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Resumo Abstract
Em 1995, naquilo que In 1995, candidates for
vamos considerar como admission at the Federal
"variações em torno do mesmo University of Santa Catarina
tema", foram dadas três were required to write an essay
possibilidades de desenvolvi- about the situation of
mento temático da redação do contemporary woman, based
Vestibular da UFSC: uma visão on three selected texts. The
machista, uma perspectiva analysis of a sample of their
feminista e uma matéria writings may serve as a warning
jornalística, mais imparcial, of the difficulties young people
sobre a presença da mulher no have in dealing with their own
mercado de trabalho.
lives. Especially of their
A partir das escolhas readings of femininity and
os(as) vestibulandos(as) desen- masculinity.
volveram suas idéias, chegando
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a conclusões como "ha mulheres Kaywords: femininity; can-
que são verdadeiros homens" ou didates for admission; linguistic
"as mulheres são os seres mais competition.
inteligentes das espécies vivas".
Uma amostragem pode servir de
alerta para a dificuldade do(a)
jovem expressar opiniões sobre
questões que lhes dizem respeito
diretamente e como a sua leitura
do feminino e do masculino na
sociedade contemporânea é
ainda hoje preconceituosa ou
idealizada.
A consciência do poder
da mulher talvez tenha se
manifestado em, uma nada
discreta observação final de
um(a) candidato(a), que serve de
titulo: Se for mulher na banca te5
ferrado.
Palavras-chave: feminismo,
vestibular, competência linguis-
tica.
188
Esta obsessão temática dos professores ou professoras que
elaboraram as provas do vestibular da UFSC, se não serviu para
avaliar o domínio linguístico, nem o uso consciente da linguagem,
são um instrumento importante para se conhecer, pelo que tem
de identidade cultural, a representação do masculino e do
feminino em um determinado contexto contemporâneo.
Optamos por apresentar neste Fazendo gênero, não uma
análise, mas uma amostragem destes textos. Há que se ressaltar
que sou professora de Literatura e o meu objeto está muito mais
para aquilo que Julia Kristeva desenvolve como uma
produtividade dita texto. Sei, no entanto que, enquanto avaliadora
de uma etapa da prova de Português, e mesmo considerando a
indissociabilidade forma/conteúdo, a leitura aprofundada das
questões postas neste contexto fica diluída em desacertos formais.
Trago este metatexto como possibilidade de uma futura reflexão
teórica através de uma abordagem interdisciplinar, especialmente
com as Areas de psicologia, sociologia, comunicação e pedagogia,
que leve a conclusões não definitivas mas mais consistentes.
Começo por mostrar a vocês o que os vestibulandos e as
Vestibulandas escreveram no Vestibular de 1993, a partir das
relações familiares no grupo doméstico:
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e recatadas, não passando a meio e não deixando os outros
passarem.
Muitos disseram que trabalhar fora só é importante porque
a mulher traz dinheiro para casa e assim ajuda o marido. Não
foram poucos os que argumentaram que o homem só deve ajudar
a mulher nas tarefas domésticas se a mulher trabalhar fora, pois,
caso contrario, ela pode dar conta de tudo sozinha. Por que não
mencionar aqueles que resolveram dar uma debochada ou
tresloucada lição de filologia? A palavra femenino é formada de
duas partes: fé e menos, possivelmente os antigos queriam dizer
que femenino é aquela que fé de menos. Outro ponderou que
"femenina" tem alguma coisa a ver com a fé das meninas. E
completa: Nós, homens, designamos de femeninas os outros seres.
Escrevemos porque lemos, vemos, ouvimos, conversamos,
vivemos. 0 que lêem, vêem, ouvem, conversam, vivem quando
o conhecimento é elaborado através destas bricolagens?
Joana D'Arc ficou famosa porque queimou seus soutiens em praga
pública.
Existem dois sexos na humanidade: o masculino usado pelos homens
e o feminino usado pelas mulheres.
A nossa cabeça tinha que ser redonda para o pensamento poder circular.
Uma das escritoras feministas mais famosas foi Madame Bovary.
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A emancipação da mulher passa por este rito de passagem:
de dona de casa à casa sem dono.
Registro igualmente uma redação com bom domínio
lingüístico e maturidade que foi concluída com a seguinte reflexão,
que se não avança teoricamente, mostra pelo menos um
conhecimento do que a vem a ser gênero, em seu sentido amplo:
"Quanto ao resto... O que designa ação, gestos, movimentos,
atitudes, serviços, é sempre um verbo. E os verbos não variam
em gênero".
Por conclusões como estas é que se pode dizer que foi
positiva a possibilidade que a Universidade Federal de Santa
Catarina deu a aproximadamente 35.000 vestibulandos e
vestibulandas em dois vestibulares, de transformarem em
linguagem a sua concepção dos papéis sociais ou a sua leitura
de experiências familiares. Através de clichês, imagens
estereotipadas e idealizadas, cada texto foi a expressão possível
das inserções dos jovens e das jovens nas relações inter-sexuais,
especialmente no que se refere a extratos sócio — culturais.
Trago agora um fragmento de um texto irreverente. Poderia
servir de exemplo de como não se escreve uma redação no
Vestibular, mas opto por mostrá-lo como ilustrador de um ponto
de vista definido e de uma subjetividade exacerbada. Ele pode
ser considerado a síntese de uma postura predominante entre os
candidatos:
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e os candidatos amarrados e confusos. Era para escolher um,
dois, ou precisava-se articular os três em um único texto? A pri-
meira opção eram versos de uma conhecida canção de Wilson
Batista e Haroldo Lobo. A segunda uma frase da feminista
Virginia Woolf e, por último, um fragmento extraído da revista
VEJA (Edição 1352, de 03-08-94) sobre o trabalho da mulher.
Uma visão machista, uma feminista e uma matéria jornalistica,
avaliadora da presença da mulher no mercado de trabalho
brasileiro. Os três textos eram centrados na mulher:
Quero uma mulher
que saiba lavar e cozinhar
e de manhã cedo
me acorde na hora de trabalhar.
(Wilson Batista e Haroldo Lobo)
Possuir algum dinheiro e um espaço individual é condição essencial
para a mulher poder viver a sua identidade.
(Virginia Woolf)
Casar segue sendo a grande aspiração da jovem brasileira. Só que
acoplada a toda uma gama de outros verbos, como trabalhar e ter
independência financeira. (...) No Brasil, a mulher que quer, que precisa
trabalhar acaba dando um salto de trapezista, sem rede de sustentação
— Wilma a ser contratada, primeira a ser demitida, não tem sequer a
garantia de creche ou pré-escola para os filhos. (...) Poder ser mulher,
não ter rótulo, conseguir se movimentar em esferas públicas e privadas
— eis a agenda da mulher de hoje.
(VEJA, Edição 1352, 13-05-1994)
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redação que as agradasse ou as convencesse: Temos que parecer
machistas derrotados, para sermos aprovados, pois esta redação
deve ser corrigida por alguma professora feminista.
Se na redação de 1993, as candidatas e os candidatos
avançaram nas discussões, em 1995 a ênfase e o rumo
encontrados deram-se apenas pelo caminho das diferenças e dos
antagonismos entre os sexos, como se a (mica saída fosse encarar
o mundo de forma machista ou menos machista. Ao exemplificar,
chama-se a atenção para a fragilidade dos argumentos ou para
os equívocos conceituais:
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A mulher vive em conflito. Passou anos com o sonho de achar seu
homem. Agora ela acha e sonha com o modo de perder seu homem e
achar outro e assim consecutivamente.
Como esta reflexão objetiva demonstrar o que representou
para as candidatas ou candidatos pensar e escrever sobre as
papéis sociais e culturais e uma crise da identidade feminina,
optei por destacar especialmente os problemas mais significativos,
para que professoras e professores de primeiro, segundo e terceiro
graus, e por que não a familia, repensem em formas de atuação
que supram as deficiências formais, mas muito mais possibilitem
um questionamento sobre estas "verdades" incorporadas pelas
alunas e pelos alunos que estão acabando de sair da educação
formal e regular. Escrever é trabalho social e ele se aprende. O
diálogo interdisciplinar e a revitalização de discussões, que
passem pela avaliação das praticas familiares e por esferas da
história, da geografia, da ciência, da filosofia, da psicologia e,
especialmente, da sociologia, são os caminhos capazes de fazer
a juventude pensar diferente sobre as diferenças.
Fica evidente, na leitura dos textos, cuja temática passa
pela repetição, que as posturas diante da vida destas futuras
universitárias ou pretensos universitários estão ideologicamente
marcadas pela aprendizagem informal ou por preconceitos
adquiridos pela tradição.
Ressalte-se, mais uma vez, que a opinião esvaziada de
fundamentos científicos e críticos é o principal sintoma da origem
de seus desconhecimentos. Paremos para pensar na desconexão
entre "vida e texto", através de afirmações como:
Porque há muitos homens que escravizam as esposas é que crescem o
número de apartadas e solteironas.
Quando a mulher não tem mais nenhuma opção na vida ainda lhe resta
ser doméstica, cozinheira ou professora.
Fid mulheres que são verdadeiros homens.
pela quantidade de hematomas que se conhece a infelicidade feminina.
As mulheres que dirigem caminhão são lésbicas ou machonas, porque
precisam de força e coragem.
Deus deu à mulher beleza e virilidade.
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A mulher é um ser racial.
0 problema é que a mulher foi descoberta ha pouco tempo.
Os homens não levam o menor jeito para ser mãe.
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máximo conseguido é um conglomerado momentâneo de
palavras:
A mulher é uma verdade insofismável, é a existência de um ser divino,
é a presença de Deus na terra.
Esta redação demonstra o orgulho que sinto por ti, (5 minha mãe!
0 que se pode esperar ainda de dissertações intituladas: A
mulher em seu meio vital brasileiro, Cama, mesa, tanque, trabalho
e amor; Objeto Sensual com QI elevado; Mulher: basculante de
homem; Que trabalho é ser mulher!? Destaco a boa dissertação
que começava e terminava com a imagem Ave Maria, cheia de
graça. Ou desgraças e aquela que baseada no primeiro texto,
intitulada Senior, relatava a situação da Idade Média, quando a
mulher dirigia-se ao marido, empregando a palavra "senior",
transpondo dessa maneira, a ética das relações próprias do
feudalismo para o espaço doméstico. Ao lado destas, que se
destacaram pela diferença, ha aquelas, cujos problemas gráficos
se manifestam já explicitamente nos próprios títulos: A Mulher
assima de tudo; Maxismo; Homem versos Mulher.
Chamamos a atenção para a não capacidade critica para
perceber que alguns títulos ou reflexões, que se dão através de
determinadas palavras ou expressões, permitem a ambigüidade
de sentido. A inocência ou a ingenuidade inicial podem ser um
equivocado caminho para posterior exercício de elaboração
textual, o que parece não lhes preocupar, haja vista a
naturalidade, com que verbalizam as suas avaliações do
cotidiano:
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Se considerarmos as redações dos primeiros vestibulares
não resta dúvida que houve uma melhora significativa. A
explicitação destes problemas, porém, busca demonstrar que,
resguardadas algumas boas exceções e reconhecendo que a
redação no Vestibular é uma forma de pressão para que as escolas
se conscientizem da importância da produção textual, a
massificação das informações produzida pela indústria cultural
e a influência da comunicação de massa têm sido mecanismos
eficazes para que assimilem indiscriminadamente uma suposta
cultura geral, sem o menor suporte critico.
HA exceções e não podemos perder de vista que a nossa
leitura é feita a partir de uma amostragem representativa, mas
não totalitária. Registramos como exemplo de um bom texto,
aquele que apresentou uma interessante reflexão sobre o conflito
da contemporaneidade diante de lugares nunca dantes ocupados:
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E este texto, marcado pela ingenuidade e pela alienação,
tem como contraponto aquele texto que falou de um lugar
determinado, mas que parece ter intuído que as relações de gênero
e a forma concreta que elas tomam nas relações entre homens e
mulheres, são também relações de poder, já que traduzem
controle, conflito, oposição, resistência e luta. Vem dai o
irreverente post scriptum: se for mulher na banca eu tô
ferrado.
Referências Bibliográficas
RAMOS, Tania. 0 texto da tribo. In: Linha D'água, n.10, julho 1996.
USP/SP, p.25-31.
CERTEAU, Michel. Invenção do cotidiano. In: Linha D'água, n.10, julho
1996. USP : Sao Paulo, p.31-46.
QUEIROZ, Vera. Feminino e Literatura. Tempo brasileiro, n. 101, abr./
jun. 1990, p. 5-167.
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