedofílico, como podemos comprovar no
fragmento a seguir: “Embora não fosse bonita, era bem feita de corpo, elegante e
simpática, tinha boas maneiras, e um sorriso que encantava, jeito e presença de menina,
tudo isso atraiu Margarino” (DOURADO, 2005, p. 14).
Como podemos perceber, o que chamou a atenção de Margarino não foi a beleza
84

de Glória, pois esta não a tinha, mas sim, além dos modos de etiquetas, o jeito dela de
ser parecida com uma menina. No decorrer da narrativa, a figura da mulher infantilizada
vai aparecendo de forma perceptível e devagar e a personalidade de Margarino vai se
revelando, mostrando à sua maneira possessiva de amar:

A sua maneira tranquilamente possessiva ele a amava, o mesmo se podendo


dizer dela. Era um amor comedido o dos dois, o único excesso que ele se
permitia era na cama chamá-la de minha menininha, tão pequena e miúda
era ela (DOURADO, 2005, p. 15, grifo nosso).

No trecho acima, vemos outro aspecto que denota a presença de um desejo


pedofílico expresso por Margarino. A maneira com a qual ele trata a sua esposa remete a
um desejo proibido. De acordo com Jenifer Campos Varela, na sua dissertação de
mestrado Construindo Monstros: discursos e representações sociais na CPI da pedofilia
(2010), “A pedofilia pode ser tida por dois tipos, a exclusiva e a não exclusiva”
(VARELA, 2010, p. 10). Na narrativa em análise, podemos perceber a do tipo não
exclusiva, que é quando o indivíduo produz uma fantasia sexual infantilizada. A
maneira delicada e detalhada com a qual o narrador descreve Glória segundo a visão de
Margarino nos dá a ideia de como era a imagem que ele construía para ter prazer e se
satisfazer sexualmente com ela, chamando-a de menina, minha menininha. Podemos
perceber esse corpo infantil por meio dos adjetivos “pequena” e “miúda”. Glória não
possuía características de um corpo de uma mulher adulta, apesar de não ser mais uma
menina, mas era esse corpo pequeno e miúdo e a figura de menina que haviam chamado
a atenção de Margarino, e assim ele satisfazia os seus desejos.
Glória era a única que conhecia esse outro lado de Margarino, esse lado
escondido por trás de um homem discreto e respeitado, lado que não demorou muito a
ser descoberto por outra pessoa. Depois que sua amada Glória morreu, Margarino se
enterrou em um luto que durou um ano, porém “[…] como a natureza humana é
corrente e suas urgências e como lugar-comum dizer que a carne é fraca, ele as
satisfazia com Ordália […]” (DOURADO, 2005, p. 20). Era com Ordália que
Margarino se satisfazia todas as manhãs, pois se fosse à Casa da Ponte no horário da
tarde receava de encontrar amigos ou conhecidos e tinha medo do que os outros
pensariam dele ou então de ver o olhar de acusação de Glória estampado no rosto das
pessoas, por isso mantinha sua extrema e doentia discrição.
85

A maior preocupação de Margarino era se comprometer emocionalmente com


Ordália, pois tal afeiçoamento faria vir à tona seu desejo oculto. Porém isso acabou
acontecendo porque “[…] o convívio diário afeiçoa […]” (DOURADO, 2005, p. 21).
Assim, todos os dias, Margarino procurava Ordália não apenas para se satisfazer quando
a carne gritava, mas também por causa de sua companhia. Margarino também era um
homem emotivo, e essa emoção fez com que Ordália desconfiasse do seu gosto e
tomasse novos jeitos de se relacionar sexualmente com ele; ela “[…] era gentil e polida,
jamais dizia uma palavra grosseira e mesmo na cama agora se comedia, discreta […]”
(DOURADO, 2005, p. 21), mas nem sempre foi assim. Esses novos modos surgiram
porque ela começou a perceber que já se interessava por ele, queria prendê-lo, porque,
por trás daquele homem de discrição exagerada e formalismo intenso, havia um homem
carente e com um desejo profundo e estranho.
A partir daí, o desejo pedofílico de Margarino começa a se revelar para Ordália e
para o leitor. A narrativa passa a mostrar com clareza a personalidade oculta desse
homem, antes conhecido apenas por Glória, agora descoberta por Ordália, que se
empenhava ao máximo para agradá-lo porque não queria perdê-lo. Ordália então
começou a satisfazer:

[…] as demandas do coração dele conforme ele queria. Era terna, de voz
macia e pausada, sabia tocar música. […] Inteligente conhecia também por
intuição e prática a arte de se aproximar da alma humana (DOURADO,
2005, p. 21).

A prostituta da Casa da Ponte imitou o jeito de menina para agradar ao amante,


contava-lhe histórias, tocava músicas para ele, falava como era seu sertão de quando era
criança. E Margarino ficava admirado e encantado com ela, com a menininha que ela
havia se tornado, a mulher menina, nascendo assim um amor entre eles. O amor que
despertaria em Margarino todos os seus medos e segredos, que o transformaria, pois as
suas fantasias sexuais por uma mulher infantil seriam realizadas com Ordália e o
levariam a um súbito impulso de insanidade e traição.
A relação entre os dois foi crescendo de tal maneira que, às vezes, era o próprio
Margarino que se tornava uma criança:

[…] Chegavam mesmo à infância, ao perigoso terreno da lembrança. Quem


86

mais gostava de voltar ao território da infância perdida que em vão se


tenta recuperar ou esquecer (há sempre desvãos, misteriosos no subsolo
humano, nos intrincados meandros) era Margarino, que na mansitude, na
intimidade, tinha um lado menino muito bom. Chegava a ser tão terno e
pequenino que muitas vezes teve vontade de chamá-la de mamãe, da
mesma maneira que na hora próxima do gozo dizia menina, menininha
[…] (DOURADO, 2005, p. 27, grifos nossos).

Aqui, percebemos que o desejo de Margarino por uma criança é expresso pelas
histórias que um contava ao outro relatando sua infância perdida, durante essas histórias
ele se transformava em um menino carente e queria chamar Ordália de mãe. Ao mesmo
tempo em que ele era um menino, era um homem que se satisfazia sexualmente com a
idealização de uma mulher menina. O desejo de pedofilia expresso por Margarino
levou-o a cantar para Ordália canções que sua mãe cantava para niná-lo, mesmo
desafinado ele transferia para ela o cuidado de uma mãe, a embalava nas suas canções
tratando-a como uma menininha. Este trecho nos remete ao complexo de Édipo
discutido por Freud em seu texto “A Dissolução do Complexo de Édipo”. Segundo
Freud, no complexo de Édipo, o sujeito mantém a sua mãe como objeto de amor, pois
esta é quem o satisfaz quando criança,

[…] Nessa relação reside a raiz da importância única sem paralelo, de uma
mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais
forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas
posteriores — para ambos os sexos (FREUD, 1940, p. 202).

E foi “[…] nessas relações de homem e menina, de menino e mulher, de mãe e


filho […]” (DOURADO, 2005. p. 27), que Margarino expõe à Ordália e ao leitor esse
desejo, o que fez com que ela mudasse por completo a sua maneira de se relacionar com
ele:

No início a iniciativa era dela e ela se remexia e volteava na habilidade


adquirida na vida, na sua variada prática e sabença. Usava uma linguagem
livre ou lhe contava casos fesceninos, para ver se o excitava ligeiro e
terminava logo o serviço. Mas viu que aqueles modos e trejeitos não o
agradavam, tinha que ser vagarosa, comedida e delicada, de usar um linguajar
policiado de moça- família. Como ela percebeu, entre espantada e divertida
(cada homem tem sua maneira e gosto, variam muito), a alma pedofílica de
seu parceiro, passou a tomar uns ares e trejeitos de menina (DOURADO,
2005, p. 28, grifo nosso).
87

Revelado ou descoberto o desejo pedofílico de Margarino Vivas, a narrativa


começa a tomar outro rumo, com o amor que sente por Ordália ele promete pensar em
tirá-la da Casa da Ponte e montar uma casa para ela, porém esse amor, além de
encorajá-lo a abrir mão de sua exagerada discrição, faz com que ele simplesmente mude
a rota que fazia de casa para o trabalho a fim de pensar sobre a proposta de Ordália.
Essa mudança de rota traria para Margarino não só a quebra de uma rotina, mas a
quebra de uma vida discreta e a libertação desse sentimento pedofílico que não mais
seria por uma “Mulher menina”, mas sim por uma “Menina Mulher”. Ao passar pela rua
de cima, Margarino se depara com a bela imagem de uma jovem moça pela janela que
lhe acena e sorri para o seu lado, ele olha para os lados e percebe que não há mais
ninguém na rua além de si e percebe que aquele olhar era mesmo para ele. Aquele
acontecimento viria perturbar Margarino pelo resto do dia.
Desse dia em diante, Margarino começou a passar todos os dias pela rua de cima
para ver se avistava a bela moça e descobriu que a jovem menina se chamava Esmeralda
e era filha de seu Inácio Bezerra. Margarino já não era mais o mesmo com Ordália;
queria saber agora era daquela menina de olhos verdes e de sorriso radiante que sempre
estava na janela em uma casa da rua de cima. Saía todos os dias mais cedo de casa, para
jogar galanteios para Esmeralda e conversar com ela. Por causa de tanta admiração ele
se sentia como um jovem que ia ao encontro da namorada, até que um dia ele pode ver
bem de perto o quanto formosa e bela era aquela menina, e o leitor vê como esse desejo
agora está exposto:

[…] Estendeu a mão para ela, sentiu a pressão da mão dela, pequena e
macia. Meu Deus, como ela é bonita, que viva formosura! Os olhos grandes
e verdes, as sobrancelhas finas e arqueadas, o nariz e a boca sensual e bem
desenhados. Os cabelos castanhos, repuxados e presos por um pente no alto
da cabeça, tornavam o pescoço mais esguio, o que a fazia parecida como
uma bela girafinha. Tão jovem, podia ser uma filha caçula, devia ter uns
catorze anos (DOURADO, 2005, p. 36, grifos nossos).

Na citação acima, as características de Esmeralda expostas por Margarino


mostram o seu desejo por ela, os olhos grandes e verdes acompanhados das
sobrancelhas finas e arqueadas dão impressão de que eles o chamam para si, o desenho
88

do nariz e da boca sensual que prenuncia o desejo erótico proibido. A partir daí o desejo
pedofílico expresso por Margarino Vivas torna-se claro para o leitor, pois ela era uma
menina de catorze anos e ele um homem de cinquenta. Podemos afirmar que esse
interesse se torna um ato pedofílico, pois, conforme aponta Maria da Graça Blacene
Lisboa, em sua dissertação de mestrado Pedofilia um Olhar Interdisciplinar, a pedofilia
é a perversão sexual na qual a atração sexual de um indivíduo adulto está dirigido
primariamente para crianças pré-púberes (LISBOA, 2012, p. 13). Margarino não mediu
esforços para conquistar Esmeralda: ele a queria para si. Aquela ideia de mulher
infantilizada já não era o suficiente para satisfazê-lo, queria agora a menina mulher.
Como era um homem extremamente possessivo e ciumento, não suportou a ideia
de não ter aquela menina para ele, quando seu filho Gaspar veio lhe falar que queria se
casar com Esmeralda e esperava que seu pai pedisse a mão da bela jovem para ele,
como era de costume da época. Margarino fez totalmente o contrário: pediu a mão da
menina para ele próprio, despertando a ira de Gaspar e rompendo a relação entre pai e
filho. Esmeralda, que já havia se deixado encantar com a sensibilidade exposta por
Margarino, aceitou o pedido e casou-se com ele, porém não foi feliz, por causa do
ciúme de seu marido e de sua infância e inocência podadas antes do tempo: “ […]
Esmeralda se sentia infeliz, escolhera muito mal entre Gaspar e Margarino.[…] O ciúme
de Margarino, sem motivo, a humilhava, a fazia sofrer […]” (DOURADO, 2005, p. 45).
O casamento de Margarino e Esmeralda não foi saudável, porque ele na sua maneira
possessiva de amar, na sua desconfiança e no seu ciúme doentio a fazia infeliz.
Esmeralda era muito nova, uma criança que queria viver, e na sua meninice e no seu
espírito infantil, queria mesmo era brincar com Manuel, o jardineiro da casa onde ficava
quando Margarino ia trabalhar. Um dia ela pediu a Manuel que lhe abotoasse o vestido
nas costas e ele, ao ver sua nuca,

[…] sentiu o calor e o perfume dela. Suas mãos tremiam, seu coração
tuquetuqueava apressado. Ele aproximou bem o nariz da carne, para melhor
sentir o quentume e o cheiro, foi chegando os lábios na nuca de Esmeralda,
beijou-a. Ela se voltou, mirou-o bem nos olhos e lhe entregou os lábios
entreabertos. Se beijaram com avidez de dois apaixonados que eles, se
declararem, eram (DOURADO, 2005, p. 47).

A paixão entre os dois foi inevitável, o que não impediu o beijo entre eles.
Margarino não soube do ocorrido, porém dona Silvéria o advertiu dizendo que seria
89

perigoso, em seu estado de gravidez, continuar com suas molecagens com Manuel.
Disse isso, pois não queria que o adultério ocorresse dentro de sua casa. Então o conto
se encerra, dando a ideia de que o casamento de Esmeralda e Margarino nunca daria
certo e que o adultério permaneceria entre os dois, pois ele já não conseguiria controlar
o auge da mocidade de Esmeralda.
Assim podemos analisar no conto “Mulher Menina Mulher”, de Autran
Dourado, o desejo pedofílico expresso por Margarino Vivas, que foi um homem que
viveu sua extrema discrição em seu primeiro casamento, mas não pode esconder esse
desejo, aflorando seus segredos ocultos e revelando sua alma pedofílica, depois que sua
esposa morreu, pois era com Glória e Ordália que suas fantasias sexuais, de uma mulher
infantilizada e com jeito de menina, eram supridas. Elas eram as mulheres que viravam
meninas, e ao conhecer Esmeralda, esse desejo ultrapassa os limites sociais, fazendo
com que ele se perca em seus impulsos e se case com uma menina, não precisaria mais
idealizar aquela mulher infantil, pois agora ele teria a menina que seria mulher. No
entanto, essa expectativa é quebrada, quando o casamento se concretiza. O
encantamento acaba, restando só angústia, dor e sofrimento, de um homem que se
entregou aos seus impulsos e desejos em busca da satisfação da sua alma, deixando
marcas incuráveis e uma menina com a infância perdida e sem nenhuma esperança de
poder viver um amor de verdade. Ao final da narrativa, percebemos que o ciúme
possessivo de Margarino aumentou ainda mais, pois ele sabia que não conseguiria
controlar a juventude de Esmeralda. O sorriso e a alegria da menina lhe incomodavam,
proibiu-a a sair de casa e até mesmo se chegar à janela, e nunca confiaria nela. Ordália
ficou no segundo plano de Margarino, já não era mais a mesma coisa entre eles apesar
de não se separar dela. Esmeralda foi forçada a amadurecer e a sujeitar-se ao ciúme do
marido, mas a esperteza e a juventude da menina deixam implícito o adultério.
Assim, Autran Dourado parece nos guiar para uma construção de uma moral da
narrativa que, quando há infrações às leis da natureza e na sociedade, o custo disto é
uma punição a qual acomete a todos os indivíduos relacionados, sejam os ativos, como
pode ser percebido no caso de Margarino, que fez com que os seus desejos
prevalecessem acima da razão. Finalizamos assim as análises dos contos de Autran
Dourado que apresentam a presença do desejo pedofílico e, diante desse estudo,
percebeu-se que os narradores dos contos parecem sugerir uma evolução do pensamento
90

legal e social sobre a pedofilia, ou seja, o casamento civil como uma permissão jurídica,
no passo que para a família tradicional é a aceitação social e pública do ato, como
podemos ver neste último conto.
91

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação teve por objetivo analisar o desejo pedofílico nos contos de
Autran Dourado, tendo como objetos de análises os contos “Queridinha da Família”,
“Remembranças de Hollywood”, “Violetas e Caracóis”, “A Extraordinária Senhorita do
País dos Sonhos”, “Às Seis e Meia no Largo do Carmo”, “Mr. Moore” e “Mulher
Menina Mulher”. É interessante ressaltar que a obra de Autran Dourado engloba vários
assuntos sociais e envolve principalmente o lado psicológico das personagens. Isso traz
um enriquecimento para suas narrativas, permitindo-nos explorá-las e admirar ainda
mais esse autor. Mediante tal oportunidade, percebemos que o desejo pedofílico era
recorrente em algumas de suas narrativas e escolhemos, inicialmente, quatro dentre
delas para objetos de análise. Posteriormente, acrescentamos mais três contos que foram
utilizados na monografia para fazer parte do objeto de estudo, pois percebemos que
estes contos trariam maior contribuição para atestar a veracidade da nossa pesquisa.
Nossas hipóteses de pesquisa foram alcançadas, pois todos os personagens
masculinos manifestam o desejo pedofílico por meio de desejo compulsivo que eles
sentem por mulheres com traços de meninas, pela infantilização que eles fazem da
mulher adulta por não conseguirem se relacionar sexualmente com elas e pelo valor
emocional que as personagens masculinas colocam sobre a mulher infantilizada. Tais
hipóteses puderam ser confirmadas por meio do nosso aprofundamento teórico, crítico,
analítico e legislativo que fizemos sobre o tema. Os conceitos e os estudos
psicanalíticos foram inseridos nas análises dos contos, assim como a legislação penal e
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que possibilitou uma explanação maior
sobre o que é a pedofilia, quem é o pedófilo e como a pedofilia é retratada na sociedade,
nas artes, no cinema e na literatura.
Ao longo da dissertação, discorremos sobre como a pedofilia instaurou-se na
sociedade e como tem sido recebida na atualidade, dissertamos sobre um breve histórico
de atos pedofílicos desde a antiguidade e como foi sendo repudiado com o passar dos
séculos. Vimos também como a pedofilia foi explicada pela psicanálise onde mostramos
sobre os distúrbios e repressões sofridas pelos indivíduos que tem esse tipo de parafilia.
Juntamente com esses conceitos e estudos psicanalíticos, analisamos o primeiro conto
“Queridinha da Família”.
92

Neste conto o desejo pedofílico tem presença marcante e explícita. A figura de


Shirley Temple despertou em Valdemar Filgueiras um sentimento e um desejo tão forte
que fez com que ele perdesse o juízo e começasse a fabricar meninas-crianças para
satisfazer se desejo. A multiplicação do objeto de desejo — meninas em série — pode
ser lida como uma metáfora do que é proibido. A exposição de crianças que têm sua
infância podada está cada vez mais exposta na sociedade, tornando assim algo cada vez
mais público. Essa multiplicação da imagem da queridinha da família nos remete a
meninas que, no meio social, tem seu corpo exposto como mercadoria para serem alvo
de satisfação e prazer. A mídia cinematográfica no conto é a principal fonte de
comercialização da infância que é bruscamente roubada, mediante a imagem de Shirley
Temple que, na sua pureza e inocência, despertou o lado perverso de Valdemar
Filgueiras. E, ao final, temos um desfecho que nos remete a um suposto abuso sexual
tornado o possível motivo da sua morte. Vimos nesse conto a camuflagem do desejo
pedofílico pela sociedade que age com naturalidade a essas exposições midiáticas onde
tudo acontece às claras e ninguém vê.
As análises se ampliaram em “Violetas e Caracóis” e “ A Extraordinária
Senhorita do País dos Sonhos”. No primeiro conto, vimos a história de Luizinha porto,
uma menina de catorze anos com características, segundo o narrador, extremamente
sensuais, pois tinha o corpo bastante desenvolvido, apesar da pouca idade. A menina
também sofria de crises histéricas que preocupavam seus pais, fazendo-os procurarem
os médicos da cidade, Dr. Alcebíades, o médico pudico e respeitado por todos, e o Dr.
Viriato, bastante conhecido por não ter nenhum pudor e pela sua má fama com as
mulheres. O conto nos revela o desejo pedofílico expresso pelos dois médicos para com
a menina por meio dos fantasmas e da presença constante do passado deles. Vimos
também este desejo simbolizado pela violeta e pelo caracol, que possuem uma presença
muito forte no conto e uma marca muito simbólica o tratamento da menina. O conto
finaliza com uma suposta relação sexual entre a menina e o doutor Viriato que não
conseguiu controlar seu desejo e seus impulsos sexuais.
Em a “A Extraordinária Senhorita do País dos Sonhos”, analisamos a relação de
Jazabel Kislane, uma mulher anã com traços extremamente infantis, e Aristeu da
Silveira, um homem extremamente alto e forte, mas com a personalidade de uma
criança. Neste conto vimos a obsessão de Aristeu por Jezabel e o domínio que ela tem
93

sobre ele. O desejo pedofílico no conto se revela mediante as características infantis de


Jezabel e o que tais traços provocam em Aristeu, pois, ao ver aquela mulher anã com o
tamanho e traços de uma criança, ele se apaixona perdidamente por ela e a leva para sua
fazenda onde ela a contempla em um altar. Outra forma que identificamos a
exteriorização do desejo pedofílico no conto é pela música do violino de Jezabel, a
melodia do violino, ao ser tocado por ela despertava-lhe nele o desejo. Ao fim do conto,
vemos que a paixão de Aristeu sufocou a anãzinha; ela não era apenas um objeto de
desejo, ele a queria como exposição colocando-a em um altar. A revolta da jovem foi
tamanha que resultou no assassinato de Aristeu.
Ao final da dissertação, os contos analisados foram “Às Seis e Meia no Largo do
Carmo”, “Mr. Moore” e “Mulher Menina Mulher”, respectivamente. No primeiro conto,
vemos o acerto de contas entre Juvenal e Quincas, motivado pela honra de Natália, uma
jovem seduzida aos seus treze anos de idade. Depois de ver sua irmã desonrada perante
a sociedade, Juvenal decide limpar o nome da família planejando a morte de Quincas, o
sedutor de Natália. Porém, o que não se esperava era uma terceira pessoa que entraria
nessa história e que também havia caído nas graças da menina. Neste conto, temos uma
descrição de uma menina que, por meio dos seus traços erotizados, atiça os homens e
desperta-lhes desejos sexuais. O desejo pedofílico é expresso por Quincas, que seduz a
menina, e pelas características sensuais e eróticas que são atribuídas a ela. Por causa
desse desejo proibido, temos o final trágico da morte dos dois rapazes, servindo assim
como uma punição social.
No segundo conto, “Mr. Moore”, o desejo pedofílico é apresentado com muita
subjetividade e de maneira intensa. A angústia e o medo vividos pelo pastor nos mostra
algo que nos instigou a analisar o porquê de tanto sofrimento. Neste conto, o desejo
pedofílico se revela em meio a um confronto interior, em que tal desejo vive
encarcerado e que em todo o tempo insiste em manifestar. Daniel Moore vive uma luta
constante com o seu interior. A narrativa nos mostra que há no pastor algo que ele
deseja matar ou trancafiar dentro de si, um desejo que o condena e que ele teme ser
revelado. Ao se deparar com um criminoso em seu gabinete, Daniel vê-se preso a este
bandido de tal forma que sente como se fosse ele próprio. A partir daí, é revelado ao
leitor este criminoso imaginário que se esconde na mente do pastor. O crime cometido
por João Piló torna-se o mesmo desejo com qual o pastor tem uma luta constante. E é
94

nos sonhos e delírios que o desejo pedofílico transparece, quando a figura da esposa do
pastor, já morta, e a figura da menina violentada, são erotizadas, tornando-se, para o
pastor, uma mesma imagem. Nessa passagem, vimos que a tentativa de regular esse
desejo faz com que o pastor tenha vários surtos de ansiedade e, ao conseguir se livrar da
presença do criminoso “real”, é como se controlasse toda perversão dentro de si.
No último conto analisado desse capítulo, “Mulher Menina Mulher”, podemos
concluir que o desejo pedofílico está na fantasia que a personagem masculina tem em
infantilizar uma mulher para manter relação sexual com ela. No conto, vemos três
figuras femininas que são infantilizadas pela personagem masculina. A primeira mulher
que aparece no conto é a esposa de Margarino, uma mulher feita, porém com o jeito
parecido com uma menina. Não tinha beleza alguma, nada que chamasse a atenção dos
homens, mas Margarino encontrava nessa mulher com traços de menina pleno prazer e
satisfação, chamando- a de menininha. A segunda imagem feminina que aparece no
conto é Ordália, uma mulher bonita que trabalhava no bordel de Duas Pontes, com a
qual Margarino se encontrava quando sua mulher morreu. Com o tempo, Ordália
percebeu a necessidade de Margarino de fantasiar uma imagem infantil para se
satisfazer com ela. Ao descobrir a alma pedofílica de Margarino, ela começa a se vestir
como uma criança, transformando-se em uma mulher menina. A terceira imagem
feminina que aparece no conto é uma menina de catorze anos de nome Esmeralda, com
a qual Margarino se encantou. Ao vê-la, tão nova e tão menina, Margarino não mediu
esforços para tê-la para si, queria a todo custo a menina mulher. A juventude, a
inocência e a inexperiência da menina contribuíram para ser objeto de desejo para
Margarino. Notamos neste conto a presença marcante da infantilização da mulher,
Glória e Ordália, e a sexualização da menina, Esmeralda. Como procuramos
demonstrar, essa foi a maneira de o narrador nos mostrar a presença do desejo
pedofílico.
Nosso estudo sobre o desejo pedofílico nos contos de Autran Dourado nos
possibilitou analisar e estudar um assunto que é bastante recorrente na sociedade atual.
Com as análises, percebemos que Autran Dourado parece nos guiar para uma
construção de uma moral da narrativa que, quando há infrações às leis da natureza e na
sociedade, o custo disto é uma punição a qual acomete a todos os indivíduos
relacionados. Podemos perceber que ainda há questões para serem tratadas nessas
95

narrativas, como o indício de loucura dos personagens masculinos ao exteriorizarem


esse desejo. Tal questão fica aberta para futuras pesquisas que contribuirão para a
fortuna crítica do autor.
96

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Indústria Cultural e sociedade. Tradução


de Julia Elisabeth Levy. São Paulo, Paz e Terra, 2002.

BALLONE, G. J.; MOURA, E. C. Alucinação e Delírio. PsiqWeb. Disponível em:


<www.psiqweb.med.br>. Acesso em: 29 dez. 2017.

BLEULER, Eugen. Tratado de Psiquiatria. Madrid: Espasa-Calpe, 1971.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 34. ed. rev. aum. São Paulo:
Cultrix, 1999.

BRASIL. “Lei nº 11.829, de 25 de novembro de 2008. Altera a Lei no 8.069, de 13 de


julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, para aprimorar o combate à
produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a
aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na
internet”. Brasília, DF, 25 nov. 2008. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso em: 03 jun. 2018.

BRASIL. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do


Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1oda Lei no
8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do
inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho
de 1954, que trata de corrupção de menores. Brasília, DF, 7 ago. 2009. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm>. Acesso
em: 03 jun. 2018.

BRUTTI, Roger S. “Tópicos Cruciais Sobre a Pedofilia”. IN: Ambiente Jurídico.


Disponível em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artig
o_id=2606>. Acesso em: 15 abr. 2018.

CANDIDO, Antonio. “A Narrativa”. In: A Educação pela Noite. São Paulo: Ática,
1989. p. 199-215.

CANDIDO, Antonio. “A Personagem do Romance”. In: CANDIDO, A. et al. A


Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 53-80.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial. Dos crimes contra os
costumes aos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 359-H). 6º ed. São
Paulo: Saraiva, 2008.

CARVALHO, Vanessa Carneiro Bandeira de. O Que é Pedofilia e Quem é o Pedófilo.


2011. 138f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade
Católica de Pernambuco, Recife. Disponível em:
<http://www.unicap.br/tede/tde_arquivos/1/TDE-2011-06-07T152745Z-
394/Publico/dissertacao_vanessa_carneiro.pdf>. Acesso em: 15 maio 2018.
97

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 14. ed. RJ: José Olympio, 1999.

DOURADO, Autran. “Depoimento”. In: SOUZA, Eneida Maria. Autran Dourado.


Coleção Encontro com escritores mineiros. Belo Horizonte: UFMG, 1996. p. 27-64.

DOURADO, Autran. Armas e Corações. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

DOURADO, Autran. Violetas e Caracóis. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

FELIPE, Jane; PRESTES, Liliane Madruga. “Erotização dos Corpos Infantis, Pedofilia
e Pedofilização na Contemporaneidade”. IX Anped Sul: seminário de pesquisa em
educação da região sul, Caxias do Sul: RS, 2012.

FRAZÃO, Dilva. “Autran Dourado: escritor brasileiro”. IN: Ebiografia. Disponível em:
< https://www.ebiografia.com/autran_dourado/>. Acesso em: 15 abr. 2018.

FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos (1900). Coleção obras psicológicas


completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006b. v. 4.

FREUD, Sigmund. História de uma Neurose Infantil (“O Homem dos Lobos”), Além do
Princípio do Prazer e Outros Textos (1917-1920). Tradução e notas Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v.14.

FREUD, Sigmund. O Ego e o ID e Outros Trabalhos (1923-1925). Coleção obras


psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 19.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu e Outros Trabalhos (1913-1914). Coleção obras


psicológicas completas de Sigmund Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2006a. v. 13.

FREUD, Sigmund. Um Caso de Histeria, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade e


Outros Trabalhos (1901-1905). Coleção obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio De Janeiro: Imago, 2006c. v. 7.

JUNG, Carl G. ; et al. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

JUNG, Carl G. O Desenvolvimento da Personalidade. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

JUNG, Carl G. Tipos Psicológicos. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

KIEFER, Charles. A Poética do Conto. 1. ed. Lisboa: LeYa, 2011.

LACAN, Jacques. Lição XIV. In: A Lógica do Fantasma: seminário 1966-1967. Recife,
2008. p. 241-260.

LACAN, Jacques. O Seminário: livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da


psicanálise. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LACAN, Jacques. O Seminário: livro 5: as formações do inconsciente. 1. ed. Rio de


Janeiro: Zahar, 1999.
98

LAFETÁ, João Luíz. A Dimensão da Noite e Outros Ensaios. São Paulo: Duas Cidades:
Ed. 34, 2004.

LISBOA, Maria da Graça Blacene. Pedofilia um Olhar Interdisciplinar. 2012. 119f.


Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais). Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, Disponível em:
<http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/4894>. Acesso em: 18 abr. 2018.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e


Pessimismo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.

SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: Nas Malhas da Letra: ensaios. Rio
de Janeiro: Rocco, 2002. p. 38-52.

VARELA, Jeniffer Campos de Azevedo. Construindo Monstros: discursos e


representações sociais na CPI da pedofilia. 2010. 73f. Dissertação (Mestrado em
Ciências Sociais). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. Disponível em:
<http://repositorio.ufrn.br:8080/jspui/bitstream/123456789/13625/1/JenifferCAV_DISS
ERT.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2018.

Você também pode gostar