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Espaço & Geografia, Vol.

19, No 2 (2016), 401:427


ISSN: 1516-9375

UMA EXPERIÊNCIA DE PATRIMONIALIZAÇÃO ENTRE A


EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E A PARTICIPAÇÃO SOCIAL:
O CASO DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E
ARTÍSTICO NACIONAL EM IGUAPE (SP)

A PATRIMONIALIZATION EXPERIENCE BETWEEN THE


HERITAGE EDUCATION AND SOCIAL PARTICIPATION: THE
CASE OF THE HISTORIC AND ARTISTIC NATIONAL HERITAGE
INSTITUTE IN IGUAPE (SP)

Danilo Celso Pereira

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN


Mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural – PEP/MP
SEPS - Quadra 713/913 - Bloco D - Edifício Iphan - CEP 70390-135 - Brasília/DF
[email protected]

Recebido 31 de março de 2016, aceito 28 de junho de 2016

RESUMO - Iguape (SP) teve sua fundação no século XVI ligada ao processo de
ocupação do território do Brasil colônia, próxima a Linha de Tordesilhas, e
economicamente associado às primeiras explorações auríferas, anterior às
consagradas pelas políticas de preservação do patrimônio cultural em Minas Gerais.
Neste sentido, o objetivo deste texto é discutir o processo de patrimonialização dessa
cidade-patrimônio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
destacando o novo contexto das políticas de preservação no século XXI em que está
inserida e a metodologia de inventário adotado, preconizando ações de educação
patrimonial e a participação social.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural, Políticas de Preservação, Educação Patrimonial,
Participação Social, Iguape (SP), IPHAN.
402 Pereira D. C.

ABSTRACT - Iguape (SP) had your foundation in the sixteenth century linked to the
process of occupation of the territory of colonial Brazil, near Tordesillas Line, and
economically linked to the fi rst auriferous explorations, then consecrated by the
preservation of cultural heritage policies in Minas Gerais. In this sense, the objective
of this paper is to discuss the process of patrimonialization this city by the Historic
and Artistic National Heritage Institute, highlighting the new context of the twenty-
first century preservation policies and the inventory methodology adopted, advocating
heritage education and social participation.

Keywords: Cultural Heritage, Preservation Policies, Heritage Education, Social


Participation, Iguape (SP), IPHAN.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo apresentar alguns elementos a cerca do debate atual
sobre o processo de eleição de cidades como patrimônio cultural no âmbito das
políticas federais, com ênfase no caso do tombamento da cidade paulista de
Iguape, que preconizou a participação social e a educação patrimonial.

Para tanto, primeiramente é necessário realizar uma breve reflexão acerca do


processo de patrimonialização de cidades no Brasil e de como os bens culturais
do estado de São Paulo se inseriram nesse processo. Depois serão abordados
os valores atribuídos e a metodologia adotada para a identificação de Iguape
como cidade-patrimônio, fatores considerados paradigmáticos e que podem
não ser percebidos por um olhar menos atento, acarretando a uma equivocada
generalização desse caso como sendo mais um tombamento de cidade colonial
como tantos outros realizados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Uma Experiência de Patrimonialização 403

Nacional (IPHAN)1 ao longo dos seus quase 80 anos de atuação.

Para dar conta dessa investigação, realizou-se uma revisão bibliográfica e


documental acerta do tema das políticas públicas de preservação do patrimônio
cultural no Brasil e da patrimonialização de Iguape, além da realizadas entrevistas
com agentes envolvidos nesse ultimo.

A CONSTRUÇÃO DA CIDADE-PATRIMÔNIO NO BRASIL

Desde o século XVIII são encontradas referências a iniciativas visando à


salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro, contudo, apenas em 1933 surgiu
a primeira lei federal referente a essa temática, o Decreto nº 22.298, de julho
de 1933, que elevou a cidade mineira de Ouro Preto à categoria de Monumento
Nacional com a justificativa de este ser o lugar da formação da nacionalidade
brasileira. Contudo, foi o Decreto-lei 25, de 30 de novembro de 1937, a primeira
lei brasileira específica referente à preservação do patrimônio, quando se
organizou a salvaguarda dos bens culturais através do tombamento.

Nesse contexto, Getúlio Vargas, apoiado pelos intelectuais modernistas,


criou em 1937 o IPHAN, órgão que passou a replicar o modelo de preservação
de patrimônio adotado em Ouro Preto, a cidade “obra de arte”, para as outras
cidades do Brasil até os anos 1980. Tal modelo, porém, se enraizou tanto que
até hoje faz parte do discurso da instituição.

1
O órgão federal de preservação possuiu várias designações, o que mostrava o seu lugar na
estrutura política de governo. Foi criado como SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional) em 1937, assumindo a sigla de DPHAN (Departamento de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional) em 1946, IPHAN em 1970, voltando a ser SPHAN em 1979, IBPC
(Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural) em 1990 e, por fim, novamente IPHAN em 1995.
Contudo, por preferência, o órgão de preservação do patrimônio cultural federal será referido
sempre como IPHAN.
404 Pereira D. C.

Conforme Fonseca (2009), durante os primeiros 30 anos de atuação do


IPHAN, os critérios de seleção, autenticidade e restauração desses bens eram
sustentados basicamente na autoridade e no notório saber dos técnicos da
instituição. A autora destaca que o valor estético do bem, que era atribuído
conforme a visão dos arquitetos modernistas, que constituíam a maioria dos
funcionários do IPHAN, predominou sobre todos os outros no trabalho de
construção do patrimônio histórico e artístico nacional. Assim, a avaliação do
valor histórico ficava em segundo plano, restrito à vinculação do bem aos fatos
memoráveis da história do Brasil.

Logo, no que se refere à salvaguarda de conjuntos urbanos, o tratamento


metodológico adotado na instrução dos processos de tombamento identificam
as representações do espaço como monumentos, as cidades-monumentos. Como
aponta Sant’Anna (1995):

“Essa identificação, além de remeter a uma preservação global


do objeto urbano, implicou também a sua apreensão como obra
de arte, objeto de época ou um todo fechado, cuja expansão ou
modificação jamais poderia ocorrer em seu próprio âmbito, mas
somente fora dele e bastante afastado. A expressão cidade-monu-
mento, correntemente utilizada na época, indica esplendidamente
essa aproximação que, além de fundamentar a abordagem mais
propriamente urbanística do problema, também teve importantes
reflexos nas regras que foram montadas nessa época para a
aceitação de construções novas nessas áreas” (Sant’Anna, 1995:
p. 137).

Na prática, a cidade concebida como monumento consiste na supervalorização


do componente estético, é a cidade concebida enquanto obra de arte, resultando
Uma Experiência de Patrimonialização 405

em um descaso aos seus componentes sociais e econômicos, o que repercute nos


usos e atividades desenvolvidas nessas cidades-patrimônio e nas possibilidades
reais de conservação. Essa concepção de cidade-monumento “possibilitou a
construção de um quadro conceitual e metodológico para desenvolvimento de
ações que até hoje marcam profundamente a instituição” (Sant’Anna, 1995: p.
117).

A partir dos anos 1980 se inicia um processo de revisão crítica dos


procedimentos de instrução dos tombamentos e dos critérios de seleção, quando
passa a reivindicar-se maior transparência e legitimidade científica aos processos
de valoração dos bens culturais. Desta forma, no que se refere aos tombamentos
de cidades-patrimônio, a grande mudança na prática de seleção se refere aos
critérios estéticos que são deixados de lado e passam a ser fundamentados
pelos valores históricos dos bens. Assim, ocorreu uma mudança de conceito, a
cidade-patrimônio passou a ser concebida como “documento histórico, um objeto
cultural vinculado também à história, à etnografia, à arqueologia, ao urbanismo
e a outras disciplinas, além da história da arte e da arquitetura, como era usual”
(Sant’Anna, 1995, p. 215), temos então, a cidade-documento.

Assim, estas não se constituíam mais como obra de arte, mas sim como um
documento que informa sobre a ocupação do território brasileiro e sobre os
processos históricos de produção do espaço. Tem-se, então, pela primeira vez o
tombamento de áreas consideradas sem valor artístico, mas que representavam
situações sociais e econômicas que marcaram a evolução das cidades brasileiras.

Geograficamente, até então as cidades-patrimônio concentravam-se no


Sudeste e no Nordeste – particularmente nos estados de Minas Gerais e Bahia.
Desta forma, a década de 1980 se caracterizou pela expansão das cidades-
patrimônio para as regiões Centro-Oeste e Sul.
406 Pereira D. C.

Contudo, a partir dos anos 1990, o IPHAN sucumbiu novamente à seleção


de bens culturais pelo gosto dos arquitetos, aliás, tais práticas tenderam até a se
acentuar com a exacerbação dos valores ditados pelo neoliberalismo, o capital
e o lucro, inserindo não só as cidades-patrimônio, mas a maioria das cidades
brasileiras, em um espaço de disputas do mercado global. Desta forma, se
fortalece a apropriação do patrimônio como mercadoria, empregando critérios
para sua transformação em produto, visando o consumo visual, guiados por
padrões de beleza ditados pelo mercado. Conforme Motta (2000, p. 17), no dia
“15 de março de 1990, quando mudou o governo federal, iniciou-se a implantação
da política de apropriação do patrimônio para o mercado de consumo”.

Como apontado por Chuva (2013)2, no que se refere aos discursos de


valoração nos anos 1990, é necessário considerar que os técnicos não tinham
uma posição única, as tensões e posições antagônicas eram constantes. Assim,
mesmo havendo o conceito de cidade-documento que predominou na instrução
dos processos de tombamento em certo momento, ele não foi hegemônico,
conquistou apenas parte dos técnicos. Estes técnicos foram superados, mas não
houve o retorno à cidade-monumento, não se ignorou completamente a história
da ocupação do território, talvez o que seja significativo, mas os valores estéticos
voltaram a predominar (informação verbal).

No século XXI3 o IPHAN passa a buscar novos caminhos para a preservação


do patrimônio cultural, assumindo, efetivamente, a noção de “patrimônio
cultural”, em detrimento das noções de “patrimônio artístico” ou “patrimônio
histórico”, como norteadora de princípios, estratégias, programas e instrumentos

2
Informação fornecida por Márcia Chuva, Técnica do IPHAN entre 1985 e 2005, em entrevista
ao autor (Rio de Janeiro, setembro de 2013).
3
No período analisado entre 2001 e 2012, quando termina as gestões de Luis Fernando de Almeida
e Dalmo Vieira Filho, respectivamente, como Presidente do IPHAN e Diretor do Departamento
de Patrimônio Material e Fiscalização (DEPAM/IPHAN).
Uma Experiência de Patrimonialização 407

institucionais, mesmo que essas noções anteriores ainda não tenham sido
totalmente superadas e eventualmente sejam percebidas nos discursos
institucionais de valoração. Conforme Porta (2012), a nova política nacional de
preservação do patrimônio prioriza as seguintes diretrizes: participação social;
reinserção dos bens culturais na dinâmica social; qualificação do contexto dos
bens culturais; e promoção do desenvolvimento local.

No que se refere aos tombamentos de cidades-patrimônio entre 2001 e


2012, o período foi marcado pela busca em formar um conjunto de cidades que
expressem a formação do território brasileiro. Desta forma, conforme Pereira
(2015), ocorreu uma mudança de conceito: da cidade-monumento – relíquia
e paradigma da civilização material que a nação brasileira construiu – para a
cidade-documento – objeto rico de informações sobre a vida e a organização
social dos brasileiros nas várias fases da sua história −, e por fim, para a
cidade-território – um fragmento do espaço capaz de concatenar o processo
de ocupação do território brasileiro com os principais processos econômicos,
eventos históricos, produção artística e a sua formação geomorfológica natural.
Assim, pretendeu-se atribuir valor, coerência, complementaridade e coesão às
cidades-patrimônio tombadas, tanto entre os tombamentos atuais, como entre
estas e as cidades-patrimônio tombadas nos períodos anteriores.

É nessa nova conjuntura das políticas públicas de preservação das cidades-


patrimônio no século XXI que se insere o caso analisado neste artigo.

O ESTADO DE SÃO PAULO NO MAPA


DAS CIDADES-PATRIMÔNIO

Mesmo compreendido o processo de construção da cidade-patrimônio no Brasil, não


se pode abordar o caso de Iguape sem antes entender o lugar que o estado de São Paulo
historicamente ocupou no mosaico que pretendeu constituir a identidade nacional.
408 Pereira D. C.

Assim, o estado herdeiro da Capitania de São Vicente, portanto, onde se


encontram alguns dos núcleos urbanos mais antigos do país, chegou ao século
XXI sem nenhuma cidade-patrimônio reconhecida pela União. Esse fato se
deve a uma política específica desenvolvida pela Superintendência estadual
que delegou os tombamentos ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), como
forma de fortalecer o conselho estadual e de se preservar de questões conflitantes.

Marins (2008) ressalta que nem mesmos os intelectuais paulistas foram


capazes de valorar o seu patrimônio nos anos iniciais do IPHAN. Mário de
Andrade considerava a arquitetura tradicional das cidades mineiras, baianas
e pernambucanas como “maravilhosas e espantosas”, e que em São Paulo se
deveria tombar o pouco que restava do período seiscentista e setecentista, com
referência à arquitetura colonial com elementos do barroco, negligenciando
todo um patrimônio em arquitetura neoclássica e eclética que são os grandes
representantes da cultura paulista.

Ainda segundo Marins (2008), quando o IPHAN iniciou sua atuação no


estado, a própria capital paulista ainda resguardava significativos exemplares de
edificações em taipa, além de vários municípios do interior que, sem o respaldo
das políticas de preservação, viram seus bens culturais serem desmantelados na
segunda metade do século XX. O patrimônio de Iguape só sobreviveu porque
foi, posteriormente, submetido à tutela do órgão de proteção estadual e por se
constituir como um forte elemento de identidade para a população local.

Os primeiros bens registrados no livro de tombo do IPHAN referentes ao


patrimônio paulista foram as Coleções arqueológicas, etnográficas, artísticas e
históricas do Museu Paulista da Universidade de São Paulo e a Capela de São
Miguel Paulista, em 1938. Posteriormente se deram sucessivos tombamentos
de bens isolados, porém, as cidades-patrimônio só vieram em 2009 e 2010,
respectivamente Iguape e São Luiz do Paraitinga (Figura 1).
Uma Experiência de Patrimonialização 409

Figura 1 - Mapa das cidades-patrimônio tombadas por Unidade da Federação e por século.
410 Pereira D. C.

Ainda nesse sentido, IPHAN (2009b) destaca que:

“O tombamento de Iguape representa a oportunidade de corrigir


uma lacuna que o patrimônio histórico nacional guarda em relação
a esta região do Estado de São Paulo. Contextualizar a formação
histórica e cultural da região, constituindo uma base sobre a qual
se apoia a presente proposta, com possibilidades de outros tom-
bamentos que se encontram em fase de estudo, com intuito de se
estabelecer um sistema patrimonial do Vale do Ribeira coerente
e inter-relacionado. Neste caso almeja-se fazer do que seria uma
dívida, expressa na ausência do tombamento federal, uma opor-
tunidade de tratar a questão de forma mais completa, consolidando
a metodologia de uma visão sistêmica, do olhar para o todo, na
ótica de uma perspectiva integrada de um território que guarda os
testemunhos de uma rica história, plena de episódios importantes
da formação do Brasil colonial e imperial” (IPHAN, 2009b: p. 20).

Desta forma, o reconhecimento de Iguape como patrimônio cultural nacional


decorreu do Plano de Ação “Paisagem Cultural: inventário de conhecimento do
patrimônio cultural no Vale do Ribeira”, iniciado em 2007 e coordenado pela
arquiteta Flávia Brito do Nascimento, pela geógrafa Simone Scifoni e pela
antropóloga Simone Toji no âmbito das ações dos amplos inventários promovidos
nacionalmente pelo Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização
(DEPAM) do IPHAN.

A escolha do Vale do Ribeira por essas técnicas se justificou por esta região
do estado de São Paulo apresentar características históricas e culturais que
reuniam comunidades caiçaras, quilombolas, indígenas, grupos de imigrantes
e pequenos agricultores familiares, por ser o lugar dos maiores remanescentes
de biodiversidade tropical e patrimônio espeleológico do estado, onde situam-
Uma Experiência de Patrimonialização 411

se algumas das cidades mais antigas do país e a maior concentração de sítios


arqueológicos de São Paulo. Toda essa riqueza patrimonial, até então, sem
nenhuma proteção em âmbito federal.

Conforme o IPHAN (2009a), o plano de ação foi desenvolvido sobre duas


premissas básicas: (1) a priorização de espaços ainda não contemplados por
políticas federais de patrimônio cultural, e (2) a gestão compartilhada, em rede,
por meio de processos participativos e de articulação política. Ressaltando
que no centro do debate estava a ideia de cultura como um direito, incluída na
dimensão da cidadania, o que permitiu redirecionar o foco das ações dos objetos
em si mesmos, para o conjunto da sociedade.

Essas premissas, associadas à riqueza e à diversidade do patrimônio cultural


inventariado, colocaram a dificuldade de compreendê-los pontualmente,
reconhecendo que os mesmos deveriam ser interpretados com uma visão em
conjunto, o que justificou a adoção pelo estudo a partir do conceito de paisagem
cultural4, ações totalmente concatenadas às novas políticas desenvolvidas em âmbito
nacional pelo IPHAN. O inventário resultou na identificação de expressões culturais
em seis municípios: Cananeia, Eldorado, Apiaí, Iguape, Registro e Iporanga.

Visando a construção de um pacto de gestão 5,a equipe técnica da


Superintendência do IPHAN em São Paulo passou a se reunir com diversas

4
Em 2009 a Portara nº 127 do Iphan institucionaliza a Chancela da Paisagem Cultural como
instrumento de seleção e valorização da paisagem cultural brasileira, definida na portaria
em seu Artigo 1º como “porção peculiar do território nacional, representativa do processo de
interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas
ou atribuíram valores” (IPHAN, 2009a, p.17).
5
No que se refere ao pacto a ser firmado, a portaria nº 127, de 30 de abril de 2009, assim o define
nos Artigos 4º e 5º: A chancela da Paisagem Cultural Brasileira implica no estabelecimento de
pacto que pode envolver o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada, visando a gestão
compartilhada da porção do território nacional assim reconhecida. O pacto convencionado para
proteção da Paisagem Cultural Brasileira chancelada poderá ser integrado de Plano de Gestão
a ser acordado entre as diversas entidades, órgãos e agentes públicos e privados envolvidos, o
qual será acompanhado pelo IPHAN. (IPHAN, 2009a, p.17).
412 Pereira D. C.

instituições governamentais atuantes no Vale do Ribeira em âmbito federal,


estadual e municipal, com organizações não governamentais, movimentos
sociais, associações de moradores, sindicatos, cooperativas, universidades,
entre outros setores.

Em decorrência desses primeiros contatos – que tiveram como objetivo


apresentar a proposta da Paisagem Cultural do Vale do Ribeira, levantar questões
sobre a proteção do patrimônio cultural na região e a articulação de ações
conjuntas −, foi realizado o “Encontro de Trabalho Paisagem Cultural do Vale
do Ribeira: Planejamento Estratégico” em Iguape.

Esse encontro teve como objetivo reunir as instituições, as municipalidades e


a sociedade civil para traçar estratégias conjuntas de atuação na área de proteção
do patrimônio do Vale. O IPHAN (2009a) destaca, entre os resultados obtidos,
a constatação da relação intrínseca entre as expressões culturais materiais e
imateriais, entre os processos de ocupação do território e do rio Ribeira de
Iguape, este como elemento de mediação na construção da identidade, da cultura
e da história regional, o elemento entorno do qual se funde a memória coletiva
regional e a necessidade de implementação de políticas públicas que garantam
a sua salvaguarda.

No encontro surgiram, ainda, demandas no sentido da necessidade de ampliação


do que a direção do IPHAN denominava à época de “estoque patrimonial”,
particularmente no estado de São Paulo, aumentando a representatividade dos
bens paulistas no mapa do patrimônio cultural brasileiro e a necessidade de se
estabelecer espaços de diálogos, de trocas de experiências e de ações articuladas
entre as instituições que atuam nas localidades e o instituto federal.
Uma Experiência de Patrimonialização 413

Desta forma, tendo como finalidade atender as demandas sociais e contribuir


para a preservação do patrimônio cultural local, complementando e integrando
outros instrumentos de proteção, foi consenso entre os participantes do encontro
que, além da chancela da Paisagem Cultural do Vale do Ribeira, deveriam se
priorizar o tombamento federal da cidade de Iguape e dos bens culturas da
imigração japonesa no Vale do Ribeira.

Para atender tais demandas, e em virtude das comemorações dos 100 anos
da imigração japonesa para o Brasil, os estudos da equipe técnica voltaram-se
para essa temática, resultando no Dossiê de Tombamento dos Bens Culturais da
Imigração Japonesa no Vale do Ribeira6 e no Dossiê de Registro da Celebração
do Tooro Nagashi7. Ambos foram encaminhados respectivamente ao DEPAM
e ao Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) em 2008, contudo, apenas
o primeiro foi reconhecido como patrimônio nacional, o segundo não recebeu
parecer favorável, justificado pela falta do caráter de ancianidade, visto que a
celebração ocorre apenas desde os anos 1950.

Atendendo a outra demanda do encontro de trabalho, nos meses seguintes a


equipe técnica se dedicou na elaboração do Dossiê de Tombamento do Centro
Histórico de Iguape e na finalização do Dossiê da Paisagem Cultural do Vale
do Ribeira. No entanto, apenas o primeiro foi encaminhado ao DEPAM e
tombado em 2009, o segundo não logrou apoio interno na superintendência,
pois entenderam que a área de proteção era demasiadamente extensa, e o mesmo
foi arquivado.

6
Conjunto de 14 bens culturais nos municípios de Iguape e Registro, importantes testemunhos
da ocupação do território brasileiro através da implementação de três colônias japonesas no
país: Katsura, Iguape e Sete Barras.
7
Rito celebrado por descendentes de imigrantes japoneses que lançam nas águas do rio Ribeira
velas acesas em respeito ao Dia de Finados.
414 Pereira D. C.

Deste modo, a primeira cidade-patrimônio paulista foi reconhecida como


patrimônio nacional no contexto:

“[...] das cidades do território paulista constituídas a partir de


processos históricos anteriores ao café, seja exploração aurífera,
seja a rizicultura, ou mesmo a própria ocupação do território, o
que no que se refere aos valores memoriais, incorreu na lógica
construída expressa na atualidade em Iguape, há inúmeras sobre-
posições e rearranjos espaciais construídos ao longo de muitas
décadas, conformando o que se encontra hoje naquelas cidades”
(IPHAN, 2009b, p. 16).

Logo, vale ressaltar que Iguape, mesmo se constituindo como cidade colonial,
foi tombada não repetindo a lógica das cidades-monumento como relíquia e
paradigma da civilização material que a nação brasileira construiu, mas como
um bem que explica a formação territorial de uma região – o Vale do Ribeira –
ou mesmo do país, ao se vincular ao processo de fundação de cidades a partir
da exploração econômica do ciclo do ouro anterior a descoberta das “minas
gerais”, ou seja, como cidade-território.

Assim, o Conjunto Histórico e Paisagístico da Cidade de Iguape, tombado


em dezembro de 2009, formado por três setores (figuras 2 e 3), testemunha:

“[...] a relação intrínseca da cidade com as águas, abrigando usos


tradicionais do espaço, os quais foram reduzidos com o passar dos
anos, mas ainda se encontram presentes e expressos na paisagem
local, como é o caso da pesca artesanal. Uma paisagem marcada
pelo cotidiano de pescadores, seus apetrechos de pesca como
canoas coloridas, atracada junto à margem, e redes de pesca.
Um cotidiano marcado pelos fluxos da natureza, o tempo da lua,
das marés, dos ventos e das chuvas que influenciam na produção
pesqueira” (IPHAN, 2009b, p. 213).
Uma Experiência de Patrimonialização 415

Figura 2 - Mapa do Conjunto Histórico e Paisagístico da Cidade de Iguape (SP).


416 Pereira D. C.

Figura 3 - A – Setor Núcleo Urbano; B – Setor do Morro da Espía; C e D – Setor Portuário.

Deste modo, a associação formada pela cidade antiga8, o Morro da Espia9 e o


conjunto portuário10 representantes do auge das atividades econômicas ligadas ao

8
O Setor do Núcleo Urbano, o centro antigo da cidade, que caracteriza-se pela singularidade do
seu traçado urbano em forma de elipse de pontas alongadas, dominado pela Praça da Basílica,
pela composição da arquitetura que lhe confere aspecto de conjunto e ao mesmo tempo são
testemunhos dos sucessivos processos históricos e culturais de sua ocupação, além da riqueza
dos marcos naturais que a circulam e dela fazem parte(IPHAN, 2009b).
9
Setor do Morro da Espia, um maciço cristalino litorâneo de constituição granítico-gnáissico
que aparece em posição isolada em meio a vasta planície de Iguape-Cananeia . Esse patrimônio
natural possui relação intrínseca com a história da ocupação humana em Iguape, primeiramente
por constituir-se como fonte de água doce que abasteceu os primeiros grupos humanos que se
instalaram no local, e também do ponto de vista simbólico-religioso, pois em 1646 foi lavada
em suas águas a imagem do Bom Jesus, achada na Praia da Jureia. O local, um pequeno riacho
circundado de rochas, ficou consagrado como local mítico (IPHAN, 2009b).
10
Setor Portuário, um conjunto formado por áreas do antigo Porto da Ribeira, o Canal do Valo
Grande, o Porto Grande e suas respectivas margens e zona de orla marítima, até o canto do Morro
da Espia. O primeiro corresponde aos remanescentes do porto fluvial do século XVII, algumas
poucas ruínas e a Capela de São João Batista, construção de 1946 em substituição à antiga, de
1870. Já o Valo Grande corresponde a uma obra de engenharia do século XIX que teve como
objetivo ligar o porto fluvial ao marítimo e o Porto Grande às margens do Mar Pequeno, junto
à cidade de Iguape (IPHAN, 2009b).
Uma Experiência de Patrimonialização 417

ouro e ao arroz permanecem contemporaneamente redimensionadas em função


do espaço vivido, no qual as águas exercem, ainda, um papel fundamental. O
Morro da Espia continua sendo uma importante fonte de recursos hídricos para
os habitantes de Iguape e lugar de peregrinação para os devotos do Bom Jesus.
A navegação fluvial e marítima no Mar Pequeno e no Valo Grande sobrevive,
mesmo que em menor escala, nos pescadores que mantêm seus barcos também
como meio de transporte e circulação, além de passeios turísticos.

Assim, Iguape se constitui em um dos melhores exemplos de espaço


produzido pela ação criadora do homem que domina e transforma a natureza,
que provê recursos para a sua atividade criativa e produtiva. Um espaço que, a
partir de uma proposta de interpretação de Lefebvre (2001), se constitui como
obra e produto social gerado a partir do trabalho na materialização das condições
de vida da humanidade e da reprodução social com a natureza primeira.

CONSTRUINDO VALORES A PARTIR DA EDUCAÇÃO PATRI-


MONIAL E DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL

Para atender a demanda de tombamento da cidade de Iguape, em 2008 foi


realizada a “Oficina de Educação Patrimonial Mapa do Patrimônio de Iguape”
com o objetivo de envolver a população local no processo de identificação
dos bens culturais da cidade, auxiliando na delimitação da poligonal de
tombamento. Assim, a oficina pretendeu constituir-se como uma estratégia de
complementação da pesquisa de gabinete, e, mais que isto, pretendeu ser um
momento de estreitamento da relação do IPHAN com a população moradora
de Iguape, que produz e vive cotidianamente este espaço que pretendia-se
inventariar e salvaguardar.

Para tanto, é importante destacar que se entende aqui que a Educação


Patrimonial deve:
418 Pereira D. C.

“[...] aparecer como um componente essencial de todo o processo de


identificação do patrimônio, o que significa incorporá-la como atividade
pari passu e integrada às pesquisas de tombamento e/ou de inventário
do patrimônio imaterial. Neste caso ela se revela como uma possibi-
lidade e um espaço para envolver a comunidade local na construção
de um patrimônio compartilhado, considerando as necessidades e as
expectativas das comunidades envolvidas, o que implica uma construção
que é coletiva e não uma ação burocraticamente implantada de cima
para baixo pelas instituições” (SCIFONI, 2012, p. 37).
Deste modo, para a autora, mostra-se importante a construção de ações
de forma compartilhada com as comunidades, a partir de suas necessidades e
demandas, envolvendo diversos segmentos públicos e da sociedade civil, bem
como uma multiplicidade de estratégias, as quais têm que ser determinadas a
partir de problemáticas de cada local.

Realizada em parceria com a Prefeitura Municipal de Iguape, o IPHAN (2009b)


destaca que através da oficina buscou-se criar um espaço de interlocução com a
população local, convidando a comunidade a trazer suas contribuições a partir
de relatos e histórias de vida, fotos antigas, documentos, desenhos, ou mesmo
indicando lugares representativos de sua história para construir o mapa que
sinalizasse os bens culturais que devessem ser objeto de proteção do poder público.
Nesta Oficina foram identificados diversos imóveis, lugares, monumentos e
manifestações do patrimônio imaterial, todos reconhecidos pela população como
importantes e representativos de sua história e de sua cultura (figuras 4 e 5 e Quadro
1). Os oficineiros apontaram como parte de suas referências culturais celebrações
como a do Bom Jesus de Iguape, de Nossa Senhora do Rocio, do Robalo, do
Carnaval e de Corpus Christi e o modo de fazer dos tapetes de serragem, das violas
caiçaras, das rabecas e das redes de pesca, formas de expressão como o fandango
caiçara11, além de uma infinidade de práticas cotidianas em que se destaca a pesca.
11
Registrado como patrimônio nacional em 2012.
Uma Experiência de Patrimonialização 419

Vale ressaltar que esse conjunto variado e rico de prática que aparecem nas falas da
comunidade não possuem aspecto de folclore, mas sim como práticas arraigadas e
disseminadas no cotidiano, características vivas do modo de ser iguapense.

Figura 4 - Mapa da Oficina de Educação Patrimonial Mapa do Patrimônio de Iguape


(SP) – Setor Núcleo Urbano.
420 Pereira D. C.

Figura 5 - Mapa da Oficina de Educação Patrimonial Mapa do Patrimônio de Iguape


(SP) – Fora do Setor Urbano.
Uma Experiência de Patrimonialização 421

Quadro 1: Bens inventariados pelos participantes da Oficina Mapa do Patrimônio de Iguape


Nº Bem Nº Bem
1 Casa dos Jesuítas 19 Fábrica Única
2 Igreja de São Benedito 20 Morro da Espia
3 Praça de São Benedito / Chafariz 21 Capela de São João
4 Correio Velho 22 Porto da Ribeira
5 Hotel São Paulo 23 Ruínas Porcina
6 Colégio Vaz Caminha 24 Fonte do Senhor
7 Sobrado dos Toledos 25 Cristo
8 Casa da Banda 26 Sedes de Chácaras
9 Casa dos azulejos portugueses 27 Capela Restaurada
10 Casa de Fundição 28 Chácara Yanaguisawa
11 Câmara Municipal 29 Pirá
12 Palacete Lima 30 Antiga propriedade Carneiro
Muniz
13 Basílica do Bom Jesus 31 Porto Grande
14 Oficina Cultural 32 Porto da Balsa
15 Igreja do Rosário 33 Passarela
16 Fórum 34 Rocio
17 EMEF Benedito Rosa 35 Sambaqui
18 Cemitério
Fonte: IPHAN, 2009b.

No âmbito do patrimônio material, a maioria dos bens encontram-se no


denominado Setor Núcleo Urbano, área de proteção em nível estadual desde
1974, contudo, vale destacar que os oficineiros também apontaram um grande
número de bens fora desse perímetro, como o Porto da Ribeira, a Capela de
São João, a Fábrica Única e o Sobrado dos Pirá, testemunhos dos diversos
ciclos econômicos que marcaram a história do município, assim como a de sua
expansão urbana. Foram apontadas ainda referências culturais fora do perímetro
urbano de Iguape, como a Vila do Icapara, a primeira sede do município.
422 Pereira D. C.

A Oficina foi de extrema importância para definir o perímetro de tombamento,


uma vez que bens que do ponto de vista de uma abordagem tradicional poderiam
ser considerados “sem valor material” foram incluídos pelos seus fortes apelos
identitários e por se constituírem em sustentáculo de memórias coletivas, como
a Capela de São João, que, mesmo distante do Núcleo Urbano e se constituindo
como uma reconstrução do século XX, foi incluída na poligonal de tombamento.

No sentido de continuar promovendo ações educação patrimonial e


fomentando a participação social na gestão do patrimônio cultural da região, no
mesmo período foi inaugurada de forma pioneira a primeira Casa do Patrimônio
do estado de São Paulo em Iguape, estruturada antes mesmo da proteção federal.
O Projeto Casas do Patrimônio tem como objetivo:

“[...] ampliar a capilaridade institucional do IPHAN e interligar


espaços que promovam práticas e atividades de natureza educativa
de valorização do Patrimônio Cultural, as Casas do Patrimônio
se fundam na necessidade de estabelecer novas formas de relacio-
namento, de acordo com uma perspectiva transversal e dialógica,
entre o órgão, a sociedade civil e os poderes públicos locais”
(FLORÊNCIO; CLEROT & RAMASSOTE, 2014, p. 36).

Desta forma, como apontam os autores, as Casas do Patrimônio possuem um


desafio: ampliar os espaços de diálogo com a sociedade a partir da Educação
Patrimonial, multiplicando locais de gestão compartilhada e de construção
de políticas públicas de patrimônio cultural, fomentando novas práticas de
preservação, sobretudo por meio de ações educativas formais e não formais,
em parceria com escolas, agentes culturais, instituições educativas e demais
segmentos sociais e econômicos.

Em Iguape, a implantação da Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira foi


Uma Experiência de Patrimonialização 423

viabilizada devido, principalmente, a uma parceria entre o IPHAN e a Prefeitura


Municipal. A formalização da iniciativa foi feita por meio de um Termo de
Cooperação Técnica, cujo objetivo principal consistia em conformar um espaço de
interlocução com a comunidade local, visando propiciar o debate e a participação
social na gestão, proteção e valorização do patrimônio cultural. Segundo o
documento, compete ao IPHAN a organização e gestão das atividades educativas,
além de orientação técnica e apoio na execução de ações de iniciativa da Prefeitura,
e à Prefeitura, a administração e gestão da Casa de Patrimônio, podendo também
desenvolver atividades e eventos no espaço, de comum acordo com o IPHAN.

Esse processo participativo que envolveu ações de Educação Patrimonial


durante a instrução do processo de tombamento de Iguape e a abertura da Casa
do Patrimônio antes da proteção federal, logrou o reconhecimento por parte do
Conselheiro Relator do Conselho Consultivo do Patrimônio do IPHAN à época,
que considerou que:

“[...] o ato do Tombamento em si compreende aplicação de procedi-


mentos cuja metodologia pode e deve estar sendo permanentemente
aperfeiçoado e que este caso em especial pode representar mais um
passo no sentido dos necessários ajustes que indicam o caminho de seu
aperfeiçoamento metodológico e a oportunidade de consolidação do
conceito de paisagem cultural. Toma-se, portanto, necessário envidar
imediatos esforços para fortalecer a pioneira experiência que ali se
verifica, da criação da Casa do Patrimônio de Iguape, garantindo aos
técnicos locais mais uma estrutura que venha permitir uma verdadeira
integração com a comunidade, bem como na condução de trabalhos
de proteção do acervo, na medida em que favoreça parcerias entre
os órgãos municipais, estaduais e o IPHAN” (IPHAN, 2009c, p. 23).
424 Pereira D. C.

Contudo, é importante ressaltar que com a saída do IPHAN daquelas


técnicas que realizaram a instrução do processo de tombamento, houve uma
descontinuidade nas ações participativas da Casa, que hoje não desenvolve mais
atividades educativas, passando a dedicar-se apenas a orientações técnicas de
fiscalização; na prática, se constitui hoje como um Escritório Técnico do IPHAN
no Vale do Ribeira.

Associado a isso, foi possível aferir em trabalho de campo, através de


entrevistas, que a parceria com a prefeitura também apresentou problemas.
Para Gafazi (2013), a administração municipal que assumiu em 2012 se
mostrou menos comprometida com as questões que envolvem a cultura local,
e consequentemente ações de educação patrimonial (informação verbal) 12.

Nesse mesmo sentido, para Lourenço (2013), a Casa do Patrimônio do


Vale do Ribeira não manteve a continuidade das ações implementadas pelas
técnicas envolvidas nos inventários realizados na região entre 2007 e 2009, não
desempenhando mais a função de espaço de referência para a pesquisa e para
ações compartilhadas de educação, gestão e promoção do patrimônio da região,
se constituindo hoje apenas como espaço técnico e burocrático (informação
verbal)13.

Tal fato mostra-se muito preocupante, pois, ainda segundo o que foi aferido
em campo, o patrimônio cultural e natural de Iguape é associado, por muitos, a
um processo de estagnação econômica, ou seja, para estes tais bens representam
um testemunho no espaço de um momento que muitos desejam superar, o que
tem gerado conflitos na atualidade em relação à salvaguarda desse patrimônio.

12
Informações concedidas por Valéria Gafazi, arquiteta da Casa do Patrimônio do Vale do
Ribeira, em entrevista ao autor (Iguape, outubro de 2013).
13
Informações concedidas por Anísia Lourenço, presidente da Associação de Artesãos de Iguape,
em entrevista ao autor (Iguape, outubro de 2013).
Uma Experiência de Patrimonialização 425

Entende-se, assim, que as ações de Educação Patrimonial seriam de extrema


relevância para superar tais conflitos, ou melhor, seria a única possibilidade
para a superação dessa associação do patrimônio com a decadência econômica
do Vale do Ribeira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A patrimonialização dos bens do Vale do Ribeira, que tiveram suas salvaguardas


garantidas a partir da realização de Inventários de Conhecimento, mostra
que se inventariou um número muito maior de bens – sejam cidades, bens
isolados, paisagens ou manifestações culturais do patrimônio imaterial –, do
que efetivamente foi reconhecido oficialmente, e isto se deve, em grande parte,
às limitações institucionais em recursos financeiros e humanos necessários para
garantir a gestão desses bens, o que ficou claro com o Plano de Ação “Paisagem
Cultural: inventário de conhecimento do patrimônio cultural do Vale do Ribeira”,
que propôs a chancela da Paisagem Cultural do Vale do Ribeira e o registro do
Tooro Nagashi, ambos sem sucesso.

Vale destacar também, que se deixou de inventariar importantes patrimônios,


como os da cidade de Cananeia – que ainda hoje abriga em seu espaço um
importante conjunto urbano produzido e reproduzido a partir dos mesmos
processos socioeconômicos e culturais protegidos em Iguape, Paranaguá e
Antonina –, também por falta de recursos financeiros, humano e de tempo. Seu
tombamento garantiria a preservação de um conjunto contínuo de cidades entre
o sul do estado de São Paulo e o norte do Paraná, o que proporcionaria coesão
ao importante processo do início da ocupação do sul do território brasileiro a
partir da gênese do ciclo do ouro, anterior ao das “minas gerais”.

Desta forma, a preservação das cidades-patrimônio ainda coloca desafios, é


preciso manter um debate que vá além do equacionamento das questões estéticas
426 Pereira D. C.

e históricas e que abarque as questões culturais em sua total amplitude, partindo


de novas premissas. É necessário continuar destacando a relação com o território,
que tantas vezes explica a existência e a evolução das cidades, relação esta
que se constitui como uma dessas novas premissas, assim como a valorização
das evidências dos ciclos econômicos, dos eventos históricos, as formações
geomorfológicas e o patrimônio natural. O processo de patrimonialização precisa
ser entendido para além de pesquisas de gabinete, mas como um momento em que
as populações locais são ouvidas para o reconhecimento dos seus sustentáculos
de identidade, uma vez que, é na escala local que de fato se dá a gestão e a
preservação do patrimônio cultural.

Por fim, é preciso que a cultura seja entendida como uma dimensão maior
desses lugares patrimonializados e das sociedades que as produzem, aumentando,
assim, o caráter estratégico da preservação das cidades-patrimônio como fator de
desenvolvimento social e econômico no século XXI, e, sobretudo, é necessário
que políticas como as de “aumento do estoque patrimonial” e de “melhoria da
representatividade do patrimônio cultural”, apreendidas nos primeiros anos do
século XXI, tenham continuidade para que se possam alcançar a democratização
do patrimônio cultural e para garanti-lo como um direito social.

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