Anais Do II Seminário Interinstitucional de Pesquisa
Anais Do II Seminário Interinstitucional de Pesquisa
Anais Do II Seminário Interinstitucional de Pesquisa
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C Co om mi is ss s o o o or rg ga an ni iz za ad do or ra a
Prof. Dr. Joo Luis Pereira Ourique (UFPel) coordenador do evento
Mestranda Juliana Terra Morosino (UFPel)
Mestranda Priscila Monteiro Chaves (UFPel)
Acadmica Francieli Daiane Borges (UFPel)
Acadmica Patrcia Cristine Hoff (UFPel)
Acadmico Ramo Marques Costa (UFPel)
P Pr ro om mo o o o
GRPesq CNPq CARO
Bibliotheca Pblica Pelotense
A Ap po oi io o
Centro de Letras e Comunicao/UFPel
Programa de Ps-Graduao em Letras/UFPel
Centro de Integrao do Mercosul
O Or rg ga an ni iz za a o o, , e ed di it to or ra a o o e e r re ev vi is s o o d do os s a an na ai is s
Prof. Dr. Joo Luis Pereira Ourique
Acadmica Francieli Daiane Borges
Acadmica Patrcia Cristine Hoff
U Un ni iv ve er rs si id da ad de es s p pa ar rt ti ic ci ip pa an nt te es s d do o I II I S SI IP P
II Seminrio Interinstitucional de Pesquisa
Anais do II Seminrio Interinstitucional de Pesquisa, 30 de
maio a 01 de junho de 2012, Pelotas, RS / Organizadores: Joo Luis
Pereira Ourique, Francieli Daiane Borges e Patrcia Cristine Hoff.
Pelotas : UFPel/Centro de Letras e Comunicao/Grupo de Pesquisa
CARO, 2012.
367 p.
1. Estudos literrios 2. Interinstitucionalidade 3. Grupos
de Pesquisa Brasil I. Ourique, Joo Luis Pereira. II. Borges,
Francieli Daiane. III. Hoff, Patrcia Cristine. Ttulo.
A AN NA AI IS S d do o I II I S Se em mi in n r ri io o I In nt te er ri in ns st ti it tu uc ci io on na al l d de e P Pe es sq qu ui is sa a
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P Pr ro og gr ra am ma a o o
Q Qu ua ar rt ta a f fe ei ir ra a 3 30 0/ /0 05 5/ /1 12 2
17h 18h Credenciamento
18h Mesa - CARO-UFPel: Literatura e Racismo
Coordenador: Prof. Dr. Uruguay Cortazzo
19h30 Mesa - CARO-UFPel: Literatura e Sociedade
Coordenadora: Prof. Dr. Aline Coelho da Silva
21h Mesa - CARO-UFPel: Literatura e Formao Cultural
Coordenador: Prof. Dr. Joo Luis Pereira Ourique
Debatedora: Prof. Dr. Maristela Machado
Q Qu ui in nt ta a- -f fe ei ir ra a 3 31 1/ /0 05 5/ /1 12 2
18h Mesa - UFSM: Literatura e Autoritarismo
Coordenadora: Prof. Dr. Rosani Ketzer Umbach
20h30 Mesa - FURG: Formao e Consolidao do Sistema Literrio no
Brasil Meridional
Coordenador: Prof. Dr. Artur Emilio Alarcon Vaz
S Se ex xt ta a- -f fe ei ir ra a 0 01 1/ /0 06 6/ /1 12 2
18h Mesa - URI/FW: Grupo de pesquisa da URI Frederico Westphalen
Coordenador: Prof. Dr. Lizandro Carlos Celegari
20h Mesa - UNISC: GENALI C
Coordenadora: Prof. Dr. Eunice Piazza Gai
21h 21h Mesa - UFRGS
Coordenadora: Prof. Dr. Mrcia Ivana de Lima e Silva
22h Encerramento
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S Su um m r ri io o
Apresentao
8
CARO - UFPel
A mestiagem em Gilberto Freyre e Jos Vasconcelos
Mnica Izabel Macedo Machado 10
Branqueamento literrio: o caso Monteiro Lobato
Rafael Fculo Porcincula 19
O contexto histrico/ficcional em La excavacin de Augusto Roa Bastos e El
pozo de Augusto Cspedes
Juliana Terra Morosino 32
A superao da semiformao do leitor contemporneo: a leitura sob a tica
filosfica de Theodor W. Adorno
Priscila Monteiro Chaves 44
Drummond comparado: dilogos entre pesquisa e ensino
Francieli Daiane Borges; Patrcia Cristine Hoff 54
Ensinar literatura x ensinar leitores
Edna Souza Machado 64
UFSM
O acordo entre fbula e alegoria em A Revoluo dos Bichos: a humanizao do
animal e a animalizao do homem
Paula Klein 72
Literatura e crtica social em Dry September, de William Faulkner
vens Matozo Silva 85
A literatura como resgate da memria histrica de um povo em A Muralha
Samantha Borges 98
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A resistncia nas narrativas pampianas de Sergio Faraco
Amalia Cardona Leites 109
1957 - O levante
Mariangela Rotta Detoni 122
O crcere e a escritura da fuga em Arturo, a estrela mais brilhante, de Reinaldo
Arenas
Gabrielle da Silva Forster 133
Consideraes sobre o humor em O continente, de Erico Verissimo
Francisco Mateus Conceio 144
Os arquivos literrios, a pesquisa e a produo acadmica
Mara Lcia Barbosa da Silva 154
FURG
Resgate de um romance fundador da literatura sul-rio-grandense
Sheila Fernandez Garcia 166
Novelas de Carlos de Koseritz: resgate e anlise
Juliane Cardozo de Mello 177
Mistrios de Rio Grande, um folhetim no sculo XIX
Rosana Tejada Flores 192
URI-FW
Ps-colonialismo moambicano: fico, histria e memria em O ltimo voo do
flamingo, de Mia Couto
Vanessa Fritzen 201
Holocausto, representao e trauma em Quero viver... memrias de um ex-morto,
de Joseph Nichthauser: a literatura de testemunho no Brasil
Vanderlia de Andrade Haiski 213
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Narrar histrias para (re)encontrar a si mesma: memria e narrao em A ltima
fbula
Girvni Seitel 225
Literatura comparada: uma leitura intertextual do tema afeto em Amar, verbo
intransitivo, de Mrio de Andrade e Perto do corao selvagem, de Clarice
Lispector
Neides Marsane John Bolzan 238
Identidade, territorialidade e memria em Luanda Beira Bahia
Anne Luersen Piaia; Denise Almeida Silva 247
Entre estratgias de branqueamento e afirmao da identidade cultural negra:
Cauterizao, de Cristiane Sobra e As Mscaras de Dandara, de Serafina
Machado
Joo Paulo Pascoal 254
A representao social em Eugnia Grandet e O Vermelho e o Negro
Jaci Luft Seidel 263
A representao carnavalesca em Pantagruel, de Rabelais
Larissa Bortoluzzi Rigo 272
UNISC
O poder transformador da narrativa: um estudo da obra Vozes do deserto, de
Nlida Pion
Amada Drr; Eunice Terezinha Piazza Gai 285
O olhar sobre si mesma: o ato de narrar-se em Corao Andarilho (2009), de
Nlida Pion
Carine Isabel Reis 294
A complementaridade entre mistrio e histria na obra Se eu fechar os olhos
agora, de Edney Silvestre
Julie Henke; Eunice Terezinha Piazza Gai 304
Investigaes sobre identidade e preconceito a partir das narrativas de Moacyr
Scliar
Simone Conti de Oliveira 316
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Violncia e subjetividade na narrativa latino-americana contempornea
Rosane Maria Cardoso 325
Violncia e memria em A hora azul, de Alonso Cueto: o impacto da violncia
na memria dos personagens
Julia Tomazi 336
O jornalista contador de histrias: anlise de um relato de sobrevivncia
Daiane Balardin; Ctia Kist; Fabiana Piccinin 349
UFRGS
Do cinema literatura: a transposio de Infmia para Aqueles dois
Fernanda Borges 357
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A Ap pr re es se en nt ta a o o
Durante as trs noites de 30 e 31 de maio e 01 de junho de 2012, realizou-se na cidade
de Pelotas, Rio Grande do Sul, o II Seminrio Interinstitucional de Pesquisa, tendo como
intuito a abertura de um espao para apresentaes e discusses de pesquisas acadmicas de
diversas instituies. Nessa proposta, participaram do II SIP pesquisadores de graduao e
ps-graduao inseridos em grupos de pesquisa consolidados e ativos naquilo que
chamaremos de rea mais geral de Estudos de Literatura, passando por vrias correntes de
pesquisa.
Este II Seminrio Interinstitucional de Pesquisa firmou-se, tambm, com o intuito de
dar continuidade s atividades realizadas na sua primeira edio. O I Seminrio
Interinstitucional de Pesquisa ocorreu nos dias 22 e 23 de setembro de 2011, promovido pelo
Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai
e das Misses (URI) campus Frederico Westphalen, sob coordenao do Prof. Dr. Lizandro
Carlos Calegari e do Prof. Dr. Ricardo Andr Ferreira Martins. Neste evento estiveram
presentes grupos de pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), da
Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e da instituio sede.
O sucesso do evento, atingido em grande parte pelo seu espao cedido s
aproximaes entre os trabalhos desenvolvidos em vrios centros acadmicos do estado
trabalhos os quais resultaram na publicao de Anais
1
, motivou a promoo de outro evento
nos mesmos moldes. Assim, sob a organizao do Grupo de Pesquisa CARO da UFPel,
coordenado pelo Prof. Dr. Joo Luis Pereira Ourique, surgiu a segunda edio do seminrio,
cujas atividades aconteceram na Bibliotheca Pblica Pelotense e no Instituto Joo Simes
Lopes Neto, na cidade de Pelotas.
O II Seminrio Interinstitucional de Pesquisa contou com a participao de
pesquisadores vinculados s seguintes universidades: Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), coordenados pela Prof. Dr. Rosani Ketzer Umbach; Universidade Federal do Rio
Grande (FURG), coordenados pelo Prof. Dr. Artur Emilio Alarcon Vaz; Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Misses (URI), coordenados pelo Prof. Dr.
Lizandro Carlos Calegari; Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), coordenados pela
1
O acesso aos Anais do I Seminrio Interinstitucional de Pesquisa pode ser feito atravs do link
<http://www.fw.uri.br/site/posgraduacao/mestrado/106/publicacoes/ANAIS_I_SEMINARIO_INTERINSTITUC
IONAL_DE_PESQUISA.pdf>.
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Prof. Dr. Eunice Piazza Gai; Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
coordenados pela Prof. Dr. Mrcia Ivana de Lima e Silva; e Universidade Federal de Pelotas
(UFPel), coordenados pelo Prof. Dr. Joo Luis Pereira Ourique.
Gostaramos de agradecer a todos os envolvidos na realizao desse seminrio, em
especial aos professores e alunos que to gentilmente se dispuseram a fazer parte do evento.
Estendemos o nosso agradecimento Bibliotheca Pblica Pelotense e ao Instituto Joo
Simes Lopes Neto, pelo apoio.
Durante e ao final do evento, pudemos perceber a importncia e relevncia de
encontros como esse, privilegiando as pesquisas em fase de amadurecimento e, ainda, o
dilogo entre os mais diversos interesses de estudo dos pesquisadores participantes.
Acreditamos que se por um lado a pesquisa acadmica parte de um estmulo pessoal e quase
intransfervel, por outro a ampliao das reflexes proporcionadas pelo contato com outras
pesquisas igualmente importante para que o meio acadmico seja esse lugar dinmico e
estimulante.
Prof. Dr. Joo Luis Pereira Ourique
Acad. Francieli Daiane Borges
Acad. Patrcia Cristine Hoff
(Editores)
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A mestiagem em Gilberto Freyre e Jos Vasconcelos
MACHADO, Monica Izabel Macedo
*
Resumo: O objetivo deste trabalho fazer um paralelo entre os conceitos de mestiagem nas obras do mexicano
Jos Vasconcelos e do brasileiro Gilberto Freyre. Primeiro fizemos uma micro biografia dos estudiosos para
situ-los histrica e socialmente. Logo depois, apresentamos o surgimento da mestizofilia no Mxico, que
antecedeu a teoria da raa csmica proposta pelo educador mexicano assim como o conceito de mestiagem que
se desenvolveu no Brasil para situar Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos. Vasconcelos props o
surgimento de uma quinta raa que seria a sntese do ser humano, resultado do cruzamento entre brancos, negros,
amarelos e vermelhos. Todas essas raas seriam oriundas do continente perdido de Atlntida. Freyre retoma o
mito do paraso para defender a escravido no Brasil e explicar o processo de miscigenao e a colonizao
portuguesa no territrio brasileiro. Para Vasconcelos, o mestio a sntese do ser humano que iria sofrendo um
clareamento de pele gradual que levaria a uma unidade racial ao passo que, para Freyre o mestio tem um lugar
definido no mundo do branco, com direito a um trnsito social e poltico dado por ele.
Palavras-chave: Mestiagem. Raza csmica. Mestizofilia.
Meu trabalho se prope a observar a mestiagem em Gilberto Freyre e em Jos
Vasconcelos, a partir das obras Casa Grande e Senzala, Sobrados e Mucambos, de Freyre e
La Raza Csmica, de Vasconcelos. Um brasileiro e um mexicano, duas realidades socio-
histricas. Uma brevssima biografia de ambos. Freyre era socilogo, ensasta, professor.
Nasceu em 15 de maro de 1900, no Brasil, na aurora do sculo. Desde cedo se tornou um
vido leitor, aos 13 anos comeou a dar aulas, aos 16, leu sua primeira conferncia e com 17
concluiu o curso de Bacharel em Cincias e Letras. Participou de conferencias, congressos e
outros eventos importantes no Brasil, Estados, Europa e frica.
De sua extensa e significativa bibliografia, interessa-nos aqui Casa Grande e Senzala
e Sobrados e Mucambos. Foi durante uma viagem frica e Portugal, em 1930, que ele
comeou as pesquisas e estudos que originariam Casa Grande e Senzala. O livro foi publicado
em dezembro de 1932. Logo depois, foi organizado o 1 Congresso de Estudos Afro-
Brasileiros. Em 1936, publicou o livro Sobrados e Mucambos, uma continuao de Casa
Grande e Senzala.
Jos Vasconcelos foi um ensasta, idelogo, poltico, educador. Ele nasceu em 27 de
fevereiro de 1882, em Oaxaca, Mxico. Em virtude do trabalho de seu pai, Ignacio
Vasconcelos, tornou-se desde cedo um viajante. Aos 16 anos, saiu da casa dos pais e foi
*
Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: [email protected].
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morar na Capital Federal para estudar na escola Nacional Preparatria e depois na Escola de
Jurisprudncia.
Em 1920 foi nomeado diretor da Universidad de Mxico, lanou uma campanha
contra o analfabetismo e submeteu aos deputados um projeto de lei que criava uma Secretara
de Educacon Pblica Federal, pois o Ministerio de Educacin Pblica havia sido extinto por
decreto trs anos antes. O presidente lvaro Obregn, logo que foi eleito e tomou posse da
presidncia, aprovou a criao da secretaria e o nomeou responsvel pela instituio. Entre
seus feitos est a publicao dos clssicos da literatura universal no Mxico que rendeu
muitas polmicas no mundo poltico mexicano. Um de seus mritos foi o impulso que recebeu
a educao mexicana nesse perodo. Segundo Domingues Michael, o desenvolvimento da
educao no variou muito sem Vasconcelos. (apud VASCONCELOS, 2000.p.562)
Em abril de 1921, Vasconcelos mudou o escudo da Universidad Nacional que passou a
ser um mapa da Amrica Latina com o lema: POR M RAZA HABLAR EL ESPRITU.
Sustentam o escudo uma guia e uma condor apoiada em uma alegoria dos vulces e um
cactos zapoteca. No ano seguinte, ele empreendeu uma viagem oficial, de agosto a novembro,
pelo Brasil, Uruguai, Argentina e Chile. Ele fez um dirio da viagem que constituiu a segunda
parte do livro La Raza Csmica. Em 1925, publica, em Barcelona, La Raza Csmica.
O cenrio scio-histrico de Vasconcelos foi o da Revoluo Mexicana, um momento
de disputas no qual as negociaes se davam num clima de tenso e as concesses feitas
duravam, muitas vezes, o perodo de trgua entre um conflito e outro. Em Freyre isso no
aconteceu porque entre eles h uma distancia temporal considervel, porque no Brasil a
constituio do Estado se deu de forma pacfica e porque as disputas aconteceram no campo
das ideias.
Antes de apresentar as diferenas e similitudes entre ambos interessante falar um
pouco sobre o conceito de mestio e/ou mestiagem e como est sendo lidar com essas
nomenclaturas. Comecei a ler textos sobre o conceito de mestio e mestiagem para diversos
autores de acordo com algumas correntes filosficas. Isso foi importante para que eu pudesse
compreender melhor a partir de que lugar falam os dois estudiosos que so objeto deste
trabalho.
Desconstruir conceitos como fronteira e mestiagem foi difcil, pois minhas noes
eram muito ingnuas. Fronteira e mestiagem, por exemplo. A ideia de fronteira que eu tinha
como certa era a de uma linha divisria, uma rea provisria onde acontecem disputas.
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Mestiagem tinha a ver com o cruzamento entre brancos, negros e ndios porque,
basicamente, isso que nos ensinam na escola e certamente, deveria ter algo a ver com a
identidade latino-americana.
A palavra mestio tem origem latina mixticius, que significa mezcla, mistura. O
imprio espanhol usou-a, no sculo XVI, para definir o tipo humano que resultava do
cruzamento entre espanhis e os ndios que habitavam o lugar.
Quando o espanhol se instalou no territrio americano, imediatamente uniu-se
consanguineamente com as nativas. O imprio no colocou barreiras a isso porque pretendia
lucrar com a situao. Ao contrrio, tentou oficializar essas unies em casamentos, mas na
prtica continuaram ocorrendo os intercursos sexuais sem que firmassem compromissos,
segundo os ditames da igreja catlica e do governo espanhol. Dessa forma, foi surgindo o
mestio, mas socialmente ele no possua um lugar, uma identidade porque no era aceito por
nenhuma de suas matrizes. Com o tempo, proliferou e tornou-se um marginal social e um
bastardo.
Os criollos, descendentes de espanhis, por seu lado, sentindo-se alijados pela
pennsula, decidiram revalorizar o autctone para, a partir dessa identificao, construrem
uma identidade prpria. Surgia a necessidade de um patriotismo criollo. No entanto, era
impossvel para a intelectualidade criolla vincular sua origem ao ndio que via nas ruas,
considerado inferior. Tentaram, ento, fazer a vinculao com o ndio morto, representado
pelo guerreiro Anhuac. Mesmo que entre criollos e ndios houvesse uma realidade de
distncia e esse estratagema no surtido o efeito desejado, pelo menos o branco reconhecia o
valor do nativo americano.
Logo depois, mais um retrocesso. O ndio foi completamente apagado, do ponto de
vista legal, pela Constituio que criou em seu lugar abstratos cidados mexicanos, segundo
Basave Bentez, e o mestio estava includo neste rtulo. Para ele, um lema adequado para
esta classe social era: um ndio bom um ndio invisvel. Era uma mestizofobia.
Paralelo a isso, havia um movimento insurgente e que pretendia estabelecer uma
identidade mestia- a corrente de pensamento Mestizfilo e que compreende uma vinculao
entre mestiagem e mexicanidade e corresponde a uma busca de identidade nacional. Nesse
sentido, a corrente mestifila se inscreve no nacionalismo.
Para Francisco Pimentel, estudioso de lnguas indgenas, as diferenas entre o branco e
o ndio se expressavam na existncia de dois povos diferentes no mesmo lugar e, at certo
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ponto, inimigos e isso era um impedimento para se construir uma nao social e etnicamente
vivel. Era necessrio, ento, desindianizar o ndio fazendo com que esquecesse seu
idioma, sua religio, sua propriedade e adotasse a cultura do criollo. Ele apostava num
Mxico criollo e desejava o desaparecimento das raas, de fato e de direito e a soluo para
isso era a imigrao branca que resultaria num pas com os mesmos costumes e interesses.
Considerava a mestiofilia relativa e o seu mestio era um criollo disfarado, um cavalo de
Tria caucsico dirigido contra a populao de cor. Era um etnocdio e a mestiagem, um
veculo para criollizarlos.
Vicente Riva Palacio, mestio, militar, poltico e literato, diferente do criollo Pimentel,
queria a criao de um povo nico, de uma nacionalidade prpria, que se daria graas ao
avano da fuso racial. Pela primeira vez se vinculou mestiagem e mexicanidade outorgando
ao mestio a exclusividade da nacionalidade mexicana. Seu critrio de distino foi o racial.
Segundo Riva Palacio, o elemento pr-hispnico no tinha o que oferecer ao mestio do ponto
de vista cultural. Mas, antropologicamente, a raa indgena superou a europeia, pois, segundo
ele, suas medidas e caractersticas o tornavam mais apto, fsica e geneticamente. Tem-se uma
nova concepo de mestiagem a partir da qual a mescla no melhora somente o ndio, mas
tambm o criollo. O ndio contribuiria com a fora e o criollo com a inteligncia, gerando,
ambos, um terceiro, o mestio. Este pacto se converte num contrato racial.
A teoria que est por trs a do evolucionismo de Darwin e Haeckel. Palacio
representa a transio entre o liberalismo do sculo XVIII e o positivismo do sculo XIX.
Porm, ao entrar no terreno da gentica sua defesa a favor da mestiagem perde fora. O
problema de sua teoria, parece, reside na necessidade de que cada nao seja diferente da
outra.
Logo depois de Palacio surgiu Justo Sierra, criollo, historiador, literato e educador
retomando seu antecessor no ensaio Mxico social y poltico, em 1889. Para Sierra, os ndios
vivem numa passividade incurvel, fruto da opresso e do paternalismo espanhis. O
problema da raa indgena de nutrio e de educao, portanto, aliment-lo, educ-lo e a
mestiagem far o resto.
Diferente de Pimentel, ele no se preocupava com o futuro da mestiagem e como
Riva Palacio acreditava que a fuso inexorvel. Mas, ao contrrio dos dois, seu conceito de
mestio era tanto tnico como sociolgico. Racialmente, o mestio era o ndio transformado e;
socialmente, ele parecia ser o representante da incipiente classe mdia porfiriana da qual ele,
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como intelectual e poltico, fazia parte. Segundo Sierra estimulando a mestiagem se
resolveriam os problemas socioeconmicos do pas e, principalmente, o de nacionalidade. Seu
sonho era o surgimento de uma classe mdia de pequenos proprietrios mestios.
A gerao que coroaria a corrente mestifila no sculo XX cresceu e se formou no
Porfiriato onde teve freio e impulso. Via-se na teoria o nacionalismo e na prtica a xenofilia.
Essa ambiguidade era consequncia do positivismo de Comte que conseguiu a adeso total
dos liberais. Rivalizando com o positivismo, a doutrina de Spencer foi desalojando pouco a
pouco os contistas.
Depois de Sierra, seu colega Bulnes posicionou-se quanto questo racial dizendo que
havia trs raas que se distinguiam pelo cereal de que se alimentam. Duas delas, do maz e do
arroz, eram fracas por no consumirem suficientes minerais e fsforo, etc. A raa do trigo, ao
contrrio, era a mais poderosa graas bondade nutritiva de sua alimentao. Para ele, era
esse o problema da Amrica Latina e do Mxico e no o tnico. Como o dos criollos e ndios,
seus defeitos se deviam grandemente a influencia do jugo espanhol, com seu conservadorismo
irracional. A soluo era a imigrao e a alimentao. Com Bulnes, a mestiofilia ganhou as
ruas definitivamente.
Conforme Silvina Carrizo (2010), o conceito de mestiagem assume, no Brasil,
caractersticas prprias ligadas s questes histricas.
A sua peculiaridade est cimentada na articulao da mestiagem com o discurso
sobre o nacional, praticado pelas elites e, muitas vezes, absorvido pelo Estado-
Nao. Nesse sentido, no um discurso prprio dos modos de agir da Colnia,
como o , de modo geral, na Amrica hispnica. A voga do "indianismo" que
impregnou o Segundo Reinado, a maioria de suas instituies como o Instituto
Histrico e Geogrfico e os escritores da poca, instaura, mesmo quando resultando
a figura do autctone como prpria, uma tendncia a favor do "amlgama scio-
tnico". (CARRIZO, 2010, p. 262)
O conceito de nacional se constituiu a partir da mescla, como vemos em Iracema, de
Jos de Alencar. Nacional, nesse contexto, a mistura, primeiro do branco com o ndio e
depois com o negro.
Pelo vis da imaginao romntica, Carrizo nos traz a contribuio dos estrangeiros
Ferdinand Denis e Von Martius que introduziram no Brasil os critrios naturalistas de anlise
do meio na historiografia brasileira e estiveram comprometidos com o sentimento nativista.
Segundo ela, Denis considerava a mistura racial e cultural era um fato e o mameluco, fruto do
branco e do ndio, era um fato diferencial que considerava preferencial, quer dizer, essa
mistura propiciaria um branqueamento paulatino.
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Von Martius (CARRIZO, 2010, p. 264) apontava as vantagens da mestiagem na
formao de um povo, demonstrando um evidente preconceito ao escrever que se cruzam as
raas para alcanarem os mais sublimes fins na ordem do mundo. (MARTIUS, 1982 Apud
CARRIZO, 2010) Em ambos, o extico mascara a subservincia que atribuem ao ndio e ao
negro.
Com uma perspectiva cientfica Carrizo traz a Histria da Literatura Brasileira, de
Silvio Romero, que se refere ao perodo da escravido como o trambolho da questo servil.
(ROMERO, 1949 Apud CARRIZO, 2010) Ele considera o mestio a fora de trabalho que faz
o pas crescer, mas atribui ao branco superioridade racial e social e acreditava que aquele
sumiria nessa branquido. Conforme Carrizo (2010), seu posicionamento estava colado ao de
Alencar em "Iracema": o problema do rosto do pas (...) um problema do futuro.
Ela identifica duas matrizes de pensamento sobre a questo do nacional: a indianista
que no considera o negro na formao tnica e a mestiagem, que diminui a contribuio do
ndio na formao da sociedade. Essas correntes desencadeiam um jogo entre o trs e o dois
para acabar sempre proporcionando o um, [o branqueamento], abolindo, assim, a
possibilidade de alteridade. (CARRIZO, 2010, p. 270) Ao contrrio de Romero, Nina
Rodrigues no acreditava nem na possibilidade de civilizar o negro, nem na miscigenao
como possibilidade de branqueamento do pas. (CARRIZO, 2010, p. 270)
Porque me ufano de meu pas, de Afonso Celso, retoma o mito do paraso, a partir do
qual o mestio um componente do povo e a mestiagem o resultado de trs dignas raas.
Paulo Prado em Retrato do Brasil: Ensaio sobre a tristeza brasileira, escrito em duas
partes, afirma, na primeira, que a origem dos problemas brasileiros est na luxria e na cobia
do homem branco que sucumbiu aos prazeres mundanos ao render-se ao desejo pelo negro
que o teria seduzido para vingar-se por ter sido escravizado. (PRADO Apud CARRIZO,
2010, p. 275) Na segunda parte de seu livro, afirma que a mescla deu-se para que se
cumprisse um desgnio de progresso do pas. O negro um mal que j no pode ser ignorado.
Estes dois autores situam-se numa linha de interpretao psicolgica do nacional, ao
contrrio de autores como Freyre que, junto ao Neoindianismo, prope a exaltao do
indgena e da mestiagem como componente do luso.
Em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre descreve a formao histrico-social do
pas, ligando a identidade do mestio ao discurso nacional centrado na figura do colonizador.
Freyre define a relao entre os elementos tnicos no Brasil, denominando-a de antagonismos
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em equilbrio: o ndio e o negro so subjugados pelo branco e isso daria resultados positivos
para o pas.
Segundo Freyre, a colonizao portuguesa no teria sido possvel no Brasil sem a
contribuio negra e, nesse sentido, ele valoriza mais a contribuio africana do que a
indgena na formao brasileira. O mestio fora de trabalho adicional para o senhor de
engenho e de prazer tambm.
Em Sobrados e Mucambos, temos o perodo de transio do sistema patriarcal rural
para o semipatriarcal urbano, a passagem de domnios das mos do senhor de engenho para as
dos donos de sobrados e casas trreas, das senzalas para os mucambos. Tambm foi o perodo
de ascenso social do mestio, pelo diploma de bacharel ou pelo casamento assim como dos
intermedirios do trfico de escravos que trocavam a dvida do senhor pela mo da sua filha.
J o mestio, filho branco pobre, ia morar nos mucambos. A mestiagem aconteceu em prol
de um fim maior que foi o futuro do pas, mas quem deu as diretrizes desse futuro foi o
branco.
Essa possibilidade de ascenso e de interao do branco com as raas que ele
considerava inferiores conduziu Freyre ao uso do termo democracia social que os seus
estudiosos reinterpretaram por democracia racial. Segundo Petrnio Domingues, quando ele
publicou Casa Grande & Senzala o conceito de democracia racial j era empregado
ideologicamente pelo poder dominante branco. Ainda que no tenha usado a expresso exata
em seus livros, sua obra consolidou toda a ideologia que ela carregava.
Retomando o outro autor que ser objeto desse trabalho, Jos Vasconcelos, trazemos
aqui La Raza Csmica. Segundo ele, a misso do branco promover a mestiagem das raas
e todos os seus feitos esto direcionados, ainda que inconscientemente, para esse fim. O
processo de mestiagem tende a eliminar do componente humano todo o elemento que seja
feio, inapto ou fraco. As relaes se estabeleceriam pelos anseios do corao, inspiradas no
amor incondicional pregado pelo Cristo, pelo senso de justia que seria inerente a todo ser
humano e pelo critrio de beleza. Assim, se formaria a quinta raa: uma fuso de brancos,
negros, ndios e mongis. Segundo ele, espiritualmente o latino-americano no excludente
em suas relaes sexuais ou sociais, ainda que se admita a ocorrncia de racismo na Amrica
Latina. El motivo espiritual se ir sobreponiendo de esta suerte a las contingencias de lo
fsico. (VASCONCELOS: 1948, p. 22-3)
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As escolhas entre os indivduos se dariam pela lei do gosto e que est determinada por
trs estados. O primeiro o estado material ou guerreiro. Nele, os casamentos acontecem por
interesses financeiros e podem ser levados a cabo pela violncia. O segundo o intelectual ou
poltico: as relaes se consumam por interesses polticos e so regidas pela razo. A norma
social e a tirania so as suas regras e neste estado que a sociedade se encontra e do qual
necessita libertar-se. No terceiro estado, a conduta do indivduo ser regida pelo sentimento
criador e pela beleza que convence e a norma ser dada pela fantasia. En vez de reglas,
inspiracin constante. () vivir el jbilo fundado en amor. (VASCONCELOS: 1948, p. 24)
O processo de surgimento da quinta raa prev o apagamento, seno total pelo menos
parcial, das quatro raas que a originaro.
Los tipos bajos de la especie sern absorbidos por el tipo superior. De esta suerte
podra redimirse, por ejemplo, el negro, y poco a poco, por extincin voluntaria, las
estirpes ms feas irn cediendo el paso a las ms hermosas. Las razas inferiores, al
educarse, se haran menos prolficas, y los mejores especmenes irn ascendiendo en
una escala de mejoramiento tnico, cuyo tipo mximo no es precisamente el blanco,
sino esa nueva raza, a la que el mismo blanco tendr que aspirar con el objeto de
conquistar la sntesis. El indio, por medio del injerto en la raza afn, dara el salto de
los millares de aos que median de la Atlntida a nuestra poca, y en unas cuantas
dcadas de eugenesia esttica podra desaparecer el negro junto con los tipos que el
libre instinto de hermosura vaya sealando como fundamentalmente recesivos e
indignos, por lo mismo, de perpetuacin. Se operara en esta forma una seleccin
por el gusto, mucho ms eficaz que la brutal seleccin darwiniana, que slo es
vlida, si acaso, para las especies inferiores, pero ya no para el hombre.
(VASCONCELOS: 1948, p. 27)
A quinta raa viveria nas regies mais quentes do planeta. Nesse caso, mais
precisamente no Brasil, Colmbia, Venezuela, parte do Peru e da Bolvia e a regio superior
da Argentina e nessa geografia a Amaznia tem um papel muito importante na disseminao
desse novo modo de vida.
Diferentemente de Freyre, o mestio de Vasconcelos o produto final do ser humano,
uma sntese perfeita, espiritual e esteticamente, e sua mestiagem um clareamento paulatino
da pele que resultar em branco. Ele busca uma unidade racial que suplante todas as outras
matrizes.
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Referncias
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mexicano em torno a la mestizofilia de Andrs Molina Enriquez. Mxico: Fondo de Cultura
Econmica, 1998.
_____. Los orgines de la corriente mestizfila. In: Mxico Mestizo: Anlisis del nacionalismo
mexicano em torno a la mestizofilia de Andrs Molina Enriquez. Mxico: Fondo de Cultura
Econmica, 1998.
CARRIZO, Silvina. Mestiagem. In: FIGUEIREDO, Eurdice. (org.) Conceitos de literatura e
cultura. 2 Ed. Niteri: EduFF, Juiz de Fora: EduFJF, 2010. 490p.
DOMINGUES, Petrnio. O mito da democracia racial e a mestiagem no Brasil.(1889-1930)
Dilogos Latinoamericano, Mxico, n.010, p. 116-131, 2005. Pdf.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 7 Ed. Rio de Janeiro: Jos Olimpio, 1952. Vol.I
e II.
_____. Sobrados e Mucambos.15 Ed. So Paulo, Global, 2004.
VASCONCELOS, Jos. La Raza Csmica. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1948.
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Branqueamento literrio: o caso Monteiro Lobato
Rafael Fculo PORCINCULA
*
Resumo: Atravs dessa discusso, pretende-se observar a possvel ligao do escritor paulista Monteiro Lobato
(1882 1948) a ideais que objetivavam o branqueamento do povo brasileiro. Para essa finalidade, abordar-se- a
polmica gerada em junho de 2010, quando o Conselho Nacional da Educao recebeu denncia de que a obra
Caadas de Pedrinho, do escritor supracitado, continha trechos que se referiam ao negro e ao universo africano
de maneira estereotipada. Dados os pormenores de tal acusao, tenciona-se analisar a trajetria ideolgica do
criador do Stio do Pica-Pau Amarelo, a fim de melhor visualizar os debates que circundam a problemtica. A
partir da anlise de produes literrias e ntimas de Lobato, pode-se perceber que o escritor simpatizou com os
princpios da teoria eugnica, defendida no Brasil por seu amigo e mdico Renato Kehl (1889 1974). Ademais,
atravs de sua correspondncia, percebe-se que Lobato via a literatura como um forte meio para a expresso de
ideias. Por conseguinte, a anlise dessa temtica fundamentada na existncia de um posicionamento
preconceituoso por parte do literato permite uma concluso que destaca a ligao entre as tendncias de
branqueamento do perodo e sua produo literria.
Palavras-chave: Branqueamento. Eugenia. Literatura. Monteiro Lobato.
Introduo
Este trabalho prope uma anlise da polmica gerada em relao presena de trechos
considerados racistas em produes do escritor paulista Monteiro Lobato. Alm disso,
objetiva abordar a possibilidade de uso de sua literatura como veculo de difuso dos ideais de
branqueamento do povo brasileiro em voga no incio do sculo XX.
Para que os propsitos apresentados sejam alcanados, partir-se- apresentando toda a
discusso gerada no ano de 2010, e ainda irresolvel, quando o Conselho Nacional da
Educao publicou um parecer, de autoria de um mestrando em Educao, no qual
denunciava o uso indevido da obra Caadas de Pedrinho no mbito escolar, por trazer
passagens que se referem ao negro e ao universo africano de maneira estereotipada.
Posteriormente, traar-se- um breve panorama do surgimento e do desenvolvimento Eugenia,
at sua chegada ao Brasil e ampla divulgao pelo mdico paulista Renato Kehl.
Em seguida, pretende-se verificar a possvel ligao de Lobato a Kehl e aos princpios
eugnicos, a partir da anlise de suas correspondncias. Ademais, atravs do exame de trechos
de suas produes literrias e de cartas enviadas a Arthur Neiva (1880 1943) e a Godofredo
Rangel (1884 1951), averiguar a posio do escritor com relao ao negro e receptividade
do crebro infantil atravs da literatura. Tenciona-se, com isso, analisar a postura de Monteiro
*
Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: [email protected].
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Lobato ao considerar a literatura como meio indireto de se fazer eugenia, para melhor
visualizar os posicionamentos sobre a existncia de racismo em suas obras.
Caadas de Pedrinho e a polmica
Toma-se como ponto de partida as discusses referentes denncia recebida pelo
Conselho Nacional da Educao (CNE), na Ouvidoria da Secretaria de Polticas de Promoo
da Igualdade Racial, em 30 de junho de 2010, de autoria do mestrando em Educao Antnio
Gomes da Costa Neto (UnB). Relatado em Parecer aprovado pelo Conselho em 1 de
setembro do mesmo ano (BRASIL, 2010), o processo gerado objetivou solicitar que a
Secretaria da Educao do Distrito Federal se abstivesse da utilizao de materiais sejam
eles didticos, literrios ou de qualquer funcionalidade que contivessem expresses de
cunho racista. Na denncia, o autor apresentou uma anlise da obra infantil Caadas de
Pedrinho (LOBATO, 2009), do escritor Monteiro Lobato. Neto afirmou que essa anlise
enfatiza apenas os mbitos de sua rea de pesquisa, a educao para as relaes tnico-raciais,
e que em tal obra encontram-se diversas passagens que se referem de maneira estereotipada
ao negro e ao universo africano.
No documento, ressaltou-se que a obra lobatiana utilizada como referncia em
escolas pblicas do Distrito Federal, faz parte da coleo selecionada para o Programa
Nacional Biblioteca na Escola e, por conseguinte, distribuda para as escolas pblicas de
ensino fundamental. Alm disso, o Parecer destaca trecho da nota tcnica enviada sob
aprovao do Diretor de Educao para a Diversidade, a qual se mostra a favor do
denunciante.
Dentre os pontos analisados, Neto salientou que a editora preocupou-se em enfatizar
que o texto apresenta reviso das novas regras de ortografia e que, referindo-se parte do
contedo textual, ainda no existiam leis de proteo aos animais silvestres, alm de a ona
pintada no estar em risco de extino na poca em que a obra foi escrita. De acordo com ele,
em consequncia, caberia a editora responsvel inserir uma nota explicativa justificando a
presena de esteretipos na literatura, atravs da contextualizao da obra com o perodo
histrico em que foi produzida. Ademais, mesmo sem deixar de reconhecer a importncia da
utilizao de clssicos literrios na educao, o mestrando apresentou as leis e diretrizes que
vm em favor de sua manifestao, em defesa do cumprimento, por parte do Ministrio da
Educao (MEC), das normas antirracistas que o prprio rgo estipula.
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Alm da enftica solicitao de insero de nota explicativa, no s em Caadas de
Pedrinho, mas tambm em todas as obras pertencentes ao acervo que apresentem as mesmas
caractersticas, o requerente considerou necessria a execuo de outras medidas decorrentes
da avaliao do processo. Primeiramente, defende a criao de polticas pblicas voltadas aos
cursos de ensino superior, as quais visem formao de profissionais da educao que
estejam aptos a lidar crtica e pedagogicamente com essa temtica. Alm disso, nas selees
subsequentes, fazer-se cumprir, pela Coordenadoria-Geral de Material Didtico do MEC, as
normas estabelecidas, com a finalidade de prevenir a adoo de novos materiais que no
condigam com o princpio de no selecionar obras que possuam esteretipos e preconceitos de
qualquer tipo. E, finalmente, advoga pela orientao s escolas, por parte da Secretaria da
Educao do Distrito Federal, objetivando o real cumprimento das Diretrizes Nacionais da
Educao para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura
Afro-Brasileira e Africana.
O documento publicado pelo CNE resultou em distintas interpretaes, pois, em
princpio, aparentou no ser claro na exposio de alguns de seus propsitos, levando seus
receptores a diferentes inferncias, como, por exemplo, a solicitao ou no de censura e
proibio do uso da obra no contexto escolar. Devido a tal entendimento ambguo, o MEC
solicitou que o Conselho reexaminasse a denncia e seus pormenores, o que acarretou na
produo de um segundo Parecer (BRASIL, 2011), revisto e corrigido.
No ano passado, a discusso renovou suas foras quando a revista Bravo! publicou
trechos da correspondncia de Lobato com o higienista Arthur Neiva, nos quais o escritor faz
referncia organizao racista norte-americana Ku-Klux-Klan. O CNE, ainda que
reconhecendo a presena de aspectos preconceituosos na obra infantil lobatiana anteriormente
citada, homologou sua insero no acervo do Programa Nacional Biblioteca na Escola. Em
consequncia disso, neste ano, um mandado de segurana foi encaminhado ao Supremo
Tribunal de Justia (STJ) e relatado pelo ministro Luiz Fux, sob autoria de Antnio Gomes da
Costa e do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA), no qual questionado o uso de
Caadas de Pedrinho no mbito escolar.
No ms de setembro deste ano, a primeira audincia de conciliao acabou sem
acordo, levando a deciso ao plenrio do STJ. Ademais, o IARA entrou com uma ao junto
Controladoria Geral da Unio (CGU), na qual destaca que uma segunda obra do escritor
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(Negrinha), que tambm faz parte do acervo do PNBE, contm trechos igualmente
preconceituosos.
Todas estas manifestaes referentes produo literria do escritor paulista geraram
polmica, pois considerar racista o clebre criador do Stio do Pica-Pau Amarelo pareceu
ofensivo a alguns e justo a outros, fazendo com que a discusso perdurasse por longo perodo.
Estudiosos das cincias humanas e sociais, imprensa, polticos e interessados apresentaram
diferentes posicionamentos em favor e contra a acusao, dos quais, ao serem examinados, se
pode extrair trs ideais centrais em relao problemtica, partindo de uma viso analtica
mais ampla.
O primeiro deles contrape as opinies defendidas pelo relator da denncia, o qual
considera que a produo literria de Lobato valorizou o negro em um perodo em que sua
posio na sociedade ainda era inferior. De acordo com eles, esse reconhecimento se deu
atravs da insero do negro como protagonista em uma de suas obras, da equiparao de
valores sociais e da valorizao da cultura popular. O segundo juzo compartilha os ideais
expostos no Parecer do Conselho ao destacar uma ideologia racista presente nas obras do
autor, legitimada nas comprovaes do ntimo vnculo com o mdico paulista Renato Kehl e a
Eugenia, alm das declaraes feiras a Arthur Neiva e a Godofredo Rangel, as quais sero
analisadas as seguir. Finalmente, o ltimo parecer reconhece a presena de trechos racistas
no s em Caadas de Pedrinho, no entanto, expe como argumento que Lobato apenas no
se afastou do pensamento predominante na elite de seu tempo. Entende-se aqui que a
ideologia do escritor determinada pelo perodo histrico e pela classe social em que estava
inserido, onde o negro ocupava uma posio secundria em relao ao branco.
Diante do exposto at aqui, caberia o exame do desenvolvimento intelectual do
escritor e das suas manifestaes nas correspondncias com Renato Kehl, Godofredo Rangel e
Arthur Neiva. Por conseguinte, tentar perceber como essas colocaes interferem na leitura da
obra lobatiana no que se refere figura do negro, levando em considerao a possibilidade de
vnculo de Lobato aos ideais eugnicos.
A teoria da purificao da raa
Na segunda metade do sculo XIX, em uma Inglaterra em crise devido Revoluo
Industrial, o medo de ser sufocada pelo crescimento descontrolado da classe operria
atormentava a elite. Francis Galton (1822 1911), transpondo esfera humana as premissas
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das teorias sobre evoluo das espcies e a seleo natural de seu primo Charles Darwin,
desenvolveu a teoria eugnica, visando purificao da raa inglesa.
Assim como afirma Pietra Diwan, a eugenia surge como busca de melhoria da raa
desde uma perspectiva biolgica (DIWAN, 2007, p. 37). Galton pesquisa sobre as
caractersticas do povo ingls e, partindo das consideraes de seu primo e de sua prpria
experincia com estatstica, matemtica e teoria da probabilidade, busca investigar sobre os
cidados, na tentativa de categoriz-los, usando medies fsicas, testes de inteligncia e
anlise de histricos familiares. Dentre as especificidades de sua teoria de melhoria da raa
inglesa estaria o controle de casamentos e o impedimento da reproduo dos considerados
indesejados. De acordo com Diwan:
Declaradamente contra os casamentos movidos por gostos pessoais, Galton
prope que o valor da raa superior e mais importante do que a educao e o meio
ambiente. [...] prega a necessidade de que os dbeis poupem a sociedade de seus
descendentes, adotando o celibato. Assim, o processo de seleo natural seria
cumprido e respeitado, permanecendo os mais aptos cada vez mais fortes e os menos
aptos com a tendncia a desaparecer gradativamente. (DIWAN, 2007, p. 43) [grifos
do autor]
Com status de disciplina cientfica, as teorias de Galton alcanaram mais
profundamente o meio acadmico e intelectual somente no incio do sculo XX,
contaminando tambm a intelectualidade estrangeira. Os ideais eugnicos foram usados e
desenvolvidos, reforando, cada vez mais, a ideologia de uma suposta superioridade de
determinada raa em detrimento das outras. Japo, Sucia, Mxico, Argentina, Brasil, dentre
outros, mas principalmente Estados Unidos e Alemanha, aderiram s teorias galtonianas para
a melhoria da raa e neste momento que surgiram propostas mais rgidas de controle dos
grupos que se auto-consideravam detentores dessa superioridade. Foram incorporados
mtodos mais radicais, como a esterilizao compulsria ou voluntria, o confinamento em
sanatrios e os controles de imigrao. Essa radicalizao da eugenia foi denominada
eugenia negativa, ao ponto que a que seguia os preceitos de Galton denominada eugenia
positiva.
A primeira lei de esterilizao foi aprovada nos Estados Unidos em 1907. Na
Alemanha, a ideologia eugnica antecedeu o surgimento do nazismo, mas alcanou seu grau
extremo junto a ele, com a ascenso de Hitler na dcada de 1930 e com a Segunda Guerra
Mundial, ocorrida entre 1939 e 1945. O lder alemo utilizou do discurso cientfico de
superioridade da raa ariana para justificar as mais de seis milhes de mortes e as infinitas
atrocidades que ordenou. Aps o fim do conflito, a eugenia foi parcialmente deixada de lado
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ou mascarada, devido ao ponto que havia alcanado atravs das tiranias de Hitler em nome da
higiene da raa alem.
No incio do sculo XX, surgiram defensores dos ideais eugnicos tambm no Brasil.
Com o discurso eugnico, a elite branca brasileira pde legitimar sua to crida
superioridade. Ao mesmo tempo, mdicos sanitaristas buscaram promover polticas
pblicas que dessem conta de resolver os problemas de insalubridade e das constantes
epidemias geradas em meio s classes baixas. Os mdicos Arthur Neiva e Belisrio Penna
saram em uma expedio ao nordeste brasileiro com o objetivo de verificar a situao do
povo e a proliferao de doenas contagiosas e de estudar possveis solues.
O mdico paulista Renato Kehl foi o intelectual que mais investiu na aplicao e na
divulgao dos ideais eugnicos no Brasil. O posicionamento de Kehl passou por diferentes
fases, desde uma eugenia de base mais positiva at a radicalizao dos ideais negativos de
esterilizao e controle imigratrio. Ele defendia que a mestiagem trazia consigo as
caractersticas mais degradantes de um indivduo e que a soluo primordial era o
branqueamento, devido supremacia branca.
Com base nas iniciativas norte-americanas, eugenistas brasileiros buscaram implantar
leis de fundamento eugnico no pas, mas no tiveram sucesso. Pode-se sintetizar os
procedimentos que destacavam como sendo os primordiais para o alcance de seus objetivos:
primeiramente, com os casamentos controlados e exames pr-nupciais aplicados, poder-se-ia
promover o nascimento de crianas com nvel de superioridade elevada e, em contrapartida,
impedir o nascimento de mais degenerados. Posteriormente, a esterilizao e o
segregacionismo seriam as armas mais eficazes para banir o surgimento de novos indesejados
e excluir os existentes. Ademais, o controle de imigrao possibilitaria que se barrasse a
entrada de sujeitos de raas consideradas inferiores, o que impediria um maior avano da
miscigenao, e, por fim, a promoo da imigrao europeia facilitaria o branqueamento da
populao. Nas palavras de Kehl, a nacionalidade brasileira s embranquecer a custa de
muito sabo de coco ariano! (KEHL, 1929, s/p apud DIWAN, 2007, p. 87)
2
.
Diversos intelectuais brasileiros se entusiasmaram com as postulaes do mdico
eugenista. Monteiro Lobato e Renato Kehl trocaram correspondncias durante anos e, atravs
delas e de outras cartas enviadas a seus amigos Godofredo Rangel e Arthur Neiva, cabe
analisar a possibilidade das ideologias defendidas por Kehl terem afetado o pensamento
2
KEHL, Renato. Lies de eugenia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929.
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intelectual do literato.
A literatura como processo indireto de se fazer eugenia
A trajetria intelectual de Monteiro Lobato, no que tange ao aspecto racial brasileiro,
passou com diferentes fases. Devido a isso, uma de suas personagens o acompanhou em
suas mudanas de pensamento: Jeca Tatu. O Jeca era um caboclo caipira preguioso e
ignorante, para o escritor, o prprio impedimento do desenvolvimento nacional. Nas palavras
de Lobato:
A nossa montanha vtima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo
brasileiro [...] Este funesto parasita o CABOCLO, espcie de homem baldio, semi-
nmade, inadaptvel a civilizao, mas que vive a beira dela na penumbra das zonas
fronteirias. A medida que o progresso vem chegando com a via frrea, o italiano, o
arado, a valorizao da propriedade, vai ele refugindo em silncio, com o seu
cachorro , o seu pilo, a picapau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se
fronteirio, mudo e sorna. (LOBATO, 1959, p. 271) [grifos do autor]
Entretanto, ao tomar conhecimento dos trabalhos de Arthur Neiva e de Belisrio Penna
a cerca da sade pblica nacional, Lobato rumaria em direo outra perspectiva sobre
caboclo. Em 1918, Renato Kehl, ento secretrio geral da recm fundada Sociedade
Eugnica de So Paulo (SESP), props a Lobato a edio em volume de uma srie de
artigos, j divulgados anteriormente no jornal O Estado de So Paulo, nos quais retrata os
problemas de sade que, a seu ver, assolavam a populao rural. Intitulado Problema Vital, o
livro foi prefaciado por Kehl e levava a epgrafe: O Jeca no assim, est assim. Nessa
obra, Lobato criticaria os problemas sanitrios dos sertes e as pssimas condies de vida do
povo.
Surge, ento, o texto Jeca Tatu A ressurreio, no qual narrado um encontro do
caboclo com um mdico. Ao conhecer as solues da cincia e utiliz-las, a personagem de
Lobato, antes irreversivelmente inadaptvel, ganha nova vida e novas perspectivas. Atravs
da medicao e de cuidados precaucionais, os problemas do Jeca estavam resolvidos. Curado,
Jeca trabalhou como nunca, expandiu suas terras e enriqueceu, j que as doenas que
tomavam conta de seu corpo haviam sido exterminadas.
Tal trajetria dada pelo criador do Stio do Pica-Pau Amarelo a sua personagem nos
leva, inicialmente, a notar uma evoluo positiva em seu pensamento, dado o abandono do
pessimismo em relao ao caboclo e o otimismo adquirido junto aos projetos sanitaristas.
Entretanto, a anlise de suas ideologias no se fecha a, pois surge, em 1926, seu primeiro e
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nico romance, o qual comprovaria a complexidade de seus ideais, antes voltados para
projetos da LPSB e agora em direo aos defendidos pelos eugenistas.
Escrito com propsito de ser publicado nos Estados Unidos, para onde iria no ano
seguinte, O presidente negro (ou O choque das raas) traz a histria de Ayrton, um homem
que, ao ser resgatado de um acidente, conhece Miss Jane e seu pai, os quais o apresentam o
porviroscpio, um aparelho capaz de ver o futuro. No ano de 2228, seria eleito, nos Estados
Unidos, um presidente negro, derrotando outros dois partidos, desencadeando um conflito
entre as raas branca e negra. Em carta a seu amigo Godofredo Rangel, datada de 8 de julho
de 1926, Lobato expe suas ideais sobre o romance que escrevia:
Sabes o que ando gestando? Uma ideia-me! Um romance americano, isto ,
editvel nos Estados Unidos. J comecei e caminha depressa. Meio a Wells, com
viso do futuro. O clou ser o choque da raa negra com a branca, quando a
primeira, cujo ndice de proliferao maior, alcanar a branca e bat-la nas urnas,
elegendo um presidente preto! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a
inteligncia do branco. Consegue por meio de raios N, inventados pelo professor
Brown, esterilizar os negros sem que estes deem pela coisa. (LOBATO, 1950, p.
293-294)
Na narrativa, Miss Jane apresenta a Ayrton o perigo que o negro representava,
relacionando com a abordagem no futuro das formulaes eugnicas de Francis Galton:
At essa poca, a populao negra representava um sexto da populao total do pas.
A predominncia do branco era, pois, esmagadora e de molde a no arrastar o
americano a ver no negro um perigo srio. Mas o proibicionismo coincidiu com o
surdo das ideias eugensticas de Francis Galton. Deu-se, ento, a ruptura da balana.
Os brancos entraram a primar em qualidade, enquanto os negros persistiriam em
avultar em quantidade. Foi a mar montante da pigmentao. (LOBATO, 2008b, p.
97)
Nas palavras de Ayrton, a soluo era expatriar o negro!... (p. 99). A volta das leis
espartanas de eliminao dos que nasciam com deformidades fsicas foi um dos processos
utilizados, o que aos olhos da moa no demonstrava nenhuma brutalidade, pois, para ela, a
crueldade estaria em deixar que da vida saia o ser consciente que vai vegetar anos e anos na
categoria dos desgraados (p. 98). Como destacou anteriormente Lobato, outro processo foi
o uso da esterilizao, utilizado para impedir que os desgraados morais procriassem.
No se quer aqui, uma anlise profunda do romance de Monteiro Lobato, mas, em
resumo, pode-se notar que os ideais eugnicos tomavam forma na literatura por intermdio de
sua produo. Suas postulaes representam um pensamento complexo e, por vezes, ambguo.
Ademais, as polmicas ao redor desse romance lobatiano se tornaram ainda mais speras
quando foram descobertas e analisadas correspondncias do escritor com o companheiro
sanitarista, Arthur Neiva, e com o homem que com mais entusiasmo divulgou a eugenia no
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Brasil, Renato Kehl. A leitura dessas manifestaes ntimas de Lobato, certamente,
proporciona uma reflexo mais profunda do posicionamento do escritor em relao questo
racial brasileira.
Em prefcio obra Bio-Perspectivas, de Renato Kehl, Monteiro Lobato declara que o
considera mais acabado tipo de cientista que a atualidade pensante da poca possua.
(LOBATO, 1957, p. 75), alm de destacar que conheceu o mdico paulista no incio de sua
vida literria (p. 82). Nesse texto, declara o carter fartamente enriquecedor do trabalho de
Kehl e, transcreve as palavras do eugenista ao falar do papel social e biolgico da mquina.
Na citao, cabe destacar as seguintes palavras:
Salvar-se-o naturalmente alguns elementos de maior valia; os demais sucumbiro.
Como se sabe, durante os ltimos anos as escorias humanas se tm acumulado em
consequncia do desrespeito s leis naturais. No tem havido desbastamento
suficiente ou eliminao seletiva em regra. Os incapazes, os doentes e os anormais
de vrias ordens acumulam-se de modo assombroso, nas prises, nas penitencirias,
nos manicmios, nos bairros da misria. (KEHL, s/d, s/p apud LOBATO, 1957, p.
80)
3
As palavras consideradas como enriquecedoras, por Lobato, tratam de expor, mais
uma vez, a situao do povo que no aderia aos ideais eugnicos. Pietra Diwan cita trechos
das correspondncias entre os dois, cartas as quais esto depositadas no Centro de
Documentao da Fundao Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Em uma delas, Lobato declara
o seu interesse pela eugenia e a ligao de seu romance aos ideais eugnicos:
Renato, Tu s o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito
de guerra pr-eugenia. Vejo que errei no te pondo l no frontispcio, mas perdoai a
este estropeado amigo. [...] Precisamos lanar, vulgarizar essas ideias. A
humanidade precisa de uma coisa s: poda. como a vinha. Lobato. (LOBATO, s/d,
s/p apud DIWAN, 2007, p. 106) [grifos do autor]
4
Fragmentos das correspondncias entre Monteiro Lobato e Arthur Neiva foram
publicados na revista Bravo!, em maio de 2011, e reforaram a discusso sobre o possvel
posicionamento racista do escritor. Em uma delas, Lobato declara a impossibilidade de um
futuro promissor para um pas que continua aceitando a mestiagem:
Pas de mestios onde branco no tem fora para organizar uma Kux-Klan pas
perdido para altos destinos. [...] Um dia se far justia ao Ku-Klux-Klan; tivssemos
a uma defesa desta ordem, que mantm o negro em seu lugar, e estaramos livres da
peste da imprensa carioca mulatinho fazendo jogo de galego, e sempre demolidor
porque a mestiagem do negro destri a capacidade construtiva. (LOBATO, s/d, s/p
apud NIGRI, 2010, p. 26)
O escritor paulista defende as premissas da organizao racista americana Ku-Klux-
3
O texto no apresenta os dados de referncia da citao.
4
Os trechos de correspondncias citados por Pietra Diwan e Andr Nigri, na maioria das vezes, no trazem
referncia de datas e outros dados.
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Klan, colocando-a como soluo para que o negro e o mestio reconheam o lugar que, em
sua opinio, ocupam na sociedade. Em carta datada de 1935, declara a Neiva o que lhe
pareceu o povo baiano quando o conheceu: A massa popular positivamente um resduo,
um detrito biolgico. J a elite que brota na flor desse esterco tem todas as finuras cortess
das raas bem amadurecidas. (LOBATO, 1935, s/p apud NIGRI, 2010, p. 31) Ainda que a
grande parte do povo baiano fosse mestio, a elite se colocava como pertencente ao grupo
dos brancos. Assim como afirmou Andr Nigri, o prprio Neiva se considerava germnico e
no mestio (p. 30-31).
Na polmica anteriormente apresentada sobre as possveis presenas de traos racistas
na obra do escritor paulista, no se voltou antiga abordagem do romance O presidente
negro, mas a uma de suas produes literrias infantis: Caadas de Pedrinho, o que
demonstraria o surgimento de uma nova perspectiva de leitura das obras infantis de Lobato.
Como mencionado acima, de acordo com Parecer publicado pelo Conselho Nacional da
Educao, a obra apresenta trechos que se refere ao negro e ao universo africano de maneira
estereotipada. Nessa obra, encontramos uma passagem onde o narrador se refere
personagem negra, tia Nastcia, da seguinte forma: Tia Nastcia, esquecida dos seus
reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvo, pelo mastro de So Pedro, com tal
agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida seno trepar em mastros.
(LOBATO, 2009, p. 39)
No encerrariam a as passagens presentes em obras do escritor que acompanham as
consideraes expostas pela parte acusadora nos processos mencionados no comeo deste
trabalho. Na ao encaminhada CGU, o IARA destacou a parte inicial do conto Negrinha,
escrito em 1923, na qual o narrador apresenta a personagem como uma pobre rf de 7 anos.
Preta? No; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruos e olhos assustados. (LOBATO, 2008a,
p. 20) Ademais, em Reinaes de Narizinho, outro fragmento d margem para uma anlise
mais detalhada. Nesta obra, os personagens haviam montado um espetculo, no qual Dona
Benta e Tia Nastcia iriam ser apresentadas como duas princesas. Em certo momento,
Pedrinho declara a Narizinho: Tia Nastcia no sei se vem. Est com vergonha, coitada, por
ser preta (LOBATO, 2007, p.75). A menina decide dar uma explicao ao respeitvel
pblico sobre a pele escura da princesa e assim a apresenta:
Tambm apresento a Princesa Anastcia. No reparem ser preta. preta s por fora,
e no de nascena. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim
at que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Ento o encanto se
quebrar e ela virar uma linda princesa loura. Todos bateram palmas, enquanto as
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duas velhas se escarrapachavam nas suas cadeiras especiais. (LOBATO, 2007, p.75)
Primeiramente, o narrador afirma que a personagem tem vergonha da cor de sua pele.
Posteriormente, ela apresenta como vtima de um feitio. Assim como destacou Uruguay
Cortazzo Gonzles (CORTAZZO, 2012), possvel relacionar tal trecho com a ideologia
medieval do prncipe convertido em sapo (servo/escravo), o negro seria associado a um
animal asqueroso, que somente atravs de um milagre voltaria a ser humano ou, em Lobato,
a ser branca. Em outras palavras, a negritude exposta como uma condenao, como algo por
que se envergonhar.
Diwan transcreve, tambm em Raa Pura, um trecho de uma carta de setembro de
1930, onde Lobato expressa que a literatura um processo indireto de fazer eugenia, e os
processos indiretos, no Brasil, work muito mais eficiente (DIWAN, 2007, p. 111). Com
essas palavras, pode-se notar o papel da literatura segundo a perspectiva lobatiana e, na esteira
das anlises contemporneas da obra infantil do autor, torna-se interessante trazer um trecho
de outra carta, esta enviada a Godofredo Rangel em 28 de maro de 1943:
A receptividade do crebro infantil ainda limpo de impresses algo tremendo e
foi ao que o infame fascismo da nossa era recorreu para a srdida escravizao da
humanidade e supresso de todas as liberdades. A destruio em curso vai ser a
maior da histria, porque os soldados de Hitler leram em criana os venenos
cientificamente dosados do hitlerismo [...] (LOBATO, 1950b, p. 345-346)
possvel entender que Lobato acredita na literatura como detentora de um poder
penetrante no crebro infantil, ao ponto de fazer uma comparao a uma suposta formao
dos soldados de Hitler, a qual haveria ocorrido desde suas infncias, na ao profunda da
escrita persuasiva.
Consideraes finais
Os caminhos traados at ento levam a entender que Monteiro Lobato se entusiasmou
com os princpios da teoria eugnica, defendida por seu amigo e mdico Renato Kehl. A
acessibilidade a estas correspondncias possibilitou o conhecimento mais profundo do
pensamento intelectual do escritor no que se refere questo racial brasileira. A crtica
negativa a constituio racial do Brasil contaminou grande parte da intelectualidade, a qual
passou a enxergar na miscigenao um perigo suposta superioridade branca e, por
conseguinte, considerar qualquer raa no-branca como empecilho a evoluo do pas.
Lobato, certamente, no soube esquivar-se de tais linhas de pensamento. Os ideais de
branqueamento, mais especificamente os propostos pela Eugenia, foram tomadas por ele
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como a soluo cabvel para a guinada que levaria o pas ao progresso. Ao tomar como base
sua comprovada ligao com os propsitos eugnicos, os estudos aqui propostos buscaram
perceber at que ponto a sua produo literria foi infectada por essa ideologia. Obviamente,
de forma condensada, as passagens anteriormente analisadas referem-se apenas a
representao do negro na literatura lobatiana e as inferncias sobre a existncia de aspectos
racistas em sua produo literria no atribui esse trao a toda sua obra.
Percebe-se que, diversas vezes, o escritor utilizou-se da voz de suas personagens para
depreciar o negro e para enfatizar sua suposta subalternidade. Em O presidente negro, o qual
chamou de grito de guerra pr-eugenia, como anteriormente citado, os preceitos adotados
de tal teoria se viram refletidos no prprio enredo da obra. Entretanto, a perspectiva de Lobato
com relao ao negro tambm contagiou sua literatura de maneira mais descentralizada, a
cada vez que caracterizava uma de suas personagens de forma depreciativa e estereotipada,
como repetidamente se passou com Tia Nastcia. Por vezes comparada a um macaco, outras
considerada como vtima de foras sobrenaturais, a empregada do Stio do Picapau Amarelo
foi constantemente ofendida devido cor de sua pele, ganhando, ainda, de seu criador a
caracterstica de envergonhar-se por no ser branca.
Assim, todos estes pontos esto no cerne da polmica gerada encima do literato. Como
j citado, a literatura para ele era uma maneira indireta de se fazer eugenia, ou seja, uma
forma implcita de pregar a superioridade branca e, consequentemente, a inferioridade negra.
Alm disso, ao considerar a facilidade de penetrao e de persuaso do crebro infantil,
admitia que a literatura era um meio de divulgao da eugenia desde sua formao leitora, o
que traa rumos diferentes em relao a utilizao de suas obras no mbito escolar.
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Referncias
BRASIL. Parecer CNE/CEB n 15/2010. Aprovado em 1 set. 2010. Disponvel em
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Itemid=>. Acesso em 29 nov. 2010
_____. Parecer CNE/CEB n 6/2011. Aprovado em 1 jun. 2011. Disponvel em
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=8180&
Itemid=>. Acesso em 30 set. 2011.
CORTAZZO, Uruguay. Comunicao pessoal. 6 out. 2012.
DIWAN, P. Raa pura: uma histria da eugenia no Brasil e no mundo. So Paulo: Contexto,
2007.
LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. Tomo 2. 3. ed. So Paulo: Brasiliense, 1950. (Obras
Completas de Monteiro Lobato, v. 12)
____. Caadas de Pedrinho. 3 ed. Ilustraes de Paulo Borges. So Paulo: Globo, 2009.
____. Negrinha. So Paulo: Globo, 2008a.
____. O presidente negro. So Paulo: Globo, 2008b.
____. Prefcios e entrevistas. So Paulo: Brasiliense, 1957. (Obras Completas de Monteiro
Lobato, v. 13)
____. Reinaes de Narizinho. v. 2. Ilustraes de Paulo Borges. So Paulo: Globo, 2007.
____. Urups. So Paulo: Brasiliense, 1959. (Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 1)
NIGRI, Andr. Lobato e o Racismo. Bravo!. 165 ed., p. 24-33, 2011.
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O contexto histrico/ficcional em La excavacin de Augusto Roa Bastos e El pozo
de Augusto Cspedes
MOROSINO, Juliana Terra
*
Resumo: A Guerra do Chaco tornou-se para o paraguaio Augusto Roa Bastos e para o boliviano Augusto
Cspedes um dos principais eventos histricos de suas narrativas ficcionais, intencionando de certo modo,
representar a realidade do conflito armado. Neste estudo tratar-se- de analisar La excavacin (1968) e El pozo
(1936) dois contos dos respectivos autores, que representam os pases oponentes na Guerra e a relao entre
fico e histria identificveis nas obras. Analisar-se- comparativamente alguns elementos comuns a ambos os
contos: relao das obras com a Guerra do Chaco, relao das obras com a gua, relao entre tnel e poo e as
relaes entre fico e histria. As anlises se evidenciaro a partir das teorias de Paul Ricoeur, a fim de
compreender e verificar de que modo e onde se d o entrecruzamento entre literatura e histria nas narrativas
ficcionais apresentadas.
Palavras-chave: Literatura; Histria. Augusto Roa Bastos. Augusto Cspedes. Guerra do Chaco.
A Guerra do Chaco (1932-1935) foi um dos conflitos blicos mais importantes do sul
americano, protagonizada pelos dois pases mais desfavorecidos da regio, os vencidos, os
que no tm mar, entram em confronto por um espao de terra inspito que se acreditava
conter petrleo. O Chaco Boreal territrio que Bolvia e Paraguai compartilhavam sem
pretenso, foi alvo dos interesses de duas companhias norte-americanas Standard Oil
Company e a Royal Dutch Shell que por trs das bandeiras destas naes americanas
atormentadas por um histrico horrendo de confronto blico, intencionava o domnio do
Chaco.
Tal guerra que no deveria passar de alguns tiros, estendeu-se por trs anos e aniquilou
boa parte de seus combatentes, tanto pela sede, quanto pela bala, colocando-se entre as mais
sangrentas guerras do continente. O Chaco era um deserto sem vida, sem gua, um inferno
cinza e aterrorizante, principalmente para os bolivianos que se deslocavam do frio dos cumes
dos Andes para o calor torrente e mata fechada.
Compreender como o passado histrico configurado nas narrativas literrias
selecionadas o que prope este trabalho, e para tal teremos como instrumento artstico os
*
Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: [email protected].
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3 33 3
contos La excavacin
5
de Augusto Roa Bastos e El pozo
6
de Augusto Cspedes, ambos os
mais importantes escritores dos pases em questo, Paraguai e Bolvia respectivamente.
A Amrica Latina do sc. XX foi marcada por sucesses de governos autoritrios que
se fortaleceram graas ao uso de forte represso. Naquele perodo, ainda sob influxo do
positivismo, eram considerados na literatura somente fatos em que os protagonistas
pertenciam e defendiam os interesses da classe dominante e apoiadora do regime implantado.
A Literatura colaborou para desestabilizar as ditaduras latino-americanas, a fim de
tentar impedir sua continuidade no sc. XXI. Sendo assim, mesmo que os procedimentos
literrios com representatividade na histria sejam elementarmente impregnados de carter
ficcional importante reconhecer a relevncia das contribuies que muitos escritores latino-
americanos proporcionaram, transformando feitos histricos objetos de suas narrativas,
contribuindo, portanto para construo da independncia e identidades nacionais.
Augusto Roa Bastos (1917-2005) sem dvida o maior nome da Literatura Paraguaia,
aproximar-se de Roa Bastos implica necessariamente ligar-se ao seu pas de origem,
defendido por ele em todas as suas obras. Para (Barrera, 2004, p.191) Provavelmente, nunca
nenhum escritor esteve to ligado s suas razes em suas narrativas como Roa, que em 2005
faleceu sendo considerado um paraguaio exemplar e um dos maiores nomes da Literatura
Latino-americana.
A Bolvia por sua vez, tem como representante na narrativa ficcional bem como
personagem da histria de seu pas Augusto Cspedes (1904-1997), que ao tratar da Guerra do
Chaco em suas obras, assim como Roa, o faz com propriedade, com o olhar de quem
testemunhou o confronto, tornando-se vtima e algoz de sua prpria condio. Cspedes foi
cronista e ensasta cujas obras aprofundam a realidade histrica de seu pas. Sem dvida uma
de suas obras mais clebres foi o conto El Pozo (1936), que um dos relatos ficcionais mais
conhecidos acerca da guerra do Chaco.
Destaca-se, portanto, que ambos os autores foram testemunhas do confronto entre
Paraguai e Bolvia na Guerra do Chaco, Roa Bastos atuando na enfermaria e Cspedes como
5
Todas as citaes a este conto tero como referncia a edio a seguir e ser to s indicado o nmero de
pgina de citao. ROA BASTOS, Augusto. La excavacin. In: __. El trueno entre las hojas. 3.ed. Buenos
Aires: Losada, 1968. p. 79-85.
6
Todas as citaes a este conto tero como referncia a edio a seguir e ser to s indicado o nmero de
pgina de citao. CSPEDES, Augusto. El pozo. In: __. Sangre de Mestizos. 1936. p. 7.
A AN NA AI IS S d do o I II I S Se em mi in n r ri io o I In nt te er ri in ns st ti it tu uc ci io on na al l d de e P Pe es sq qu ui is sa a
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reprter especial. Perspectivas distintas, que se aproximam e se distanciam ao retratar o vivido
naquele momento histrico.
O entre lugar, a mais forte relao com a realidade histrica nas obras justamente o
carter testemunhal que elas apresentam, reivindica desta forma, a relao com as aes
narrativas e com o mundo extraliterrio, impossibilitando a visualizao de uma fronteira
limite entre fico e a realidade: E o testemunho justamente quer resgatar o que existe de
mais terrvel no real para apresenta-lo. Mesmo que para isso ele precise da literatura.
(SELIGMANN-SILVA, 2006, p. 374).
Sabe-se que a relao entre histria e literatura tema para o surgimento de inmeras
teorias que discorrem a respeito das particularidades, relao e oposio entre estas narrativas;
contudo o mundo fictcio e o passado histrico convergem nas referidas obras, provocando
certo paralelismo ao transferir-se para o mundo do leitor. Tratar-se- de expor aqui, uma
anlise quanto relao do mundo ficcional e histrico, enfocando em elementos como:
relao entre os contos com a guerra, com a gua e entre tnel e poo.
El pozo
El pozo apresenta uma narrativa que se d atravs de dirios de Miguel Narvajo
suboficial das tropas bolivianas que hospitalizado, passa a narrar os episdios que vivenciara
na frente armada em meio ao Chaco, rel seu dirio que se inicia na data de 17 de janeiro de
1933 com anotaes at 7 de dezembro, provavelmente do mesmo ano. Conta a histria de
seus 20 soldados que frente inexistncia de gua na regio e em busca de sobrevivncia
comeam a cavar um poo. O ambiente inspito, em meio ao calor infernal e sem quaisquer
resqucios de vida, provoca em seus homens prematuramente envelhecidos um sentimento
desolador de impotncia, frente a uma realidade que provoca mais sede do que dio. Os
soldados paraguaios sabendo da existncia do poo assaltam o local da escavao onde as
tropas bolivianas morrem defendendo aquele poo como se nele tivesse gua.
La excavacin
Em La excavacin, Augusto Roa Bastos nos apresenta um conto de guerra e de
fracasso de um preso poltico. A histria de Perucho Rodi, um ex-combatente paraguaio e
sobrevivente da Guerra do Chaco: preso na guerra civil (1947) em seu pas, a personagem
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tenta construir um tnel juntamente com seus companheiros de cela a fim de alcanar a
margem de um rio que os levaria liberdade. Asfixiado por um deslizamento de terra comea
a relembrar outro tnel (espao de transio/material histrico) referncia histrica imediata
ao episdio da construo do tnel que levariam a tropa paraguaia frente armada boliviana.
Seus companheiros se tornam vtimas de uma armadilha dos militares: ao perceberem
as trancas e cadeados da penitenciria abertos se encaminham ao ptio onde, por fim, so
surpreendidos por tiros de metralhadoras e chacinados. A polcia, por sua vez, faz com que
parea uma tentativa de fuga para justificar o massacre.
Relaes das obras com a Guerra do Chaco
Esta uma das relaes mais evidentes nas obras, ambas apresentam atravs da voz de
seus narradores uma indignao pelo vivido no confronto, um inconformismo em serem
obrigados a matar e s condies em que estavam submetidos, como apresenta o seguinte
trecho da obra La excavacin:
Y as suceda porque era preciso que gente americana siguiese muriendo, matndose,
para que ciertas cosas se expresaran correctamente en trminos de estadsticas y
mercado, de trueques y expoliaciones correctas, con cifras y nmeros exactos, en
boletines de la rapia internacional. (p.82)
Estes homens no sentem dio uns pelos outros, tratam esta guerra como um conflito
infundado, no entanto nada fazem para evitar ou resistir imposio de seus governos. Em El
pozo, o comportamento e posicionamento no se diferem muito, no entanto no apresentada
na obra a indignao pelos motivos que os puseram nesta guerra, se no s condies
insalubres em que se encontravam no Chaco.
Acabar esto algn da?... Ya no se cava para encontrar agua, sino por cumplir un
designio fatal, un propsito inescrutable. Los das de mis soldados se insumen en la
vorgine de la concavidad luctuosa que les lleva ciegos, por delante de su esotrico
crecimiento sordo, atornillndoles a la tierra. (p. 10)
Assim com dito anteriormente, esta guerra imps aquelas pessoas a uma situao fatal,
para cumprir um designo do Estado. A conquista de um territrio em que possivelmente havia
petrleo acabara com milhares de vidas, informaes historiogrficas apontam que foram a
bito nesta guerra de uma populao de 1 milho de paraguaios cerca de 31,5 mil e de 3
milhes de bolivianos morreram cerca de 60 mil
7
, tornando os dados ainda mais
impressionantes.
7
NETO, Ricardo. Revista Histria. 01-11-2007 ed. Abril. Disponvel em
<http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/guerra-chaco-inferno-verde-435689.shtml>
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O grande aspecto estrutural nas obras no que tange a relao com a guerra
justamente a posio do narrador, um narra em meio guerra, o outro rememora o vivido na
guerra, h a uma distino na configurao do tempo e as implicaes que um distanciamento
maior do momento recuperado pela memria pode provocar. Uma vez que o narrador de El
pozo faz uso do dirio como instrumento narrativo, configura o tempo como um calendrio
- perspectiva de Ricoeur - para tratar da experincia, colocando-a num passado no muito
distante do fato ocorrido, ao passo que se pressupe que a escrita do dirio em seguida ao dia
vivido trs consigo a intencionalidade da narrativa histrica, uma vez que tende a retratar a
realidade conforme presenciada, num gnero textual caracterstico para tal narrativa. Essa
aproximao do fato narrado e do fato vivido, tanto da personagem quanto do autor, provoca
de certo modo ao leitor uma sensao de credibilidade e de verossimilhana maior em
comparao a obra La excavacin. No entanto, ao apresenta-lo na narrativa, o narrador trata
de selecionar os dias que deseja apresentar na narrativa, que mesmo cronolgica, no obedece
a uma ordem sequenciada dia-a-dia, apresentando uma manipulao dos fatos, a fim de
expor o que para ele compe os momentos mais importantes vividos em pleno Chaco. Ainda
que no se tratasse de fico, a seleo dos feitos narrados no comprometeria o carter
verossmil da narrativa, pois como assevera (WALTER BENJAMIN, 1993, p. 98) uma vez
que a recuperao pela memria de eventos traumticos vividos se d atravs da recuperao
de pequenas imagens dispersas que se constituiro em uma colcha de retalhos a fim de
homogeneizar a imagem do passado vivido e nunca completamente recuperado.
Relao das personagens com a gua
gua, elemento vital o objetivo maior e inalcanvel para ambas as personagens,
Miguel e seus soldados em um dos ambientes mais hostis e inspitos na Amrica Latina,
buscam o lquido da vida. O poo comea a ser cavado, passam-se dias e metros abaixo da
quase petrificada terra do Chaco, os homens obcecados pela gua tornavam-se parte daquela
terra:
Cada vez que los veo me dan la sensacin de estar formados por clulas de polvo,
con tierra en las orejas, en los prpados, en las cejas, en las aletas de la nariz, con los
cabellos blancos, con tierra en los ojos, con el alma llena de tierra del Chaco. (p.7).
O poo, esta coluna vertical que os toma com o obsessivo anseio por gua, os levam
ao extremo limite do esforo humano, no diferente parece Perucho Rodi em busca da gua
sagrada que o levaria a fuga da priso. Ambas as personagens sufocados pela terra,
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comprimidos pelo poder que lhes punha em tais situaes e asfixiado por un destino de
aniquilacin que me estrangula con las manos impalpables de la nada (CSPEDES, 1936, p.
8), os coloca refns da terra e da gua, por imposio de seus governos na luta pela conquista
do inexistente para eles.
A gua aparece na obra El pozo como uma metfora ao petrleo, o nico vital
elemento que pareceria capaz de justificar um conflito armado como tal guerra. Cavar
incansavelmente um poo em busca de gua remete diretamente as escavaes nos territrios
do Chaco Boreal na busca de petrleo, no encontrados na fico, to pouco na histria. A
guerra do Chaco findou-se comprovando a inexistncia de petrleo no infrtil territrio, a
metfora alude a esse recente componente da histria latino-americana que pouco se tem
conhecimento.
A umidade, bastante enfatizada nos primeiros pargrafos de La excavacin nos remete
ao ventre materno e sua representao do que ser gerado, do inesperado que est por vir, da
esperana do nascer da liberdade, que a qualquer instante se poderia alcanar. No diferente
perseverana apresenta a personagem Miguel na obra de Cspedes, seu poo j com mais de
40 metros de profundidade no lhes brindava gua: retrocedemos al fondo del planeta, a
una poca geolgica donde anida la sombra. Es una persecucin del agua a travs de la masa
impasible (Cspedes, 1936, p. 8).
Pouco depois sem conseguirem chegar gua, as tropas paraguaias acreditando na
existncia de lquido no poo boliviano, os interceptam e os matam. Os soldados de Miguel
morrem defendendo aquele poo como se nele tivesse gua, defendendo assim seu papel nesta
guerra como se de fato ela fosse vantajosa. A gua passou a representar o nico motivo pelo
qual se poderia seguir lutando, sua inexistncia e a inexistncia de minrios no Chaco se
fundem atravs da fico e o real representado pela histria com o fracasso da guerra.
Creci el tiroteo de los pilas y se oa en medio de las detonaciones su alarido salvaje,
concentrndose la furia del ataque sobre el pozo. Pero nosotros no cedamos un
metro, defendindolo COMO SI REALMENTE TUVIESE AGUA! (p. 11)
A personagem Perucho Rodi em seu tnel se desprende da vida, assim como a terra se
desprende das extremidades do tnel. Todos os sujeitos de ambas as narrativas, (exceto
Miguel que est hospitalizado quando rel seu dirio) morrem em busca de gua, em busca de
vida, assim como seus respectivos pases atormentados por sua prpria histria de pobreza e
explorao. A gua como salvao posta pelos narradores como instrumento de elo com a
histria, metfora da constante e fracassada luta por reerguer-se do caos para ambos os pases.
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Relao poo e tnel
A relao entre o poo e o tnel talvez seja a mais intrigante na comparao entre as
narrativas, ambos levam a algum lugar, representando a transposio de um lugar ao outro, de
uma condio outra. A horizontalidade de um e a verticalidade de outro do o significado e
oposio entre eles.
O tnel configura o tempo como retrospeco temporal, em sua horizontalidade um
espao de transio, um espao em que ao provocar um deslocamento de quem o percorre,
promove uma mudana de estado, de coordenada. O historiador Pierre Nora denominou
espao como um lugar da memria onde se cristaliza a lembrana e que s se torna um
lugar de memria se a imaginao o envolver. O espao para como o tnel ou mesmo o poo
apresentado e recuperado atravs da memria pelos autores na voz de seus narradores visto
por Nora como:
... material por seu contedo demogrfico; funcional por hiptese, pois garante, ao
mesmo tempo, a cristalizao da lembrana e sua transmisso; mas simblico por
definio, visto que caracteriza por um acontecimento ou uma experincia vividos
por um pequeno nmero, uma maioria que deles no participou. (PIERRE NORA,
1981, p. 22).
O tnel no conto de Roa d uma ideia de transio, livre retrospeco ao protagonista
que o cava incansavelmente, pois alm da crena que o tnel poderia leva-lo a uma sada, a
escurido do tnel poderia encontrar um foco de luz, possibilita a recuperao do passado ao
rememorar atravs daquele espao, outro espao (tnel), experienciado no tempo passado e
revivido duplamente no presente, tanto na lembrana do tnel do Chaco, quanto na escavao
do tnel em que se encontra na Celda 4 ou Valle-. Lembremos que em La excavacin h
dois tneis, o tnel cavado por Rodi durante a guerra civil paraguaia com o objetivo favorecer
a fuga dos presos polticos que na cela Valle- encontravam-se, e o tnel do Chaco o tnel de
Gondra que recuperado pela memria do protagonista como evento por ele vivenciado.
Tempo e espao se encontram e se fundem atravs dos delrios agonizantes do
protagonista, o tnel levar as memrias de Rodi a outro lugar e o tempo passar a transitar
livremente nestes tneis. Empez a recordar... (p.81). A narrativa que se constri a partir de
dois vetores ligados ao tnel transita entre fico e realidade, numa costura que intercala a
sequncia de aes conforme as lembranas e delrios da personagem.
A posio vertical do poo, elemento principal da obra de Cspedes apresenta
condio esttica, no h mudana de coordenada, o poo que tem como intuito na obra ser
instrumento para busca de gua, de vida, no permite a seus escavadores uma mudana de
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estado, apenas os pe cada vez mais inseridos na escurido. O poo representa uma espcie de
buraco negro, onde no se pode enxergar a esperana, onde a terra engole, um lugar sem
sada. O sujeito que cava o poo passa a sentir-se enterrado, ainda que em posio vertical. O
ponto de referncia o mesmo, ele no busca fugir/sair da guerra, de sua condio atual e sim
sobreviver a ela.
No se ve la luz, y la densidad atmosfrica presiona todos los planos del cuerpo. La
columna de obscuridad cae verticalmente sobre m y me entierra, lejos de los odos
de los hombres. (p.10)
No entanto, tanto poo quanto tnel sufocam, pressionam, ameaam a vida. O poo
por sua vez, ainda que esteja sob domnio paraguaio, para Miguel es siempre nuestro, acaso
por lo mucho que nos hizo agonizar. (p.1), motivo no de orgulho, mas de honra pelos
combatentes que por ele morreram engole a personagem tornando-o cada vez menor,
insignificante frente a uma fora maior metfora fora do Estado.
Lgica inversa do tnel, o poo ainda que lugar de memria, no possibilita o
processo de transio temporal e a retrospeco com tamanha clareza como na narrativa de
Roa Bastos, o que torna o espao poo ainda mais rente ao real, uma vez que no havendo
grandes transies temporais e espaciais e sendo a narrativa apresentada atravs de um dirio,
escrita vis--vis ao fato histrico, d ao leitor uma maior sensao de verossimilitude e
aproximao com o vivido testemunhalmente do que a narrativa apresentada no espao tnel.
Da relao entre fico e histria
Para desenvolver uma reflexo terica acerca da relao entre a fico e a histria,
como proposto, nos aliceraremos as teorias de Paul Ricoeur que defende a convergncia
entre narrativa histrica e narrativa de fico, apoiado na teoria da leitura e na esttica da
recepo, assevera que o entrecruzamento entre ambas as narrativas ocorre, pois h nelas
elementos que complementam uma a outra, tomam por emprstimo as intencionalidades da
outra, sem descaracteriz-las e sem sobreposies. Sendo assim, o entrecruzamento
dialtico, pois pressupe a dualidade entre os dois discursos em que a concretizao s se
alcana medida que por um lado a histria se serve de certa maneira da fico para refigurar
o tempo, e em que, por outro, a fico se serve da histria com o mesmo intuito.
O filsofo afirma que a histria e a literatura trabalham com o mesmo elemento e
dependem dele para a efetuao da narrativa, o ato de ler, o leitor. Essa ao tem como base a
refigurao do tempo em ambas s reas, o leitor passa a colocar as obras em constante
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mudana de horizonte, e assim em transformaes do tempo. As obras ficcionais eleitas para
compor este artigo, analisadas luz dessa teoria, reflete a relao entre literatura e histria,
implicando numa possvel exemplificao do entrecruzamento.
As obras de Roa Bastos e Augusto Cspedes neste trabalho apresentadas, retratam a
modalidade de ficcionalizao da histria atravs da intencionalidade caracterstica da
narrativa histrica que por vezes tomada como emprstimo pela literatura. Ricoeur traz a
tona o tremendum horrendum, ou seja o horror, o oposto da admirao, que vincula-se a
acontecimentos que necessrio nunca esquecer. Em ambas as obras, o contexto horrendo da
Guerra se faz presente, a guerra do Chaco apresentada como evento que explicita o que h
de pior do conflito blico por motivaes que no pertenciam ao povo, que lhes foi delegada
na misso de lutar por uma terra inspita, sem representatividade alguma para ambos os
povos. Ademais do carter temtico que aproximam as obras, a composio narrativa
aludindo a narrativa histrica para reconfigurar um tempo e uma memria qui contestadora
da narrativa oficial, demonstra a intencionalidade dos autores de tornar seus relados uma
verso da histria, podendo ou no ser vista como realidade dos fatos.
Nessa luta por sobreviver bala, a sede e a dor estavam aproximadamente 40% da
populao masculina paraguaia e aproximadamente 30% da boliviana, homens que morreram
em sua maioria de sede e fome e as condies climticas que tornaram este um dos mais
horrendos conflitos armados da Amrica Latina. Justamente os pases mais pobres deste lado
do continente foram devastados por interesses britnicos, assim, sua memria est marcada,
assim o nunca esquecer prevalece e assim suas identidades sociais se constituram.
Sem dvida as vtimas de Auschwitz como destaca Ricoeur so por excelncia os
delegados de todas as vtimas da histria na nossa memria (RICOEUR, 2010, p. 320), no
quero aqui comparar as Guerras, as vtimas, pois so casos incomparveis. Quero levantar a
questo do horror e na individuao, o horror que se ope a admirao e sendo ele da origem
que for provocado por acontecimentos unicamente nicos os tornam incomparveis ao
indivduo que o conhece. A fico tem a capacidade de causar uma iluso de presena, cabe
ao imaginrio retratar o que a individuao cegou pela experincia do horror. A fico d ao
narrador horrorizado olhos. Olhos para ver e chorar (RICOEUR, 2010, p. 322) quanto mais
se tenta explicar historicamente as experincias no horror, mais a indignao nos provoca,
quanto mais se tenta entend-lo, mais o horror atinge, esta dialtica pertence a prpria
natureza da explicao histrica.
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A fico tanto na literatura, quanto na histria, se pe a servio do inesquecvel,
retratando o horror e permitindo uma justa aproximao de ambas memria e um
afastamento do esquecer. Somente a vontade de no esquecer pode fazer com que estes
crimes no ocorram nunca mais (RICOEUR, 2010, p. 323).
Ambos os pases, em que a trajetria histrica de dor e tragdias em meio a
desestabilidades polticas e sociais, propiciou uma narrativa histrica carregada de aspectos
particulares, a fim de resolver conflitos contemporneos, buscavam estabelecer uma relao
muito forte com o passado, em que seus mortos eram vistos como heris e a derrota como
vitria, no anseio de reconstruir um traumatizante dos horrores do passado que, todavia
perturba.
A no linearidade temporal no conto La excavacin pe em destaque esta necessidade
de interrogar o passado e buscar compreend-lo a partir de uma perspectiva atual. Ao ser
questionado sobre elementos histrico reais em sua narrativa, Roa Bastos afirma que no tem
a inteno de fazer histria, mas sim uma anti-histria, que contrastada com o verdadeiro ou
realista, se mostre atravs da fico.
Ao passo que a ordem cronolgica em que se apresenta o conto El pozo sendo ela
cronologicamente linear, destaca a necessidade de se apresentar o passado como uma
sucesso de eventos coerentes e que costurados uns aos outros podero se tornar o mapa pelo
qual os sujeitos podem visualizar sua prpria histria como pano de fundo da narrativa
ficcional, que tendo seus vazios preenchidos pela imaginao contribuem para remontar um
passado a ser indagado e no esquecido no hoje.
Entende-se desta forma, que ainda que as narrativas ficcionais estejam carregadas de
elementos histricos, eles por si no tem o propsito de apresentar a realidade do ocorrido,
porm, ao serem contrastados com materiais autnticos/historiogrficos, o elemento realista
se apresentar espontaneamente frente aos olhos do leitor. As reflexes de Ricoeur no que
tange a Historicizao da fico embasam esse raciocnio, a voz que narra o faz porque
aquilo para ela ocorreu. A histria quase fico, sempre que a fico atravs da quase
presena dos acontecimentos preencherem a lacuna que o pretrito deixa. Assim como
medida que a fico apresenta acontecimentos irreais, que so fatos passados para a voz
narrativa que se dirige ao leitor, a fico passa a ser quase histria.
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Os acontecimentos contados em uma narrativa de fico so fatos passados para a voz
narrativa, que para Ricoeur idntica a do autor real, munido a um disfarce fictcio, os fatos
passam a pertencer ao passado dessa voz.
[...] os acontecimentos contados numa narrativa de fico so fatos passados para a
voz narrativa, que podemos considerar aqui idntica ao autor implicado, ou seja, a
um disfarce fictcio do autor real. Fala uma voz que narra o que para ela ocorreu.
Entrar em leitura incluir no pacto entre o leitor e o autor a crena de que os
acontecimentos pela voz narrativa pertencem ao passado desta voz. (RICOEUR,
2010. p. 325).
Os acontecimentos narrados pela voz narrativa nos contos aqui apresentados,
caracterizada pelo filsofo como voz idntica ao autor implicado, que disfarado por uma
mscara ficcional narra o que para ela ocorreu, nos coloca em questionamento o fato que
ambos os autores vivenciaram o contexto o qual a voz narrativa narra (guerra), desta forma
suas obras caracterizam um entrecruzamento do quase passado e do passado efetivo, o que
poderia ter acontecido sob a perspectiva aristotlica da verossimilhana e o que abarca as
potencialidades do real na fico.
Para finalizar essa reflexo terica, ainda que livre das imposies documentrias
que tem a histria frente a seu compromisso com o realista, a fico no se desvencilhou
das amarras das obrigaes com o passado, tem ela presa a si a imposio do verossmil. Por
ora esse compromisso que parece alicerado em aspectos ticos e ideolgicos refletem a uma
ideia de dvida com os homens e seu passado, aparentemente impagvel tanto para o autor de
fico, quanto para o historiador.
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Referncias
ARIZA, Guadalupe Fernndez e (coord.). Literatura Hispanoamericana del Siglo XX,
historia y maravilla. Mlaga. Ed. Universidad de Mlaga. 2004.
CSPEDES, Augusto. El pozo. In: __. Sangre de Mestizos. 1936. p. 7 - 12.
NORA, Pierre. Entre Memria e Histria a problemtica dos lugares. Revista do Programa
de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP. So
Paulo, SP Brasil. 1981. Traduo: Yara Aun Khoury. Ed. n4.
RICOEUR, Paul. O entrecruzamento da histria e da fico. Tempo e narrativa. Trad.
Claudia Berliner. So Paulo: Martins Fontes, 2010 (v3) [pp.310-328].
ROA BASTOS, Augusto. La excavacin. In: __. El trueno entre las hojas. 3.ed. Buenos
Aires: Losada, 1968. p. 79-85.
ROA BASTOS, Augusto. MACIEL, Alejandro. GADEA, Omar. NEPOMUCENO, Eric. O
livro da Grande Guerra. 2002. Ed. Record.
SELIGMANN-SILVA, Mrcio. (Org.) Histria Memria Literatura o testemunho na era
das catstrofes. 2006. Ed. Unicamp.
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A superao da semiformao do leitor contemporneo: a leitura sob a tica
filosfica de Theodor W. Adorno
CHAVES, Priscila Monteiro
*
Resumo: Sabendo que a leitura cultural ainda bastante carente e constatando uma preocupante prontido ao
aceite de produtos da Indstria Cultural, torna-se politicamente imperativo (re)pensar como o texto transforma
o leitor acerca daquilo que pensava antes? Assim, qual a estreita relao entre o papel do crtico da leitura e do
crtico cultural? Por que nos ltimos tempos pensar a leitura vem deixando de ser pensar contra? Impulsionado
por tais demandas, o presente texto utiliza-se das reflexes de Theodor W. Adorno, (coadjuvadas pelos escritos
de Walter Benjamin e Hannah Arendt) para interpretar e problematizar importantes dados trazidos pela pesquisa
Retratos de Leitura no Brasil (2008), contrapondo-os concepo de leitura proposta pela cincia atual.
Concluindo uma semiformao do leitor, que se constitui nos moldes de uma educao utilitarista, formando o
leitor no-autnomo, preparado para adquirir os rudimentares conhecimentos das diferentes profisses que o
sistema precisa. Deixando de lado o carter libertrio e transformador inerente leitura.
Palavras-chave: Adorno. Leitura. Semiformao. Indstria Cultural.
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos
conscientes demais dos seus direitos polticos, em um
mundo administrado, onde ser livre no passa de uma
fico sem nenhuma verossimilhana. Seria impossvel
controlar e organizar a sociedade se todos os seres
humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem
a articular bem suas demandas, a fincar sua posio no
mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista
de sua liberdade.
Guiomar de Grammont
Muito tem se afirmado sobre os processos de alfabetizao, cultura letrada,
desenvolvimento das habilidades da lectoescrita (FERREIRO, 1999), dos altos ndices de
analfabetismo entre outras problemticas que permeiam a atividade de leitura. A partir dessas
discusses o Brasil vem reduzindo sua taxa de analfabetismo com velocidade constante nas
ltimas dcadas, todavia, essa velocidade ainda insuficiente, e o livro e a leitura no tm
sido considerados como uma das prioridades dos indivduos/pessoas como deveria. Essa
situao leva tematizao sobre os motivos de tal insuficincia e s tentativas de solues
*
Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: [email protected].
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possveis. As questes relacionadas a tal atividade permanecem sendo uma problemtica a ser
resolvida no e pelo contexto escolar, desde o perodo da educao infantil at a academia.
Juntamente com a emerso dessas inquietaes surge a informao de que atualmente
o pas figura entre as seis maiores economias do mundo, constituindo como a segunda maior
das Amricas, frente do Canad e do Mxico. Mesmo assim, a formao do leitor,
problemtica j corrente e de cincia de professores e instituies estatais, entre outras,
continua em aberto na sociedade. Juntamente com a desigualdade, a consequente necessidade
de distribuio de renda, aliada qualidade da educao, o baixo ndice de leitura torna-se
importante preocupao e um dos itens mais demandantes do povo aos governantes
brasileiros, mesmo que isso no aparea claramente.
Esta exposio de informaes de extrema relevncia apresentadas at aqui de maneira
um tanto quanto ensastica no teriam valor algum se no confrontadas a uma realidade
exposta em um documento que tem a pretenso de compreender a condio leitora no
momento atual brasileiro, o que seria uma tarefa incabvel a uma pesquisa de base emprica de
um s pesquisador.
Dessa forma, para fundamentar algumas hipteses preliminares, adotar um recorte da
realidade brasileira e delimitar o problema de pesquisa, baseia-se em um documento que
pretendeu mostrar o perfil (to fiel quanto possvel), sobre os leitores e no-leitores
brasileiros. Contando com a colaborao de especialistas renomados na elaborao da citada
investigao, a qual possui abrangncia nacional do Instituto Pr-Livro
8
: Retratos da Leitura
no Brasil (2008)
9
.
Entre nmeros preocupantes e outros recortes geogrficos, econmicos e sociais da
leitura, esta pesquisa traz a desfavorvel notcia de que no Brasil, apesar dos recentes esforos
e avanos, e das pesquisas fomentadas acerca da temtica da leitura, os indivduos ainda no
leem o suficiente. Percebe-se, ento, que os brasileiros ainda no reconhecem a questo do
8
O Instituto Pr-Livro uma Oscip (organizao social civil de interesse pblico) criada por trs das principais
entidades do livro no Brasil: Cmara Brasileira do Livro (CBL), Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel)
e Associao Brasileira de Editores de Livros (Abrelivros). O IPL sustentado a partir de recursos provenientes
das contribuies mensais de empresas do mercado editorial brasileiro. Objetiva viabilizar aes para ajudar a
fomentar a leitura e o livro no Brasil. Para tanto, desenvolve projetos prprios e apoia iniciativas de organizaes
filantrpicas ou rgos pblicos com quem estabelece parcerias, mediante prestao de assessoria, participao
direta em aes ou doaes. Pode ser considerado uma resposta institucional das entidades do livro no Brasil
diante da necessidade de fortalecimento de aes estruturais e de participar ativamente das polticas pblicas do
livro e leitura (2008).
9
Disponvel em http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/1815.pdf, acesso em 03 de janeiro de
2012.
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livro e da leitura como requisito de extrema importncia e de necessidade imediata, pois
estratgico para o seu presente e, sobretudo, para a construo de outra perspectiva de futuro.
Essa displicncia evidente ao se constatar nas pesquisas o quanto os sujeitos ainda
hesitam na hora em que deveria conferir a ela a dimenso de uma atividade imprescindvel
para a sua vida. Ao Estado, caberia torn-la uma poltica efetiva, tanto na educao quanto no
cotidiano. O que, segundo Galeano Amorim (2008, p.16), a quem foi confiada a coordenao
da publicao e tambm da pesquisa, inclui oramentos pblicos mnimos, estrutura para
bem aplic-los e uma clara definio de papis para os diferentes entes da federao. Para
ele, a questo se esclarece ainda mais, uma vez que bastaria observar a baixa frequncia da
populao nas bibliotecas brasileiras, um servio pblico que, embora essencial, continua a
merecer s um tratamento de segunda classe (Idem, 2008, p.16), dados tambm disponveis
pela pesquisa de mbito nacional publicada em Retratos.
Assim, entre as diferentes contradies que permeiam o ato de ler j discutidas
principalmente nos escritos das reas da lingustica, aquisio e literatura, coligadas s mais
diversas campanhas de incentivo leitura, os mais perversos ndices quantitativos de leitores
no Brasil permanecem baixos. Essa realidade aprofunda, ainda mais, a desigualdade social e a
falta de uma cidadania autntica, visto que embora o sistema educacional brasileiro inclua os
estudantes que estavam fora da sala de aula, essa incluso no plena do ponto de vista
qualitativo. Se observa, pois, que o desempenho desses estudantes tem sido baixo, apontando
para os srios problemas no domnio das capacidades de ler e escrever, resultando em uma
menor compreenso da realidade e, consequentemente, uma menor capacidade de resoluo
de problemas e de perspectiva de vida.
A partir deste quadro social da leitura, possvel demandar: em tempos
contemporneos, a gnese da excluso escolar e dos baixos ndices de leitura pode ser
mapeada somente sob a tica de questes superficiais e isoladas do tipo: por que Joozinho
no sabe ler (ARENDT, 2010)? Respondendo a tal demanda com uma rplica negativa, o
presente texto parte dos dados fornecidos por um documento que teve a pretenso de mostrar
o perfil, to fiel quanto possvel, dos leitores e no-leitores brasileiros, apontando da maneira
mais fidedigna realizvel os resultados obtidos pela adoo de polticas pblicas e seu grau de
eficincia, Retratos de Leitura no Brasil (2008). E utiliza-se das reflexes filosficas advindas
dos escritos de Adorno, cotejando tambm leituras de Benjamin e Arendt, para interpretar e
problematizar esses dados, contrapondo-os aos recortes da rea da leitura propostos pela
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cincia atual. Propondo-se a analisar sinteticamente os impasses da realidade em que so
formados leitores na contemporaneidade, uma vez que a leitura no deve ser tomada como
tcnica a ser adquirida e tampouco mercantilizada, e sim um meio de promoo da cidadania,
compreendida em suas dimenses crtica e ativa, em outras palavras, um instrumento
humanizante de emancipao do sujeito (ADORNO, 1995a).
Dessa forma, objetiva-se tambm com este texto a reconsiderao desta condio de
leitores na atualidade - problematizada at aqui luz das teorias da leitura, da literatura e do
letramento - sob a prerrogativa do ponto de vista dos mais novos conhecimentos empricos,
percebidos pelas demandas sociais, e temores no to recentes. A fim de que a leitura no seja
mais um instrumento de manipulao, de modo que sirva aos interesses dominantes, e que a
populao no passe dos limites. Se uma das principais dimenses desses limites a formao
como leitor, competncia capaz de emancipar o sujeito e fazer com que este se torne um
questionador de seu mundo e crtico de sua cultura, tal formao depende estreitamente do
resgate e do enfoque da sua funo social e poltica, em sua histria e sua cultura, bem como
da compreenso de seu mundo imediato, o que o contexto escolar atual no propicia ao
educando.
Para tanto, o presente texto se estrutura ancorado em trs principais focos, como sero
refletidos neste momento:
a) Fetiche pela tcnica (tkn) na formao de leitores: compreendendo que a
aquisio de uma tcnica no contexto escolar ainda configura uma conquista indispensvel ao
educando e sua dimenso instrumental continua sendo quesito obrigatrio nas avaliaes,
atribuindo competncia de codificao a condio de legtimo conhecimento. Nesse mesmo
sentido, a pesquisadora e coordenadora do GEAL, Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Alfabetizao e Letramento da USP, Silvia Gasparian Colello manifesta-se de maneira
introdutria ao problema:
Parece indiscutvel que as crianas de nossa sociedade devem aprender a ler e a
escrever. No entanto, se perguntarmos aos pais e educadores por que e para que
alfabetizar, encontraremos, com certeza, respostas vagas, por vezes incompletas e
at paradoxais (COLELLO, 2007, p.27).
Fator que faz com que a lectoescrita se coloque a servio dos mesmos preceitos que
limitam a compreenso da complexidade social, fazendo do educando mais um mecanismo de
negao da autonomia do sujeito, que nesta sociedade prenhe de ambiguidades, passa a ser
guiado pela lgica calcada na produtividade/reproduo, em concordncia com os moldes j
estipulados pelo sistema dominante.
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Adorno torna-se um terico fundamental para discutir tal problemtica a partir do
momento que se pretende questionar um louvor desmedido a uma tcnica de
codificao/decodificao, que em determinados nichos sociais ainda legitimada como
verdadeiro conhecimento, reforando a errnea concepo de uma prtica educativa atual que
enfatiza que, onde quer que o saber como seja de importncia crucial, o saber que uma
perda de tempo (FREIRE, 1990). Como se esta possusse um fim em si mesma. Alienando a
comunidade escolar sobre o sentido da alfabetizao e os submetendo a uma reificao
tecnolgica (ADORNO, 1985). Para o filsofo
na relao atual com a tcnica existe algo de exagerado, irracional, patognico. Isto
se vincula ao vu tecnolgico. Os homens inclinam-se a considerar a tcnica como
sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma fora prpria, esquecendo que
ela a extenso do brao dos homens. (1995a, p.132)
Nesse sentido que a aquisio de uma escrita no deveria ser diferente de uma
proposta de alfabetizao em que o conhecimento, no entanto, deveria ser guiado pelo que
no mutilado pelas trocas ou pois no h nada mais que no esteja mutilado pelo que se
oculta por trs das operaes de troca(ADORNO, 1995b, p.193). Uma concepo de
alfabetizao mediada pela relao de comprometimento com a utilizao de uma tcnica, que
somente comeasse a ser pensada e compreendida na medida em que possusse um
significado no mundo imediato de cada um, partindo de suas necessidades. Esse princpio de
formao institucionalizada do leitor seria, ento, essencialmente tica na medida em que
originaria um novo esprito e posicionamento perante a tcnica e nos tempos atuais perante a
voracidade tecnolgica.
b) Indstria Cultural e ensino de literatura: Sabendo que a leitura dita cultural ainda
bastante carente, hiptese que se potencializa na anlise dos livros mais citados pelos
brasileiros em Retratos, quando constata-se uma preocupante prontido no aceite de textos
que Adorno aponta como produtos da Indstria Cultural, considerados pela mdia como
maiores sucessos da literatura mundial dos ltimos tempos, potencializando uma carncia
brasileira, a baixssima compreenso daquilo que se l, o que Mzros (2008) aponta como
novssimo analfabetismo.
Prenhe de notrias divergncias s ideias de Benjamin e estreitamente relacionado ao
fetiche pela tcnica no que concerne carncia de autonomia do sujeito e a perda da
subjetividade, em coautoria com Max Horkheimer, Theodor W. Adorno introduz em seu
legado a expresso Indstria Cultural, em que ele denuncia que a soluo peculiarmente
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materialista dos problemas postos na obra de seu interlocutor no resolvem de fato os
problemas trazidos pela arte na concepo burguesa do sculo XX.
Uma poca em que a industrializao se estendeu de tal maneira que torna-se
dominante da produo inclusive da cultura. Segundo David Harvey, a industrializao
condicionou toda a produo cultural (2004), trazendo como consequncia o fato de tornar-se
seu eixo principal a propagao das artes reprodutveis e das novas tecnologias de produo e
reproduo da cultura, o que insere tambm as tecnologias de comunicao desenvolvidas
nesse mesmo tempo, principalmente a televiso e o rdio, que tambm funcionaram em torno
da organizao empresarial do capital nesse mesmo sistema mercantil.
Assim, com a reprodutibilidade tcnica, as obras de arte se emancipam de seu ritual
individual e aumentam as ocasies para que elas sejam expostas. A difuso social se torna
imperativo, quando a produo de um filme to demasiadamente custosa que um indivduo
que poderia pagar um quadro no pode mais custear um filme. Se assim acontece, o filme
impulsiona a criao de uma tentativa de coletividade por meio de uma leitura mais
equiparada para a massa de maneira geral, na medida em que todos tero acesso ao mesmo
produto.
Benjamin refuta que, ainda que estas obras de arte reproduzidas sob as novas
circunstncias estipuladas pela lgica do sistema mercantil deixem inatos os contedos das
obras de arte, elas acabam por se desvalorizar de qualquer forma o seu aqui e agora. Pois,
conforme a tcnica permissiva do encontro entre espectador e reproduo, nessas diversas
ocasies ela atualiza o contedo reproduzido. Processos que resultam num violento abalo da
tradio, que constitui o reverso da crise atual e a renovao da humanidade (BENJAMIN,
1994, p.169).
Assim surge o conceito de Indstria Cultural, da tentativa de fazer uma anlise do
fenmeno reprodutivo das sociedades de massas, em que a cultura converte-se em
mercadoria. Criou-se uma indstria que planeja bens para o consumo cultural, no entanto,
levando a sociedade a um mundo dominado, uma vez que no passa de mera repetio,
sempre fabricando o mesmo modelo e o multiplicando com o exclusivo objetivo de consumo.
Para Adorno a Indstria tem todo empenho em instigar a participao das massas por
meio de concepes quimricas e especulaes contraditrias. A partir dessa finalidade, ela
mobiliza os mais poderosos meios de comunicao e publicidade, apoderando-se tambm da
carreira brilhante e da badalada vida das estrelas que ela mesma criou, o que transposto para
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outros setores da indstria do consumo. Depravando e falsificando o interesse da sociedade
pela arte, pela narrativa. Na medida em que o proletariado no se aproxima dela para
fantasiar, na dimenso em que se compreende necessria pelo reproche adorniano, e sim por
um interesse no prprio ser, no seu interesse de no pertencimento de sua classe.
Opondo-se parcialmente s interpretaes de Kant e Freud e pensando que a literatura,
qua arte, implica em si mesma uma relao entre o interesse e a sua recusa, e que ambos
movimentos so essenciais formao do sujeito, Adorno delata que omente uma espcie de
literatura que seja passvel de interpretao como maneiras de conduta tem
a sua raison dtre. A arte no unicamente o substituto de uma prxis melhor do
que a at agora dominante, mas tambm crtica da prxis enquanto dominao da
autoconservao brutal no interior do estado de coisas vigente e por amor dele.
Censura as mentiras da produo por ela mesma, opta por um estado da prxis
situado para alm da antema do trabalho. Promesse de bonheur significa mais do
que o facto de que, at agora, a prxis dissimula a felicidade: a felicidade estaria
acima da prxis. A fora da negatividade na obra de arte mede o abismo entre a
prxis e a felicidade. Sem dvida, Kafka no desperta a faculdade de desejar
(1992,p.23).
c) Semiformao do leitor: a partir de ambas problemticas refletidas nas sees
anteriores possvel inferir como leitor semiformado este que vem se constituindo nos
moldes de uma educao utilitria que, nas dcadas anteriores, se dava apenas em um
pequeno pblico. Um leitor no autnomo, preparado para ser sempre mais objetivo, com
prontido para adquirir os rudimentares conhecimentos das diferentes profisses que o
sistema precisa. O que deturpa as poucas alternativas que esses sujeitos tm de se tornarem
leitores culturais, contentando-se com uma pseudo-participao (ADORNO, 1996) poltico-
social.
Para este leitor a formao cultural se converte em uma semiformao socializada, na
onipresena do esprito alienado, que, segundo sua gnese e seu sentido, no antecede
formao cultural, mas a sucede (p.391). Uma traioeira exploso de barbrie, pois nada
daquilo que apreendido sem pressupostos empricos por parte do sujeito poderia ser
apontado como formao.
O entendido e experimentado medianamente - semi-entendido e semi-experimentado
- no constitui o grau elementar da formao, e sim seu inimigo mortal. Elementos
que penetram na conscincia sem fundir-se em sua continuidade, se transformam em
substncias txicas e, tendencialmente, em supersties, at mesmo quando as
criticam (ADORNO, 1996, p.403).
Entendida a limitada aquisio de uma tcnica e o lento crescimento do nmero de
leitores - que por vezes acabam tendo acesso somente a esta espcie de literatura recm citada
- percebe-se que realidade produz a iluso de desenvolver-se para cima e, no fundo,
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permanece sendo o que era, havendo um grave equvoco entre desenvolvimento e
modernizao da sociedade, reforada pela precariedade do pblico leitor.
Assim, compreende-se a necessidade de tais reflexes filosficas uma vez que a
temtica da leitura constitui mais uma armadilha do bvio, pela incoerncia que h entre o
consenso popular dos significativos benefcios da prtica e o risco de uma converso em
devotadas assembleias de autoconsolao, alertando com isso sobre a urgncia de uma
interpretao das prticas e dos discursos a respeito da leitura. Percebe-se que uma das facetas
dessa armadilha do bvio distanciar o sujeito de um engajado diagnstico da doena e dos
doentes, diagnstico que se mostra de extrema urgncia quando as solues no podem mais
ser apenas formais, atravs de uma dominao estrutural imposta; e libertao que depende
tambm de um retorno indicativo das origens dos pecados intelectuais.
Se dessa forma sucede, essa uma das funes da Filosofia, que trabalha no apontar
de novos caminhos, no revelar de novas realidades, na luta e no combate, interrompendo,
neste caso, a precariedade trazida pela objetividade com que por vezes vista a atividade de
leitura, quando abordada de maneira cerrada por si s, trabalhando em prol da interrupo
desta objetivao.
Por isso, a partir das reflexes estabelecidas at o presente momento, faz-se necessria
uma reconsiderao desta condio de leitores na atualidade - problematizada at aqui luz
das teorias da leitura, da literatura e do letramento - sob a prerrogativa do ponto de vista dos
mais novos conhecimentos empricos, percebidos pelas demandas sociais, e temores no to
recentes. A fim de que a leitura no seja mais um instrumento de manipulao, de modo que
sirva aos interesses dominantes, e que a populao no passe dos limites.
Se uma das principais dimenses desses limites a formao como leitor, competncia
capaz de emancipar o sujeito e fazer com que este se torne um questionador de seu mundo e
crtico de sua cultura, tal formao depende estreitamente do resgate e do enfoque da sua
funo social e poltica, em sua histria e sua cultura, bem como da compreenso de seu
mundo imediato, o que o contexto escolar atual no propicia ao educando (FREIRE, 2005).
Compreende-se o quo insatisfatria se torna uma tentativa de formao do leitor
calcado na materialidade, tanto no que compete aquisio do cdigo escrito, quanto ao seu
contato posterior com os portadores de texto. Que funcionam como meio de manuteno da
vida e tem sua engrenagem na relao de troca. A impresso que se tem de uma falsa
conscincia de todas as partes, umas a respeito das outras.
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A escola que no volta-se contra essa cultura afirmativa e utilitria, que no ensina os
sujeito a duvidar da mesma, que no rompe com essa imagem de mero momento de transio
do sujeito leitor enquanto aluno, alimenta esse falso contrato entre instituio escolar e
formao do leitor.
A leitura deve fazer parte da ao dos homens sobre a realidade social, trabalhando no
desvendamento de novas condies sociais de vida, no questionamento da inexorabilidade dos
fatos, na produo de homens insatisfeitos e inconformados com a sua cultura. Se a razo de
ser da leitura a humanizao, como advogado foi nas sees que antecedem esta, a leitura
precisaria perder seu carter opressor, tanto de ser reduzida a uma tcnica, como na maneira
de, na maioria esmagadora dos fatos, alienar, distrair, reforar uma crena e cumprir com
demandas estritamente cientficas ou institucionais somente.
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Drummond Comparado: dilogos entre pesquisa e ensino
BORGES, Francieli Daiane
*
HOFF, Patrcia Cristine
**
Resumo: Partindo do entendimento de que, no mbito do ensino superior, as trs esferas ensino, pesquisa e
extenso devam ser consideradas em consonncia e conjuntamente, as consideraes aqui apresentadas propem
destacar um contexto especfico de extenso acadmica em que se buscou trazer comunidade aquilo que vem
sendo lido e discutido nos bancos do curso de Letras. A partir de teorias da Literatura Comparada e das
postulaes analticas sobre a significao artstica, buscou-se, nesse projeto, a criao de um ambiente de
profcua reflexo de textos literrios, analisados no seu mbito particular e comparativo, priorizando a produo
de sentidos e a capacidade criativa dos leitores. No seu enfoque, encontram-se poesias, contos e crnicas de
Carlos Drummond de Andrade, lidos tambm em aproximao com textos de outros autores.
Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade. Literatura comparada. Projeto de extenso.
O presente trabalho dar conta de alguns aspectos sobre o projeto de extenso
ministrado pelas acadmicas em Letras e pesquisadoras CARO Francieli Borges e Patrcia
Hoff, cujo ttulo Drummond Comparado: o poeta das sete faces & outros, sob orientao da
Prof. Dr Cludia Lorena da Fonseca e do Prof. Dr. Joo Luis Pereira Ourique.
A realizao desse projeto de extenso esteve veiculada ao Estgio de Interveno em
Lngua Portuguesa, cursado pela acadmica Francieli Borges, na poca aluna de stimo
semestre em Letras Portugus e Literaturas da Universidade Federal de Pelotas. A
acadmica Patrcia Hoff aluna de Letras Portugus e Ingls e respectivas literaturas na
mesma instituio, e atuou como ministrante convidada no projeto.
A divulgao do projeto fora realizada via internet e cartazes fixados em locais de
circulao acadmica durante algumas semanas antes do incio dos encontros. Com um
pblico variado, composto em sua maioria por alunos de graduao da Universidade Federal
de Pelotas, advindos, sobretudo, do curso de Letras (atenderam ao projeto, ainda, alunos dos
cursos de Filosofia, Cincias Sociais, Engenharia Civil, Cinema, Msica, entre outros). Ao
todo foram 36 inscritos, sendo que, ao final, 21 apresentaram a frequncia mnima para a
obteno do certificado de participao no projeto.
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Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: [email protected].
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Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: [email protected].
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Os encontros foram realizados entre os dias 10 de maio de 2012 at o dia 21 de junho
sempre s quintas-feiras, das 14h s 16h30min, na sede do Instituto Joo Simes Lopes
Neto, no Centro de Pelotas-RS.
No que concerne escolha de se trabalhar com e a partir Drummond, esta se deu por
vrios motivos, sem sabermos identificar a hierarquia dos mesmos. Pensamos, em algum
momento, em ampliar a percepo da obra de Drummond para alm do poeta consagrado,
analisando alm de poemas , contos e crnicas, identificando possveis relaes entre elas,
ou seja, fazendo leituras comparadas dentro da prpria antologia drummondiana. Sabemos,
por outro lado, que grande parte da obra de Drummond se deu em verso e, a partir disso,
considerou-se, tambm, a possibilidade de aprofundamento de leituras de poesia, ainda pouco
privilegiada mesmo em contexto de ensino superior. Outra motivao partiu da imagem
gerada pelo senso comum a respeito do poeta mineiro, tido por muitos como um poeta
romntico no sentido denotativo da palavra. Tal imagem pode ser questionada ou mesmo
desfeita se tomarmos mesmo uma quantidade reduzida de obras drummondianas, uma vez que
o poeta gauche contempla um vasto leque de temas, indagaes, reflexes, situaes
cotidianas, etc. Drummond se coloca, portanto, como um exmio poeta do sculo XX, no qual
os que viveram no saram ilesos.
Alm de pensar a obra de Drummond como um compndio imprescindvel
compreenso do homem em seu tempo, no podemos deixar de considerar a genialidade do
poeta diante das palavras. O domnio que Drummond apresenta pela escrita , talvez, o grande
motivo pelo qual considerado o maior poeta brasileiro. Rita de Cssia Barbosa comenta que
o escritor reflete e questiona a prpria atividade potica, porque sabe que poeta do finito e
da matria; da sua necessidade de fazer do poema e de seu trabalho potico: como fugir ao
mnimo objeto/ ou recusar-me ao grande? Os temas passam,/ eu sei que passaro, mas tu
resistes,/ e cresces com o fogo, como a casa,/ como o orvalho entre os dedos,/ na grama que
repousam. (BARBOSA, 1988, p. 173).
Expressadas as (dispensveis) menes importncia da obra de Carlos Drummond de
Andrade, comentadas aqui brevemente, parece-nos que a relevncia em trabalhar tais textos
a de trazer tona vrias leituras tanto dos textos quanto dos seus possveis intertextos,
propondo a ampliao das reflexes e atualizando as leituras incessantemente.
Tal expectativa se faz necessria sempre quando lidamos com literatura. Alm de
pensarmos na literatura como a possibilidade da experincia esttica, assumimos que ela se
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torna um vasto campo de conhecimento e reflexo, sendo fator indispensvel para o processo
de humanizao e, portanto, uma funo tambm se no principalmente atribuda ao
professor (e ao professor em formao).
Nesse mbito, os esforos do projeto de extenso Drummond Comparado partem da
nossa crena na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extenso no mbito da graduao,
tendo em mente a noo de que as trs esferas fazem parte de um mesmo fundamento
metodolgico. Essa trplice exige do acadmico a unio de trs questes norteadoras: o que
fazer, para que fazer e como fazer. (MARTINS, s.d., p. 2) Assim, como aponta Lgia
Martins, o papel das universidades implica em ter o desenvolvimento do sujeito prxico
como objetivo educacional (MARTINS, p. 3), ou seja, aquele sujeito que admite a prxis
como condio da sua cidadania, a partir do momento em que sua atividade ao material,
consciente e objetiva. Nesse sentido, Martins cita Vasquez:
A teoria em si no transforma o mundo. Pode contribuir para a sua transformao,
mas para isso tem que sair de si mesma, e em primeiro lugar tem que ser assimilada
pelos que vo ocasionar, com seus atos reais efetivos, tal transformao.
(VASQUEZ, 1968, p. 206 apud MARTINS, p. 4)
Isso exposto, propomos um projeto de extenso que busque atender latente
importncia e relevncia do contato dos participantes com textos literrios curtos, exploradas
ao mximo a riqueza de significados e a manuteno da subjetividade. Partimos da ideia de
que todos os livros favorecem a descoberta de sentidos, mas so os literrios que o fazem de
modo mais abrangente, dada a sua plurissignificao.
Acrescido a isso, quando pensamos no trato com o texto literrio, temos que um
princpio bsico a ser considerado no ensino de literatura o da intertextualidade. Pensamos
que, por essa tica, a aproximao intertextual exercitada como uma forma especfica de
pensar literatura, entendendo-a como construto cultural, inter-relacionada com outros textos,
sejam eles verbais ou no verbais. Relativo a isso, tem-se observado que, desde que os
Estudos Culturais entraram em voga, h o consenso de que estudar o texto literrio , alm de
observar a linguagem, atentar para a histria, psicologia, sociologia, antropologia, teoria da
literatura etc. Destarte, com essa inter-relao de textos, compreenses e saberes, a literatura
comparada se insere como um local cultural.
Para que haja uma compreenso dos textos a partir desse conceito que nos propomos a
observar o comparativo , necessrio situar a ideia acerca dos pontos essenciais do
mesmo. A Literatura Comparada como procedimento crtico e metodolgico sofreu, nas
ltimas dcadas, muitas mudanas. Se nos tempos iniciais a comparao era mais da ordem de
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influncias e relaes textuais entre textos, hoje os seus estudos do conta de relaes de
proximidade e distanciamento, de semelhanas e diferenas, alm de considerar no mais
apenas o objeto literrio, mas obras de vrios outros cdigos estticos. Tais modificaes se
deram quase que naturalmente, como aponta Cunha:
A disciplina Literatura Comparada institui-se no quadro terico de disciplinas
acadmicas j estabelecidas, como sabemos, a partir do desejo cosmopolita de que
se acolhesse a diversidade. (...) No entanto, bom lembrar que, para isso, foi
necessrio que a disciplina se transformasse. Isso aconteceu de forma no
traumtica, sem gerar crises ou grandes abalos epistemolgicos. Naturalmente,
ento, a investigao interdisciplinria banalizou-se no contexto com comparatismo
literrio. (CUNHA, 2011, p. 11)
Assim, os conceitos de interdisciplinaridade e intertextualidade problematizaram a
prpria ideia de comparatismo. De acordo com Tnia Franco Carvalhal, para Revista
Brasileira de Literatura Comparada, a interdisciplinaridade seria caracterstica de mobilidade
na atuao comparatista, preservando sua natureza mediadora, intermediria, denotadora de
procedimento crtico que se movimenta entre dois ou vrios elementos, e explorando nexos
e relaes entre eles (CARVALHAL, 1991, p. 10). Pensamos que por essa tica a
aproximao intertextual exercitada como uma forma especfica de pensar literatura,
entendendo-a como interativa com outros textos, sejam literrios, jornalsticos, visuais,
verbais etc. Com essa inter-relao de textos, compreenses e saberes, a literatura comparada
se insere como um local cultural.
Tambm podemos pensar que o mtodo comparativo para comunicar conhecimento ou
mesmo adquiri-lo , em certo sentido, to antigo quanto o prprio pensamento. Embora as
razes e imaginaes operem subjetivamente, as informaes so transmitidas objetivamente
atravs de convergncias e divergncias. A literatura comparada , pois, a histria das
relaes literrias, sejam nacionais ou internacionais. O comparatista se encontra nas
fronteiras lingusticas, acompanha mudanas de temas, ideias, livros, sentimentos, design de
texto entre duas ou mais literaturas ou entre literaturas e outras artes. Ele comparatista deve
ter, portanto, uma pesquisa histrica suficiente para recolocar em seu contexto geral os fatos
literrios que examina.
Tal perspectiva entende que no possvel isolar o texto literrio fora do social, do
histrico e do ideolgico. Em cada poca, homens e livros contribuem para que se conheam
diferentes letras e momentos histricos, muito embora uma obra literria no deva ser lida
como um objeto de relato, de verdade, porm, ainda assim, ela no est isolada como obra de
arte.
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No necessariamente anterior a esse pensamente, mas adjacente a ele, admitimos que
todo o texto literrio, por carregar uma linguagem essencialmente ambgua e polissmica,
um texto aberto, para usar a definio de Umberto Eco (ECO, 2007). Tal noo sobre a
abertura do texto d conta de que um texto pode ter vrias leituras, ou ao menos no
apresentar uma leitura ltima. Isso, no entanto, no coloca o leitor numa posio arbitrria
quanto a produzir qualquer sentido de um texto, e sim serve como um pressuposto crtico, um
modelo hipottico que responde a todo tipo de obra artstica e, por conseguinte, tambm
obra literria.
Posto que toda obra de arte seja aberta, no sentido de que sua abertura, entendida
como ambiguidade fundamental da mensagem artstica, uma constante de qualquer obra em
qualquer tempo (ECO, 2007, p. 41), ao apontar para abertura da obra artstica, Eco adverte,
no entanto, que deve-se levar em conta a intentio operis e que a interpretao d-se to
somente a partir da iniciativa do leitor, que consiste basicamente em fazer uma conjectura
sobre a inteno do texto. (ECO, 1993, p. 75)
Dado o carter provocativo da literatura, comentado anteriormente, sendo uma
condio da obra aberta, trabalho do sujeito-leitor atuar na decodificao dos textos
artsticos. o que tambm aponta Regina Zilberman:
o signo esttico [em oposio ao signo empregado na linguagem prtica do
cotidiano] assim se revela se o espectador o perceber enquanto objeto esttico, o que
determina, agora por outra via de raciocnio, o reconhecimento da importncia de
sua atividade perceptiva. o recebedor que transforma a obra, at ento mero
artefato, em objeto esttico, ao decodificar os significados transmitidos por ela. Em
outras palavras, a obra de arte um signo, porque a significao um aspecto
fundamental de sua natureza, mas ela s se concretiza quando percebida por uma
conscincia, a do sujeito esttico. (ZILBERMAN, 2009, p. 21)
Ao considerarmos os encontros do projeto de extenso Drummond Comparado: o
poeta das sete faces & outros, podemos destacar um dado momento em que atingimos, por
assim dizer, os objetivos almejados para esse projeto, brevemente aqui explicitados. No
segundo encontro, que aconteceu no dia 17 de maio, nos deparamos com uma reflexo muito
interessante proporcionada pelo poema No meio do caminho, do poeta itabirano. Escrito em
fins de 1924 e publicado em 1928 na Revista de Antropofagia, fundada por Mrio de Andrade
e representando a vanguarda modernista no Brasil, No meio do caminho, republicado dois
anos depois em Alguma poesia (1930), livro de estreia de Drummond, causou reaes
divergentes no pblico, em grande parte ainda resistente novidade modernista. Tal
repercusso deixou o poeta subitamente conhecido, uma vez que fora ao mesmo tempo
admirado e ridicularizado por causa desse poema-escndalo. Quase quatro dcadas depois da
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primeira publicao, Drummond chegou, inclusive, a organizar, em 1967, a antologia Uma
pedra no meio do caminho Biografia de um Poema, reunindo ali vrias pardias, parfrases
e comentrios positivos e negativos acerca do poema.
Segue, ento, o poema de Carlos Drummond de Andrade:
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas to fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Trazendo esse poema para o encontro, pudemos perceber que No meio do caminho
continua, digamos, polmico, e no esgota as possibilidades de interpretao, tampouco
encerra as discusses sobre seu teor polissmico. Das primeiras leituras, muitos participantes
colaboraram acerca de suas impresses sobre os textos. Da saiu a primeira questo levantada,
ponderando se a pedra era hipottica, se era uma pergunta retrica, se era literal, se era
metafrica, e caso fosse essa ltima, discutiu-se acerca de quais metforas o poema poderia
representar.
Com tais questes em suspenso, foi interessante notar, na sequncia, o envolvimento
do grupo acerca da forma do poema, uma vez que vnhamos trabalhando at ento com
leituras de ordem mais temtica. O grupo percebeu que os versos provocam um efeito de
estranhamento que inicialmente pode levar a redundncias. Lido cuidadosamente, todavia,
percebeu-se que este no redundante a repetio desnecessria , pois as ideias trazidas
nos versos repetidos ora reforam as imagens, ora as atualizam. Da observou-se que a forma
do poema chamou mais a ateno, sua suposta repetio, quebra de expectativas e
reconfigurao de ideias. O grupo percebeu-o como um poema que se comunica com o leitor,
que o incomoda, que o constrange e, por isso, fruto de muitas indagaes.
Um segundo ponto de estranhamento percebido na obra deu-se na sintaxe utilizada, a
qual subverte a norma culta que elege como correta a forma havia uma pedra, ao invs do
tinha uma pedra. O importante para a leitura do poema a partir desse aspecto puramente
lingustico pde recair na ideia de que a pedra algo pertencente ao caminho, indissocivel
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desse interpretao que no seria sustentada se o verbo haver, semanticamente carregado de
mobilidade e sobreposio, estivesse relacionado pedra.
Outro aspecto formal observado recaiu no quiasmo existente entre os segundo e quarto
versos (tinha uma pedra no meio do caminho e no meio do caminho tinha uma pedra,
respectivamente), nos quais d-se o quiasmo pelo cruzamento de grupos sintticos paralelos e,
no meio destes, h o verso nico tinha uma pedra, que toma a posio central. Disso atentou-
se para a possibilidade de que a imagem da pedra no meio do caminho seja reforada ao
isolar-se (ou seja, destacar-se) quando essa imagem se coloca entre o caminho ou caminhos,
se a segunda ocorrncia do termo for j diferente da primeira cruzado pela disposio dos
versos anterior e posterior.
Partindo-se para a segunda estrofe, percebeu-se que esta prope ao mesmo tempo uma
quebra no poema e a retomada da estrofe anterior. A quebra, na ordem da expectativa
frustrada do leitor acostumado com a repetio dos versos precedentes, se d pelos versos
Nunca me esquecerei desse acontecimento /na vida de minhas retinas to fatigadas. A partir
desses versos, o tom de rememorao e subjetividade do eu-potico surge em oposio
imagem realista da pedra no caminho apresentada at ento. Na sequncia do poema, contudo,
tanto a subjetividade quanto a objetividade unem-se quando h a repetio dessas duas ideias
do poema em um bloco nico: Nunca me esquecerei que no meio do caminho /tinha uma
pedra /tinha uma pedra no meio do caminho /no meio do caminho tinha uma pedra. Mais
uma vez, a imagem da pedra do caminho reforada, porm agora atualiza-se na observao
subjetiva do narrador, que nesse instante j pode estar vendo ou relembrando a pedra de
outra(s) forma(s).
Ainda no mbito do grupo participante no projeto, observamos a grande relevncia
dada aos aspectos lingusticos, estruturais e que tais consideraes foram capazes de gerar
interpretaes plausveis do poema, no sentido de serem verificveis no mesmo. Tais
interpretaes, por outro lado, no sustentam toda a obra, mas podem sustentar, ou seja, servir
de base para uma anlise mais completa e satisfatria. A partir desses elementos considerados,
portanto, pde-se questionar, ainda no plano interno, os sentidos empregados pelas imagens
principais da pedra e do caminho. Uma leitura mais imediata acusou a pedra como smbolo
das dificuldades que o ser humano encontra no caminho, este, por sua vez, analogia para a
vida. Tal leitura simples (e no pejorativamente simplista) parece ser mesmo uma prpria
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intentio operis, para citar Eco, visto que nesse poema se mostram talvez mais interessantes as
peculiaridades da composio, gerando o seu efeito esttico de estranhamento.
Feitas tais consideraes acerca do poema de Drummond, faz-se mister apontar para o
exerccio interpretativo aqui apresentado, atentando principalmente para as peculiaridades da
linguagem empregada e que responderam em grande parte pela repercusso controversa da
obra.
Por outro lado, assumindo a perspectiva ampliadora do comparatismo, procuramos
explorar novamente (uma vez que esse exerccio j fora feito nos encontros anteriores) o texto
artstico como uma obra que , ao mesmo tempo, fechada como um produto estrutural esttico
e aberta quanto aos seus sentidos, sentidos esses textuais e/ou intertextuais, todos vlidos
desde que expandam o alcance da obra em questo.
Assim, apresentamos ao grupo um dos intertextos desse poema, ou seja, o texto com o
qual possvel relacionar o texto primeiro (o poema No meio do caminho, de Drummond): A
divina comdia, de Dante Alighieri, ou, no caso, os primeiros versos da obra:
Nel mezzo del camin de nostra vita
mi retrovai por una selva oscura:
ch la viritta via era smarrita.
(A meio caminho de nossa vida
fui me encontrar em uma selva escura:
estava a reta a minha via perdida.)
10
A partir dessa leitura, pudemos perceber que a interpretao at ento praticamente
reduzida das alegorias logra em importncia. Isso porque dessa associao intertextual no se
evidencia outra leitura seno a nfase na pedra drummondiana, agora fortemente considerada
em oposio selva dantesca, a qual possvel transpor, inclusive com a ajuda de um guia,
Virglio. A pedra, ao contrrio, intransponvel, ela pertence ao caminho (ideia, como j
mencionado, dada pelo verbo ter em contraste com o verbo haver, que d mais mobilidade ao
seu objeto sinttico). Assim, pode-se dizer que a leitura alegrica/metafrica feita somente em
relao ao poema de Drummond, se antes de menor relevncia, adquire maior significado para
o leitor ao ser comparada ideia dantesca pensada. Da, por conseguinte, surgiram outras
leituras de carter metafrico, numa cadeia alongada de possibilidades.
guisa de concluso, ressaltamos que a opo em trazer tal discusso acerca de No
meio do caminho se deu pelo entendimento de que esse tenha sido um momento de profcua
10
Traduo de talo Eugnio Mauro (em ALIGHIERI, Dante. A Divina Comdia. So Paulo: Editora 34, 1998. 3
volumes).
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reflexo sobre o objeto literrio (o texto em si, a construo lingustica, a forma, as
referncias) e tambm sobre suas relaes com outros textos, que antes de esgotar as leituras
do texto primeiro, ampliam o seu alcance. Assim, a partir de toda a reflexo terica e crtica
que nos norteou, propusemos, ao longo do projeto, o envolvimento nosso e dos alunos com
leituras crticas de obras de Drummond e outros autores, almejando sempre produzir a partir
delas vrias leituras e, por isso, nenhuma leitura ltima, considerando o texto literrio essa
entidade que transforma incessantemente no s as relaes que as palavras entretm
consigo mesmas [...], mas estabelece com cada leitor relaes subjetivas que o tornam um
texto mvel (modificante e modificvel) (DONOFRIO, 2006, p. 14).
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Ensinar literatura x ensinar leitores
MACHADO, Edna Souza
*
Resumo: Este trabalho visa apresentar uma breve reflexo sobre a importncia de professores leitores e crticos
cujo trabalho docente influenciar o interesse dos alunos na prtica eficaz da leitura literria. Essa reflexo
fundamental para que os profissionais da educao, ao deparar-se com o ensino de literatura em sua prtica
docente, estejam aptos a no somente ensinar literatura, mas tambm a formar leitores. Para isso necessrio que
este profissional tenha total domnio do seu objeto de trabalho, o livro literrio e no s, que seja um leitor
vido de certa gama de textos que possibilitem aumentar os horizontes na leitura de seus alunos. Alm disso, um
conceito literrio bastante pontual na atualidade a noo de intertextualidade que deve ser levada em
considerao no apenas para que alunos e professores compreendam o sentido da literatura, mas tambm
porque ela facilita o processo de ensino que, adaptando-se a era globalizada exige cada vez mais um trabalho
interdisciplinar.
Palavras-chave: Literatura. Ensino de literatura. Formao de leitores.
Introduo
Apesar da diversidade de linhas de pensamento, consenso que o domnio da lngua
tem estreita relao com a possibilidade de plena participao social do indivduo, pois atua
como meio de comunicao e acesso informao e expresso do pensamento humano.
Porm, os mecanismos de excluso, que agem por trs da imposio das normas gramaticais
conservadoras no ensino da lngua, mantm uma grande parcela da populao distante dos
padres ditos ideais para o uso desta. A escola contribui com isto ao enfatizar o cdigo escrito
em supresso de outras formas de manifestao cultural como os conhecimentos de
transmisso oral, por exemplo, desprestigiando todas as demais possibilidades de leitura que
os indivduos possam realizar.
Agravando ainda mais este quadro, no que diz respeito ao ensino da Literatura a
realidade educacional brasileira aponta para a defasagem quanto ao acesso dos alunos a obras
e autores, (muitas vezes utilizando-se de resumos e fragmentos destas), dando nfase s obras
ditas cannicas e a superficialidade no estudo da teoria literria. Aliado a isto, um sistema
educacional precrio quanto a recursos materiais e humanos que em quase nada contribuem
para a construo de um espao favorvel promoo de prticas de leitura.
*
Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: [email protected].
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Entretanto, dentro do contexto fechado e engessado dos sistemas que integram os
processos de ensino-aprendizagem h uma brecha que pode ser utilizada a fim de quebrar o
crculo vicioso da excluso social e tornar todo aluno um ser capaz de transpor as barreiras de
classes e tornar-se agente na construo da sociedade. Roland Barthes acredita que s
possvel libertar-se dos meios de opresso, inclusive impostos pelo prprio sistema lingstico
ao qual todo indivduo est submetido, atravs do uso artstico da linguagem:
Na lngua, portanto, servido e poder se confundem inelutavelmente. Se chamamos
de liberdade no s a potncia de subtrair-se ao poder, mas tambm e sobretudo a de
no submeter ningum, no pode ento haver liberdade seno fora da linguagem.
Infelizmente, a linguagem humana sem exterior: um lugar fechado. S se pode
sair dela pelo preo do impossvel: pela singularidade mstica [...] a ns s restam,
por assim dizer, trapacear com a lngua, trapacear a lngua. Essa trapaa salutar, essa
esquiva, esse logro magnfico que permite ouvir a lngua fora do poder, no esplendor
de uma revoluo permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.
(BARTHES, 1988, p 16)
A leitura de obra literria implica no reconhecimento de um sentido que pode estar
alm do seu contexto de produo, pois, a leitura pressupe a participao ativa do leitor na
construo de sentidos. Portanto, para ler um texto literrio, no basta conhecer o cdigo
verbal escrito. A seleo dos significados se opera por fora do contexto da experincia
humana e isto inclui tambm a transmisso oral. Est a, portanto a alternativa para a escola
sair do crculo vicioso da excluso social, oferecendo ao aluno, seja qual for a classe a qual
pertence, a oportunidade de construir seu prprio sentido atravs da literatura.
importante compreender que a leitura e o estudo de obras literrias transcendem a
ideia de simples componente curricular. Eles so partes integrantes da formao do indivduo
como sujeito e produto da sociedade. A literatura adquire status de extrema importncia, pois,
sendo uma representao da realidade, feita por pessoas imersas em uma sociedade, reflete e
refrata esta realidade (BAKHTIN, 1997, p.41) fazendo com que toda e qualquer leitura de
mundo feita por um indivduo seja influenciada pelas leituras prvias histricas e culturais da
sociedade em que vive.
Antonio Candido (1995) defende que a literatura, como toda expresso artstica deve
ser encarada como bem de necessidade bsica e, por isso, no pode ser considerada bem de
apenas um grupo social ou indivduo, mas pertence humanidade como um todo.
Em vista disto, necessrio refletir sobre a importncia de uma formao de
professores para o ensino da literatura desde as sries iniciais a fim de apontar caminhos para
a consolidao da prtica da leitura literria dentro da escola como elemento formador
cultural e de conscincia crtica social. Essa reflexo fundamental para que os profissionais
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da educao, ao deparar-se com o ensino de literatura em sua prtica docente, estejam aptos a
no somente ensinar literatura, mas tambm a formar leitores.
Outra questo a ser discutida a influncia da pessoa do educador na prtica de leitura
dos alunos. O professor que se prope a ensinar literatura, precisa a priori, ter amplos
conhecimentos sobre seu objeto de trabalho, adquirir certa bagagem literria que lhe
possibilite conduzir a leitura dos alunos a patamares cada vez mais amplos.
Desenvolvimento
O homem um ser que se constitui em sociedade, as leituras de si e do mundo que o
circunda perpassam inevitavelmente a projeo que a sociedade faz deste mundo e deste
indivduo. A literatura surge ento da necessidade de se representar esta projeo atravs da
linguagem, fazendo com que toda e qualquer leitura individual do mundo passe a ser coletiva,
influenciada pelas leituras prvias histricas e culturais da sociedade.
Regina Zilberman afirma que o ato de ler qualifica-se como uma prtica
indispensvel para o posicionamento correto e consciente do indivduo perante o real (1991,
p. 17). Entretanto, se a este indivduo for negado o acesso ao objeto de estudo da literatura, ou
seja, obra literria, esta compreenso prejudicada, ampliando as distncias entre quem
detm o conhecimento (e, por assim dizer, o poder), e os que a ele so subjugados.
A escola deveria agir como contrapeso a estas desigualdades, fazendo a conexo
entre os indivduos e os objetos culturais, pois, como escreve Regina Zilberman:
[...] a sala de aula um espao privilegiado para o desenvolvimento do gosto pela
leitura, assim como um campo importante para o intercmbio da cultura literria,
no podendo ser ignorada, muito menos desmentida sua utilidade. Por isso, o
educador deve adotar uma postura criativa que estimule o desenvolvimento integral
da criana. (ZILBERMAN, 2003, p.16)
Os mecanismos de excluso, que agem por trs da imposio das normas gramaticais
conservadoras no ensino da lngua, mantm uma grande parcela da populao sob o mito de
que O domnio da norma culta um instrumento de ascenso social (BAGNO, 1999). A
escola contribui com isto, pois, ao intentar promover esta ascenso para que algum se
enquadre dentro da sociedade, enfatiza o cdigo escrito em supresso de outras formas de
manifestao cultural como os conhecimentos de transmisso oral, por exemplo,
desprestigiando todas as demais possibilidades de leitura que os indivduos possam realizar.
Assim, a distncia entre letrados e iletrados aumenta com a interveno da escola.
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A leitura de obra literria implica no reconhecimento de um sentido que pode estar
alm do seu contexto de produo, pois, a leitura pressupe a participao ativa do leitor na
construo de sentidos. Portanto, para ler um texto literrio, no basta conhecer o cdigo
verbal escrito. A seleo dos significados se opera por fora do contexto da experincia
humana e isto inclui tambm a transmisso oral. Est a, portanto a alternativa para a escola
sair do crculo vicioso da excluso social, oferecendo ao aluno, seja qual for a classe a qual
pertence, a oportunidade de construir seu prprio sentido atravs da literatura.
A escola necessita, para isso, dispor de certa quantidade de textos literrios, sem
critrios rgidos de classificao ou sistematizao. O texto literrio no pode ser utilizado
como pretexto para o ensino da lngua materna ou outra atividade intencional de cunho
moralizante. Entretanto deve ser considerada a seleo dos textos conforme faixa etria,
interesse e amadurecimento do leitor. As autoras BORDINI & AGUIAR defendem que: A
idade do leitor influencia seus interesses: a criana, o adolescente e o adulto tm preferncia
por textos diferentes. Mesmo dentro de cada perodo da vida humana, esses interesses
modificam-se medida que se d o amadurecimento do indivduo. (1993, p.19)
Portanto, dispor a leitura literria de forma irresponsvel pode ocasionar a inutilidade
da proposta de trabalho desta em sala de aula. sabido que a quantidade de leitura no
determinante para se formar um bom leitor, mas sim, a qualidade com que esta leitura feita.
Da a necessidade da presena do professor como orientador das leituras feitas pelos alunos
em sala de aula. A qualidade de leitura determinada pela maneira como a escola leva at o
aluno a obra literria, principalmente na sala de aula, tendo o professor como mediador desta
leitura.
Ao professor, no entanto, cabe a necessidade de obter uma bagagem literria,
composta pela leitura de uma lista considervel de obras que lhe permita traar um horizonte
seguro na hora de dirigir as leituras de seus alunos. O professor de literatura necessita, a
priori, ser um leitor vido formado por uma bagagem literria que lhe sirva de alicerce para
vislumbrar os caminhos que dever seguir com cada turma, obviamente para tal, dotado de
sensibilidade aos apelos silenciosos dos leitores em formao.
A questo que se levanta aqui a quantidade de ttulos necessrios para que este
professor de literatura possa ser considerado um eficaz formador de leitores. A literatura s
exercer plenamente sua funo se sua interpretao e compreenso resultarem de uma ao
que deve ser lapidada a cada dia: a prtica da leitura. certo que nem todas as leituras feitas
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so agradveis ou prazerosas, mas a compreenso mais aprimorada e profunda de um
determinado texto somente se far possvel no exerccio constante da leitura. Ler precisa ser
praticado, pois, medida que se adquire fluncia na leitura, possvel avanar estgios de
penetrao no texto que permitiro compreend-lo de maneira mais eficiente.
Sendo a escola o local onde se adquire os instrumentos para a prtica da leitura por
meio da decifrao do cdigo, o trabalho com a mesma deveria aliar sua prtica ao seu uso
libertador, instrumentalizando o aluno para tornar-se um leitor competente a ponto de
encontrar na literatura desafios a seu intelecto bem como o deleite para a sua necessidade
artstica.
comum ouvir-se reclamaes dos professores do ensino mdio e superior a respeito
das dificuldades de expresso escrita por parte dos alunos ingressantes e isto indicativo da
falta de prtica de leitura ao longo de toda a formao bsica. Entre os alunos do magistrio e
das licenciaturas esta realidade se torna um problema grave, pois sero eles que
provavelmente formaro as futuras geraes de leitores.
Vrias questes neste sentido podem ser levantadas: O que deve ter em mente o
professor que trabalha literatura? Como deve selecionar as obras a serem lidas? Como
perceber o espao de leitura subjetiva feito por seus alunos e como intervir de forma que os
conduza a transcend-lo? Que caractersticas so necessrias a um professor que se dispe a
trabalhar com literatura? Quais os pr-requisitos necessrios para tornar-se no somente
professor de literatura, mas formador de leitores?
papel do professor, enquanto leitor especializado atuar como um facilitador na
leitura e produo de sentido dos leitores em formao, que no percebem ainda certas
nuances presentes no texto literrio. No seria possvel deixar de destacar a importncia do
conhecimento de conceitos literrios bsicos, sobretudo os de maior uso na atualidade como o
conceito da Intertextualidade.
Os estudos comparados em literatura tm-se tornado um importante objeto de estudo
da teoria literria contempornea. A produo cultural, como um todo, oferece uma gama de
possibilidades de intercesso principalmente da literatura que a arte de transcriar a
realidade atravs da palavra com diferentes reas do conhecimento humano (REMAK,
1994, p. 175). Em si, o texto literrio j uma rede de conexes, um conjunto de textos que
dialogam entre si implcita ou explicitamente e que, muitas vezes, dialogam com outras
expresses artsticas como a pintura, a escultura, a fotografia, o cinema, etc.
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Tambm por exigncia da intertextualidade, o professor necessita estar sempre
atualizado quanto ao que est sendo produzido em termos de cultura. Ler livros literrios
apenas uma das atividades que devem constar no cotidiano do professor. Ele tambm deve
buscar outras fontes de cultura: visitar museus, exposies artsticas, ir ao cinema, ao teatro,
alm de estar informado sobre os acontecimentos atuais. Tais ferramentas lhe sero teis na
hora de motivar e conduzir as leituras dos educandos, tecendo relaes, e integrando
conhecimentos.
Tal prtica tambm se torna vlida para o trabalho interdisciplinar, to solicitado
atualmente s praticas pedaggicas. Ana Mae Barbosa resgata a ideia de totalidade para o
conhecimento:
[...] historicamente podemos apontar como fundamento da interdisciplinaridade a
ideia de totalidade, paulatinamente substituda pela ideia do inter-relacionamento do
conhecimento. Inter-relacionar as diversas disciplinas para atingir a compreenso
orgnica do conhecimento, ou abarcar a globalidade do conhecimento, foi uma
inteno educacional defendida primeiramente pelas teorias humansticas da
educao. Para algumas destas teorias, sendo o homem um ser total, global, deveria
ser conduzido busca do conhecimento total, global do universo. (BARBOSA,
1985, p.19)
A partir da postura de um professor de literatura ou de Portugus no Ensino
Fundamental, cujas ideias relacionem a educao vida, e cuja prtica de leitura seja
perceptvel atravs das inseres do conhecimento literrio dentro destas relaes, possvel
formar um perfil de aluno aberto ao ensino da leitura e da literatura. Em outras palavras,
necessrio salientar a importncia do incentivo do professor e, principalmente, sua motivao.
Um professor empolgado, fascinado por literatura, que mostra com exemplo a importncia do
hbito de leitura, com certeza um agente fundamental para a formao de alunos leitores. O
educador Rubem Alves diz que:
[...] todas as coisas que existem se dividem em duas ordens distintas. A ordem do
uti e a ordem do frui. Uti = o que til, utilizvel, utenslio. Usar uma coisa
utiliz-la para se obter uma outra coisa. Frui = fruir, usufruir, desfrutar, amar uma
coisa por causa dela mesma. A ordem do uti o lugar do poder. Todos os
utenslios, ferramentas, so inventados para aumentar o poder do corpo. A ordem do
frui, ao contrrio, a ordem do amor coisas que no so utilizadas, que no so
ferramentas, que no servem para nada. Elas no so teis; so inteis. Porque no
so para serem usadas mas para serem gozadas.(ALVES, 2005, p.13)
Dentro desta linha de reflexo pode-se encaixar a literatura como pertencente ordem
do frui, entretanto, seu ensino corresponde ao til. Ao se pensar em ensino da literatura,
ambas as concepes devem caracterizar a reflexo docente, pois uma no caminha sem a
outra. A instrumentalizao da leitura faz-se necessria ao amadurecimento do leitor e sua
fruio o incentiva a buscar inovao e ampliao da complexidade dos textos a serem lidos.
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Assim ao trabalhar com a literatura, o professor deve ter sempre em mente que o
entusiasmo com que encarar seu objeto de trabalho influenciar o interesse dos alunos com
relao a este. A leitura da obra literria serve aos dois mbitos propostos por Rubem Alves, o
da instrumentalizao e da fruio. Cabe ao professor utiliz-lo de maneira mais proveitosa
possvel utilizando, alm do conhecimento adquirido em sua formao docente, a bagagem
cultural proveniente de suas leituras.
Concluso
Reiteradamente se afirma a importncia da Literatura como instrumento de educao e
formao do homem. Antonio Candido diz que a literatura no corrompe nem edifica, mas
humaniza em sentido profundo porque faz viver (2002, p. 806). Ainda pela viso de
Candido, ela tambm exerce funo social, pois leva o leitor e identificao prpria e de seu
universo vivencial representados na obra literria.
A literatura a transfigurao do real, nela esto retratados os sentimentos humanos e
as diversas formas de relao do homem com aquilo que sente. Na literatura, como num
espelho convexo, esto espelhadas as verdades de uma mesma condio humana. Ele as
reflete, mas possibilita a percepo de outras formas dependendo do ponto de onde so vistas.
Sua ao libertadora faz com que se enquadre na lista de bens de necessidade bsica,
sem antes perpassar o desafio de recuperar seu prestgio perdido ao longo dos anos, sua
posio dentro da prtica escolar e seu verdadeiro sentido na conscincia de professores,
estudantes e sociedade como um todo.
O papel do profissional do ensino da Literatura deve sempre transcender ao de leitor
comum. Ele precisa pautar sua experincia literria e artstica na busca pela destreza, a fim de
conduzir sua prtica docente reflexo constante, e frequente atualizao. Tal prtica
conduzir o leitor em formao a imit-lo aflorando, assim, o interesse pela leitura.
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O acordo entre fbula e alegoria em A Revoluo dos Bichos: a humanizao do
animal e a animalizao do homem
KLEIN, Paula
*
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o livro A revoluo dos bichos (1945), de George
Orwell, frente a sua esttica literria, considerando principalmente sua composio enquanto fbula e enquanto
alegoria. Posteriormente, pretendeu-se relacionar essa composio s diferentes perspectivas polticas
apresentadas na mesma, notando como isso retratado no contexto de produo da obra, bem como isso pode ser
aplicado aos nossos dias. Como embasamento terico, se utilizaram principalmente as consideraes de Avelar
(2003) e Londero (2008) a respeito de alegorias, bem como Cornelsen (2009) frente a governos autoritrios e
totalitrios. Como resultados, pode-se constatar que a alegoria demonstra a animalizao do homem, essas
atitudes autoritrias que nos cercam em todos os perodos, ou seja, por meio da alegoria o autor permite que
aquilo que acontece em seu contexto de produo se torne atemporal. Por outro lado, por meio da fbula, pode-se
constatar que h uma humanizao dos animais, essas personagens com caractersticas e atitudes humanas
acabam por demonstrar que diversas situaes podem assumir esse mesmo topoi, esse mesmo lugar-comum.
Finalizando, pode-se concluir que uma das temticas mais abordadas na obra a manipulao, o controle de
massas, o qual um dos principais pontos determinantes dos regimes totalitrios.
Palavras-chave: Represso. Totalitarismo. Fbula. Alegoria. Memria.
Introduo
George Orwell escreveu a obra A revoluo dos bichos, no ano de 1945
11
, no mesmo
ano em que eclodem as bombas de Hiroshima e Nagasaki, bem como se d o fim da Segunda
Guerra Mundial. O autor tambm vivenciou a Guerra Civil Espanhola como combatente
voluntrio no lado republicano, o que demonstrava sua inclinao milcia marxista/trotskista
na Guerra Civil, alm de militar o comunismo entre o proletariado. A obra A revoluo dos
bichos (1945) fato que promove uma conscincia das profundas injustias sociais e a
perspectiva do autor de oposio ao totalitarismo, para aquele que for capaz de entender suas
alegorias e ironias.
No presente trabalho, a anlise se dar frente a essa obra de carter satrico, buscando
relacionar as interpretaes possveis tanto alegoria quanto fbula moderna, uma vez que
se pode considerar que ambas compem essa narrativa. Posteriormente, pretende-se
comprovar os ideais mais marcantes na obra, tais como o totalitarismo, o capitalismo, o
*
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].
11
Ainda que utilizemos a edio de 1982, sempre que referenciado no texto, optou-se por manter o ano original,
1945, para uma melhor ilustrao. Somente em citaes se usar a referncia a edio do livro consultado
(1982).
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socialismo e o comunismo, associando-os as personagens e representaes da obra. Por
ltimo, busca-se relacionar os ideais aos conceitos de alegoria e fbula, demonstrando
possveis interpretaes para este tipo de associao.
A Revoluo dos Bichos
Segundo a narrativa, a fazenda Granja do Solar passa por uma revoluo em que os
animais expulsam o proprietrio, Sr. Jones, e resolvem partilhar a organizao da fazenda,
chamando-a aps a revoluo de Granja dos Bichos. Porm, os ideais de igualdade e
cooperativismo, ficam somente neste plano, uma vez que os porcos demonstram uma
superioridade intelectual e se encarregam de administrar a fazenda. Como consequncia, os
ideais iniciais so distorcidos para atender s necessidades e futilidades dos porcos, criando
um governo tirano e brutal.
Desta forma, pode-se notar na narrativa diferentes ideais construdos por meio de
alegorias e metforas, como os conceitos iniciais criados pelos animais como o
marxismo/leninismo, comunismo, socialismo; bem como o autoritarismo dissimulado por
esses ideais do princpio. Esses ideais aparecem muitas vezes personificados como
determinado animal ou determinada espcie de animais, tornando a relao alegoria/fbula
imprescindvel para a compreenso dessas concepes.
Dentre os humanos, pode-se destacar principalmente o Sr. Jones, o proprietrio
original da Granja Solar. Ele provavelmente baseado em Czar Nicholas II. H tambm
diversas implicaes que ele representa um capitalista incompetente, explorador e alcolatra.
Jones fora, no passado, um patro duro, porm eficiente. Agora estava em
decadncia. Desestimulado com a perda de dinheiro numa ao judicial, dera para
beber alm do conveniente. s vezes passava dias inteiros recostado em sua cadeira
de braos, na cozinha, lendo os jornais, bebendo e dando a Moiss cascas de po
molhadas na cerveja. Seus pees eram vadios e desonestos, o campo estava coberto
de erva daninha, os galpes necessitavam de telhas novas, as cercas estavam
abandonadas e os animais andavam mal alimentados. (ORWELL, 1982, p.20)
Conforme nota-se na passagem, a situao retrata um descaso por parte do
administrador, todos so fatos comuns para a motivao de uma revolta, tais como cercas
que podem ser interpretadas como um abandono das fronteiras. O fato de que a personagem
passava o dia em sua cadeira de braos pode ser interpretado como uma aluso ao trono do
Czar. Mais passagens afirmam a despreocupao e o descuido de Sr. Jones, como em: O Sr.
Jones, proprietrio da Granja do Solar, fechou o galinheiro noite, mas estava bbado demais
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para lembrar-se de fechar tambm as vigias. (ORWELL, 1982, p.5), comprova-se uma
frequncia de alcoolismo e uma despreocupao para com os animais.
Dentre os porcos, pode-se dividir em dois grupos: os idealistas e revolucionrios,
sendo estes principalmente o Velho Major e Bola-de-Neve, e os revolucionrios que, ao
chegar ao poder, tornam-se autoritrios e tiranos, destacando-se Napoleo e seu fiel seguidor
Garganta. Essa raa marcada pela superioridade intelectual aos demais animais, como pode-
se notar em Os porcos no trabalhavam, propriamente, mas dirigiam e supervisionavam o
trabalho dos outros. Donos de conhecimentos maiores, era natural que assumissem a
liderana (ORWELL, 1982, p.29). Outro aspecto significativo destacado na obra o fato de
que todos os demais porcos so castrados, com exceo de Major, Bola-de-Neve e de
Napoleo (ORWELL, 1982, p.18). Neste sentido, o falo tem grande relao com a situao de
poder, influenciando na liderana que estes dois porcos iro exercer, tambm fazendo aluso a
situao de dominao que Napoleo exercer no decorrer da obra. Deste modo, faz-se
necessrio apresentar as seguintes personagens:
O velho Major, podendo ser baseado tanto em Lnin quanto em Marx. O velho Major
serve de inspirao que alimenta a ideologia por todo o percurso, era sbio e idealista,
porm, morre sem ver a Revoluo de fato. O Major no s representa a personalidade de
Karl Marx ou Lnin, mas tambm a personificao do poder da fala e como ele pode e foi
usado para evocar e inspirar as pessoas. Deste modo, nota-se a complexidade da composio
das personagens, uma vez que encontramos alegorias e elementos da fbula em um mesmo
personagem: referncias ao contexto de produo da obra e, ao mesmo tempo, elementos
tpicos da sociedade, que servem de exemplo ao leitor. O velho Major representa toda gerao
que, no estando contente com o antigo regime, inspirou as geraes mais jovens a se rebelar
contra o regime sob o qual estavam vivendo.
Napoleo e Bola-de-Neve so os sucessores do Velho Major, que motivam a
Revoluo. Bola-de-Neve um intelectual apaixonado, expansionista e muito mais honesto
sobre seus motivos do que Napoleo (podendo ser inspirado em Leon Trotsky). Tinha ideais
mais colaborativos, esperava que a Granja dos Bichos servisse de exemplo para outras
Granjas, para outros grupos de animais fazerem sua revoluo. Bola-de-Neve ganha a lealdade
da maioria dos animais, mas expulso pelos ces de ataque de Napoleo (Trotsky foi levado
para o exlio no Mxico, onde foi assassinado), servindo ainda como bode expiatrio para
Napoleo. Este, por sua vez, almeja o total controle dessa nova administrao, tornando-se o
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ditador que se instaura. Napoleo pode ser comparado a Joseph Stalin, ele usa seus policiais
militares (nove ces que manteve em segredo) para cimentar o seu poder, usa a fora para
incutir medo nos outros animais.
Garganta se torna o orador pblico de Napoleo. Inspirado na imprensa em geral,
utiliza-se de recursos da linguagem para desculpar, justificar e exaltar todas as aes de
Napoleo. Em toda a obra, est explcita a questo de que a poltica faz uso da linguagem para
manipular. Quando a populao comea a desconfiar, ele geralmente usa a ameaa do retorno
do Sr. Jones, como se nota na seguinte passagem, em que se desconfia que os porcos recebam
mais alimento que os outros animais:
- Camaradas! gritou. No imaginais, suponho, que ns, os porcos, fazemos isso
por espirito de egosmo e privilgio. Muitos de ns at nem gostamos de leite e de
ma. Eu, por exemplo, no gosto. Nosso nico objetivo ao ingerir essas coisas
preservar nossa sade. O leite e a ma (est provado cientificamente, camaradas)
contm substncias absolutamente necessrias sade dos porcos. Ns, os porcos,
somos trabalhadores intelectuais. A organizao e a direo desta granja repousam
sobre ns. Dia e noite velamos por vosso bem-estar. por vossa causa que bebemos
aquele leite e comemos aquelas mas. Sabeis o que sucederia se os porcos
falhassem em sua misso? Jones voltaria! Sim, Jones voltaria! Com certeza,
camaradas. (ORWELL, 1982, p. 37)
Como porta-voz, Garganta apresentava muitas estatsticas, demonstrando que nunca
antes os animais estiveram to bem embora comessem menos e trabalhassem mais, alm de
possurem menos liberdade para expressar-se. Como se comprova na passagem anterior, este
usa de artifcios tais como referencia cincia (um argumento de autoridade) e a retrica em
que apela para o pathos (funo emotiva no discurso), por exemplo, quando justifica as
atitudes dos porcos para o bem geral da granja, por vossa causa (1982, p.37). Do mesmo
modo, nota-se a recorrncia em todo o livro do termo camarada, que por sua vez tenta
mascarar o discurso autoritrio destes porcos.
Deste modo, os porcos (a classe dominante) passam a parecer-se cada vez mais com os
homens, seus maiores inimigos inicialmente. Uma das possveis interpretaes para a poltica
adotada pelos porcos seria que a iluso revolucionria breve, e o poder absoluto corrompe
aqueles que o exercem. Porm, nesse sentido, no se pode generalizar a obra como um
clssico da propaganda anticomunismo, pois suas lies so referidas a um contexto
especfico: a crtica ao totalitarismo de Stalin, a sua manipulao das informaes,
aproveitando-se dos ideais comunistas para mascarar seu discurso autoritrio. Neste caso,
podemos considerar essa narrativa como alegrica, sendo sua criao uma stira poltica
stalinista que teria trado os princpios da Revoluo Russa de 1917.
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Todos os outros animais (cavalos, ovelhas, cachorros, etc.) so os responsveis pela
produo da granja, ou seja, dessa classe que sai toda a mo de obra da fazenda. Neste
sentido, nota-se que esses animais nunca produziram tanto e por to baixas condies de
alimentao e moradia. Tomados pelo comodismo, muitos so resistentes mudana e no
refletem sobre as mximas e conceitos que lhe so impostos. Na poca do Sr. Jones, tambm
foram resistentes mudana, insistiam no dever de lealdade ou no medo do incerto,
principalmente marcado pela gua branca Mimosa: - Continuar havendo acar depois da
revoluo? (...) E eu ainda poderei usar laos de fita na crina? (ORWELL, 1982, p.19), esta
veemente repreendida, pois os animais no devem usar nada humano. Mimosa pode
representar as pessoas de classe alta, a burguesia que fugiu da URSS aps a Revoluo Russa,
pois, da mesma forma, ela sai rapidamente para outra fazenda quando a revoluo comea a
tornar-se represso.
Tambm os outros cavalos Sanso e Quitria representam o proletariado. Sanso
uma das personagens mais populares, exemplar da classe operria: leal, dedicado e forte,
porm no muito inteligente. Como se nota em: Seus dois lemas: Trabalharei mais ainda
e Napoleo tem sempre razo pareciam-lhe resolver todos os problemas (ORWELL, 1982,
p.63), sua grande falha sua confiana cega nos lderes, deste modo, ele muito explorado
pelos porcos.
Do mesmo modo que os cavalos, as ovelhas mostram a maioria muda do proletariado
no meio da guerra. O lema criado pelos porcos especialmente para as ovelhas, "Quatro pernas
bom, duas pernas ruim!" (ORWELL, 1982, p.35), demonstrava a dificuldade em decorar os
sete mandamentos, comprovando assim a baixa instruo deste grupo e sua total submisso
frente aos superiores, alm de dissiparem essas mximas de forma mecanicista, repetidamente
para que todos as fixassem.
O que se assiste, no geral desses demais personagens, uma pardia grotesca da
sociedade humana, marcada por seus tipos sociais e atitudes. Considerando a tentativa de uma
conscientizao do que se trata um governo totalitrio e como as massas reagem a este,
tambm se pode entender o livro como uma fbula, pois retrata animais humanizados, em
situaes do cotidiano e, ao final, tenta passar algum tipo de aconselhamento para as prximas
geraes.
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A alegoria na obra: a animalizao do homem
Sendo, ento, A revoluo dos bichos (1945) uma fico que remete a seu tempo,
atravs de uma alegoria, a obra tem seu sentido enlaado com determinado contexto. De
outra forma, sem a conexo com o perodo em que foi escrita, se perderiam muitas das
metforas ou smbolos utilizados, ou seja, somente se nota as realidades demonstradas por
meio do conhecimento ou busca deste conhecimento referente Revoluo Russa. De acordo
com Avelar (2003), no livro Alegorias da derrota, pode-se entender a alegoria:
Como imagem arrancada do passado, mnada que retm em si a sobrevida que
evoca, a alegoria remete antigos smbolos a totalidades agora quebradas, datadas,
inscrevendo-as na transitoriedade do tempo histrico. A alegoria os l como
cadveres (2003:20). (...) o que est em jogo uma emblematizao do cadver:
paralisao diegtica, resistncia a uma resoluo reconfortante (AVELAR, 2003,
p.17).
Neste sentido, nota-se a paralisao do sentido daquela poca, ainda que possamos
entender a narrativa como metforas para muitas situaes do nosso dia-a-dia, a alegoria
prende o sentido a determinado contexto que quer ser resgatado. Conforme Avelar (2003) na
citao anterior, a alegoria inscreve os smbolos em determinado tempo histrico, ainda que
possamos adaptar a outros contextos, sabe-se que a referncia se trata a um tempo especfico
nessa obra.
Tratando do contexto de produo, no se pode esquecer que a obra presente foi
construda aps uma ditadura vivenciada pelo autor. Nesse caso, a citao de Richard (1999) a
seguir corrobora para uma reflexo a respeito de uma ressignificao da memria:
Qualquer que seja o motivo doloroso da renncia, a condio psditatorial se
expressa como perda do objeto em uma marcada situao de luto: bloqueios
psquicos, dobras libidinais, paralisaes afetivas, inibies de vontade e do desejo
frente sensao de perda de algo irreconstituvel: corpo, verdade, ideologia,
representao (RICHARD, 1999, p. 325).
De encontro com esse excerto e com a definio de alegoria anterior, pode se afirmar
que a alegoria , no somente uma mnada, mas uma mnada incomunicvel, em que haja a
sensao de perda, de algo irreconstituvel. Esta definio justifica uma linguagem por meio
de smbolos, metafrica, em que se significa algo por meio de outra escolha, a composio
ficcional e no testemunhal, reforada ainda por essa composio alegrica.
Assim como comentou Mario Gonzles (2009), em sua Aula Magna na UFSM no ano
de 2009, a alegoria no uma linguagem externa, mas complexa que exige grande esforo
para a compreenso (GONZLES, 2009). Para ele, ela faz com que busquemos um
paradoxo histrico: espao sem limites que o leitor estabelece com a obra. Mais ainda, ele
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afirmou que a alegoria cria um universo de palavras, e no quer simplesmente retratar
alguma coisa. Ela demonstra o que o escritor estava criando para se expressar (GONZLES,
2009). Deste modo, enquanto mnada incomunicvel, cria-se um universo verossmil, como
toda fico, em que adentramos nesse universo por meio da leitura. Mais que um retrato de
determinada poca ou contexto histrico, a obra a expresso de um ser, que quer transmitir
algum sentimento dessa poca. Para que entendamos esse sentimento, essa subjetividade que
a narrativa apresenta, a ns leitores se torna mais compreensvel quando temos a possibilidade
de associar a narrativa a algo de nossa experincia (o que forma esse paradoxo histrico,
mencionado por Gonzles), propriedade possvel graas a alegoria.
Resumindo, a alegoria mostra uma coisa com as palavras e outra(s) com o sentido,
remete a smbolos ou metforas antigos. Ao utilizar uma linguagem cifrada aps a anistia, o
escritor torna essa obra tambm documental, ou seja, precisa-se do contexto que ela faz
referncia, mas pode-se interpret-la com o mesmo sentimento em diferentes pocas. uma
marca que sempre vai unir quela ferida.
Ao perceber que existem duas realidades - a realidade vivida e a realidade em que se
olha novamente para essas coisas em outro momento - pode-se pensar que, por meio da
alegoria, fixamos a realidade vivida em determinado perodo por meio de outra linguagem, o
que a torna, de certa forma, mais perene. Sempre que tratarmos dessa obra por meio da
alegoria, no h como deixar de tratar do sentido que o leitor precisa resgatar nessa obra. No
como algo dado, como em um testemunho, mas uma construo por parte do leitor.
Como exemplificao, podemos considerar que a ao e as personagens foram criadas
para representar a histria da Unio Sovitica. Numa alegoria que critica tanto a ganncia e a
vaidade dos detentores do poder quanto o desinteresse e a ignorncia da maioria da
populao, pode-se dividir as personagens, principalmente, em: seres humanos (marcas do
capitalismo e da tirania inicial), porcos (entre revolucionrios e gananciosos, que acabam por
ceder ao deslumbramento do poder) o que leva a uma aluso de que os homens ditadores,
acabam por se animalizar - e outros animais (marcas da alienao e da estagnao do
pensamento) tambm seres humanos animalizados, pois nada fazem para mudar a situao
em que se encontram. Deste modo, tanto aquele que oprime como aquele que oprimido
apresentam essa condio animalesca, essa luta pela sobrevivncia em que no mais importa a
humanidade, a hombridade daqueles que o cercam.
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A fbula na obra: a humanizao do animal
De acordo com o Dicionrio Aurlio (2004), fbula uma narrao alegrica cujas
personagens so, em regra, animais, e que encerra lio moral (FERREIRA, 2004: 315). As
fbulas (do Latim fabula, significando histria, jogo, narrativa, conta, conto) se trata
literalmente do que dito. Essas composies literrias geralmente apresentam personagens
que so animais, foras da natureza ou objetos, que por sua vez apresentam caractersticas
humanas, tais como a fala, os costumes, etc. Estas histrias geralmente terminam com um
ensinamento moral de carter instrutivo.
um gnero muito verstil, pois permite diversas
maneiras de se abordar determinado assunto.
Desde seu inicio com Esopo, era por meio dos dilogos entre os bichos e das situaes
que os envolviam que se procurava transmitir sabedoria de carter moral ao homem. Assim,
os animais, nas fbulas, tornam-se exemplos para os seres humanos.
Cada animal simboliza algum aspecto ou qualidade do homem como, por exemplo, o
leo representa a fora; a raposa, a astcia; a formiga, o trabalho etc. uma narrativa
inverossmil, porm com fundo didtico.
Ainda que em sentido mais amplo, por se tratar de uma stira poltica, podemos
considerar A revoluo dos bichos (1945) como uma fbula, uma vez que est em sua
definio o recurso alegoria.
Se considerarmos que a fbula tem sua origem no impulso universal dos homens, para
expressar seus pensamentos em imagens concretas, e que estritamente paralela ao uso da
metfora na linguagem, podemos considerar que a obra narra uma histria de corrupo e
traio e recorre a figuras de animais para retratar as fraquezas humanas e demolir o "paraso
comunista" proposto pela Rssia na poca de Stalin.
A escolha de cada raa de animal para representar as diferentes classes socais: os
porcos polticos; os ces policiais; o corvo representante da religio; as ovelhas militantes;
cavalos, galinhas e outros bichos, a fora de trabalho; nada mais do que uma metfora da
Revoluo Russa, utilizando-se de personagens que nos so familiares e cuja histria pode ser
adaptada a muitas situaes cotidianas, pois os fatos e atitudes, por serem da natureza
humana, se repetem.
A Moral da fbula est disposta na ltima passagem, quando os porcos e outros
granjeiros humanos se encontram na casa que pertencia ao Sr. Jones, onde porcos e homens
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conversam ao redor de uma mesa muito rica em alimentos (inclusive carne de outros animais).
Neste momento, os outros animais da fazenda observam pela janela:
Doze vozes gritavam cheias de dio e eram todas iguais. No havia dvida, agora,
quanto ao que sucedera fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um
porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem
outra vez; mas j se tornara impossvel distinguir quem era homem, quem era porco.
(ORWELL, 1982, p.137)
O sculo XX foi marcado por grandes catstrofes da humanidade. Enquanto fbula,
sempre se espera passar uma moral. Logo, a narrativa se apresenta para que a tirania e o
totalitarismo do sculo passado no se repitam nas prximas geraes.
Deste modo, no se deve ver a literatura, bem como a fbula, como um refgio, se
tratando de animais e de questes que, a primeira vista, poderiam parecer do universo infantil.
Na fbula A revoluo dos bichos (1945) a literatura no est posta para esquecer, mas pelo
contrrio, ela existe para lembrar e ser transmitida.
As relaes entre as concepes: comunista e totalitarista, socialista e capitalista
De acordo com a proposta inicial do porco Major, havia a promessa de mais comida e
conforto, de dignidade com menos trabalho. Um hino foi composto, uma bandeira criada e at
uma constituio registrada em sete mandamentos em tinta na parede do paiol. Esse conjunto
de regras pregava o afastamento de tudo o que representasse o tratamento cruel dos
humanos, ao mesmo tempo em que estabelecia a igualdade entre todos os animais, camaradas
de revoluo.
O Homem a nica criatura que consome sem produzir. No d leite, no pe ovos,
fraco demais para puxar o arado, no corre o que d para pegar uma lebre. Mesmo
assim, o senhor de todos os animais. (...) No est, pois, claro como gua,
camaradas, que todos os males da nossa existncia tm origem na tirania dos
humanos? (ORWELL, 1982, p.12-13)
Portanto, a obra tambm apresenta os ideais de capitalismo frente ao socialismo. Se no
incio nota-se que o Velho Major prega ideais de igualdade, o Animalismo corresponderia ao
Socialismo e, em contraposio, temos os humanos (granjeiros) para representar o
Capitalismo. Se o princpio do capitalismo o lucro, os personagens que poderiam represent-
lo so basicamente os humanos e os porcos, pois so estes que demonstram a preocupao
com conforto e consumismo. Quando o Sr. Jones era o dono da granja explorava o trabalho
animal em benefcio prprio, ou seja, acumular mais capital. Podemos encontrar, assim, um
retrato de uma sociedade capitalista: quem mais trabalha quem menos ganha.
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No princpio at houve um socialismo democrtico, juntos participavam de
assembleias, contribuam com ideias e sugestes, tudo era posto em votao, todos liderados
principalmente por Bola-de-Neve. Por outro lado, comeam a surgir desavenas entre Bola-
de-Neve e Napoleo. Este ltimo apresenta um ideal diferenciado: logo que toma o poder,
passa a negociar com outros granjeiros humanos e troca inclusive a vida de seu melhor cavalo
(Sanso) por caixas de usque. De acordo com Cornelsen (2009), como um conquistador
estrangeiro, o ditador totalitrio v as riquezas naturais e industriais de cada pas, inclusive o
seu, como fonte de pilhagem e como meio de preparar o prximo passo da expanso
(CORNELSEN, 2009, s/p). Nesse sentido, tpico do governo autoritrio buscar mais e mais
mercados, sem se preocupar com a populao no geral, mas sim com o grupo seleto que
domina essa sociedade.
Todavia, embora Orwell tenha buscado mostrar uma poca especfica por meio das
alegorias , sua obra pode ser vista como uma referncia a qualquer revoluo em que os mais
fracos tomam o poder e, em seguida, so por ele corrompidos. Ou ainda, por aqueles que se
promovem por meio de certos ideais e, ao chegar ao comando, os distorcem em benefcio
prprio. Pode-se demonstrar essa manipulao de palavras e conceitos na obra por meio da
exemplificao da constituio dos sete mandamentos, criados primeiramente pelos porcos
em conjunto, para o bem de todos os animais:
OS SETE MANDAMENTOS:
1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas inimigo.
2. O que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, amigo.
3. Nenhum animal usar roupa.
4. Nenhum animal dormir em cama.
5. Nenhum animal beber lcool.
6. Nenhum animal matar outro animal.
7. Todos os animais so iguais. (ORWELL, 1982, p.26)
Estes mandamentos so desconstrudos um a um durante a narrativa, beneficiando os
novos vcios dos porcos, antes criticado como aes humanas que nada representavam a
vida dos animais. Neste caso, nota-se que o porco Garganta, responsvel pelas informaes
advindas do tirano Napoleo, tambm aquele que modifica os mandamentos com tinta
durante as noites.
4. Nenhum animal dormir em cama com lenis (ORWELL, 1982, p.68).
5. Nenhum animal beber lcool em excesso. (ORWELL, 1982, p.106)
6. Nenhum animal matar outro animal sem motivo. (ORWELL, 1982, p.89)
7. Todos os animais so iguais, mas alguns so mais iguais que os outros.
(ORWELL, 1928:130)
Essas atitudes podem se referir aos constantes ajustes nos ideais por aqueles que esto
no poder. Alm disso, as mentiras contadas para os demais animais, que no se lembram, a
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respeito de eventos passados se referem reviso de textos da Histria para glorificar e
enaltecer certo regime que domina no momento.
Deste modo, nota-se um dos aspectos essenciais para caracterizar um governo
totalitrio, em que a propaganda tem grande influencia sobre a populao em geral. Segundo
Cornelsen (2009), Hannah Arendt estabelece alguns aspectos imprescindveis para se entender
o conceito de totalitarismo no nazismo e stalinismo:
Os regimes totalitrios, enquanto no poder, e os lderes totalitrios, enquanto vivos,
sempre comandam e baseiam-se no apoio das massas; (...) Por existirem num
mundo que no totalitrio, os movimentos totalitrios so forados a recorrer ao
que comumente chamamos de propaganda. A propaganda , de fato, parte integrante
da guerra psicolgica; (...) o que caracteriza a propaganda totalitria melhor do que
as ameaas diretas e os crimes contra indivduos o uso de insinuaes indiretas,
veladas e ameaadoras contra todos os que no deram ouvidos aos seus
ensinamentos, seguidas de assassinato em massa perpetrado igualmente contra
culpados e inocentes; (...) A forma de predio infalvel sob a qual esses
conceitos so apresentados mais importante que o seu contedo. (CORNELSEN,
2009, s/p)
At mesmo a simplificao dos sete mandamentos "Quatro pernas bom, duas pernas
ruim!" foi alterado para a nova situao em que os porcos se adaptaram (agora andavam em
duas pernas). O slogan das ovelhas fora modificado ligeiramente para Quatro pernas bom,
duas pernas melhor! (ORWELL, 1982, p. 129). Deste modo, nota-se que a propaganda gira
em torno dessas insinuaes, em que a forma como esses conceitos so reproduzidos acaba
por atingir a populao em geral.
Outra caracterstica que se pode notar que comum aos governos totalitaristas o
culto personalidade, criado a respeito de Napoleo, em que, por exemplo, pode-se pensar
nos dois hinos instaurados: primeiramente chamado de Bichos da Inglaterra, que serve de
enaltecimento para todos os animais; o qual modificado para um hino de enaltecimento
deste porco, denominado O camarada Napoleo.
O controle da opinio pblica por meio das publicidades, o culto personalidade, a
soberania de um grupo pequeno e restrito da populao frente aos demais, a propaganda, a
manipulao da palavra, o abafamento dos protestos pela utilizao de slogans e palavras de
ordem. Todas essas so caractersticas de uma realidade totalitarista e opressora.
Consideraes Finais
Aps a presente anlise, pode-se concluir que a obra A Revoluo dos Bichos (1945)
no um romance apenas voltado para as ideologias surgidas e instauradas na Revoluo
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Russa, mas que se abre para vrios outros campos como a questo do poder, do totalitarismo,
bem como dos governos que criticam os anteriores e repetem suas prticas. Nesse sentido,
pode-se considerar que este um livro que vai alm do contexto histrico no qual foi escrito,
podendo tratar de diversas relaes de poder. Essa viso se confirma se considerarmos ainda
que o sculo XX foi cenrio de diversas ditaduras, tanto de esquerda como de direita: o
Nazismo na Alemanha, o Fascismo na Itlia, o Franquismo na Espanha, sem contar as que se
deram na Amrica Latina, inclusive no Brasil.
Por outro lado, ao consider-la como composta por inmeras alegorias, no se pode
ignorar o carter histrico a que este livro se refere. Ou seja, sua leitura, se vinculada ao
contexto de produo, se torna mais rica e multifacetria. Sem a conscincia desse contexto, A
Revoluo dos Bichos (1945) pode se tornar um instrumento de manipulao, instaurando um
ideal contra o socialismo. Ou seja, em uma primeira leitura, podemos vir a pensar que a
narrativa expe que no importa a forma de governo, sempre haver um lder, algum que
governe. Nessa viso, o ideal de igualdade e o sistema colaborativo instaurado pelo porco
Major no seria possvel.
Desse modo, entendo o presente livro como uma crtica aos regimes totalitrios,
tomando ainda como caso especfico, o Stalinismo. No caso da narrativa, os porcos no
podem ser considerados socialistas, e sim como capitalistas autoritrios. Eles se utilizam da
manipulao (conceito muito explorado pela narrativa) e agem de maneira incorreta com o
que pregavam, logo, assumem e se aproveitam desse lugar que lhes foi conferido.
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Bibliografia
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art_10. php>> Acesso em: 10 de maio de 2012, 9h45min.
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Simpsio Memrias da Represso da UFSM, Santa Maria: UFSM, 2008.
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Wander Melo (org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autntica, 1999.
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Literatura e crtica social em Dry September, de William Faulkner
SILVA, vens Matozo
*
Resumo: Durante sculos, a violncia racial foi responsvel por vitimar milhares de afrodescendentes, e
recordar este passado torna-se essencial para compreendermos os problemas raciais que ainda podem ser
encontrados na sociedade. Neste contexto, este trabalho prope uma anlise do conto Dry September, do escritor
americano William Faulkner, tendo em vista a questo do uso da Literatura como uma forma de crtica social.
Com o objetivo de desenvolver uma crtica sociedade da poca, procurou-se identificar e discutir como o
escritor utilizou alguns elementos narrativos e simblicos no conto para representar os problemas raciais que
estigmatizaram o Sul americano como uma regio em que o dio racial foi responsvel pelos graves ndices de
assassinatos e linchamentos de pessoas negras no pas. Assim, o conto trouxe uma possibilidade de interpretao
acerca das disparidades raciais da regio, trazendo tona uma viso crtica acerca do contexto social repressivo
enfrentado por milhes de afro-americanos durante o perodo ps-escravido e pr-Direitos Civis.
Palavras-chave: William Faulkner. Crtica Social. Racismo
Introduo
A partir da primeira metade do sculo XX, a literatura norte-americana foi marcada
pela presena de uma gerao de escritores que vieram a ter seus nomes mundialmente
conhecidos e estudados, tanto pelo pblico leitor quanto pela crtica literria.
Em tal gerao, composta por renomados escritores como Ernest Hemingway e John
dos Passos, por exemplo, tambm se encontra Willian Faulkner (1897-1962), que se destaca
pelo ressurgimento sulista no cenrio literrio americano e pela temtica em suas obras sobre
as fragilidades e virtudes humanas.
Alm de ser conhecido por utilizar em seus trabalhos a tcnica do fluxo de
conscincia, Faulkner nos apresenta a decadncia da regio sul dos Estados Unidos, a qual
marcada historicamente pela derrota na Guerra de Secesso (1861-1865), que veio a ocasionar
com seu desfecho graves problemas econmicos e sociais para a regio.
Ao analisar o contedo das obras de escritores sulistas, Ross (1967) argumenta que
eles: consideram o moderno mundo materialista como o principal culpado [pela hostilidade
do homem] e voltam seus olhos para a tradicional sociedade do passado, que julgam ser o
local adequado dignidade humana (p. 65).
*
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].
A AN NA AI IS S d do o I II I S Se em mi in n r ri io o I In nt te er ri in ns st ti it tu uc ci io on na al l d de e P Pe es sq qu ui is sa a
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Neste contexto, Faulkner no uma exceo. O autor nos apresenta essa tenso entre o
passado e o presente atravs de personagens em conflito com as mudanas advindas com o
capitalismo e pelo avano da modernidade, lado a lado com o desejo ou a fuga da realidade
atravs das lembranas de um passado glamoroso do Velho Sul, arruinados aps o desfecho
da Guerra Civil.
Vianna (2007) argumenta que ao aproveitar dados histricos e sociais da regio Sul,
Faulkner reitera este confronto existente entre o passado e o presente:
Os desenlaces quase sempre trgicos que caracterizam a narrativa de Faulkner, esto
relacionados ao confronto histrico entre a velha ordem sulista e a nova
configurao poltica e econmica daquela regio aps o desfecho da Guerra Civil
(2007, p. 11).
Corroborando com o que foi levantado por Vianna, Bradbury (1991) ao estudar a
intensidade das produes literrias de William Faulkner, argumenta que:
A intensidade nasce em parte dos fatos da histria sulista: o Sul concentrou em um
nico evento, a Guerra de Secesso, cem anos de histria ocidental, enfrentando a
absoro do moderno, a derrota e a privao cultural e o processo de industrializao
de uma s vez. (1991, p. 101)
Quanto temtica social, Faulkner nos apresenta um Sul dominado pelo dio e pelo
poder da segregao racial. Tais problemas foram responsveis por vitimar geraes de afro-
americanos que sofreram diante do jogo entre o poder e a submisso perante uma falsa
ideologia da superioridade de raas, que colocava o negro em uma posio de inferioridade
quando comparado com o homem branco.
Ao associarmos as caractersticas de suas obras aliadas ao contexto social do Velho
Sul, no conto intitulado Dry September (1931), incluso na coletnea de contos These 13
(1931), percebemos claramente a presena das caractersticas acima descritas.
Neste conto, Faulkner nos apresenta os rumores de um crime, supostamente realizado
por um homem negro contra uma mulher branca, resultando em um suposto assassinato,
colocando em evidncia a fragilidade e a crueldade dos seres humanos, assim como as
consequncias de vivermos em uma sociedade preconceituosa.
Esta produo literria considerada pela crtica como um dos melhores trabalhos
feitos pelo autor. Apresentando a genialidade com que Faulkner soube trabalhar com o
mistrio e o suspense do incio ao fim da estria, ele desafia o leitor a investigar o universo
em que vivem os seus personagens e desvendar os seus segredos, onde cada detalhe torna-se
essencial para a compreenso do conto, como assinala A. Golay & Hamblin (2008):
A AN NA AI IS S d do o I II I S Se em mi in n r ri io o I In nt te er ri in ns st ti it tu uc ci io on na al l d de e P Pe es sq qu ui is sa a
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Dry September employs a technique that forces the character, and the readers, to try
to construct what actually occurred from fragments of gossip, ambiguous hearsay,
and things left unsaid (p. 74).
Compondo este conjunto de importantes detalhes presentes no conto, percebemos a
importncia que certos elementos narrativos e simblicos apresentam no desenvolvimento da
estria, sendo estes, de imprescindvel anlise para uma melhor compreenso do conto, uma
vez que os trabalhos de Faulkner alm se serem ricos em detalhes, apresentam um elevado
nvel de complexidade.
Assim, aliando as caractersticas de suas obras juntamente com os elementos
narrativos e simblicos utilizados pelo autor, este trabalho tem por objetivos identificar e
discutir a importncia destes elementos no conto Dry September. Alm disso, pretende-se
analisar como o autor trabalhou com estes elementos para representar o Sul americano com a
inteno de desenvolver uma provvel crtica social sociedade da poca.
Os elementos narrativos e simblicos no conto
De acordo com Gancho (2006) os chamados elementos narrativos podem ser
entendidos como peas que constituem o corpo de uma narrativa, pois sem estas tais peas, a
narrativa no existe.
Toda a narrativa se estrutura sobre cinco elementos, sem o quais ela no existe. Sem
os fatos no h histria, e quem vive os fatos so os personagens, num determinado
tempo e lugar. Mas para ser prosa de fico, necessria a presena do narrador,
pois ele fundamentalmente quem caracteriza a narrativa (GANCHO, 2006, p. 11)
Percebemos ento a presena de cinco elementos presentes nas narrativas: enredo,
personagens, tempo, espao e narrador. Tais elementos so considerados de suma importncia
para a anlise e compreenso das estrias.
Em seu conto, Faulkner nos apresenta como estes elementos podem ser utilizados para
a criao de uma estria cheia de suspense e mistrios, desafiando o leitor a instigar sobre as
atitudes dos seus personagens problemticos e at mesmo uma reflexo sobre a prpria
sociedade americana.
A partir desta caracterstica, somos levados a analisar com mais ateno os elementos
narrativos que compem as suas obras, pois a partir deles podemos encontrar pistas ou at
mesmo as justificativas das aes muitas vezes no ditas e ou imaginadas dos seus
personagens.
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Para a anlise de Dry September, foram selecionados trs dos cinco elementos
narrativos, sendo eles: espao, ambiente e personagens. Tal seleo deu-se pelo fato de que
estes elementos podem vir a ser compreendidos como uma ferramenta essencial para a
compreenso dos mistrios presentes no conto.
Ao analisarmos o espao em que as aes do conto ocorrem, percebemos a grande
nfase dada por Faulkner ao descrever uma fictcia cidade localizada na regio Sul dos
Estados Unidos como um local extremamente seco e abafado, onde no chove por
aproximadamente sessenta e dois dias.
Segundo Gancho, o elemento espao pode ser compreendido como:
[...] o lugar onde se passa a ao numa narrativa [...] o espao tem como funes
principais situar as aes das personagens e estabelecer com eles uma interao,
quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoes, quer sofrendo eventuais
transformaes provocadas pelos personagens. (GANCHO, 2006, p. 27)
Atravs desta descrio, compreendemos que o espao apenas engloba o local onde os
fatos da estria ocorrem, sendo em uma primeira leitura de fcil compreenso e identificao
em uma estria. Entretanto, o que percebemos em Dry September uma fuso entre um
espao fsico e um psicolgico, levando o pblico leitor a confundir muitas vezes o conceito
de espao com o do ambiente.
Ao analisar a evoluo do conto moderno e discutir acerca desta interao entre estes
dois elementos, Hamalian & Karl (1967, p. 59) estabelecem que:
We can say that setting encompasses not only the usual quantities of time and place,
as well as the element loosely called background, but also aspects of atmosphere, a
series of details, nuances, and gestures.
De acordo com os autores, o espao abrangeria no apenas o local fsico onde as aes
da estria ocorrem, como tambm as aes dos personagens com o espao em que vivem,
colocando a descrio do elemento ambiente dentro da descrio do espao, apresentando
uma das caractersticas da evoluo do conto moderno.
Neste trabalho, estes dois elementos sero estudados separadamente, sendo o ambiente
compreendido como:
[...] o espao carregado de caractersticas socioeconmicas, morais e psicolgicas
em que vivem os personagens [...] situa as personagens no tempo, no espao, no
grupo social, enfim nas condies em que vivem [...] a projeo dos conflitos
vividos pelas personagens (GANCHO, 2006, p. 27-28)
Atravs desta definio, notamos a importncia que este espao, como descrito acima,
carregado de caractersticas morais e psicolgicas possui a fora de influenciar as aes
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tomadas por aqueles que so responsveis pelo desempenho do enredo [...] quem faz a ao
(GANCHO, 2006, p. 17). neste contexto que destacamos a importncia do elemento
narrativo personagem, podendo ser classificado em dois tipos conforme a sua caracterizao
dentro da estria.
Os classificados como planos so compreendidos como aqueles que possuem um
nmero pequeno de atributos, que as identificam facilmente perante o leitor, de um modo
geral so personagens pouco complexos (GANCHO, 2006, p. 20).
J os ditos redondos, parafraseando Foster (1969), seriam aqueles personagens
caracterizados por possurem uma maior profundidade e complexidade psicolgica, mudam
de comportamento constantemente, apresentando variadas qualidades ou tendncias.
Em Dry September, Faulkner nos apresenta quatro personagens que desempenham
papis de suma importncia no conto, sendo eles: o barbeiro Hawkshaw, o ex-soldado de
guerra John McLendon, o negro Will Mayes e Miss Minnie Cooper, personagem centro do
conto e responsvel pelos comentrios que circulam pela cidade.
Uma caracterstica recorrente nos contos de Faulkner refere-se ao uso de smbolos, os
quais so utilizados para a criao de um cenrio de mistrio, dvida e complexidade em suas
obras, como podemos observar nos contos A Rose for Emily (1930), That Evening Sun (1931)
e The Barn Burning (1939), por exemplo.
Na sua terminologia, o conceito de smbolo pode ser compreendido como muito mais
do que um simples signo ou sinal: transcende o significado e depende da interpretao que,
por sua vez, depende de certa predisposio (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2001, p.
18).
Atravs deste conceito, percebemos o quo complexo torna-se a tarefa de tentar
decifrar o real significado dos elementos simblicos em uma obra literria. Por este motivo,
usaremos como recurso de anlise e interpretao dos elementos simblicos presentes no
conto de Faulkner o Dicionrio de Smbolos (2001), por constituir de uma fonte de
informaes e variadas interpretaes acerca dos smbolos.
Em Dry September, Faulkner utiliza a descrio de um clima quente e seco, os objetos
pertencentes pelos personagens e a prpria descrio da casa onde eles residem para criar
elementos simblicos repletos de significados ocultos, estes que durante o desenrolar da
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estria aliada a sua correta interpretao, podem vir a ajudar o leitor a entender melhor os
mistrios e segredos dos personagens no conto.
Assim, atravs da interseo entre os elementos narrativos juntamente com o uso de
alguns elementos simblicos que William Faulkner criou uma atmosfera de dvidas e
suspense acerca das aes tomadas pelos seus personagens, demonstrando a genialidade e ao
mesmo tempo a complexidade das obras que caracterizam a produo literria de um dos
maiores escritores americanos.
Literatura e crtica social em Dry September
No incio do conto, Faulkner descreve o espao no qual a estria ocorre, na fictcia
cidade de Jefferson. Tal cidade caracterizada por possui um clima extremamente quente e
seco, resultado de uma grande seca.
Em seguida, ocorre a descrio do ambiente de uma barbearia onde se encontra um
grupo de homens que discutem acerca de um suposto crime sexual envolvendo dois
moradores da cidade:
Throught the bloody September twilight, aftermath of sixty-two rainless days, , it
had gone like a fire in dry grass the rumor, the story, whatever it was. Something
about Miss Minnie Cooper and a Negro. Attached, insulted, frightened: nome of
them gathered in the barber shop on that Saturday evening [...] knew exactly what
had happened (FAULKNER, 1967, p. 69)
A partir deste fragmento, percebemos que nenhum dos ocupantes do local sabe
exatamente o que pode ter ocorrido. Com o conhecimento restrito, o que eles apenas sabem
so rumores ou histrias a respeito de um crime envolvendo um negro e Miss Minnie Cooper.
Atravs dos dilogos dos ocupantes da barbearia, podemos perceber o quanto o
elemento narrativo espao est intimamente associado ao elemento ambiente. Tal conexo
entre eles nos demonstra o modo de pensar de alguns moradores da regio Sul dos Estados
Unidos, marcada historicamente pela derrota na Guerra Civil Americana e pela no aceitao
do negro como cidado americano.
Em tais conversas, torna-se evidente o espao social apresentado no conto,
caracterizado por possuir uma sociedade altamente dividida entre dois grupos polares: os
brancos e os negros.
Segundo Hoffman (1966) a regio fictcia criada por Faulkner na qual a cidade de
Jefferson est localizada caracterizada por possuir uma populao de 6.298 brancos e 9.313
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negros (HOFFMAN, 1966, p. 20). A superioridade numrica de negros em relao aos
brancos se torna um forte indcio das disparidades sociais e raciais presentes nas obras de
Faulkner, como tambm uma inferncia aos graves problemas sociais presentes na regio Sul
americana.
Notamos uma forte diviso de opinies referentes ao suposto crime sexual. De um
lado, defendendo a inocncia do negro Will Mayes destaca-se o barbeiro Hawkshaw, que
afirma que Mayes uma boa pessoa e que no seria o responsvel por tal crime.
Nas seguintes passagens, percebemos a sua opinio ao tentar defend-lo da opinio
dos demais ocupantes da barbearia: I know Will Mayes. Hes a good nigger [...] I dont
believe Will Mayes did it [...] I know Will Mayes (FAULKNER, 1967, p. 69).
Apesar dos seus esforos, o que notamos dos demais ocupantes do local uma total
repulsa do ponto de vista do barbeiro, demonstrando que atravs dos princpios e do modo de
pensar da populao local, seria um insulto duvidar da palavra de uma pessoa branca quando
posta em comparao com a de um negro: Wont you take a white womans Word before a
niggers? [...] Do you accuse a White woman of lying? [...] you damn niggerlover
12
(FAULKNER, 1967, p. 69).
Durante a discusso, um dos clientes faz meno ao passado histrico da regio Sul
dos Estados Unidos, demonstrando mais uma vez a interao existente neste conto do espao
fsico junto com o psicolgico, influenciando as atitudes e opinies dos personagens: you
better go back North where you came from. The South dont want your kind here
(FAULKNER, 1967, p. 70).
Neste fragmento, notamos que o foco principal da conversa serviu apenas de suporte
para o real assunto discutido pelos clientes, ou seja, a no aceitao do negro como um
verdadeiro cidado americano.
Em sua histria, os Estados do Sul foram estigmatizados por possurem uma
sociedade altamente racista, tanto pelo fato de terem sido contra a abolio da escravido
defendida pelos estados do Norte durante a Guerra Civil, quanto pela presena de grupos
racistas que tornaram a prtica de linchamentos de pessoas de cor comuns naquela regio.
Com a chegada do personagem John McLendon no dilogo, o que antes era apenas
uma conversa de barbearia, passa a se tornar um plano de vingana. Tendo comandado tropas
12
A very offensive word for a Black person (OXFORD, 2010, p.1031).
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militares na Frana e sido homenageado pela sociedade americana, ele acaba persuadindo os
demais ocupantes da barbearia para fazerem justia com as prprias mos.
The screen door crashed open. A man stood in the floor, his feet apart and this
heavy-set body poised easily. His white shirt was open at the throat. [] His hot,
bold glance swept the group. His name was McLendon. He had commanded troops
at the front in France and had been decorated for valor [] are you going to sit there
and let a black son rape a white woman of the streets of Jefferson? (FAULKNER,
1967, p.70)
Nesta descrio notamos algumas caractersticas deste personagem, tais como a suas
caractersticas vinculadas ao clima local, o seu antigo emprego e o tom em sua fala ao incitar
os demais ocupantes do local a acompanh-lo na busca por Mayes. Estas caractersticas nos
evidenciam a personalidade e o carter deste personagem, fato que ser que suma importncia
para as interpretaes das aes tomadas por ele e os demais do conto.
Quando McLendon e seus companheiros saem procura de Mayes, o barbeiro
Hawkshaw apresenta duas atitudes completamente diferentes. Em um primeiro instante, ele
tenta de toda forma fazer com que McLendon desista de fazer qualquer mal contra Mayes:
Find out the true first. I know Will Mayes (FAULKNER, 1967, p. 70) e em Will Mayes
never done it, boys (FAULKNER, 1967, p. 74).
No entanto, ao acompanhar o grupo de McLendon na busca por Mayes, suas attitudes
se modificam com quelas apresentadas dentro da barbearia. Ao encontrarem Mayes,
McLendon e seus companheiros comeam a agredi-lo, sem exceo de Hawkshaw, que
tambm a realizada. Podemos verificar esta atitude no seguinte excerto:
He [McLendon] struck the Negro, the others expelled their breath in a dry hissing
and struck him [...] he [Will Mayes] whirled and cursed them, and swept his
manacled hands across their faces and slashed the barber upon the mouth, and the
barber struck him also ( FAULKNER, 1967, p. 75).
Ao examinarmos esta cena de violncia nos deparamos com a crueldade dos
moradores da cidade, pois quando McLendon e seu grupo encontram Will Mayes, fica claro
que ele no sabia sobre os rumores que rondavam a cidade e mesmo assim acaba sendo
agredido: What you all going to do with me, Mr John? I aint done nothing, White folks,
captain, I aint done nothing. I swear fore God (FAULKNER, 1967, p. 75).
Outro personagem enigmtico que compe o conto Miss Minnie Cooper. Na
segunda parte da estria, o narrador onisciente nos apresenta o universo da personagem que
supostamente foi abusada, demonstrando suas fraquezas e obsesses.
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Se levarmos em conta o seu passado, no qual ela era jovem e popular e compar-lo
com a sua vida adulta, descrito como sendo uma mulher solteira e esquecida pela sociedade
que antes a admirava, podemos atribuir tais mudanas como uma justificativa para a inveno
do estupro, com a finalidade de obter novamente a ateno da sociedade e de seus amigos,
como tambm uma vlvula de escape da sua decadncia moral e social.
No seguinte excerto: When she was Young she had had a slender, nervous body and a
sort of hard vivacity which had enable her for a time to rid upon the crest of the towns social
life (FAULKNER, 1967, p.72), podemos perceber que ela tinha um corpo elegante e
apresentava importante participao social na cidade.
No entanto, no seguinte trecho a sua situao muda completamente:
She was the last to realize that she was loosing ground [] She watched the girls
with whom she had grown up as they married and got homes and children, but no
man ever called on her [] how popular Aunt Minnie had been as a girl
(FAULKNER, 1967, p. 72-73).
Assim, somos levados a imaginar o ambiente de decadncia da personagem e a
presso psicolgica causada pelas regras da sociedade, casar e ter filhos. Alm disso, aliando
o fato dela ter quase quarenta anos e ainda continuar solteira: she was about thirty-eight or
thirty-nine (FAULKNER, 1967, p. 72) aliado com suas frustraes amorosas, somos levados
a duvidar que o rumor que move a cidade no passa de uma inveno da personagem.
Na quarta parte do conto, mais evidncias nos levam a acreditar na sua provvel
mentira com a inteno de torn-la novamente popular. Quando ela sai com amigos para o
cinema local, ela se torna o comentrio das pessoas que a viam na rua: Thats the one: see?
The one in Pink in the middle. Is that her? (FAULKNER, 1967, p. 77).
Apesar de a personagem parecer ter alcanado seu objetivo, sua fama acaba lhe
custando sua sanidade mental. Durante a exibio do filme, ela comea a rir sem parar. Nesta
cena, seu riso pode vir a ser interpretado como a sua tomada de conscincia de sua vida
decadente.
Comeando a rir no instante em que v os jovens casais entrando no teatro: quick
bodies awkward, dinively young (FAULKNER, 1967, p. 78), e quando percebe o tema do
filme que ir assitir: the screen glowed silver and soon life began to unfold, beutiful, and
passionate (FAULKNER, 1967, p. 78), observamos a sua distncia de todos os elementos
que ela observa: beleza, amor, paixo e juventude, elementos estes que ela provavelmente
nunca possuir, restando a ela apenas a presena da solido.
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De um modo geral, podemos inferir que neste conto os personagens acima citados
podem vir a ser classificados com redondos, por possurem uma elevada complexidade
psicolgica, vrias qualidades e comportamente instvel.
O maior enigma apresentado em Dry September, juntamente com o segredo de Miss
Minnie Cooper, diz respeito ao tomada por McLendon e seus companheiros contra Will
Mayes.
Ao analisarmos os elementos simblicos presentes no conto, somos levados a supor
que Meyes pode ter sido cruelmente assassinado por McLendon. Mesmo no havendo
evidncias textuais concretas a respeito deste incidente, a interpretao de alguns elementos
simblicos presentes no conto nos do sugestes sobre as aes que podem ter sido tomadas
pelos personagens.
Ao comearmos a analisar a descrio da casa onde McLendon reside, comparada a
gaiola de um pssaro, juntamente com o seu comportamento, percebemos que tais descries
nos levam a pressupor que suas atitudes podem se equiparar s de um animal selvagem,
apresentando perigo para a sociedade. Podemos verificar estas particularidades no seguinte
fragmento:
It was trim and fresh as a birdcage and almost as small, with its clean, Green-and-
white paint [] He went on through the house, ripping off his shirt [] he stood
and mopped his head and shoulders with the shirt and flunf it away (FAULKNER,
1967, p. 78-79)
Na sada de McLendon e seu grupo da barbearia, h a caracterizao de ar com cheiro
de morte. Alm disso, nfase dada a um estranho gosto metlico na boca dos homens que
ficaram no local, o que nos remete arma que McLendon possa ter levado para assassinar
Mayes: The screen door crashed behind them reverberant in the dead air [...] The air was flat
and dead. It had a metallic taste at the base of the tongue (FAULKNER, 1967, p. 71-72).
Alm deste fragmento, a mudana no cu da cidade no momento que o grupo encontra
Mayes de suma importncia, pois a lua retratada por possuir um aspecto hemorrgico, nos
levando a inferir uma suposta atrocidade contra Mayes.
Segundo Chevelier e Gheerbrant (2001) entre as vrias interpretaes sobre o
significado do smbolo da lua, ela pode vir a ser interpretada como a passagem da vida
morte, ressaltando ainda mais a interpretao do possvel assassinato.
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A presena da poeira, que encobre tanto o carro que McLendon dirige levando Mayes
para o desconhecido, quanto a cidade de Jefferson pode ser interpretada de duas maneiras
distintas, mas com significados semelhantes.
A primeira forma de interpretao deste elemento poderia ser visto como um signo
que representaria a morte (CHEVELIER & GHEERBRANT, 2001, p. 727), uma vez que ela
encobre o carro que Mclendon leva Mayes para o desconhecido, sendo que aps este
incidente, Mayes misteriosamente no mais visto na cidade, reforando ento, a ideia de um
assassinato: They went on; the dust swallowed them [...] the dust of them hung for a while,
but soon the eternal dust absorved it again (FAULKNER, 1967, p.77).
J a segunda interpretao do elemento poeira estaria relacionada a um sentimento de
culpa por parte da populao da cidade ao deixar acontecer um crime sem qualquer tipo de
provas ou direito de defesa do acusado.
No seguinte excerto: after a while the town began to glare beneath the dust
(FAULKNER, 1967, p.76) percebemos como a poeira encobre a cidade logo aps a ao
tomada por McLendon, ressaltando a ideia de um crime que permanecer sem soluo, uma
vez que o dio racial vitimou milhares de afro-americanos na regio Sul-americana.
Consideraes Finais
A anlise do conto nos leva a afirmar que os personagens apresentados so
profundamente vulnerveis ao ambiente e ao espao social ao qual fazem parte, o que vem a
contribuir, decisivamente nas suas atitudes ao longo do conto.
Alm disso, eles se apresentam como provveis vtimas da sociedade americana.
McLendon, antes visto como um heri de guerra e aclamado pela sociedade, passa a ser
considerado o maior vilo. O barbeiro Hawkshaw nos passa a ideia de ter sido influenciado
pela mentalidade racista da cidade ou pode-se atribuir sua mudana repentina de atitude, a
falsa ideologia de uma harmonia com as disparidades raciais da regio.
Em relao Miss Minnie Cooper, esta vem a ser analisada como a grande
manipuladora do conto, jogando com o passado da regio ao seu favor e sem se importar com
as consequncias das suas atitudes. Will Mayes vem a ser a representao das geraes de
afro-americanos que sucumbiram diante dos abusos e das injustias causadas pela falsa
ideologia da superioridade do homem branco.
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Assim, a leitura do conto de Willian Faulkner traz uma possibilidade de interpretao
acerca das disparidades raciais do Sul americano e da decadncia e fragilidades da existncia
humana. Alm disso, o conto traz tona uma viso crtica acerca do contexto social
repressivo presente nos Estados Unidos durante o perodo ps-escravido e pr-Direitos Civis.
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Referncias
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Faulkner: a literary reference to his life and work. New York: Infobase, 2008.
BRADBURY, Malcolm. O Romance Americano Moderno. Traduo Barbara Heliodora. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de Smbolos. 16 Ed. Rio de Janeiro:
Jos Olympio, 2001.
FAULKNER, William. Dry September. In: The Shape of Fiction: British and American
Short Stories. New York: McGraw-Hill Book Company, 1967, pp. 69-79.
GANCHO, Cndida Vilares. Como analisar narrativas. 9 Ed. So Paulo: tica, 2006.
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A literatura como resgate da memria histrica de um povo em A Muralha
BORGES, Samantha
*
Resumo: O artigo tem como objetivo analisar a obra A Muralha, de autoria de Dinah Silveira de Queiroz,
lanada como forma de homenagem e comemorao aos 400 anos da fundao da cidade de So Paulo. O
romance narra a histria de lutas, conquistas e massacres do povo paulista, entre o final do sculo XVII e incio
do sculo XVIII. Apresentando em sua narrativa os principais aspectos do estilo do romance histrico ao molde
Lukacsiano, o artigo se volta s relaes e influncias que a literatura mantm com as perspectivas tericas da
memria e da histria. Para fundamentar o referencial terico utilizam-se autores como Lukcs, Candido, Mitre e
Jelin, entre outros. Atravs desse contexto, possvel tecer consideraes sobre de que maneira a obra se
transforma em uma ferramenta de resgate da memria histrica do povo paulista, trazendo luz aspectos que se
fixam como caractersticas da identidade paulistana e do brasileiro em geral.
Palavras-chave: Romance histrico. Memria. Identidade.
Literatura, memria e histria
Os estudos literrios h algum tempo trazem tona discusses que se opem a uma
anlise literria nica e isolada. A riqueza de leituras de uma narrativa est vinculada tanto
individualidade de cada sujeito que tem contato com uma obra, quanto s conexes que
podem ser feitas entre o literrio e as diversas reas do saber. Uma obra no nasce parte do
social, mas se relaciona em diferentes graus aos campos histricos, polticos e econmicos de
uma sociedade. Portanto, ao analisar uma obra, importante tanto verificar o contexto social
em que ela est inserida, quanto s caractersticas intrnsecas linguagem que apresenta,
como afirma Cndido
Hoje sabemos que a integridade da obra no permite adotar nenhuma dessas vises
dissociadas; e que s a podemos entender fundindo texto e contexto numa
interpretao dialeticamente ntegra, em que tanto o velho ponto de vista que
explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convico de que a
estrutura virtualmente independente, se combinam como momentos necessrios do
processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa,
no como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um
certo papel na constituio da estrutura, tornando-se, portanto, interno (CANDIDO,
2006, p. 13).
E se a literatura pode ser vista como vinculada ao social, tambm as questes da
memria saram do campo meramente psicolgico que continua sendo importante, mas no
deve ser o nico aspecto considerado para abarcar em sua concepo os jogos sociais
envolvidos na prtica de relembrar e esquecer. Segundo Jelin (2001), a memria por si s no
*
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].
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deve ser enquadrada em um conceito nico e fechado, j que ela atua em comunho com
questes relacionadas histria, verdade, identidade. Torna-se importante, quando se
fala de memria, ponderar sobre quem recorda ou esquece, o que recordado ou esquecido e,
ainda, como e quando esse processo mental ocorre. Para a autora, cada sujeito possui sua
prpria capacidade de memorizao ou esquecimento, que faz parte de um processo nico,
individual, intransponvel. Porm, preciso destacar que esse processo no ocorre
desvinculado de uma esfera social:
Estos procesos, bien lo sabemos, no ocurren en individuos aislados sino insertos en
redes sociales, en grupos, instituiciones y culturas. De inmediato y sin solucin de
continuidad, el pasage de lo individual a lo socail e interactivose impone. Quienes
tienen memoria y recuerdan son seres humanos, individuos, siempre ubicados en
contextos grupales y sociales especfics. Es imposible recordar o recrear el pasado
sin apelar a estos contextos (JELIN, 2001, p. 03).
A memria, portanto, pode ser importante ferramenta para a compreenso tanto do
passado, quanto do presente. Mitre (2001) destaca que recordar um fato do passado se torna
uma maneira de reviv-lo luz do tempo presente, de forma que se tornou lugar comum
afirmar que um pueblo que olvida o ignora su pasado tiende a repertirlo, sobretodo en los
errores, revelando, as, uma frustrante inaptitud para aprender de la experincia (MITRE,
2001, p. 111). O esquecimento, inserido em um contexto de governos autoritrios, por
exemplo, assume um carter perigoso, pois trata de chagas sociais que permanecem no
curadas e que, mais cedo ou mais tarde, devem vir tona para que a histria siga sem lacunas
inexplicveis. A importncia de se construir uma ponte com o passado, para compreend-lo,
assim como seu presente, ressaltada tambm em Benjamin, como destaca Gagnebin,
A mesma preocupao de salvar o passado no presente graas percepo de uma
semelhana que os transforma em dois: transforma o passado porque este assume
uma forma nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o
presente porque este se revela como sendo a realizao possvel dessa promessa
anterior, que poderia ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se no a
descobrirmos, inscritas nas linhas do atual (GAGNEBIN, 1987, p. 16).
A narrativa literria, nesse ponto, se constitui em um espao possvel de construo de
uma linguagem que consiga transmitir, comunicar e, principalmente dar sentido quilo que foi
esquecido, lembrando que o esquecimento pode no significar o apagamento do passado, mas
sim a incapacidade de comunic-lo. O silncio muitas vezes tem muito a dizer, basta que se
consiga articular um discurso que ultrapasse as barreiras de um possvel trauma e que exista
quem esteja disposto a ouvi-lo. A literatura de testemunho tem exercido importante papel
nesse contexto, em especial em pases em que ditaduras militares violentas foram
responsveis pelo apagamento de fatos histricos. Porm, no apenas sob a perspectiva de
relembrar o trauma que a literatura pode se entrelaar s questes da memria e, nesse
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momento, outro campo do conhecimento tambm passa a ser acionado. Sob uma abordagem
que une narrativa literria, memria e por fim a histria, a literatura vem construindo
representaes sociais ao longo do tempo.
nos sculos XVIII e XIX que a histria passa a ser debatida como cincia. Por esse
vis, histria e fico estariam distanciados, no entanto, atravs de um contexto social que
propicia a busca por uma literatura que represente o esprito de uma poca, que est em
processo de afirmao, a literatura passa a ter um renovado objetivo: a tentativa de desenhar
um perfil identitrio em determinados grupos ou mesmo naes. Surge assim, o chamado
romance histrico, que baseado em caractersticas especficas passa a trabalhar com a
utopia de uma identidade nacional, atravs de um pano de fundo histrico e do resgate da
memria de um povo. A construo dessa identidade, segundo Jelin (2001), no ocorre de
maneira a abarcar uma totalidade de caractersticas, mas sim de forma seletiva:
(...) para fijar ciertos parmetros de identidad (nacional, de gnero, poltica o de
outro tipo) el sujeto seleciona ciertos hitos, ciertas memrias que lo ponen en
relacin com otros. Estos parmetros, que implicam al mismo tiempo resaltar
algunos rasgos de identificacin grupal com algunos y de diferenciacin com otros
para definir los limites de la identidad, se convierten en marcos sociales para
encuadrar las memrias (JELIN, 2001, p. 07).
Fica claro o fato de que a identidade e, no caso do romance histrico a identidade
nacional, se trata de uma construo. Mesmo que a obra tente retratar fielmente, atravs da
busca por dados e personagens reais, um momento da histria, impossvel que no se faa
um recorte, no qual como afirma Jelin (2001), memrias so selecionadas e, portanto, alguns
pontos de vista sero inevitavelmente descartados. Assim a memria, seletiva; assim a
histria, seletiva; e assim a literatura: uma seleo de representaes que podem ser
trabalhadas sob o enfoque da memria e da histria de um povo, reafirmando ou confrontando
uma identidade vigente.
Nesse cenrio, o romance histrico se consolida na Europa, no incio do sculo XIX,
em consenso com a ascenso burguesa e os ideais iluministas, com o advento do capitalismo
e, principalmente, com a formao do Estado enquanto organizao moderna da sociedade.
Surge a concepo de um passado histrico e de sua importncia para uma conscincia e
esprito de nao. O advento da histria como um fenmeno de massas e a construo de um
sentimento nacional, consolida a busca pela identidade de cada pas. E para a construo
dessa identidade, torna-se necessria uma releitura do passado histrico. Para Lukcs (1966),
inclusive, essa era uma das caractersticas centrais do romance histrico: o distanciamento
entre a poca do autor, da poca narrada, ou seja, a ao do romance ocorre num passado
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anterior ao presente do escritor, tendo como pano de fundo um ambiente histrico
rigorosamente reconstrudo (ESTEVES e MILTON, 2009, p. 88). Partindo desse
pressuposto, o romance histrico se vale do resgate da memria de um povo, para consolidar a
sua identidade. No Brasil, o romance histrico tem suas expresses tambm no sculo XIX,
coincidindo com um processo de formao do sentimento nacional. Porm, o estilo no foi
expressivo, tendo publicaes mais voltadas para algumas vertentes prximas como o
indianismo, o romance urbano e o romance regionalista.
O romance histrico A Muralha
A obra A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz, foi escrita em homenagem
comemorao do IV Centenrio da fundao da cidade de So Paulo, em 1954. O romance,
narrado em terceira pessoa, tem a interferncia de discurso direto das personagens, e conta a
histria de lutas do povo paulista, entre o final do sculo XVII e incio do sculo XVIII.
Devido a um nmero extenso de personagens, a ao principal (o amor conturbado entre os
protagonistas Tiago e Cristina) segue a ordem temporal cronolgica, mas que abarca ainda
vrias histrias secundrias que vo sendo narradas simultaneamente. A narrativa dividida
em trs captulos: Descoberta da Terra, A Madama do Anjo e Cano de Margarida.
A primeira parte da obra, Descoberta da Terra, relata a chegada de Cristina, a
mocinha da histria, no Porto de So Vicente, em So Paulo. Sonhadora, a protagonista
carrega consigo a educao do Reino, uma moralidade e uma cultura identitria que
colocada prova em uma terra retratada como sem lei. Em um Brasil colonial, a luta era pela
sobrevivncia, no havia aqui o luxo e o conforto do Velho Mundo. A personagem, portanto,
se depara com uma realidade muito diferente da que estava acostumada, em uma terra ainda
primitiva, como lhe alerta o Capito-Mor do navio:
(...) Cure-se a menina de iluses. A pobreza arrogante desta terra! Os ndios feios
como judas, os brancos sujos, fanfarres briguentos, os negros fazendo o que lhes
ensinam, como monos. Os padres disputando com os brancos, mas lhe dizendo as
missas. E as mulheres escondidas em casa como coelhos nas tocas, ignorantes e
obstinadas (QUEIROZ, 2000, p. 12).
Alm de no sentir-se acolhida na nova terra, por no aceitar os costumes de sua gente
pessoas de hbitos simples e rudes Cristina tambm sofre com a rejeio do noivo, Tiago.
Mas, mesmo rejeitada, Cristina casa-se com ele, em uma cerimnia que movimenta a Vila de
So Paulo de Piratininga. J o captulo de A Muralha, A Madama do Anjo, compreende as
principais sequencias de ao do romance. Primeiramente, o desenrolar do motivo pelo qual o
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filho de Dom Braz, Tiago, que tambm espera por Cristina apaixonadamente, a repudia: ele
sente-se um traidor, j que em uma de suas viagens pelo Serto, teve relaes com a prima
Isabel, com a qual acaba tendo um filho. O fato, inclusive, acaba sendo o desencadeador de
inmeras tragdias no seio da famlia de Dom Braz Olinto. Primeiramente, Isabel diz que foi
violentada por Apingor, ndio amigo da famlia. Em funo disso, Leonel, irmo de Tiago,
vai at a aldeia de Apingor e o mata, para salvar a honra dos Olinto. Como consequencia do
assassinato, os ndios organizam-se e efetuam um motim contra a Lagoa Serena, justamente
quando os homens esto no Serto. As mulheres da Lagoa Serena defendem-se como podem,
mesmo assim, Baslia, filha de Dom Braz, ferida violentamente e os armazns que estocam
mantimentos so incendiados, deixando as personagens quase sem provises.
A surpresa, no entanto, surge quando o filho de Isabel nasce: ao invs de mestio, o
beb branco. Assim, nasce tambm a desconfiana: Margarida, esposa de Leonel, acredita
que seu marido a traiu e acaba morrendo, mortificada pelo desgosto. Leonel, ao descobrir que
seu grande amor faleceu, some no mundo, sem deixar rastros. Enquanto isso, Roslia, filha
caula de Dom Braz e Me Cndida foge com Bento Coutinho, rival de seu prprio pai. O
captulo tambm dedica bastante ateno a narrativa da expedio dos Bandeirantes, liderada
por Dom Braz e Tiago ao fictcio Morro Negro. A Bandeira parte para tomar posse do local,
pois ele abriga jazidas de ouro. Ao conquistar as terras, no entanto, os paulistas so dizimados
pelo ataque dos emboabas, que os esperavam na volta do Morro Negro, fato principal,
conhecido histricamente como Capo da Traio, e que configurou a Guerra dos
Emboabas, ocorrida entre os anos de 1708 e 1709.
Com a sucesso de desgraas que se abatem sobre os personagens da narrativa, o
terceiro captulo, Cano de Margarida, se configura enfim, em uma possibilidade de
esperana, de dias melhores para o povo paulista. Tiago o nico sobrevivente do Capo da
Traio e, rejeitado pela famlia que o julgam como um covarde por no ter lutado mais
bravamente, acaba encontrando em Cristina sua enfermeira. Sem ter para onde ir, os dois se
refugiam na casa abandonada de Margarida e Leonel, e a que enfim encontram a
oportunidade para declarar o amor um ao outro. Cristina, que estava determinada a voltar para
Portugal engravida e, mesmo ainda repudiando o ambiente que a rodeia, acaba cedendo
permanncia no Brasil.
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O espao principal da narrativa, como j mencionado, constitudo pela Fazenda
Lagoa Serena, localizada na ento Vila de So Paulo de Piratininga. nessa Fazenda que vive
a famlia de Dom Braz Olinto, ncleo de personagens principais da histria:
Muito tempo depois ela se lembraria da primeira viso que tivera da Lagoa Serena.
A lagoa, rente pequena aldeia de casas e de compartimentos da Fazenda; e,
descendo a encosta, os bois carregando um carro transbordando de lenha. Os
edifcios muitos a casa alta, de taipa, com uma varanda, e mandando ao ar um
fumaceiro alegre; o moinho, as casas menores, o paiol, o muro a cercar a ilha
edificada no mar de vegetao, e, diante do muro, no cho limpo, uma fila estranha,
toda composta de mulheres. Ao centro, a cabea altiva e branca de Me Cndida,
batida de luz, os cabelos soprados pelo vento da tarde. E ao lado, as filhas, a nora,
todas com ar cerimonioso e ao mesmo tempo simples de disciplina (QUEIROZ,
1971, p. 44).
Alm da fazenda, a obra ainda retrata o chamado Serto, no qual se inserem as regies
a serem desbravadas pelos paulistas e pelos reinis (habitantes que tambm estavam em busca
de terras e ouro, porm se colocavam ao lado dos interesses do Reino de Portugal), nas
capitanias de So Paulo, Bahia e Minas Gerais. Como principal elemento histrico, a obra traz
a Guerra dos Emboabas (1708-1709), luta travada entre os Bandeirantes (paulistas que saam
para o Serto para a captura de ndios e procura de regies aurferas) e os Emboabas
(forasteiros portugueses e de demais regies do Brasil) pela posse de jazidas de ouro
encontradas em Minas Gerais. Mas, alm de retratar um espao fsico, o romance tambm
apresenta um espao psicolgico, em que dada voz ao fluxo de conscincia das personagens.
Esse espao tem como configurao predominante os pensamentos, julgamentos e inferncias
de Cristina, que lana um olhar feminino e europeu sobre a narrativa.
Aspectos da identidade nacional atravs da memria histrica em A Muralha
A histria e a memria podem ser ligadas uma a outra para que se possa compreender
a identidade de um povo, j que o passado elemento constitutivo daquilo que se enquanto
sujeito, no tempo presente, tanto em um parmetro individual, quanto social. Segundo
Todorov,
En primer lugar, hay que sealar que la representacin del pasado es constitutiva no
solo de la identidad individual la persona est hecha de sus propias imgenes
acerca de s misma -, sino tambin de la identidad colectiva. Ahora bien, guste o no,
la mayora de los seres humanos experimentan la necesidad de sentir su pertencia a
un grupo: as es como encuentran el mdio ms inmediato de obtener el
reconocimiento de su existncia, indispensable para todos y cada uno (TODOROV,
2008, p. 89-90).
E mesmo que a histria tenha sido por muito tempo, considerada como oposta
literatura, devido ao carter ficcional dessa, e documental daquela, o romance histrico vem
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trazer a possibilidade de uma linguagem hbrida. Assim, como ocorre na obra A Muralha,
elementos da fico so misturados a elementos reais, criando a possibilidade de se
reconstruir as caractersticas e costumes de uma poca, ou seja, aspectos da cultura e da
identidade de um povo.
A obra que narra a fundao de So Paulo revela, logo nas primeiras pginas, um das
principais caractersticas da identidade brasileira, a sua multiplicidade. Lucas destaca o
processo de formao dessa identidade:
O percurso dessa identidade representa duas etapas: a primeira, inserida na
hegemonia da contribuio europia, evidente na prpria adoo da lngua
portuguesa; a segunda, na lenta e controvertida incorporao do ndio e do negro ao
caldo cultural de que resultou a brasilidade (LUCAS, 2002, p. 28).
Cristina, ao desembarcar no porto de So Vicente, logo arrebatada por uma multido
em que se misturam o homem branco europeu, ndios, negros, brancos nascidos na terra e
ainda o mestio: Nesta confuso se chegou uma figura estranha: um mestio ruivo, de face
sardenta e rosada, de olhos fendidos no rosto chato (QUEIROZ, 2000, p. 13). Essa profuso
tnica caracterstica essencial que o brasileiro carrega at hoje, em sua mistura de raas e
culturas, descendente de tantos povos que vieram ao Novo Mundo. Alm disso, tambm
descrita a desigualdade da terra, em que fica clara a dominao autoritria do homem branco e
a submisso sofrida do negro e do ndio:
Havia uma mistura extraordinria de tipos e de raas. Homens vestidos de couro,
com botas altas, eram acompanhados de escravos negros, seminus. Vultos
esqulidos, cansados, cobertos de lamas das estradas, sentavam-se pelos desvos, ou
se acocoravam sombra das rvores, sem ter pouso certo, comendo com sofreguido
os bocados de bolacha velha ou de po seco. Havia ainda, um ou outro mineiro
acompanhado pela mulher. A companheira tambm variava de tipo e de condio.
Algumas vinham de colo e braos a descoberto, ostentando jias que o ouro fcil
lhes punha a brilhar no pescoo e nas orelhas (QUEIROZ, 2000, p. 241).
Ainda no incio do livro, tambm exaltado o esplendor da natureza tupiniquim, que
vai ao encontro de um iderio, ainda muito sustentado nos dias atuais, segundo Lucas: E a
grandeza do Brasil, idealizada na miragem de um jardim deleitoso, encher de ufanismos os
primeiros textos referentes colnia. Tal mito de grandeza nacional persiste ainda hoje em
nosso cdigo de convivncia (2002, p. 46). beleza da terra, tambm se une a ideia de
fartura: A mesa era farta, como Cristina jamais vira tanta fartura na quinta onde vivera
(QUEIROZ, 2000, p. 50). Mas, em contraste a esse quadro de natureza magnfica e
abundncia, colocada a pobreza e o desalento das cidades, que no passavam de vilarejos de
aspecto decadente Era como uma brecha ou ferida rasgando as rvores e as plantas, um vila
miservel que transbordava de gente (QUEIROZ, 2000, p. 11).
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As personagens femininas ganham relevante espao na trama e so descritas de modo
peculiar, a diferenci-las das mulheres do Reino. Determinadas e batalhadoras, so elas que
assumem o papel do homem enquanto esses passam meses no Serto. O exemplo mais forte
dessa mulher Me Cndida, a matriarca da famlia:
Como Margarida lhe dissera, as mulheres eram obrigadas a encurtar o tempo de
espera, por um trabalho quase sobre-humano. Elas no participavam, nunca,
daquelas horas de cio do mulherio do Reino. Me Cndida, ento, era como a chefe
de um pequeno Estado, um verdadeiro prncipe que encarnava em si todos os
poderes. Estava sempre aprumada, erecta, sem dar sinais de cansao e de fraqueza.
Comeava seu dia com os prprios escravos, ao toque da madrugada. No ficava
fechada em casa, a dar ordens. Ia pessoalmente fiscalizar os trabalhos de plantio e de
colheita (QUEIROZ, 2000, p. 57).
Os homens, por sua vez, acostumados dureza e lonjura (QUEIROZ, 2000, p.
189) so retratados como seres extremamente rudes e violentos, moldados pela fora da terra
e, principalmente, pela obsesso em desbravar o Novo Mundo, nem que para isso o confronto,
as guerras e a morte se faam companheiras. Ao longo da obra, uma das questes mais
marcadas na narrativa o aspecto machista da sociedade de ento, caracterstica que tambm
entra no rol de heranas culturais da brasilidade. Era natural, na poca, que os homens
tivessem muitos filhos fora do casamento, com as ndias e, as esposas, se viam obrigadas a
cuidar do fruto das traies dos maridos, sem se queixar:
Quem que sabe de vida de homem, mesmo quando se ama como eu, Cristina? A
gente fica esperando o que eles querem contar. O mato grande... Dizem que o
matrimnio so dois num s corpo. Mentira! Carne de homem diferente, tem uma
brutalidade to diferente! Hoje o carinho da mulher, amanh pode ser uma ndia,
ou uma aventureira nesses matarus. (QUEIROZ, 2000, p. 109).
Talvez por ser escrita sob um olhar feminino, tanto da autora, quanto da protagonista,
existe certa crtica sobre esse aspecto, como demonstra a passagem em que Roslia desabafa:
- Quem me vai tirar disto aqui ser meu amor. Eu no me vou casar com esses homens que
enquanto fazem um filho na mulher, fazem dez nas ndias (QUEIROZ, 2000, p. 59). A
crtica, no entanto no muito ferrenha, pois prevalece a concepo de que as mulheres
acabam subjugadas s vontades e moral ditada pelos homens. Afinal, at mesmo Cristina
que se sente profundamente atingida pela traio do marido, acaba por render-se ao amor por
ele e ficando ao seu lado, juntamente com o filho que Tiago tem com Isabel, que o deixa
sorte dos cuidados da gente da Lagoa Serena.
Outra caracterstica trabalhada na obra a dominao do homem branco sobre o povo
indgena e negro. Ambas as etnias so tratadas como servos e escravos e, muitas vezes,
desconsidera-se a qualidade de humanidade desse segmento da populao. Como descreve
Cristina, os escravos so tratados, na maioria das vezes, como animais: Posta fora de casa, no
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terreiro, estava uma enorme gamela, a mesma bacia cavada na madeira, onde, na sua quinta,
iam comer os animais. Mas ali comiam homens! (QUEIROZ, 2000, p. 15); ou ainda, como
declara Tiago Tenho minhas dvidas sobre se certos ndios so gente como ns
(QUEIROZ, 2000, p. 166). Essa relao de alteridade entre colonizador e colonizado
refletido em uma atitude de recusar a transferncia do saber populao local (indgena) ou
subjugada (escrava, negra), a fim de prolongar o domnio e atrasar a emergncia do
sentimento de autonomia (LUCAS, 2002, p. 29). A herana dessa dominao cria uma
relao de discriminao contra a identidade indgena e negra, que perdura at os dias de hoje.
Mesmo com o repdio de Cristina aos costumes do povo de So Paulo de Piratininga,
j que ela traz consigo a educao de Portugal, a obra refora o tempo todo uma vida de
tragdias enfrentada pelos paulistas, mas ao mesmo tempo de superao: os Bandeirantes e
suas mulheres, povo originrio do Brasil, acima de tudo um bravo, um heri que, mesmo
vivenciando a perda e o sofrimento, consegue vencer as adversidades. Algo muito parecido
com a exaltao da esperana que o brasileiro carrega em sua identidade moderna
H um pragmatismo de fundo irracional e interesseiro no esprito brasileiro que
aspira a salvao pelo acaso e confia em foras insondveis que conduzem
superao dos obstculos e instncia afortunada, quase paradisaca. A psicose da
acomodao das circunstncias aos desejos materiais da populao constitui em um
sinal das expectativas coletivas do brasileiro. Um manancial de cegas esperanas
(LUCAS, 2002, p. 46).
Essa marca est registrada principalmente ao final do livro, momento em que Tiago,
at ento excludo injustamente pela famlia e pela sociedade, tem sua bravura oficialmente
reconhecida, sendo convidado a liderar uma nova expedio das Bandeiras e Cristina, apesar
de todo seu desacordo com a sujeira como ela define preconceituosamente So Paulo - do
Novo Mundo, prenuncia um futuro de grandeza terra que est se formando:
J as nuvens no mostravam mais o mesmo contorno, e no entanto continuava
possuda pela miragem: - Com homens assim, assim loucos e teimosos, e mulheres
to atrevidas e obstinadas... sabes o que me vm cabea? Que esta sujeira... ela
quase cuspiu de raiva naquele desafio grandeza de Deus, mas se dobrou, cativa da
imensido - ...bem pode tornar-se, um dia, uma grande cidade (QUEIROZ, 2000, p.
414).
Assim, fundamentada na esperana de um devir, na miscigenao tnica (deixando
transparecer a dominao cruel do branco sobre o ndio e o negro), nos traos machistas, mas
com a exaltao da mulher como dotada de personalidade forte e do homem valente e audaz,
na descrio da abundncia da riqueza natural e na grandiosidade da terra, os costumes, a
cultura e a personalidade dos habitantes da poca de formao do pas so retratados na obra
A Muralha. Atravs do resgate da memria histrica do povo paulista, Queiroz reconstitui, de
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acordo com a sua leitura frente histria, os principais traos que fundamentam a identidade
plural - brasileira, uma identidade que percorre o tempo como portadora de ambiguidade,
de ser sociedade nova, fruto da colonizao europia, mas que no se amolda bem sua
herana (SALLUM, 2008, p. 238). No por acaso, a obra se constitui como objeto simblico
da identidade nacional, no momento em que uma homenagem aos 400 anos da cidade de
So Paulo, e, quase 50 anos depois, transposta para a televiso, no formato minissrie, em
comemorao aos 500 anos do Brasil.
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Brasil: um banquete no trpico. Loureno Dantas Mota (org.). So Paulo: SENAC, 1999.
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Biblioteca Virtual de Ciencias Sociales - www.cholonautas.edu.pe.
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A resistncia nas narrativas pampianas de Sergio Faraco
LEITES, Amalia Cardona
*
Resumo: O precrio desenvolvimento urbano das cidades perifricas da Amrica do Sul at hoje evidente para
qualquer viajante que percorra o pampa brasileiro e perceba a pobreza e a existncia miservel do gacho, que
resiste e luta por sua sobrevivncia em paisagens de conflito constante. O objetivo deste trabalho analisar
quatro contos do escritor brasileiro Sergio Faraco, para tentar compreender como o contexto histrico de
violncia e autoritarismo na fronteira sul do Brasil influenciou a sociedade e o comportamento das pessoas que
vivem nesta regio, e como a relao com a fronteira interfere em seus s de vida e morte. Para esta anlise,
trabalharemos com os conceitos de entre lugar e fronteira desde a perspectiva de autores como Silviano
Santiago, Eduardo Coutinho, Angel Rama e Simon Schwartzman. Pensar em fronteiras significa entender os
distintos modos de resistir na vida e distintas sensibilidades. Na anlise destes contos, o que se sobressai a
condio de misria cultural e econmica dos protagonistas que, ignorantes de sua condio, tornam-se vtimas
de um sistema autoritrio impossvel de contestar e, sobretudo, do qual no se pode escapar.
Palavras-chave: Autoritarismo. Fronteira. Sergio Faraco. Violncia
Sergio Faraco, um dos principais contistas gachos, escreveu a maior parte de sua
produo nas dcadas de 70 e 80. Autor de contos que se dividem entre os de temtica urbana
e rural, contudo, foi com as chamadas narrativas regionalistas que se consagrou no gnero e
perante a crtica.
A ideia de que a presena da cor local seria uma forma de revitalizar a dimenso
verdadeiramente humana das personagens e revigorar o Regionalismo desenvolvida por
crticas como La Masina, Gilda Bittencourt e Ana Mariza Filipouski. Na obra Percursos de
Leitura (1994), Masina parte do princpio de que o Regionalismo, ainda que delimitado por
caractersticas temporais como movimento literrio, permanecia como tendncia e fonte do
surgimento do mito do gacho, transmitido pela tradio. Ao reconhecer o carter reacionrio
deste Regionalismo, a autora percebe na obra de Sergio Faraco o vis da reflexo e da
conscincia crtica, ao desmistificar a figura do gacho com personagens cheios de medo,
vergonha e desejo, impotentes em sua relao com o meio. A nostalgia do passado pico e
glorioso no existe nestes contos, o homem se sujeita a seu destino miservel, e a velha
oposio do Regionalismo com a metrpole desaparece, dando lugar a novas formas
opositivas e novas relaes circunstanciais.
*
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].
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Enquanto La Masina enfatiza as situaes de travessia e passagem na obra do contista
como forma de sobrevivncia em um mundo rude e violento, Gilda Neves da Silva
Bittencourt, em O conto sul-riograndense (1999) percebe, sobretudo a forte identificao das
personagens de Faraco com a realidade da campanha, agreste e rstica, e como os ideais de
honra, amizade e lealdade so violados. Esta violao representaria a aprendizagem, o
despertar para uma nova realidade, oposta ao mundo idealizado da juventude e do
Regionalismo tradicional. Segundo Bittencourt, a imagem da campanha como um mundo
decadente destruiria as antigas crenas do Regionalismo, porm os textos de Faraco
expressariam a ideia de que mesmo diante do irremedivel permanece a confiana na
possibilidade de encontrar novos caminhos e reverter a situao.
A violao dos valores de lealdade e coragem, claros para Gilda Bittencourt, no
ocorre ao menos no da mesma forma segundo a tica de Ana Mariza Filipouski . Para
ela, tais valores persistem exatamente por serem necessrios aos afazeres caractersticos dos
comerciantes ou pees que tem em sua rotina o contrabando e a lide campeira, e suas aes
so legitimadas e melhor entendidas se compreendemos a importncia do pampa como pano
de fundo das narrativas - a regio fronteiria representaria transio e mudana. Ademais, a
humanidade dos gachos de Faraco, que lutam por uma sobrevivncia digna, apontaria para a
universalidade da narrativa, e finalmente, sua interao telrica reafirmaria sua identidade e
seu pertencimento a uma fronteira que no se restringe aos limites geogrficos.
Estas diferentes anlises da obra do contista ora sugerem que a relao das
personagens de Faraco com a fronteira indica uma identidade firmada, sensao de
pertencimento, e ora afirmam que tal relao aponta justamente o contrrio, a ausncia de
identidade e o entre lugar. Acreditamos que seja, portanto, necessrio compreender o papel da
fronteira histrica para entendermos onde, exatamente, as personagens de Faraco esto a
transitar.
Desde o ponto de vista poltico, a expresso fronteira refere-se s zonas e faixas de
territrio existentes nos dois lados da linha divisria entre os Estados. No caso do Brasil, foi
adotada como dimenso de sua fronteira o espao de 150 km a partir da linha, mas na prtica
a zona fronteiria diz respeito tambm e principalmente - s fronteiras econmicas, sociais,
culturais e ambientais. Historicamente, a fronteira rio-grandense passou pela experincia
singular de ter sido praticamente a nica fronteira viva do pas, como afirma Simon
Schwartzman (1988). Por viva, entenda-se um estado constante de violncia e mobilizao
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militar, j que, diferentemente das fronteiras mais ao norte, no havia barreiras naturais como
florestas ou montanhas que delimitassem os territrios das colnias portuguesa e espanhola, o
que acabou por originar inmeros conflitos e, portanto, um estado de beligerncia contnua
em praticamente toda a populao da regio. A psicologia do gacho de fronteira, desta
forma, teria sofrido influncia de toda experincia militar que acontecia em seu ambiente,
juntamente com a dicotomia portugueses-espanhis, determinante at da economia: A vida
econmica baseou-se, por muito tempo, em atividades predatrias contra os espanhis, na
captura do gado que pastava livremente pelos pampas, em ataques s misses jesutas, e no
contrabando entre os domnios espanhis e portugueses, segundo Schwartzman. A
militarizao estava presente em todos os aspectos da vida.
Neste panorama repleto de resistncias e revoltas a fronteira sempre foi o lugar da
descoberta do outro e do desencontro, um espao dinmico e principalmente contraditrio
onde a separao poltica nunca logrou impedir o intercmbio social e cultural. Rui Cunha
Martins afirma que
O pressuposto o de que a fronteira hoje, fundamentalmente, uma metfora (...) A
novidade, a haver alguma, no radicar tanto na possibilidade da transgresso
quanto, sobretudo, no culto dessa transgresso, na promoo da fronteira enquanto
local promscuo e, por isso, espao natural de uma subjetividade
emergente(MARTINS apud GOLIN, 2004, p.19).
Esta concepo de fronteira como local promscuo onde se cultua a transgresso ser
empregada na medida em que se entende a promiscuidade no sentido original da palavra,
indicando mistura confusa e desordenada, sem ordem nem distino. Segundo Martins, a
novidade aqui no a ocorrncia da transgresso, mas exatamente a elevao de seus status,
que de exceo passar a ser regra - como nos contos A voz do corao, Hombre e Noite de
matar um homem.
Noite de matar um homem
Publicado originalmente em 1986, neste conto temos dois amigos, Pacho e o
protagonista, contrabandistas da fronteira com o Uruguai que empreendem uma espcie de
caada humana em busca de outro chibeiro com quem estavam a disputar o territrio. O
trabalho, que consistia em carregar mercadorias do Uruguai para o Brasil e vice-versa, j era
pouco, e desde a chegada do forasteiro havia escasseado mais ainda.
Denominado Mouro, o estranho havia chegado em um momento em que os campos e
matos livres da fronteira estavam diminuindo e portanto, o negcio era cada vez mais
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disputado. Para conquistar seu espao, passa a usar da violncia e atrai a ateno da polcia,
mas como vive escondido no mato, o protagonista, que mora com a famlia perto do Rio
Uruguai, quem sofre com a situao e recebe a revista policial de tempos em tempos. A
ousadia final do Mouro, que causa o auge da indignao e motiva a caada, o desvio de um
barco carregado de usque e cigarros americanos. A famlia rene-se e dois homens so
designados para mat-lo o protagonista e seu primo, Pacho.
Quando encontram seu alvo, ele est sentado na beira de uma fogueira, assando carne.
Ao se prepararem para atirar, um bando de aves agita-se e chama a ateno do Mouro, o que
provoca a fuga dos caadores. Aterrorizados e ao mesmo tempo constrangidos por no
terminarem sua misso e retirarem-se, retomam o caminho para casa, preocupados com o que
seu tio ir dizer, at que se deparam com o inimigo no meio do mato, encostado em um tronco
de rvore e observando-os. Nessa aproximao percebem que ele est ferido no rosto e no
brao esquerdo mas carrega algo prateado na outra mo. Em um timo, ambos disparam
suas armas e concretizam sua caada, matando o forasteiro.
S ento percebem que o inimigo no estava armado, mas sim acompanhado da gaita
de boca. Pacho chora abraado em sua arma, o protagonista enche-se de horror:
Vomitei e vomitei de novo e j vinha outra nsia, como se minha alma quisesse
expulsar do corpo no apenas a comida velha, os sucos, mas tambm aquela noite
aporreada, malparida, e a histria daquele homem que aos meus ps estrebuchava
como um porco. Recuei, no podia desviar os olhos e fui-me afastando e me urinava
e me sentia sujo e envelhecido (Faraco, 2004, p.42)
Ao voltarem para casa, cheios de tonturas e calafrios, em choque, mal conseguiam
falar. Entre el sueo y la verdad o trem da vida cobrava uma passagem mui salgada, afirma
o protagonista. A deciso que se anunciava como um smbolo de transio para o mundo
adulto, o assassinato do oponente, mostrava-se de sua forma mais cruel. A morte queima-
roupa de um homem desarmado, que ainda tentou estabelecer um dilogo antes de ser
baleado, choca-se com o ideal de justia pelas prprias mos que movia os personagens ao
sarem de casa determinados a resolver o problema do forasteiro que disputava as
mercadorias com a famlia.
O papel que o homem fronteirio precisa desempenhar no pampa no permite
fraquezas desta espcie. A fronteira seria local de matar ou morrer, no possibilitaria dilogo
ou meio-termo. O contraditrio se d na reao dos personagens que, inicialmente cheios de
coragem e disposio, ao confrontarem-se com a realidade da morte revelam-se sensveis e
entristecidos. Sua reao interna, contudo, vai contra o que se espera do esteretipo do gacho
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bravo e destemido e, portanto, deve ser abafada, escondida. A transio para a idade adulta,
com suas responsabilidades e consequncias, traumtica e repleta de horror frente a
chocante lgica do matar ou morrer. O amadurecimento forado transmite novamente a ideia
de impotncia frente ao meio selvagem do pampa, local em que a sensibilidade vista como
fraqueza e quem, portanto, deve ser abafada, disfarada, de qualquer modo. Os protagonistas
sofrem em silncio:
Pacho, o pobre, dormia como deleriado, eu tambm me emborrachara e tinha
tonturas, calafrios, quase no podia falar. E adiantava falar? Choramingar que entre
el sueo y la verdad o trem da vida cobrava uma passagem muy salgada? Isso o meu
tio, na idade dele, estava podre de saber. - E o homem? tornou, apreensivo.
- Nem fez mossa pude responder, segurando-me na porta. Se tem barco em
Monte Caseros, pode mandar subir. (Ibid, p.43)
Sua sensibilidade deve-se somente sua inexperincia - o que lhes foi ensinado. E
a forma pela qual devero orientar suas vidas. O chibeiro miservel, vivendo em uma terra
sem lei, deve criar as suas prprias leis para conseguir seus sustento e permanecer no jogo.
A voz do corao
No conto A voz do corao, publicado pela primeira vez em 1995, temos um
narrador protagonista que relata uma noite de caada na regio rural do pampa gacho, perto
do rio Inhandu. Ele e seus dois companheiros, Pacho e Maidana, eram perseguidos pelo
proprietrio das terras, acompanhado de outros homens e cachorros. O protagonista e Pacho
decidem seguir a fuga pelo meio do mato mas Maidana, que no conhecia a fama de Orlando
Faria, o dono da estncia, decide ficar.
O narrador relata que Orlando, tambm chamado de Gordo, era conhecido na regio
por ter herdado de sua famlia um pedao de campo que conseguiu aumentar gradativamente
emprestando dinheiro a juros, ameaando e expulsando os moradores das proximidades.
Atribua-se a ele, alm disso, a ordem para torturar e mutilar um idoso que vivia sozinho
devido a uma disputa por um pedao de terra. Joo Fagundes, sua vtima, havia morrido
abandonado em seu rancho e contava-se que desde ento passara a assombrar as cercanias,
montado em seu cavalo. Os companheiros de Orlando que naquele momento perseguiam o
trio so descritos como ral endemoniada, sem corao, que por casa e comida perdia o
respeito at pelos parentes. (Ibid, p.52), e a eles tambm eram atribudas inmeras mortes.
No decorrer da fuga, o protagonista fere-se em um galho de rvore, mas mesmo assim
eles conseguem atravessar o rio e refugiam-se em um local seguro. Aps fazer um curativo no
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ferimento, os dois amigos ouvem o barulho de tiros juntamente com risadas, gritos, assovios e
ganidos de cachorros. Maidana havia sido morto. Revoltados, o protagonista e Pacho esto
completamente impotentes frente tamanha injustia. Um ser humano era morto por caar
animais silvestres dos pampas, e naquele momento seu corpo terminava de ser destrudo por
mordidas de cachorro.
Retomando o caminho, agora do outro lado do rio, os caadores ouvem um galope de
cavalo e avistam um homem, provavelmente empregado de Orlando, tomando gua na
margem oposta. Decidem mat-lo para acertar as contas. O protagonista justifica-se:
E era preciso. Naquele cu do mundo, o que podia fazer um desgraado seno ouvir a
voz do corao? Algum tinha de pagar e no s pelo Maidana. Tambm pela
mulher que ia cair na vida, tambm pelo filho que, no morrendo pesteado, ia ser
ladro que nem a gente (Ibid, p.55)
O trecho acima extremamente significativo do conto, porque nos indica a condio
dos personagens. Podemos afirmar que so pobres, no tem emprego fixo e vivem de roubos.
Sua lgica, como demonstram suas atitudes, a do olho por olho, dente por dente. Tal
lgica primitiva, contudo, contrasta com a sensibilidade do protagonista, que admira as
estrelas, a lua e posteriormente relata seu sofrimento e sua vontade de chorar no momento em
que o amigo morto. Essa psicologia singular em que a violncia, a humanidade e a
sensibilidade coexistem, enreda-se ainda mais quando ele declara que, se no estivesse ferido,
teria preferido matar o empregado da fazenda com uma faca no pescoo, ato muito mais
pessoal e direto e que exige extremo sangue frio. Mas no nos precipitemos - classificar tal
declarao como crueldade simplificar a questo das relaes de poder na narrativa. O
estancieiro o inimigo, est do lado oposto do protagonista, no pertencem ao mesmo grupo
e, portanto, no so vistos como iguais. Orlando representa o poder econmico, a autoridade
opressora e a manuteno da ordem. Do outro lado est a pobreza e a transgresso s leis.
Nesta conjuntura, o interior do pampa gacho, regio marcada historicamente pelo conflito
violento de interesses e classes sociais, assemelha-se a um cenrio de guerra. Na medida em
que o oponente reificado e tirado de sua condio humana, explicam-se os atos brbaros
advindos de ambos os lados e porque eles so percebidos com naturalidade:
Mirei no meio das costas, e ao tiro seguiu-se um bater de asas, uma correria de
capincho no mato e o eco se esganiando em canhadas e barrancas daquele rio
amargo.
O homem caiu de bruos entre as patas do cavalo.
-Me mataram gritou. Hijo de la gran puta, me mataram!
Como dois bichos, andando de quatro, nos metemos no mato e amos ouvindo, cada
vez mais espaados, distantes, os gritos do moribundo. De repente um relincho
atravessou a noite, e outro, e mais outro, e de repente no se ouviu mais nada.
Caminhvamos.(Ibid, p.55)
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O conto acaba com este verbo de ao, indicando que a jornada dos caadores
continuar. Podemos deduzir que perseguies como esta, durante a noite, no meio do mato,
terminadas em morte, eram uma constante naquela realidade, e seguiriam sendo. Os
acontecimentos no transformam o protagonista nem causam maiores reflexes. A ideia
transmitida que matar e ser morto, nas fronteiras esquecidas do Rio Grande do Sul, no
nada mais do que parte do cotidiano. O que no conto anteriormente analisado, Noite de matar
um homem, era novidade e amadurecimento forado, aqui passa a ser apenas mais um fato
ocorrido em uma noite qualquer da fronteira esquecida. Os protagonistas de agora so o que
espera do gacho valente, que tem sentimento apenas pelos que lhe so caros e vingam a
morte de um companheiro sem piedade ou conflito interno.
Hombre
A vida no pampa descrita nos contos anteriores aparece bastante mudada nesta
narrativa. Os protagonistas o narrador e, novamente, seu amigo Pacho aqui saem em busca
de uma capivara para comemorar o batizado do filho do ltimo. O narrador, que havia ido
embora para a cidade anos antes, j no possua a mesma habilidade com elementos como o
barco e a arma e virava motivo de chacota para seu primo. Em uma madrugada fria no rio
Uruguai, desacostumado s atividades tpicas do campo, enche-se de medos e preocupaes.
Quando se deparam com a capivara, o protagonista erra o tiro e o animal foge,
terminando com a possibilidade de comemorao do batizado com algo mais substancial do
que um pacote de mariolas. Importante observar que naquela regio sempre existiram
grandes grupos do animal soltos pelos campos, mas como sua carne no podia ser legalmente
comercializada era destinada apenas alimentao das prprias famlias dos caadores.
Originalmente a caa da capivara no era, portanto, uma forma de negcio ou de se fazer
dinheiro, mas sim de sobreviver.
Contudo os tempos so outros, e para culminar com uma noite j condenada ao
fracasso, os caadores so surpreendidos por uma lancha com os empregados de Eugenio
Tourn, um argentino rico que era proprietrio de diversos campos e matos na costa do rio
Uruguai. Tendo as autoridades a seu lado, ele havia prometido exterminar os capincheiros da
regio, e para isso seus funcionrios realizavam suas rondas no rio, pela noite.
O conflito campo versus cidade aqui se mostra com toda sua fora. O homem da
cidade visto pelo do campo como mau e traidor, no digno de confiana. A lei no campo
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obedece a outras regras, e ainda que tambm seja violenta, tida como mais justa e humana
por considerar a importncia da sobrevivncia antes de tudo. E assim, a chalana encontrada
e recebida a tiros pelos integrantes da lancha. O protagonista se desespera e tudo que
consegue tentar esconder-se, sem ajudar o amigo na fuga. A reviravolta se d quando Pacho
revela que havia se prevenido e feito vrios buracos no barco inimigo, o que impede uma
perseguio mais violenta e provoca o afundamento da embarcao, com a morte de quase
todos seus integrantes.
Ante o choque e o julgamento de seu interlocutor, Pacho explica seu posicionamento:
-Que eles comearam, comearam cortou ele, num tom cheio de mgoa. Isso
aqui era um lugar bom. Carne trabalhosa, mas chegava, pele de ntria pra negcio e
mais a pena do avestruz, de vez em quando uma chibada de perfume, cigarro
americano...lembra? A gente se defendia e a vida era decente. A eles comearam a
se adonar de tudo, at dos bichos do mato, e mandaram a lei e esses
bandidos.(Ibid,p.86)
Junto com a lei, a contraditria vinda dos bandidos, que como justiceiros dos
fazendeiros desequilibravam o ambiente antes livre da fronteira, provoca revolta e demonstra
a impotncia do chibeiro frente aos novos tempos. Ainda preciso comer, ainda preciso
trabalhar, mas as opes so cada vez menores.
O protagonista tenta argumentar contra a ttica de pagar violncia com mais violncia,
ao que surpreendido por Pacho, que afirma que o outro no entende porque no pertence
mais quele ambiente:
-Trocou o rio pela cidade, pela capital, virou homem de delicadezas, empregado de
patro, trocando a amizade dos amigos pelo esculacho dos endinheirados. Pra que
serve tudo isso? Agora ta, um pobre-diabo que no presta pra mais nada. Dispara
feio num capincho e no primeiro entrevero se borra nas calas. (Ibid,p.87)
Na geografia da fronteira gacha, no havia meio-termo para definir um homem.
Afastar-se de seu meio e ir embora para a cidade significava virar as costas para suas razes,
renegar seu passado, perder o valor como ser humano. Sua atitude fracassada no momento
mais tenso dos acontecimentos s havia comprovado a teoria de Pacho.
Em comparao com os contos anteriores, neste o que se destaca a diferente atitude
do protagonista as caractersticas do fronteirio quase selvagem; que responde lei do olho
por olho, dente por dente; que mesmo em conflito com seu meio no adquire uma atitude
passiva, aqui transformada. O fronteirio se afastou de suas razes, trocou o campo pela
cidade, e isto implica uma profunda mudana de comportamento. O que antes eram atividades
cotidianas e necessrias para a sobrevivncia na fronteira, como a caa e o confronto com a
autoridade, agora passam a ser experincias traumticas.
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A identidade anterior no mais existia, pois ele havia trocado de lado agora ele era o
outro, estava do lado do inimigo e no conseguia compreender o que antes lhe era natural.
Esta narrativa reala o destino da grande maioria dos homens do campo em um estado que
estava se modernizando, onde os empregos no meio rural so cada vez mais escassos e
necessrio abandonar as razes para lutar por sobrevivncia longe de casa e dos seus.
A histria como elemento constitutivo da regionalidade e da resistncia
Nos contos aqui analisados a morte aparece como algo banalizado, e para entender
este aspecto impossvel separ-lo de seu contexto. O homem do campo precisa lidar com a
morte diariamente, seja quando caa os animais silvestres ou quando abate seus prprios. As
crianas nascem e crescem neste ambiente, sabendo que a morte necessria para a
manuteno de sua prpria vida e desconhecendo conceitos como crueldade ou brutalidade. O
que existe a necessidade de sobrevivncia, e a partir desta ideia que os demais valores so
construdos. A morte dos animais necessria, to necessria quanto a morte daqueles que
prejudicam os negcios ou dos que assassinaram o amigo. Contudo, quando o homem est
morto, inverte-se a cadeia alimentar e os animais adquirem o direito de se alimentar de seu
corpo.
O historiador Tau Golin cita Rui Cunha Martins para auxiliar na compreenso da
intrnseca violncia nas regies de fronteira. Ele entende que as fronteiras so o resultado do
movimento que leva os homens a sair do seu estado natural, violento, para formar
agrupamentos polticos. O enfrentamento entre estes agrupamentos provocaria o retorno ao
estado de natureza o que caracterizaria a fronteira como palco do inumano e do retorno
ancestral violncia.
Lembremos que, na histria platina, como em quase toda a Amrica Latina, o conceito
de nao era especialmente abstrato devido carncia de comunicao nas enormes extenses
de terra, e, portanto, ele foi precedido pelo conceito de regio, mais palpvel e real para seus
habitantes. Com o passar do tempo e o avano da civilizao, a fronteira passou a
representar o ambiente onde se encontraram ambguas, tensas e em suas alteridades, a regio
e a nao.
Este movimento, contudo, mostra-se contraditrio ao levarmos em conta que os
personagens que banalizam a morte e que fazem a justia sua maneira so os mesmos que
choram aps cometerem o primeiro assassinato de suas vidas, como Pacho no conto Noite de
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matar um homem. So, alm do mais, sensveis admiradores das estrelas, como em A voz
do corao.
O regionalismo existente nas narrativas do contista alegretense surge como fruto deste
movimento feito pela figura do gacho que, de um tipo valente, destemido, hospitaleiro e
grande cavaleiro passa a ser representado tambm com todas suas pequenezes, sua frieza,
egosmo, medos e fracassos. Este regionalismo tambm resposta proposio aculturadora
que o modernismo trazia nas primeiras dcadas do sculo XX, e que se constituiu,
primeiramente, como uma retirada defensiva no seio da cultura regional. Posteriormente, ele
passou a assumir o desejo de reexaminar de forma crtica as condies peculiares de sua
prpria cultura e a autenticidade de seus recursos expressivos.
Este panorama, onde se insere Faraco ao rearticular a figura do gacho, aproxima-o do
conceito de transculturao narrativa de Rama. Seu gacho no simplesmente a negao do
elemento romntico, mas uma mistura que surge como resposta onda modernizadora do
campo e em que se geram os trs focos de ao mencionados por Rama: repleto de
destruies, reafirmaes e absores, este gacho a uma s vez corajoso e retrado,
hospitaleiro e vingativo, aguerrido e sentimental.
O regionalismo e a resistncia dos contos de Faraco, desta forma, apresentam a figura
do gacho que habita em um ambiente fronteirio em que a modernizao transformou as
relaes humanas e a forma de vida mesmo nos rinces mais afastados. Pablo Rocca (2004)
chama este tipo de narrativa de ps-gauchesca, por reajustar ou modernizar os meios
expressivos da narrativa gauchesca de acordo com as transformaes econmicas, polticas e
sociais ocorridas no sculo XX. O gacho revolucionrio deu lugar ao domesticado peo de
estncia, o campo aberto foi substitudo pela cerca e os aglomerados de casas entraram no
lugar dos solitrios ranchos. Estes fatores, segundo Rocca, estariam condizentes com o projeto
de reconstruo de uma coletividade rural em desaparecimento.
Esta comunidade, a nosso ver, tenta resistir a isto e percebe que a sobrevivncia s
possvel quando o homem aproxima-se de seu lado mais animal, instintivo, e passa a
enxergar-se como coadjuvante em um ambiente indmito.
As relaes destes contos com a realidade do ambiente de fronteira latino-americano
so inegveis. O retrato que resulta das narrativas de Faraco no de forma alguma buclico.
O contista nos traz o gacho desmistificado, bem diferente do heri cantado nas msicas
tradicionalistas. Ele pobre, contrabandista, precisa roubar para viver e matar quando for
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preciso. Sua misria , mais que tudo, cultural. Mas no devemos julgar ou criticar tal
posio. Analisando brevemente a histria da regio, percebemos como desde sempre ela foi
marcada pela violncia e pela presena de autoridades inquestionveis que mantinham a
ordem social. A modernizao ocorrida no sculo XX trouxe consigo a excluso social
daqueles que no se adaptaram, o que de certa forma uniu ainda mais as regies de fronteira
da Amrica do Sul. Ou melhor, a excluso social acabou por configur-las novamente,
transform-las, em espaos no apenas nacionais e territoriais, mas tambm tericos.
E, se em todas as narrativas aqui analisadas o autor no se detm a desenvolver os
conflitos psicolgicos de seus personagens, isto no implica em falta de impacto no leitor. O
gacho ainda um guerreiro, mas de outra espcie: guerreiro pobre, que permanece s
margens da sociedade e tem o mundo repleto de cercas lhe impossibilitando a passagem - que
antes era livre.
A fronteira territrio vagamente indefinido, onde o homem precisa sempre resistir,
passar por provaes e ritos de passagem para ser capaz de enfrentar a travessia e construir
sua identidade, sem poder de modificar seu injusto destino. Sandra Pesavento (2004) observa
que, alm de ser o territrio de indivduos histrico e socialmente marginalizados, as
fronteiras
no so apenas marcos divisrios construdos, que representam limites e
estabelecem divises. Elas tambm induzem a pensar na passagem, na comunicao,
no dilogo, no intercmbio. Figurando um trnsito no apenas de lugar, mas tambm
de situao ou de poca, essa dimenso da fronteira aponta para a instigante reflexo
de que, pelo contato e permeabilidade, a fronteira possibilita o surgimento de algo
novo, hbrido, diferente, mestio, de um terceiro que se insinua nesta situao de
passagem (Pesavento, 2004, p.110)
Desta forma, pensar em fronteiras significa trazer tona diferentes modos de perceber
a vida e diferentes sensibilidades. Ao analisarmos os contos de Sergio Faraco, o que se
sobressaiu foi a condio de misria cultural e econmica dos protagonistas que, ignorantes
de sua condio, tornam-se vtimas de um sistema autoritrio ao qual tentam de todas as
formas resistir, mas, acima de tudo, do qual no possvel escapar.
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1957 - O levante
DETONI, Mariangela Rotta
*
Resumo: A violncia o instrumento que os seres humanos possuem ao seu dispor para realizar um fim e que se
justifica e orienta por este. No se pode contestar que a violncia tenha existido sempre e em toda a parte, como
se consolida a autoridade da Lei. A partir de postulados de Arendt, compreende-se a aplicao eficaz da
violncia, que depende do poder que a sustenta e pode-se compreender que o uso da violncia sem uma
sustentao legtima, reduz o seu alcance aos efeitos causados sobre uma situao momentnea que, para serem
prolongados, necessitam obrigatoriamente do total apoio de um grupo social. Para o esclarecimento das questes
relativas ao discurso que sustenta a violncia, utiliza-se as abordagens freudianas e lacanianas. A questo da
violncia que configurou a passagem do sculo XX, neste artigo ser focada especificamente no ano de 1957, na
regio Sudoeste do Estado do Paran, envolvendo algumas cidades: Clevelndia, Pato Branco, Guarapuava,
Francisco Beltro, Ver, Santo Antnio do Sudoeste, considerando os aspectos do discurso do poder em relao
populao onde focado, a revolta e o resultado desta. Para a compreenso do processo da revolta, embasamos o
presente artigo nas obras de Gomes e Waichowicz.
Palavras-chave: 1957. Revolta. Violncia. Voz. Paran.
A vontade de poder, denunciada ou glorificada pelos
pensadores modernos de Hobbes a Nietzsche, longe de ser
uma caracterstica do forte, , como a cobia e a inveja,
um dos vcios do fraco, talvez o seu mais perigoso vcio.
(Arendt, H., A condio humana, p. 215)
Os valores filosficos oriundos das ideias romnticas do sculo XIX foram
profundamente transformados pelas guerras e extermnios em massa de grandes populaes
que ocorreram no sculo XX, que foi marcado pela violncia de forma nunca antes registrada,
em decorrncia do desenvolvimento cientfico e tecnolgico. Se por um lado o
desenvolvimento foi o prenunciador da morte, por outro, tambm permitiu o incremento de
bens de consumo que proporcionaram a sustentao de uma populao cada vez maior. Assim
como a tecnologia armamentista e de comunicaes cresceram, da mesma forma as pesquisas
no campo biolgico e de produo de medicamentos progrediram, vindo a salvar uma enorme
quantidade de pessoas.
*
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].
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A primeira metade do sculo XX foi marcada por uma ideologia plural,
arraigadamente nacionalista, socialista e de liberalismo econmico, posicionamentos esses
defendidos pelas geraes anteriores. Nesse perodo, o pragmatismo, uma das correntes de
pensamento mais importantes, antecipou-se crtica ps-moderna na concepo de uma razo
que pode falhar na sustentao da verdade. Do ponto de vista poltico, a Escola de Frankfurt
procurou fazer uma crtica da sociedade desde uma perspectiva marxista, sem, no entanto,
comprometer-se com uma utpica realizao de um projeto revolucionrio.
Em meio s questes de guerra que o mundo vivenciava ao passar pela primeira e pela
segunda Grande Guerra, coube tambm a Hannah Arendt (1906-1975) fazer um exame
preciso do conceito de violncia, caracterstico de sua poca. Terica poltica alem, muitas
vezes descrita como filsofa, apesar de ter recusado essa designao, seu trabalho abarca
temas como poltica, autoridade, totalitarismo, educao, condio laboral, condio da
mulher e violncia.
A violncia o instrumento que os seres humanos possuem ao seu dispor para realizar
um fim e que se justifica e orienta por este.
No se pode contestar que a violncia tenha existido sempre e em toda a parte, quando
pensamos em como se construram e destruram civilizaes e imprios; como as religies
cometeram barbries em nome de deus ou deuses; como se delinearam o contorno do corpo da
propriedade; como se perpetuam ou se derrubam privilgios do poder; como se consolida a
autoridade da Lei. A aplicao eficaz da violncia depende do poder que a sustenta. Dessa
forma, pode-se compreender que o uso da violncia sem uma sustentao legtima, reduz o
seu alcance aos efeitos causados sobre uma situao momentnea que, para serem
prolongados, necessitam obrigatoriamente do total apoio de um grupo social.
A respeito da violncia relacionada ao poder, a filsofa postula:
O poder e a violncia se opem: onde um domina de forma absoluta, o outro est
ausente. A violncia aparece onde o poder est em perigo, mas se deixar que
percorra o seu curso natural, o resultado ser o desaparecimento do poder. Tal coisa
significa que no correto pensar na no-violncia como o oposto da violncia; falar
de poder no-violento realmente uma redundncia. A violncia pode destruir o
poder, mas incapaz de cri-lo. (ARENDT, 1985, p. 30-31).
A progressiva perda do poder de mando dos governos constitudos aliada
manipulao e criao de instrumentos de morte em massa proporcionou a propagao da
violncia na era contempornea. Dessa forma, a dissipao do poder legtimo dos Estados
esvaziou o uso da fora por meios violentos. O avano tecnolgico armamentista veio a
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democratizar a violncia, pois permitiu o acesso do indivduo s armas de fogo mais
destrutivas. Foram diversos os fatores permissivos a tais acontecimentos, dentre os quais o
fato da autoridade constituda no usufruir mais da acordncia dos marginalizados (no
banditismo, na guerrilha poltica ou na crescente multido de excludos) e por no ter mais o
controle para poder ampliar o acesso aos bens gerados e mal distribudos pela sociedade.
A questo da violncia que configurou a passagem do sculo XX urge ser considerada
quando focada especificamente em meados desse sculo, aps a segunda Grande Guerra, na
regio Sudoeste do Estado do Paran, envolvendo algumas cidades: Clevelndia, Pato Branco,
Guarapuava, Francisco Beltro, Ver, Santo Antnio do Sudoeste e arredores, at a fronteira
com a Argentina. Essa regio, nos anos 20, possua baixa densidade demogrfica, segundo
Waichowicz (1987, pg. 55). Caracterizava a populao dessa regio a presena de caboclos,
em sua maioria, e tambm era utilizada como refgio de bandidos e foras da lei, por ser erma
e prxima fronteira, a qual ainda passava por demarcaes definitivas. Os caboclos da
regio, que eram pobres e no proprietrios das terras onde viviam, faziam-no na forma de
posse, eram pees agregados de fazendas de Palmas, Clevelndia e Guarapuava e vinham em
busca de terras de subsistncia; os procurados pela justia do Sul do Brasil e da Argentina
eram posseiros foragidos da regio do Contestado, argentinos e paraguaios.
No ano de 1943, atravs da poltica de colonizao e reforma agrria, o governo
Vargas criou na regio do Sudoeste do Paran a CANGO Colnia Agrcola Nacional
General Osrio, objetivando a distribuio de terras para migrantes provenientes do Rio
Grande do Sul e Santa Catarina, os quais eram massivamente descendentes de europeus.
A terra que a CANGO oferecia aos migrantes, denominada Gleba das Misses, era
objeto de disputa judiciria no Estado do Paran. Apesar da situao indefinida da terra, a
CANGO incentivou a vinda dos migrantes, pois era importante tambm para o governo que a
terra fosse ocupada para a definio das fronteiras brasileiras. A CITLA Companhia
Clevelndia Industrial e Territorial Ltda., no ano de 1957 comprou as terras da Gleba das
Misses, da CANGO. Os representantes da CITLA eram aliados do PSD Partido Social
Democrata, que era o partido tanto do governo estadual como do governo federal.
A rea de terra negociada em favor da CITLA abrangia o territrio da CANGO com
mais de 3 mil colonos assentados, uma enorme reserva de pinheiros araucria prontos para o
corte, rvores de madeira de lei e erva mate, tudo pronto para ser explorado de imediato, alm
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de recursos hidreltricos e as sedes dos distritos de Francisco Beltro, Santo Antnio do
Sudoeste e Capanema.
As atuaes polticas do PTB (oposio), em conjunto com a imprensa e o Tribunal de
Contas da Unio, tentaram impedir a negociata, porm o Governo Estadual Lupion (PSD),
criou um Cartrio de Registro de Ttulos e Documentos em Santo Antnio do Sudoeste e
registrou a escritura.
A partir de ento, iniciou-se o processo de presso dessa empresa sobre os posseiros
provenientes do Rio Grande do Sul e Santa Catarina para que comprassem terras da CITLA,
que alegava ser a legtima proprietria da terra. Porm, a regio encontrava-se em litgio
judicial, o que configurava a impropriedade da Companhia Colonizadora, a qual no fornecia
o ttulo de propriedade ao comprador, caracterizando assim a atitude ilegal da venda de tais
terras. Tal situao evoluiu para o fato que passou para a histria como o Levante dos
Posseiros.
Nas palavras de Wachowicz (1987, p. 166), Quando poderosos interesses do
capital se instalaram no Sudoeste paranaense, a violncia tornou-se inevitvel. O intrincado
emaranhado de interesses que pairava sobre essa regio do Paran ultrapassava as fronteiras
brasileiras. A maior interessada no controle e na produo do Sudoeste paranaense era a
Argentina, pois o Paran ainda no possua estrutura viria para tanto, e os argentinos,
basicamente, controlavam todo o comrcio da poca na regio. No existia interesse argentino
em que o Sudoeste do Paran progredisse.
A tenso existente entre os poderes Federais e Estaduais em torno das questes de
poder econmico que revolviam essas terras, juntamente com o interesse dos grileiros
expunham os migrantes a uma situao desprotegida: de um lado o Governo Estadual tentava
impedir a grilagem; do outro lado a CITLA pressionava contratando jagunos; e, no meio de
tudo estavam os colonos, cujo objetivo era apenas a legitimao da sua propriedade e o incio
de uma vida produzindo em suas prprias terras.
A lenta trama da violncia
As representaes das marginalidades reveladas pela sociedade demonstram que
impossvel classificar a pluralidade das expresses humanas representadas de forma
padronizada: o homem singular. No h progresso linear na humanidade; a histria no
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progride de forma linear e a violncia o que as sociedades carregam de pior. A histria da
humanidade pontuada de atos violentos, onde uma violncia anterior provoca e legitima a
violncia posterior.
O ser humano exposto violncia desde o registro ontolgico do seu nascimento; o
ncleo duro da violncia disseminada na sociedade, que explode em mltiplas formas, possui
um movimento contraditrio em si, que provoca uma reao anti-violncia, a qual tambm
expressa uma forma de violncia, gerando a captao desse significado e o aprendizado dele,
tendendo a no se repetir. Temos assim uma violncia dentro de outra violncia, que se
consome sobre si prpria e que tende a se fixar. Esse movimento desacelera o movimento
violento atravs da compreenso.
No contexto social, a simples existncia do Outro apavora o Sujeito que agoniza em
no ser absorvido pela alteridade do Outro, que tenta identificar em si o Sujeito, soterrando a
identidade do Sujeito (do inconsciente). Isso violncia. O Sujeito precisa aguentar o
processo e resistir, e para resistir, lana mo de uma estrutura violenta tambm. Depreende-se
a partir desse ponto que os Sujeitos, ou Outros, possuem uma marca da violncia.
Diz-se no universo da fsica de leis de ao e reao. O que alivia o ser social a
passagem do tempo, que, se por um vis traz paz, por outro aspecto angustiante, posto que
irrevogvel, irreparvel, negador da reconstruo daquilo que foi destrudo. O tempo no
repara nada. Se h alguma coisa a ser reparada da responsabilidade do ser social.
A prtica violenta manifesta necessariamente uma diferena de posies e re-instaura
um novo limite, mesmo que provisrio. O ato violento contm em si a impossibilidade da
representao da violncia, mas que produz novos significados, novas representaes, muito
bem aceitas no meio social, tais como livros, filmes, TV, lutas diversas, vdeo-games,
segregaes e outras.
A morte, expresso mxima da violncia, conforme abordagem de Lacan (2002) em
seu Seminrio VI, postula que quando algum de quem gostamos morre, causa um furo no
Real, que nenhum significante pode preencher. Sempre que o interdito da morte se apresenta
(de forma a no ter representao), exige um esforo psquico muito grande do ser, que se
reflete no Outro, na morte do Outro.
Segundo Freud, (1987, p. 302-306): [...] uma vez que quase todos ns ainda
pensamos como selvagens a respeito desse tpico (morte), no motivo para surpresa o fato
de que o primitivo medo da morte ainda to intenso dentro de ns e est sempre pronto a vir
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superfcie por qualquer provocao. Dando continuao ao pensamento do psicanalista em
seus escritos, mais adiante ele registra o estranhamento que ocorre quando nos deparamos
com qualquer tipo de violncia que carrega em si i irrepresentvel, causando-nos uma
sensao de no-realidade, como se aquilo no estivesse acontecendo conosco, porm tal
estranhamento familiar, algo que foi submetido represso e depois voltou, e que tudo
aquilo que estranho satisfaz essa condio. De acordo com a teoria lacaniana a respeito
dos postulados freudianos:
O Unheimlich no est ligado, como alguns acreditavam, a todos os tipos de
interrupo do inconsciente. Est ligado a esta espcie de desequilbrio que se
produz no fantasma, e, portanto, o fantasma, atravessando os limites que lhe so
primeiramente consignados, se decompe e vem a reencontrar isto pelo que ele se
junta imagem do outro. (LACAN, 2002, p. 338).
Ocorre um ponto de tenso entre o Real e as possveis realidades, possibilitando uma
abordagem da violncia por esse vis. Considerando-se que a violncia carrega inscrita em si
algo de irrepresentvel e irreversvel; considerando-se que durante o discurso algo se perde,
pois conforme Lacan: No h nenhuma realidade pr-discursiva. Cada realidade se funda e
se define por um discurso. (LACAN, 1972-73/1982, p.45), podemos considerar que o que
nomeamos e entendemos como violncia so manifestaes advindas de determinados
discursos que migram para um lugar onde o discurso no se sustenta enquanto produtor de
realidades. Isso significa que a violncia toma corpo onde o discurso inexiste. Os discursos
violentos no so da mesma ordem da violncia. A violncia o produto de um discurso que
aponta o limite desse discurso, todavia essa vai ocorrer quando o discurso bordejar o limite do
irrepresentvel.
Sabe-se que uma coisa o ato violento, outra coisa o que se fala ou escreve sobre
esse ato. Deve-se diferenciar a escrita violenta da escrita da violncia, em funo dos registros
historiogrficos a respeito do Levante dos Posseiros de 1957. A escrita da violncia no a
mesma coisa que a violncia posto que o que se escreve no o ato em si, pois nesse lugar a
violncia est simbolizada e no causa estranhamento. A violncia mostra a nossa fragilidade
diante do Outro. O Simblico possui inscrio eminentemente social e concerne fora aos
humanos atravs da unio, possibilitando a lei.
conceito bsico de que uma lei se constitui na possibilidade da repetio, portanto
necessria uma lngua para se ter uma lei. A lei surge antes da escrita da mesma e a escrita
possibilita lei se estabelecer. Dizer que est escrito d-nos uma segurana do nvel da
certeza. No tangente lngua, de acordo com Lacan (1985) em seu Seminrio XX, no
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existem certezas, impossvel no existir equvocos, pois existe um real da lngua, a
lalangue".
H que se constituir sustentabilidade discursiva para a criao de novas leis, pois de
nada adianta existir uma lei que desde o perodo mosaico est simbolizada e escrita: No
matars, se ainda hoje existe um discurso da violncia que sustenta a morte.
O ser humano cria leis e as segue por dever, porm no h garantias de que essas leis
sero seguidas da mesma maneira por todos, at porque a prpria lei uma transgresso s
pulses primeiras do homem. Porm, a lei instaura um contrato que, em funo da civilidade,
cumpre-se.
Contudo, o medo da punio no suficiente para deter as pulses dos Sujeitos, do
que constatamos a necessidade de negociao incessante entre os seres humanos. O ser
humano no uma criatura gentil que apenas se defende de algum ataque o qual sofra, mas
sim um ser dotado de pulses que lhe imprimem uma significativa marca de agressividade,
cujos efeitos podem ser amplamente compreendidos a partir da apropriao que uns fazem
dos outros.
A humanidade do homem origina-se no Estado de Direito, pois o retira do Estado de
Natureza, da horda, da violncia desregrada, permitindo a ele ultrapassar a violncia original e
racionalizar, criar, inventar a humanidade. no enfrentamento de todos os desafios internos e
externos que o ser social constroi a democracia. na administrao da violncia, no repensar
constantemente os princpios do ser humano, na tolerncia, na pluralidade, solidariedade e
questionamentos que o homem pode aprender para controlar. Em sendo a reparao da ordem
do ser social, elaborador de pensamentos, definies, cabe a ele a elaborao da filosofia
poltica que se encarrega da definio de valores como justia, liberdade, autonomia, direitos
humanos e outros, objetivando a garantia da manuteno da sociedade aqum do limite que
marca totalitarismos e garantir o equilbrio social.
O levante
O Levante dos Posseiros deu-se pela ao daqueles que detinham o direito de posse de
terras na regio Sudoeste do Paran em 1957, contra as companhias colonizadoras, mormente
a CITLA, que tentava vender de maneira ilegal as terras que j estavam ocupadas pelos
posseiros. Em outubro do mesmo ano, as cidades de Francisco Beltro, Pato Branco e Santo
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Antnio do Sudoeste uniram-se e em ao conjunta expulsaram as empresas colonizadoras e
seus jagunos da regio, livrando os posseiros do nus da compra das terras onde j moravam.
No dia 21 de maio de 1957, na localidade de Ver (Pr), os jagunos executaram o
vereador Pedrinho Barbeiro por ser ele o representante dos posseiros que levava adiante as
reivindicaes a respeito da posse das terras. Essa era uma das tticas das Companhias de
terra: matar quem fosse contrrio ou se revoltasse contra os desmandos, estuprar mulheres e
meninas adolescentes, disseminar o pavor.
A partir desse assassinato, o advogado Edu Potiguara, que era amigo de Pedrinho
Barbeiro, decide auxiliar os colonos buscando ajuda na capital - Curitiba, onde descobre que
as autoridades eram todas coniventes com o que estava ocorrendo, visto que a CITLA era uma
companhia do Grupo Lupion, o governador do Estado. De posse de tal informao, os colonos
passaram a agir por conta prpria, organizando tocaias e tentando fechar os escritrios das
companhias de terra da regio, demonstrando que tinham fora em nmero e disposio para
pelejar por seus sonhos de recomear uma vida nova em terras novas.
O primeiro embate entre os jagunos e os colonos deu-se no Ver, no mesmo local
onde Pedrinho Barbeiro havia sido assassinado pelos jagunos. Nesse local morreu o colono
Leopoldo Preilepper. Depois desse fato, as companhias de terra intensificaram a violncia
contra os colonos; a polcia local tentava desarm-los e ocorreu que a polcia de Francisco
Beltro passou a espancar os colonos. (GOMES, 1987, p. 74).
Segundo Gomes (1987, p. 78-79), na regio da fronteira a situao agravava-se,
especialmente aps a violncia praticada contra um colono da regio, que teve suas filhas e
esposa estupradas e mortas e depois foi espancado e castrado pelos jagunos.
(Fig. 1) Francisco Beltro - 1957
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A violncia crescia, igualando jagunos e colonos, at que em 10 de outubro de 1957
(Fig. 1), a liderana do movimento dos posseiros, entre eles Walter A. Pcoits e Luis Prolo,
reuniu-se em Francisco Beltro e planejou a mobilizao dos colonos atravs da Rdio
Colmia, os quais atenderam ao chamado e vieram em massa, invadiram os escritrios,
tomaram os documentos ilegais, notas promissrias, rasgaram e espalharam pelas ruas da
cidade.
Durante os dias 10 e 11 de outubro de 1957, toda a regio Sudoeste esteve em revolta
e o dio dos colonos expressou-se pela destruio dos escritrios. Os jagunos tentaram fugir,
mas foram presos a caminho de Clevelndia. No dia 11, chegou a Francisco Beltro o Chefe
de Polcia do Estado, Pinheiro Jnior, para resolver a situao. Na tentativa de acalmar os
nimos, Pinheiro Jnior nomeia Walter Pcoits como delegado, que juntamente com a
comisso de lderes do movimento impe ao Governo do Estado uma srie de medidas que
so aceitas de pronto: substituio do delegado de polcia, exonerao do promotor,
transferncia do juiz e retirada das companhias de terra da regio. Aps esses atos, Pinheiro
Jnior retorna capital. No houve fora do Estado contra os colonos, pois caso ocorresse,
todas as fraudes que estavam ligadas ao Governador Lupion viriam tona.
Para assegurar a paz, no dia 19 de maro de 1962 o Excelentssimo Presidente da
Repblica, Senhor Joo Goulart, atravs de um decreto, criou o GETSOP Grupo Executivo
para as Terras do Sudoeste do Paran, rgo pblico subordinado ao Gabinete Militar da
Presidncia da Repblica e do Conselho de Segurana Nacional, conforme Gomes (1987, p.
118). O GETSOP ia ao encontro dos colonos para estabelecer uma situao que j existia, de
acordo com o que o posseiro declarava, oficializando-a. Os posseiros passaram a ser os
legtimos proprietrios das terras.
O Grupo GETSOP foi extinto em 1973.
Consideraes finais
Depois de resolvidas as questes da posse da terra atravs do conflito violento que
passou para a histria como a Revolta dos Posseiros, na regio Sudoeste do Paran, entre
posseiros e companhias colonizadoras, iniciou-se outra fase do processo de humanizao, de
modernizao agrcola de base tecnolgica, orientada pelo capital industrial. Uma nova tica
para o campo a partir da transformao da produo agrcola e dos setores industriais,
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exigncia de uma nova ordem que estava a surgir na regio: o progresso estava se instalando e
no havia como impedir esse avano.
A inscrio da violncia que existe dentro de cada ser humano, latente e sempre pronta
a se manifestar desde que incitada por uma pulso da sua ordem, no pode ser negada ou
apagada. Naquela situao vivida pelos colonizadores sudoestinos, o preo pago pela
passagem da ordem antiga para a nova situao foi preo de sangue, de violncia, sofrimento,
vergonha, terror, perdas irreparveis. Porm, o homem de 1957, desbravador da Regio
Sudoeste, no teve escolha, posto que inserido no processo.
O colonizador dessa regio em 1957 teve seu rito de passagem redefinindo fronteiras,
coerentemente simblicas, e as demarcou a sangue: cumpriu o trajeto da morte at a vida, re-
significando o sentido da fundao da civilizao do Sudoeste do Paran. A matriz cultural
dessa regio traz em seu mago a marca da violncia, o que no difere de tantas outras
regies. Essa inscrio reflete uma conscincia profunda do valor da terra, da vida, da
comunidade, da fora e da unio. Essa uma sociedade que no negou a morte, pois se o
fizesse, estaria negando a sua possibilidade e escolha de vida.
Se atualmente essa regio progressista, destacada produtora agrcola e industrial,
deve em grande parte aos fundadores dessa sociedade. Cinquenta e cinco anos atrs, era
campo de batalha por ideais de voz, de sobrevivncia e de justia. Imperativamente
prevaleceu a fora representativa do povo, que no negou nem ocultou a morte, antes sim,
mesmo desprovido de armas, preferiu enfrentar sua horrenda face.
A sociedade atual prefere negar a morte, tenta burl-la e botuliza o passar do tempo
que marca o ser humano. Mas a construo de uma histria de vida passa obrigatoriamente
por um caminho: o enfrentamento da morte, confrontos, lutas e guerras.
No incio da segunda dcada do sculo XXI, diariamente enfrenta-se novos desafios
tecnolgicos. Porm, para que o ser humano compreenda o seu lugar, principalmente o lugar
de cada um, h que rebuscar o passado para verificar onde seus ps esto fincados. A invaso
de miniconceitos na concretizao da vida social est pulverizando cada vez mais os
conhecimentos, porm o lastro que mantm uma sociedade enquanto comunidade, firme, sem
adernar, a linguagem universal de que a imagem refletida por essa sociedade regional torna
evidente: -se filho de quem . E a aprendizagem dessa universalidade, que se transforma
veloz e diariamente, o atual rito de passagem, adaptao, parte que cabe a cada ser humano.
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O crcere e a escritura da fuga em Arturo, a estrela mais brilhante, de Reinaldo
Arenas
FORSTER, Gabrielle da Silva
*
Resumo: O presente trabalho se prope a observar como a esttica da evaso se constri na novela areniana
intitulada: Arturo, a estrela mais brilhante, para ento notar como esta capaz de criar aberturas dentro e fora do
espao ficcional, de deixar passar linhas de fuga desterritorializantes. Para isso, recorre-se s consideraes de
Deleuze e de Blanchot acerca do impessoal na literatura, pois estas, alm de desestigmatizarem a relao
intrnseca entre vida e obra que percorre a produo do escritor cubano, tambm acabam por indicar que na
referida novela h a inveno de uma linha de vida possvel no invivido e no invivvel. No a vida de Reinaldo
Arenas, nem mesmo a do protagonista confinado ao contexto cubano mencionado, mas a do visionrio, j
impessoal, que ouve e v, numa espcie de lngua estrangeira que o arrasta, o intolervel de uma situao,
abrindo assim um novo leque de possveis. no devir-outro que reside a potncia de fuga, fazendo a vida correr
e desvinculando-a de todo o poder, de toda a dominao.
Palavras-chave: Reinaldo Arenas. Devir. Linha de fuga.
Uma das caractersticas mais marcantes na obra de Reinaldo Arenas e, por isso
mesmo, recorrentemente mencionada pela crtica, a relao intrnseca que se estabelece
entre vida e obra na produo artstica do escritor, como afirma Pea: su vida y su obra van
siempre de la mano, por lo que es difcil, si no imposible, separar una de otra (PEA, 2088,
p.9). A vida deste atravessa sua fico com a mesma intensidade com que a literatura esteve
presente em sua vida. Perseguido e preso pela ditadura castrista, o escritor cubano foi
obrigado, durante o tempo em que viveu no seu pas, a esconder seus manuscritos e a fazer
manobras para public-los no exterior, o que s ocorreu com a ajuda de amigos como Jorge e
Margarida Camacho. Mesmo enfrentando as maiores adversidades, que incluam a
possibilidade de tortura assim como a de ser impunemente assassinado, ou seja, enfim,
silenciado, Arenas no abandonou o literrio. Seguiu escrevendo, embora isso pudesse
implicar em reescritura, como foi o caso de Otra vez el mar, obra que segundo ele foi reescrita
trs vezes, porque os originais, como as prprias ondas, perdiam-se incessantemente e iam
parar, por uma razo ou outra, nas mos da polcia (ARENAS, 2009, p. 148). A primeira
perda do manuscrito lhe deixa perplexo, como afirma em sua autobiografia Antes que
anochezca:
*
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].
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Fiquei completamente atordoado nos primeiros dias. Levara anos para terminar
aquela obra, que era um dos meus maiores atos de vingana, um de meus trabalhos
mais inspirados. Era uma ddiva do mar e o resultado de dez anos de decepes
vividas sob o regime de Fidel Castro. Ali eu havia colocado toda a minha fria
(ARENAS, 2009, p.155).
essa fria que menciona o direito ao grito que encontrou na palavra literria, que o
faz recomear o trabalho outra vez e ainda outra, pois, pelo que tudo indica, Reinaldo Arenas
viveu acreditando no que, segundo ele, lhe disse em determinado momento Lezama Lima,
lembre-se de que nossa nica salvao atravs da palavra; escreva (ARENAS, 2009,
p.278). Nesse sentido, impossvel no notar que foi numa ntima relao com a represso e a
violncia imposta pela ditadura de Castro, que se configurou na obra areniana o que Mara
Teresa Miaja de la Pea denomina un artfice del arte de la fuga(PEA, 2008, p.60), posto
que, de acordo com a autora, hay que reconocer que toda su obra est permeada del tema de
la evasin, como tambin lo estuvo su vida (PEA, 2008, p.60).
A literatura foi uma possibilidade de fuga vislumbrada por Reinaldo Arenas e no
poderia deixar de ser mencionada devido pertinncia da relao entre o fictcio e o literrio
em sua obra. No entanto, o que nos interessa no resvalar para um psicologismo extremo e
prejudicial para qualquer entendimento do literrio, e sim, observar como a evaso enquanto
escritura se processa na narrativa do referido escritor. Nesta, os dois mbitos o da existncia
e o da literatura esto intimamente imbricados, porm de maneira criativa, atravs de um
trabalho esttico com a linguagem, de forma que os dados biogrficos do escritor, que podem
ser mapeados em seus textos, emergem sempre como fico e reelaborao, o que faz com
que o sujeito autoral se despersonalize na experincia da escrita, na vitalidade da palavra
potica. Ato transgressivo, segundo Blanchot, pois impulsiona o ser para longe das amarras de
um eu fechado, cartesiano; para longe dos limites da identidade una e tambm da objetividade
dada, que no nomear s podem aparecer na forma de uma ausncia, j que:
Quando falo, nego a existncia do que digo, mas nego tambm a existncia daquele
que diz: minha palavra se revela o ser em sua inexistncia, afirma, dessa revelao
que ela faz a partir da inexistncia daquele que a fez, de seu poder de se afastar de si,
ser outra que no seu ser. Por essa razo, para que a linguagem verdadeira comece,
preciso que a vida, que levar essa linguagem, tenha feito a experincia do seu nada,
que ela tenha tremido nas profundezas e tudo que nela era fixo e estvel tenha
vacilado (BLANCHOT, 2011, p.333, grifo do autor).
O neutro de Blanchot proclama a passagem da primeira para terceira pessoa, afirma o
deslizamento para o impessoal, estando assim prximo do pensamento deleuziano, de acordo
com o qual a literatura s comea quando nasce em ns uma terceira pessoa que nos destitui
do poder de dizer Eu (DELEUZE, 1997, p.13). Essa possibilidade de ultrapassar o si e a
realidade no processo da escrita no desvincula a relao da literatura com o real nem com o
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sujeito que a produz, e que, inegavelmente, realiza sua atividade, seu trabalho, no mundo,
apenas indica a necessidade de se repensar estas conexes. J sabemos que a literatura no
um universo autotlico, como queriam os estruturalistas, mas tambm que ela no o reflexo
do real, como aparece em estudos literrios que recorrem a um sociologismo vulgar. H que
pensar a relao como um trabalho de mediao e nesta esteira que o pensamento de ambos
os estudiosos se colocam. A literatura no retrata a realidade, mas a apresenta em outra
verso, ou seja, a fico tem a capacidade de desdobrar o nosso mundo, fazendo-o o vir tona
como o outro de todos os mundos, conforme sugere Blanchot. E nisto reside a sua potncia de
fuga, j que o autor livre para criar um mundo sem escravo, um mundo onde o escravo,
agora senhor instala a nova lei; assim, o homem acorrentado obtm imediatamente a liberdade
para ele e para o mundo; nega tudo o que ele para se tornar tudo o que ele no
(BLANCHOT, 2011, p.324-325).
Sendo assim, reconhece-se que somente no devir outro que se encontra a
possibilidade de transgredir. no desvario, no delrio da literatura, que arrasta o eu tornando-
o um estrangeiro a vagar nmade no deserto da linguagem que desdobra o mundo, que reside
a possibilidade de inventar um povo que falta, porque embora remeta sempre a agentes
singulares, a literatura agenciamento coletivo de enunciao (DELEUZE, 1997, p.15). No
se refere a um eu pessoal, mas a processos de subjetivao, que se produzem na dobra de
uma relao de foras, o que permite que aquilo que o escritor v e ouve nos interstcios da
linguagem estabelea uma ponte, sempre movedia, entre o escrito e o lido. Ou seja, atingir o
ele significa abrir a possibilidade de todos experimentarem a literatura. Um discurso sem eu
um discurso de todos, um discurso de ningum (LEVY, 2011, p.41).
Nos trabalhos de Deleuze em parceria com Guattari em especial em O anti-dipo:
capitalismo e esquizofrenia tomamos conhecimento de que, de acordo com o referido
pensamento filosfico, h trs linhas que nos atravessam. Uma linha molar, de
segmentaridade dura, atravs das quais os sujeitos, os relacionamentos e os conjuntos
molares (Estados, instituies, classes) so segmentarizados, previstos, controlados; uma
linha molecular, de segmentaridade malevel, que inclui processos infrapessoais, movimento,
devires, fluxos, que captam as relaes e as divises de outra maneira, escapando da
sobrecodificao e da binarizao; e a linha de fuga, de ruptura e criativa. Essas linhas no
podem ser separadas, coexistem umas nas outras. Ao mesmo tempo em que os centros de
poder se encontram nas duas linhas, j que toda a poltica ao mesmo tempo macropoltica e
micropoltica (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p.90), como j havia colocado Foucault,
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cruza-se com elas uma terceira percepo, a linha de fuga, atravs da qual nos tornamos
clandestinos, capazes de traar nossos prprios territrios, desterritorializar.
com o intuito de observar como a esttica da evaso se constri na narrativa de
Reinaldo Arenas e consequentemente notar como ela capaz de criar aberturas dentro e fora
do espao ficcional, de deixar passar linhas de fuga, que se constri esse artigo. Para isso,
escolhemos a novela Arturo, a estrela mais brilhante, ao passo que esta pode ser vista como
testemunho da condio desumana a que eram submetidos os presos nos campos de trabalho
da UMAP (Unidad Militar de Ayuda a la Produccin); campos estes desenvolvidos durante o
regime ditatorial de Fidel Castro. Na obra dedicada ao amigo Nelson, condenado morte e
fuzilado aos 16 anos, se figura a experincia prxima do horror vivenciada nos campos de
concentrao. Porm, o jogo esttico com a linguagem reverbera na obra a dor oriunda de
toda a forma de intolerncia e de abuso de poder, apontando para uma nova forma de
percepo onde o outro possa seguir sendo o outro. Aqui, quem corre a linguagem e a
chance de fuga se ilumina mesmo que no irrealizvel.
A narrativa apresenta como recurso estilstico a construo de um nico pargrafo
narrado em terceira pessoa, mas permeado pelo monlogo interior e pelo fluxo de conscincia
do personagem protagonista Arturo; sendo pela tica deste que o referente histrico j
mencionado focalizado. Prisioneiro, vtima do sistema ditatorial, sem direito fala e
escolha, a opo que o personagem encontra para fugir da condio opressora na qual est
imerso a escrita. No entanto, para realizar a atividade, era preciso esconder-se, despistar os
outros, fingir muitas vezes estar resignado. Mesmo frente s inmeras adversidades, ele
escreve. Escrever uma urgncia, porque
todos, sem protestar, com a ingenuidade tpica dos animais, teriam morrido em
silncio; todos, todos, todos menos ele, porque ele ia se rebelar, dando testemunho
de todo o horror, comunicando a algum, a muitos, ao mundo, ou mesmo que fosse a
uma s pessoa (ARENAS, 1996, p.90).
Essa necessidade de falar, de comunicar o terror vivenciado, que encontramos na
citao acima e na empreitada de Arturo ao longo de toda a tessitura do texto, atualiza o que
Mrcio Seligmann-Silva afirma sobre o testemunho: ele se apresenta como uma condio de
sobrevivncia (SELIGMANN-SILVA, 2006, p.73). Alm disso, em consonncia com o teor
testemunhal, notamos que a temporalidade do relato apresentada pelo vis de uma sincronia
mltipla, na qual o passado e o presente fundem-se constantemente, o que indica a
incapacidade de incorporar em uma cadeia contnua as imagens vivas, exatas
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(SELIGMANN, 2005, p.87) que, segundo Seligmann, tambm marca a memria dos
traumatizados (SELIGMANN, 2005, p.87).
Portanto, em Arturo, a estrela mais brilhante, os momentos do passado surgem no
presente com tamanha fora que no podemos dizer que so lembrados, mas vivenciados
outra vez. Aqui, o Cronos contnuo, diacrnico, atravessado constantemente por Aion
13
,
tempo do rizoma e do a-tempo, segundo Deleuze, no qual se entra por todos os lados, j que
neste, passado e futuro coexistem, fragmentando o presente. Por isso, Arturo desperta, no
com o barulho dos veculos, mas com o ranger da roldana manipulada por ela, a Velha Rosa,
l embaixo, junto ao poo (ARENAS, 1996, p.75); quando lembra que houve certa vez um
concerto se pergunta se foi essa noite, ou aquela noite, ou uma noite, ou na noite
(ARENAS, 1996, p.78) e ao recordar momentos com a me descobre que tudo aquilo era
ainda mais real que no momento em que aconteceu, pois o acontecimento em si estava
contaminado pelos incidentes do momento (ARENAS, 1996, p.73). Aion, o tempo das
intensidades e das potencialidades, domina o fluxo temporal da referida narrativa, sendo por
isso que a msica, escutada por Arturo no concerto, parecia roar suas mos, fluir lentamente
por seu pescoo, lev-lo a um lugar, a outro (ARENAS, 1996, p.78), no qual est a imagem
da me: a msica, e ela, a figura alta, apontando, a msica, e ela, a figura protetora, amada e
amante, a nica realmente venerada para ele (ARENAS, 1996, p.81). Assim, por meio de um
recurso estilstico em que o tempo multidirecional surge uma subjetividade em movimento
que no se busca na histria ascendente e linear, mas nas marcas do caminho, no trajeto nem
sempre retilneo, no que foi, mas ainda , pois a obra areniana estabelece com a Histria uma
condio deslegitimadora, ao passo que se apresenta como uma faceta desta, revelada pelo
ngulo daqueles que no perodo foram brutalmente silenciados.
Pela voz de Arturo, observamos o trabalho forado, a violncia e a humilhao a que
foram submetidos muitos cubanos enviados aos campos de concentrao por serem
homossexuais. No ambiente do crcere, que o protagonista chama muitas vezes de inferno,
todos, inclusive os soldados convertem-se em animais, um animal manso ou agressivo pelas
coisas mais insignificantes (ARENAS, 1996, p.71). Ali, a violncia fsica e moral tem sua
morada, como podemos observar nas seguintes passagens: antes do amanhecer era dado o
13
Segundo Aion, apenas o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo. Em lugar de um presente que
reabsorve o passado e o futuro, um futuro e um passado que dividem a cada instante o presente, que o
subdividem ao infinito em passado e futuro, em ambos os sentidos ao mesmo tempo. Ou melhor, o instante
sem espessura e sem extenso que subdivide cada presente em passado e futuro, em lugar de presentes vastos e
espessos que compreendem, uns em relao aos outros, o futuro e o passado (DELEUZE, 2006, p.193).
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grito de p, ao que geralmente se anexava a palavra bichonas (ARENAS, 1996, p.84),
alguns eram castigados a permanecer trs dias inteiros sob o sol (ARENAS, 1996, p.89) e
um dia um grupo de oficiais jovens e dures enterrou um at o pescoo no ptio do
acampamento , assim o mantiveram vrios dias, quando o tiraram de l tinha febre alta e havia
perdido a fala (ARENAS, 1996, p.89). Tambm h na novela, a denncia da hipocrisia que
envolvia este ambiente hostil, pois ao relatar que os soldados msculos mantinham relaes
sexuais com os presos, a obra acentua o abuso de poder, ao passo que revela a arbitrariedade
da condenao que, adotando uma perspectiva distorcida e machista, exclui e maltrata alguns,
ao mesmo tempo em que tolera a prtica homossexual em outros casos, naqueles nos quais os
militares se envolvem. Estes acreditam apenas afirmar sua masculinidade no ato, esquecendo
ou fingindo esquecer a fora do desejo que os move.
Alm disso, nesse espao em que vigora a represso no h lugar para o diferente, o
que pode ser visualizado na interao de Arturo com os outros presos, pois estes, que devem
ser vistos como os excludos e marginalizados pelo sistema, tambm atuam como opressores;
o que revela a instalao do macro no micropoltico. Para ser aceito pelo grupo o protagonista
precisa representar um papel, utilizar uma mscara que o une ao esteretipo dos outros. Ao
manter-se calado e distante sofre agresses orais e fsicas e assim descobre que para
sobreviver precisa se adaptar ou ao menos fingir que se adaptou. Sendo assim, manipulou
aquela gria afetada e delirante, comeou a lanar a tpica gargalhada da louca histrica, a
cantar, a desfilar, a pintar os olhos e o cabelo e os lbios (ARENAS, 1996, p.86),
destacando-se tanto que foi eleito A rainha das Loucas Cativas. Neste ambiente, todo o
direito liberdade de expresso cassado, como revela o personagem: era preciso danar,
integrar-se aos barulhos e aos gritinhos, como uma puta tinha que, simplesmente mover as
ndegas, como um escravo, tinha que, obrigatoriamente, se render ao trabalho (ARENAS,
1996, p.87). Ao sofrer preconceito no prprio grupo dos excludos, emerge da voz de Arturo
uma crtica afiada, no apenas ditadura castrista, mas a uma grande e antiga forma de ver,
que coloca a todo o momento etiquetas e, apoiada em divises racistas e sexistas, exclui,
reprime e marginaliza todos os que no se enquadram no modelo eurocntrico e hegemnico.
Assim, Arturo compreendeu que
traio, roubo, ofensa, morte, tudo podia acontecer, e de fato acontecia, mas o que
no se admitia era que no se levasse em considerao, na hora de cometer o delito
(antes e depois), a imensa maioria, que no se confiasse nela, que algum no se
submetesse a ela...(ARENAS, 1996, p.85).
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Confinado ao crcere, sem direito liberdade no seu pas, aceito pelos outros presos
apenas sob a lei de uma poltica de assimilao, ou seja, com a condio de transformar-se no
mesmo, igual a todos os outros, e igualmente rejeitado pela me, aquela que deveria proteg-
lo, am-lo incondicionalmente, e que no o aceita por sua opo sexual, Arturo encontra na
palavra a nica oportunidade de fuga. O ato de escrever, no qual projeta seus desejos,
impossveis de realizarem-se no contexto em que vive, para ele uma espcie de salvao, a
especial forma que encontra para desligar-se da realidade, construindo por meio da palavra e
da imaginao outra verso do mundo, na qual est livre para pensar e para ser, sendo por isso
que decidiu que para se salvar tinha que comear imediatamente a escrever e imediatamente
comeou (ARENAS, 1996, p.88). Nesse processo de escrita
se orientavam misteriosamente as ideias, chegavam, eram selecionadas, eram
rejeitadas as imagens simples ou repetidas, feias ou tristes que diariamente tinha que
contemplar e que seguramente eles, os outros, os demais, todos, lanavam contra a
sua memria ou sua iluso, sempre para foder, sempre para foder, querendo estragar
sua obra, querendo interromp-lo, querendo confundi-lo e perd-lo, reduzi-lo, faz-
lo adaptar-se a suas estpidas ponderaes, suas mesquinhas concepes, ao mundo,
seu mundo (o mundo deles), vida, a suas asquerosas vidas; mas todas as suas
ponderaes, todas as suas foras e at seus gestos, todo o seu organismo e suas
intenes, todos os seus sentidos estavam tensos, limpos, alertas, prontos, dispostos
a assimilar e a rejeitar, a aproveitar e transformar, a sacrificar, em funo da grande
obra que por eles flua (ARENAS, 1996, p.66).
A construo do que chama de a grande obra, impele Arturo a despersonalizar-se para
produzir a ruptura com o contexto do qual faz parte, a ultrapassar a si mesmo o encarcerado,
e atingir o ele, o outro, livre para viver no lugar a ser construdo, o que fica claro na passagem
que indica que atravs do processo de escrita ele j parecia ter se tornado independente do
resto de seu ser, de seu organismo, de seus instrumentos necessrios para se manifestar, de,
inclusive, seu prprio crebro (ARENAS, 1996, p.66). A dissoluo at mesmo do
organismo, que observamos nesta citao, indica a obrigatoriedade de construir, para fazer
passar a linha de fuga criativa, um corpo sem rgos, como indicam Deleuze e Guattari:
encontre seu corpo sem rgos, saiba faz-lo, uma questo de vida ou de morte, de
juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. a que tudo se decide (DELEUZE &
GUATTARI, 1996, p.11). Por que um CsO? Porque ele substitui a interpretao pela
experimentao; ele o campo de imanncia do desejo, conexo de desejos e nele s passam
fluxos, intensidades. atravs dele que se processam devires e linhas nmades. Dessa forma,
atravs da escrita, ele atinge o impessoal e o impossvel:
era como se algum, ele mesmo, mas no ele, estivesse representando um papel
inconcebvel, fazendo gestos nunca vistos antes, provocando um pranto, uma
alegria, uma plenitude, lanando ante um auditrio um ritmo, uma cano, uma
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melodia, a nica, a deliciosa, a que todos sempre que tinham sonhado, tinham
esperado secretamente aterrorizados e felizes (ARENAS, 1996, p.67).
com o intuito de escapar que o personagem passa a criar outro mundo, um universo
onde no havia leis casustas, mesquinhas e mutantes, mas as inalterveis, divinas leis
amparadas pela intuio e pelo ritmo (ARENAS, 1996, p.118). Aos poucos o preenche com
castelos, pontes, lagos, elefantes, pedras preciosas, imensas plancies; se sente um deus a
construir outra vez o mundo esse, construdo anteriormente pelo Deus, agora ausente, como
ele menciona. E entre as imagens que faz surgir esto rvores gigantescas de razes areas
(ARENAS, 1996, p.74) que podem ser lidas como o smbolo arquetpico da rvore csmica
que permite ultrapassar a matria e o circunstancial. Ao danar se situa no centro do bosque,
no umbigo do mundo, onde a conscincia se faz desperta e livre dos vus de maya e do
crculo vicioso de samsara. Sempre surgem guas, guas claras, gloriosas guas,
transparentes, lmpidas, e estas
simbolizan la suma universal de las virtualidades. Son depsito de todas las
posibilidades de la existencia; preceden a toda forma y sostienen toda creacin []
por esto el simbolismo de las aguas implica tanto la Muerte como el Renacimiento
(ELIADE, 1979, p.165).
Este universo cheio de imagens simblicas e onricas construdo para ele, objeto do
seu desejo e descrito como um belo adolescente. No entanto possvel considerar que este
outro pode ser visto como o duplo do personagem, recurso estilstico recorrente na obra de
Reinaldo Arenas e que j est presente desde seu primeiro romance Celestino antes del alba.
Para confirmar nossa hiptese podemos mencionar que a descrio dada do jovem a de uma
incrvel beleza, a mesma que invade o protagonista aps algum tempo no crcere e que os
outros no percebem; o que pode ser visualizado neste trecho: um dia, ao se levantar, Arturo
descobriu que se havia tornado insolitamente belo [...] como era possvel que no ficassem
maravilhados, surpreendidos ante tal transformao? (ARENAS, 1996, p.93-94). Alm
disso, para habitar o outro dos mundos, construdo atravs da fabulao, preciso que surja
outro, que no o Arturo, fisicamente aprisionado. Somente na ir(realidade) fictcia o
personagem pode tornar-se livre, sendo por isso que a imaginao deste pea fundamental
da novela, o que pode ser estendido para outras obras do escritor cubano, j que, como afirma
Martha Patraca Ruiz para la mayora de los personajes de la obra de Reinaldo Arenas la
imaginacin es equivalente a la respiracin [] Viven en tanto que imaginan (RUIZ, 2008,
p.72). Para Arturo, o ato de escrita o
momento da grande identificao, do verdadeiro encontro, e toda a opresso e a falta
de sentido de uma existncia superficial primeiro, escravizada depois, intil sempre,
se acabava, terminava ante aquela imensa plancie onde ele tinha situado os elefantes
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e agora configurava uma roseira, pois o real [...] no est no terror que se padece,
mas nas invenes que o apagam, pois elas so mais fortes, mais reais que o prprio
terror (ARENAS, 1996, p.69).
Ao potencializar outra verso do mundo na qual ele livre, o personagem reage contra
o contexto do qual faz parte, mostrando, atravs do grito de alarme reverberado pela palavra,
a impossibilidade de viver num meio onde a diferena no tolerada; e onde, no caso
especfico, ela cruelmente massacrada. No ambiente sem sada no qual se encontra, Arturo
descobre uma possibilidade na impossibilidade fictcia ao assumir que o poder da criao,
era o poder de fazer tudo, o poder de participar de tudo, o poder de poder safar-se rapidamente
da mesquinha tradio, da mesquinha maldio, da misria de sempre (ARENAS, 2006,
p.117). Como, se, no mago da literatura e da linguagem, para alm dos movimentos
aparentes que as transformam, estivesse reservado um ponto de instabilidade, um poder de
metamorfose substancial, capaz de tudo mudar sem nada mudar (BLANCHOT, 2011,
p.350).
Nesse sentido, o trajeto que a obra traa, entre a realidade dada e a realidade virtual,
deve ser compreendido como um processo de devir constante entre o que imposto e o que
est em vias de se tornar, residindo nisto a construo estrutural da narrativa que se vale de
um fluxo contnuo onde as palavras correm sem marcao/diviso paragrafal. As linhas de
fuga traados no texto esto no intermezzo, entre o contexto repressivo e o mundo imaginrio
construdo por Arturo. Deste deslocamento, resulta a abertura do final do texto, que embora
indique a morte, tambm revela a fuga: quando os disparos finalmente o fulminaram, Arturo,
j alcanava a linha monumental dos elefantes reais (ARENAS, 1996, p.124). Linha
monumental, linha de fuga. Se o outro do mundo construdo pelo protagonista no se dissolve
com o falecimento fsico porque ele real, como o protagonista insiste em iluminar, ele
criao de uma forma de vida que pede para acontecer, pois como afirma Deleuze, real e
imaginrio devem ser intercambiveis: um devir no imaginrio, assim como uma viagem
no real. o devir que faz, do mnimo trajeto, ou mesmo de uma imobilidade no mesmo
lugar, uma viagem; e o trajeto que faz do imaginrio um devir (DELEUZE, 1997, p.88).
Na novela areniana h a inveno de uma linha de vida possvel no invivido e no
invivvel. No a vida do protagonista confinado ao contexto cubano mencionado, mas a do
visionrio, j impessoal, que ouve e v, numa espcie de lngua estrangeira
14
que o arrasta, o
14
De acordo com Deleuze, essa espcie de lngua estrangeira, que o escritor faz passar atravs de seu estilo, da
variao sinttica no outra lngua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da lngua, uma
minorao dessa lngua maior, um delrio que a arrasta, uma linha de feitiaria que foge ao sistema dominante
(DELEUZE, 1997, p.16).
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intolervel de uma situao, abrindo assim um novo campo de potencialidades. esse devir-
outro que faz a vida correr, desvinculando-a de todo o poder, de toda a dominao.
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Referncias
ARENAS, Reinaldo. Arturo, a estrela mais brilhante. In: A Velha Rosa. Rio de Janeiro:
Record, 1996.
_____. Antes que anoitea. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
DELEUZE, Gilles. Crtica e clnica. So Paulo: Ed. 34, 1997.
_____ Lgica do sentido. So Paulo: Perspectiva, 2006.
_____; GUATTARI, Flix. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. So Paulo: Ed. 34, 1996.
Vol. 3.
ELIADE, Mircea. Imgenes y smbolos. Madrid: Taurus ediciones, 1979.
LEVY, Tatiana Salem. A experincia do fora : Blanchot, foucault e Deleuze. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 2011.
SELIGMANN-SILVA, Mrcio. O testemunho e a poltica da memria: o tempo depois das
catstrofes. Proj. Histria, So Paulo, (30), p. 71-98, jun. 2005.
_____. Narrar o trauma. A questo dos testemunhos de catstrofes histricas. In: UMBACH,
Rosani Ketzer (org). Memrias da represso. Santa Maria, PPGL-Editores, 2008. p. 73-92.
PEA, Mara Teresa Miaja de. La escritura como rencuentro en El mundo alucinante. In:
PEA, Mara Teresa Miaja de. (org). Del alba alanochecer: la escritura en Reinaldo Arenas.
Universidad Autnoma de Mxico, 2008. p. 51-70.
RUIZ, Martha E. Patraca. El espejo duplicado al infinito. In: PEA, Mara Teresa Miaja de.
(org). Del alba alanochecer: la escritura en Reinaldo Arenas. Universidad Autnoma de
Mxico, 2008. p.71-80.
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Consideraes sobre o humor em O continente, de Erico Verissimo
CONCEIO, Francisco Mateus
*
Resumo: Com matizes diferentes, o humor perpassa a produo ficcional de Erico Verissimo. Neste artigo, nos
propomos a analisar esse componente retomando, inicialmente, os prprios depoimentos do autor. A seguir,
estudaremos a presena do humor na obra O Continente, procurando evidenci-lo no discurso de alguns
personagens e do prprio narrador. Dentre os personagens, abordaremos o cap. Rodrigo, Fandango, Liroca e
Bibiana. Tomaremos como referencial terico principal a obra de Luigi Pirandello, O humorismo. Com isto,
visando demonstrar que o componente humorstico concorre para a instaurao de um processo reflexivo e
humanstico na referida obra. Percebemos que este elemento instaurado na primeira parte do O Tempo e o
Vento, onde concorrer para a instaurao da perspectiva histrica atravs da fico, atuando, tambm, como
maneira de conter a fora mtica presente na narrativa. Percebemos que os elementos evidenciados nesta anlise
tero continuidade e desdobramentos no restante da trilogia, podendo ser abarcados em investigao mais ampla.
Palavras-chave: literatura, humor, realidade.
Em Solo de clarineta, Erico Verissimo empenha-se em apresentar, alm de sua
trajetria pessoal, um discurso metatextual, expondo a verso do autor sobre aspectos de sua
obra ficcional. Esta caracterstica tambm se estende a Um certo Henrique Bertaso, bem
como a suas narrativas de viagem. Alm disso, o elemento metatextual tambm se faz
presente no interior da obra ficcional, especialmente atravs de personagens-escritores que
atuam como alterego do autor. Por isso, apoiar-se em seus depoimentos como ponto de
partida para estudar-lhe o universo literrio parece-nos um procedimento vlido.
Com relao ao humor, h diversos depoimentos. Destacamos uma sequncia j na
primeira pgina da obra autobiogrfica:
Descobri na idade adulta que vivem dentro de mim, como irmos xifpagos, dois
sujeitos: um deles sisudo, responsvel e at moralista; o outro um pcaro que no
leva nada a srio. (VERISSIMO, 1973, p.1)
A tematizao do humor tambm est presente no texto ficcional. Em O tempo e o
vento, Floriano Cambar, personagem escritor, argumenta sobre a importncia de Malasarte
na cultura brasileira. Conforme sua teoria, o brasileiro oscilaria sua identidade entre Dom
Pedro II e Pedro Malasarte, e, com o final do Imprio, este ltimo tendeu a prevalecer.
- O velho Imperador prossegue Floriano era o smbolo da virtude, da
austeridade, da retido de carter e de costumes. Malazarte o safado, o sensual, o
empulhador. A Repblica mandou embora Pedro II e Pedro Malazarte ficou com o
*
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].
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campo livre. Mas foi s durante o Estado Novo que o simptico salafrrio floresceu
de verdade, tornando-se heri nacional, paradigma de comportamento poltico e
social. (VERISSIMO, 1962, p.376)
A referncia a Malasarte, sob prisma semelhante, tambm encontrada na literatura de
viagem de Erico Verissimo (Gato preto em campo de neve, A volta do gato preto, Israel em
abril e Mxico). Alm disso, o nome desse personagem popular ttulo de um conto em sua
primeira obra: Fantoches. As diversas referncias a esse personagem indicativo da
presena, na obra do escritor, de um vis humorstico frente realidade. A questo a
investigar a caracterstica desse humor e a relao que estabelece com a estruturao da
obra.
Retomando a citada autodefinio extrada de Solo de clarineta, cabe afirmar que o
no levar nada a srio equilibra-se com o carter sisudo, funcionando como antdoto contra
o perigo da simplificao. Assim, o humor em O continente uma fora que atua contra os
conceitos absolutos, gerando a dvida e a consequente possibilidade de anlise e reflexo.
Mas uma fora contida, para no eclipsar outras faces da realidade e torn-la puramente
picaresca. Articula-se, deste modo, com a funo reflexiva desempenhada pela narrativa,
guardando estreita relao com o conceito exposto por Luigi Pirandello:
Pois bem, ns veremos que, na concepo de toda obra humorstica, a reflexo no
se esconde, no permanece invisvel, isto , no permanece quase uma forma do
sentimento, quase um espelho no qual o sentimento se mira; mas se lhe pe diante,
como um juiz; analisa-o, desligando-se dele; descompe a sua imagem; desta
anlise, desta descomposio, porm, surge e emana um outro sentimento: aquele
que poderia chamar-se, e que eu de fato chamo o sentimento do contrrio.
(PIRANDELLO, 1996, p. 131-132)
Pirandello diferencia o humor do cmico. O primeiro, ao possibilitar o sentimento do
contrrio gera o efeito de reflexo e compreenso, diferentemente do cmico, que instauraria
a advertncia do contrrio, acentuando o efeito do ridculo.
O humor de Fandango
Fandango apresentando como um gacho tpico: veterano de diversas guerras,
conhecedor da lida campeira (capataz da fazenda do Angico), trovador, narrador de histrias,
mulherengo, bailarino e dono de excelente senso de humor. H, sobre ele, duas descries,
uma em primeira pessoa, em um dos captulos intervalares da narrativa (os interldios), e
outra feita pelo narrador onisciente.
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Significativamente, a narrativa em primeira pessoa assemelha-se apresentao que
Simes Lopes Neto faz de Blau Nunes. Este comea a falar assim: Eu tenho cruzado o nosso
Estado em caprichoso ziguezague. (LOPES NETO, 2000, p.33)
Por sua vez, Fandango inicia desta forma: Ds de gurizote ando cruzando e
recruzando o Continente... (VERISSIMO, 1995, p.543).
Em ambos, o personagem prossegue falando sobre a geografia do Rio Grande do Sul,
de sua populao e sua cultura, demonstrando dominar, em toda a extenso, o conhecimento
prtico desse mundo. No caso de Erico Verissimo, tal caracterstica sintetizada, na viso do
narrador onisciente, quando afirma que para Licurgo, Fandango era uma espcie de orculo
,o homem que sabe tudo e que tudo pode. (VERISSIMO, 1995: p.495)
Uma das principais diferenas entre Fandango e Blau Nunes que o primeiro tem no
humor uma de suas peculiaridades:
Como sempre acontecia, a peonada das estncias por onde ele passava ficava
alvorotada quando via o velho chegar pois no havia quem no apreciasse seus
ditos, chistes e histrias. (VERISSIMO, 1995, p.543)
Ter sabedoria diante da vida o que a narrativa parece corroborar - implica ter senso
de humor para entender-lhe as sutilezas e contradies. E mesmo para suportar seu carter
adverso e muitas vezes brutal. A passagem a seguir ocorre no Sobrado, quando se encontra
cercado pelas foras monarquistas. Aps narrar a lenda do Negrinho do Pastoreio para
Rodrigo e Torbio, este ltimo pergunta se a histria verdadeira, ao que Fandango responde
que uma histria linda, com isto desenredando o tema da polarizao entre falso e
verdadeiro. Na sequncia, olha para Maria Valria e murmura:
- Acho que vou acender hoje uma vela pro Negrinho para ele trazer de volta pra casa
o meu neto que se perdeu nessa revoluo. - Sorri. Fecha um olho. - E pro afilhado
da Virgem me devolver outras coisas, muitas outras coisas que tenho perdido nesta
vida. (VERISSIMO, 1995, p. 552)
Esta reflexo tem conotao social, avaliando a sua condio frente guerra e vida
em geral. Fandango sabe que o mito no tem o poder de restituir-lhe o que a histria lhe
arrancou, mas ao mesmo tempo brinca com ele como forma de expressar o sentimento dessas
perdas e, de certa maneira, sublim-la. Em outro momento, expressa a sensao de absurdo
frente guerra:
L est o maragato morto todo coberto de geada... Quem ser o infeliz? Decerto
algum pai de famlia. Amanh a revoluo termina, os inimigos de hoje fazem as
pazes, mas os que morreram no voltam mais. (...) Fandango pensa nas gargantas
abertas que viu desde que a revoluo comeou. Curgo vive dizendo que os
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maragatos so bandidos. Mas qual! Todo o mundo sabe que h gente boa e gente
ruim dos dois lados. (VERISSMO, 1995, p.661)
Capito Rodrigo e a dialtica da malandragem
Fandango o gacho tpico que j fez a passagem da vida livre, nmade, tendo se
aquerenciado como peo da fazenda do Angico, onde morrer, centenrio, inclinado sobre a
cerca. O cap. Rodrigo tambm expressa um prottipo do gacho. flagrado pela narrativa no
momento em que procura fixar-se em Santa F, abandonando, portanto, a vida gaudria,
fixao esta que, pode-se afirmar, no chegou a se completar. A maneira como irrompe no
povoado indica o carter de jogo e teatralidade que acompanha o personagem:
Apeou na frente da venda do Nicolau, amarrou o alazo no tronco dum cinamomo,
entrou arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque, e foi logo
gritando, assim com ar de velho conhecido:
- Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!
(VERISSIMO, 2004, p.209)
A provocao respondida por Juvenal Terra, que o desafia briga, mas Rodrigo,
sorrindo, esclarece que se trata apenas de brincadeira. Os dois se tornam amigos e, de certa
maneira, Juvenal desempenha o papel de fiador do romance entre Rodrigo e Bibiana. O
humor do Capito referido diversas vezes. O Pe. Lara, que algumas vezes amanhecia
jogando cartas no bolicho do Nicolau, ficava pitando um cigarro, tossindo e rindo das
histrias que o Capito lhe contava e muitas vezes murmurava que o Capito era das
arbias. (VERISSIMO, 2004, p.256)
Com o padre, alis, Rodrigo travar discusses significativas sobre temas como Deus,
Igreja e organizao da sociedade, e quanto ao poder da famlia Amaral, ocasio em que
expressa sua discordncia frente ao clrigo, marcando, atravs do humor, o tom amigvel.
Uma das situaes mais hilariantes protagonizadas por Rodrigo ser quando, em decorrncia
do duelo com Bento Amaral, est beira da morte e o padre vem prestar-lhe a extrema uno.
Rodrigo no tem condio de falar e o movimento mnimo que faz para se comunicar se
limita aos olhos e ao sorriso. O convencionado pelo padre que ele deve piscar uma vez para
sim e duas para no. Ao ser perguntado se se arrepende dos pecados, pisca duas vezes.
Como o padre insistisse, acabar obtendo, afinal, uma resposta terrvel:
Rodrigo abriu os olhos e ergueu lentamente a mo direita na direo do rosto do
vigrio. E com um sbito horror, como se de repente tivesse visto a figura de
satans, o pe. Lara leu naquela mo dessangrada a resposta do doente. O cap.
Rodrigo Cambar lhe fazia uma figa! Seus dentes estavam agora todos descobertos
num sorriso horrvel. O padre ergueu-se e deixou o quarto precipitadamente.
(VERISSIMO, 2004, p.286)
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Observando a trajetria de Rodrigo, pode-se fazer algumas aproximaes com o perfil
do malandro, tal como descrito por Antonio Candido em Dialtica da Malandragem. Para o
crtico essa figura est sintetizada, ao nvel folclrico, em Pedro Malasarte e, na tradio
literria, aparece ciclicamente, desde Gregrio de Matos at o modernismo, com Macunama
e Serafim Ponte Grande. No referido ensaio, Antonio Candido analisa Memrias de sargento
de Milcias, de Manuel Antonio de Almeida. Para o crtico, Leonardo, o personagem principal
da obra, oscila entre a ordem e a desordem. Por isso:
O cunho especial do livro consiste numa certa ausncia de juzo moral e na aceitao
risonha do "homem como ele ", mistura de cinismo e bonomia que mostra ao leitor
uma relativa equivalncia entre o universo da ordem e o da desordem; entre o que se
poderia chamar convencionalmente o bem e o mal. (CANDIDO, 1978, p. 332)
Essa caracterizao parece apropriada ao cap. Rodrigo. Ele s conhece o cdigo do
mundo andarilho e da ao militar. Quando decide fixar-se em Santa F, prope-se, tambm,
adequar-se s normas sociais da vida sedentria: casar, ter famlia, morada fixa e trabalho
cotidiano. Para tanto, enfrenta e vence a resistncia moral do povoado, consubstanciada no
poder da famlia Amaral. Mas seu propsito jamais significou, efetivamente, um
compromisso:
- Vosmec um homem de guerra. A gente deste povoado muito pacata.
Rodrigo fez um gesto vago.
- Pode-se tentar. No se perde nada. Se a coisa estiver muito ruim, fao a mala,
monta a cavalo e caio na estrada. O mundo muito grande. (VERISSIMO, 2005,
p.221)
Na prtica, casa-se, monta um bolicho para sobreviver e tem filhos, inaugurando a
genealogia dos Terra-Cambars. Torna-se amigo do padre, mas no religioso. Ao mesmo
tempo, continua a rotina de jogos, bebidas, aventuras amorosas e (ao final) guerreiras. Passa a
integrar a ordem predominante, mas no se submete a ela. Ao mesmo tempo, atravs de sua
ao e de suas palavras, as contradies dessa ordem so expostas. Sua inadequao ordem
permite-lhe expor, com facilidade, as limitaes da vida cotidiana. O que talvez explique o
imenso fascnio que exerce sobre a maioria das pessoas. Anos mais tarde, Juvenal Terra
comenta sobre Rodrigo para o Dr. Winter. Depois de observar que no era amigo do trabalho,
bebia, era chineiro e jogador, afirma que deixava a gente brabo e ao mesmo tempo gostando
dele, arrematando:
Isso de gostar uma coisa engraada. A amizade tambm. Vosmec no acha que a
gente pode querer bem at um homem sem-vergonha, um ordinrio, um patife?
(VERISSIMO, 1995, p. 407-408)
Neste momento o que est em destaque no so os atributos de coragem e bravura
bastante destacados no personagem, mas o malandro. O que se evoca a imagem de um
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Rodrigo que praticava o riso imoderado, para usar a denominao de Vladmir Propp
(1976), o riso de carter rabelaisiano, que, na sua fome de vida engloba a tudo, inclusive a
morte. E que, por exercer esse papel, deixou gravado na memria popular o sentimento do
contrrio, como demonstra o relato de Juvenal.
Liroca sob o vis do humor
Diferentemente de Fandango e Rodrigo, Liroca no encarna os valores de um gacho
tpico. H nele uma falta essencial para simboliz-lo: a coragem. Em razo dessa
caracterstica, no sujeito, mas objeto do riso. No entanto, o enquadramento da narrativa faz
desse medo um contraponto humano guerra.
A narrativa inicia-se com a apresentao desse personagem, que integra o exrcito dos
maragatos. Esto cercando o Sobrado e Liroca tem a funo de render um companheiro seu
Inocncio -, de sentinela na torre da igreja, mas necessrio enfrentar o risco da travessia at
ela. Depois de muita hesitao, faz a travessia correndo e gritando, atirando-se ao cho, ao
final, para proteger-se junto igreja. Neste momento surpreendido pela voz do companheiro
que o aguardava, mas a quem no tinha percebido: Eta Liroca velho de guerra. Seu medo,
que tentara esconder dos demais, havia sido observado, tornando-se objeto de riso, episdio
que concludo com a cena protagonizada por Inocncio ao fazer o caminho inverso, quando,
no meio do caminho parou, bateu o isqueiro, tornou a acender o cigarro, tirou uma baforada
e depois seguiu pachorrentamente. (VERISSIMO, 2004, p.25-26)
Esse personagem, porm, some na noite, de onde surgiu, enquanto Jos Lrio, o
Liroca, continua na narrativa. importante observar que ele far parte de toda a trilogia O
Tempo e o vento, desde o primeiro ao stimo volume, equiparando-se nisso, juntamente com
Dr. Rodrigo, Torbio e Maria Valria, ao restrito nmero de personagens que fazem essa
trajetria. Em alguns momentos, tratado de maneira subjetiva pelo narrador. Nesta
passagem, recorda seu pai, Maneco Lrio, major da Guarda Nacional, veterano da Guerra do
Paraguai, e que morrera na revoluo de 93. Em razo dele, Liroca alistou-se junto s foras
federalistas, procurando imitar-lhe a coragem. Rememora, tambm, os habitantes do Sobrado,
que agora est sitiando, e, principalmente, Maria Valria, por quem apaixonado, sem
nenhuma correspondncia, e de quem, assemelhando-se ao romantismo de Romeu e Julieta,
est separado pela inimizade poltica.
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Atravs da subjetividade do jovem Liroca, o narrador expe o absurdo da guerra. Seu
medo soa mais humano e grandioso do que a coragem daqueles que matam ou morrem
banalmente:
- Vivo com o estmago embrulhado. O cheiro de sangue e de defunto no me sai das
ventas. Sinto-o na gua, na comida, na mo, no vento, em tudo.
- a guerra... - repetiu o outro.
- Mas triste. (VERISSIMO, 2004, p.24)
A viso prtica de Dona Bibiana
As virtudes de fora e resistncia das mulheres em o Tempo e o vento, simbolizadas
em Ana Terra, Bibiana e Maria Valria so bastante referidas. Tal fora advm de uma
percepo realista da vida. No transcorrer da narrativa, medida que a estabilidade material
comea a ser conquistada, percebe-se a emergncia da malcia na observao da vida. No
chegamos a identificar esse componente em Ana Terra, o que condiz com o carter mtico-
fundacional da personagem, fortemente associada guerra pela sobrevivncia. Tal
caracterstica desenvolve-se em Bibiana, ganhando mais realce, depois, atravs de Maria
Valria.
A tomada de posse do Sobrado, narrada no captulo A guerra, parece-nos
emblemtico do surgimento desse componente. Bibiana trava uma enfrentamento com Luzia
pelo comando da famlia, e alguns episdios dessa batalha miudinha e constante so narrados
ao Dr. Winter, com quem mantm longos dilogos. Em um deles, narra a disputa quanto a um
p de marmeleiro. Vale lembrar que o Sobrado fora construdo pelo av de Luzia no local
onde ficava a casa de Pedro Terra, de cujas propriedades havia se apossado impiedosamente.
O marmeleiro, como as demais rvores do quintal, fora plantado por Pedro Terra e Luzia
havia ordenado a um escravo que o derrubasse, o que, de machado em punho, comeava a
faz-lo, quando Bibiana deu contraordem. Segue um momento de disputa entre as duas e de
indefinio para o escravo, at que Bibiana, apontando um revlver, resolve a questo a seu
favor. A situao somente engraada pela narrativa de Bibiana, que, ante de contar, avisa o
interlocutor que ele vai dar risada e ela mesma acometida de um risinho convulsivo. Ao
final, questionada se seria capaz de atirar, diz achar que sim, mas informa, com um brilho de
malcia, que a arma estava descarregada. E pergunta ao Dr. Winter: Mas no uma histria
engraada, essa que lhe contei? (VERISSIMO, 1995, p.538)
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Bibiana conta histrias de sua vida, da qual retira graa quando consegue ter domnio
da situao, como o caso do exemplo referido. Alm disso, as prprias aventuras de
Rodrigo, mediadas pela distncia temporal, possuem, para ela, um sabor anedtico. Mas h,
tambm, momentos em que faz intervenes pontuais nos discursos masculinos, freando seu
entusiasmo e chamando a ateno para a realidade imediata. o que se percebe quando
Licurgo se faz adulto e o Sobrado torna-se palco de convivncia social e poltica.
Influenciado pelo Dr. Torbio, o neto de Bibiana apaixona-se pelos ideais republicanos e
abolicionistas. Em um desses encontros, Dr. Torbio descreve, com entusiasmo, as
modificaes que a Repblica dever promover. Ao referir a secularizao dos cemitrios,
Bibiana intervm: - E os defuntos vo continuar mortos, sem saber de nada...
(VERISSIMO, 1995, p.597)
O humor do narrador
O humor tambm decorrncia do vis do narrador. Em gesto de ardor abolicionista,
Licurgo decide libertar os seus escravos, promovendo, para tanto, uma festa solene no
Sobrado. Os negros, o motivo da festa, se alimentam no quintal. Em determinado momento
so chamados, um a um, para receberem a carta de alforria, o que fazem, a maioria deles, de
maneira constrangida. Terminada a cerimnia, Bibiana ordena:- Agora abram as janelas pra
sair o bodum! (VERISSIMO, 1995, p.631)
A cena , primeira vista, sarcstica. Afinal, que significado efetivo possui essa
solenidade quando os negros so, nela mesma, discriminados? Porm, no se pode negar a
existncia de um impulso idealista em Licurgo, o que encontra apoio na tradio dos Terra-
Cambars, como o caso do prprio cap. Rodrigo enfrentando os Amarais ou argumentado,
junto ao Pe. Para, em defesa do fim da escravido. O problema que Licurgo no dispe de
domnio sobre a histria, nem mesmo a sua, e por isso seu gesto tem caractersticas de um
simulacro. Como outros personagens, lembra a figura do fantoche, ttulo da primeira obra do
autor. Por isso, no vemos na cena a ironia que desmascara um gesto hipcrita, mas o humor
que expe a condio melanclica de personagens que, invariavelmente, no conseguem
transcender as amarras histricas e sociais.
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Consideraes finais
No ensaio Erico Verissimo de trinta a setenta, Antonio Candido, observa que, frente
polarizao entre a arte engajada, caracterstico da dcada de trinta, e o experimentalismo
esttico da gerao de 45, Erico Verissimo inclinou-se pela primeira opo. Assinala que,
para o autor, essa opo almeja abranger um compromisso maior com a vida do que com a
arte em si, o que, logicamente, implica em determinadas opes estticas:
Do mesmo modo, o escritor que preferiu dar relevo maior vida disfara os seus
recursos e parece estar escrevendo casualmente; e assim vemos como se chega a um
certo tipo de atividade esttica a partir de uma disciplina de ordem tica, para a qual
Erico orientou inclusive os pendores de ironia e ceticismo que o impediram de se
tornar um fantico do que quer que seja.(CANDIDO, 1978, p.47)
Entendemos, nesta perspectiva, que o humor em Erico Verissimo emerge como se
fosse prprio ao ritmo da vida, sem assumir um tom predominante na narrativa. Por isso, na
obra em anlise, nem mesmo esse humor pode se tornar muito veemente, o que denunciaria o
poder do narrador diante da realidade. No contraponto de vozes, o humor distendido atua
quebrando a solidez dos discursos e possibilitando a emergncia do vis humanista prprio ao
autor.
Cabe considerar, ainda, que O continente constitui-se, na trilogia O tempo e o vento,
no momento da narrativa em que a presena de elementos mticos e fundacionais possui
intensidade. Neste sentido, pode se deduzir que o humor atua, nessa parte da obra, atenuando
o discurso mtico, e realando o universo errante do mundo cotidiano. Conforme Bakhtin:
O riso tem o extraordinrio poder de aproximar o objeto, ele o coloca na zona do
contato direto, onde se pode apalp-lo sem cerimnia por todos os lados, revir-lo,
vir-lo do avesso, examin-lo de alto a baixo, quebrar o seu envoltrio externo,
penetrar nas suas entranhas, duvidar ele, estend-lo, desmembr-lo, desmascar-lo,
desnud-lo e experiment-lo vontade. (BAKHTIN, 1988, p. 413)
Assim, esse elemento concorre para o carter realista da obra, tornando possvel a
investigao e a anlise histrico-ficcional.
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Referncias
BAKHTIN, Mikhail. Questes de literatura e de esttica (A teoria do romance) Traduo
Aurora Fornoni Bernardini/ Jos Pereira Jnior / Augusto G. Jnior / Helena Spryndis
Nazrio / Homero Freitas de Andrade. So Paulo: HUCITEC / Fundao para o
desenvolvimento da UNESP, 1988.
CANDIDO, Antonio. Dialtica da malandragem. In: ALMEIDA, Manuel Antnio. Memrias
de um sargento de milcias. Ed. Crtica de Ceclia Lara. Rio de Janeiro: LTC, 1978.
_____. Erico Verissimo de trinta a setenta. In: Chaves, Flvio Loureiro (Org.). O contador de
histrias: 40 anos de vida literria de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1978.
LOPES NETO, Simes. Contos gauchescos. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 2000.
PIRANDELLO, Luigi. O humorismo. Traduo Dion Davi Macedo. So Paulo: Experimento,
1996.
PROPP, Vladmir. Comicidade e riso. Traduo Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas
de Andrade. So Paulo: tica, 1992.
VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente I. So Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
_____. O continente. So Paulo: Globo, 1995.
_____.Solo de clarineta: memrias. 8. Ed. Porto Alegre: Globo, 1976.
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Os arquivos literrios, a pesquisa e a produo acadmica
SILVA, Mara Lcia Barbosa da
*
Resumo: Os acervos literrios e artsticos ao perderem o seu carter de mero arquivo histrico revelaram-se
fontes infindveis de pesquisa. A catalogao e organizao desses arquivos so fundamentais para que se possa
acess-los de maneira mais fcil e segura. Tendo disponvel uma gama diversa de materiais produzidos por
escritores e artistas, o pesquisador tem a possibilidade de tornar legveis documentos que num primeiro momento
so apenas pea de arquivo. Os estudos genticos pretendem desnudar os processos de criao e posteriormente
constituir hipteses a respeito desses, atravs dos documentos de trabalho, lugar de memria das obras em
gestao. Esses documentos constituem, portanto, um trao visvel de um mecanismo criativo e estud-los
tentar tornar visvel e compreender a originalidade do texto literrio ou da obra artstica atravs do processo que
os fez surgir. Assim, a visada sobre os documentos do processo de criao permite a ampliao das reas de
pesquisa, j que os estudos de crtica gentica, longe de entrarem em concorrncia com outros mtodos de
anlise, criam um campo de estudo ainda pouco explorado, no qual os discursos crticos encontraro um vasto
material que os auxiliar na fundamentao de suas hipteses interpretativas sobre determinada obra.
Palavras-chave: Arquivos. Organizao. Catalogao. Pesquisa. Produo acadmica.
Ingressei no final do segundo semestre de 2011 no grupo de pesquisa da professora
Dra. Rosani Umbach Ketzer atravs do programa PNPD/CAPES de ps-doutorado. O projeto
no qual estou atuando intitula-se Narrativas ps-ditatoriais: a reconstruo do sujeito por
meio da escritura, cujo objetivo estudar, pelo vis crtico-comparatista, a dimenso
sociocultural do sujeito da rememorao em textos autobiogrficos, em testemunhos e dirios,
enfatizando aspectos tericos relacionados memria e escrita de si. Assim, este estudo
insere-se na transio entre literatura, cultura e histria, buscando averiguar as possibilidades
e limites da escrita de si no universo das subjetividades contemporneas. Como ainda no
tenho resultados acerca dessa pesquisa, resolvi, ento, fazer uma pequena digresso para dizer
de como cheguei aqui por meio dos trabalhos de pesquisa.
Comecei a trabalhar em pesquisas durante o curso de Bacharel em Letras (Tradutor
alemo/francs) na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS),
concludo em 1995. J no primeiro ano do curso trabalhei como bolsista voluntria e a seguir
como bolsista de iniciao cientfica do Centro de Pesquisas Literrias (CPL) da PUCRS, no
projeto de pesquisa ACERSUL (Acervo de Escritores Sulinos).
*
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].
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O ACERSUL fazia parte do projeto Integrado do CNPq, Fontes da Literatura
Brasileira, e estava sob a coordenao da professora Dr Maria da Glria Bordini, que mais
tarde seria minha orientadora de mestrado. Atravs da pesquisa ACERSUL, realizava-se a
organizao, conservao, catalogao, informatizao, manuteno e difuso da
documentao literria dos acervos de escritores sulinos, como Erico Verissimo, Dyonlio
Machado, Reynaldo Moura, Josu Guimares, Mrio Quintana, Pedro Geraldo Escosteguy,
Zeferino Brasil, Lila Ripoll, Manoelito de Ornellas, Oscar Bertholdo e Francisco Fernandes,
para fins de constituio de um banco de fontes da literatura brasileira. A maioria desses
acervos, exceto o de Mrio Quintana, o de Erico Verissimo, que foi transferido para o
Instituto Moreira Salles (IMS), do Rio de Janeiro, e o de Josu Guimares, que est locado na
Universidade de Passo Fundo (UPF), continuam na PUCRS, agora sob os cuidados do Delfos
Espao de Documentao e Memria Cultural, inaugurado em dezembro de 2008.
Durante o perodo de Especializao em Literatura Brasileira (1996-1998), como
bolsista de aperfeioamento, e o Mestrado em Teoria da Literatura (1998-2000), como
bolsista de mestrado, tambm na PUCRS, continuei trabalhando nos projetos de pesquisas do
ACERSUL. Ao longo de todo o perodo em que permaneci na PUCRS, de 1992 a 2000,
sempre fiz parte da equipe que esteve envolvida na organizao do Acervo Literrio de Erico
Verissimo (ALEV), atualmente chamado de Associao Cultural Acervo Literrio de Erico
Verissimo (ACALEV), e durante um curto perodo (1997-1999) do Acervo Literrio e
Artstico de Pedro Geraldo Escosteguy
15
(ALPGE). O trabalho como bolsista nesses acervos
fez com que a literatura passasse a ser o meu principal foco de interesse e eu abandonasse de
vez os estudos de traduo depois de concluda a graduao.
15
Pedro Geraldo Escosteguy nasce a 14 de julho de 1916 em Santana do Livramento, RS. Aos vinte e dois anos,
forma-se mdico pela Faculdade de Medicina da Universidade do Rio Grande do Sul. Encerra, em 1980, as
atividades como mdico profissional, tendo publicado, ao longo desses quarenta e dois anos de exerccio,
trabalhos tcnicos em congressos nacionais e internacionais na sua especialidade, gastrenterologia, e lecionado
em vrios cursos. Mas, Pedro Geraldo Escosteguy no , apenas, um mdico; ele tambm poeta, contista,
pintor, escultor. Sua carreira nas artes plsticas tem tanto destaque e brilhantismo quanto a de sua carreira
mdica. No quadro das artes literrias do Rio Grande do Sul, destaca-se como membro do Grupo Quixote e pela
sua contribuio no processo de ruptura com o passado. Publica livros de poesias, artigos de crtica em jornais e,
na Revista O Cruzeiro, os anticontos. Essa obra vanguardista dos anos 1960, resulta da brevidade do texto
constitudo de imagens ricas em cores, formas e sonoridades verbais.Nas artes plsticas participou dos grandes
movimentos de vanguarda dos anos 1960 e 1970 e atuou como um dos mentores da vanguarda tipicamente
brasileira, lanando as bases de uma arte relacionada realidade, idia do novo e participao do espectador.
Seu trabalho reconhecido em mbito nacional e internacional, tendo participado de vrias exposies dentro e
fora do pas e sendo premiado em muitas delas. Foi o criador de Pintura tctil, que, na opinio de Oiticica, a
primeira obra plstica propriamente dita com carter participante no sentido poltico. Pedro Geraldo Escosteguy
morre, em Porto Alegre, a 28 de junho de 1989, deixando vrias obras inditas. Disponvel em:
<http://www.pucrs.br/delfos/?p=escosteguy>. (Acesso em 26/08/2012).
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No ALEV tive contato com quase todas as categorias de materiais que compunham o
acervo (correspondncia, manuscritos, cadernos de notas, material fonogrfico e fotogrfico,
cadernos de notas, biblioteca, etc.). Trabalhei tambm no projeto de informatizao do acervo,
cujas atividades incluam a manuteno e ampliao do acervo documental do autor,
coletando, arquivando e catalogando novos itens; da implantao do Banco de Dados do
Acervo Literrio de Erico Verissimo, por meio de itens digitalizados e fichrios eletrnicos
revisados; na elaborao de um aplicativo multimdia, Erico Verissimo em CD-ROM, com a
documentao do acervo, para divulgao da vida e da obra do autor; na coletnea de
entrevistas de Erico Verissimo, intitulada A liberdade de escrever (BORDINI, 1997), para a
qual se realizou a coleta e incorporao de entrevistas do autor ao seu acervo literrio e a
transcrio informatizada para preservao e publicao daquelas de valor documental para o
estudo dos seus processos de criao literria, entre outros. Todos esses projetos eram
coordenados pela professora Maria da Glria Bordini.
No ALEV, minha atividade especfica, concomitante a uma catalogao bibliotecria,
era a organizao da biblioteca de Erico Verissimo, riqussima em notas marginais produzidas
por ele e repleta de dedicatrias de autores ilustres. Um dos trabalhos na biblioteca era
justamente o de buscar as marcas de leituras e a histria dos livros atravs de anotaes,
rabiscos, sublinhas, recados e papis perdidos entre as suas pginas. No ALPGE realizei a
catalogao e o arquivamento de itens documentais, a informatizao de fichrios, o
atendimento a consulentes e trabalhei no apoio a eventos culturais de divulgao do acervo e
da obra de Pedro Geraldo Escosteguy.
Alm do contato to rico com o universo dos autores, atravs de todos os documentos
a que tnhamos acesso, ainda podamos contar com as presenas de Mafalda Verissimo e
Marlia Escosteguy. Mafalda Verissimo brindava nosso grupo de trabalho, que se reunia na
sua residncia no bairro Petrpolis sempre s sextas-feiras, com um cafezinho acompanhado
de biscoitos de aveia e mel e com as suas memrias de vida e das viagens que realizara pelo
mundo com Erico Verissimo, fechando algumas lacunas que os materiais no forneciam.
Marlia Escosteguy, da mesma forma, preparava lanches especiais para nos receber e no
intervalo dos trabalhos tambm partilhava conosco as suas vivncias emocionadas com o seu
irrequieto artista. Essas experincias so impossveis de dimensionar e ampliam ainda mais o
componente humanstico de nosso trabalho.
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Fazia parte tambm de nossas atribuies como bolsistas auxiliar na organizao de
vrios dos eventos de extenso que o programa de Ps-Graduao em Letras da PUCRS
promovia. Tive a oportunidade, ento, de fazer parte como assistente e membro da equipe de
apoio de vrios desses eventos, como do II, III e IV Seminrio Internacional de Histria da
Literatura; do X, XIV e XV Seminrio Brasileiro de Crtica Literria e IX, XIII e XIV
Seminrio de Crtica do Rio Grande do Sul, respectivamente; do I, II, III, e IV Encontro
Nacional de Acervos Literrios Brasileiros (ENALBs); do Seminrio Internacional 20 anos
sem Clarice; do Ciclo de vdeo e multimdia: Literatura e computador; do Seminrio
Internacional Leitura e Desenvolvimento Social; do Seminrio Internacional Erico Verissimo:
90 anos e do Seminrio Nacional Noite 40 anos, a face noturna da cidade.
Nesses eventos tnhamos a oportunidade de conhecer inmeros professores e
pesquisadores de todo o pas e do exterior, que nos proporcionavam o contato direto e
concreto com suas pesquisas, ampliando os nossos horizontes e expectativas num momento
em que a internet ainda no era o que hoje, um espao no qual se tem disponveis artigos e
pesquisas completas, inmeros documentos e at mesmo arquivos completos digitalizados.
Os ENALBs, especialmente, eram encontros nos quais os pesquisadores que
trabalhavam com arquivos literrios, encontravam lugar para apresentarem os seus acervos,
revelarem os resultados de suas pesquisas e compartilharem experincias de sucesso e
angstias na gerncia e organizao desses. Foi nos ENALBS que tive a oportunidade de ter
um maior contato com os diversificados estudos referentes criao literria e crtica
gentica, que iria utilizar futuramente na minha tese de doutorado.
Na minha dissertao de mestrado intitulada A representao racial em O prisioneiro:
preconceito e guerra utilizei como corpus a novela O prisioneiro (VERISSIMO, 1967), de
Erico Verissimo. Ela tematiza a interveno militar, provavelmente americana, num pas
asitico sem denominar lugares, personagens ou apresentar cenas de batalhas. Segundo Erico
Verissimo, os pases envolvidos na guerra no foram nomeados porque ele no quis limitar
sua histria no tempo e no espao. A ao desenvolve-se num perodo de mais ou menos doze
horas, entre o entardecer de um dia e o raiar do outro.
A opo pela parbola justificada pelo autor como uma forma de no limitar sua
histria no tempo e no espao. Esse fato torna a sua discusso temtica ainda mais abrangente,
extrapolando o mero ambiente de guerra e abrangendo a todas as situaes em que o homem e
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as naes colocam-se em situaes nas quais a violncia encarada como a nica sada
possvel.
A narrativa inicia-se com a descrio do espao fsico da cidade e da atmosfera que a
envolve. A seguir, so apresentadas as personagens principais, o Coronel, o Major, o Tenente,
personagem central, e a Professora, porta-voz do autor. A no nomeao das personagens
aponta tambm para o processo de reificao do qual so vtimas. No importa o que elas so,
mas sim a funo que executam dentro da grande engrenagem, da qual so todas prisioneiras.
A trama principal de O prisioneiro gira em torno da incumbncia recebida pela
personagem o Tenente. Ele tem duas horas para obter, de um jovem guerrilheiro detido,
informaes acerca do local onde fora escondida uma bomba que seria detonada e provocaria
a morte de inmeros civis. A fim de levar a cabo tal tarefa, autorizado a empregar quaisquer
mtodos, inclusive a tortura. O jovem prisioneiro torturado e morre. A bomba encontrada
por outros meios e desativada. O Tenente, profundamente perturbado, leva-se morte. O
autor denuncia, ao seu modo, a estupidez das injustias sociais, dos preconceitos, da
discriminao, da barbrie, deixando perceber a sua preocupao com a atuao do homem no
mundo e com o destino que ele est traando para si mesmo.
O estudo da novela se propunha a verificar de que modo as preocupaes humansticas
e antibelicistas do autor se expressam num ambiente de exceo e atravs dos trs grupos
tnicos (amarelos, brancos e negros), de orientaes polticas e sociais diferentes, que esto
representados na narrativa. A opo pela abordagem das etnias justifica-se tendo em vista que
conflitos blicos despontam constantemente em diversos pontos do mundo motivados por
diferenas raciais e religiosas, por interesses econmicos, rbita em que tambm se move o
elenco humano de O prisioneiro.
Na realizao da dissertao, empreguei documentos que faziam parte dos arquivos do
ALEV, como material publicado na imprensa, um caderno de esboos e notas (documento que
apresenta traos da criao literria) da novela e comprovantes de crtica sobre a obra, mas
essa no se constituiu numa pesquisa com nfase no processo de criao, numa anlise
gentica, apenas utilizei esse material como forma de ratificar algumas ideias que surgiram ao
longo da pesquisa. Esses materiais que podem ser denominados de documentos de processo,
j que fizeram parte do processo de criao da obra, mas no so os seus manuscritos.
No XII Seminrio Nacional de Literatura e Histria O centenrio de Erico Verissimo
e a Histria do Rio Grande do Sul, realizado em 2005, na Faculdade Porto-Alegrense
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(FAPA), apresentei o artigo O carter humanstico da obra de Erico Verssimo, no qual sigo
a discusso iniciada na minha dissertao e trato da opo do autor pela defesa das liberdades
individuais e da dignidade humana na novela O prisioneiro, mas que est presente em toda
sua obra de fico, seja nos romances de temtica urbana, nos da trilogia de O tempo e o
vento, nos de enfoque poltico, nos contos, como tambm em suas histrias infantojuvenis.
O trabalho em crtica gentica, desenvolvido na minha tese de doutorado, foi realizado
na UFRGS sob a orientao da professora Dra. Mrcia Ivana de Lima e Silva, que foi quem
realizou o primeiro trabalho em crtica gentica no Rio Grande do Sul, A gnese de Incidente
em Antares (SILVA, 2000), obra de Erico Verissimo. Tese que recebeu o Prmio Moinhos
Santista Juventude no ano de 1996.
A realizao do doutorado tendo como foco a criao literria atravs da viso da
crtica gentica foi uma consequncia natural do percurso que vinha traando ao longo de
minha vida acadmica. Em 2005, o Instituto de Letras da UFRGS recebeu de Luciano
Alabarse, diretor teatral, produtor cultural e amigo de Caio Fernando Abreu, um material
composto de manuscritos, correspondncia ativa e passiva, artigos, fitas cassetes, discos e
documentos diversos que pertenciam ao autor. Ao j existente acervo Guilhermino Csar,
coordenado pela professora Mrcia Ivana, cujo projeto de pesquisa, j concludo, intitulava-se
Arquivos Literrios e Memria Cultural, agregou-se o acervo de Caio F., foi nesse material
que encontrei o corpus de meu trabalho, os manuscritos de Zona contaminada.
Os ENALBs, como j dito anteriormente, foram cruciais nesse processo. No discurso
de abertura do 4 ENALB, o prof. Dr. Ir. Elvo Clemente chamou a ateno para a importncia
da existncia de arquivos para a produo de conhecimento:
curioso observar como o tema acervos vai tomando fora nos mbitos da crtica e
teoria literria. Os esplios, como so chamados por alguns, so fontes de nova vida,
apesar de guardarem em sua semntica profundo sentido de saudade e de ausncia.
Os acervos so mananciais de informaes que fornecem dados importantes crtica
gentica, crtica comparativa e a crtica ontolgica. Um pequeno esplio, um papel
amarelecido pelo tempo, com odores de vetustas gavetas, s vezes, ponto de
iluminao, de revelao ou de resposta que pairava na mente do investigador
literrio. Tudo o que foi tocado, retocado ou reformulado pela mo do artista toma
sentido, toma beleza, pois ele tem aquela varinha mgica de transformar o comum
em especial, de reavivar a imagem esmaecida, de sublimar algo do trivial. (...)
(BORDINI, 2001, p. 7)
Os estudos genticos iniciaram-se em Paris, em 1968, quando o Centro Nacional de
Pesquisa Cientfica (CNRS) criou uma equipe de pesquisadores, coordenada por Louis Hay,
encarregada de organizar e estudar os manuscritos do poeta alemo Heinrich Heine, recm-
chegados Biblioteca Nacional.
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Em posse desse material, a equipe sentiu a necessidade de sistematizar seu mtodo de
trabalho, no intuito de torn-lo o mais cientfico possvel. Inicia-se nesse momento, segundo
Grsillon (1991), a primeira fase dos estudos genticos, decorrentes da necessidade de estudar
os manuscritos, tentando recuperar e entender o processo de criao. A segunda fase inicia-se
quando o grupo de pesquisadores de Heine passa a dialogar com os grupos de Proust, Zola,
Valry e Flaubert que se formavam na poca. A fase seguinte e que vige at hoje, a fase em
que os estudiosos se lanam explorao dos manuscritos e, mais do que isso, reflexo dos
princpios fundamentais e da legitimidade da disciplina. Criou-se, nessa poca, no CNRS, um
departamento dedicado exclusivamente ao estudo de manuscritos: o Institut des Textes et
Manuscrits Modernes (ITEM).
A crtica gentica foi introduzida, no Brasil, por Philippe Willemart, responsvel por
organizar o I Colquio de Crtica Textual: O Manuscrito Moderno e as Edies, realizado na
Universidade de So Paulo (USP) em 1985. Nessa ocasio, foi criada a Associao de
Pesquisadores do Manuscrito Literrio (APML) e, como consequncia direta, a organizao
de grupos de pesquisa, como o do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), do Laboratrio do
Manuscrito Literrio, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH) e do
Centro de Estudos de Crtica Gentica da PUC-SP, entre outros.
A partir de 2006, devido abrangncia que alcanaram os estudos genticos, a APML
passou a chamar-se Associao dos Pesquisadores em Crtica Gentica (APCG). A revista
Manuscrtica: Revista de Crtica Gentica, criada em 1991, que est em seu vigsimo segundo
nmero, uma publicao da APCG que se destina a divulgar as pesquisas realizadas nessa
rea. O nmero 21, que saiu em agosto desse ano, e o 22, que dever sair tambm no segundo
semestre, foram dedicados ao teatro. No nmero 21 (Manuscrtica, 2011, p. 124-130) realizei
uma entrevista com o professor e dramaturgo Ivo Bender sobre o seu processo de criao
dramatrgico, j que infelizmente ele no guardou nenhum material de criao das suas peas.
Na minha tese, intitulada Zona contaminada: o processo de criao dramatrgica em
Caio Fernando Abreu, procurei investigar atravs do estudo dos datiloscritos
16
e da verso
publicada, os processos de criao dramatrgica do texto. Ideia constantemente frisada a da
dualidade do texto dramtico. Ele um texto, mas no pode ser apenas isso, ele deve cumprir
o seu destino que ser encenado. Sendo assim, Caio F. criou Zona contaminada (ABREU,
16
Digitoscritos: estado datilografado de um texto em devir; geralmente situado no fim da elaborao textual;
pode ser construdo pelo autor ou por outra pessoa. Sinnimo: datiloscrito (GRSILLON, Almuth. Elementos
de crtica gentica: ler os manuscritos genticos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 330).
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1997, p. 61-94) visando o palco, premeditando a sua encenao, ou seja, buscando algo que
est alm do texto, a sua teatralidade.
Considerando as afirmaes de Patrice Pavis (2005, p. 371), Roland Barthes (1964, p.
41-42) e Jean-Jacques Roubine (2003, p. 73-74), acabei por estabelecer que a teatralidade a
forma atravs da qual o texto dramatrgico atende as necessidades para que se complete no
palco o ritual do teatro. Rito coletivo, j que sem plateia no existe drama (ESSLIN, 1978,
p. 26), e atravs do qual a realidade que possvel de ser posta em cena sobe ao palco.
Empreguei o instrumental da crtica gentica e teorias do texto teatral para analisar,
atravs dos processos escriturais, a constituio da teatralidade no texto teatral de Caio F.,
considerando as suas particularidades, sendo a principal delas o fato de ser escrito para ter
vida plena e autnoma fora das pginas impressas. Segundo Dcio de Almeida Prado (2005,
p. 84), as personagens, no teatro, constituem praticamente a totalidade da obra, e
especialmente atravs delas e dos mecanismos que as constituem que procurei desvendar o
processo de construo do texto. Ao estudar os manuscritos de Zona contaminada, tive a
inteno de procurar compreender a especificidade do texto teatral considerando os caminhos
percorridos pelo autor no processo escritural da pea.
No nvel fabular, a pea conta a histria das irms Carmem e Vera, as nicas mulheres
que sobreviveram a um acidente atmico. Vera a encarregada de buscar mantimentos e de
fazer a segurana de ambas. Carmem criou para si um mundo paralelo, em que vive Mr.
Nostlgio, um ser imaginrio, interlocutor de suas divagaes. Vera tambm tem um homem
em sua vida, ele o Homem de Calmarit, um sobrevivente que tambm no est
contaminado e de quem Vera fica grvida. Elas sobrevivem em meio s buscas que o Poder
Central faz delas, pois so as nicas mulheres vivas capazes de reproduzirem seres humanos
saudveis. H ainda Nostradamus Pereira, o encarregado de manter a todos informados das
ltimas notcias, principalmente sobre buscas s irms. O Homem revela para Vera a
existncia de um lugar limpo, alm da Zona Contaminada, chamado Calmarit. Eles
combinam de fugir; no entanto o Homem capturado e denuncia as irms. Ele morto, Vera
foge e Carmem ateia fogo ao prprio corpo. Essa ideia no se altera e ser mantida at a
verso publicada.
Atravs da anlise das quatro verses da pea, do cotejo das alteraes nelas
processadas, e da verso publicada, ao longo da criao de Zona contaminada, foi possvel
identificar e elencar alguns dos procedimentos de escritura (e reescritura) empregados pelo
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autor ao pensar o seu texto. Acreditamos que o trabalho escritural realizado por Caio
Fernando Abreu, ao reorganizar as cenas, aumentando o seu nmero; ao diluir algumas falas,
deixando-as menos longas ou ao transformar monlogos em dilogos, tornando essas falas
mais fludas; ao reduzir a utilizao de rubricas, suprimindo muito do seu carter narrativo; e
ao amalgamar propostas estticas diferentes, e divergentes, aliando a narrao pica
encenao dramtica, para a formatao de seu texto, tem o firme propsito de constituir uma
teatralidade para ele, de estrutur-lo para que melhor possa ser executado no palco, local onde
atinge a sua plenitude e ultrapassa os limites de sua natureza literria. Em todas essas
alteraes, possvel perceber o movimento de reduo da densidade textual, no que se refere
natureza de sua estrutura, j que a fbula, em si, aps a sua grande mudana na segunda
verso, no sofre mais alteraes significativas. A criao de Zona contaminada est calcada,
assim, no que chamei de um processo de patchwork, atravs do qual o autor serve-se de
recortes diversos e mistura-os na composio de seu texto e por meio do qual parece tambm
brincar com o conceito de originalidade.
Ao longo do doutorado, atravs da participao em encontros, reunies e eventos, fui
testando as ideias surgidas no processo de elaborao da tese. No VIII Congresso
Internacional da Associao de Pesquisadores do Manuscrito Literrio Leituras do processo,
realizado em 2005, apresentei a comunicao A comunidade do Arco-ris: a gnese de um
possvel novo mundo. A comunidade do Arco-ris (ABREU, 1997, p. 41-60) uma pea
infantil, de Caio Fernando Abreu, na qual personagens do mundo infantil, como bonecas,
bailarinas, soldadinhos de chumbo, procuram um lugar legal para viver. Nela analiso,
atravs de um manuscrito que tambm compunha o material doado por Alabarse, que acredito
seja o nico existente, e da verso publicada, as alteraes feitas pelo autor no sentido de
tornar o texto mais adequado ao seu pblico alvo.
Em 2006, no XXI Encontro Nacional da ANPOLL Domnios do saber: histria,
instituio, prticas, no GT de Crtica gentica apresentei o trabalho Crtica Gentica e
Esttica da Recepo no qual pretendi discutir como se d a recepo do crtico gentico
diante do manuscrito.
Em 2008, no XXIII Encontro Nacional da ANPOLL Produo do conhecimento em
Letra e Lingusticas: identidade, impacto e visibilidade participei do GT de crtica gentica
com a comunicao A linguagem teatral em Zona Contaminada de Caio Fernando Abreu.
Nesse texto a discusso abarca a questo da peculiaridade da linguagem teatral, que se utiliza
A AN NA AI IS S d do o I II I S Se em mi in n r ri io o I In nt te er ri in ns st ti it tu uc ci io on na al l d de e P Pe es sq qu ui is sa a
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de vrios meios de expresso para se manifestar. Isso se deve natureza singular do texto
literrio teatral, que apenas adquire vida prpria fora das pginas impressas, e que se destina,
sobremaneira, a leitores especiais: atores, figurinistas, cengrafos, iluminadores, metteurs en
scne, que o traduziro para o palco.
O meu processo de criao, assim, tambm se deu em patchwork, e ao fim e ao cabo,
as partes se encaixaram de forma agradvel e coerente e a tese foi dada por encerrada. Tanto
para a realizao da dissertao de mestrado quanto para a tese de doutorado, foram
fundamentais as experincias nos acervos e nos seus projetos de pesquisa, a participao em
eventos ligados rea de pesquisa tambm foram importantes na corformao de uma linha
que trabalho que se mostra ainda bastante profcua e que agora atravs da participao em um
novo projeto com uma linha de trabalho diferenciada poder ser ampliada, como tambm
apontar para novos caminhos a serem trilhados.
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pref. de Luiz Arthur Nunes. Porto Alegre: Sulina; IEL, 1997. p. 41-60.
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Porto Alegre: Sulina; IEL, 1997. p. 61-94.
BARTHES, Rolland. Essais critiques. Paris: ditions du Seuil, 1964. p. 41-42.
BORDINI, Maria da Glria (Org.). A liberdade de escrever: entrevistas sobre literatura e
poltica. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS/Edipucrs/Prefeitura Municipal de
Porto Alegre, 1997. (Coleo Engenho e Arte 4).
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Acervos Literrios Brasileiros. Org. Maria da Glria Bordini. Porto Alegre,
CPGL/ILA/PUCRS, v. 7, n. 2, jun. 2001. p. 7.
ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar,
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GRSILLON, Almuth. Alguns pontos sobre a crtica gentica. Estudos Avanados, n. 11,
maio 1991.
http://ims.uol.com.br/Erico_Verissimo/D816 (Acesso em 26/08/2012).
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ROUBINE, Jean-Jacques. Introduo s grandes teorias do teatro. Trad. Andr Telles. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 73-74.
SILVA, Mara Lcia Barbosa da. A representao racial em O prisioneiro: preconceito e
guerra. 2000. 109 f. Dissertao (Mestrado em Letras) Faculdade de Letras, Pontifcia
Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.
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Caio Fernando Abreu. 2009. 300 f. Tese (Doutorado em Letras) Instituto de Letras,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
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SILVA, Mrcia Ivana de Lima e. A gnese de Incidente em Antares. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2000.
VERISSIMO, Erico. O prisioneiro. Porto Alegre: Globo, 1967.
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Resgate de um romance fundador da literatura sul-rio-grandense
GARCIA, Sheila Fernandez
*
VAZ, Artur Emilio Alarcon
**
Resumo: O presente trabalho integra os estudos realizados no projeto A formao e consolidao do sistema
literrio no Rio Grande do sul, e vem a ser um recorte da dissertao de mestrado intitulada O homem maldito
de Carlos Eugnio Fontana: o incio do romance sul-rio-grandense, a qual objetiva contribuir para compreenso
do sistema literrio rio-grandense. Para tanto, pretende-se divulgar e analisar a obra literria do autor pelotense
Carlos Eugnio Fontana (1830-1886), pois esta se revelou de suma importncia para a compreenso do perodo
de formao da literatura gacha enquanto sistema literrio, sendo que este autor foi o primeiro a publicar
romance na cidade de Rio Grande e o quarto no estado. Em 1858, Carlos Eugnio Fontana publicou o romance
O homem maldito e, em 1860, a novela Cenas da vida. Por serem precursoras do gnero no estado e estarem
dentro do padro literrio vigente na poca, o estudo destas obras tornou-se necessrio para a compreenso do
processo literrio na regio sul do pas. Contudo, cabe ressaltar que neste momento as anlises se detero no
romance O homem maldito, por este apresentar recursos literrios propcios a uma investigao terica.
Palavras-chave: Literatura. Resgate literrio. Literatura sul rio-grandense.
O homem maldito um romance publicado no ano de 1858, pelo escritor Carlos
Eugnio Fontana, o qual nasceu em Pelotas e desenvolveu sua atividade literria na cidade
vizinha de Rio Grande. O engajamento de Fontana nas causas sociais da poca e seu forte
carter liberal deram um tom particular a sua obra servindo de pano de fundo para seus
escritos literrios e para seus artigos jornalsticos.
O contexto poltico da poca, turbulento em vrios aspectos, caracterizando-se pela
intensa perseguio poltica e represlias aos que com seus escritos enfrentavam com
destemor corrupo e desmandos reinantes dos aliados do Imprio, obrigou o autor a valer-
se de pseudnimos em seus escritos jornalsticos, visando-se preservar dos governantes.
Artifcio este que pode lamentavelmente ter acarretado que outros escritos analisados
na pesquisa realizada nos jornais da poca, embora com fortes evidncias de serem de autoria
de Fontana, em razo de estilo de escrita semelhante, temas, formas de abordagem, e
publicados no mesmo peridico em que habitualmente o autor escrevia, todavia por falta de
maiores elementos a validar esta produo literria, no foi possvel afirmar categoricamente
que se tratava realmente do mesmo autor.
*
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E-mail: [email protected].
**
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E-mail: [email protected].
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Ainda mencionando o subterfgio do anonimato que Fontana se valeu em seus escritos
pblicos, a pesquisa constatou que este fato contribuiu para a perda da sua identidade como
autor, comprometendo o seu merecido reconhecimento na histria literria pela inteireza do
conjunto de sua obra.
Por outro lado, pode ter tido outra consequncia mais lamentvel e perniciosa, visto
que este anonimato gerou tambm certa desvalorizao das poucas obras assinadas pelo autor,
que sem ter um conjunto literrio mais consistente acabou comprometendo a sua
credibilidade na crtica, sendo esquecido ao longo do sculo XX.
No entanto, ressaltamos que muito embora Fontana tenha apenas duas obras
publicadas, estas merecem ser reavaliadas e relidas por estarem dentro do padro literrio
vigente da poca e por apresentarem elementos fecundos para uma investigao terica e
literria em pleno sculo XXI.
Alm disso, cabe reafirmar a relevncia do autor quanto ao pioneirismo na produo
de prosa de fico no Rio Grande do Sul. Fato confirmado pela historiografia literria em
razo de que o notrio romance Divina Pastora de autoria de Caldre e Fio ter sido publicado
no ano de 1847, e logo depois, O corsrio em 1851, de idntico autor. A rara produo
literria poca restringe-se a poucos romances, como Um defunto ressuscitado (1856), de
Carlos Jansen, a A donzela de Veneza e A vspera da batalha, romances de Koseritz
publicados em 1858, mesmo ano em que Carlos Eugnio Fontana publica o quarto romance
do estado O homem maldito.
Contudo, a importncia deste autor na historiografia sulina no se d apenas por ser
um dos precursores do gnero romance no estado, mas tambm pelo seu importante papel
para o pleno desenvolvimento intelectual e literrio na regio. Seu nome aparece na Histria
da literatura do Rio Grande do Sul, de Guilhermino Cesar, como um dos influentes autores
que colaboraram, junto com Apolinrio Porto Alegre e Caldre e Fio nas revistas O Guaba e
Arcdia, primeiros veculos gachos de comunicao essencialmente literrios, o que instigou
ainda mais a efervescncia cultural e literria, resultando num movimento que viria a ser um
grande marco de reconhecimento e apogeu para a histria da literatura sul-rio-grandense: a
Partenon Literrio.
Ademais, cabe frisar que, alm de ser colaborador da Revista do Partenon Literrio e
suas antecessoras, Fontana desenvolveu um peculiar papel na histria e na literatura da cidade
do Rio Grande, que foi um dos principais centros culturais do estado no limiar do sculo XIX.
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Escreveu Apontamentos histricos, topogrficos e descritivos da cidade desde o seu
descobrimento e fundao at acontecimentos contemporneos a sua existncia, os quais
segundo Guilhermino Csar foram publicados a partir de maio de 1867 na Arcdia e
reproduzidos em 1887 na revista Partenon Literrio (CESAR, 1971, p. 310).
Mas, como ocorre com diversos escritores e obras do perodo, muitos destes valiosos
escritos esto perdidos nas bibliotecas do pas, ocultando parte da nossa histria literria. No
entanto, conseguimos localizar na Biblioteca Rio-Grandense o romance O homem maldito,
foco deste trabalho, e a novela Cenas da vida. E devemos a este achado a possibilidade de
resgatar, analisar e acrescentar histria da literatura do Rio Grande do Sul a obra deste autor,
preenchendo assim uma parte da grande lacuna existente na rica historiografia literria
gacha.
Ressaltamos ainda que este estudo se baseou nos resultados de pesquisa em fontes
primrias, como o jornal Eco do Sul (1856-1889), O Povo (1856-1858), Dirio de Rio Grande
(1854), e outras fontes secundrias que abordem a histria literria produzida na regio, que
redescobrimos para a literatura sul-rio-grandense a obra de Carlos Eugnio Fontana.
como se este trabalho fizesse parte de um enorme mosaico que precisa ser
devidamente completado para que se possa realmente compreender e apreciar inteiramente a
literatura produzida no estado. Dessa forma, adentramos na anlise do romance O homem
maldito, avaliando a sua influncia na formao e consolidao do sistema literrio rio-
grandino e gacho no sculo XIX, a sua estrutura, temtica, e adequao ao estilo literrio
vigente poca.
Em relao anlise da influncia da obra de Fontana na formao e consolidao do
sistema literrio na regio, julgamos necessrio destacar algumas reflexes sobre a noo de
literatura e de sistema propostas por Antonio Candido na Formao da literatura brasileira:
momentos decisivos. Para Cndido, a literatura propriamente dita considerada a partir de um
sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que vo desde caractersticas internas
como lngua, temas e imagens at elementos de natureza social e psquica, as quais permitem
que se reconhea notas dominantes de uma determinada fase.
Dessa forma, de acordo com o autor, para que haja um sistema literrio necessrio,
a existncia de um conjunto de produtores literrios, mais ou menos conscientes do
seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de pblico, sem
os quais a obra no vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma
linguagem, traduzida em estilos) que liga uns aos outros. (CANDIDO, 2009, p.25)
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o conjunto destes trs elementos que gera a comunicao literria, aparecendo sob
este ngulo como um sistema simblico. E prosseguindo em sua preleo a este respeito o
autor afirma que quando a atividade dos escritores de um dado perodo se integra em tal
sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formao da continuidade literria (CANDIDO,
2009, p. 25).
Portanto, se formos levar em considerao que Fontana foi integrante de um
importante grupo de intelectuais gachos que contriburam para organizar, sistematizar e
difundir a atividade literria no estado colaborando com seus escritos para revistas e
peridicos de suma importncia como o Guaba, a Arcdia e o Partenon, poderamos assim,
assegurar que Fontana teve um papel importante neste perodo de formao do sistema
literrio gacho.
Uma vez que estes intelectuais manifestavam uma singular vontade de fazer literatura
no Rio Grande do Sul e so considerados pelos seus sucessores e pela crtica como os
fundadores de uma organizada tradio literria no estado, com estilos, temas, formas e
preocupaes bem prprias. E por isso dizemos que assim comeou a se estruturar um sistema
literrio no s no estado, mas concomitantemente na cidade de Rio Grande que contava com
influentes escritores.
Depois da Revoluo Farroupilha (1835-1845), o sentimento liberalista acentuou-se no
estado e a atividade literria foi cada vez mais sendo considerada como parte de um esforo
extremo por expressar os anseios de liberdade e justia social que visavam uma
particularizao e certa diferenciao dos temas, estilos e dos modos de exprimi-los que
gerava uma espcie de conscincia coletiva dos autores quanto ao seu papel de protagonistas
nesta histrica e honrosa luta.
Por isso, que ao observarmos a obra de alguns destes autores, como por exemplo, A
moreninha (1844), de Joaquim Manoel Macedo e Lucola (1862), de Jos de Alencar,
percebemos que elas esto ligadas por diversos denominadores comuns, como a temtica do
casamento por interesse, a idealizao feminina, o teocentrismo, a honra masculina, a
elevao da natureza, entre outros. Este fato demonstra que |Fontana estava legitimamente
adequado aos moldes da literatura vigente na poca, ratificando sua importncia no perodo de
formao da literatura gacha enquanto sistema literrio.
Deste modo, buscamos, sobretudo apreender o fenmeno literrio da forma mais
completa e significativa possvel, analisando a obra no apenas em seu sentido dentro do
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contexto histrico e literrio, mas tambm buscando compreender o autor na sua integridade
esttica. Assim, faremos uma anlise da obra, que no ocorrer apenas para fim de um
julgamento que se esgote em si, mas uma avaliao com o intuito de compreenso,
interpretao, explicao e reconhecimento histrico-literrio e esttico do romance de
Fontana.
A histria de O homem maldito abrange um nvel histrico, psicolgico e moral que
em certos momentos chega ser um pouco ousado para seu tempo, pois aborda assuntos
tratados com grande limitao e restrio pelos nossos primeiros romancistas. O texto
apresenta, como pano de fundo, episdios comuns na poca, como a Revoluo Farroupilha, a
luta por igualdade e justia social e a instigante rivalidade entre liberais e conservadores.
Principiada na dcada de 1840, a narrao demonstra a aflio, medo e insegurana
vivenciados pelo povo da pequena provncia de Jaguaro, no extremo sul do estado em
decorrncia da turbulenta efervescncia poltica que a revoluo causara na regio.
O romance narrado em terceira pessoa abre espao em diversos momentos para o
discurso direto e, assim, o narrador onisciente d voz aos personagens, gerando no leitor a
impresso de momentaneidade temporal. O protagonista do enredo, que se utiliza deste
espao aberto pelo narrador para expor seus ideais, indignaes e pensamentos chama-se
Carlos. Podemos considerar que seja coincidncia o nome do protagonista ser o mesmo do
autor da obra, mas esse aspecto ser detalhado no prximo captulo, com as teorias do gnero.
Igualmente, seu antagonista, Jos Luis, tem mesmo nome do rival poltico do escritor e
jornalista Carlos Eugnio Fontana, que se chamava historicamente comprovado em notcias
do jornal O Povo - Jos Luis Corra da Cmara, assim como diversas situaes vivenciadas
pelos personagens no romance se equiparam s situaes reais da poca, bem como outros
personagens secundrios tambm possuem mesmo nome e sobrenome de figuras histricas da
regio.
Alm destes dois personagens centrais, a obra apresenta diversos personagens que
contribuem significativamente para a construo do enredo. o caso do Capito Fabiane, pai
de Carlos, o qual no leito de morte instiga no filho o sentimento de vingana que vai conduzir
parte da histria, Heloisa, irm de Carlos, a mulher que desonra a famlia com o antagonista
gerando grande conflito, Sofia, o grande amor da vida de Carlos, que submetida por seu tio
Flix a casar por interesses financeiros com Jos Luis, aumentando ainda mais a discrdia
entre os dois personagens principais. Tambm aparecem diversos personagens secundrios,
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alguns de cunho histrico e outros aparentemente ficcionais, os quais contribuem para
intensificar as diversas narraes explicitadas na obra.
Cabe ressaltar que a ntida semelhana entre os personagens e acontecimentos reais
com os fictcios constatada na leitura de jornais da poca, principalmente o jornal O Povo de
1856 e 1857, anos que antecedem a publicao de O homem maldito, e que por isso
configura-se num indcio de que os limites entre histria e fico esto muito tnues no
romance de Fontana.
Porm, percebe-se que a inveno narrativa transcende a vida real dos personagens,
configurando-se numa histria livre dos compromissos com a verdade. Nesta histria, contada
em 104 pginas dividida em 13 captulos, o personagem Carlos trava uma luta ideolgica,
poltica e pessoal contra o vilo Jos Luis e este embate interfere diretamente na vida de
outros personagens e na sociedade jaguarense como um todo.
Fontana traz tona crimes, corrupes, mandos e desmandos do governo imperial,
assim como os costumes sociais e morais da cidade de Jaguaro, e a luta dos liberais por
justia na regio. Um exemplo da difcil situao em que se encontrava a cidade no perodo
o trecho no qual o Capito Fabiane desabafa com sua filha Heloisa espera de Carlos que
estava em plena batalha:
mas o estado atual de Jaguaro, me faz temer; hoje nesta Malfadada vila, a vida, os
interesses, e as garantias de todos seus habitantes esto disposio de trs ou
quatros entes miserveis, que, revestidos com o manto do poder, dispem da
existncia de qualquer cidado pacfico, somente por no querer este ligar-se a suas
tramas e maquinaes infernais, sim minha filha, preciso partir deste torro e
procurar um asilo em qualquer outra parte onde impere a lei e o povo goze com
amplido dos seus direitos (FONTANA, 1858, p. 5)
17
.
Assim, notamos que a corrupo imperava na Jaguaro ficcional e quem no se aliava
ao poder imperial era considerado inimigo, sendo perseguido, muitas vezes at a morte, como
foi o caso dos membros da famlia Fabiane. importante salientar ainda, que o trecho
transcrito apresenta um dado biogrfico ocorrido da famlia do autor Carlos, que durante a
Revoluo Farroupilha teve que buscar asilo em outro pas, na cidade de Buenos Aires, na
Argentina.
Contudo, a famlia ficcional de Carlos, apesar do desejo do patriarca, no segue o
caminho do asilo poltico e resolve enfrentar o poder lutando at o fim por justia e uma
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Nas referncias seguintes dessa obra, usaremos somente a indicao da pgina.
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realidade mais feliz para seu povo, mesmo sabendo que esta mudana ainda estava longe de
acontecer, conforme verificamos no discurso do prprio Capito Fabiane, o qual afirma que:
essa nova era raiar para Jaguaro, mas no to cedo; muitas vtimas tem de ser
ainda sacrificadas; o punhal e o bacamarte tem de dominar ainda; preciso decepar
muitas cabeas para saciar o instinto feroz desses tigres que nos dominam, oh!
Minha filha, quando pensei que a liberdade erguesse seu trono nas campinas do sul,
foi que o frreo grilho da tirania nos veio prender! Quando pensei que tinha selado
com meu sangue o liberalismo, eis que assoma sua rude cabea o despotismo! Oh
meu Deus! Meu Deus! (p. 6)
O personagem estava certo, pois a partir de ento a narrativa se desenrola de forma
linear, e o narrador descreve o percurso vivido pelo personagem Jos Luis desde o final da
Revoluo Farroupilha at 1858. Nesse lapso temporal, so relatados alguns fatos de ordem
histrica, como o surto de clera, o surgimento da imprensa em Jaguaro, ambos em 1855, os
assassinados de algumas personalidades polticas etc. e outros fatos ficcionais, como as
relaes conflituosas entre o quarteto amoroso formado por Carlos, Sofia, Jos Luis e Helosa.
O importante salientar que, em ambos os eixos temticos, as perversidades do
personagem Jos Luis aparecem, interferindo negativamente e castigando a famlia Fabiane e
a sociedade em geral com seus crimes e malfeitos. Assim, Jos Luis, no romance, personifica
o mal, pois o leitor faz sua catarse e no consegue ficar indiferente, revoltando-se com suas
atitudes.
O antagonista desperta sentimentos de averso e repdio por suas perversas
maquinaes que a todos prejudicava, chegando ao extremo de manipular descaradamente a
Justia contra a liberdade e a integridade. Motivando a atuao de um dedicado e destemido
jornalista, Carlos, que ousara enfrent-lo com a arma poderosa que dispunha, a sua escrita,
impregnada de independncia no pensar, escrever e agir.
Assim, Carlos, homem honesto, justo e com ideais liberais, enfrenta as atrocidades de
Jos Luis, homem sem escrpulos, com um notrio passado obscuro carregado de crimes e
corrupo que faz jus ao ttulo da obra, O homem maldito. Mas esta misso assumida por
Carlos lhe custou um alto preo, pois aguou ainda mais a ira e o instinto assassino do vilo, o
qual no mediu esforos para eliminar os rivais do seu caminho.
Contudo, importante mencionar que nem sempre Carlos e Jos Luis foram inimigos,
pois, no primeiro captulo, explicitado um dilogo de Carlos com o Capito Fabiane, em que
revelado que toda esta briga comea quando Carlos, ao tentar livrar o velho pai da
perseguio do governo, ganha uma proposta de se aliar ao imprio e perpetrar um crime
contra um juiz de direito, mas como Carlos possui um forte carter de justia e ideal liberal
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recusa a proposta com severa indignao, o que aumenta ainda mais a perseguio famlia
Fabiane.
Carlos chega a cogitar ao pai a possibilidade de buscar ajuda de Jos Luis, j que o
mesmo devia favores a esta famlia, que o acolheu como filho no pior momento de sua vida,
quando o mesmo foi condenado por ter tentado matar o prprio pai, dando-lhe uma segunda
oportunidade de remisso dos seus erros e guardando seu terrvel segredo em silncio. Porm,
o Capito Fabiane por ser um homem experiente e conhecer a ndole de Jos Luis alerta
Carlos que este, agora com inmeros ttulos e aliado do governo, deixou-se dominar pelo
poder e esqueceu os bons ensinamentos que recebera no tempo em que viveu no seio da
famlia Fabiane, querendo apenas seu extermnio por temor de seu segredo vir tona.
Somente no segundo captulo, intitulado A declarao, que Carlos vai realmente
conhecer o mau carter de Jos Luis, quando sua irm, Heloisa, revela com extremo temor e
arrependimento que por amor se entregou ao homem que traiu a confiana da famlia. Quando
Heloisa relata o nome do homem que a seduziu, Carlos se desespera pela dupla traio que a
irm cometera, no s pelo contato sexual prvio ao casamento, mas por ter sido consumado
com o inimigo da famlia: Jos Luis.
Neste episdio, notamos um importante elemento a ser analisado na narrativa, o qual
demonstra claramente a adequao do romance ao estilo temtico vigente no perodo do
Romantismo no s no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil. Eis que ao observar a
histria e o drama vivido pela personagem Heloisa, podemos notar um forte fator de cunho
moralizante, muito evidenciado pelos romnticos da segunda metade do sculo XIX. No caso,
a questo sexual feminina tratada atravs desta personagem como um terrvel pecado, o qual
causa vergonha, destruio e discriminao para a famlia da vil pecadora perante a
sociedade, trazendo drsticas consequncias para a mesma.
O grande erro de Helosa foi se entregar por amor a um homem sem estar moral e
legalmente casada com ele. Isso foi o bastante para a jovem ter sua vida desgraada, sendo
amaldioada pelo prprio pai que no aguenta a decepo e morre de desgosto, como
podemos observar no seguinte trecho da obra,
Seu sedutor! Jos Luis! O inimigo da famlia Fabiane. Desonrado por uma mulher e
um filho maldito! E esta mulher a minha filha, a filha que tanto amei, e este
homem o homem que tanto detesto. Oh!... Raiva!... inferno!... maldio sobre eles!
Sim filha desnaturada, eu te amaldioo! (...) pronunciou mais algumas palavras
inteligveis e depois ficou num letargo, alguns momentos depois sua alma tinha
voado manso dos justos. (p. 21-23)
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Este fato, no entanto, apenas o princpio do sofrimento da moa, pois em seguida
acontece uma sucesso de acontecimentos catastrficos, culminando com o seu assassinato e
de seu filho, a mando de Jos Luis, de forma fria e brutal.
Desse modo, percebemos no romance, atravs da personagem Helosa, a forte
influncia da religio catlica na sociedade e na literatura, pois o que impera no enredo das
personagens femininas o discurso catlico de castidade. Sabemos que esse discurso bem
antigo, desde a Bblia, em que o casamento o nico sacramento no qual possvel e ideal a
unio entre um homem e uma mulher, com fins especficos para a reproduo e consolidao
da famlia, como podemos observar no seguinte versculo: Portanto deixar o varo o seu pai
e a sua me e apegar-se- a sua mulher, e sero ambos uma s carne. (Gnesis, 2: 24).
Esse discurso perpetuou-se por sculos mais tarde, e a igreja utilizou-se da figura de
Maria, me de Jesus, para fortalecer, fundamentar e enriquecer ainda mais sua tese de pureza
e obedincia feminina. Assim, Maria tornou-se um exemplo a ser seguido por ter concebido
sem juno carnal, destacando-se apenas pela pureza, maternidade e fidelidade. Com isso,
compreende-se que de acordo com o catolicismo, se a mulher no seguisse o ideal da
virgindade ou de ser esposa e me deveria ser punida com a morte, eis que no estaria
cumprindo com sua misso social e crist.
Mas, a partir do sculo XVIII, a sociedade passa por diversas mudanas polticas,
econmicas, culturais e sociais que acabam resultando numa transformao na mentalidade da
sociedade, e, entre tantas transformaes, a imagem da mulher comea a modificar-se
consideravelmente. Dessa forma, para proteger seus ideais, a igreja catlica acaba se
utilizando dessas mudanas para reforar a condio de reproduo feminina e legitimar ainda
mais a funo social da mulher, fazendo com que a maternidade fosse cada vez mais
associada ideia de sentimento e de amor incondicional que as mes deveriam ter pelos filhos
e pela ordem familiar.
Enfim, essas mudanas sociais permanecem evoluindo durante o sculo XIX,
obrigando a igreja a reagir e lutar em defesa da moral e dos bons costumes. Desse modo, os
defensores do Catolicismo passaram a assinalar o imenso poder das mulheres como
condutoras morais, sempre no mbito domstico, no qual alcanariam a sua realizao
pessoal, via casamento (GIORGIO, 1991, p. 204). Assim, podemos notar que a literatura
desse perodo segue, de certa forma, os princpios catlicos, abordando em suas obras,
temticas de cunho moralizante a partir de conceitos estabelecidos pela igreja.
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Percebemos, ento, que este ideal feminista, estabelecido pelo catolicismo e seguido
pelos romnticos evidenciado no romance em anlise, pois, atravs da personagem Helosa,
as leitoras da poca tornavam-se sabedoras do fim trgico que poderiam ter, caso
desobedecessem ou se desviassem dos caminhos da tica, da moral e dos bons costumes
vigentes na poca.
Por isso, ao observar essas questes, podemos dizer que a referida obra tenha causado
um efeito nas leitoras da poca, que, por medo do castigo divino, atravs do exemplo de
Helosa, e para estar dentro do padro ideal feminino tiveram seus comportamentos alterados
em funo dessa relao da experincia de vida das leitoras com a obra propriamente dita.
Essa importncia do leitor para a compreenso da obra e do sistema literrio o que,
segundo Hans Robert Jauss, pode determinar o carter artstico de uma obra: A distncia
entre o horizonte de expectativa e a obra, entre o j conhecido da experincia esttica anterior
e a mudana de horizonte exigida pela acolhida nova obra, determina do ponto de vista da
esttica da recepo, o carter artstico de uma obra literria (JAUSS, 1994. p. 187).
Desse modo, podemos pensar que a obra de Carlos Eugnio Fontana apesar de no ter
se tornado posteriormente conhecida como outras do mesmo perodo e estilo, como por
exemplo, A moreninha, de Joaquim Manuel Macedo e Lucola de Jos de Alencar, tem
caractersticas que a enquadram no patamar de obra com relevante importncia para os
estudos literrios, assim como apresenta um grande valor documental.
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Novelas de Carlos de Koseritz: resgate e anlise
MELLO, Juliane Cardozo de
*
Resumo: O presente artigo visa apresentar a pesquisa que realizo, desde 2009, sobre a obra ficcional de Carlos
de Koseritz. Em um primeiro momento, discorro acerca de como desenvolvi metodologicamente esse trabalho e
da fortuna crtica encontrada sobre o autor que norteou os primeiros passos dessa investigao. Posteriormente,
realizo uma breve analise das narrativas Um drama no mar e Laura: tambm um perfil de mulher a fim de
refletir sobre caractersticas temticas e estruturais desses escritos como, por exemplo, a organizao
folhetinesca e a confluncia de aspectos clssicos e romnticos na primeira novela e o desenvolvimento do
gnero, o lastro de realismo, a maior objetividade e a temtica que visa uma anlise de um carter humano um
perfil de mulher em Laura. Alm disso, fao uma breve referncia ao que denomino perodo biogrfico
esquecido ilustrando dados encontrados nos peridicos das cidades de Rio Grande e Pelotas, que auxiliam na
tentativa de lanar esse novo olhar vida e obra do ilustre imigrante alemo.
Palavras-chave: Carlos de Koseritz. Novelas. Biografia.
Os primeiros passos da pesquisa
Esta pesquisa vinculada aos projetos O sistema literrio rio-grandino no sculo
XIX: estudo sobre a sua formao e consolidao e Dicionrio de autores de Rio Grande no
sculo XIX, que tencionam resgatar obras publicadas em peridicos locais, bem como
localizar obras consideradas desaparecidas pela crtica e historiografia literrias, a fim de
evidenciar a formao do sistema literrio rio-grandino relacionando-o com o sistema sul-rio-
grandense e nacional. A presente investigao centra-se em duas narrativas Um drama no
mar (1862) e Laura: tambm um perfil de mulher (1875) de autoria de Carlos de Koseritz,
ambas publicadas na cidade de Rio Grande (RS).
Essas narrativas vinham sendo consideradas desaparecidas ou apenas citadas, sem uma
anlise mais detalhada, em compilaes de escritores e obras do sculo XIX. Ambos os
exemplares foram localizados na Biblioteca Rio-Grandense (Rio Grande RS) e no haviam
sido encontradas por pesquisadores devido ao fato de estarem sem identificaes na capa e
mal catalogadas. A novela Um drama no mar foi localizada primeiramente em formato de
folhetim, no jornal Eco do Sul, publicado em 1862 e posteriormente em sua verso em livro,
de 1863, da novela Laura, encontramos, alm do exemplar da 1 edio na biblioteca citada,
*
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E-mail: [email protected].
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um exemplar da segunda edio na Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica PUCRS
(Porto Alegre-RS).
A metodologia utilizada foi, em um primeiro momento, a leitura e a atualizao
ortogrfica da novela Um drama no mar, bem como a anlise dos aspectos histricos, atravs
de pesquisas no jornal Eco do Sul, e dos aspectos literrios. Alm disso, foi realizado o
levantamento da fortuna crtica acerca do autor em histrias da literatura, em biografias e
estudos recentes realizados por pesquisadores como Imgart Grtzmann e Ren Gertz.
Em um segundo momento, foi realizado o mesmo procedimento em Laura, tambm
um perfil de mulher, sendo feita tambm a leitura de demais romances da poca para o
estabelecimento de comparaes. Em um terceiro momento, foi realizada a comparao dos
dois textos contemplando os aspectos romnticos existentes em ambos. As referidas obras
foram aprovadas para a publicao pelo Instituto Estadual do Livro (IEL) com lanamento
previsto para o ano de 2013.
Toda a pesquisa sobre um autor exige um estudo apurado de sua fortuna crtica. Os
dados que encontramos sobre Koseritz so variados e dispares, pois bigrafos, crticos e
historiadores divergem nas informaes que apresentam. Apesar de seu relevante papel no
desenvolvimento das letras sul-rio-grandenses, Koseritz mereceu apenas duas biografias
amplamente divulgadas, a de Jos Fernando Carneiro (1959) e Oberacker Jr. (1961), a
primeira buscando delimitar a importncia de sua bibliografia em prol dos imigrantes e a
segunda evidenciando o seu germanismo. Outra biografia, menor e menos conhecida, foi
publicada em Rio Grande por Alfredo Ferreira Rodrigues (1890), como homenagem ao
jornalista em virtude de seu falecimento.
Jos Fernando Carneiro, em seu Karl von Koseritz (1959), aborda assim como a
maioria dos textos sobre Koseritz os primeiros anos do biografado no Brasil de maneira
sucinta, centrando-se no perodo que o jornalista viveu em Porto Alegre, destacando sua
atuao jornalstica, poltica e filosfica, afirmando que as suas produes literrias
despertaram pouco interesse, ao contrrio de seus artigos da imprensa de lngua alem
[que] eram lidos no Rio Grande, Paran e Santa Catarina, e rapidamente tornou-se Koseritz o
leader poltico mais importante, em todo Brasil, dos alemes e seus descendentes.
(CARNEIRO, 1959, p. 13-14)
Carlos H. Oberacker Jr., talvez impulsionado pela biografia de Carneiro, publica
Carlos von Koseritz (1961), reformulando um texto seu publicado em 1938, retomando alguns
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aspectos que enunciara em 1936 acerca do germanismo. O bigrafo tambm se refere
sucintamente ao perodo em que Koseritz viveu nas cidades de Rio Grande e Pelotas,
denominando-o o perodo de formao do escritor, quando fizera seu aprendizado
jornalstico, pois foi em Porto Alegre que tornou-se consumado mestre na imprensa
(OBERACKER JR., 1961, p. 25). Nos demais captulos de seu estudo, vemos destacados
outros pontos: a misso histrico-cultural da coletividade de cultura e lnguas alems e o
programa poltico-estatal de Koseritz e a luta para a sua concretizao, nos quais o estudioso
destaca o intuito da realizao de um programa cultural e poltico, programa marcado pelo
germanismo, em virtude do alemo considerar a superioridade da cincia e da pesquisa
alems (KOSERITZ, 1884, p. 60 apud OBERACKER JR., 1961, p. 33).
J Guilhermino Cesar destaca, em sua Histria da Literatura do Rio Grande do Sul
(1971), a sua mentalidade de naturalista cientfico e aponta para a falta de ideias bem
definidas do jornalista, pois o publicista destemido, o panfletrio violento, o poltico
militante, o maom e o catlico coabitavam na pena de Koseritz, em permanente conflito
(CESAR, 2006, p. 269).
O historiador dedicou outro estudo a Koseritz intitulado Koseritz e o naturalismo
(1958), no qual destaca a importncia do alemo para a difuso da escola realista/naturalista
na literatura sul-rio-grandense, considerando-o naturalista em literatura como em filosofia
(CESAR, 1968, p. 91), devido ao seu posicionamento crtico aos ultrarromnticos: Estamos
numa poca de transio literria: o realismo declarou guerra velha escola romntica e
idealista; a fotografia literria procura desalojar a pintura idealista (KOSERITZ, s/d, apud
CESAR, 1968, p. 94).
Em ensaio intitulado Carlos von Koseritz, publicado na coletnea Fundamentos da
cultura rio-grandense (1960), Guilhermino Cesar aborda a fico de Koseritz julgando-a
novelas de pequeno valor literrio (CESAR, 1960, p. 175), destacando a novela, que
atualmente no conhecemos nenhum exemplar, A donzela de Veneza, da qual diz que, ao
contrrio das demais produes literrias:
serviu-lhe de pretexto para dar largas ao seu sentimento liberal. uma novelinha
curta, fluente, agradvel, que descreve cenrios e costumes da Itlia, pois a ao se
passa em Veneza, durante o stio que lhe imps Marechal Radetzky, ao mando do
governo austraco. de ver a a indignao do novelista, que refletiu na sua breve
narrativa a opinio dos povos latinos, naquele momento irmanados contra a ustria,
que teimava em sustentar o domnio das terras peninsulares adjudicadas ao Imprio
em consequncia do Tratado do Campo Frmio, origem remota da insurreio
veneziana de 1849. (CESAR, 1960, p. 175)
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Cesar aborda ainda a relao da fico romntica e da prosa naturalista de Koseritz,
justificando-a da seguinte forma:
Koseritz, nascido em 1830, ano ureo do romantismo na Frana, estreou-se
literariamente numa fase de transio. Nas primeiras tentativas de prosa, conforme
se v das novelas a que aludi no princpio deste trabalho, sacrificou na ara dos
romnticos. Mas, medida que o Naturalismo se foi acentuando na Europa, passou a
sofrer a influncia dos mais categorizados corifeus da nova escola. (CESAR, 1960,
p. 187)
Carlos Alexandre Baumgarten (1997), em seu estudo sobre os primrdios da crtica
literria no Brasil, demonstra que a atuao do jornalista no desenvolvimento da literatura sul-
rio-grandense estendeu-se tambm ao campo da crtica literria, devido a dois ensaios crticos
que publicou: Alfredo dEscragnolle Taunay (1886) e um prefcio s narrativas de Leopoldo
von Sacher-Masoch (1882), alm de um grande nmero de escritos propagados pelos
peridicos locais, com crticas que evidenciavam a ascenso e afirmao, no plano dos
estudos literrios, dos princpios cientificistas, encampados e largamente utilizados pela
crtica literria (BAUMGARTEN, 1997, p. 114).
Estudos mais recentes sobre a obra de Koseritz centram-se ainda na problemtica da
imigrao, do germanismo e dos preceitos filosficos que o autor divulgou. Ren Gertz
(1999) organiza uma compilao de escritos de cunho filosfico e Imgart Grtzmann (2007)
escreve sobre o intelectual Koseritz, pretendendo contribuir para a sua insero no contexto
brasileiro e alemo da segunda metade do sculo XIX (GRTZMANN, 2007, p. 132).
Em nossas pesquisas, encontramos muitas discrepncias entre os dados biogrficos e
bibliogrficos de Koseritz como, por exemplo, a data de seu nascimento que datado de
forma distinta, pois enquanto Oberacker Jr. (1961, p. 23) e Lothar Hessel (1976, p. 135),
Afrnio Coutinho e Galante de Sousa (2001, p. 896) referem-se a 3 de fevereiro de 1834,
Guilhermino Csar (1971, p. 250), Jos Fernando Carneiro (1959, p. 7), Raimundo Meneses
(1978, p.344) e Imgart Grtzmann (2007, p. 129) referem-se a 7 de junho de 1830 e Alfredo
Ferreira Rodrigues (1890, p. 3), seu primeiro bigrafo, menciona apenas o ano de 1832.
Dentre todos, as informaes mais confiveis, e mesmo assim dspares, so a do bigrafo
Oberacker Jr. devido ao fato de que este teria consultado a certido de nascimento do alemo
e a de Grtzmann que afirma seguir texto autobiogrfico de Koseritz, que indicaria como
verdadeiro o ano de 1830.
Nos dados bibliogrficos acerca das produes literrias do alemo, encontrou-se
tambm grandes distines, j que nas oito obras atribudas a ele h divergncia nos anos
de publicao e no gnero ao qual se enquadram, principalmente devido reproduo
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sistemtica de dados na falta de acesso dos escritores aos exemplares originais. Rodrigues
refere-se a Um drama no mar e a Laura: tambm um perfil de mulher como romancetes
publicados, respectivamente, em 1862 e em 1875, e menciona a segunda edio de Laura no
ano de 1887; j Carneiro cita apenas Laura, informando apenas o ano de publicao como
1872; Oberacker Jr. caracteriza Um drama no mar como um conto publicado em 1863 e
Laura descrita como novela naturalista publicada em 1872. Segundo Afrnio Coutinho e
Galante de Sousa, Um drama no mar uma novela publicada em 1863 e a narrativa Laura:
tambm um perfil de mulher foi publicada em 1873, os autores no fazem atribuio de
gnero.
Guilhermino Csar aborda Um drama no mar como novela publicada em Rio Grande
em 1863 e Laura, sem classificao, publicada em Porto Alegre no ano de 1873; j
Grtzmaann refere-se primeira como um romance publicado em Rio Grande em 1862 e a
segunda como novela publicada na mesma cidade em 1875. Meneses refere-se a Um drama
no mar como novela publicada em Rio Grande em 1863 e a Laura: tambm um perfil de
mulher, sem descrio, publicada em Porto Alegre em 1873.
Procurar esclarecer esses dados, bem como acrescentar um novo captulo biografia e
bibliografia de Koseritz, so os principais intuitos da pesquisa apresentada visto que, atravs
de duas narrativas ficcionais, busca trazer luz uma face desconhecida do escritor e, atravs
de peridicos das cidades de Rio Grande e Pelotas, escritos pelo e sobre o autor, tenciona
acrescentar informaes sobre os primeiros anos do imigrante alemo no pas.
Um novo olhar figura de Koseritz
Trazer luz dados novos acerca de Carlos de Koseritz e de sua obra implicam uma
releitura dos dados supracitados, pois em nenhum dos textos consultados o perodo em que o
alemo viveu nas cidades de Rio Grande e Pelotas merece uma ateno maior e o destaque
dado produo romntica negativo, j que os estudiosos consideram a sua obra ficcional
de pouco valor literrio e desconsideraram a sua importncia histrica seja na formao do
sistema literrio rio-grandino e pelotense ou como parte da literatura sul-rio-grandense que se
encontra desaparecida em arquivos e bibliotecas do estado.
Como nos firma Ren Gertz (1999, p. 7) uma biografia de Karl von Koseritz ainda
est por ser escrita, e no intuito de acrescentar dados nesse aspecto, realizamos pesquisas nos
jornais O Brado do Sul, atravs de microfilmes da Biblioteca Nacional, no Eco do Sul, no
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Dirio do Rio Grande, no Noticiador e nO comercial e, alm disso, em processos judiciais
do Arquivo Pblico de Porto Alegre. Nos peridicos encontramos informaes acerca de
polmicas que Koseritz se envolveu no sul do estado do Rio Grande do Sul, nos seus
primeiros anos no Brasil.
O jornalista , por exemplo, acusado de plgio na composio de seus dramas,
conforme o jornal O Noticiador de 25 de fevereiro de 1860, pois segundo seus opositores o
alemo cometeu oitenta erros em quarenta linhas e, por isso, no pode se denominar escritor
pblico. Koseritz alvo de acusaes tambm do jornal Dirio do Rio Grande do ano de
1860, pois o peridico rio-grandino transcreve artigos do Dirio de Pelotas e do O Noticiador
como, por exemplo, na seo A pedido dos dias 22, 26 e 29 de fevereiro, onde o autor alemo
denominado o Dom Quixote do jornalismo, sendo ainda ameaado, pois como um potro
feroz, certo, no pode um homem brigar; mas nada o impede de atracar-lhe as chilenas, e
meter-lhe o relho, at p-lo em esto de levar freio e suportar arreios. o que faremos
(DIRIO DE PELOTAS apud DIRIO DO RIO GRANDE, 22 fev. 1860, p. 2). Ainda no
Dirio do Rio Grande, Koseritz acusado de no ser nem escritor de teatro, sendo apenas um
plagirio da Revista Teatral, nem crtico de teatro, apenas um charlato (DIRIO DO RIO
GRANDE, 26 fev. 1860, p. 2).
Outra acusao grave, agora na cidade de Rio Grande, pode ser verificada no Dirio
do Rio Grande de 8 de novembro de 1863, na sesso A pedido, Koseritz delatado por
Cherubim Correa de Arajo de corromper a juventude em seu colgio Ateneu Rio-Grandense,
pois, segundo Cherubim, seu filho de 10 anos de nome Milibio foi no dia 6, infamemente
violentado pelo SEU PRPRIO MESTRE, o referido Sr. Carlos de Koseritz, o mestre teria
praticado com o menino atos ignbeis e infames, que o respeito ao pblico manda calar, mas
que os homens sensatos bem sabero compreende-los! (DIRIO DO RIO GRANDE, 8 nov.
1863, p. 3).
Koseritz, no jornal Eco do Sul, de 10 de novembro, defende-se com o seguinte apelo:
Urdiu-se contra mim uma intriga to grave, que de momento impossvel destru-la,
porque um juiz, meu inimigo pessoal, espontaneamente tomou conhecimento do
fato, e cortou-me os meios de justificar-me perante autoridade imparcial.
Resta-me pedir ao pblico, que suspenda o seu juzo a respeito deste fato, at que eu
tenha destrudo a trama infame que contra mim foi urdido para o disponho de todos
os elementos, logo que tenha de haver-me com um juiz imparcial e alheio ao
trabalho de que sou vitima.
Rio Grande, 9 de Novembro de 1863.
Carlos de Koseritz
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Os dados citados apontam para a forte oposio que o imigrante alemo sofreu no
interior do estado, antinomia essa que ocasionou agresses, processos judiciais e a mudana
para Porto Alegre que decorreu na sua consolidao como jornalista, como poltico e como
intelectual, aspectos esses estudados por inmeros pesquisadores e que no merecem ateno
neste artigo.
Tratemos agora das narrativas. Um drama no mar e Laura: tambm um perfil de
mulher ope-se aos artigos e aos livros conhecidos de seu autor, pois apresentam temticas e
estruturas caractersticas do Romantismo em contraste ao Naturalismo posterior que
vislumbramos em artigos como, por exemplo, A terra e o homem luz da moderna cincia
(1884). A diviso entre um perodo romntico e um perodo naturalista nos escritos de
Koseritz nos parece evidente, mas tambm um pouco arriscada, visto que os dados biogrficos
apontam para as desavenas entre o letrado alemo e os seus adversrios sulinos, o que
justifica, talvez, a sua adeso ao modelo vigente na literatura brasileira do perodo.
Esteticamente ambos os textos so pobres se comparados s demais produes que
circulavam no pas como os romances de Jos de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo,
porm, se considerarmos a relevncia histrica desses escritos veremos que seu estudo de
grande importncia para compreenso dos primrdios das letras gachas, visto que Um drama
no mar foi um dos primeiros folhetins, redigidos em Rio Grande, publicados no jornal Eco do
Sul, uma vez que a maioria das obras do gnero eram tradues de autores franceses, ingleses
com algumas aparies de autores brasileiros.
18
Um drama no mar baseia-se em eventos verdicos ocorridos em uma embarcao nas
proximidades da cidade de Rio Grande. Esses fatos foram descritos no jornal Eco do sul,
anteriormente a publicao do folhetim, entre os dias 8 e 12 de outubro de 1862, e, alm
disso, uma justificativa a publicao do texto evidencia esses aspectos:
Um Drama no Mar este o ttulo de uma novela que nos foi oferecida pelo seu
autor, com o fim de ser publicada em nossas colunas.
No lemos seno o princpio que hoje estampamos e por isso nada pode nos
acrescentar quanto ao mrito do escrito; julgamos, porm, que ele interessar os
nossos leitores, porque lhe serve de base o horrvel acontecimento que h poucos
dias se deu bem perto de nossas praias e que tanto impressionou o publico do lugar.
No hesitamos, pois de recomendar ao publico a leitura da novela com que fomos
obsequiados pelo SR. X. Y. Z. (ECO DO SUL, 11 out. 1862)
Aos homicdios noticiados nas pginas do peridico, a narrativa acrescenta o motivo
para os crimes: um amor no correspondido teria feito o marujo Elissandro assassinar o
18
Maiores informaes a esse respeito podem ser encontradas no site: http://www.fontes.furg.br/
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esposo de sua amada, L..., e estuprar a donzela, Marlia. A estrutura da narrativa
folhetinesca, mesmo na sua verso posterior impressa, com os finais dos captulos permeados
de suspense, visto que:
A frmula continua amanh ou continua num prximo nmero que a fico em srie
proporcionava ao folhetim alimentava paulatinamente o apetite e a curiosidade do
leitor dirio do jornal e, obviamente, como resposta, fazia aumentar a procura por
ele, proporcionando-lhe maior tiragem e, consequentemente, barateando os seus
custos. (NADAF, 2002, p.18)
Se a estrutura remete ao gnero folhetim, o enredo e o seu desenvolvimento apontam
para o Romantismo em confluncia com alguns laivos de classicismo como, por exemplo, o
nome da protagonista e as referncias mitologia greco-romana como, por exemplo, no
seguinte trecho:
Negras nuvens encasteladas no horizonte amontoavam-se quais enormes rochedos;
olo ainda no tinha conseguido encadear os seus filhos; havia passado o furor do
rebojo, mas a tempestade ainda roncava; o trovo repercutia no espao, e os raios,
sucedendo-se com rapidez, lanavam fugitivo claro sobre as gigantescas vagas,
que, sua dbia luz, pareciam enormes fantasmas envoltos em negros sudrios,
orlados de branco pela espuma, que desenvolvia o choque dessas montanhas de
gua, que, agitadas pelo tridente do velho Deus marino, se precipitavam umas sobre
as outras, retrocediam, confundiam-se, ligavam-se e desfaziam-se em horrvel
choque, em torrentes de alva espuma. (KOSERITZ, 1863, p. 19)
O enredo versa sobre a ambio de um jovem, que mesmo sendo bom e
apresentando inmeras qualidades, no aceita a rejeio e acaba cedendo ao seu desejo de
vingana eliminando seu concorrente e tomando posse da mulher amada. O eixo central da
trama a conspurcao de Elissandro que descrito pelo narrador como um anjo cado, a
imagem e semelhana de Lcifer.
O narrador, onisciente intruso, opina acerca dos fatos, relata experincias como marujo
de navios, clama a onipotncia de Deus, e essas concepes levam o bigrafo Alfredo Ferreira
Rodrigues a considerar que Koseritz descreve na narrativa o perodo em que foi marinheiro,
pois o alemo sentia-se talhado para a vida de marinheiro e to fundas e duradouras foram as
impresses que nela recebeu que, anos depois, em 1862, [utilizou-as] na introduo de uma de
suas obras (RODRIGUES, 1890, p. 4).
O bigrafo ainda descreve a superioridade dessa obra em relao a A donzela de
Veneza, que a antecedeu, e afirma que:
surpreendente a diferena entre os dois livros e muito deveria ter estudado o autor,
para em to curto espao de tempo, apresentar tamanho progresso. A linguagem
mais elevada e mais correta e, a trechos, encantadora e potica; a ao corre mais
animada e o leitor sente-se preso ao desenrolar de um drama pavoroso, que o
comove profundamente. O fato que serve de assunto ao romance verdadeiro e bem
perto de nossas costas representou-se a medonha tragdia, mas h em toda a
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narrativa vida, h arte. De um acontecimento cheio de horror, soube o romancista
formar um livro interessante. (RODRIGUES, 1890, p. 13, 14)
Com relao s personagens, pode-se dizer que elas so apresentadas de forma
idealizada e que todas so planas, nos termos de E. M. Forster (1927), no evoluindo ao longo
da narrativa, bem ao estilo romntico e caracterstico das novelas, com L... sendo o heri
caracterstico, honrado e viril, e Marlia a virgem pura, bela, graciosa. em Elissandro que se
concentra toda a dualidade do texto: jovem, belo, de bom carter, porm assassino, mas
igualmente no apresenta complexidade, sendo que sua mudana de carter pode ser
justificada como uma dominao demonaca.
A natureza tambm est presente de forma idealizada, estando relacionada aos
sentimentos pelos quais passam os personagens da novela: ao incio do texto, antecedendo o
conflito, a tarde descrita como amena, rsea, caractersticas que remetem tranquilidade e,
por isso, o ambiente positivo; medida que os fatos vo ocorrendo, uma tempestade vai se
intensificando, desde o planejamento do crime, passando pelas memrias da famlia que
trazem a Elissandro uma espcie de conscincia do ato que ir cometer, at chegar aos
assassinatos juntamente com o estupro de Marlia, em que a tempestade intensifica-se ainda
mais. Ao final, h novamente a calmaria, aps o assassino ter sido capturado pelos
marinheiros do navio.
A exaltao da religio, presente nessa narrativa, contrastante aos textos
cientificistas do autor, publicados em Porto Alegre. O apego ao catolicismo no est presente
na voz dos personagens, mas sim nas palavras do narrador, como j citado anteriormente, que
afirma ser em meio borrasca do mar que se sente to grande, to chegado ao Eterno e
Infinito, como naqueles solenes momentos, nunca sou to crente, nunca sou to grato ao
criador (KOSERITZ, 1863, p. 21).
Como caracterstico das narrativas oitocentistas, o narrador interage com seu leitor,
confidenciando seu passado de marinheiro, intercalando os discursos em primeira e terceira
pessoa, visando identificao de seu destinatrio, e nas cenas mais cruis da narrao como,
por exemplo, no estupro da protagonista, poupa o seu ledor, convidando-o para correr um
vu, leitores, sobre essas horrveis cenas, que acompanharam aquela noite de tempestade, que
bem perto de nossas costas se deram, enquanto ns pacificamente repousvamos nos braos
de Morfeu (KOSERITZ, 1863, p. 41).
Essas estratgias, como nos diz Marisa Lajolo, se no garantem ao narrador a
fidelidade do leitor a um texto que se prolonga, sem dvida estreitam a cumplicidade entre
A AN NA AI IS S d do o I II I S Se em mi in n r ri io o I In nt te er ri in ns st ti it tu uc ci io on na al l d de e P Pe es sq qu ui is sa a
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ambos: o leitor uma figura para quem se conta em segredo os acontecimentos da trama
(LAJOLO, 1999, p. 20). Outro aspecto que legitima essa aproximao entre quem narra e
quem l so as vrias referncias a pintores como, por exemplo, Hans Holbein e Rembrandt,
alm de algumas referncias literrias, que apontam para que tipo de leitor a narrativa era
destinada.
Laura: tambm um perfil de mulher apresenta um enredo melhor constitudo, versando
sobre a temtica do amor como uma transao comercial, pois Laura comprada por Artur
Moreira e, apesar do amor existente entre eles, ambos vivem em um casamento de aparncias,
porque a donzela orgulhosa no aceita ter sido tratada como uma mercadoria. A
semelhana com o romance Senhora de Jos de Alencar evidente, ainda mais pelo ano de
publicao ambos os textos so publicados em 1875. Rodrigues percebe essa semelhana,
no entanto, mais crtico a essa obra:
Como obra de arte, pouco, muito pouco vale. Alm da estranheza de algumas
situaes, os caracteres dos protagonistas so inverossmeis. H como que a
inteno de fazer um estudo do corao humano, mas tomando-se para exemplo dois
personagens muito fora da vida real. A Senhora, de Jos de Alencar, dir-se-ia que
deu plano da obra, embora com inverso de papis, mas idntico no fundo. A
narrativa, entretanto, cheia de interesse e em algumas ocasies dramatizada,
prendendo fortemente a ateno do leitor, e nisso resume-se o merecimento do livro.
(RODRIGUES, 1890, p. 14)
Em Laura vemos uma preocupao maior com o que Antonio Candido (2009)
denominou lastro do real, visto que:
O eixo do romance oitocentista pois o respeito inicial pela realidade, manifesto
principalmente na verossimilhana que procura imprimir narrativa. H nele uma
espcie de proporo urea, um nmero de ouro, obtido pelo ajustamento ideal
entre a forma literria e o problema humano que ela exprime. (CANDIDO, 2009, p.
430)
O problema humano exposto na narrativa o dinheiro como corruptor da sociedade, a
degradao dos valores e a troca comercial das relaes, o que fica evidente em muitas das
crticas feitas pelo personagem Artur Moreira, um adepto da ironia que o libertou da mania
de ser contemporneo ilustre, da escravido dos partidos, do respeito votado declamao,
da admirao prestada a supostos grandes homens, das mistificaes da poltica
(KOSERITZ, 1875, p. 17), porm, apesar de todas as crticas que faz apresenta um carter
dbio, pois compra a mo da mulher amada em meio a uma crise financeira do pai da jovem
orgulhosa.
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O narrador, tambm onisciente intruso, reflete sobre a sociedade e critica-a em seus
vcios, com a perspectiva de um espectador que narra julgando os personagens e utilizando-os
como um exemplo da conspurcao da sociedade, como fica evidente na seguinte exposio:
tempo de ensinarmos nossas filhas o valor dos minutos que voam e do trabalho
que nobilita: tempo de lhes fazer compreender que a verdadeira misso da mulher
no no baile, no concerto, no teatro, mas no lar domstico. Ensinemo-las a pensar,
a clara e logicamente pensar, ainda que seja s um quarto de hora por dia; tratemos
de desenvolver nelas a nobre emulao de ser mais alguma coisa do que figurinos de
moda livremo-las da frase, do desejo de brilhar nos sales; demos-lhe em dote, em
vez dessa tintura superficial de instruo, que se resume em dizerem quatro frases
banais em Francs... (KOSERITZ, 1875, p. 8)
Ao contrrio da novela anteriormente analisada, nessa obra h uma tendncia maior
para a objetividade e para as descries de cunho mais realista. Na dcada de 70, j havia
eclodido na Europa o Realismo que timidamente no Brasil comeava a ensaiar os seus
primeiros passos. Como nos diz Lcia Miguel-Pereira, a objetividade deveria atrair escritores
que sem dvida j haviam travado conhecimento com Flaubert, que teriam notcia do
racionalismo cientfico, informador do movimento intelectual na Europa (MIGUEL-
PEREIRA, 1973, p. 33), Koseritz, provavelmente, j havia tomado conhecimento do ilustre
francs, j que as descries iniciais dos ambientes nos captulos de Laura lembram as
existentes em Madame Bovary (1857).
Apesar disso, a narrao apresenta algumas caractersticas fortemente romnticas
como, por exemplo, a idealizao dos personagens, visto que a personagem ttulo da novela
descrita em suas caractersticas fsicas de forma idealizada, entretanto, o seu carter exposto
como vulnervel, o perfil de mulher exposto remete a m educao dada s moas da Corte,
que so preparadas para serem damas de baile ao invs de donas de casas, o que, na
perspectiva moralizadora do narrador, elemento causador dos problemas do pas.
Artur Moreira tambm um heri, tanto no aspecto fsico, como no moral, um
homem que conheceu as desventuras da pobreza e que, depois de herdar uma significativa
herana, manteve sua firmeza de carter, no cedendo, ao contrrio de Laura, s amoralidades
da burguesia. No incio da narrao, o personagem em conversa com seu amigo Joo Aguiar
um tpico funcionrio pblico elucida seu desapontamento com a sociedade brasileira e sua
vontade de abandonar sua corrupta ptria, intuito esse abandonado aps se apaixonar pela
filha da burguesia.
As estratgias de aproximao com o leitor, que constatamos na anlise de Um drama
no mar, so atenuadas, e no h o carter folhetinesco, a narrao por ser mais bem construda
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requer um leitor atento, capaz de identificar as prolepses e analepses do texto como, por
exemplo, no que tange ao destino da personagem principal que j foi antecipado nas primeiras
pginas da narrao. Alm disso, a influncia da cultura europeia, principalmente a francesa,
est demarcada no texto no s nas crticas feitas pelo narrador, mas, paradoxalmente, em seu
prprio discurso, pois esse se utiliza de inmeras palavras no idioma francs mostrando que,
apesar de criticar, narra na perspectiva de um integrante da burguesia carioca.
Na narrativa h muitas referncias a obras literrias como, por exemplo, o poema
Fausto (1806) de Goethe, o romance O mercador de freiras (1818), do escritor francs
Laurent Pierre de Jussieu, a obra de Petrarca, os Lusadas de Cames, bem como referncias
ao filsofo francs Proudhon, ao pensador grego Pirro de lida, a figuras histrias como Julio
Csar e Emilio Castelar, Nicols Avellaneda e Simo de Nantua, mitologia grega nas figuras
de Medusa, Nobe e Tntalo. O que mostra que essa uma obra escrita para leitores cultos,
isto , com conhecimentos polticos, histricos, literrios e etc. e evidenciando que a narrativa
destinada a uma minoria culta.
Algumas concluses
A pesquisa da fortuna crtica de Carlos de Koseritz, assim como de sua biografia e de
sua bibliografia geraram algumas concluses parciais que apontam para a importncia de uma
reiluminao nos estudos sobre o autor, visto que grande parte deles centra-se na sua
relevncia como jornalista, como poltico, como intelectual, como mentor dos imigrantes
alemes e nenhum estudo de flego sobre sua fico havia sido realizado, at a presente
investigao.
As narrativas Um drama no mar e Laura: tambm um perfil de mulher evidenciam o
que denominamos os Romantismos, pois a primeira elucida a fase inicial do Romantismo,
com a confluncia de caractersticas clssicas e romnticas; e a segunda elucida a sua
consolidao tanto no que tange a forma quanto na temtica e, alm disso, compem uma
parte de nossa literatura que se encontra perdida em arquivos de bibliotecas brasileiras e que
ajudam a explanar essa face de romancista de Koseritz.
O esclarecimento biogrfico e bibliogrfico de Koseritz, bem como a recuperao de
seus livros, considerados desaparecidos pela crtica e historiografia, torna-se fundamental para
elucidar uma parte obscura das letras sul-rio-grandenses. Alm disso, o autor figura muito
reconhecida no estado e seus escritos so alvo de republicaes como, por exemplo, os textos
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do e sobre o autor, publicados na revista Provncia de So Pedro (1957), bem como os
estudos mais recentes realizados acerca de sua obra jornalstica e filosfica, como a
compilao realizada por Ren Gertz e os estudos de Imgart Grtzmann.
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Mistrios de Rio Grande, um folhetim no sculo XIX
FLORES, Rosana Tejada
*
Resumo: O trabalho tem como objetivo fazer uma anlise do folhetim Mistrios do Rio Grande. A Moeda falsa,
escrito por Junius, pseudnimo cuja identidade ainda desconhecida
19
. A finalidade apontar suas principais
caractersticas nas nove pginas existentes encontrada no jornal rio-grandino O Tempo, nos primeiros meses do
ano de 1872. A trama passa-se em 1801 e baseado na obra Mistrios de Paris, de Eugne Sue. Essa pesquisa
integra faz parte do projeto Dicionrio de autores de Rio Grande no sculo XIX, do Instituto de Letras e Artes
da Universidade Federal do Rio Grande, que tem pesquisado sobre os primeiros escritores desta cidade gacha e
suas respectivas obras, buscando assim resgatar, organizar e divulgar as informaes sobre a formao e
consolidao do sistema literrio rio-grandino. A anlise desse material serve para perceber um perfil do leitor
dessa regio ao longo do sculo XIX, assim como da literatura produzida por autores locais.
Palavras-chave: Folhetim. Sistema literrio. Mistrios de Paris.
O folhetim surgiu na Frana, em 1836, no perodo em que a imprensa escrita torna-se
um expressivo veculo de comunicao. Marlyse Meyer, referindo-se ao folhetim, afirma:
Aquele espao vale-tudo suscita todas as formas e modalidades de diverso escrita:
nele se contam piadas, se fala de crimes e de monstros, se prope charadas, se
oferecem receitas de cozinha ou de beleza; aberto s novidades, nele se criticam as
ltimas peas, os livros recm-sados... (MEYER, 1996, p. 29)
Esse espao tambm era designado publicao de textos literrios, no qual eram
aceitos mestres e iniciantes de diversos gneros, histrias curtas ou longas, resenhas de livros
e variedades, com vista ao entretenimento dos leitores. Em pouco tempo, o folhetim passou a
fazer parte de vrios peridicos espalhados pelo o mundo inclusive no Rio Grande do Sul,
despertando o interesse pela leitura e tambm pela escrita de novos romances.
As obras j publicadas com sucesso assegurado, como por exemplo, Mistrios de
Paris, de Eugne Sue, deram origem a novos textos lanados anos mais tarde ou no mesmo
tempo, porm com nome e enredo distinto do original. Essa obra foi publicada no ano de
1832, no Journal des Dbats, narrava os feitos do heri-providncia, Rodolfo, prncipe de
Gerolstein. A histria foi to impactante que esse heri virou mito em seu pas,
conseguintemente a lenda espalhou-se pela Europa e foi traduzida em vrios pases.
*
Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
19
No jornal pelotense Cabrion (n 67, de 16 maio 1880), h uma crtica literria de algumas obras, inclusive de
um Mysterios de Rio Grande, escrito por O. P. S. Pelos dados informados, no h como saber se o mesmo
texto.
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O Prncipe Rodolfo, que no incio no teve a sua identidade revelada, assim como sua
condio social era vista pelos seus trajes que o aproximava do carter de homens ordinrios;
homens comuns que circulavam pela cidade. O enredo constitui um heri que luta contra o
poder sobre os oprimidos da classe baixa pelos subterrneos de Paris, revelando os problemas
governamentais do pas. Vale lembrar que o jornal era vendido com o preo inferior em
relao s demais edies, para que todos pudessem ler o que estava escrito.
A tendncia do folhetim tambm chegou cidade do Rio Grande que j contava com
peridicos locais desde o incio da dcada de 1830 em novembro de 1845 e, em pouco
tempo, autores locais comearam a publicar em jornais de Rio Grande
20
, tal como Carlos von
Koseritz, imigrante alemo, autor de Um drama no mar, publicada no ano de 1862 no jornal
Echo do Sul
21
. Outro caso o folhetim A mulher, de Furtado Coelho, cuja obra publicada
no jornal Novo Rio Grandense, em alguns meses de 1858, tambm s encontrada
parcialmente nos acervos atuais.
Confirmando essa tendncia, Jorge de Souza Arajo aponta que Rio Grande parece
ter sido de fato uma cidade onde se lia muito, sobretudo no sculo passado [sculo XIX]. Pela
documentao disponvel, seguramente a que mais se distingue no nmero e na variedade
dos livros, com exceo das cidades histricas mineiras (ARAJO, 1999, p. 288).
Publicado no peridico O Tempo em 1872, atualmente restam apenas as nove pginas
iniciais do folhetim Mistrios do Rio Grande, no acervo da Biblioteca Rio-Grandense e, em
busca em outras instituies, no se obtiveram outros exemplares.
Essas nove pginas so compostas pela capa, um Ao leitor, o prlogo e as seis
pginas iniciais do folhetim que possui caractersticas de um romance histrico. Logo, temos
um comunicado que afirma que a segunda parte foi publicada separadamente. Narrado em
primeira pessoa, comea com uma volta ao passado enfocando o social e o pessoal dos
moradores, com a descrio da ento vila do Rio Grande de So Pedro, que passaria
condio de cidade somente em 1835, o cotidiano do vilarejo e um dilogo.
20
A lista de folhetins publicados em jornais de Rio Grande, com autores e datas de publicao, encontra-se
disponvel no stio www.fontes.furg.br.
21
Essa obra analisada em parte da dissertao de mestrado defendida por Juliane Cardozo de Melo no PPG
Letras da Universidade Federal do Rio Grande.
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Reproduo da capa do folhetim
No dia 5 de janeiro de 1872, o jornal anuncia o folhetim na seguinte nota;
Encetamos hoje a publicao do romance Mistrios do Rio Grande com que fomos
obsequiados. Escrito em linguagem fluente esse romance digno da leitura dos
apreciadores do que bom e muito deve sem duvida agradar. Agradecemos
cordialmente a seu autor a oferta que nos acaba de fazer.
Nesse comunicado, um texto comum na poca, s h um enunciado a respeito da
linguagem do texto e que estar ao gosto certamente dos leitores. No entanto, no h relatos
em relao ao escritor, tempo, personagens e espao. No dia 23 de janeiro do decorrente ano,
h outra nota:
Continuamos hoje a publicao do nosso folhetim a falta de espao fora-nos
repetidas vezes a interrompermos a sua publicao, do que pedimos desculpa a
nossos favorecedores.
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Aps esse rodap, foram publicadas mais quatro pginas, finalizando o primeiro
volume da histria, que mais tarde passou a ser publicada em avulso com o ttulo Homens de
bem. No Ao leitor, o escritor faz uma breve explicao do folhetim, fazendo referncias a
escritores e romances cannicos, tais como Mistrios de Paris, de Eugnio Sue, e Rocambole,
de Poson Du Terrail. No entanto, Junius deixa claro que, em Mistrios do Rio Grande, no
teve a mesma imaginao frtil dos autores citados acima, pois pretende fazer uma crnica
de aldeia, j que o texto no somente frases atiradas em um papel, mas trata-se sim de uma
histria verdica escrita por um velho que se detm em estudar a espcie humana.
De forma metanarrativa, esse narrador ressalta ainda que o ttulo da obra seria Homens
de bem, que foi publicado mais tarde em avulso como segundo volume, mas pensou que o
nome se afastaria da histria e o mais prximo seria Mistrios do Rio Grande, porque daria
coerncia ao tema e tambm faria referncia obra de Eugnio Sue. Assim, a finalidade do
texto mostrar que a cidade de Rio Grande, embora pequena e afastada dos grandes centros,
no era uma cidade patriarcal cidade de poder absoluto, conservadora e respeitvel que
ainda muitos julgavam, por isso ia-se narrar cenas ntimas.
Ainda no prlogo, a descrio j marca o tempo e o espao da narrativa: foi um
verdadeiro dia de inverno, o dia 23 de junho de 1801. Os poucos moradores de Rio Grande
tirintavam de frio s cinco horas da tarde, buscando assim uma verossimilhana para o leitor.
A narrativa segue num tom descritivo, alertando com traos negativos que era uma m
vspera de S. Joo, as ruas desertas o aspecto merencrio do pequeno Rio Grande (p. 6). A
palavra pequeno d a ideia do vilarejo, composto por famlias, igreja e governo, ruas
algumas j com nome, outras s com referncias que delimitavam a rea.
Na pgina seis, so citados alguns feitos histricos como o conflito entre portugueses e
espanhis, a demolio do forte de Jaguaro, o ataque ao forte de Cerro Largo e tambm
alguns nomes de governadores. Devido ao fato do ano ser 1801, tudo indica que o livro est
abordando a Guerra das Laranjas, um pequeno conflito militar entre Portugal e Espanha que
atingiu o Rio Grande do Sul e Mato Grosso. A causa da guerra era os acordos e tratados entre
esses dois pases, que ora se uniam e ora entravam em confronto.
De uma maneira geral, est ressaltado que a vila do Rio Grande apoiava os
portugueses e a guerra segundo o texto tambm estava ao lado de Portugal: J haviam sido
rendido e demolido o forte de Jaguaro, e tudo indicava que o ano seria de boa colheita de
cabeas espanholas.. Porm h contradies entre histria e fico, pois o primeiro nome
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citado o de Sebastio Xavier da Veiga Cabral, que segundo o livro era o governador do Rio
Grande do Sul em 1801.
No decorrer da mesma pgina, aparece a figura do argentino D. Pedro Ceballos,
governador de Buenos Aires que anos antes, em 1763, invadiu a capitania do Rio Grande,
tomando o forte Santa Tereza vigiado pelo comandante Coronel Thomaz Luiz Osrio:
Penetrando ento pela campanha, Ceballos veio at a vila do Rio Grande, asenhorou-se dela,
aprisionou algumas famlias que fez transportar em ferros para domnios espanhis, e s
parou em sua correria quando teve notcia de um armistcio entre os governos de Madrid e
Lisboa. (p. 6)
O trecho mostra que Ceballos massacrou os rio-grandinos, por isso seu nome ainda em
1801 temido. De fato essa histria verdica, importante apontar que o administrador de
Rio Grande na poca era Eloy de Madureira, tambm mencionado pela narrativa, e o forte de
Santa Tereza fica atualmente situado no Uruguai. Desse modo, podemos mencionar que a
capitania do Rio Grande se estendia at a fronteira. Portanto, o autor busca fatos histricos
para situar o leitor do que acontecia na poca em que o folhetim abordava, dando uma ideia
do pensamento dos moradores, pois quase todos moradores eram fieis a Portugal e
rechaavam os inimigos da sua segunda ptria. E tambm no h no texto crticas expressivas,
questionamentos ao governo ou at mesmo o conflito em questo. Esses dados histricos
confirmam a inteno de mostrar algo prximo do real e dar verossimilhana ao texto.
Ao encerrar a parte histrica, o escritor comea a descrever a arquitetura da vila do
Rio Grande. As casas, segundo a narrativa, eram todas iguais, dando uma ideia de
uniformidade e esse padro pode remeter tanto a parte cultural quanto a parte social. Cultural,
pois Rio Grande no mantinha uma cultura vazia, simplesmente pelo fato de ser uma vila
em construo, afinal de contas era de colonizao portuguesa e seguia alguns costumes.
Social no sentido que todos pertenciam mesma classe, no havia nem algum com muito
dinheiro e nem algum com pouco, todos pertenciam mesma condio financeira: A
descrio de semelhantes casas sempre a mesma: nada ali varia, desde o sebento lampio
pendurado por corda no meio da casa, at a balana infiel com os pesos escavados no fundo
(p. 7).
A palavra infiel, marcada em itlico no original, referindo-se a balana, insinua que era
da rotina os moradores utilizar este instrumento para pesar suas mercadorias, mas, em
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contrapartida, era comum tambm a impreciso do que se pesava e, portanto, o roubo nas
compras dirias era unnime.
Aparece no texto a existncia de uma taverna, a mais frequentada da vila: Pela manh
vendia caf, durante o dia peixe frito e canjica, e noite a tia Joaquina, crioula pernambucana,
manceba do taverneiro, preparava a galinha de cabidella (p. 7). visvel que o escritor de
Mistrios do Rio Grande a todo o momento d explicaes de cada situao, colocando a
taverna como uma espcie de estao telegrfica internacional (p. 8), onde tudo se podia
saber da vila.
A taverna ficava perto do porto da cidade, os fregueses geralmente eram pretos e
marinheiros, que desembarcavam ou j viviam na vila, passavam no local para dar e saber
informaes e se reunir com os demais nas reunies que ali ocorriam. Convm ressaltar a
importncia do porto na cidade que chegava navios de todas as partes do pas, com algumas
mercadorias, marinheiros, estrangeiros movimentando a pequena vila e tambm trazendo
informaes de outros lugares, como Portugal e Espanha.
Nesse trecho, aparece a presena das primeiras personagens de cunho aparentemente
ficcional: a tia Joaquina e o taverneiro Manuel Avintes, baixo e grosso de quarenta anos,
que no falava de poltica e de religio, mas s dava informao das vidas alheias. O texto d
a impresso que isto era visto pela populao de modo positivo e tambm de modo negativo;
ao mesmo tempo em que alguns iam buscar informaes de negcios e do andamento da vila,
outros iam buscar informaes pessoais dos moradores: namoro, casamento e traies. Isso
faz com que o taverneiro seja s vezes sbio outras vezes fofoqueiro: Na vila o homem maior
era o padre, depois o governador, depois... qualquer outro. (p. 8). Esse qualquer outro pode
estar referindo-se ao Senhor Manuel, por ser um homem visvel e tambm dono da verdade,
pois tudo sabe tudo v.
Como o folhetim conta com poucas pginas, difcil realizar afirmaes fortes, mas o
que tudo indica que esse indivduo, o dono da taverna, seja o protagonista da histria, pois,
em sequncia nas pginas restantes, enquanto s cinco horas a cidade estava deserta, na
taverna ocorria uma reunio de pessoas e o senhor Manuel ora escutava e ora dava a sua
opinio, enquanto limpava o balco.
Talvez os encontros fossem hbito dos rio-grandinos e, nesses encontros, a conversa
fiada e a bebida faziam parte, e supostamente relaciona-se na tentativa do escritor mostrar,
assim como foi mencionado no prlogo, que Rio Grande no era uma cidade patriarcal. E
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tambm podemos relacionar essa viso balana infiel, na fachada da frente tudo parece
igual, porm nos fundos h infidelidade das pessoas est exposta, ou seja, havia algo falso na
cidade. Portanto, podemos dizer que essa suposta falsidade, casas iguais e balana infiel, e
tambm o dualismo do senhor Manuel, sbio e fofoqueiro pode est vinculado ao subttulo A
Moeda falsa, que logo d a impresso de a cidade falsa.
As pginas finais recuperadas esto marcadas por um dilogo entre marinheiros, que
falam a respeito de suas vidas pessoais, de como vieram parar do Brasil como o caso de um
dos personagens Mouro. Homem este que entra na Marinha por um acaso e/ou obrigado j
que menciona; Fizeram-me marinheiro; foi um dia apareceu gente da tropa l na aldeia,
quiseram que eu fosse soldado no sei se para matar a mourama ou se os franceses que andam
brigando com o general Bonaparte. No quis ir para o quartel e fui para o navio.... (p. 9) A
partir desse trecho, podemos falar a respeito do fato que as pessoas na poca no tinham seu
livre arbtrio, seguiam ordens de superiores e os seus destinos dependiam dos conflitos
existentes. Assim como andavam de portos em portos sem ter uma morada fixa, Rio Grande
acolhia pessoas de vrios lugares que iam e vinham conforme muitas vezes sem famlia
somente seguindo o seu trabalho no exrcito ou marinha.
O personagem Mouro o que mais dialoga, porm ao longo da conversa outros
personagens aparecem, como um velho marujo que interrompe a conversa, indicando que
era dilogo aberto no qual todos exprimiam seu particular. Logo aparece outro cidado que
menciona ser igual a Bocage, o poeta portugus, e ainda fala que gosta do divertimento e da
bebida. Para tanto, de valia destacar a presena de Bocage, no trecho; Dizem que eu sou
como Bocage, aquele improvisador que anda bbado em Lisboa deitando versos as
cachoupas. Essa comparao ao poeta portugus tem como finalidade a exaltao de seus
atos, a bebida e o divertimento.
No decorrer podemos falar a respeito da meno da palavra moeda chamcho, que
segundo o personagem vem de Portugal: Pois olha, eu, disse outro, se pudesse no
embarcava. Dizem que l na terra h moeda chancho, que se vende barato; se eu soubesse
quem a vendia, ol se a comprava! (p. 12). Isso pode est se referindo tambm a roubo pelo
fato do barato, pois o que barato quase de graa, em seguida no fim da ltima pgina, eles
falam a respeito do dinheiro fcil que traz riqueza, mas, no entanto alguns se esquivam da
conversa, tornando o dinheiro algo longe de suas vidas, assim como tambm desnecessrio no
momento.
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Portanto podemos dizer que Mistrios do Rio Grande uma obra que descreve a
pequena vila do Rio Grande no ano de 1801, quando o nico ponto de encontro dos
moradores era uma taverna localizada perto do porto da cidade. O folhetim alm de fazer uma
descrio da parte da arquitetura, no qual as casas eram iguais, destaca tambm a questo
social, pois a vila era frequentada por marinheiros, escravos e patres, que faziam o
movimento da cidade. No havia regras religiosas nem polticas, o que mais importavam eram
as conversas levianas que se faziam a respeito dos outros.
Assim, da mesma forma que ocorria no centro do pas, Rio Grande tambm se
influenciava com a leitura importada da Europa, com autores locais produzindo romances ao
estilo romntico e prximo do folhetinesco. Percebe-se, assim, que, aos poucos, o estilo de
literatura produzida na Europa foi-se adaptando em nosso pas, com autores brasileiros sendo
publicados e lidos em vrias provncias brasileiras. Com a instalao da Corte portuguesa no
Rio de Janeiro em 1808, a Impresso Rgia trouxe novas possibilidades para pas at ento
proibido de publicar e imprimir qualquer tipo de texto. Logo, os autores brasileiros
comearam a produzir romances inspirados no estilo europeu.
Os folhetins publicados nos peridicos da cidade do Rio Grande, em sua grande
maioria, eram tradues de leituras francesas que entretinham o publico leitor. Essa amostra
folhetinesca, Mistrios do Rio Grande, que foi inspirada em Mistrios de Paris, indicou outra
diversidade da variedade de textos divulgados nos jornais rio-grandinos; que a aproximao
de escritos cnones europeus com os de origem local, enfatizando tambm os escritores
brasileiros e/ou locais. Assim como a relao entre ttulo e temtica, que se desenvolvem no
texto tentam buscar semelhanas aos que j foram publicados no exterior, na tentativa de
passar ao leitor a certeza de bons textos contados a partir de fatos da histria local.
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Ps-colonialismo moambicano: fico, histria e memria em O ltimo voo do
flamingo, de Mia Couto
FRITZEN, Vanessa
*
Resumo: O presente estudo tem a pretenso de fornecer contribuies aos estudos de literatura africana em
portugus, em especial, sobre o romance moambicano ps-colonial, que se mostra envolto por elementos que
deixam transparecer a vida de um povo que teve seu territrio, em partes, modificado, mas que busca resgatar as
suas origens e tradies. Para tanto, o objeto de anlise que atente os objetivos propostos o livro O ltimo voo
do flamingo, de Mia Couto, autor moambicano, que se consolida como um dos maiores escritores de expresso
portuguesa na contemporaneidade pela temtica e originalidade de suas obras. O romance aborda o perodo ps-
guerra de Independncia, quando a ONU ocupa a fictcia Tizingara a fim de evitar os conflitos civis constantes; a
narrao se constri a partir de um entrecruzamento de vozes. Dessa forma, pretende-se estudar referenciais
tericos acerca da Literatura Moambicana, dos pressupostos da Nova Histria, e dos conceitos de memria.
Palavras-chave: Mia Couto. Fico e Histria moambicanas. Memria.
Mia Couto: sua escrita
Antnio Emlio Leite Couto, popularmente conhecido como Mia Couto, nasceu em 05
de julho de 1955, na cidade de Beira, a segunda mais populosa de Moambique. Mia Couto
desde cedo apresentou o gosto pela escrita, sendo que, com apenas catorze anos, publicava
seus primeiros poemas no jornal Notcias da Beira. No ano de 1971, Mia Couto mudou-se
para Maputo, logo iniciando o curso de Medicina, o qual foi abandonado pelo escritor, trs
anos depois. Na verdade, o ento jovem havia abandonado os seus estudos para se tornar um
dos membros da luta anticolonialista (FRELIMO) em Moambique.
Moambique conquistou a Independncia no ano de 1975 e, a partir dessa data, Mia
Couto passou a trabalhar como jornalista, perodo este que durou cerca de dez anos. Ento,
aps deixar a carreira jornalstica, Couto passou a cursar Biologia. Atualmente, alm de
professor universitrio, tambm dedica tempo a pesquisas acerca de impactos ambientais de
seu pas. Cabe aqui ressaltar que, apesar de seus diversificados estudos e trabalhos exercidos,
o moambicano, em momento algum, deixou de se dedicar tarefa de escritor. Alis, ele tem
obtido muito sucesso em suas publicaes, presentes em mais de vinte pases e traduzidas
para lnguas como a inglesa, a francesa, a alem, a italiana, entre vrias outras. Fato que
*
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Misses (URI-Frederico Westphalen). E-mail:
[email protected].
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[...] [a] sua obra, alm de ser traduzida para diversos idiomas , ela prpria, tradutora
da histria e da cultura moambicana para o mundo. A obra de Mia Couto, em seu
conjunto, uma constante viagem pelas paisagens e lugares de Moambique,
atravessando tambm os mltiplos tempos de que eles so feitos. A viagem uma
metfora rica e possvel para captar e compor literariamente os ns dos encontros e
desencontros desses espaos e tempos, bem como as insondveis identidades
moambicanas que nesses ns vivem. Autor de muitas estrias abensonhadas, de
vrias brincriaes com a lngua portuguesa e outras interinvenes, Mia Couto
modela a lngua portuguesa expandindo-a em toda a sua plasticidade verbal. A
escrita de Mia Couto forma imagens em tamanha profuso que reproduz a movncia
oral (OLIVEIRA, 2009, p. 01).
A produo bibliogrfica de Mia Couto composta por romances, contos, poesias e
crnicas. De acordo com as palavras de Ana Mafalda Leite, a produo bibliogrfica do
moambicano tem manifestado uma conflitualidade dialgica na tematizao das tradies e
seu confronto com a modernidade (LEITE, 2003, p. 45). O autor resgata valores simblicos
africanos, faz abordagens histricas, entrelaa as tendncias contemporneas, mistura valores
europeus com africanos, trazendo temas do cotidiano que transformam o local retratado em
universal, num discurso que sempre se renova, mesmo tendo muito do passado contido nele.
A obra tambm se caracteriza por uma linguagem criativa: inveno de palavras,
acrscimos ou diminuies de letras em vocbulos j existentes, mescla do portugus de
Portugal como o de Moambique e ainda com as lnguas nativas moambicanas; essas so
tendncias dos escritores colonizados. Refletindo a partir de um ponto de vista ideolgico, o
objetivo desses escritores o de pensar e problematizar a construo da identidade nacional
moambicana, deslegitimando quaisquer vestgios de um projeto nacionalista de cunho
burgus.
Tendo como referncia Joo Guimares Rosa, um reconhecido inventor de palavras,
Mia Couto no deixa de utilizar a lngua do colonizador, porm a estiliza de modo a atribuir
traos que a caracterizem, de certa forma, como tendo peculiaridades que a distinguem como
moambicana. Em outras palavras, essa nova escrita no tem o objetivo de modificar a lngua
portuguesa, mas sim de criar novas estruturas lingusticas para melhor expressar a
moambicanidade. Manuel Halpern (2010, p. 01) comenta que a linguagem de Mia Couto
to criativa e com um lxico to prprio, que se faz necessria a incluso de minidicionrios
nas obras.
Susan Aparecida de Oliveira v a obra de Mia Couto como uma espiral, no qual
estrias vo tecendo um fio, que por sua vez, parece nunca ter fim, isso porque os
personagens, com seus pensamentos, valores, e crenas distintas, contam uma mesma estria,
mas sob olhares diferentes, e nem por isso considerados mais ou menos plausveis. Alis, esse
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um dos objetivos do autor, o qual no deixa a estria encontrar seu fim (OLIVEIRA,
2009, p. 01). De acordo com as ideias levantadas por Oliveira, o romance O ltimo voo do
flamingo apresenta de forma literria no s aspectos referentes s condies histricas e
polticas de uma sociedade, como tambm expressa um vis animista. O realismo animista, de
acordo com as ideias do angolano Pepetela
(1997), seria uma atualizao do real maravilhoso
latino-americano realidade cultural, nesse caso, da frica lusfona. Na narrativa animista,
os elementos da modernidade coexistem com os elementos da cultura tradicional africana.
A cada momento, a humanidade tenta estabelecer um dilogo com o mundo, dilogo
com o passado e com o futuro, num olhar ambivalente [...]. Quanto mais tentamos
descobrir o que o futuro nos reserva, mais nos deparamos com os enigmas de nossa
existncia e com os limites daquilo que no conhecemos ainda. Tradicionalmente, os
africanos reverenciam boas estrias bem como o ato de contar estrias. As tradies
antigas de escrita existem no continente africano, mas a maioria hoje, como no
passado, so primordialmente pessoas orais e suas formas de arte so muito mais
orais do que literrias. As formas de arte na frica so ricas e variadas, se
desenvolvem desde os primrdios da cultura africana e permanecem como uma
tradio viva que continua a evoluir e desabrochar at hoje (TAROUCO, 2010, p.
02).
A propsito do realismo animista, Elisngela da Silva Tarouco menciona que as
narrativas africanas fazem uso dessa concepo animista, que busca resgatar as culturas e
valores dos antepassados, numa possibilidade de entrelaar tradio e modernidade. Essa
viso de Tarouco apoia-se em Harry Garuba, criador do termo e que acredita que a realidade
africana possa ser mais compreendida atravs do vis animista, pois nada mais do que a
convivncia harmoniosa do mundo dos seres vivos com o mundo dos mortos e dos tempos
passado, presente e futuro (TAROUCO, 2010, p. 02).
Todas as culturas humanas parecem criar narrativas como uma forma de fazer
diferena no mundo. Os provrbios, as estrias, os contos e narrativas africanas
evidenciam o conhecimento e a sabedoria coletiva dos povos, expressam suas
estruturas de significado, sentimento, pensamento e expresso, servem a um
importante propsito cultural e tnico (TAROUCO, 2010, p. 02).
A ideia de universalidade perpassa toda a obra coutiana, representando uma literatura
voltada ao social, valorizando as camadas mais populares, penetrando em mundos misteriosos
e sobrenaturais. Apesar de um mundo to peculiar, de uma linguagem prpria, mas que ao
mesmo tempo vem assumindo um carter universal, Mia Couto ainda pensa que cedo para
falar sobre uma possvel definio de identidade moambicana. Para ele,
[a] chamada identidade moambicana' s existe na sua prpria construo. Ela
nasce de entrosamento, de trocas e destrocas. No caso da literatura o cruzamento
entre a escrita e a oralidade. Mas para ganhar existncia na atualidade, no terreno da
modernidade, Moambique deve caminhar pela via da escrita. Estamos no mundo
pela porta da escrita, de uma escrita contaminada (ou melhor, fertilizada) pela
oralidade. Ns no podemos ir pela porta de trs, pela via do extico terceiro-
mundista. () No fundo, o meu prprio trabalho literrio um bocadinho esse
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resgate daquilo que se pode perder, no porque seja frgil, mas porque
desvalorizado num mundo de trocas culturais que se processam de forma desigual.
Temos aqui um pas que est a viver basicamente na oralidade. Noventa por cento
existem na oralidade, moram na oralidade, pensam e amam nesse universo. A eu
funciono muito como tradutor. Tradutor no de lnguas, mas desses universos
(MACEDO, 2007, p. 196).
E isso o que torna emblemtico o conjunto da obra de Mia Couto, o qual descreve o
cotidiano dos moambicanos, mostrando-se crtico, delatando a corrupo, os conflitos
polticos entre os prprios africanos, os quais seguem o modelo de administrao que mais
convm, na maioria das vezes, a uma minoria, como tambm, trata da tradio moambicana
como forma de libertao de seu povo. Mia Couto, ao invs de uma forma panfletria, prefere
tratar das questes sociais dentro de um lirismo narrativo, atravs de personagens e enredos
repletos de ambiguidades, mergulhados em uma linguagem que ora causa riso, ora espanto.
Fico, histria e memria: entrelaamentos e limites em O ltimo voo do flamingo
Durante perodos do sculo XIX, para a compreenso de uma obra literria, uma das
possibilidades era verificar que circunstncias sociais, morais, ideolgicas, entre outras,
ocorriam no momento em que ela havia sido escrita. Porm, depois de algum tempo, essa
viso passou a ser revogada, procurando-se mostrar que a matria de uma obra secundria,
e que a sua importncia deriva das operaes formais postas em jogo [...] que a torna de fato
independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social (CANDIDO, 2008, p. 13)
.
Na atualidade, sabemos que estas concepes no devem estar separadas, uma vez que
para o entendimento do conjunto da obra, se faz necessria a juno de texto com contexto, na
qual tanto a antiga viso que se fazia entender pelos fatores externos, como a outra, conhecida
como tendo a estrutura independente, se harmonizam, pois ambas so imprescindveis na
questo do processo interpretativo.
De acordo com as ideias de Terry Eagleton, a obra literria
[...] est contida na ideologia, mas consegue tambm distanciar-se dela a um ponto
em que nos permite sentir e aprender a ideologia de que nasceu. Ao faz-lo, a
arte no nos permite conhecer a verdade que a ideologia esconde, j que, para
Althusser, conhecimento no sentido restrito significa conhecimento cientfico [...].
A diferena entre a cincia e a arte no consiste em tratarem objetos diferentes, mas
sim tratarem o mesmo objeto de diferentes maneiras. A cincia d-nos um
conhecimento conceptual de uma situao; a arte d-nos a experincia dessa situao
[...] (EAGLETON, 1978, p. 31).
A cincia histrica, que se manifesta atravs do discurso da histria, no apresenta leis
gerais, tais como as cincias exatas. Em linhas gerais, Lucien Goldmann aponta para o
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discurso histrico como um [...] estudo objetivo, explicativo e compreensivo dos indivduos
fsicos e das individualidades histricas e sociais. Ora, uma individualidade histrica no
uma realidade dada mas construda a partir do dado (GOLDMANN, 1967, p. 34).
Goldmann ainda afirma que [c]incia alguma nunca traduz a realidade de maneira exaustiva.
Constri seu objeto por uma escolha que guarda o essencial e elimina o acessrio
GOLDMANN, 1967, p. 34).
Para o tema das relaes entre narrativa e histria, O ltimo voo do flamingo, de Mia
Couto, constitui-se em um objeto de estudo particularmente interessante. Nesta obra,
encontram-se, implicitamente, tanto abordagens histricas e denncias das vrias brutalidades
que ainda acometem o povo moambicano, quanto um discurso literrio, repleto de elementos
sobrenaturais, fantsticos, entre outros. Esta obra foi redigida pelo autor como uma espcie de
discurso histrico
22
e, ao mesmo tempo, como uma obra que ele quis que fosse literria.
De acordo com as ideias de Goldmann, o discurso da histria o resultado dos
discursos de vrios campos semiolgicos, sendo que para a sua construo necessrio fazer
escolhas. E essas escolhas so realizadas pelo sujeito-historiador, o qual responsvel por
selecionar e avaliar acontecimentos como mais relevantes e menos relevantes para, assim,
poder dar estatuto de fatos histricos a determinados acontecimentos. Sobre isso, Michel de
Certeau (1979, p. 17-48) acredita ser inevitvel o aspecto subjetivo na construo do discurso
histrico. Na realidade,
[...] o historiador no parte dos fatos, mas dos materiais histricos, das fontes, no
sentido mais extenso desse termo, com a ajuda dos quais constri o que chamamos
fatos histricos. Constri-os na medida em que seleciona os materiais disponveis
em funo de um certo critrio de valor, como na medida em que os articula,
conferindo-lhes a forma de acontecimentos histricos. Assim, a despeito das
aparncias e das convices correntes, os fatos histricos no so um ponto de
partida, mas um fim, um resultado (SCHAFF, 1995, p. 307).
Na verdade, o historiador um homem como outro qualquer, que se dedica a pesquisar
e reconstruir o passado; essa tarefa tambm compartilhada pelos escritores de literatura
africana, mesmo que de forma um tanto diferente. Enquanto o historiador se ocupa de
conceitos, o ficcionista traz experincias. Os escritores moambicanos extraem da sua cultura,
os temas para suas narrativas. Os aspectos cotidianos, histricos, entre outros tantos, passam a
fazer parte do discurso literrio. Dessa forma, os fatos reais so elementos fundamentais para
22
Neste caso, o discurso histrico mencionado no sentido de revelar um perodo ps-guerra civil, no qual a
situao calamitosa em que se encontra o povo moambicano, que mesmo aps a demorada conquista pela
Independncia e o fim das guerras civis, ainda est permeada pela violncia, misria, corrupo, e, o mais
alarmante de tudo, que a responsabilidade por esta situao est nas mos dos prprios africanos.
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que o escritor venha ento a transform-los em verossmeis. Marisa Lajolo tambm
compartilha dessa ideia, uma vez que afirma que [o] mundo representado na literatura por
mais simblico que seja nasce da experincia que o escritor tem de sua realidade histrica e
social (LAJOLO, 2001, p. 47).
No caso dos elementos que compem uma obra literria, estes esto impregnados no
apenas de valores e ideologias sociais. Em muitos casos, determinados rituais e atividades em
geral acabam se tornando matria para a criao de uma obra literria, devido influncia
destes em um determinado grupo. Enfim, torna-se visvel a importncia da experincia
cotidiana como fonte de inspirao, sobretudo com referncia s atividades e objetos
fortemente impregnados de valor pelo grupo (CANDIDO, 2008, p. 40). Tanto que houve
tempos em que uma criao no era vista como sendo de um artista apenas, mas sim de um
grupo de pessoas; algo que correspondia s necessidades coletivas.
As obras literrias podem ser entendidas como um sistema vivo, que agem sobre elas
mesmas e sobre o leitor, provocando sempre uma reao, por menor que seja. Antonio
Candido (2008, p. 55-57) distingue trs funes que permitem compreender a obra literria
em sua totalidade, a saber, funo total, funo social e funo ideolgica. Na funo total,
levada em conta a viso de mundo, expressa por representaes individuais e sociais
presentes em canes, lendas, entre outros , que tem como mster a universalidade e a
atemporalidade. Uma obra tambm exerce atribuies na sociedade, a chamada funo social,
que consiste em atender as necessidades materiais, espirituais, s para citar algumas, bem
como a preservao e transmisso da cultura.
Nestas duas funes, a obra criada e recebida, e o resultado disso encontrado na
funo ideolgica, que nada mais do que um conjunto de ideias; o autor, quando cria, tenta
passar suas crenas para a obra, porm, o pblico que aponta ou no a presena dessas
concepes, sendo que geralmente a funo ideolgica [] mais clara nos casos de objetivo
poltico, religioso ou filosfico (CANDIDO, 2008, p. 56). Candido arrazoa a favor da ideia
de que para um entendimento equilibrado da obra literria, as trs funes supracitadas devem
ser consideradas.
Se uma obra literria dispe de artificios para sua compreenso, o mesmo no ocorre
com a literatura moambicana contempornea, que dificilmente encontra meios concretos de
se definir por si mesma, uma vez que muito dela est vinculada em suas formas passadas, nos
valores e culturas ancestrais, os quais, na atualidade, andam lado a lado com as tendncias
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impostas pela modernidade. O mesmo ocorre com a Histria, que de acordo com Schmidt
(1996), busca elucidar o presente j partindo da ideia de que o mesmo no autossuficiente, o
qual necessita buscar os resqucios do passado para que se tenha um posterior entendimento.
Na verdade, as possveis relaes entre Literatura e Histria j foram objeto de estudos
desde a poca de Aristteles. Com respeito a isso, o filsofo destaca a ideia de que,
[...] no ofcio de poeta narrar o que aconteceu; e, sim, o de representar o que
poderia acontecer, quer dizer: o que possvel segundo a verossimilhana e a
necessidade. Com efeito, no diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso
ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Herdoto, e nem
por isso deixariam de ser histria, se fossem em verso o que eram em prosa), -
diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam
suceder (ARISTTELES, 1966, p. 78).
Nesse sentido, possvel inferir que apesar de Aristteles apontar para uma oposio
entre a Literatura e a Histria, a primeira como particular e, a segunda, como geral, ele
contribuiu de forma significativa no entendimento de que a Literatura produz um discurso
referente ao que poderia ter acontecido, deixando para a Histria, a narrao dos fatos
verdadeiros. E, um dos objetivos da maioria dos escritores moambicanos, cujas produes
aludem para algum fato histrico, o de colaborar na (re)construo de uma identidade
nacional.
Na realidade, a discusso acerca das possveis relaes entre literatura e Histria
tomou novas dimenses a partir dos anos de 1970, atravs da Nova Histria. Isso porque a
concepo de documento histrico passou a ser mais abrangente ao incorporar, entre outras
tantas fontes de pesquisas, a literria
23
. Na Nova Histria, tanto a individualidade quanto a
coletividade so consideradas, e a histria tambm passa a ser vista de baixo
24
, isto , do
ponto de vista dos vencidos, dos esquecidos, dos silenciados. O que antes era entendido como
permanente, agora possvel de ser percebido como uma realidade culturalmente construda,
ou seja, sujeita a variaes de tempo e espao. Um exemplo para isso pode ser verificado nos
estudos de Stuart Hall
25
, os quais refletem sobre questes culturais e, principalmente,
identitrias.
Ainda nessa relao entre literatura e Histria, Walter Benjamin (1987) expe a ideia
de que [o] narrador retira da experincia o que ele conta: sua prpria experincia ou a
relatada pelos outros (p. 201). J o historiador obrigado a explicar de uma ou de outra
23
LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. Histria: novos objectos. 1985.
24
Termo cunhado por Edward Thompson, no ano de 1966, e desenvolvido em A formao da classe operria
inglesa (1987).
25
Consultar Da dispora: identidades e mediaes culturais (2003) e A identidade cultural na ps-modernidade
(2006).
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maneira os episdios com que lida e no pode absolutamente contentar-se em represent-los
como modelos da histria do mundo (p. 209). Enfim, literatura e histria caminham
paralelamente, ora mais prximas, ora menos. O que sobrevive depois que o fato histrico se
apaga a literatura. A prpria Histria Literatura: ler histria no propriamente ler sobre o
advento do passado, mas sobre o advento de sentido proveniente do passado (LUCAS, 1985,
p. 55).
Em algumas obras, a literatura representa aspectos que o prprio discurso histrico
no exps. Apesar de parecer que uma obra se completa por si s, atravs do escritor e do
pblico que ela se faz; o dilogo entre criador e pblico muito importante. O escritor, alis,
mesmo podendo utilizar-se de toda a sua capacidade criativa, acaba tambm representando
um papel social, visto a influncia em relao a comportamentos, por exemplo que a sua
obra exerce sobre o pblico. E isso o que ocorre na produo literria ps-colonial
moambicana, na qual os escritores tm dentro de si o compromisso de usar a palavra como
forma de criticar os problemas ainda existentes e no deixar se perder os valores mais remotos
de um povo que ainda tem muito para ensinar. Nessa literatura engajada ou comprometida, a
defesa de determinados valores morais, polticos e sociais nasce de uma deciso livre do
escritor (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 127).
Portanto, [isso] nos faz pensar quanto a literatura engajada est relacionada a vida
social, no sentido da fora poltica que a mesma exerce sobre os pensamentos
nacionais, arriscamos em afirmar, que se a literatura pode funcionar como arma de
defesa, de denncia e de construo de uma identidade nacional, ela tambm pode,
de alguma forma, no que a sua inteno seja essa, amenizar as desigualdades
sociais e at quem sabe, intencionar um mundo mais justo, humano e feliz (SILVA,
2012, p. 01).
Para Jean-Paul Sartre, o engajamento literrio propicia a formao da conscincia
critica do leitor, uma vez que vai ao encontro do desvendamento da realidade. De acordo com
as ideias de Sartre (1993), o escritor revela [o] mundo e especialmente o homem para os
outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira
responsabilidade (p. 21). Essa afirmao deixa perpassar a ideia de que a literatura tambm
tem como pretenso uma possvel transformao da sociedade. Nesta mesma linha de
pensamento sartreano, Benoit Denis (2002) define literatura engajada como uma prtica
literria estreitamente associada poltica, aos debates gerados por ela e aos combates que ela
implica (p. 09). Ou seja, mais uma vez remonta para a ideia de uma literatura vinculada a
sociedade, ao comprometimento social, e, finalmente, tencionada para uma possvel mudana
social.
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Dessa forma, foi pensando no crescente empenho moral por parte dos escritores
contemporneos, em avivar crenas e valores, que Mia Couto escreveu, entre outras obras, O
ltimo voo do flamingo. O romance, que dividido em 21 captulos, narrado em primeira
pessoa por um tradutor, sendo que, surgem novas vozes no decorrer da trama. Em sntese, a
obra trata de estranhos fatos que ocorrem com soldados da ONU: eles explodem e a nica
coisa que resta o seu rgo genital. Ento, para tentar solucionar o mistrio, chega vila de
Tizangara (local onde ocorrem os fatos), o inspetor Massimo Risi. Massimo, que italiano, se
mostra perplexo ao adentrar nessa vila e se deparar com acontecimentos inslitos. No
desfecho, o mistrio solucionado, mas isso nem tem tanta importncia se considerada a
grandeza dos saberes e da cultura africana que perpassada atravs do romance.
Mas, voltando s vozes que surgem no decorrer da trama, essas so guiadas pela
memria. Entretanto, cada personagem manifesta as suas lembranas referentes s mesmas
estrias de modo diferente. Maurice Halbwachs (2006) define a lembrana como uma
imagem engajada de outras imagens (p. 77). E isso o que ocorre na narrativa, na qual as
personagens reconstroem o passado influenciado pelo presente, pelo que lhes convm. A
personagem redimensionar o seu olhar a partir do lugar que se encontra no grupo e tambm
na situao em que se encontra, pensando em perdas e ganhos. Nessa linha de pensamento,
Halbwachs define a memria individual como um ponto de vista sobre a memria coletiva
(p. 55).
Essa questo da memria pode ser mais bem exemplificada com um trecho dO ltimo
voo do flamingo. Fato que no desenvolvimento da narrativa, as vozes se manifestavam, entre
outras coisas, para fornecer esclarecimentos sobre os rgos genitais masculinos decepados;
mas cada um contava uma estria diferente, apontava um culpado diferente. At que numa
discusso, o administrador Estvo, que at ento no apontava indcios de ser o culpado, foi
desmascarado, no tendo mais como negar.
Contudo, a voz de Ana Deusqueira se sobreps:
- s tu que ests a matar pessoas. s tu, Estvo Jonas.
- Cala-te!
- Tu que mandas colocar as minas! Tu que matas os nossos irmos.
- No escute, ela doida - disse ele para mim.
- Eu vi-te a semear as minas, eu vi... (COUTO, 2005, p. 194)
Analisar a obra O ltimo voo do flamingo, vai alm de estudar as suas particularidades
literrias, de observar como os vrios tipos de memria estruturam a narrativa, de verificar at
que ponto a histria se faz presente na estria. Ao adentrar na obra de Mia Couto, um novo
universo passa a ser conhecido e, atravs do real e do imaginrio ou sobrenatural, emergem a
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cultura e os saberes de um povo, que j viveu tantos anos em meio a lutas, mas que agora,
espera que o flamingo
26
volte a sobrevoar novamente.
Fato que na medida em que passou a euforia pela independncia conquistada, pelo
orgulho ptrio, emergiram as dificuldades e problemas estabelecidos pela colonizao
27
.
Dessa forma, a produo literria moambicana contempornea prima pela busca e pela
valorizao da identidade cultural que outrora foi reprimida, destruda. Essa literatura tambm
denuncia os abusos de poder e reivindica por mudanas. no confronto do passado com o
presente que a conscincia nacional vai se clarificando e se consolidando nesse pas que viveu
anos de incessantes lutas.
26
O flamingo, grande pssaro rosado, aquele que conhece a luz; ele o iniciador luz; surge como um dos
smbolos da alma migrante das trevas luz, de acordo com o Dicionrio de smbolos (p. 434), de Jean Chevalier.
27
A destruio da identidade nacional e, at mesmo, individual.
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Holocausto, representao e trauma em Quero viver... memrias de um ex-morto,
de Joseph Nichthauser: a literatura de testemunho no Brasil
HAISKI, Vanderlia de Andrade
*
Resumo: Este trabalho tem por objetivo realizar uma breve reflexo terica acerca da modernidade e de um dos
acontecimentos mais violentos e traumticos deste perodo: o Holocausto. Alm disso, pretende-se verificar
como tal episdio representado atravs da literatura de testemunho e, por fim, trazer um exemplo de um relato
de testemunho, Quero viver... memrias de um ex-morto (1976), obra de autoria do judeu-brasileiro Joseph
Nichthauser, que narra suas memrias como vtima do Holocausto. A anlise do livro, considerando-se a
perspectiva do trauma e da representao, evidenciou que a tentativa de reduzir o relato em lgicas lineares,
falsearia a dimenso do evento. Para o embasamento desta proposta, serviro como suporte terico as obras de
autores como Alain Touraine, Zygmunt Bauman e Mrcio Seligmann-Silva. Assim, possvel refletir sobre um
dos mais terrveis fenmenos da modernidade e a sua representao.
Palavras-chave: Modernidade. Holocausto. Trauma. Literatura de testemunho.
Depois de tempos de desastres e de grandes infelicidades;
quando os povos fatigados comeam a respirar. Ento as
imaginaes, abaladas pelos espetculos terrveis, pintam
coisas desconhecidas, para aqueles que no foram
testemunhas.
Denis Diderot
Pensar a modernidade implica refletir, dentre outros aspectos, sobre seu propsito
primrio e os eventos que caracterizaram este perodo. A modernidade, alm de ser um
perodo marcado pelo desenvolvimento cientfico, tecnolgico e das formas de produo, foi
tambm um perodo assinalado por grandes catstrofes, em que a evoluo da tcnica tambm
foi empregada em atos brbaros. Este trabalho tem por objetivo verificar alguns aspectos
tericos concernentes modernidade e a um dos fenmenos mais marcantes e brutais deste
perodo: o Holocausto. Alm disso, pretende-se avaliar a tentativa de representao desse
acontecimento atravs da literatura de testemunho e, por fim, apresentar um breve exemplo de
relato de testemunho produzido no Brasil, intitulado Quero viver... memrias de um ex-morto
*
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Misses (URI-Frederico Westphalen). E-mail:
[email protected].
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(1976), obra de autoria do judeu-brasileiro Joseph Nichthauser, que narra suas memrias
como vtima do Holocausto.
Na sua forma mais ambiciosa e tambm contestada pelos crticos , a ideia de
modernidade foi, segundo Alain Touraine (1999, p. 9) a afirmativa de que o homem o que
ele faz. Assim, deveria existir uma relao cada vez mais prxima entre a produo,
melhorada por meio da cincia, tecnologia ou administrao, e a organizao da sociedade,
regida pela vida pessoal e a lei, animada tanto pelo interesse quanto pela vontade de se libertar
de todas as opresses, especialmente as relacionadas religio, que at ento interferiam na
vida privada. Nesse sentido, a sociedade moderna seria uma sociedade de indivduos livres,
que repousa sobre o triunfo da razo. esta que motiva a cincia e o seu emprego, bem como
conduz a adequao da vida social, as necessidades individuais e coletivas e substitui a
arbitrariedade e a brutalidade pelo Estado de direito e pelo comrcio.
A ideia de modernidade, da sua forma mais ousada sua forma mais branda, quando
definida pela aniquilao das ordens antigas e pelo domnio da racionalidade, objetiva ou
instrumental, perdeu sua fora libertadora e de criao. Assim sendo, Touraine prope uma
nova definio de modernidade e interpretao da histria moderna nos seguintes termos:
[a] modernidade rompeu o mundo sagrado que era ao mesmo tempo natural e
divino, transparente razo e criado. Ela no o substituiu pelo mundo da razo e da
secularizao devolvendo os fins ltimos para um mundo que o homem no pudesse
mais atingir; ela imps a separao de um Sujeito descido do cu terra,
humanizado, do mundo dos objetos manipulados pelas tcnicas. Ela substituiu a
unidade de um mundo criado pela vontade divina, a Razo ou a Histria, pela
dualidade da racionalizao e da subjetivao (TOURAINE, 1999, p. 12).
A modernidade possibilitou o rompimento com o sagrado na medida em que o
colocou como parte da vida privada dos indivduos, e no como forma de dominao social
como era concebido at ento. A noo de modernidade substitui Deus do centro da sociedade
pela cincia, reservando as crenas religiosas para a esfera da vida familiar. Dessa forma, a
modernidade possibilitou a separao da vida pblica e da vida privada, alm de difundir a
produo da atividade racional, cientfica, tecnolgica e administrativa. Isto provoca a
progressiva distino entre os diversos setores da sociedade tais como a poltica, a economia,
a vida familiar, religio, e a arte em particular, porque a racionalidade instrumental se exerce
no interior de um tipo de atividade e exclui que qualquer um deles seja organizado no
exterior (TOURAINE, 1999, p. 17).
Ainda de acordo com o mesmo autor, um componente fundamental da ideologia
clssica da modernidade a sociedade como fonte de valores, isto , o bem til enquanto o
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que considerado mal prejudica a integrao e a eficcia da sociedade. H a formao de um
novo pensamento poltico e social. Nessa perspectiva, o papel exercido por Deus ou pela
religio na sociedade, de princpio de juzo moral, substitudo, e a prpria sociedade torna-
se um princpio de avaliao e explicao de condutas. Assim, a cincia social surge na forma
de cincia poltica.
Considerando a ideologia clssica da modernidade, a ordem social deve basear-se
apenas na liberdade de deciso do ser humano, fazendo dele o princpio do bem e do mal. Os
princpios que regem a sociedade deixam de estar a cargo de um representante de Deus ou da
natureza. O ser humano passa a dirigir a sua prpria vida e estabelecer seus princpios,
conforme julgar adequado.
Segundo Rousseau (apud TOURAINE, 1999, p. 25), existe uma ordem natural na qual
o homem deve estar inserido, que visa a atender as questes mais gerais da sociedade, e,
quando o homem se distancia dessa ordem com o intuito de atender a seus desejos e
ambies, ela passa para o campo do mal, que separa e ope os indivduos. Desse modo, o
indivduo deve pensar na coletividade ou no funcionamento social, visando o que bom ou
prejudicial sociedade como um todo, e no olhar alm da sociedade, na direo de Deus ou
de sua individualidade. Contudo, Rousseau defende um consenso entre a unio e a vontade,
para que se tenha uma liberdade menos revolta contra a ordem social do que a submisso
ordem natural. Touraine faz uma importante observao quando trata sobre a modernidade,
pois, para ele,
[a] modernidade no repousa sobre um princpio nico e menos ainda sobre a
simples distribuio dos obstculos ao reinado da razo: ela feita do dilogo entre
a Razo e o Sujeito. Sem a razo, o sujeito se fecha na obsesso da sua identidade;
sem o Sujeito, a razo se torna o instrumento do poder (TOURAINE, 1999, p. 14).
Por esse vis, importante dar nfase ao dilogo entre o sujeito e a razo, pois, se
tomada como princpio somente a razo, esta pode tornar-se instrumento de poder e de
dominao. Nesse sentido, h um forte questionamento dos crticos em relao
racionalizao ou ao que chamaram de reino da razo, sobre o qual argumentam: no em
nome da razo e da sua universalidade que se estendeu a dominao do macho ocidental,
adulto e educado no mundo inteiro, sobre trabalhadores e colonizados e sobre mulheres e
crianas?. Afora isso, questiona-se [c]omo tais crticas no seriam convincentes no final de
um sculo dominado pelo movimento comunista que imps a um tero do mundo regimes
totalitrios baseados na razo, na cincia e na tcnica? (TOURAINE, 1999, p. 10). Nessa
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mesma perspectiva, vlido pensar sobre a racionalidade exercida em um dos fenmenos
mais terrveis ocorridos na modernidade: o Holocausto e as milhares de pessoas vitimadas.
Faz parte do conhecimento geral que a tentativa de decifrar o Holocausto como uma
barbrie cometida por criminosos natos, sdicos, loucos, depravados sociais ou qualquer outro
tipo de insanidade moral no encontra respaldo nos fatos envolvidos. As pessoas que
participaram dos atos cruis do Holocausto poderiam ser compreendidas, segundo Zygmunt
Bauman (1998, p. 39) como pessoas normais da ao racional moderna. Em tal perspectiva,
Bauman afirma que a maioria dos que executaram genocdio eram pessoas normais, que
passariam facilmente em qualquer peneira psiquitrica conhecida por mais densa e
moralmente perturbadora (1998, p. 39). Assim, intrigante pensar e compreender
teoricamente que as instituies responsveis pelo Holocausto, mesmo sendo criminosas, no
eram, no sentido sociologicamente legtimo, patolgicas, tampouco anormais. Portanto,
importante ter um olhar atento para esses padres supostamente compreendidos como
normais.
Deve-se lembrar, portanto, que a maioria dos participantes do genocdio no
conduziram diretamente crianas s cmaras de gs ou atiraram nos trabalhadores dos campos
de concentrao. Grande parte dos burocratas elaborou memorandos, redigiu planos, atendeu
a telefonemas e participou de conferncias, tendo, desse modo, a capacidade de destruir todo
um povo, sentados em seus escritrios, sem sujar suas mos (BAUMAN, 1998, p. 44). Com
isso, muitos dos atos que conduziram ou foram responsveis pelos genocdios no tiveram
quem os assumissem conscientemente, expondo, assim, a cegueira moral estarrecedora que
pairava sobre grande parte da sociedade. Alm disso, os nazistas se sobressaram atravs de
um mtodo que eles conseguiram aperfeioar em um grau sem precedentes: o mtodo de
tornar invisvel a prpria humanidade das vtimas (BAUMAN, 1998, p. 46). E, nessa
perspectiva, se no h humanidade nas vtimas, no h tambm o compromisso ou
obrigao moral e, pode-se acrescentar, tico, de proteg-las.
O sculo XX pode ser pensado como um perodo marcado por massacres e guerras,
verdadeiras catstrofes que, na maioria dos casos, continuam vivas na memria coletiva da
humanidade. Entre os diversos massacres ocorridos, vlido considerar a sociedade do sculo
XX como a sociedade da ps-Primeira Grande Guerra, ps-Segunda Guerra Mundial, ps-
Shoah, ps-guerras de descolonizao, ps-massacres no Cambodja [...]. Mas esse prefixo
ps no deve levar a crer, de jeito nenhum, em algo prximo do conceito de superao, ou
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de passado que passou, conforme chama a ateno Mrcio Seligmann-Silva (2005, p. 63).
Essas experincias traumticas conservam-se na memria e no cotidiano de muitas
sociedades. Esses eventos, capazes de massacrar toda uma sociedade, atravs dos variados
meios de comunicao, repercutem no mundo inteiro, afetando direta e indiretamente toda
humanidade. Dessa forma, a mdia, ao mesmo tempo em que reproduz essas catstrofes,
muitas vezes apenas com o intuito de informar, tambm uma multiplicadora do trauma
(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 64).
Nessa perspectiva, Seligmann-Silva destaca que o elemento traumtico do
movimento histrico penetra nosso presente tanto quanto serve de cimento para nosso
passado, e essas categorias temporais no existem sem a questo da sua representao. O
autor ainda acrescenta que a representao dessas categorias acontece atravs do jornal,
cinema, artes, televiso, e at mesmo na fala cotidiana e em gestos, sonhos e silncios,
chegando, enfim, na literatura (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 64). Essas situaes violentas
ou catastrficas originaram um novo tipo de literatura. Do desejo ou necessidade de narrar
essas situaes extremas e traumticas, surge a literatura de testemunho, que ganhou maior
nfase depois de Auschwitz.
Com relao ao relato de testemunho, este est intimamente relacionado com um
determinado perodo scio-histrico, do qual vtimas e testemunhas de catstrofes sentem a
necessidade de narrar suas experincias. vlido afirmar que a literatura de testemunho
um modo literrio de reagir brutalidade de nossa histria (FRANCO, 2003, p. 306). Pode-
se dizer que Auschwitz foi o marco central da literatura de testemunho e que, desde ento,
questes como o trauma e a memria de eventos como o Holocausto adquiriram uma
dimenso difcil de narrar, pois tais atrocidades por vezes no encontram nas palavras suporte
necessrio para expressar os sentimentos envolvidos nas experincias vividas. E, quando se
fala em narrar tais experincias sob a tica literria, imprescindvel refletir entre a
linguagem, a fico e o real. O relato de testemunho promove o cruzamento entre a
necessidade de narrar e a impossibilidade de essa narrativa expressar de forma satisfatria os
eventos sofridos pela testemunha.
De acordo com Seligmann-Silva, por meio da literatura de testemunho, d-se a
articulao entre a angustiante necessidade de narrar experincias e a percepo de que a
linguagem insuficiente diante de fatos inenarrveis e do aspecto inimaginvel desses
acontecimentos e, consequentemente, sua inverossimilhana (2003, p. 46). O conceito de
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literatura de testemunho conduz os tericos a repensar a relao entre a literatura e a realidade
na medida em que
[a] literatura de testemunho mais do que um gnero: uma face da literatura que
vem tona na nossa poca de catstrofes e faz com que toda a histria da literatura
aps 200 anos de autorreferncia seja revista a partir do questionamento da sua
relao e do seu compromisso com o real (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 373).
Nesse sentido, a questo principal no afirmar o que realidade ou no. Segundo
Northrop Frye (1957, p. 78), uma obra literria no pode ser caracterizada como verdadeira ou
falsa, pois no essa a sua pretenso. Assim como se verifica a partir da histria ou da
narrativa de um acontecimento, no se pode afirmar que tal verso seja verdadeira ou falsa,
pois cada pessoa tem uma percepo, leitura e interpretao prprias dos acontecimentos que
o cercam. O fundamental a capacidade de percepo e simbolizao do real, ou seja, a
verossimilhana. Quando uma situao traumtica narrada tal qual a realidade, o relato pode
ser considerado absurdo (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 51). Assim, ela perde a
caracterstica basilar da obra literria: a verossimilhana. Segundo Seligmann-Silva (2003, p.
50), o real resiste ao simblico e especialmente quando o real demasiadamente
monstruoso e inenarrvel que se d essa resistncia.
A literatura de testemunho difundiu-se pelos diversos pases que tiveram eventos
violentos ou que acolheram as vtimas de catstrofes, como, por exemplo, o Brasil, que
recebeu imigrantes judeus em busca de refgio no pas. A temtica judaica teve seu ingresso
na literatura brasileira, em meados do sculo XX e em lngua portuguesa, como uma reao
literria aos problemas tpicos decorrentes da imigrao. uma escrita com caractersticas
prprias, que trata de tpicos pertencentes cultura judaica e, muitas dessas escritas esto
relacionadas s experincias de judeus em territrio brasileiro. No Brasil, as escritas
envolvendo a temtica judaica englobam obras ficcionais e relatos de testemunho. Quanto
classificao de uma obra literria como inserida nessa temtica, segundo Regina Igel (1997,
p. 7), cabe enfatizar:
reconhece-se um tema como judaico quando o conflito principal de uma obra estiver
expressamente ligado ao judasmo quanto a sua gnese e vivncia fsica, mental,
espiritual e psicolgica de quem a escreve. Essa condio deve encontrar-se tanto na
manifestao literria ficcional quanto na potica, dramtica e na crnica, como
tambm na semificcional e em depoimentos.
Alm disso, os textos nos quais prevalece a temtica judaica e escritos por autores
judeus no so, em sua maioria, reconhecidos como trabalhos modelares ou exemplos de
construo refinada. E tampouco muitos dos autores se definem ou aspiram ser escritores
profissionais, e alguns at fogem do termo escritor, pois no almejam uma profissionalizao
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como tal (IGEL, 1997). Porm, apesar dessa resistncia, a escrita judaica digna de ser
analisada como integrante do mundo literrio e do imaginrio brasileiro.
Tratando-se da temtica judaica na literatura brasileira, cabe destacar a literatura de
testemunho. Neste tipo de literatura, a transmisso da memria pessoal para a cultural um
fator essencial. E para a transmisso das experincias violentas sofridas, como o Holocausto,
precisamos de todas as nossas instituies de memria: da escrita histrica tanto quanto do
testemunho, do testemunho tanto quanto da arte (HARTMAN, 2000, p. 215). Assim, a
histria se funde com a arte e a imaginao, para que num processo de rememorao tais
circunstncias sejam narradas.
Toma-se aqui como exemplo de literatura de testemunho a obra Quero viver...
memrias de um ex-morto (1976), de autoria do judeu-americano Joseph Nichthauser, que
relata suas memrias como vtima do Holocausto. No relato de testemunho de Nichthauser, o
autor comea o prlogo de sua obra declarando que no seu anseio mostrar ao mundo algo
novo, ou tentar justificar quem quer que fosse, pois j se escreveu muito sobre esse tema
(NICHTHAUSER, 1976, p. 11). Tampouco sua ambio produzir uma obra literria, pois
em seguida, na mesma pgina, afirma que existem livros que descrevem de maneira muito
literria o herosmo dos soldados aliados, dos sacrifcios inteis dos soldados inimigos e das
atrocidades cometidas nos campos de concentrao. Sua pretenso , pois, apenas descrever
os vrios aspectos de sua histria como sobrevivente do Holocausto.
Nichthauser, aos 11 anos incompletos, assistiu invaso da Polnia, sua terra natal,
pelos exrcitos alemes, em 31 de agosto de 1939. A partir da, passou por vrios campos de
concentrao, como os de Auschwitz, Gross-Rosen e Buchenwald, de onde foi liberto pelo
exrcito americano. Durante sua trajetria pelos campos de concentrao, viu sua famlia ser
exterminada, ao passo que, apenas ele, em suas prprias palavras, milagrosamente,
conseguiu sobreviver, ganhando a liberdade aos dezesseis anos e meio.
A obra de Nichthauser, de acordo com seu prefaciador Hugo Schlesinger, o
primeiro relato escrito em portugus e aqui no Brasil (1976, p. 6). Seligmann-Silva concorda
com essa afirmao e destaca que o trabalho de Nichthauser talvez o mais bem escrito da
literatura de sobreviventes produzida no Brasil (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 143).
Nichthauser demonstra a preocupao em proporcionar ao leitor a impresso de realidade em
cada parte de sua obra, tanto que, no prlogo de seu livro, o autor destaca que os
personagens deste livro so todos reais e com nomes certos (NICHTHAUSER, 1976, p. 11).
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No decorrer da obra, o autor preocupa-se em fazer uma descrio extremamente detalhada das
situaes por ele vivenciadas, com o intuito de transmitir a sensao de realidade no seu
relato. Seligmann-Silva (2007, p. 143) destaca ainda que
[o] autor consegue o desafio de narrar sua histria e construir um livro de
memrias, como ele o denomina, com uma forte estrutura narrativa e
literariamente muito bem resolvido. A narrativa em primeira pessoa, tpica do
registro da escrita dos sobreviventes, mantida, mas ao mesmo tempo o autor
reconstri dilogos e situaes cotidianas nos seus mnimos detalhes, gerando um
forte efeito de realidade no leitor.
Nichthauser no descreve sua vida aps a libertao dos campos de concentrao. Seu
relato se concentra no perodo em que passou como prisioneiro, em diversos locais,
suportando privaes, trabalhos pesados, pouco descanso, o rigoroso regime interno dos
campos e o eminente risco de morrer. Diante de uma situao to violenta e traumtica,
Nichthauser perdia toda a esperana e expectativa em relao liberdade e ao futuro. S
exista um presente em que o tempo no tinha mais o mesmo sentido, o tempo no estava
sendo medido em horas, minutos ou segundos. O tempo no significava nada para todos.
Tudo fora reduzido simples eternidade. Comecei a compreender que um minuto representa a
mesma coisa que uma hora ou cem horas (NICHTHAUSER, 1976, p. 164). Nichthauser
descreve como a apatia tomara conta dele e os homens foram reduzidos animalidade:
[a]ndei totalmente aptico e indiferente a tudo. Nem o troar dos canhes bem
prximos me animava. H dias no havia qualquer distribuio de alimentos, e
padecamos de tonteira. O animal saa do homem. Andvamos naquela lama
pegajosa e fria, num vai-e-vem constante, sem objetivo. No sabia o que fazer
comigo. Aproximei-me da cerca, olhava para longe, para os vilarejos espalhados l
embaixo, ao p da colina. Veio-me ao pensamento o livro O ltimo dos Mohicanos,
que lera antes da guerra. Sentia-me abandonado e infeliz como o principal
personagem do livro. Sou o ltimo dos Nichthausers. [...] Viver ou no viver
(NICHTHAUSER
, 1976, p. 228).
O texto de Nichthauser traz vrias reflexes acerca do que sofreram os judeus
europeus, desde o sentimento de desolao, quando o autor declara que aquele dia foi
semelhante aos outros. Nada mais tinha importncia. Sabamos o que estava nos esperando
(NICHTHAUSER, 1976, p. 228), at a percepo da indiferena dos que conheciam, mas
ignoravam, as condies dos judeus. O autor enfatiza essa indiferena ao relatar sua viso de
uma cidade, a qual observou de uma estao trem: [u]ma vez fora do vago, fomos
imediatamente isolados dos transeuntes que passavam sem nos ver (NICHTHAUSER, 1976,
p. 106). De acordo com o ensaio O narrador, de Walter Benjamin (1985, p. 198), narrar
implica a capacidade de trocar experincias e, na obra de Nichthauser, o autor se esmera em
detalhar justamente o que o conduziu produo de sua obra: suas experincias no apenas
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particulares, mas tambm da percepo que tinha da experincia dos que, juntamente com ele,
eram prisioneiros:
[f]iquei entre os cem. Senti uma tristeza enorme invadir-me. [...] agora compreendia
muito bem todos aqueles que tinha visto morrer na forca, a pauladas, de frio ou a
balas. Eles nunca suplicaram por piedade ou pela vida. Nunca ouvi gritos a no ser
de dor. Todos recusavam esta satisfao a eles: pedir piedade (NICHTHAUSER
,
1976, p. 229).
Nas obras de fico sobre o Holocausto, de maneira universal, h um consenso no
reconhecimento deste evento como um perodo de terror, violncia e extremamente
desumanizador. Quanto literatura de testemunho, cabe questionar qual posio esta ocupa.
Segundo Regina Igel (1997, p. 238-9), o tema do Holocausto, desenvolvido literariamente por
sobreviventes aqui refugiados, como a obra de Nichthauser, poderia inserir-se na literatura
brasileira ao lado de categorias j formalizadas, como o romance e o conto. Contudo,
existem vrias questes, como as de ordem ticas e estticas, que merecem ser averiguadas
para entender a questo de localizao das diversas narrativas sobre o Holocausto.
Ainda no mbito desta questo, a pergunta que se coloca a seguinte: por que
importante para Joseph Nichthauser narrar o seu passado? A resposta pode ser dada com base
nos argumentos de Claude Lvi-Strauss, Hayden White e Walter Benjamin. Para esse ltimo,
a narrao teria um poder de cura. Segundo o autor (1987, p. 269), o relato que o paciente
faz ao mdico no incio do tratamento pode se tornar o comeo de um processo curativo.
Benjamin, frente a essa ideia, trabalha com a hiptese de que a narrao formaria o clima
propcio e a condio mais favorvel de muitas curas. Um horizonte de questionamento afim a
essa reflexo benjaminiana dado pelo antroplogo Lvi-Strauss.
O autor francs procura entender como, em uma comunidade primitiva, um feiticeiro
pode curar um doente. O ensaio aborda a tribo indgena Cuna, que habita no Panam. Uma
mulher, que est parindo, sofre muitas dores. A cura possvel porque, atribuindo significado
s dores internas e aceitando a sua presena dentro do sistema de significados conhecido, a
doente se integra a uma experincia na qual os conflitos se realizam numa ordem e num
plano que permitem seu livre desenvolvimento e conduzem ao seu desenvolvimento (LVI-
STRAUSS, 2003, p. 229). No se trata de explicar conceitualmente enferma causas das
dores, mas de propiciar condies para que ela simbolize essas dores e as integre a um sistema
conhecido. O que estranho torna-se familiar, provocando o desbloqueio do processo
fisiolgico, isto , a reorganizao, num sentido favorvel, da sequncia [de transformaes]
cujo desenvolvimento a doente sofreu (LVI-STRAUSS, 2003, p. 228).
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Hayden White (1994) desenvolve argumento similar. Para o autor, o conjunto de
acontecimentos do passado do paciente, que so causa do seu sofrimento, manifestados na
sndrome neurtica, deixaram de ser familiares, tornando-se ameaadores, e assumiram um
sentido que ele no pode aceitar nem rejeitar. O paciente, justamente por conhecer o evento
muito bem, convive com ele constantemente de modo que se lhe torna impossvel ver
quaisquer outros fatos, exceto aqueles que carrega na mente. De acordo com a teoria da
psicanlise, o paciente supertramou esses acontecimentos, carregou-os de um sentido to
intenso que, sejam reais ou apenas imaginrios, eles continuam a moldar tanto as suas
percepes como as suas respostas ao mundo muito tempo depois que deveriam ter-se tornado
histria passada (p. 103).
A soluo para determinados traumas, para White, ento levar o paciente a retramar
toda a sua histria de vida de maneira a mudar o sentido (para ele) daqueles episdios e a sua
significao para a economia de todo o conjunto de acontecimentos que compem a sua vida.
Assim, a terapia um exerccio no processo de refamiliarizar os acontecimentos que deixaram
de ser familiar. Como resultado, os acontecimentos perdem seu carter traumtico ao serem
removidos da estrutura do enredo em que ocupam um lugar predominante e [so] inseridos
em outra na qual tenham uma funo subordinada ou simplesmente banal como elementos de
uma vida partilhada com os demais seres humanos (p. 104).
No livro Quero viver... memrias de um ex-morto, Nichthauser recorre narrao
como forma de aliviar ou ressignificar a sua dor. Considerando o que h em comum entre os
apontamentos de Benjamin, Lvi-Strauss e White, pode-se dizer que esse relato consiste em
histria cujo objetivo no simplesmente narrar o que aconteceu, mas fazer com que
elementos da experincia do sobrevivente que, a princpio, so estranhos, misteriosos e
ameaadores, passem a ser compreendidos de forma sistemtica. O que importa, antes de mais
nada, a possibilidade de verbalizar (representar) o estranho e o maligno e reconhec-lo
dentro de um processo em que conflitos acontecem, mas a ordem pode ser recuperada e
ressignificada.
Como quer que seja, o testemunho, ou literatura de testemunho, deve ser considerado
no apenas um produto da modernidade, mas tambm, conforme prope Geoffrey H. Hartman
(2000), como um processo humanizador e transitivo, que faz exatamente aquilo que
Appelfeld deseja que a arte faa: ele atua sobre o passado resgatando o individual, com rosto
e nome prprios, do lugar do terror do qual aquele rosto e aquele nome forma levados
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embora (p. 215). Alm disso, Bauman (1998, p. 31) prope tratar o Holocausto como um
teste raro, mas importante e confivel das possibilidades ocultas da sociedade moderna.
Ento, se o Holocausto uma possibilidade ou um fruto da sociedade moderna e racional, a
rememorao desse evento atravs da literatura de testemunho pertinente na medida em que
possibilita o no-esquecimento de tais catstrofes. A literatura de testemunho expe uma
poca de eventos violentos histrica aliada a elementos literrios, a fim de que as
barbries presenciadas se tornem verossmeis ao leitor. E, atravs da rememorao, d-se
tambm a tentativa de evitar que tais catstrofes voltem a ocorrer novamente, pois a literatura
de testemunho mantm o compromisso tico do no esquecimento, quando a memria sobre
os fatos histricos ameaa dissipar-se na cultura da modernidade contempornea.
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Narrar histrias para (re)encontrar a si mesma: memria e narrao em A ltima
fbula
SEITEL, Girvni
*
Resumo: Publicado em 2002, o romance A ltima fbula, de Liliana Lagan, oferece elementos para que se
analise a obra num vis que aponte que a narrao de um acontecimento serve como forma de ressignificao e
reconstituio de um tempo passado. Na obra, o ato de narrar se apresenta como elemento capaz de tornar viva a
memria. A perspectiva de anlise leva em considerao as ideias de autores que tratam da narrao, da memria
e da literatura de testemunho e de sua representao na literatura.
Palavras-chave: Romance. A ltima fbula. Narrao. Memria.
Comeando a contar a fbula
Na contemporaneidade, historiadores, filsofos e literatos voltam-se a uma
significativa reflexo a respeito das questes pertinentes memria, isto porque visvel a
diminuio da densidade temporal entre os acontecimentos e a sua percepo pelo sujeito
histrico, contribuindo, pois, para que esta temtica seja cada vez mais recorrente.
O artigo prende-se a uma anlise do romance A ltima fbula (2002), de Liliana
Lagan, levando em considerao a hiptese de que narrar um acontecimento serve como
elemento de ressignificao e reconstituio de um tempo passado.
Memria e narrao em A ltima Fbula
A lembrana da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo
e sentimento, uns com os outros acho que nem se misturam. Contar seguido,
alinhavado, s mesmo sendo coisas de rasa importncia. [...] Tem horas antigas que
ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo
sabe (ROSA, 1986, p. 82).
O que contar uma histria? O que contar um evento do passado e para que recont-
lo? Por que as pessoas narram para as outras ou para si mesmas algo acontecido em tempo
distante? O que elas buscam ao narrar algo que testemunharam? Interrogaes como estas
*
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Misses (URI-Frederico Westphalen). E-mail:
[email protected].
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intrigam historiadores e filsofos ligados memria quando estudam os meandros que
envolvem o ato de narrar e suas implicaes na constituio do sujeito.
A narrao um ato de retomada, pela palavra, de um passado para que este no se
perca no silncio e no esquecimento ao qual o ser humano est fadado. Se algum necessita
narrar algo que viveu ou testemunhou, narra porque encontra nesta prtica algo de cura para
suas angstias e para auxiliar algum para que este se livre de algum mal que possa t-lo
subjugado.
Em Lete: arte e crtica do esquecimento (2001), Harald Weinrich escreve que na
epopeia de Homero, Odissia, o maior perigo vivido por Ulisses no seu percurso de retorno
taca era esquecer. O heri homrico precisou manter acesso, na memria, s lembranas do
seu amor incondicional para com sua amada, Penlope. Com isso, compreende-se a colocao
de Weinrich quando diz que o narrar e o deixar-se narrar podem ser concebidos como uma
estratgia altamente bem-sucedida da memria (WEINRICH, 2001, p. 190).
Na esteira do pensamento de autores que estudam a relao entre memria e o narrar
uma experincia vivida e de sua importncia na reconfigurao de um tempo vivido, Paul
Ricoeur, em Tempo e narrativa (2010), destaca a relao entre histria e fico. O autor d
destaque ao texto ficcional, pois este quase histrico na medida em que os acontecimentos
irreais que ele relata so fatos passados para a voz narrativa que se dirige ao leitor
(RICOEUR, 2010, p. 325), denotando uma semelhana entre histria e fico que
converge num relacionamento que tende circularidade, pois por ser quase histria, a fico
d ao passado essa capacidade evocativa.
O romance A ltima fbula (2002), de Liliana Lagan, faz parte do rol de obras
literrias que tratam do tema da memria e da sua importncia na reconfigurao do passado.
Na narrativa, a memria recuperada por uma menina que narra a sua histria, pois ela, ao
trmino da Segunda Guerra Mundial, colocada com seus familiares e outros sobreviventes
num vago de trem, para retornar para sua cidade de origem, na Itlia.
Na obra, a narradora a prpria protagonista que, tomada de desconfiana, dvida e
medo, reflete sobre seu futuro durante a viagem de volta sua aldeia. Isso possvel verificar
quando, numa passagem, a personagem conversa com sua me sobre a possibilidade de irem
para Roma:
Quando mame? Mame no respondeu, ficou quieta, olhou para o outro lado, de
novo disse que s Deus que sabia, e eu de novo desconfiei que a gente era como
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esses refugiados que passavam tristes no trem e no sabiam onde iam parar
(LAGAN, 2002, p. 14).
Medo, angstia, dvida e desconfiana so os sentimentos que acompanham a
personagem protagonista em toda a travessia do romance. Diminuda por uma dor sem nome,
ela sente que sua infncia acabou, e com ela findaram suas esperanas e desejos. neste
conflito que a narradora diz: comecei a ter medo de nunca mais poder voltar para Fratterosa,
e ouvir outra vez as fbulas de nonna Gemma (LAGAN, 2002, p. 16), enquanto o trem
andava por trilhos que ningum sabia onde iriam parar, muito menos para Fratterosa, aldeia
de origem da menina.
A ltima fbula um romance em que o rememorar de experincias e,
consequentemente, a reconstruo de uma realidade de um tempo passado so trazidos tona
pela voz da personagem protagonista. Para espantar o frio, o medo e a angstia, a menina
lembra das fbulas que sua nonna Gemma contava quando ainda viviam juntas antes de
iniciar a guerra. Em tom baixo, ela repete a si mesma as histrias que sua av lhe contava. Na
sua memria ela v nonna Gemma entre os dois, seu irmo e ela, na cama, durante as noites
glidas do inverno europeu, em que a idosa aquecia os dois diante da temperatura baixa. E
cada noite ela perguntava para seus netos: Que fbula querem hoje?, ao que os dois
pequenos repetiam: De Tredicino (LAGAN, 2002, p. 19). Ento, sentada dentro do
trem que vagarosamente segue seu destino, a menina narra, em voz baixa, uma fbula que sua
nonna narrava num tempo anterior para ela:
Era uma vez um pai e uma me que tinham doze filhos e nasceu um outro, que
chamaram Tredicino. Tredicino nasceu bem pequeno e no cresceu, mas era muito
esperto e o pai sempre o levava com ele quando de manh cedinho saa para arar os
campos, o levava dentro do bolso do colete. Tredicino pulava para dentro da orelha
de um dos bois, dentro da orelha do outro, os guiava para cima e para baixo pelos
campos. E por onde passava ficavam uns sulcos to lindos e retos como ningum
conseguia fazer (LAGAN, 2002, p. 19).
A histria narrada pela menina ocupa algumas pginas do romance
28
. As fbulas
concentradas no livro tm um fundo moral. No incio, temos o fato de que Tredicino
pequenino a ponto de caber no bolso do colete de seu pai. Depois, seguindo a leitura da
fbula, lemos que Tredicino tem um obstculo a enfrentar: Mas um dia chegou um forasteiro
gigante naquela aldeia e comeou a espalhar o terror (LAGAN, 2002, p. 19). E Tredicino
resolve enfrentar o gigante: Vou dar um jeito nesse forasteiro! (LAGAN, 2002, p. 25),
vencendo a batalha pica, restituindo a paz e a harmonia para os habitantes da aldeia.
28
Tendo em vista que as fbulas so extensas demais para serem reproduzidos na ntegra, opta-se em usar
passagens essenciais para o objetivo deste trabalho.
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E assim, sucessivamente, aps a nonna Gemma adormecer entre os netos nas noites
frias, a menina ficava ansiosa, matutando: Que fbula vou pedir amanh? (LAGAN, 2002,
p. 20). Na obra tem-se a relevncia do papel da memria. A palavra memria, de origem
latina, deriva de menor e oris, e significa o que lembra, ligando-se, assim, ao passado, ao j
vivido (GIRON, 2000, p. 23).
Segundo Arthur Nestrovski, cada memria resgatada, cada relance como um
talism, um instrumento para nos fazer sentir alguma coisa de novo, antes que a repetio e as
defesas cubram a percepo com o vu da indiferena (NESTROVSKI, 2000, p. 192). Nesse
contexto, as consideraes de Claude Lvi-Strauss e Walter Benjamin so oportunas, pois os
autores caracterizam o resgate da memria, atravs da narrao, como elemento matriz para a
cura.
Claude Lvi-Strauss tece consideraes sobre a importncia da narrao como forma
de vencer um obstculo. Na obra Antropologia estrutural (2003), o antroplogo escreve
acerca do ritual dos Cuna, tribo sul-americana, em que a narrao empregada num culto em
que o xam deve auxiliar a parteira no parto de uma indgena que est com dificuldade em dar
a luz ao seu beb (LVI-STRAUSS, 2003, p. 216). A tcnica da narrativa mitolgica
empregada pelos Cunas tem como objetivo reconstruir uma experincia real, em que a cura de
um mal, fsico ou psquico, encontra no ato de narrar sua fora regeneradora e curativa. Ainda
que o mito do xam no corresponda a uma realidade objetiva, isso no importa, explica Lvi-
Strauss, pois o doente acredita nela, pois membro de uma sociedade que acredita.
Walter Benjamim tambm comenta a possibilidade da cura de uma enfermidade
atravs da narrao. Para explicar isto, em Rua de mo nica (2009) o filsofo alemo
argumenta que a narrao fomenta o clima propcio e a condio mais favorvel para a cura.
Escreve o filsofo: A criana est doente. A me a leva para cama e se senta ao lado. E ento
comea a lhe contar histrias (BENJAMIN, 2009, p. 269).
Em A ltima fbula, a memria participa ativamente do mundo da experincia. Na
obra, a memria tem suma importncia quando traz baila um fato ou acontecimento que a
personagem vivenciou. Aproximando-se do exposto por Lvi-Strauss e Benjamim, ao
tratarem que a narrao tem o poder de cura de uma enfermidade, isto se explica quando o
romance traz a representao de momentos em que a menina recorda da sua vida anterior
guerra, passagens em que os atos de rememorar e narrar a cura, pois rememorar e narrar
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revelam-se como elementos curativos de uma enfermidade, ainda que esta no seja fsica,
visvel, deixou marcas na psique da menina.
Mas, no s de fbulas elaborado o romance. Atravs do engenho da rememorao, a
menina traz a lume o cotidiano pastoril da aldeia onde ela morava antes de iniciar a guerra. Na
memria da personagem, um cotidiano permeado por religiosidade, costumes, crenas e
hbitos ganham relevncia. Enrique Serra Padrs v na memria, na medida em que se
relaciona com o passado, um elemento que constitui um elo indiscutvel entre o presente e
passado. Trata-se de uma espcie de ponte que conecta, articula, relaciona elementos
temporais, espaciais identitrios e, tambm, histricos (PADRS, 2001, p. 81).
No captulo Dei gratia, percebemos esta conexo entre passado e presente quando a
menina, ao final da tarde, encostada ao fundo do trem, olha o horizonte que lentamente passa
aos seus olhos. O pr-do-sol lhe sagrado. Ela lembra que quando nonna Gemma pedia
Toca a ave-maria (LAGAN, 2002, p. 37), era um momento de revelao da f, era a hora
de rezar a prece da tarde, de parar de trabalhar para cumprir as devoes, dizia nonna, fazendo
um sinal-da-cruz to rpido que nem parecia sinal-da-cruz (LAGAN, 2002, p. 37-38).
A religiosidade tambm bastante enfocada no romance. No captulo Eucaristia, a
menina recorda do ritual religioso da missa dominical. A narradora recorda da aura sacra que
envolvia a missa. Em sua memria brotam os lugares, como a igreja decorada com flores, e os
sinos ainda tocavam uns repiques e de repente todos ficavam em silncio e
comeavam a entrar na igreja. Primeiro as mulheres, que abriam os vus, sacudindo-
os um pouco no ar, e os colocavam rodeando a cabea com os braos. Depois
entravam os homens, que tiravam os chapus e baixavam os olhos
(LAGAN,
2002, p. 61).
Esta passagem corrobora com o exposto por Janana Amado, quando a autora fala
acerca da memria e da experincia, em que a memria torna as experincias inteligveis,
conferindo-lhes significados. Ao trazer o passado at o presente, recria o passado (AMADO,
1995, p. 132), dando-lhe valor sentimental.
No romance, muitas passagens tm na representao da religiosidade um dos seus
pontos altos. Mircea Eliade se posiciona sobre os rituais religiosos e sua relevncia na
perpetuao dos costumes e cultura das sociedades desde os primrdios da civilizao. Os
rituais religiosos revelam, sobremaneira, uma tomada de conscincia frente existncia do
homem e sua relao consigo mesmo e com o universo.
Conforme Eliade, o cristianismo se diferencia das outras religies por dar um valor
exponencial ao tempo e histria. O antroplogo ressalta que esses rituais so valorizados
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pela revelao que ele comporta, revelao esta que o precede e o transcende. O cristianismo,
destaca o autor, se empenha por salvar a histria; primeiro porque d um valor ao tempo
histrico e, em segundo plano, porque o cristo valoriza sobremaneira o acontecimento
histrico, pois este transmite uma mensagem que atravessa o tempo cclico e se mantm como
ocorrido na sua gnese (ELIADE, 1996, p. 170).
Alm da religiosidade e dos preparativos entorno da missa dominical, A ltima fbula
tambm revela atravs da rememorao da personagem principal as crendices de seu povo.
No mesmo captulo, aps a orao da ave-maria, a nonna Gemma pede: Toca acqua buona
(LAGAN, 2002, p. 38). Porm, lembra a menina que este no era um pedido corriqueiro.
Acqua buona somente era cantada quando:
(...) o cu ficava carregado de nuvens e os contadini tinham medo das tempestades
de granizo, que estragavam as vinhas e os trigais. Quando Teodoro via o cu preto,
corria para tocar os sinos, tocava bem forte, sem parar, e as tempestades de granizo
iam embora, caa uma gua boa, os contadini ficavam contentes (LAGAN, 2002,
p. 38).
No romance, percebe-se que a memria se presta continuidade temporal da prpria
pessoa. Em A memria, a histria e o esquecimento, Ricoeur expressa que atravs da
rememorao que o ser humano demarca um elo de continuidade entre presente, passado
recente, passado distante, permitindo a quem lembra remontar os acontecimentos mais
recuados da idade mais tenra, a infncia.
Com Ricoeur, temos a noo que a memria no assume o significado de imaginao
que lembra algo fictcio, fantasioso, que beira o irreal, mas como capacidade que tem todo
aquele que recorda pode se fazer remeter ao passado, por determinados dados que esto
arquivados na mente humana (RICOEUR, 2007). O autor afirma, ainda, que a linguagem
portadora do papel principal da memria, pois atravs do ato de narrar que a memria se
propaga, reconstri e cria um paralelo entre passado e presente.
Em se tratando da importncia da linguagem nos atos da memria, A ltima fbula
refora essa ideia de um olhar de algum que usa o recurso da rememorao para jogar luz
sobre seu passado, trazendo-o claridade da narrativa. pela rememorao que a personagem
reconstri e presentifica sua histria particular e coletiva.
Na narrativa, tem-se passagens em que a menina recorda de um tempo feliz,
auspicioso. No captulo A truginella, lemos a representao de uma poca feliz que desdenha
qualquer fatalidade. A passagem que segue rememora no somente uma felicidade e harmonia
particular, mas de toda uma coletividade.
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Uma das nossas brincadeiras era correr dando voltas na muralha. A gente sempre
partia do arco, e uns corriam por um lado e uns pelo outro, e ganhava quem chegasse
primeiro de volta ao arco. A gente corria, e de um lado da rua passavam as casas
com roupas penduradas nas janelas e vasos de gernios nos degraus das portas, do
outro lado, fora da muralha, passavam os montes com a Catria, as colinas com os
campos de trigo e as videiras (LAGAN, 2002, p. 85).
Esta passagem vem ao encontro s palavras de Ricoeur. Segundo o estudioso, ao
interpretar a relao memria individual e passado histrico atravs da noo do mundo dos
predecessores, entre memria individual e o tempo passado h uma fronteira que os separa.
Nesse contexto, o passado recente permevel, uma vez que a relao entre ambos se faz
atravs dos relatos de algum que integra a gerao passada. Assim, tem-se uma ponte que
une passado histrico e memria, em que o ato de narrar opera como um intermedirio da
memria em direo do passado histrico, concebido como tempo dos mortos e tempo
anterior a meu nascimento (RICOEUR, 2001, p. 168).
Outro aspecto a ser considerado na anlise de A ltima fbula revela um tempo de
barbrie. O romance pode ser lido como obra que opera no vis da literatura de testemunho
29
,
ainda que no faa meno direta Shoah, pois oferece entendimento sobre a extrema
violncia a que algum submetido e que a partir desta experincia tenta narrar o vivido.
Acerca disso, Lyslei Nascimento argumenta que todo aquele que sobrevive a um ato
de violncia apresenta dois sentimentos paradoxais em relao s lembranas que podem
intervir no ato de contar suas experincias. O primeiro sentimento o do silncio. No contar
para esquecer. Enclausurar as imagens, os sons e os cheiros do sofrimento para que o tempo
se encarregue de apag-los; o segundo narrar para se libertar
(NASCIMENTO, 2007, p.
932).
O segundo sentimento expresso por Nascimento , neste estudo, a fora motriz que
leva a personagem do romance a narrar eventos do seu passado, para com isso libertar-se das
amarras subjetivas que, de certo modo, tornam ela enferma diante da tortura psicolgica que
ela passou num passado no distante, tempo este que deixou cicatrizes em sua psique.
A personagem protagonista assume a posio de testemunha, pois seus atos
rememorar e narrar envolvem a linguagem e a tentativa do sujeito que vivenciou o trauma
de dar conta da lngua para, a partir dela, comunicar sua experincia. A respeito do
testemunho e da sua compreenso, Seligmann-Silva argumenta:
29
O termo literatura de testemunho uso com freqncia quando so estabelecidas relaes intrnsecas entre
escrita e trauma vivenciado em situaes histricas extremas.
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O testemunho deve ser compreendido tanto no seu sentido jurdico de testemunho
histrico - ao qual o testimonio tradicionalmente se remete nos estudos literrios
como tambm no sentido de sobreviver, de ter-se passado por um evento-limite,
radical, passagem essa que foi tambm um atravessar a morte, que problematiza
a relao entre a linguagem e o real. De modo mais sutil - talvez difcil de
compreender - falamos tambm de um teor testemunhal da literatura de modo geral:
que se torna mais explcito nas obras nascidas de ou que tem por tema eventos-limite
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 8).
Certamente, o romance traz a representao de um evento-limite do qual fala
Seligmann-Silva. Para o autor, a literatura do sculo XX traz em sua produo obras que
trazem em seu mago a representao do testemunho de tempos de guerra, iluminando, assim,
a histria da literatura, destacando esse elemento testemunhal das obras (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 8).
No bojo desta questo, Eric Hobsbawm (1994) argumenta que o sculo XX pode ser
denominado de a era das catstrofes, haja vista que este tempo foi marcado por perodos
devastadores da historia da humanidade, como as guerras, o Holocausto, a Guerra Fria, os
genocdios na Iugoslvia e em Ruanda, alm de outros eventos que denigrem a condio de
civilizados que a Humanidade traz consigo.
Tratando da representao de catstrofes na obra literria, A ltima fbula traz
passagens em que o encanto e a magia das fbulas de nonna Gemma e as brincadeiras de
criana do lugar a um perodo de guerra. No captulo Dies irae, a narradora rememora os
dias de silncio e medo que passaram a assolar todos na aldeia. Trancadas dentro de casa com
as crianas, as mulheres no davam mais risada e s falavam de guerra, quando esperavam o
po ficar pronto, falavam e faziam caras de preocupadas, no davam mais risada (LAGAN,
2002, p. 147).
Os primeiros sinais da Segunda Guerra Mundial fazem com que o cotidiano da aldeia
seja bruscamente alterado. Se antes a personagem protagonista e as outras crianas iam cada
manh no jardim da infncia levadas por suas mes, ou iam a tarde catar espigas de milho na
lavoura com nonna Gemma, com a eminncia da guerra, cada famlia ficava trancada dentro
de sua casa, acuada, temendo o pior. A partir daqueles dias sombrios, a menina ficava
escondida como todos, apontando o ouvido para o alto em busca do som dos avies que, a
cada dia mais, sobrevoavam baixo os telhados, em busca de inimigos. Ficava, tambm,
espreitando pelas frestas da parede da casa o vazio da rua que somente era preenchido quando
uns forasteiros vestidos de preto e carregando fuzis (LAGAN, 2002, p. 149) batiam
fortemente nas portas das casas interrogando as pessoas.
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Enquanto rememora, a menina, sentada num canto do vago do trem, silenciosa,
lembra que seu pai tambm fora guerra. No incio, logo depois que os avies passaram a
sobrevoar a aldeia, Forti, seu pai, desaparece; e todo dia, recorda a menina, depois daquela
noite em que vimos aquelas luzes sobre Ancona, mame ficou muito nervosa e preocupada, e
toda hora falava: onde est Forti?, falava isso e fazia uma cara como de choro (LAGAN,
2002, p. 147).
Os homens eram convocados para ir frente das batalhas. Quando retornavam,
voltavam vazios, taciturnos e silenciosos, sem nada para falar aos outros que lhes dessem
conta do acontecido. Nesse contexto, a Shoah irrompe como um evento singular porque,
mais do que qualquer fato histrico, do ponto de vista das vtimas e das pessoas nele
envolvidas, ele no se deixa reduzir em termos do discurso (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.
83).
O silncio que marca o retorno dos soldados aps a guerra retomado por Benjamin
que, em Experincia e Pobreza (1994), questiona: Quem encontra ainda pessoas que saibam
contar histrias como elas devem ser contadas? (BENJAMIN, 1994, p. 114). Para tal, o autor
lana mo desta questo por notar que, aps os combates da Primeira Guerra Mundial, os
soldados voltavam silenciosos do campo de batalha. Segundo ele, voltavam mais pobres em
experincias comunicveis, e no mais ricos
(BENJAMIN, 1994, p. 114). Na obra de
Luciana Lagan isto observado quando o pai da menina retorna do campo de batalha,
silencioso e emudecido, no mostra afeto, nem sorrisos aos seus familiares. A menina lembra
que se pai:
[a]pareceu com a bicicleta e a roupa de soldado, mas no passou a mo na cabea do
meu irmo, nem brincou de colocar a mo na minha cara. Falou com mame bem
baixinho, ela ps a mo na boca, arregalou os olhos, disse: Oh, Deus!. Depois nos
levou para a casa de nonna, falou baixinho com ela, nonna tambm arregalou os
olhos, ps a mo na boca, e disse: Que o Senhor nos assista! (LAGAN, 2002, p.
150).
Exemplarmente, em A ltima fbula a memria e a narrao assomam como
elementos importantes para que a obra seja compreendida num vis que tem no ato de narrar a
configurao e permanncia da memria. Do silncio imposto pela guerra, as fbulas contadas
por nonna Gemma tambm rarearam com o passar dos dias. Numa passagem da obra, a
menina recorda que a av mudara de jeito, calara diante da catstrofe eminente da guerra:
Quando deitamos na cama dela, nonna no perguntou que fbula queramos, disse
que estava muito cansada, que tinha outras coisas na cabea, nos abraou bem forte,
meu irmo de um lado, e eu de outro, nos abraou e comeou baixinho: Pater noster
(LAGAN, 2002, p. 150).
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No ltimo captulo, Rquiem, a memria das fbulas cede espao para a lembrana dos
conflitos armados, das balas de canho pondo ao cho casas, convento, a prpria histria. A
personagem rememora que:
(...) aquelas balas de canho que passavam zunindo na frente da gruta, e iam cair em
cima de Fratterosa. Uma daquelas balas de canho pegou o campanrio, destruiu
uma parte dele e por uns tempos os sinos no tocaram vintore, nem a ave-maria,
nem chamaram para as missas de domingo. Outra caiu na praa do Mulino, derrubou
um pedao da muralha. (...) Outra caiu na casa grudada nossa (LAGAN, 2002, p.
163-164).
A ltima fbula encerra com a representao da barbrie. Pais com seus filhos acuados
dentro de grutas no campo, avies sobrevoando casas e despejando bombas, soldados
incendiando casas, soldados impondo o riso trgico do terror. Com a guerra, as fbulas de
nonna Gemma silenciaram. Trancafiada em seu silncio dentro da gruta, a menina recorda
que somente ouvia palavras estranhas murmuradas das bocas dos homens, atnitos: fascisti,
milcias, represlias, rastreamento, umas palavras estranhas, e umas que nem palavras eram,
eram s umas letras, SS (LAGAN, 2002, p. 157-158).
No final do romance, Fratterosa e as aldeias vizinhas retomam, lenta e
silenciosamente, seu cotidiano harmonioso e tranquilo. No vago do trem, a personagem
recorda que os soldados paravam os caminhes, desciam e falavam com as pessoas, pegavam
as crianas no colo, davam chocolate, tambm ganhei chocolate e entendi que a guerra tinha
acabado (LAGAN, 2002, p. 165). Afinal, o trmino da guerra seria a redeno e a
renovao, em preparao de um novo tempo? Para a personagem protagonista parece que
sim, pois pouco a pouco voltaram tambm as fagulhas e os tic-tac das agulhas da nonna
Gemma, as noites de inverno e as fbulas na cama dela (LAGAN, 2002, p. 165), porque a
memria evoca estas lembranas para servir de cura para as mazelas psquicas, evocadas pelas
recordaes mais angustiantes e melanclicas.
A obra refora a ideia de que a memria um elemento fundamental para que o
passado seja representado no discurso ficcional. Para Marcos Fiuza, a memria como resgate
de um trauma traz literatura uma funo complexa de atualizar e redimensionar aquilo que
foi suprimido (FIUZA, 2007, p. 165). Assim, a narrativa, ao reconstruir um passado, tem a
funo de preencher as lacunas que muitas vezes o tempo, o esquecimento e a histria
deixaram abertas.
A ltima fbula vem ao encontro do que pensa Luiza Santana Chaves sobre a escrita,
sobre as subjetividades, sobre o eu que se faz porta-voz da do grito da coletividade que
emana do texto literrio.
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O espao da escrita no se consolida apenas como a narrativa de um eu, mas de
um eu que escreve, por meio de uma lngua e uma linguagem, traduzindo para
uma tradio literria, as palavras de outros, que por terem sido aniquilados, no
podem se expressar; fazendo da sua escritura o tmulo dos que no foram
devidamente enterrados (CHAVES, 2012, p. 9).
Na narrativa, as fbulas que a personagem narra e as passagens que ilustram a barbrie
da guerra servem com que ela seja porta-voz do outro, que est ausente, esquecido, e que
no foi devidamente enterrado, como tambm servem para que a menina, atravs da narrao
e do reavivamento da memria, reencontre a si mesma.
Consideraes finais
A leitura e anlise dA ltima fbula possibilitou ver que a narrao um ato de
retomada, pela palavra, de um passado para que este no se perca no silncio e no
esquecimento ao qual o ser humano est fadado. No cerne da representao, o fazer literrio
de Lagan tece uma literatura de testemunho que, ainda que no trate da perspectiva de
algum que testemunhou no campo de concentrao, recupera o valor da rememorao
medida que incorpora elementos ficcionais em suas composies, sem com isso lhe tirar a
essncia do estatuto literrio, assentado na representao.
A memria representada no discurso ficcional do romance estabelece uma relao
com o passado, trazendo-o para o presente de modo que o que ocorreu no seja esquecido.
Assim, no romance a memria usada pela narradora contra o esquecimento, tanto de
momentos de encanto e magia, como as fbulas de nonna Gemma, como de momentos tristes,
em que as balas de canho varriam muros e vasos de gernios porta das casas.
Rememorar, como quer Ricoeur, parte do princpio da memria individual. No livro
de Lagan a memria tem um papel preponderante por trazer tona momentos legitimados
pela narrao em primeira pessoa, que visa reparar uma identidade machucada (SARLO,
2007, p. 19), neste caso, a identidade da personagem narradora do romance.
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Literatura comparada: uma leitura intertextual do tema afeto em Amar, verbo
intransitivo, de Mrio de Andrade e Perto do corao selvagem, de Clarice
Lispector
BOLZAN, Neides Marsane John
*
Resumo: Conceituar Literatura Comparada no uma tarefa fcil, no entanto compreender o que ela abrange
fundamental para reconhecer o campo que a compe. O presente estudo visa tecer uma reflexo a respeito dos
conceitos de Literatura Comparada, do objetivo e da finalidade dela. Para desenvolver esse raciocnio neste
trabalho recorreu-se aos embasamentos tericos de Carvalhal, Pageaux, Coutinho e Jauss. A partir das reflexes
sobre esse tema tambm feita uma anlise entre duas obras brasileiras: Amar, verbo intransitivo, de Mrio de
Andrade e Corao Selvagem, de Clarice Lispector, evidenciando a maneira singular pela qual foi abordado o
tema afeto, cujo aproveitamento como material sociolgico se deu em pocas distintas exemplificando, assim, a
abordagem intertextual, um dos vieses do campo da Literatura Comparada. A anlise procura demonstrar a
percepo diferenciada do despertar do sentimento de enamorar-se que ocorre a um menino e uma menina
adolescentes, revelando as reaes de ambos, frente situao vivida.
Palavras-chave: Literatura Comparada. Intertextualidade. Afeto.
Introduo
Os estudos literrios na atualidade recebem constantemente novos olhares. Em vista
disso, neste artigo se far uma explanao da evoluo que sofreu a Literatura Comparada,
desde o seu surgimento at os dias atuais; alm de se buscar uma definio para ela,
evidenciando assim, tambm o seu objetivo; e, para tanto, buscou-se respaldo terico em
Carvalhal, Pageaux, Coutinho e Jauss. Ainda, fez-se uma busca a respeito das vias que
percorre um comparatista, a fim de conhecer a maneira pela qual pode ser pensada uma
interpretao a partir de duas criaes que se comungam pelos laos da intertextualidade: o
idlio Amar, verbo intransitivo, de Mrio de Andrade, de 1927, e a obra de Clarice Lispector:
Perto do Corao Selvagem, de 1944.
Conceito de literatura comparada
A Literatura Comparada o ramo dos estudos literrios responsvel por estabelecer
relaes de interpretao entre expresses artsticas de diferentes naes, bem como entre a
*
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Misses (URI-Frederico Westphalen). E-mail:
[email protected].
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linguagem empregada na expresso da obra, e/ou a traduo dela para outra esfera artstica,
podendo se manifestar por meio da msica, do teatro, do cinema, da poesia, da prosa, da
maneira como os temas so abordados e influenciados pelo olhar de quem traduz ou de quem
l. Em vista disso, a Literatura Comparada pode ser abordada pensando-se ou no em
traduo, embora a traduo possa ser considerada um elo entre as literaturas existentes no
mundo.
A expresso Literatura Comparada tambm pode ser entendida sob outras formas. No
olhar de Tnia Carvalhal, designa uma forma de investigao literria que confronta duas ou
mais literaturas (CARVALHAL, 2006, p.6); ou, sob o ponto de vista de Patrcia Peterle, a
Literatura Comparada proporciona o estudo do dilogo entre as literaturas e entre outras
expresses humanas (PETTERLE, 2011); ou ainda, segundo Pageaux, Literatura Comparada
a arte metdica, por meio da busca de laos de analogia, de parentesco e de
influncia, de aproximar a literatura de outros domnios da expresso ou do
conhecimento, ou ainda, os fatos e textos literrios, entre eles, distantes ou prximos
no tempo ou no espao, a condio que pertenam a diversas lnguas ou diversas
culturas, ainda que faam parte da mesma tradio, com o objetivo de melhor
conhec-los, compreend-los ou degust-los. (PAGEAUX, apud MARINHO 2011)
Porque esses conceitos convergem para a necessidade de haver dilogo entre
manifestaes culturais que se percebe que a Literatura Comparada, sendo arte de execuo
de um mtodo de anlise, permite encontrar algo comum em locais totalmente diversos, e
construir significados a partir da observao de outras esferas de expresso humana. Dessa
forma, os recortes culturais que se apresentam nos traos nicos ou universais das marcas
humanas sobre as pessoas, sobre as edificaes ou sobre a natureza, no sentido de ao,
reao ou ausncia de ao so tambm percebidos sob diferentes aspectos.
Embora seja atualmente assim compreendida, a Literatura Comprada no foi sempre
vista dessa forma abrangente. Ela originou-se na Frana para impor uma cultura dominante,
(PETTERLE, 2011), mas tambm, sob a interpretao de Tnia Franco Carvalhal, possua o
objetivo de estabelecer apenas comparao entre manifestaes semelhantes. Desta maneira
ela expe seu pensamento:
[o] surgimento da literatura comparada est vinculado corrente de pensamento
cosmopolita que caracterizou o sculo XIX, poca em que comparar estruturas ou
fenmenos anlogos, com a finalidade de extrair leis gerais, foi dominante nas
cincias naturais. Entretanto, o adjetivo "comparado", derivado do latim
comparativus, j era empregado na Idade Mdia. (CARVALHAL, 2006, p. 9)
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Por ter tanto tempo j sido empregado, o termo comparado (grifo meu) tece uma
evoluo, uma histria para a Literatura Comparada, dentro da qual ela possui uma funo,
sobre a qual Coutinho e Carvalhal fazem as seguintes consideraes:
Investigar como as naes aprenderam umas com as outras, como elas se elogiam e
criticam, se aceitam e rejeitam, se imitam ou distorcem, se entendem ou interpretam
mal, como elas abrem os coraes ou se fecham umas s outras, mostrar que as
individualidades, como perodos inteiros no so mais do que elos de uma cadeia
longa e multifilamentada que liga passado e presente, nao a nao, homem a
homem estas, em termos gerais, so as tarefas da histria da Literatura
Comparada. (COUTINHO e CARVALHAL, 1994, p. 54, apud PETTERLE, 2011)
Devido evoluo desse campo do saber, surge a figura do comparatista, o qual possui
a tarefa de construir significado para a realidade por meio de comparaes vistas sob o olhar
de algum que interpreta o modo pelo qual o Outro fala, pensa, v, vive e se relaciona; de
como fala e vive e se v diante de outras culturas. O comparatista pode optar pela via da
traduo literria, pela via da esttica da recepo, pela via da intertextualidade, pela via dos
polissistemas literrios, e outras mais. (ALLEGRO, 2009)
As vias do comparatista
A primeira delas, a traduo literria, uma mediadora entre as relaes interculturais
ou entre literaturas diferentes; ultrapassa o ato de comparar tradues, e adentra no estudo de
influncias e/ou do impacto que ela pode causar devido maneira pela qual a traduo foi
abordada ou pelas diferenas entre culturas que ela pode revelar. Segundo Allegro (2004), as
tradues constituem-se no modo de mais fcil acesso a obras artsticas da humanidade,
embora muitas vezes a traduo esteja influenciada pela personalidade do tradutor, por
elementos sociolgicos, comerciais, o que justifica a escolha do texto, cuja demanda o
pblico que solicita.
Assim, literatura comparada e traduo caminham lado a lado. Comparando obras,
cotejando textos de diferentes origens e pocas e aprendendo (e apreendendo) cultura, o
comparatista est constantemente emergindo em alteridade cultural (ALLEGRO, 2004). H,
no entanto, trs formas de se efetuar a traduo. A primeira consiste na interpretao dos
signos verbais por meio de outros signos da mesma lngua; [...] dos signos verbais por meio
de alguma outra lngua; [...] dos signos verbais por meio de sistemas de signos no-verbais
(JAKOBSON, 1969, p. 64-65), a chamada intersemitica. Em qualquer uma delas preciso
que se estabelea uma relao entre significante e o intrprete imediato para ele: o
significado; ao que Saussure e Pierce, apud Jakobson (1969, p. 100), denominaram de
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qualidades materiais de uma perfeita traduo. Essas qualidades seriam semelhana entre
significante e significado; aproximao entre a representao e o fato representado (a
semitica ou a sintomatologia), cuja conexo constitui uma regra convencional para se efetuar
uma traduo, uma vez que, e s e exclusivamente por causa dessa regra que o signo ser
efetivamente interpretado. (JAKOBSON, 1969, p. 101).
Pierce, apud Jakobson (1969), classificou a semitica em trs classes fundamentais de
signos: os cones, os ndices e os smbolos; ao que ele reconheceu que [n]o a presena ou
a ausncia absolutas de similitude ou de contiguidade entre o significante e o significado
que faz com que um seja melhor que o outro, mas sim a relao de sentido que se estabelece
entre os dois. Para Pierce, apud Espndola, (2008) os cones so signos que carregam algum
tipo de semelhana com os objetos que os representam e cuja semelhana assistida por
regras convencionais, que fazem aluso a algo parecido; os ndices so signos que incorporam
alguma extenso fsica de seu objeto por ser realmente afetado por esse objeto, indicando
um indcio de algo; j o smbolo um signo que representa seu objeto a partir de uma
conveno [...], de uma regra, tendo uma relao de arbitrariedade, como a palavra.
(ESPNDOLA, 2008). Pierce afirma que [o]s signos inteiramente arbitrrios realizam
melhor que os outros o ideal do procedimento semiolgico.(KAKOBSON, 1969, p. 104)
A segunda, a esttica da recepo tem a ver com a forma com que o texto recebido
pelo intrprete. Assim, o texto pode no ser aceito, porque h crticos que rejeitam obras por
serem analticas ou porque simplesmente preferem os prprios textos, o que classificado
como fobia; ou do texto feita uma fetichizao, ou seja, ocorre um culto exagerado, cuja
valorizao leva interpretao do texto em seu sentido original, o que denominado de
mania; ou ainda, uma terceira forma de recepo, a qual considera o leitor um intrprete que
percebe que nunca compreende o suficiente, sendo esse comportamento classificado como
filia, segundo a interpretao de Pageaux (2011, p. 114).
Essas hierarquias, essas diferenas de perceber o Outro revelam uma ideologia,
seguem uma lgica de um imaginrio (PAGEAUX, 2011, p. 113), sustenta ainda Pageaux,
j que o texto literrio apresenta uma estrutura at certo ponto programada (2011, p. 113).
Ampliando mais essa reflexo, cabe citar o que Hans Robert Jauss afirma em seu projeto
esttico-recepcional em cuja abordagem tecida a histria da Literatura:
A teoria esttico-recepcional no permite somente apreender sentido e forma da obra
literria no desdobramento histrico de sua compreenso. Ela demanda tambm que
se insira a obra isolada em sua srie literria, a fim de que se conhea sua posio e
significado histrico no contexto da experincia da literatura. No passo que conduz
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de uma histria da recepo das obras historia da literatura, como acontecimento,
esta ltima revela-se um processo no qual a recepo passiva de leitor e crtico
transforma-se na recepo ativa e na nova produo do autor ou, visto de outra
perspectiva, um processo no qual a nova obra pode resolver problemas formais e
morais legados pela anterior, podendo ainda, propor novos problemas. (JAUSS,
1994, p. 41)
A terceira, a intertextualidade, est estreitamente ligada aos estudos culturais,
principalmente no final do sculo XX e incio do XXI, em que as populaes marginalizadas
e silenciadas comeam a contar sua histria s culturas hegemnicas que as haviam
dominado. (PETTERLE, 2011) A intertextualidade no vem a ser um mero confronto de
disciplinas, explicando os diferentes olhares sobre o mesmo tema. A ela cabe criar novos
objetos de conhecimento, segundo a compreenso de Barthes, retomada por Marques (1999,
p. 63), sendo que um desses objetos o texto, que tomado como metfora da cultura. Essa
condio de alteridade exige que o comparatista, faa a anlise, desinstalado de seu territrio,
disponha-se a atravessar fronteiras, de tal forma que proporcione a ele habilitar-se ao dilogo
com outros sujeitos e seus referenciais tericos, explica ainda Marques.
A ltima, os polissistemas literrios, os quais englobam todas as obras: a literatura de
massa e a erudita, vm a ser um sistema plural, no qual h foras centrfugas e extrfugas, as
quais fazem determinadas literaturas estarem ao centro ou margem do sistema dominante,
cujas foras conferem com a norma cultural do momento. Em vista de ser essa a forma de
estruturao dos polissistemas, fazer parte do cnone no significa qualidade de obra, mas
adequao a normas, ao repertrio, que o conjunto de leis que governa a produo de textos,
inserido num contexto de luta local e temporal. Sendo, ento, o texto o resultado de um
conjunto de escolhas possveis para dizer o Outro (PAGEAUX, 2011, p. 1113), em cuja
construo est a revelao do funcionamento de uma ideologia, que segue e define a lgica
do imaginrio. Pageaux ressalta que as escolhas dependem amplamente do contexto
histrico, social, cultural e poltico [...] a partir desses dados que o texto escrito, e no por
causa deles. (PAGEAUX, 2011, p. 113)
O entrelaamento
A traduo literria, como se v, pode direcionar a uma traduo por diferentes vieses.
No entanto, a traduo que ora se enfatiza a intertextual, uma vez que se analisa, no presente
momento, duas obras literrias, cujos ttulos so: Amar, verbo intransitivo, de Mrio de
Andrade e Perto do Corao Selvagem, de Clarice Lispector, analisando-se como e por que o
tema afetos foi evidenciado para motivar a mente interpretadora a uma possvel conexo ou
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correlao entre ambas as obras em que se passou do despertar do sentimento sexual
masculino para o feminino numa linguagem artstica.
O foco de estudo visa demonstrar tambm que a relao entre as obras no se d
direcionada fidelidade ao texto fonte, como uma repetio de uma obra anterior, mas que
ocorre porque na segunda feita uma referncia ao texto fonte, por meio da escolha do
mesmo tema, o que vem a ser outra construo interpretativa, uma vez que o texto literrio
um signo com mltiplas interpretaes possveis [...] e pode motivar inmeros interpretantes
(ESPNDOLA, 2008). Em vista disso, a atualizao do signo literrio em outra obra pode ser
visto como nova materializao de leitura, o que proporciona a percepo da potncia sgnica
como ato interpretativo, que pode acrescentar elementos ao texto de referncia, que no exige
que o leitor conhea o original, tornando-se uma obra de arte independente, segundo
Espndola (2008).
Embora tenham sido lanadas em pocas diferentes, Amar, verbo intransitivo (1927),
de Mrio de Andrade e Perto do Corao Selvagem (1944), de Clarice Lispector ambas as
obras possuem aspectos comuns: inovam no que se refere estrutura da narrativa, na primeira
o narrador retoma o idlio, enquanto na segunda, emprega o fluxo de conscincia, numa
incessante aluso ao passado e/ou ao presente. Alm disso, a abordagem do tema: o despertar
do desejo sexual comum, no entanto, no primeiro relacionado ao sentimento do menino, e
no segundo, ao de uma menina.
Em Amar, verbo intransitivo, o adolescente Carlos, de dezesseis anos, apaixona-se por
Elza, de 35anos, governanta que tinha como misso inici-lo sexualmente, mas sem
envolvimento afetivo. Todavia, os dois acabam se apaixonando, ocorrendo o que Imbasciati
explica: um indivduo, mesmo adulto, animado por afetos, seja em interao com o
exterior, seja em contato consigo mesmo. (1998, p. 46) Essa situao torna constrangedor o
sentimento manifestado e que necessita ser abafado, devido ao modo pelo qual os sentimentos
na sociedade paulistana da dcada de 20 eram considerados: pecaminosos. Elza estava na
posio de orientadora sexual, enquanto Carlos, de aprendiz, mas que evolua:
Na volta do Rio recomearam os encontros noturnos, que bom! Carlos evolua
rpido. Frulein tinha j seus despeitos e pequenas desiluses. Por exemplo: ele
demonstrava j de quando em quando preferncias brasileiras e outras individuais
que contrastavam com honestidade clssica do amor tese. Tese de Frulein.
(ANDRADE, 1998, p. 124)
Mrio de Andrade abordando esse relacionamento deixa transparecer as foras do
inconsciente, uma vez que para o inconsciente no h limite entre ideao e afeto, j que
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ambos no so precisveis. Reafirmando, assim, Freud, exemplifica o modo como os afetos se
apresentam como o motor, obscuro, da existncia humana, sendo algo natural que se
manifesta quando desperto. No entanto, percebe-se a diferena entre a manifestao do afeto
pelo brasileiro (Carlos) e pela alem (Elza): o alemo condenado porque amordaa o
sublime, enquanto o brasileiro no possui conhecimento do seu modo de ser. Em vista de
possurem formas diferentes de reagirem frente aos apelos afetivos que Mrio de Andrade
deve ter aproveitado esses dois seres que se opem ao revelarem a sua cultura, cuja
configurao se encontra no inconsciente de cada um.
J em Perto do Corao Selvagem, a adolescente Joana deixa transparecer seus
sentimentos em forma de interrogaes sem respostas:
[...] depois que se feliz o que acontece? [...] como ligar-se a um homem seno
permitindo que ele a aprisione? Como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e
sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a
possussem? (LISPECTOR, 1998, p. 29-31)
Ao se apaixonar, sem ser correspondida, pelo professor do internato, percebe o que se
passa no ntimo dela, dessa forma impe os processos cognitivos para controlar os afetivos
nas aes. Joana percebe a fora da paixo, por isso se decepciona ao perceber que no
correspondida; sente-se feia, rejeitada, talvez. Sendo uma pessoa muito sensvel, diferencia o
amor carnal, do amor sublime. Busca, assim, algum que entenda sua sensibilidade feminina,
encontra uma pessoa, apenas por pouco tempo. Clarice Lispector, ao tratar desse tema, expe
a configurao da personalidade feminina, que est em busca do autoconhecimento, do
encontro consigo mesma. Enquanto Carlos no compreende o que sente e tambm nem faz
questo de reprimir ou canalizar a emoo aflorada, Joana est comandando sua vida,
direcionando-a para encontrar explicaes para o que sente, avaliando os sentimentos que
valem a pena serem sentidos.
Consideraes finais
Os dois escritores fazem uma pardia do tema, porque falam de uma intertextualidade
das diferenas, ou seja, do modo singular como o amor compreendido pelos personagens,
num modo contestador, em vista do contexto no qual os adolescentes Carlos e Joana esto
inseridos. As duas obras buscam expressar a diferena de percepo do sentimento,
manifestando-o em um gesto de autoria e de individualidade, revelando a ruptura com uma
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concepo consagrada, de sentimento controlado, racionalizado, tornando-se, por meio das
aes dos personagens, obras que proporcionam um novo olhar sobre o tema afeto.
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Referncias
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<http://www.unibero.edu.br/dounload/revistaeletronica/Mar04_Artigos/AlziraAllegro.pdf>.
CARVALHAL, Tnia Franco. 1943-Literatura comparada / Tnia Franco Carvalhal. - 4. ed.
rev. e ampliada. - So Paulo: tica, 2006. Acesso em 20 set. 2011. Disponvel em:
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ESPNDOLA, Bernardo Rodrigues. A representao dos Evangelhos no filme A paixo de
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IMBASCIATI, Antonio. Afeto e representao: para uma anlise dos processos cognitivos.
Trad. Neide Luzia de Resende. So Paulo: Ed.34, 1998.
JAUSS, Hans Robert. A histria da Literatura como provocao Teoria Literria. Trad.
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JAKOBSON, Roman. Lingustica e comunicao. So Paulo: Cultrix, 1969.
LISPECTOR, Clarice. Perto do Corao Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MARINHO, Marcelo. Literatura Comparada e Traduo. 2011. 15f. Notas de aula.
MARQUES, Reinaldo. Literatura Comparada e estudos culturais: dilogos interdisciplinares.
In: CARVALHAL, Tnia Franco (Coord.). Culturas, contextos e discursos: limiares crticos
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PAGEAUX, Daniel-Henri. Elementos para uma Teoria Literria: imagologia, imaginrio,
polissistemas. In: MARINHO, Marcelo; SILVA, Denise Almeida; UMBACH, Rosani Ketzer
(Orgs.). Musas na Encruzilhada: ensaios de Literatura Comparada. So Paulo: Hucitec,
2011.
PETERLE, Patrcia. Questes de Literatura Comparada e Traduo. 2011. 10f. Notas de
aula.
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Identidade, territorialidade e memria em Luanda Beira Bahia
PIAIA, Anne Luersen
SILVA, Denise Almeida**
Resumo: Analisam-se, nesta comunicao, as relaes entre identidade, territorialidade e memria em Luanda
Beira Bahia de Adonias Filho. A anlise dos vnculos sociais da memria salienta as ligaes entre a memria
individual e a social. Enfatiza-se, acerca da memria, a construo, no presente, a partir de
vivncias/experincias ocorridas no passado, e como essa rememorao influencia a vida da personagem. Por
fim, estuda-se o papel desempenhado pelo territrio no romance, entendido no apenas no meio fsico, mas como
resultado das relaes travadas entre os personagens.
Palavras-chave Identidade. Territorialidade. Memria. Luanda Beira Bahia. Adonias Filho.
Analisam-se, nesta comunicao, as relaes entre identidade, territorialidade e
memria em Luanda Beira Bahia. Em um primeiro momento, apresenta-se reviso terica
sobre esses conceitos. Inicia-se apresentando os vnculos sociais da memria, salientando-se
as ligaes entre a memria individual e a social. A seguir, analisa-se a memria, enfatizando
sua construo, a partir do feita no presente, a partir de vivncias/experincias ocorridas no
passado. Por fim, estuda-se o territrio, uma vertente da sociedade, expressa no apenas no
meio fsico, mas como resultado das relaes travadas entre os seres humanos.
Identidade
Estudar o conceito de identidade implica a compreenso do que a constitui e de como
esta se modifica. Manuel Castells elucida a ideia de identidade, entendendo-a como um
conjunto de atributos culturais inter-relacionados (2002, p. 156).
Para Castells, um indivduo ou um conjunto de indivduos pode se perceber envolto
por identidades consideradas mltiplas, sendo esta multiplicidade fonte de tenso nas aes
coletivas. No romance em anlise, percebe-se que o personagem central, Cala, filho de
Morena e Sardento, assume mltiplas identidades. filho, aluno, amante, profissional:
sapateiro, e depois marinheiro. Durante a obra influenciado pelas lembranas de seu pai,