Livro - Jeremiah Abrams - O Reencontro Da Criança Interior
Livro - Jeremiah Abrams - O Reencontro Da Criança Interior
Livro - Jeremiah Abrams - O Reencontro Da Criança Interior
Sobre a obra:
Sobre nós:
eLivros .love
Converted by ePubtoPDF
Jeremiah Abrams (Org.)
9ª Edição - 1999
EDITORA CULTRIX
SÃO PAULO
O REENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR
Jeremiah Abrams (org.)
A criança é que conhece o segredo primordial da Natureza e é à criança em
nós que retornamos. Nossa criança interior é simples e ousada o suficiente
para viver esse segredo.
Chuang Tzu
A maioria de nós sente uma forte ressonância com a criança interior.
Sabemos intuitivamente o que é isso, qual o seu significado para nós.
Sentimos, talvez em segredo, que uma parte em nós continua inteira, intacta
diante dos reveses da vida, capaz de sentir uma imensa alegria e
deslumbramento diante das menores coisas.
O Reencontro da Criança Interior é uma coletânea de 37 artigos que
definem e dão realidade concreta à imagem abstrata da criança interior,
mostrando que ela é um símbolo de união do ser, símbolo que representa, de
acordo com C. G. Jung, “a parte da personalidade humana que deseja
desenvolver-se e tornar-se inteira”.
Abrangendo várias disciplinas, desde a psicologia profunda até a literatura
relativa ao tema, estes ensaios são voltados para objetivos eminentemente
práticos como:
● realizar a promessa da criança interior e cumprir o seu destino;
● reivindicar a inocência, o espírito lúdico e o deslumbramento da criança
no adulto;
● curar a criança abandonada ou maltratada e resolver antigos traumas;
● estabelecer contato com a criança interior como símbolo da nossa energia
criativa;
● perdoar nossos pais;
● desenvolver uma consciência de compaixão para ser um pai ou uma mãe
melhores;
● completar a atividade variada e inacabada da infância.
***
Joseph Campbell, C. G. Jung, James Hillman, June Singer, Marie-Louise
von Franz, Gaston Bachelard, Bruno Bettelheim e Jean Houston figuram
entre seus autores.
EDITORA CULTRIX
Título do original:
Reclaiming the Inner Child
Copyright © 1990 by Jeremiah Abrams.
Publicado originalmente nos Estados Unidos da América por Jeremy P. Tarcher, Inc.
9ª Edição - 1999
Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA CULTRIX LTDA.
Rua Dr. Mário Vicente, 374 - 04270-000 - São Paulo, SP - Fone: 272-1399 que se reserva a
propriedade literária desta tradução.
Impresso em nossas oficinas gráficas.
Para Phillip, Rachael e Barbara meu melhor amigo, minha
melhor amiga e sua mãe: “Se não fosse por vocês, de modo
algum eu seria convincente.”
Por fim pensei que, dentre as nostalgias que perseguem o
coração humano, a maior de todas, para mim, é a ânsia
infindável de rejuvenescer em cada um de nós aquilo que é mais
velho.
Laurens van der Post
Sumário
Agradecimentos
Introdução: A criança interior
JEREMIAH ABRAMS
Parte 1
A promessa da criança interior
Introdução
1. Um experimento inédito: O arquétipo da criança interior
EDITH SULLWOLD
2. A psicologia do arquétipo da criança
C. G. JUNG
3. O arquétipo da criança na poesia de Wordsworth
JAMES H. YOUNG
4. Devaneios sobre a infância
GASTON BACHELARD
5. O motivo da criança divina
JUNE SINGER
6. O renascimento e a criança eterna
RALPH METZNER
Parte 2
A criança abandonada
Introdução
7. O cruel segredo do nascimento: Oh, eu sou minha própria mãe perdida de minha
própria criança triste
GELDA FRANTZ
8. O abandono da criança
JAMES HILLMAN
9. O arquétipo do órfão
ROSE-EMILY ROTHENBERG
10. A criança da alma
MARION WOODMAN
11. O amor e o medo do abandono
M. SCOTT PECK
12. Os que vão embora de Omelas
URSULA K. LEGUIN
Parte 3
Eterna juventude e narcisismo: o dilema da criança
Introdução
13. Narcisismo: o desequilíbrio da nossa época
JOEL COVITZ
14. A busca do verdadeiro self
ALICE MILLER
15. Puer aeternus
MARIE-LOUISE VON FRANZ
16. O self da infância e as origens da psicologia do puer
JEFFREY SATINOVER
17. O Pequeno Príncipe
HELEN M. LUKE
Parte 4
A criança ferida interior
Introdução
18. Como podemos curar nossa criança interior?
CHARLES L. WHITFIELD
19. A criança interior vulnerável
HAL STONE E SIDRA WINKELMAN
20. Por que você está com tanta raiva de mim?
ALEXANDER LOWEN
21. Em defesa da criança
ALICE MILLER
22. Sobre o incesto e o abuso de crianças
ROBERT M. STEIN
23. O sussurro das paredes
SUSANNE SHORT
Parte 5
O resgate da criança
Introdução
24. O poder da sua outra mão
LUCIA CAPACCHIONE
25. O contato com a criança interior
JOYCE C. MILLS E RICHARD J. CROWLEY
26. Liberando sua criança interior perdida
JOHN BRADSHAW
27. Tornar-se uma criança
JOHN LOUDON
28. A integração do self mais jovem
NATHANIEL BRANDEN
29. Recordando a criança
JEAN HOUSTON
30. Revendo os filmes de sua infância
ADELAIDE BRY
31. Matando o dragão
JOSEPH CAMPBELL
32. A redenção da criança interior no casamento e na terapia
ROBERT M. STEIN
Parte 6
Criança interior/criança exterior: o futuro do papel dos pais
Introdução
33. Comentário sobre as histórias
JAMES HILLMAN
34. Explorando a infância como adulto
BRUNO BETTELHEIM
35. A relevância histórica da infância humana
ERIK H. ERIKSON
36. O que sai da boca dos bebês
THEODORE REIK
37. O pai ferido interior
SAMUEL OSHERSON
Epílogo:
“Que você possa permanecer jovem para sempre”
Notas
ABREVIAÇÕES USADAS NAS NOTAS
Sobre os colaboradores
Bibliografia
Permissões e direitos autorais
Sobre o organizador
Agradecimentos
Um projeto como este é um trabalho de várias mãos. Sem as energias
generosas, criativas e solidárias de muitas pessoas, este trabalho único
sequer existiria.
Sou especialmente grato à minha querida esposa Barbara Shindell, que se
sacrificou para manter tudo em andamento durante minha ausência e que
tem sido meu esteio, principal leitora e fã entusiasta.
Sou muito agradecido à editora, Connie Zweig, rara e talentosa mulher que
conseguiu ser uma amiga querida, e ainda a mãe e parteira deste livro.
Muitas outras pessoas merecem também meus mais especiais
agradecimentos por suas colaborações específicas a este trabalho: Bob Stein
e Joel Covitz, que, na qualidade de leitores, crentes, críticos e
colaboradores deste livro, deram um inesgotável apoio intelectual e
emocional. Marie Dowie e Marie Libarle, que me ajudaram a dar a este
livro um grandioso começo. Bill e Vivienne Howe, que generosamente me
permitiram usar sua biblioteca como local de pesquisa. Sharon Heath, que
me infundiu apoio com seu projeto paralelo. Lotte Stein, Joanna Karp,
Bruce e Carla Burman e Alys Graveson, que me proporcionaram um
inestimável apoio crítico na qualidade de leitores. Kathleen Dickey, que
socorreu e comandou o preparo do manuscrito com elegância. O apoio de
Jeremy Tarcher e equipe foi o tempo todo atencioso e profissional. E, claro,
sou muito grato a todos os autores e editores que generosamente permitiram
que seus trabalhos fossem inseridos nesta coletânea.
Em especial quero agradecer aos clientes e amigos pessoais que partilharam
comigo o mais íntimo de suas pessoas ao longo de muitos anos, que
conferiram realidade às minhas vivências da criança interior e às
possibilidades de cura que todos temos dentro de nós.
Introdução: A criança interior
JEREMIAH ABRAMS
A Criança é que conhece o segredo primordial da Natureza e é à criança em
nós que retornamos. Nossa criança interior é simples e ousada o suficiente
para viver esse Segredo.
- Chuang Tzu
A maioria de nós sente uma forte ressonância com a criança interior.
Sabemos intuitivamente o que é isso, qual o seu significado para nós.
Sentimos, talvez em segredo, que uma parte em nós continua inteira, intacta
diante dos padecimentos da vida, capaz de sentir uma imensa alegria e
deslumbramento face às menores coisas.
Essa imagem da criança é de complexidade e veracidade bastante sutis. Sua
mensagem é: todos nós carregamos aqui dentro uma criança eterna, um
jovem ser inocente e maravilhoso. E essa criança simbólica também nos
carrega, carrega quem fomos, o registro de nossas experiências de
formação, de nossos prazeres e dores.
Como uma realidade simbólica e poética, a criança interior aparece em
nossa imaginação, em nossos sonhos, em nossa arte e nas mitologias do
mundo todo, representando a renovação, a divindade, o entusiasmo de
viver, uma sensação de deslumbramento, esperança, o futuro, a descoberta,
a coragem, a espontaneidade e a imortalidade. Nesse sentido, a criança
interior é um símbolo de união que reúne partes separadas ou dissociadas da
personalidade individual. Marie-Louise von Franz, eminente analista
junguiana e erudita, diz: “Se eu confiar na minha reação ingênua, então
estou inteira: estou inteiramente na situação e íntegra diante da vida... É por
isso que os terapeutas de crianças deixam que elas brinquem e, em dois
minutos, elas revelam a totalidade de seu problema, pois que, assim, estão
sendo quem são.”
A criança interior é tanto um fato em desenvolvimento como uma
possibilidade simbólica. É a alma da pessoa, criada dentro de nós através do
experimento da vida, e é a imagem primordial do Self, o cerne mesmo de
nosso ser individual. Como sugeriu Carl Gustav Jung, a criança representa
uma “totalidade que abrange as próprias raízes da Natureza”.
Wordsworth disse: “A Criança é o pai do Homem.” A criança é o pai da
pessoa inteira.
A maioria das pessoas continua tendo contato com a criança, na fase adulta,
através de hábitos, desejos e condutas pueris, e mediante o contato com as
crianças de carne e osso. Jung disse que a tendência a empenhar-se em
atividades regressivas tem a função positiva de nos manter ligados à
criança, de ativar a criança interior. Ele disse que a regressão é uma
“tentativa genuína de alcançar alguma coisa necessária: a sensação
universal da inocência infantil, a sensação de segurança, de proteção, de
amor recíproco, de confiança, de fé - essa coisa que tem tantos nomes”.1
Todos fomos crianças
Nossa criança interior possui o espírito da veracidade, da absoluta
espontaneidade, da autenticidade. Suas ações traduzem em nós o que é
natural, a nossa capacidade para fazer a coisa certa, para salvar uma
situação. Culver Baker, psicólogo inglês, observou o quanto é importante
tomar consciência da criança interior, ter com ela uma relação consciente e
ser reforçado pela mesma. Escreveu o seguinte:
Quando falo da criança interior, quero dizer aquele aspecto em nós, adultos,
que ainda reflete certas qualidades da criança divina... Quando ficamos por
demais inconscientes dela, por qualquer motivo, e por isso não a
incorporamos, sua força contém todo o potencial para atividades
construtivas, assim como para destrutivas. Dessa forma, ela pode conter a
dinâmica criativa da personalidade humana, sua força motivadora.2
“Somente quando dou espaço para a voz de minha criança interior”, diz a
renomada psicanalista suíça Alice Miller, “é que me sinto genuína e
criativa.”
A voz da criança é essencial ao processo de tornar-se único. A individuação,
aquele processo vitalício de desenvolvimento da personalidade, está ligada
à identidade peculiar do self infantil e gira em tomo dela. Von Franz
concorda com Miller a esse respeito quando diz: “A criança interior é a
parte genuína, e a parte genuína dentro da pessoa é a que sofre... Muitos
adultos excluem essa parte e, dessa forma, perdem a individuação, pois
somente se a pessoa a aceita, e com ela o sofrimento que impõe, é que o
processo de individuação pode prosseguir.”
A voz da criança interior é aquela que cada um e todos nós reconhecemos,
pois sabemos bem qual é. Todos fomos crianças. E a criança que um dia
fomos permanece conosco - para melhor ou para pior — sendo receptáculo
da nossa história pessoal e um símbolo sempre presente das nossas
esperanças e possibilidades criativas.
A criança, seja qual for o meio pelo qual obtenhamos contato com ela, é a
chave para alcançarmos a nossa mais plena manifestação como indivíduos.
A entidade criança, o self que verdadeiramente somos e sempre fomos, vive
dentro de nós aqui e agora. Se, por exemplo, observarmos a autoimagem de
pessoas excepcionalmente talentosas - aquelas que realizaram por completo
seus dons na vida - é surpreendente o quanto seu autoconceito está
vinculado à singular e direta vivência de seu self infantil.
Albert Einstein é um exemplo bem conhecido do gênio em comunhão
perene com a naturalidade de sua criança interior. Diz-se que Einstein nem
chegou a falar antes dos cinco anos de idade! “Até mesmo com nove anos
ele não era muito fluente”, diz o biógrafo Ronald W. Clark.3 A
autenticidade deste self infantil não era contaminada por palavras, mas, ao
contrário, contida por uma noção não-verbal de deslumbramento. Einstein
reconhecia essa qualidade infantil em si próprio. Confiava nela diante dos
obstáculos. Em suas anotações autobiográficas, aos sessenta e sete anos,
refletia:
Na realidade, não é menos que um verdadeiro milagre o fato de os métodos
modernos de instrução ainda não terem estrangulado por completo a
sagrada curiosidade da investigação, pois essa delicada plantinha, além de
estimulação, precisa ao máximo de liberdade. Sem isso, arruína-se de forma
irrecuperável. É um erro muito grave pensar que o deleite de ver e buscar
possa ser promovido por meio da coerção e de um senso de dever.4
Essa naturalidade, essa liberdade, essa perpétua sensação de
maravilhamento, preservadas com assiduidade na vida adulta, constituíram
a marca distintiva do caráter de Einstein, mesmo na sua velhice.
Em contraposição, a vida de Wolfgang Amadeus Mozart constitui um
exemplo da inversão unilateral das tendências positivas da criança interior.
Temos, neste caso, um gênio infantil que, segundo seus biógrafos, era
incapaz de chegar ao equilíbrio desenvolvendo o self adulto socializado em
sua personalidade. Seu self infantil era prisioneiro do amor condicional,
inflado pela grandiosidade e forçado a buscar a aprovação de seu pai, de seu
monarca e de seu mundo. O seu gênio musical explodia intacto, mas suas
condutas pueris levaram-no a desaparecer precocemente.
Para outras pessoas dotadas, a maturidade e a idade adulta resultam numa
diminuição do poder de vibração da criança. Considere, por exemplo, a
maneira como a maturidade sufoca os talentos de tantas crianças-prodígio.
O processo de socialização tem, de alguma maneira, a capacidade de abafar
os dotes naturais da maioria das crianças. Este vem a ser o dilema
narcisista.
Talvez o contexto seja o seguinte: a criança real, sendo forçada a adaptar-
se, torna-se um pequeno adulto e identifica-se com um falso self. Os
tesouros da criança autêntica passam então a ficar escondidos, protegidos,
num santuário tão bem fechado que, quando o self adulto amadurece, não
consegue mais reconhecer e recuperar a criança interior. Ela fica então
perdida, abandonada. Com o passar do tempo, as racionalizações ou a
amargura substituem a espontaneidade e a clareza naturais do self radioso.
Como se lamentava J. Robert Oppenheimer, o gênio sombrio que foi o pai
da era atômica, "existem crianças brincando na rua que poderiam solucionar
meus principais problemas de física porque contam com modalidades de
percepção sensorial que perdi há muito tempo”.5
Para onde foi a vida que perdemos enquanto íamos vivendo?
Para outras pessoas, a criança interior está longe de ser inspiradora, pois
mal e mal se constitui em algo real. As vivências de seus episódios infantis
estão obliteradas pela dor e pelo tempo, obscurecidas pela racionalidade,
eliminadas pela ambição, distorcidas pela pressão por crescer e conformar-
se.
Poucos de nós tiveram uma infância isenta de ansiedades e repleta de
contatos e relações de compreensão e proximidade com adultos, uma
infância livre para se envolver em brincadeiras imaginativas e para seguir
os voos da fantasia com prazer, num meio ambiente afetivo em que fosse
seguro sentir-se vulnerável. Para muitas pessoas, a criança interior é um ser
traumatizado e ferido, um sofredor que preferiríamos não reconhecer,
tolhido por experiências que seria melhor para nós não lembrarmos em
nossa vida adulta.
A criança da nossa experiência, diz a terapeuta infantil Edith Sullwold, “é a
criança que todos desejamos curar, para podermos reaver para as ações
adultas a energia que ainda se encontra nos padrões reativos de defesa e
proteção que se desenvolveram diante de vivências dolorosas”.
Brincamos e sofremos, crescemos e aprendemos. Persiste o lado juvenil, a
alma resiste, embora para algumas pessoas apenas como um lampejo
ocasional nos olhos ou um calor diferente na voz. Muitas pessoas
vivenciam inconscientemente a criança interior como aquela que não teve
suas necessidades reconhecidas ou satisfeitas. Essa vivência, com os
anseios que a acompanham, é uma grande fonte de humilhação e vergonha,
com a qual é muito difícil identificar-se, ou que é muito difícil de partilhar
com mais alguém. Nesse sentido, a criança pode ser uma tremenda inibição
à capacidade humana de formar vínculos na idade adulta.
Sempre nos deparamos com a criança interior no casamento e em outras
ligações intimas, nas quais são profundamente vivenciados os padecimentos
das relações afetivas que tivemos no passado. “Aquelas mágoas de infância
que se abateram sobre a nossa alma”, diz o autor e analista junguiano
Robert M. Stein, “tornam extremamente difícil, quando não impossível, que
a pessoa vivencie uma relação humana íntima, crescente e ao mesmo tempo
criativa. Neste sentido, a criança ferida sempre representa aquele aspecto da
alma que precisa da união com outra pessoa e a exige.”
É possível curar essa criança ferida; isso, aliás, é necessário para podermos
alcançar a totalidade interior. Resgatar a própria integridade implica uma
transformação interna, a criação de uma atitude interior positiva que dê
apoio e incentivo à criança interior através da compaixão. Em seu livro O
1
Drama da Criança Bem-dotada, * Alice Miller descreve a mudança que se
dá no decorrer de um processo de cura:
Se a pessoa for capaz... de sentir que nunca foi "amada” quando criança só
por ser quem era, mas pelo seu desempenho, êxito ou boas qualidades, e
que sacrificou sua infância em nome desse “amor”, essa vivência a abalará
profundamente, mas um dia ela sentirá o desejo de terminar esse romance.
Descobrirá em si mesma uma necessidade de viver de acordo com seu
“verdadeiro self’, de não ser mais forçada a ganhar amor, amor que em suas
raízes ainda a deixa de mãos vazias, pois é dado ao “falso self”, aquele que
ela começou a abandonar.
A luz do mundo pode atravessar a barreira e brilhar
A criança interior é a portadora das nossas histórias pessoais, o veículo das
nossas recordações da criança do passado, tanto a de verdade como a
idealizada. É a única qualidade verdadeiramente viva do ser que existe em
nós. É a alma, nossa dimensão que vivencia ao longo de todos os ciclos da
vida. É o sofredor. E é o portador da renovação pelo renascimento,
aparecendo em nossa vida sempre que nos desapegamos e abrimos às
mudanças.
No poema “O Anseio Sagrado”, Goethe, o grande homem dos séculos
XVIII e XIX da Europa, louvou essa notável dimensão do ser humano:
Fale com uma pessoa sábia, ou então fique calado,
porque o homem massificado zombará sem hesitar.
Louvo o que está verdadeiramente vivo,
o que anseia por arder até extinguir-se...
E enquanto você não tiver passado
por isso: morrer e desse modo crescer,
será apenas um convidado atormentado
sobre a terra escura.6
Vivenciar esse processo de renovação é sentir as possibilidades criativas da
criança interior simbólica. “Morrer” — ou seja, entregar-se no momento de
transição - permite que algumas possibilidades novas surjam. “Desiste do
que tens e receberás”, adverte o provérbio latino. Quando uma coisa deixa
de existir, a criança é constelada como possibilidade interior e ingressa na
nossa esfera repleta de uma ingênua vitalidade.
“O processo de morrer psicologicamente enquanto se está vivo é seguido de
um renascimento ou de uma renovação psicológica”, diz Ralph Metzner em
seu livro Opening to the Light. Um novo ser vem à luz - um novo modo de
ser - imaginado como criança radiante simbólica. “A criança recém-nascida
ainda está ligada ao Tao, à fonte de sua vida e surgimento, e é por isso que
devemos imitá-la”, acrescenta Metzner. “Como diz Chuang Tzu: ‘Você
consegue ser como um bebê recém-nascido? O bebê chora o tempo todo e,
apesar disso, sua voz nunca fica rouca. Isso é porque ele não perdeu a
harmonia da natureza.’”
No cerne mesmo de nosso ser existe essa criança eterna, verdadeiramente
viva, aguardando encamar em nossos atos e atitudes. E a luz do mundo
poderá brilhar através dela.
“Leva muito tempo para se ficar jovem”
O motivo da criança interior, embora tenha emergido como conceito na
cultura popular apenas nos últimos trinta anos, é ao mesmo tempo
atemporal e contemporâneo. É tão ancestral como a religião e tão atual
quanto uma comédia de Hollywood. No filme Big, [Quero ser grande], por
exemplo, o menino realiza o seu desejo de ficar instantaneamente crescido e
vemo-lo obter sucesso no mundo adulto, dentro do seu novo corpo maduro,
simplesmente permanecendo no seu self infantil natural, inocente e
efervescente. Isso não é tão diferente em substância do deus-criança
Hermes que encontramos nos Hinos Homéricos, o qual, por meio de sua
astúcia (e tudo no mesmo dia em que nasceu!), inventa a música e a canção
ao criar, do casco de uma tartaruga, uma lira para brincar; rouba o gado de
Apolo, o arqueiro e seu irmão mais velho, e o acalma, conquistando a
aprovação de seu eminente pai, Zeus.
A criança interior é um conceito que evolui, originário dos tempos
primordiais, ao lado das primeiras formas de adoração da natureza e de
religiões solares. Aqueles deuses-crianças fizeram surgir, antes do início da
nossa era, as crianças mitológicas divinas, no mundo inteiro. A fábula de
Rômulo e Remo nos proporcionou a glória que foi a civilização romana. O
conceito messiânico dos hebreus produziu, com o tempo, o que se tornou o
símbolo interior primário do self, em nossos dias, a criança Cristo. Ao
longo da Idade Média, quando as praticas religiosas não-sancionadas foram
obrigadas à clandestinidade, os alquimistas imaginaram que sua grande
obra alcançaria uma síntese de opostos, a criação de uma criança interior
anímica, a Criança Filosofal. Até hoje, no Oriente, a devoção à criança
Krishna infunde na vida familiar a aguda percepção da presença divina em
todos os afazeres cotidianos.
No Ocidente, o pensamento religioso deu margem ao pensamento secular
relativo ao tema da criança. A nossa era assistiu a um espantoso
desenvolvimento das ciências sociais; a sensibilidade científica dos
vitorianos, aliás, já havia advertido esse período vindouro como o “século
da Criança”. No plano das ideias psicológicas houve uma notável expansão
em tempos ainda mais recentes. Nos anos 60, o trabalho de revisão da teoria
e da prática pedagógicas ocupou-se inteiramente com as ideias modernas da
psicologia infantil e teoria do desenvolvimento. As introvisões analíticas
das psicologias profundas de Freud, Adler, Jung, Reich, Reik e outros
exerciam influência cada vez maior e estavam deixando perfeitamente claro
o que as tradições mais místicas haviam valorizado em todos os tempos, ou
seja, que não somos monolíticos e sim que, em cada um de nós, está contida
uma multiplicidade de influências internas, dentre as quais a criança e a
infância são as mais imediatas e importantes.
Esse maduro contexto intelectual agiu como fermento para incentivar a
ideia da criança interior. O conceito emerge com a literatura psicológica
séria e popular dos anos 60, mais especialmente nos trabalhos do
proeminente psicólogo suíço C. G. Jung (“The Psychology of the Child
Archetype”, edição americana de 1959), que definiu a criança interior como
um símbolo de totalidade na psique, uma ponte entre os planos pessoal e
coletivo. O psiquiatra americano W. Hugh Missildine (Your Inner Child of
the Past, 1963) escreveu um dos livros originais no gênero autoajuda,
oferecendo conselhos encorajadores sobre como harmonizar a vivência da
criança interior com a personalidade externa do adulto. O trabalho
extremamente popular do psiquiatra californiano Eric Berne (Transactional
Analysis, 1961) colocou a criança interior num papel interativo com o
adulto e o pai interiores, num modelo versátil que funcionou muito bem nas
situações psicoterapêuticas, ao permitir que a criança interior assumisse um
papel construtivo na cura da pessoa como um todo.
Existem razões importantes pelas quais a imagem da criança interior nos
transmite hoje uma mensagem tão contundente. Os seis vetores de
catalisação que descrevemos a seguir, embora não componham uma
explicação completa em si, são o que torna a criança interior um tema de
tanta relevância.
O aumento do interesse pela psicologia
A psicologia - ela própria filha deste século - levou-nos a reconhecer a
importância da infância humana ao acentuar a relevância do seu
desenvolvimento e ao enfatizar a realidade das vivências infantis. Sigmund
Freud, cuja genialidade foi a parteira da moderna investigação psicológica,
teria dito, já no final de sua carreira como pioneiro, que “o valor real da
psicanálise está em aprimorar o modo de tratar os filhos”. Praticamente
todo o pensamento subsequente na área da psicologia deu lugar de destaque
à criança e aos estudos sobre a infância.
Jung, cujas descobertas adiantaram o pensamento psicológico até o século
XXI, não subestimou a contribuição da psicologia para o temperamento
moderno ao indagar, de forma jocosa:
Por que é que nos interessamos de modo especial pela psicologia justo
agora? A resposta é: todos têm absoluta necessidade disso. A humanidade
parece ter atingido hoje um ponto em que os conceitos anteriores não são
mais adequados e em que começamos a nos dar conta de estar sendo
confrontados por algo estranho cuja linguagem não conseguimos entender.
Vivemos numa época em que somos atingidos pela percepção de que as
pessoas que vivem do outro lado da montanha não são exclusivamente
demônios de cabeça vermelha responsáveis por todo o mal que acontece
deste lado da montanha.7
O crescimento paralelo da psicoterapia
A “cura pelo diálogo”, que nasceu com Freud e seus seguidores, vem
evoluindo e modificando seu centro de interesse; não obstante, continua
respeitando a alma, validando a vida interior do adulto e reconhecendo a
existência da criança interior necessitada de cura.
Nas três últimas décadas, o fenômeno da criança interior ganhou maior
destaque em virtude de um crescente interesse pela psicologia profunda
junguiana, em geral, e pelo tratamento das desordens narcisistas da
personalidade, em particular. Essas duas disciplinas identificam a imagem
da criança interior como a alma vulnerável, a criança ferida que carece de
integração e o Self machucado. O psicólogo arquetípico James Hillman faz
eco a Jung quando diz: “O que a psicologia profunda passou a denominar
regressão é apenas o retorno à criança.”
Com o advento e a popularização da psicoterapia, os terapeutas passaram a
estar em contato com a criança abandonada dentro de si mesmos e acharam
necessário curá-la a fim de poderem ajudar os outros de uma maneira
eficiente. Segundo o autor Charles L. Whitfield, muitos terapeutas
estenderam esse trabalho à sua clientela e, dessa forma, tornaram a questão
do resgate da criança interior o elemento mais importante do
relacionamento terapêutico, levando à aceitação da criança interior em
muitos círculos.
O programa para filhos adultos de alcoólatras (FAA)
Este fenômeno de rápido crescimento, decorrência da imensa popularidade
alcançada pelo programa de doze passos do movimento de recuperação dos
Alcoólatras Anônimos, faz um uso extenso do conceito da criança interior.
Estima-se (nos Estados Unidos) que o programa FAA está-se expandindo à
razão de um novo grupo por dia, em escala nacional. O êxito desse conceito
parece residir na identificação do até então ignorado sofrimento daqueles
que foram criados em lares de alcoólatras, ou seja, a constatação dos efeitos
desastrosos sobre o self infantil dessas pessoas. Valendo-se de uma
abordagem familiar e sistêmica para a recuperação do alcoolismo, o modelo
do programa FAA deixa claro que as famílias que têm algum tipo de
disfunção - não só devido ao alcoolismo ou ao vício em drogas químicas -
causam danos incalculáveis aos filhos e à infância interior de todos os seus
membros. Esse fenômeno, através de uma expansão monumental de suas
adesões e da literatura específica, exerce uma enorme influência, ajudando
a romper a barreira de negações da parte genuína que sofre dentro de nós,
ou seja, da criança interior.
A constatação cada vez maior de casos de abuso de crianças
O expressivo aumento na incidência, denúncia, execução e divulgação de
casos de abuso de crianças força-nos a considerar a perpetuação desse
comportamento pela atuação da criança interna que sofreu abuso e que vive
nos agressores adultos. O analista junguiano e autor Joel Covitz, em seu
l i v r o Emotional Child Abuse, chama esse fenômeno, que atravessa as
gerações, de “a maldição familiar”. Ele diz que, quando examinamos o
agressor adulto que cometeu o abuso,
quase sempre encontramos a seguinte raiz: quando criança, suas
necessidades narcisistas saudáveis não foram satisfeitas... e quando essa
criança se torna uma pessoa adulta os efeitos devastadores desses
desequilíbrios são transmitidos aos seus próprios filhos. Os padrões de
abuso não serão alterados enquanto os pais não se derem conta de forma
mais plena dos efeitos que suas atitudes têm sobre seus filhos.
O que, na nossa cultura, está-se manifestando nessa epidemia de abuso de
crianças? Trata-se de um problema complicado que exige uma profunda
consideração das atitudes coletivas com relação à criança interior. "O abuso
concreto de crianças sempre reflete uma falta de ligação com a criança
interna ou psíquica e uma falta de respeito por ela”, segundo Robert M.
Stein, pensador de vanguarda nesse campo e cujos textos nos desafiam a
examinar esse problema com mais sensibilidade e consciência. A atenção
cada vez maior que é dada pela nossa cultura ao abuso de crianças, a
constatação cada vez mais consciente desse problema, o fato de que a
maioria dos agressores também foi vítima de abusos em sua própria
infância tornam o trabalho com a criança interior praticamente compulsório.
Os pais de hoje têm uma carga de responsabilidade maior
A tarefa de criar os filhos, hoje numa crise maior do que nunca, está
exigindo apoio e atenção. As atitudes relativas às crianças e a seu
desenvolvimento estão mudando rapidamente. O que há trinta anos poderia
parecer inadequado, como a ampla rede de atendimento diário em berçários
e congêneres para bebês com seis meses de idade, tornou-se hoje uma
prática bastante aceita. Valores em rápida transformação nas culturas pós-
industriais modificaram de maneira irrevogável a estrutura familiar e estão
afetando de forma radical as práticas de educação e criação de filhos. As
mulheres ingressaram na força de trabalho em grande número, respondendo
às pressões econômicas e à necessidade de ampliar sua própria noção de
identidade e propósito. Essa tendência, ao lado da maior incidência de lares
com um só dos cônjuges, forçou a reavaliar completamente a tarefa de criar
os filhos, à medida que nos vamos aproximando do final deste século. A
enorme quantidade de novos pais que surgiram, ou a explosão demográfica
do pós-guerra, está agora levando a uma proliferação considerável. Essas
pessoas precisam e querem expandir suas noções coletivas do que é uma
boa forma de criar os filhos. Mais do que em qualquer outro momento
histórico, os pais querem toda a ajuda que puderem obter. Contudo, o criar
filhos, a arte de educá-los parece estar sujeita a um maior isolamento e
abandono social, como acontece com nossas crianças.
Essas circunstâncias conferem uma atenção especial à criança interior dos
pais, assim como à vida interior das crianças: a qualidade e o sucesso da
paternagem (ou maternagem) aumentam muito quando os pais podem
vivenciar sua própria criança interior abandonada, transformando-a em
recurso compassivo quando cuidam dos seus próprios filhos. O modo como
o adulto trata sua criança interior determina de forma decisiva o modo
como irá tratar a criança exterior.
A busca da espiritualidade e do significado
A incerteza espiritual do nosso tempo pede o nascimento de um novo
significado, de uma nova esperança em cada um de nós.
As coisas se desintegram: o centro não pode mais resistir;
A pura anarquia está à solta no mundo,
A escura maré tinta de sangue está à solta, e por toda parte
A cerimônia da inocência se afoga...8
- W. B. Yeats, “A Segunda Vinda”
Sofremos do que Jung denominou ‘‘um empobrecimento sem precedentes
dos símbolos”. Há uma fome gigantesca de espiritualidade e significação
em nossa era, o anseio pela segunda vinda de uma criança divina cujo
aparecimento anuncie o início de um novo milênio de esperança.
No nível pessoal, sentimos a pungente necessidade de entrar em contato
com o destino da criança interior, de vivê-lo, para encontrarmos nossa
salvação espiritual. ‘‘Nossa infância testemunha a infância do homem,
presencia o ser tocado pela glória de viver”, diz Gaston Bachelard.
Ou, nas palavras de June Singer, psicóloga junguiana, “a criança divina
dentro de nós dá sentido às nossas iniciativas imaturas; ela nos mostra o
lado inconsciente das limitações que vivenciamos e isto é uma visão da
potencialidade que desabrocha”.
Em termos psicológicos, poderíamos dizer que o advento da criança divina
é uma manifestação do Self, provocando uma reestruturação da
personalidade para acomodar a compreensão mais ampla do significado e
uma expressão mais plena da vitalidade.
“Quando pesquisamos a literatura sobre misticismo e orientação espiritual,
assim como a história de vida daqueles que parecem ter-se tornado pessoas
maduras”, escreve John Loudon em seu ensaio intitulado “Tornar-se
Criança”, “a meta parece ser comum: uma integração que englobe a
totalidade do potencial humano e que, ao mesmo tempo, seja
descomplicada, sábia, lúdica e até mesmo brincalhona.” Em resumo, o
retorno à criança. Esse motivo está refletido nas grandes mitologias das
religiões mundiais, em que o nascimento de uma criança especial significa
que os velhos deuses têm que ir e que emerge um novo começo.
O aparecimento do arquétipo da criança divina - a criança interior coletiva -
pressagia uma transformação na psique individual ou coletiva, a
possibilidade de renovação e expansão. Escreve Edith Sullwold no ensaio
de abertura deste livro que “existe dentro de nós uma força criativa que nos
acena, forçando-nos a sair de nossa própria natureza essencial e a deixar o
mundo antigo e familiar, dando um passo adiante para ingressar no novo”.
“Cantai, ó Musa, a criança!’’
Essa consciência da criança, em nosso meio, é um sinal saudável para a
nossa cultura, ao prometer boas coisas para os nossos filhos. Como disse
Homero em sua antiga invocação: “Cantai, ó Musa, a criança!”, podemos
agora voltar-nos para a criança em busca de inspiração.
Este livro nasceu para satisfazer esse objetivo. Reúne, pela primeira vez,
escritos importantes sobre o tema da criança interior. As intenções deste
livro são simples e diretas: estruturar um campo de pesquisa que é, ao
mesmo tempo, instigante e oportuno; oferecer ao leitor o melhor e o mais
compreensível e inspirador material disponível. Esse projeto foi dirigido
pela sincronicidade, pela persistência, pela boa fé de um grande número de
pessoas. Encontros casuais e sugestões inesperadas de muitos auxiliares
anônimos desempenharam um papel que não é pequeno. Um
empreendimento como este é, em si mesmo, uma prática na descoberta, no
desenvolvimento daquele senso de escolha da coisa certa a ser feita e na
confiança em nossa própria reação ingênua quando ela ocorre. Essa foi uma
bênção inesperada, um presente benéfico que a criança trouxe consigo.
A escolha do material para esta coletânea foi realizada depois de uma
extensa pesquisa literária, e todas as contribuições que aqui estão
apresentam uma qualidade especial de raciocínio, de perspectiva, de paixão
pelo assunto. As escolhas foram reunidas em tomo de seis temas principais,
focalizando tópicos que despontaram tão logo o assunto estava totalmente
pesquisado. As introduções às seções esboçam uma estrutura básica para o
livro, descrevendo cada tema principal e oferecendo o contexto geral para
os ensaios em cada seção. Descrições rápidas e estruturadas na forma de
itens, antes de cada ensaio, oferecem informações contextuais mais
específicas.
A Parte 1 examina as dimensões míticas do tema da criança interior, as
imagens inatas da infância e da puerilidade que todos contemos. Nela
encontramos o arquétipo da criança e da criança divina, o poético e
misterioso deus-criança repleto de promessas e possibilidades, devaneios e
deslumbramentos, renascimentos e renovações, o mais excelso e de melhor
qualidade em cada um de nós.
A Parte 2 trata do tema do abandono - figurativo, literal, intencional,
inadvertido; da criança abandonada, reprimida, não-amada, perdida; da
vítima do destino, das circunstâncias e da negligência.
A Parte 3 focaliza o problema paradigmático das perturbações narcisistas, o
campo minado que a maioria das crianças precisa atravessar, o dilema
interior da nossa época. Aqui ficamos sabendo quais são os efeitos dos
conflitos interiores sobre a formação do self, do autoconceito e do caráter.
Encontramos o puer aeternus, o eterno menino que, a fim de evitar perdas
futuras, paira acima da linha da vida, só vive o provisório. Apesar de
exuberante e encantadora, essa criança interior desequilibrada ainda não
está disposta a encarar a vida real.
A Parte 4 é sobre a criança ferida, a criança que é vítima, que sofreu abuso,
abandonada, negligenciada, produto de uma vida familiar desestruturada ou
da indiferença social. Onde há feridas também há o resgate da saúde e todos
os artigos dessa seção também abordam a cura da criança interior ferida.
A Parte 5 vai adiante e para cima, para além do vale de lágrimas e danos,
tratando das tarefas práticas de recuperar o self mais jovem, de perceber
quais são os talentos da criança e de acolher sua vitalidade.
A Parte 6, por fim, examina a revitalização das práticas de criação de filhos,
mediadas pelo conhecimento e pela aguda percepção da criança interior.
••••••
Viemos por esta trilha
Para encontrar a nossa vida.
Pois todos nós somos,
Todos nós somos,
Todos nós somos filhos de...
Uma flor de cores brilhantes,
Uma flor incandescente.
E não há ninguém,
Ninguém,
Que lamente o que somos.
- Canto dos índios huichol9
Parte 1
EDITH SULLWOLD
Edith Sullwold aborda com considerável vigor, compreensão e sensibilidade
a exigente tarefa de distinguir as qualidades pessoais das arquetípicas da
criança interior. Seus sentimentos particulares de afeto pela vida interior
da criança mesclam-se aqui à sua erudição, ao seu talento interpretativo e
ao conhecimento típico de contador de histórias que ela tem de seu
material. Este ensaio foi originalmente apresentado pela autora no dia 20
de novembro de 1987, como palestra central da conferência O Redespertar
da Criança Interior, em Washington, D.C. A dra. Sullwold, que é terapeuta
infantil e terapeuta supervisora, concordou generosamente em ampliar e
adaptar sua palestra expressamente para esta coletânea, para mais uma
vez fazer soar o timbre da criança interior.
Uma das minhas citações favoritas com respeito à criança vem de uma fonte
bastante inesperada, a obra de George Bernard Shaw. Em certo ensaio no
qual indaga o que é uma criança, ele mesmo responde:
Um experimento. Uma tentativa inédita de produzir o homem justo que se
tornou perfeito, ou seja, de tornar divina a humanidade. E você irá viciar
esse experimento se tomar a menor iniciativa no sentido de abortá-lo
fazendo com que se ajuste a alguma imaginosa figura que você preferir -
por exemplo, sua noção particular do bom homem ou da mulher feminina...
Se você começar com as mais sagradas aspirações desse experimento e
subvertê-las para atender aos seus propósitos, dificilmente haverá limites
para o prejuízo que você pode causar.1
Essa declaração parece provir de um profundo entendimento da natureza
tanto da criança interior como da exterior. A ideia de que a criança é um
“experimento inédito” implica que a criança é vista como indivíduo com
talentos e limitações que são peculiares à sua natureza ímpar; que é um ser
que pode contribuir para a investigação do significado da vida, que pode
acrescentar alternativas à riqueza das possibilidades de viver.
Essa nova criatura, movida por uma necessidade de ser provida e orientada,
encontra-se numa família específica, numa cultura específica, sendo
educada de uma maneira específica. A esses elementos particulares
correspondem regras, valores e sistemas aos quais a criança começa a se
adaptar, ficando moldada pelos mesmos. Esse processo de moldagem
muitas vezes acontece em tal extensão que a criança termina não tendo mais
ligação com aqueles aspectos de seu ser que não se encaixam na estrutura
dessas formas e expectativas externas. Para algumas, a adaptação significa
que os talentos não cabem na estrutura, ou não são valorizados, ficam
submersos e, por isso, são perdidos, não só para a pessoa mas também para
a cultura como um todo.
Em outras crianças, a vitalidade desses talentos não pode ser tão facilmente
abafada. Na falta de canais apropriados de expressão, a energia que está por
trás desses talentos causará dor, como acontece com qualquer energia
quando é bloqueada e busca a todo custo uma oportunidade de viver.
Essa experiência pode ser como aquela que Wordsworth descreve tão bem:
“As venezianas da casa-prisão começam a se fechar/ Sobre o Menino que
cresce.”2 (“O Menino” refere-se ao aspecto Divino, ou do Self). Toda vez
que leio essas linhas sinto dentro de meu próprio corpo o duplo impacto das
restrições que vêm de fora e da pressão orgânica de crescimento que vem de
dentro.
Enquanto escrevia isto, num glorioso primeiro dia de primavera, saí ao ar
livre para contemplar as tulipas abertas ao sol. Notei que alguns
hemerocales tinham lutado para aparecer em meio a umas pranchas que
tinham sobrado de nosso projeto de construção de inverno. A força daqueles
frágeis brotos, num ímpeto vigoroso para desabrochar, era, de fato,
espantosa, mas, devido à restrição imposta pelas tábuas, estavam tortos,
deformados, um pouco amarelados. Assim que alcançassem a luz e se
libertassem das tábuas, possivelmente se endireitariam e continuariam a
crescer, até florescerem. Talvez, porém, nunca chegassem à plenitude de
outras flores próximas, que tinham encontrado o espaço aberto, com sol, ar
e chuva para recebê-las.
É isso que muitas vezes acontece com as crianças. A tábua antes usada para
formar uma estrutura pode esmagar ou distorcer a vida orgânica natural das
nossas crianças. Precisamos estar sempre atentos por baixo dessas tábuas,
examinando os nossos sistemas de valores e os nossos pressupostos acerca
da realidade.
Onde é que devemos buscar a inspiração e o incentivo para o trabalho de
polimento da antiga e castradora estrutura, ou seja, das nossas noções do
“bom homem”, ou da “mulher feminina”, das quais fala Shaw?
Infelizmente, essas imagens são, muitas vezes, formadas a partir de uma
aceitação inconsciente de definições coletivas para o êxito, a saúde e a
normalidade.
Neste sentido, a última sentença de Shaw é importante, a saber, a ideia de
que a criança tem suas próprias “aspirações mais sagradas”, o seu próprio e
singular caminho. Nesse contexto, a expressão “mais sagradas” pode ter
dois significados. As aspirações ou intenções são consideradas frutos de
uma fonte sagrada ou espiritual. E sabemos que a palavra “sagrado” tem
relação com o termo “inteiro”. Receber esse dom de vida que nos é
oferecido e, com todo o cuidado e respeito, ajudá-lo a crescer ao máximo
pode ser a tarefa “mais sagrada”. Esse crescimento deve incluir todos os
aspectos do nosso ser como indivíduos, e não apenas aqueles sancionados
pelos valores coletivos. Essa ânsia de crescer é tão natural em cada um de
nós quanto a ânsia de romper o cerco das tábuas, no caso das florezinhas do
campo. C. G. Jung disse, no seu ensaio sobre “A Psicologia do Arquétipo da
Criança”, que a imagem da criança “representa a mais poderosa e inelutável
ânsia em cada ser humano, ou seja, a ânsia de realizar a si próprio”.3
O aspecto divino da criança interior que habita em todos nós é uma fonte
que, quando percebida em plena consciência, pode-nos oferecer a coragem
e o entusiasmo de desbravadores que se arriscam a fugir pelas “portas da
prisão”. Uso o termo “divino” para distinguir esse aspecto do da criança
interior formada a partir da memória das vivências pessoais, ou seja, a
criança negligenciada, vítima de abuso, desnutrida, não-amada,
exageradamente disciplinada, excessivamente condenada, assim como dos
aspectos vulneráveis e carentes da criança que fomos um dia. Essa é a
criança - a criança das nossas vivências — que todos desejamos curar para
podermos recuperar a energia para a ação adulta que ainda reside nos
padrões de reação de defesa e proteção que desenvolvemos em resposta às
primeiras experiências sofridas. Curar essa criança significa também que
não continuaremos mantendo inconscientemente esses padrões com os
“experimentos inéditos” que são os nossos próprios filhos.
A criança real das nossas lembranças não é mais quem somos. Embora a
tenhamos deixado para trás, frequentemente continuamos levando a nossa
vida sem nos darmos conta dos padrões que adotamos quando éramos
crianças, limitando, dessa forma, o âmbito da nossa vida atual. As
consequências da dor, do medo, da raiva e da solidão dos primeiros anos de
vida têm sido bem identificadas e debatidas, nos últimos anos, pelas teorias
psicológicas e pela prática terapêutica. No entanto, quando se lança o foco
de luz sobre as primeiras experiências da vida, também podem emergir
outras recordações, imagens positivas de acontecimentos que deram apoio à
exuberância, à curiosidade e à exploração audaciosa do mundo, tão naturais
na criança, à delícia das percepções sensoriais, à riqueza da imaginação.
Essas recordações, quando podem emergir, nos proporcionam a noção da
história dos nossos prazeres e dores, tornando a vincular-nos a esse ser que
hoje, enquanto adultos, somos. O modo como vivemos no presente é uma
consequência de todos os acontecimentos que se deram conosco em nosso
experimento de viver.
Além das recordações de eventos reais, em geral levamos dentro de nós
uma imagem da infância ideal, daquela em que o acolhimento e a orientação
foram perfeitos. É a infância que gostaríamos de ter tido, construída fora
das limitações das nossas próprias vivências. Em comparação, sempre nos
parece faltar algo à nossa infância de verdade. Essa imagem é às vezes
projetada nos outros, a quem percebemos como tendo tido uma infância
perfeita, e, lamentando-nos por um ideal, aumentamos nossa solidão e nossa
dor. Essa imagem é frequentemente projetada nos nossos filhos, na medida
em que tentamos oferecer-lhes a infância perfeita, ao mesmo tempo que
criamos para nós a imagem dos pais perfeitos.
Um antídoto para essa idealização paradisíaca da infância é partilhar nossas
histórias e invenções com os outros, descobrindo, dessa forma, que a
condição humana comum de filhos e pais é uma mescla complexa de êxitos
e fracassos, de dons e limitações.
Por trás dessas imagens da infância real e da infância ideal está a imagem
da criança interior divina antes mencionada, que brota da camada
arquetípica mais profunda do nosso ser. Essa imagem arquetípica tem como
função universal a incumbência de assegurar que permaneça inédito o nosso
experimento de viver. A criança interior divina tem a inocência, que o
mestre Zen Suzuki Roshi chamou de “a mente do aprendiz”. Representa a
espontaneidade e o anseio profundo da alma humana por expandir-se,
crescer e investigar vastos e ilimitados territórios.
Às vezes, essa criança interior faz exigências muito intensas, apresentando-
se por intermédio de emoções como ansiedade, depressão, raiva,
impotência, ou em sintomas físicos. Às vezes desencadeia em nós frágeis e
sutis lampejos de inspiração — uma ideia repentina, um sonho, uma
fantasia, ou a sensação de desejar com ardor algo rejuvenescedor. A força
vital e natural deste arquétipo quer o nosso reconhecimento e não pode ser
ignorada sem acarretar com isso sérias consequências. Se não nos
apossarmos de sua energia avivadora em nosso próprio benefício, o mais
provável é que a projetemos no meio externo. Se deslocarmos a criança
arquetípica para as crianças reais, de carne e osso, elas irão, então, arcar
com o peso do nosso próprio desenvolvimento criativo.
A imagem inspiradora da criança interior representa os aspectos criativos da
vida, tanto dentro do ser humano individual, como da coletividade. Ela se
expressa nos mitos, no reino metafórico da história. Em toda cultura
existem histórias do nascimento da criança especial, filha dos deuses, das
deusas, dos heróis, histórias sem tempo que pertencem à nossa espécie
inteira. Quando escutamos essas histórias milenares, podemos talvez ecoá-
las, como se cantássemos nossas origens primais. Podemos assim
redescobrir e recordar as raízes da nossa própria natureza, dos nossos
instintos e da nossa criatividade, reconhecendo os elementos do nosso ser
que já conhecemos de modo instintivo. Elas podem fazer-nos lembrar da
nossa totalidade incipiente, daquela integridade que tivemos no início.
Talvez o melhor seja dar um exemplo de uma história assim. A minha
história favorita dentre as epifanias gregas é a história de Hermes quando
criança. Hermes nasceu da união de Zeus com uma ninfa da floresta, Maia.
O nome Maia nos faz pensar no mês de maio; em Maria, mãe de uma outra
Criança Divina, Jesus; e em Maya, a mãe de Buda. Para proteger Hermes de
Hera, a ciumenta esposa de Zeus, Maia mantém o bebê numa caverna, como
se fosse seu segundo útero. Zeus abandona seu novo filho e volta para o
Olimpo e a antiga família.
Maia, espírito da natureza que é, cuida de Hermes. Tendo um caráter
travesso, a criança escapa da caverna de manhã cedo, em seu primeiro dia
de vida; cria uma lira a partir do casco de uma tartaruga e rouba o gado de
seu irmão Apolo. Apolo apodera-se de seu irmão menor e leva-o para ser
julgado na corte de Zeus. Segundo Homero, Hermes responde às acusações
do onisciente Zeus com a seguinte indagação: “Como poderia eu ter feito
uma coisa dessas? Nasci ontem!”, e pisca para Zeus. Com isso, Zeus
começa a rir e todos os que estão no Olimpo riem com ele. A única sentença
que Zeus profere é que a harmonia se estabeleça entre os dois irmãos, feito
que é finalmente concretizado quando Hermes faz soar o novo instrumento
de harmonia por ele criado, a lira.
Nesta história, encontramos os elementos universalmente comuns aos
relatos míticos que se referem ao nascimento da criança divina. Embora
haja variações no enredo, nas circunstâncias e na caracterização, os dramas
míticos parecem partilhar uma estrutura básica que define as qualidades e
as características gerais da criança interior, atributos que têm para nós um
grande significado psicológico.
Em primeiro lugar, essas crianças nascem em circunstâncias de concepção e
parto incomuns, do ponto de vista do nascimento humano normal. Essas
concepções são às vezes o resultado da união entre o espiritual e o humano,
como é o caso da concepção imaculada de Maria, ou da mãe de Buda, que
foi fertilizada por um elefante. Às vezes, a união se dá entre um deus e um
elemento da natureza, como é o caso de Hermes, que nasceu de Zeus e da
ninfa da floresta. O próprio nascimento pode ser incomum, podendo ocorrer
diretamente a partir de um elemento primordial, como a água ou o fogo
(Vênus), ou da cabeça de Zeus (Atenas), ou de sua coxa (Dioniso).
Esses nascimentos incomuns falam metaforicamente do surgimento, em
nós, de um novo começo que procede de fontes incognoscíveis,
inesperadas, extraordinárias e que cria em nossa psique novos nascimentos.
Essas novidades podem aparecer-nos como palpites, sonhos, visões ou
emoções. Se a personalidade exterior ou a cultura se tiver desenvolvido de
maneira restrita e unilateral, o aparecimento da criança interior divina é um
presságio da possibilidade de renovação e expansão. O nascimento interior
pode ser concebido através de um evento externo que nos espanta ou
surpreende. Talvez considerado como um acidente do destino, desperta em
nós a percepção de uma nova possibilidade da vida.
A criança, concebida e dada à luz de forma tão pouco habitual, aparece
numa situação, cultura ou ordem particular que já está formada, seja no
plano dos deuses, no mundo inferior ou na esfera humana. Esse mundo tem
seus próprios padrões estabelecidos, seus princípios vigentes, que os que
detêm o poder representam, e essa criança incomum, tanto como criatura
quanto como ser criativo, corre, na maioria dos casos, um sério risco
perante a ordem estabelecida. Até Apolo tenta destruir seu irmão precoce, o
bebê Hermes. Herodes mata os pequenos para ter certeza de que está
destruindo, entre todas as crianças, o Cristo. Hera, sempre ciumenta das
uniões de Zeus com novos e virginais elementos, busca destruir a progênie
desses casamentos. Em nós, esses governantes representam a antiga
estrutura, que não quer perder seu poder para o novo ser, fruto de uma
concepção divina. Para incorporar o novo, o velho deve abrir caminho à
mudança.
Sermos sensíveis e permeáveis às indicações e exigências dessa criança
interior, que incessantemente nos impele a sermos mais, é algo que nos
torna abertos à mudança. Por outro lado, o incômodo dessas vivências
muitas vezes resultará em tentativas de aplacar, distrair ou tranquilizar a
criança interior, ou de ignorá-la e negar-lhe tempo e atenção. Dessa forma,
comprometemos nossas “mais sagradas aspirações”.
Além do risco que vem da ordem vigente e que quer manter seu poder já
instalado, esses filhos divinos do mito e da psique estão expostos e são
vulneráveis, porque muitas vezes são abandonados por um ou ambos os
pais, como Zeus abandonou Hermes. No cerne da nossa psique, isso pode
indicar que os pais familiares comuns, aqueles padrões do que já nos é
conhecido, abandonam o filho aos seus próprios recursos para que ele
venha a encontrar seu próprio lugar, singular e anticonvencional, na ordem
das coisas.
Embora abandonada por seus pais divinos, a criança geralmente é protegida
por guardiões do mundo terrestre, representações das forças naturais em
nossa própria natureza simples e primitiva que podem calmamente prover
essa criança especial com um conhecimento típico do indivíduo que está em
contato direto com a terra. Essa força natural pode permitir que a criança se
ligue à terra, se corporifique em nós segundo o seu próprio processo natural
e orgânico.
O lugar em que a criança nasce geralmente oferece uma certa proteção.
Hermes nasce numa caverna, que é uma espécie de segundo útero. Assim,
Zeus estava protegendo-o de ser devorado por seu pai, Cronos. Cristo nasce
numa estrebaria, pois na estalagem coletiva não havia lugar. Mais uma vez,
os animais e pastores são os primeiros a cercá-lo. Neste local protegido, a
criança pode ganhar forças até estar pronta para ingressar no mundo
ameaçador. No plano psicológico, essa proteção pode representar um certo
desenvolvimento em nós — uma ideia criativa, um sonho, ou uma nova
atitude ou relação com a vida — que não deve ser manifesto nem trazido à
luz antes que tenha alcançado um certo ponto de maturidade e possa
sobreviver por si e, nessa medida, consiga efetivar mudanças eficazes e
integradas no seio da antiga ordem. Cristo tem doze anos quando regressa e
fala com os anciãos no templo.
O paradoxal é que essa criança abandonada e ameaçada que precisa de
proteção já está repleta de uma individualidade criativa e de um poder
indestrutível. É o extraordinário talento de Hermes que cria a lira e ameaça
Apolo com o mágico poder das artimanhas. Buda, recém-nascido, anda sete
passos para longe de sua mãe, apontando para cima e para baixo, declara-se
Príncipe de tudo o que está acima e abaixo. É esse poder que atrai os três
Reis Magos do Oriente e os faz aproximarem-se de Cristo ainda bebê.
Na realidade, é justamente esse poder reconhecido, profetizado, intuído,
que constitui a maior ameaça à antiga ordem. Esse nascimento não é um
acontecimento comum. Em termos psicológicos, pode ser considerado uma
manifestação do Self, que exige uma reestruturação da personalidade. Isso
pode levar a uma dolorosa desintegração das antigas formas e,
frequentemente, gerar confusão, solidão e desorientação, que duram um
certo tempo, antes que a nova ordem esteja estabelecida.
Essas tentativas potencialmente dolorosas são captadas pelo princípio ora
vigente na personalidade, o ego. Ele pode erguer sistemas de resistência,
numa tentativa de silenciar a nova voz. Mas sendo esta divina, não se
submeterá ao silêncio. Sempre temos diante de nós a seguinte escolha: ou
ouvimos a súplica para que nos libertemos de seu jugo, ou aderimos ao seu
exuberante e lúdico movimento rumo a uma vida mais ampla, mais humana.
Se nos entregarmos, poderemos entrar com ela no reino das ações divinas.
Hermes traz o riso e o som da música tranquilizante e harmoniosa ao reino
do Olimpo - um novo ingrediente nesse reino a ser reconhecido, acolhido e
apreciado, mudando daí em diante para sempre a qualidade desse lugar.
No adulto moderno, a energia da criança interior pode resultar em
mudanças dramáticas no estilo de vida e na imagem pública. Ela pode
provocar a busca exclusiva de novos interesses ou hábitos. Mas, depois que
nasce em nós, essa criança irá exigir que ampliemos o nosso mundo para
incluí-la, para experimentarmos o abandono das nossas próprias
familiaridades internas, que nos sustentam, e para suportarmos a solidão
decorrente da ação criativa engendrada por uma ligação inspirada com o
novo. O prêmio a ser conquistado é a nossa totalidade, uma totalidade
insinuada em nós desde o princípio e para a qual somos inexoravelmente
atraídos. É possível que as culturas também possam assim ser renovadas,
que as velhas ordens possam ser reexaminadas e reconstruídas, levando a
um mundo mais harmonioso para a raça humana.
O arquétipo da criança interior, portanto, pode oferecer uma sensação de
esperança diante dos becos sem saída da nossa história pessoal e mundial.
Ele nos lembra do tempo em que tudo começou, do momento da criação, do
novo, do inesperado, da diferença individual que muda o conjunto. Essa é a
promessa do “experimento inédito”, a promessa da criança interior.
2. A psicologia do arquétipo da criança
C. G. JUNG
Este é o excerto de um estudo pioneiro sobre a criança interior. Para
entendermos o arquétipo da criança é preciso ter um certo conhecimento da
noção elementar de Jung a respeito do inconsciente coletivo, que ele
concebia como o reservatório da herança psíquica da humanidade e de
suas possibilidades. É preciso também ter um certo entendimento da
natureza do arquétipo, uma das maiores descobertas de Jung, talvez o
conceito fundamental de toda a sua obra. Ele foi desenvolvendo a teoria
dos arquétipos em estágios, começando por volta de 1912. A percepção de
sua própria criança interior veio de vivências pessoais que teve por volta
dessa mesma época (veja os Capítulos 7 e 26, onde há detalhes dessas
experiências). O presente ensaio contém as considerações mais essenciais
de Jung sobre a criança interior. Contém, em forma embrionária, aquelas
ideias que geraram o nosso tema e lhe conferiram realidade; vários dos
colaboradores deste livro o citam como referência.
Segundo Jung, o arquétipo “é uma forma inconsciente, preexistente e
impossível de ser representada que parece fazer parte da estrutura herdada
da psique. Sua forma talvez possa ser comparada ao sistema axial de um
cristal, que, por assim dizer, pré-forma a estrutura cristalina no líquido-
mãe, embora não tenha existência material propriamente dita... O
arquétipo em si é vazio e puramente formal, e não passa de uma faculdade
pré-formada, uma possibilidade de representação que é dada a priori. As
representações em si mesmas não são herdadas, somente as formas, e nesse
sentido correspondem em todos os aspectos aos instintos, que também são
determinados apenas na forma. A existência dos instintos não pode ser
provada, da mesma forma que a dos arquétipos, enquanto não se
manifestam no nível concreto” (OC, vol. 9, i, par. 155).
Jung também disse: “Os arquétipos foram, e ainda são, forças psíquicas
vivas... Sempre foram os portadores de proteção e salvação, e sua violação
tem como consequência os ‘perigos da alma’, que conhecemos através da
psicologia dos primitivos. Além disso, são as causas infalíveis dos
distúrbios neuróticos e até psicóticos, comportando-se exatamente como
órgãos físicos ou sistemas funcionais orgânicos negligenciados ou
maltratados” (OC, vol. 9, i, par. 266).
O Dicionário Crítico de Análise Junguiana (Samuels et al., 1986) diz o
seguinte:
Todas as imagens psíquicas compartilham do plano arquetípico em alguma
medida. É por isso que os sonhos e muitos outros fenômenos psíquicos
possuem numinosidade. Os comportamentos arquetípicos evidenciam-se ao
máximo nos momentos de crise, quando o ego está muito vulnerável. As
qualidades arquetípicas são encontradas nos símbolos, e isso explica em
parte o fascínio que exercem, sua utilidade e repetição. Os deuses são
metáforas de comportamentos arquetípicos e os mitos são representações
arquetípicas. Os arquétipos nem podem ser plenamente integrados, nem
vividos sob forma humana. A análise implica uma percepção cada vez mais
consciente das dimensões arquetípicas da vida da pessoa... O conceito
junguiano de arquétipo pertence à mesma tradição das Ideias de Platão,
que estão presentes na mente dos deuses e servem de modelo para todas as
entidades no plano humano.
Este estudo, em sua forma completa, foi originalmente publicado em 1940;
uma tradução para o inglês foi realizada em 1949, seguida de outra em
1963.
O arquétipo como elo de ligação com o passado
Quanto à psicologia do nosso tema, devo assinalar que todas as afirmações
que vão além dos aspectos estritamente fenomênicos de um arquétipo estão
sujeitas a críticas. Nem por um momento devemos sucumbir à ilusão de que
um arquétipo possa ser finalmente explicado e descartado. Até mesmo as
melhores tentativas de explicá-lo são apenas traduções mais ou menos bem-
sucedidas para uma outra linguagem metafórica. (Na realidade, a linguagem
em si é apenas uma imagem.) O máximo que podemos fazer é continuar
sonhando o mito, proporcionando-lhe assim um revestimento moderno. E
seja o que for que as explicações e interpretações lhe causem, estaremos
causando o mesmo às nossas almas, com os resultados correspondentes para
o nosso bem-estar.
O arquétipo - não nos esqueçamos disto - é um órgão psíquico presente em
todos nós. Uma explicação ruim significa uma atitude correspondentemente
ruim para com esse órgão, que dessa forma pode ser danificado. Assim, a
“explicação” deve ser sempre de tal ordem que a significação funcional do
arquétipo permaneça incólume, para assegurar uma conexão adequada e
significativa entre a mente consciente e o arquétipo. Isso porque o arquétipo
é um elemento da nossa estrutura psíquica e, portanto, um componente vital
e necessário da nossa economia psíquica. Representa ou personifica certos
dados instintivos da psique primitiva e obscura, das raízes reais, embora
invisíveis, do campo da consciência. A importância elementar da conexão
com essas raízes nos é confirmada pela preocupação da mentalidade
primitiva com certos fatores “mágicos” que são nada menos do que aquilo
que denominaríamos arquétipos. Essa forma original da religio (“religar”) é
a essência, a base operacional de toda a vida religiosa, inclusive a
contemporânea, e sempre o será, seja qual for a forma futura que esta venha
a assumir.
Não existe substituto “racional” para o arquétipo, assim como não o há para
o cerebelo ou os rins. Podemos examinar os órgãos físicos dos pontos de
vista anatômico, histológico e embriológico. Isso corresponderia a um
esboço de fenomenologia arquetípica e à sua apresentação em termos de
história comparada. Mas só podemos alcançar o significado de um órgão
físico quando começamos a formular questões teleológicas, e isso dá
margem à indagação: qual é a finalidade biológica do arquétipo? Assim
como a fisiologia responde a essa pergunta em relação ao corpo, a tarefa da
psicologia é responder a ela em relação ao arquétipo.
Afirmações do tipo “O motivo da criança é uma memória residual da
própria infância da pessoa”, e explicações congêneres, apenas reiteram a
questão. Mas se, colocando a proposição por um ângulo ligeiramente
diferente, disséssemos: “O motivo da criança é uma imagem de certas
coisas esquecidas da nossa infância”, então estaríamos chegando mais perto
da verdade. Entretanto, como o arquétipo é sempre uma imagem que
pertence a toda a espécie humana e não somente à pessoa, seria melhor que
disséssemos: “O tema da criança representa o aspecto infantil pré-
consciente da psique coletiva.”1
(Talvez não seja supérfluo assinalar que o preconceito leigo está sempre
disposto a identificar o motivo da criança com a “criança” da experiência
concreta, como se a criança real fosse a causa e a pré-condição da
existência do motivo da criança. Para a realidade psicológica, entretanto, a
ideia empírica “criança” é apenas um meio (e não o único) de expressar um
fato psíquico que não pode ser formulado com mais exatidão. Portanto, de
acordo com esse raciocínio, a ideia mitológica da criança é, decididamente,
não uma cópia da criança empírica, mas um símbolo claramente
identificável enquanto tal: é uma criança-maravilha, uma criança divina,
concebida, nascida e criada nas circunstâncias mais extraordinárias, e não -
essa é a questão - uma criança humana. Seus feitos são tão milagrosos ou
monstruosos como sua natureza e constituição física. Somente em virtude
dessas propriedades altamente não-empíricas é que se torna, aliás,
necessário falar de um “motivo da criança”. Além disso, a “criança”
mitológica tem várias formas: ora é um deus, ora um gigante, ora o Pequeno
Polegar, ora um animal, etc., e isso indica a vigência de uma causalidade
que não tem nada de racional ou concretamente humano. O mesmo é válido
para os arquétipos do “pai” e da “mãe”, que, mitologicamente falando, são
símbolos igualmente irracionais.)
Não estaremos errando se, por algum tempo, considerarmos essa afirmação
pela perspectiva histórica, na base de uma analogia com certas experiências
psicológicas que mostram como determinadas fases da vida de uma pessoa
podem tornar-se autônomas, personificando-se a ponto, inclusive, de
resultarem numa visão de si mesmo - por exemplo, a pessoa se vê como
criança. Experiências visionárias dessa espécie, ocorram elas em sonhos ou
no estado de vigília, dependem, como sabemos, de uma dissociação que
aconteceu anteriormente entre o passado e o presente. Essas dissociações
ocorrem devido a diversas incompatibilidades; por exemplo, o estado atual
de um homem pode ter entrado em conflito com seu estado de infância, ou
ele pode ter sido violentamente despojado de seu caráter original no
interesse de alguma persona2 arbitrária, mais afim com suas ambições.
Tornou-se assim artificial e desprovido de sua dimensão pueril, perdendo
suas raízes. Tudo isso se constitui numa oportunidade favorável para um
confronto igualmente intenso com a verdade primária.
Em vista do fato de que os homens ainda não cessaram de fazer declarações
acerca do deus-criança, talvez possamos estender a analogia do indivíduo
para a vida da humanidade e dizer, em conclusão, que também a
humanidade provavelmente sempre entrou em conflito com suas condições
de infância, ou seja, com seu estado original, inconsciente e instintivo, e
que o perigo do tipo de conflito que induz à visão da “criança” existe de
fato. As práticas religiosas, ou seja, o relato reiterado do evento mítico e a
sua repetição ritual servem, como consequência disso, ao propósito de
colocar a imagem da infância e tudo que a ela se liga várias vezes diante
dos olhos da mente consciente, para que o elo de ligação com a condição
original não se rompa.
A função do arquétipo
O motivo da criança representa não só algo que existiu no passado distante,
mas também algo que existe agora, quer dizer, não é só um vestígio, mas
um sistema funcionando no presente e cuja finalidade é compensar ou
corrigir, de maneira significativa, a inevitável unilateralidade e
extravagância da mente consciente. É da natureza da mente consciente
concentrar-se em relativamente poucos conteúdos e elevá-los à máxima
possibilidade de clareza. A exclusão de outros possíveis conteúdos do
campo da consciência é uma pré-condição e um resultado necessários desse
movimento. Essa exclusão implica uma certa unilateralidade dos conteúdos
conscientes. Uma vez que a consciência diferenciada do homem civilizado
recebeu um instrumento eficaz para a realização prática de seus conteúdos
através da dinâmica de sua vontade, cresce ainda mais o perigo - quanto
mais ele treina sua vontade - de ficar perdido na unilateralidade e, assim,
desviar-se cada vez mais das leis e raízes de seu ser. Isso significa, por um
lado, a possibilidade da liberdade humana, mas, por outro, é uma fonte de
transgressões intermináveis contra os próprios instintos. Por conseguinte, o
homem primitivo, estando mais próximo de seus instintos, como o animal, é
caracterizado pelo medo do novo e pela adesão à tradição. Segundo a nossa
maneira de pensar, está lamentavelmente atrasado, enquanto nós exaltamos
o progresso. Mas a nossa capacidade de progredir, embora capaz de resultar
em muitas e satisfatórias realizações de desejos, acumula um débito
prometeico igualmente gigantesco que deve ser pago, de tempos em
tempos, na forma de catástrofes hediondas. Durante eras a fio o homem
sonhou em voar, e tudo o que conseguimos com isso foi uma saturação de
bombardeios! Sorrimos hoje em dia da esperança cristã de termos uma vida
além do túmulo e, no entanto, muitas vezes nos entregamos a milenarismos
centenas de vezes mais ridículos do que a noção de um Futuro feliz. Nosso
campo diferenciado de consciência corre o risco contínuo de ser extirpado;
precisa, por isso, da compensação proporcionada pelo ainda existente
estado de infância.
Os sintomas da compensação são descritos, do ponto de vista progressista,
em termos que dificilmente poderíamos considerar elogiosos. Uma vez que,
para a visão superficial, parece uma operação de retardo, as pessoas falam
de inércia, retrogressão, ceticismo, censura, conservadorismo, timidez,
insignificância, e assim por diante. Mas, na medida em que o homem tem
em alto grau a capacidade de distanciar-se de suas próprias raízes, também
poderá ser arrastado para a catástrofe com total ausência de crítica por sua
perigosa unilateralidade. O ideal do retardo é sempre mais primitivo, mais
natural (tanto no bom como no mau sentido) e mais “moral”, na medida em
que segue a lei e a tradição. O ideal progressista é sempre mais abstrato,
menos natural e menos “moral”, na medida em que exige deslealdade para
com a tradição. O progresso implantado pela vontade é sempre convulsivo.
A retrogressão pode estar mais próxima do que é natural, mas, por sua vez,
é sempre ameaçada por dolorosas conscientizações. A visão antiga das
coisas considerava que o progresso só é possível Deo concedente (“se Deus
quiser”), mostrando estar consciente dos opostos e repetindo os milenares
rites d’entrée et de sortie (“ritos de passagem”) num plano superior. Quanto
mais diferenciada se torna a consciência, mais cresce o perigo do
desenraizamento das origens. A separação total se instala quando o Deo
concedente é esquecido. É hoje um axioma da psicologia que, quando uma
parte da psique é cindida do campo da consciência, só aparentemente ficou
inativa; na realidade, ela desencadeia uma possessão da personalidade
capaz de falsificar os objetivos da pessoa para o benefício da parte cindida.
Se, então, o estado infantil da psique coletiva for reprimido até o ponto da
exclusão total, o conteúdo inconsciente se apodera da meta consciente e
inibe, falsifica ou até destrói a sua realização. O progresso viável só
acontece com a cooperação de ambas as dimensões.
O futuro do arquétipo
Um dos traços essenciais do motivo da criança é a sua futuridade. A criança
é futuro em potencial. É por isso que a ocorrência do motivo da criança na
psicologia do indivíduo significa, via de regra, uma antecipação de futuros
desenvolvimentos, mesmo que a princípio possa parecer uma configuração
retrospectiva. A vida é fluxo, um fluir rumo ao futuro, e não uma
interrupção ou um recuo. Não surpreende, portanto, que tantos salvadores
mitológicos sejam deuses-crianças. Isso está em exata concordância com a
nossa experiência da psicologia do indivíduo, que mostra que a “criança”
sedimenta o caminho para uma futura mudança na personalidade. No
processo de individuação, antecipa a figura que decorre da síntese entre os
elementos conscientes e inconscientes da personalidade. Portanto, é um
símbolo que une os opostos;3 um mediador, portador da cura, ou seja,
aquele que torna inteiro, íntegro. Por ter esse significado, o motivo da
criança é capaz de sofrer as numerosas transformações acima mencionadas:
pode ser expresso pela rotundidade, pelo círculo ou pela esfera, ou ainda
pela quaternidade, que é outra forma de totalidade.4 Chamei de “self” essa
totalidade que transcende a consciência.5 O objetivo do processo de
individuação é a síntese do self. De um outro ponto de vista, o termo
“enteléquia” poderia ser preferível a “síntese” (enteléquia - uma força vital
que impele um organismo à autorrealização). Existe uma razão empírica
pela qual “enteléquia” é, em certas condições, mais adequado: os símbolos
de totalidade frequentemente ocorrem no começo do processo de
individuação e, na verdade, podem ser, muitas vezes, observados nos
primeiros sonhos do início da infância. Essa observação salienta a
possibilidade de que exista a priori uma totalidade potencial6 e, com base
nisso, a ideia de enteléquia se torna imediatamente recomendável. Mas, na
medida em que a individuação, em termos empíricos, se processa como
síntese, isso, embora paradoxal, parece suficiente, como se algo já existente
estivesse sendo reunido. Desse ponto de vista, o termo “síntese” é mais
aplicável.
A criança como início e fim
Depois de sua morte, Fausto é recebido como menino no “coro dos jovens
bem- aventurados”. Não sei se com essa ideia peculiar Goethe estava se
referindo aos cupidos que existem em antigas lápides tumulares. Não é
impossível. A figura do cucullatus (encapuzado) assinala o invisível, o
gênio do que se foi, que reaparece nas travessuras pueris de uma nova vida,
cercado de formas marinhas como golfinhos e tritões. O mar é o símbolo
favorito do inconsciente, a mãe de tudo o que tem vida. Assim como a
“criança”, em certas circunstâncias (por exemplo, no caso de Hermes e dos
dáctilos), está intimamente relacionada com o falo, símbolo do procriador,
ressurge, da mesma forma, no falo sepulcral, como símbolo de uma
concepção renovada.
A “criança” é, portanto, renatus in novam infantiam (“renascida numa nova
infância”). Ela é, nesse sentido, tanto início como fim, uma criatura inicial
e terminal. A criatura inicial existiu antes que o homem existisse, e a
criatura terminal existirá depois que o homem não existir mais. Em termos
psicológicos, isso significa que a “criança” simboliza a essência pré e pós-
consciente do homem. Sua essência pré-consciente é o estado inconsciente
do começo da infância; sua essência pós-consciente é uma antecipação, por
analogia, da vida após a morte. Expressa-se nessa ideia a natureza todo-
abrangente da totalidade psíquica. A totalidade nunca é alcançada dentro
dos limites da mente consciente, pois também inclui a extensão indefinida e
indefinível do inconsciente. Falando empiricamente, a totalidade é,
portanto, uma extensão incomensurável, mais velha e mais jovem que a
consciência, englobando-a no tempo e no espaço. Isso não é especulação, é
uma vivência psíquica imediata. Não só o processo consciente é
continuamente acompanhado pelos acontecimentos inconscientes como
estes, muitas vezes, orientam-no, ajudam-no ou interrompem-no. A criança
teve uma vida psíquica antes de se tornar consciente. Até mesmo o adulto
diz e faz coisas cujo significado só entende, quando entende, bem mais
tarde. E, não obstante, disse-as e as fez como se conhecesse o seu
significado. Os nossos sonhos estão o tempo todo dizendo coisas que
ultrapassam a nossa compreensão consciente (razão pela qual são tão úteis
na terapia das neuroses). Temos indicações e intuições que procedem de
fontes desconhecidas. Medos, mudanças de humor, planos e esperanças vêm
até nós sem uma causa visível. Essas experiências concretas estão na raiz da
nossa sensação de que nos conhecemos muito pouco; estão também na raiz
da dolorosa constatação de que talvez haja surpresas desagradáveis
esperando por nós.
O homem primitivo não é um enigma para si mesmo. A pergunta “O que é o
homem?” é a indagação que o homem sempre guardou até o último instante.
O homem primitivo tem tanta vida psíquica fora do âmbito da sua mente
consciente que a vivência de algo psíquico que está fora dele próprio lhe é
mais familiar do que o é para nós. A consciência rodeada por poderes
psíquicos, sustentada ou ameaçada ou iludida por eles, é a experiência
ancestral da humanidade. Essa experiência tem-se projetado no arquétipo da
criança, que expressa a totalidade do homem. A “criança” é tudo o que foi
abandonado e exposto e, ao mesmo tempo, é divinamente poderosa; ela é o
início insignificante e duvidoso, e o fim triunfal. A “eterna criança” no
homem é uma experiência indescritível, uma incongruência, um déficit, e
uma prerrogativa divina; é um imponderável que determina o valor
essencial de uma personalidade ou sua falta de valor.
3. O arquétipo da criança na poesia de Wordsworth
JAMES H. YOUNG
James H. Young amplifica o arquétipo da criança através das muitas
crianças presentes na poesia de Wordsworth. Também demonstra como as
ideias sobre a infância elucidam o caráter de mistério do trabalho deste
consumado poeta inglês do romantismo. A obra de Wordsworth ilustra de
forma bela a concepção de Jung sobre a criança interior, mostrando- nos o
acesso da criança ao que o poeta chamou de “modos desconhecidos de
ser”. A análise e as comparações de Young expandem o tema da criança
interior nos dois autores: o entendimento simbólico da criança interior por
Jung é um excelente contraponto ao esforço de Wordsworth contra o
literalismo da recuperação da criança na idade adulta. Este ensaio foi
originalmente publicado no número de inverno de 1977 do periódico
Quadrant.
A criança, tagarela, envergonhada, curiosa, é uma imagem frequente na
poesia de William Wordsworth. Alguns de seus poemas são dirigidos a
crianças determinadas, como o filho de Coleridge, Hartley, ou os próprios
filhos e filhas de Wordsworth. Em geral, as crianças aparecem nos poemas
de Wordsworth simplesmente como um elemento essencial no panorama da
vida. Às vezes, porém, assumem uma aura especial de divindade, são
investidas de uma luz sagrada ou servem de inspiração para outras pessoas.
Essas crianças especiais, quase sobre-humanas, dos poemas de Wordsworth
exibem muitos traços do que C. G. Jung chamou de “arquétipo da criança”
e, por isso, revestem-se de um interesse especial.
Em razão das semelhanças entre algumas crianças da poesia de Wordsworth
e o arquétipo da criança, é razoável considerar em que extensão o conceito
junguiano de arquétipo da criança esclarece os poemas desse autor. O
propósito deste estudo é demonstrar que os comentários de Jung acerca do
arquétipo da criança são, de fato, muito úteis na interpretação dos poemas
de Wordsworth. As noções junguianas lançam luz, especialmente, sobre o
poema intitulado Ode: Intimations of Immortality from Recollections of
Early Childhood [Ode: Insinuações de Imortalidade a Partir de Recordações
do Início da Infância], em que ele afirma a possibilidade de o adulto poder
recuperar algo semelhante à “esplêndida visão” da infância.
O arquétipo da criança é a imagem de uma criança que aparece nos mitos e
lendas do mundo inteiro; aparece nos sonhos e, às vezes, nos trabalhos que
brotam da imaginação, como os poemas. Jung acentua a importância dos
aspectos incomuns do arquétipo da criança, quando diz: “A ideia mitológica
da criança, insisto, não é uma cópia da criança empírica, mas um símbolo
claramente identificável como tal; é uma criança- maravilha, uma criança
divina, concebida, nascida e criada em circunstâncias muito extraordinárias,
não — e esse é o ponto central — uma criança humana.”1
O arquétipo da criança aparece com grande frequência nos mitos e lendas.
Uns poucos exemplos bastarão para lembrar o caráter exótico da criança
arquetípica. Numa lenda indiana, uma criança dessas aparece a Indra, que
matou o “dragão” e libertou a “enchente da vida”.2 Indra ordena ao “gênio
milagroso” Vishvarkarman que erga um magnífico palácio para comemorar
esse triunfo. Vishvarkarman não consegue atender às exigências
arquitetônicas de Indra e queixa-se ao demiurgo criador, Brahma, que
promete ajudá-lo. Na manhã seguinte, um menino de “traços luminosos” e
“radiante com o fulgor da sabedoria” aparece e descreve a Indra como já
testemunhou grandes eras que vieram e se foram. Indra chama-o de
“Oceano de Virtudes” e “Sabedoria Encarnada” e pede-lhe que o instrua a
respeito dos “segredos das idades”. As palavras do menino levam a
“sabedoria” a Indra: ele não deseja mais construir um palácio.
Um outro exemplo é o de Merlin, nas lendas arturianas, que “pode também
aparecer como criança... exibindo sabedoria o tempo todo”.3 Por exemplo,
num dos contos, um veado branco entra em disparada no salão de Artur,
rodeia a távola redonda perseguido por um bando de cães, um dos quais, na
sua perseguição, arrasta Gawain para fora do salão. Os cães estavam sendo
seguidos por um caçador negro e, por fim, vem uma donzela clara que se
detém por um tempo suficiente para pedir a ajuda dos estupefatos
cavaleiros. Artur olhou para Merlin em busca de explicação. “Merlin jogou
para trás o capuz que ocultava seu rosto vincado e, no instante em que seus
traços se tornaram visíveis, transformaram-se. A fisionomia habitual, com
sua longa barba branca e coroada de visco druídico, tinha-se tornado o rosto
radiante de um menino sem idade, com folhas de louro sobre os cabelos
dourados.” O Merlin transformado faz um pronunciamento oracular e
desaparece.4
Essas ilustrações demonstram algumas das qualidades e funções peculiares
que, para Jung, eram características da criança arquetípica. Ela, amiúde, é
divinamente inspirada e, em certos casos, literalmente irradia luz ou está
envolta numa aura de divindade. A criança, às vezes, é considerada
impotente e frágil, em meio a forças que ameaçam consumi-la ou destruí-la;
entretanto, ela pode, nesses contextos, milagrosamente superar todas as
forças tenebrosas que se lhe opõem, emergindo, em alguns casos, como
figura de herói. Às vezes, é descrita como capaz de uma afinidade especial
com a natureza, como um ser em sintonia com uma presença divina que
permeia a natureza. Por fim, a criança muitas vezes serve como arauto,
portadora de revelações espirituais, ou como curadora capaz de sarar ou
salvar milagrosamente os doentes e perdidos.5
Todas essas qualidades e funções da criança arquetípica podem ser
encontradas nas imagens de crianças existentes na poesia de Wordsworth.
Este costuma descrever as crianças, por exemplo, iluminadas ou
esclarecidas por suas aptidões especiais de sensibilidade. No soneto Oh,
What a Wreck [Oh, Que Desastre], Wordsworth sugere que as crianças têm
“o privilégio de partilhar da divina comunhão”, e no soneto Young England
[Jovem Inglaterra], aconselha a Inglaterra a “Permitir que os Bebês e
Recém-Nascidos sejam seus oráculos”.6 No mesmo sentido, uma figura de
criança comparavelmente sábia, segundo Erich Neumann, aparece no
Midrash judaico, que é um antigo método de exegese de textos bíblicos. Ao
descrever o arquétipo da criança, Neumann observa que o Midrash “atribui
conhecimento ao bebê que ainda não nasceu, dizendo que sobre sua cabeça,
dentro do útero, queima uma luz que lhe permite enxergar todos os fins do
mundo”.7
As crianças arquetípicas de Wordsworth mostram-se às vezes não somente
inspiradas pela luz de um conhecimento superior, como também
literalmente radiantes. Em The Widow on Windermere Side [A Viúva de
Windermere Side], a viúva, sobrecarregada por uma “dívida inocente” e
profundamente abatida pela morte de todos os seus filhos, é transportada
num “êxtase terrestre” pela visão do filho falecido:
His raiment of angelic white, and lo!
His very feet bright as the dazzling snow
Which they are touching; yea far brighter, even
As that which comes, or seems to come, from heaven,
Surpasses aught these elements can show.
Seu vestuário de branco angelical, e veja!
Seus próprios pés brilhantes como a neve deslumbrante
Que estão tocando; porém muito mais claros, até
Que aquilo que vem, ou parece vir, dos céus,
E ultrapassa tudo o que esses elementos podem mostrar.
A criança destas linhas é nitidamente não-terrestre; seu fulgor ultrapassa
qualquer intensidade de brilho das coisas terrenas. A viúva aceita-o como
um “Anjo”. Outras crianças, nos poemas de Wordsworth, são igualmente
iluminadas por uma luz divina. Em The Borderers [Os Habitantes da
Fronteira], o cego Herbert diz, depois de um relâmpago, que viu “sua
Criança / Um rosto mais belo que o de qualquer querubim / Revelado pelo
brilho que com ele veio do Céu” (ii, 716-718). Mais uma vez, em Maternal
Grief [Dor Materna], uma criança “resplandecia / Pelos raios refletidos
daquela luz celestial”.
A qualidade frágil e vulnerável do arquétipo da criança está evidente em
The Prelude, VII [O Prelúdio, VII], em que Wordsworth retrata uma criança
ameaçada pelo ambiente hostil de Londres:
...I see
The lovely Boy as I beheld him then
Among the wretched and the falsely gay,
Like one of those who walked with hair unsinged
Amid the Fiery furnace.
- (ii, 366-369)
...Vejo
O adorável Menino enquanto o contemplo
Em meio aos desgraçados e falsamente joviais,
Como um daqueles que caminhou com o cabelo não chamuscado
Por entre as fornalhas em chamas.
Outro exemplo nos é dado em Lucy Gray, no qual a pequena Lucy
desaparece numa tempestade de neve, deixando seus pais “arrasados”.
Numa guinada insólita, o final do poema sugere que ela, de alguma
maneira, superou as forças da natureza e que “até o dia de hoje / Está viva; /
Tanto que vocês podem ver a doce Lucy Gray / A criança solitária das
matas”.
Muitas das crianças da poesia de Wordsworth apresentam em comum com o
arquétipo da criança a qualidade de uma sintonia especial com a natureza.
Num determinado momento, Jung descreve a criança arquetípica como
“personificação de forças vitais que estão muito além do limitado alcance
de nossa mente consciente unilateral; como personificação de recursos e
possibilidades dos quais nossa mente consciente nada sabe; e como
totalidade que abrange os próprios fundamentos da natureza”.8 Nos poemas
de Wordsworth, as crianças são vistas, frequentemente, como possuidoras
de uma totalidade, de uma integridade especial em virtude de sua afinidade
com a natureza. Na Ode, para citar um exemplo, Wordsworth descreve o
“Jovem” como “Sacerdote da Natureza”.
Um dos aspectos mais significativos do arquétipo da criança proposto por
Jung é sua frequente função de arauto, de portador de uma graça redentora,
ou ainda sua capacidade de curar os doentes e guiar os perdidos. Como
disse Jung, “a ‘criança’ distingue-se por atos que indicam a conquista das
trevas”.9 Entre os poemas de Wordsworth, um exemplo antigo dessa espécie
de criança aparece para Herbert em The Borderers. Herbert volta cego da
Terra Santa e é destituído de seu baronato. Expulso, descansando à sombra
de uma árvore com sua filha ainda bebê nos braços, Herbert recebe,
milagrosamente, um guia infantil:
...I heard a voice
Such as by Cherith on Elija called;
It said, “I will bê with thee!” A little boy,
Hailed us as if he had been sent from heaven,
And said, with tears, that he would be our guide.
(ii, 1362-1367)
...Ouvi uma voz
Como a que, à margem do Carit, chamou Elias;
Ela disse: “Eu estarei contigo!“ Um menininho
Acenou para nós como se tivesse sido mandado do céu
E disse, com lágrimas nos olhos, que seria o nosso guia.
Interessa-nos aqui a associação da criança com a voz patriarcal do Velho
Testamento, e a auspiciosa vinda da criança para guiar o homem cego
através das desoladas vastidões dos pântanos escoceses.
Mais uma vez, Wordsworth insinua o poder redentor da criança numa
descrição de Lear, em Artegal e Elidurer.
...Lear
by his ungrateful daughters tumed adrift.
Ye lightnings hear his voice! - they cannot hear,
Nor can the winds restore his simple gift.
But One there is, a Child of nature meek,
Who comes her Sire to seek;
And he, recovering sense, upon her breast
Leans smilingly, and sinks into a perfect rest.
(ii, 41-48)
...Lear
Por suas ingratas filhas lançado à deriva.
Vós, relâmpagos, ouvi sua voz! - elas não conseguem ouvir,
Tampouco os ventos restauram seu simples dote.
Mas uma existe, Criança de natureza meiga,
Que a seu Senhor vem buscar;
E ele, recobrando os sentidos, naquele regaço
Inclina-se sorridente e afunda no descanso perfeito.
Nem os ventos, que em geral simbolizam a inspiração, nos poemas de
Words- worth, conseguem “restaurar” Lear. É a “Criança” que o faz
recobrar os “sentidos” e lhe proporciona “descanso perfeito”. O poder
curativo da criança-Anjo em The Widow on Windermere Side também pode
ser citado como exemplo de uma criança não-terrestre dotada de um poder
milagroso de cura.
Duas imagens de criança que parecem especialmente arquetípicas aparecem
no poema de Wordsworth Para H.C. e em sua Ode: Intimations of
Immortality from Recollections of Early Childhood. A qualidade etérea e a
fragilidade do arquétipo da criança aparecem numa passagem do poema
Para H.C., ostensivamente dedicado a Hartley Coleridge:
Thou faery voyager! that dost float
In such clear water that thy boat
May rather seem
To brood on air than on an earthly stream;
Suspended on a stream as clear as sky,
Where earth and heaven do make one imagery;
.....................................................................................
Thou art a dew-drop which the morn brings forth,
Ill fitted to sustain unkindly shocks,
Or to be trailed along the soiling earth;
A gem that glitters while it lives,
And no forewarning gives;
But at the touch of wrong, without a strife,
Sips in a moment out of life.
Tu, lépido viajante, que flutuas
Em água tão clara que teu bote
Pode mais parecer
Estar pairando no ar e não num regato rasteiro;
Suspenso num riacho tão claro como o firmamento
Onde terra e céu enfim criam uma só imagem;
.......................................................
És uma gota de orvalho que a manhã traz em seu bojo,
Maldotado para suportar choques indelicados,
Ou para ser arrastado na terra e sua sujeira;
Gema que resplandece enquanto vive,
Sem dar qualquer prenúncio;
Mas ao menor contato com o erro, sem luta,
Afunda num instante e some da vida.
Poder-se-ia objetar que esta passagem do poema Para H.C. nada tem que
ver com o arquétipo da criança, e que foi dedicado a Hartley Coleridge,
afinal de contas, apenas a Hartley Coleridge e não a uma criança divina e
mítica. Deve-se admitir, no entanto, que existem aspectos da descrição
desse menino que devem tê-lo tornado maior do que sua realidade humana.
Ele é “lépido viajante”, uma “gema que resplandece” e, o que é ainda mais
significativo, é capaz de conjugar “terra e céu em uma só imagem”. O
“H.C.” do poema é muito mais do que Hartley Coleridge, e não é
simplesmente uma imagem do frescor e da inocência pueris. Ele possui
aquela “visão abençoada” que lhe permite transcender a dicotomia entre céu
e terra, de tal modo que parece “suspenso num riacho tão claro como o
firmamento”. O H.C. do poema é um ser frágil mas definitivamente
transcendente, em relação a quem o verdadeiro Hartley Coleridge podería
ter servido como pouco mais que inspiração inicial.
A imagem da criança divina é igualmente importante na Ode. Neste poema,
a pureza e a sabedoria superior da criança especial estão claras na oitava
estrofe:
Thou, whose exterior semblance doth belie
Thy soul's immensity;
Thou best Philosopher, who yet dost keep
Thy heritage, thou Eye among the blind,
That, deaf and silent, read’st the eternal deep,
Haunted forever by the eternal mind,
Mighty Prophet! Seer blest!
On Whom those truths do rest,
Which we are toiling all our lives to find,
In darkness lost, the darkness of the grave;
Thou, over whom thy Immortality
Broods like the Day, a Master o’er a Slave,
A presence which is not to be put by;
....................................................................
Thou little Child, yet glorious in the might
of heaven-born freedom...*
Tu, cuja aparência exterior sempre trai
A imensidão da tua alma;
Tu melhor Filósofo, que porém deves manter
Tua herança, tu Olho entre cegos,
Que, surdo e silente, enxergas a profundeza eterna,
Para sempre acossado pela mente eterna,
Poderoso Profeta! Abençoado Vidente!
Em quem essas verdades de fato repousam,
Que em nossa vida inteira labutamos por encontrar,
Perdidos na escuridão, nas trevas do túmulo;
Tu, em quem tua Imortalidade
Paira como o Dia, Mestre acima do Escravo,
Presença que não se deve refugar;
..................................................................................
Tu, pequena Criança, porém glorioso na força
da liberdade nascida dos céus...
Algumas imagens de crianças nos poemas de Wordsworth exibem, portanto,
os atributos que Jung considerava típicos do arquétipo da criança. Elas
costumam demonstrar uma percepção espiritual especial, podem funcionar
como arautos ou possuir o poder de curar, podem ser dotadas de uma
afinidade peculiar com a natureza, podem parecer frágeis ou ameaçadas. O
arquétipo da criança, sob muitos tipos de configuração, reaparece
frequentemente nos poemas de Wordsworth e, dessa forma, o que Jung
apresenta acerca do significado do mesmo pode ampliar a nossa
compreensão dessa obra poética. Principalmente a interpretação junguiana
do arquétipo da criança pode contribuir para uma compreensão mais ampla
do trabalho intitulado Ode: Intimations of Immortality from Recollections of
Early Childhood.
A Ode é, sem dúvida, um poema bastante discutido. Durante um certo
tempo, a visão crítica predominante foi a de que, nesse poema, o autor
lamenta a perda da percepção espiritual que havia na sua infância. Segundo
essa análise, as estrofes finais do poema traduzem uma sensação de
resignação, por exemplo, nas seguintes linhas: “What though the radiance
that was once so bright / Be now forever taken from my sight.” (“Que
importa o esplendor de um dia tão majestoso / Agora para sempre distante
dos meus olhos”). De uns tempos para cá tem ganho mais adeptos a
perspectiva segundo a qual o final do poema é alguma espécie de
afirmação. Decerto as linhas da décima estrofe da Ode, “Then sing, ye
birds, sing, sing a joyours song/ And let the young lambs bound” (“Então
cantai, ó aves, cantai, cantai uma canção jubilosa / E que os jovens
cordeiros saltitem”), parecem pelo menos afirmativas, quando não
eufóricas. A interpretação dada por Jung ao arquétipo da criança endossa a
visão de que é afirmativa a parte final da Ode. Além disso, as ideias
junguianas podem fazer parte de um entendimento mais claro do que o
poema está afirmando.
Jung diz que o aparecimento do arquétipo da criança está “condicionado a
uma dissociação prévia entre o passado e o presente”. Essas dissociações,
acrescenta, “acontecem em virtude de várias incompatibilidades”. Um
exemplo de uma vítima dessa incompatibilidade, observa ele, seria o
homem que “entrou em conflito com o seu estado de infância”. Esse homem
sente-se “artificial, alheio ao universo infantil,” como se tivesse “perdido
suas raízes”. A mente desse homem estaria sendo confrontada por uma
“colisão de opostos” entre o seu estado presente e o seu estado de infância,
e a criança arquetípica viria a simbolizar “um estado nascente de
consciência,” um estado mental em desenvolvimento do qual ele ainda não
está ciente. Depois de plenamente desenvolvido e, por isso, conscientizado,
esse novo estado mental transcenderá a aparente “colisão de opostos,”
incorporando elementos dos dois polos da oposição entre a criança e o
homem.10
A interpretação de Jung explica a fenomenologia do arquétipo da criança. A
criança pode ser etérea, radiante ou especialmente sábia porque representa
um nível mais elevado de percepção consciente. Está em sintonia perfeita
com as forças naturais porque representa um nível superior de consciência,
porque, como diz Jung, representa uma “totalidade que abrange os próprios
fundamentos da Natureza”.11 A criança funciona como arauto ou curadora
porque simboliza o estado de percepção consciente que transcenderá a
dolorosa “colisão de opostos”. E a qualidade frágil, às vezes evidente no
arquétipo da criança, deriva da natureza provisória do estado mental ainda
em desenvolvimento. Como salienta Jung, “os motivos da insignificância,
do estar exposta, abandonada, em perigo, etc. tentam evidenciar o quanto é
precária a possibilidade psíquica da totalidade”.12
Os poemas de Wordsworth amiúde refletem uma “colisão de opostos”
junguiana. Na Ode e em outros poemas, Wordsworth retrata duas
modalidades aparentemente incompatíveis de percepção consciente: a
“esplêndida visão” da criança simples e a prosaica visão de mundo da idade
adulta. Na Ode, Wordsworth descreve o processo gradual de distanciamento
da consciência espiritual existente na infância, à medida que a pessoa vai
crescendo. “O céu está à nossa volta durante a infância,” ele diz, mas “as
sombras da prisão começam a se fechar / Em tomo do menino que vai
crescendo,” embora ele ainda “contemple a luz.” “O Jovem”, diz
Wordsworth, “ainda é o Sacerdote da Natureza”, embora ele “a cada dia
mais distante do leste / Deva viajar”. Finalmente, o “Homem” perde essa
visão especial que é a da infância. Ele “percebe que vai morrendo / E
desvanecendo-se na luz do dia qualquer”. Assim, Wordsworth descreve duas
modalidades de percepção consciente que parecem ser incompatíveis e
irreconciliáveis; ele está preso numa colisão de opostos junguiana.
A percepção que Wordsworth tem desses dois modos de ver (que são, na
verdade, dois modos de ser) e sua predileção pela naturalidade e pela
simplicidade do modo infantil, em oposição à artificialidade e estreiteza do
modo adulto, produzem alguns desdobramentos incomuns em sua poesia.
E m The Widow on Windermere Side, por exemplo, para que a viúva
recupere a espiritualidade infantil ela deve abrir mão de sua razão, de sua
forma adulta de pensar, passando a existir num estado de sublime
insanidade. De forma ainda mais drástica, em alguns outros poemas as
crianças naturais são colocadas em rota de fuga da morte em vida que é a
idade adulta, simplesmente morrendo. Em outras palavras, a morte parece
preferível a crescer. Isso poderia ser chamado de a “síndrome de Peter Pan”.
Lucy Gray, podemos recordar, desaparece numa nevasca, mas, em vez de
morrer, permanece suspensa num abençoado estado pueril. “Três Anos Ela
Cresceu” sugere que Lucy, chamada pela “Natureza”, pode ter a sorte de
morrer. Em The Prelude, VII, Wordsworth lembra-se de um “menino
adorável” que tinha visto em Londres e observa que poderia ter sido melhor
“que essa linda criatura, detida / Por um privilégio especial do amor da
Natureza / Permanecesse para sempre em sua infância!” (ii, 374-376).
Richard J. Onorato, ao discutir esse trecho, afirma que “Wordsworth pode
imaginar a morte... como um recuo adequado da vida no presente histórico,
que tantas vezes mata o espírito antes do homem”.13
A morte, no entanto, é uma alternativa muito drástica para evitar o
crescimento e pouco mais atraente se torna, mesmo que crescer signifique a
perda da percepção consciente das essências espirituais das coisas.
Preferível, sem dúvida, seria alcançar um modo de ver, ou de ser, que
transcendesse a dicotomia, que permitisse à pessoa ou enxergar como as
crianças ou ver como os adultos, ou talvez como ambos ao mesmo tempo.
Na Ode, Wordsworth apresenta de início a dualidade dos modos de ver da
criança e do homem, lamentando que “As coisas que vi não posso agora ver
mais”. Alguns críticos têm achado que o poema não ultrapassa o nível dessa
dualidade, que, se existe algo positivo a respeito do seu final, é somente que
seu autor alcançou uma espécie de resignação. Babenroth, por exemplo,
conclui que, na Ode, Wordsworth está “satisfeito em permanecer na
infância, porque ali o senso de união não foi perturbado pela interposição
da razão”.14 Essa perspectiva não leva plenamente em conta, porém, a
conclusão do poema, que sugere, com clareza, o ingresso num nível de
consciência em que se combinam o êxtase da criança e a razão do adulto,
transcendendo assim o dualismo.
Na nona estrofe da Ode, Wordsworth afirma que “Nem o Homem nem o
Menino” podem “abolir ou destruir por completo” as “Verdades que,
despertas, jamais perecerão”. Assim dizendo, o poeta sugere que tanto o
Homem como o Menino são, em certa medida, ameaças à verdade, e
podemos inferir que são ameaças porque nenhum dos dois tem uma visão
ampla o bastante para abarcar inteiramente a realidade. Por conseguinte,
Wordsworth não escolheria ser qualquer um dos dois, mas sim uma mescla
das melhores qualidades de ambos. A mesma estrofe revela que ele deve
usar a razão do homem para resgatar a fé da criança na “glória e no sonho”.
Ao contemplar aqueles momentos em que vislumbrou “a fonte de luz de
todos os nossos dias” e pelo “indagar obstinado / Do sentido e das coisas
externas,” ele é capaz de mais uma vez ver “o mar imortal” e “ouvir as
águas majestosas ondulando para sempre”. Na conclusão da Ode,
Wordsworth afirma que a pura simplicidade intuitiva da criança pode ser
recuperada por meio do raciocinar sintético do homem. Este alcança um
modo de ser que transcende a dualidade entre a criança e o homem.
Contemplar na tranquilidade aqueles momentos do nosso passado em que “a
glória e o sonho” eram perceptíveis permite à pessoa viajar “por um
instante” de volta ao “mar imortal”. O orador do poema alcança assim um
terceiro nível de visão, muito semelhante ao que vivenciou Owain,
predecessor mítico de Gawain, na descrição de Zimmer:
Ele atinge uma fusão harmoniosa das personalidades consciente e
inconsciente, em que a primeira tem ciência dos problemas e controles do
mundo visível, fenomênico, e a última, a intuição daquelas nascentes mais
profundas do ser das quais procedem perpetuamente tanto o fenomênico
como sua testemunha consciente. Esse estilo de vida integrado de modo
harmonioso é a dádiva que a natureza concede a todo bebê, de um modo
preliminar e indeciso, e que, ao crescer, ele depois perde, com o
desenvolvimento de sua individualidade autoconsciente.15
Assim, a Ode afirma a possibilidade de uma síntese entre a criança e o
homem.
O significado das crianças arquetípicas, na poesia de Wordsworth, é,
portanto, duplo. Em primeiro lugar, elas frequentemente incorporam a
capacidade de apreender a realidade de maneira direta, de alcançar uma
percepção mística consciente das verdades essenciais, sem a interposição da
razão. Em segundo lugar, como sugere Jung, o símbolo-criança afirma o
potencial frágil de atingir a totalidade. Na Ode, o surgimento de crianças
envoltas em divindade, logo no início do poema, é um emblema do
potencial para a transcendência da dualidade existente entre a criança e o
homem. O orador, no término do poema, já transcendeu essa dualidade:
tanto se tornou contemplativo, por ter alcançado a “mente filosófica”, como
pueril, por novamente conseguir ver e ouvir “o mar imortal”. Disso decorre
a tonalidade eufórica das linhas que abrem a décima estrofe: “Então cantai,
ó aves, cantai, cantai uma canção jubilosa / E que os jovens cordeiros
saltitem.” Certamente as percepções do homem não são idênticas às da
criança, pois o “esplendor um dia tão majestoso” não voltou. Diversamente
da criança, no entanto, que é “surda e silente”, o orador pode ver, ouvir e
falar. Assim, através do poema, ele pode partilhar conosco suas percepções
transcendentes.
4. Devaneios sobre a infância
GASTON BACHELARD
O melhor, o mais puro e o mais elevado da criança são repetidamente
louvados por Gaston Bachelard neste excerto de seu livro The Poetics of
Reverie [A poética do devaneio], de 1971. O autor, que se destaca entre os
modernos pensadores franceses, investiga não só a vivência da infância, a
criança no adulto e o arquétipo da criança, mas também a infância não-
vivida, a promessa da criança interior, a criança potencial, ainda por
viver: “Existe dentro de nós uma criança em potencial. Quando vamos em
sua busca em nossos devaneios revivemo-la ainda mais nas suas
possibilidades do que na sua realidade. ”
Bachelard não escreve, paira. Não compreende, vê. Leia seu ensaio e
descubra a base poética da realidade da criança: “Dentro de nós, ainda
dentro de nós, sempre dentro de nós, a infância é um estado de espírito ”
I
Quando, inteiramente a sós e sonhando por um tempo até que
razoavelmente longo, nos afastamos do presente para reviver os tempos
iniciais da vida, várias faces infantis vêm ao nosso encontro. Em nossa vida
provisória, em nossa vida primitiva, fomos vários. Somente através do
relato de terceiros é que chegamos depois a conhecer nossa unidade.
Acompanhando o fio da nossa história, da forma como é contada pelos
outros, ano após ano, terminamos parecendo-nos com nós mesmos.
Reunimos todos os nossos seres em tomo da unidade do nosso nome.
Mas o devaneio não repete o relato. Ou, pelo menos, existem devaneios tão
profundos, que nos ajudam a descer tão fundo dentro de nós mesmos, que
somos por eles libertados da nossa história. Esses devaneios libertam-nos
do nosso nome. Esse momento de solidão no hoje nos remete às nossas
solidões originais. Estas, as solidões da infância, deixam marcas indeléveis
em determinadas almas. Sua vida inteira é impregnada pelo devaneio
poético, que conhece o preço da solidão. A infância conhece a infelicidade
através das pessoas. Na solidão, ela pode relaxar de suas dores. Quando o
mundo humano deixa a criança em paz, ela se sente filha do cosmo. E
assim, em sua solidão, a partir do momento em que se torna mestra de seus
devaneios, a criança conhece a felicidade de sonhar aquela que mais tarde
será a felicidade dos poetas. Como é possível não sentir que existe
comunicação entre a nossa solidão de sonhadores e as solidões da infância?
E não é por acaso que, num devaneio tranquilo, muitas vezes descemos pela
encosta que nos faz regressar às solidões da nossa infância.
Deixemos, então, à psicanálise a incumbência de curar as infâncias mal
vividas, de curar os padecimentos pueris de uma infância endurecida que
oprime a psique de tantos adultos. Existe uma tarefa, aberta à análise
poética, que nos ajudaria a reconstituir, dentro de nós, o ser das solidões
libertadoras. A análise poética deve recuperar para nós todos os privilégios
da imaginação. A memória é um campo repleto de ruínas psicológicas, um
baú de recordações. Nossa infância inteira permanece ali para ser
reimaginada. Quando a reimaginamos, temos a possibilidade de recuperar
com ela a própria vida das fantasias da criança solitária que fomos.
Daí em diante, as teses que desejamos defender neste capítulo retornam
todas para nos fazer reconhecer, dentro da alma humana, a permanência de
um núcleo de infância, uma infância imóvel mas sempre-viva, alheia à
história, oculta dos outros, disfarçada de história quando relatada, mas que
tem sua verdadeira realidade somente nos instantes de sua iluminação, o
que é o mesmo que dizer nos momentos de sua existência poética.
Quando sonha em sua solidão, a criança conhece uma existência que não
tem limites. Seu devaneio não era simplesmente uma fantasia de fuga. Era
um devaneio de voo.
Existem devaneios de infância que ressurgem com o esplendor do fogo. O
poeta encontra novamente sua infância quando a relata com a entonação do
fogo.
Tone of fire. I shall tell what my childhood was.
We unearthed the redmoon in the thick of the woods.1
Tonalidade de fogo. Direi o que foi a minha infância.
Desenterramos a lua vermelha no coração das florestas.
Um excesso de infância é o germe de um poema. Seria motivo de riso o pai
que, movido pelo amor ao filho, fosse “desenganchar a lua”. Mas o poeta
não se intimida diante desse gesto cósmico. Em sua memória escaldante, ele
sabe que esse é o gesto da infância. A criança sabe muito bem que a lua, a
grande ave loura, faz seu ninho em algum lugar da floresta.
Assim, as imagens da infância, aquelas que uma criança poderia gerar,
aquelas que um poeta nos diz terem sido geradas por uma criança são, para
nós, manifestações da infância permanente. Essas são as imagens da
solidão. Transmitem a continuidade dos grandes devaneios infantis na
fantasia dos poetas.
II
Assim, parece que, com a ajuda das imagens do poeta, a infância pode ser
revelada em sua beleza psicológica. Como podemos então evitar falar de
beleza psicológica quando somos confrontados por um acontecimento
encantador da nossa vida interior? Essa beleza está dentro de nós, nos
alicerces da nossa memória. É a beleza de um voo que nos reaviva, que
insere o dinamismo de uma das belezas da vida que há dentro de nós.
Durante a nossa infância, a rêverie nos concedeu liberdade. É surpreendente
que o campo mais favorável para receber a consciência da liberdade não
seja outro além do devaneio. Apreender essa liberdade quando ela intervém
no devaneio de uma criança é paradoxal somente se nos esquecemos de que
ainda sonhamos com a liberdade do mesmo jeito que sonhávamos com ela
quando éramos crianças. Que outra liberdade psicológica temos além da
liberdade de sonhar? Em termos psicológicos, é no devaneio que somos
seres livres.
Uma infância em potencial vive em nós. Quando vamos atrás dela, no nosso
devaneio, revivemo-la ainda mais em suas possibilidades do que em sua
realidade.
Sonhamos com tudo o que poderia ter existido; sonhamos no limiar entre a
história e a lenda. Para alcançar as lembranças das nossas solidões,
idealizamos os mundos nos quais fomos crianças solitárias. Portanto, é um
problema, para a psicologia prática, levar em conta a própria idealização
real das recordações da infância e o interesse pessoal que temos pelas
reminiscências infantis. E, por essa razão, existe uma comunicação entre
um poeta da infância e o seu leitor através da intermediação da infância que
permanece dentro de nós. Sobretudo, essa infância continua sendo receptiva
a qualquer abertura diante da vida e nos possibilita entender e amar as
crianças como se fôssemos iguais a elas na vida original.
Um poeta fala conosco e somos uma água que ganhou vida, uma nova
nascente. Ouçamos Charles Plisnier:
Ah, provided I consent to it
my childhood there you are
as alive, as present
Firmament of blue glass
tree of leaf and snow
river that runs, where am I going?2
Ah, desde que eu consinta,
minha infância, ai está você
tão viva, tão presente
Firmamento de vidro azul
árvore de folha e neve
rio que corre, para onde estou indo?
Ao ler estas linhas vejo o céu azul acima do meu rio nos verões do outro
século. O ser do devaneio cruza todas as idades do homem, da infância à
senectude, sem envelhecer. Por isso é que sentimos uma espécie de
duplicação do devaneio mais adiante na vida, quando tentamos recuperar as
fantasias da infância, devolvendo-lhes a vida.
Essa consagração do devaneio, o aprofundamento que sentimos quando
sonhamos com a nossa infância, explica que, em todos os devaneios,
mesmo naqueles que nos levam à contemplação de uma grande beleza no
mundo, logo nos deparamos regressando aos antigos devaneios,
repentinamente tão antigos que nem mais pensamos em datá-los. Um
vislumbre de eternidade desce então sobre o mundo. Estamos postados
diante de um grande lago cujo nome é conhecido dos geógrafos, no alto das
montanhas, e de repente estamos voltando a um passado distante. Sonhamos
enquanto recordamos. Recordamos enquanto sonhamos. Nossas recordações
nos remetem a um simples rio que reflete um céu debruçado nas colinas.
Mas a colina cresce e a curva do rio se alarga. O pequeno torna-se grande.
O mundo do devaneio infantil é grande, maior do que o mundo oferecido à
fantasia de hoje. Do devaneio poético, inspirado por algum grande
espetáculo do mundo, ao devaneio da infância, existe uma barganha de
magnitudes. E é por isso que a infância está na origem das maiores
paisagens. As solidões da nossa infância nos proporcionaram as imensidões
primordiais.
Ao sonhar com a nossa infância, regressamos ao refúgio dos devaneios, aos
devaneios que nos revelaram o mundo. É o devaneio que nos torna os
primeiros habitantes do mundo da solidão. E habitamos melhor o mundo
porque o habitamos como a criança solitária habita as imagens. No
devaneio da criança a imagem tem precedência em relação a tudo o mais.
As vivências só aparecem depois. Estas se contrapõem ao vento de todo
devaneio de voo. A criança vê tudo grande e lindo. O devaneio de regresso
à infância nos faz retornar à beleza das primeiras imagens.
Pode o mundo ser tão belo agora? Nosso apego à beleza original foi tão
intenso que, se o nosso devaneio nos leva de volta às nossas mais queridas
recordações, o mundo presente perde inteiramente a cor. Um poeta que
escreve um livro de poemas intitulado Concrete Days pode dizer:
...The world totters
when from my past I get
what I need to live in the depths of myself.
...O mundo cambaleia
quando de meu passado recebo
aquilo de que preciso para viver nas profundezas de mim mesmo.
Oh, como seríamos sólidos no nosso íntimo se pudéssemos viver, viver de
novo sem nostalgia e em completo ardor, mergulhados no nosso mundo
primitivo.
Em resumo, não é essa abertura diante do mundo, da qual se valem os
filósofos, uma reabertura diante do prestigioso mundo das contemplações
originais? Mas, em outras palavras, será essa intuição do mundo, essa
Weltanschauung, alguma outra coisa que não uma infância que não ousa
pronunciar seu nome? As fontes de grandiosidade do mundo mergulham
numa infância. Para o homem, o mundo começa com uma revolução da
alma que, com grande frequência, vai de volta até a infância. Um trecho de
Villiers de L’Isle-Adam nos servirá de exemplo. Em 1862, em seu livro Ísis,
ele escreveu a respeito de sua heroína, uma mulher dominadora: “O caráter
de sua mente era autodeterminado e, por transições obscuras, atingia as
proporções imanentes em que o eu é confirmado tal qual é. A hora anônima,
a hora eterna em que as crianças deixam de vaguear os olhos pelo céu e pela
terra soou para ela no seu nono ano. A partir desse momento, aquilo que era
confusamente sonhado nos olhos dessa menininha assumiu uma cintilação
mais fixa: poder-se-ia dizer que ela sentia o significado de si mesma
enquanto despertava em nossas sombras.”4
Dessa forma, numa “hora anônima”, o mundo é afirmado pelo que ele é, e a
alma que sonha é uma consciência da solidão. No final do relato de Villiers
de L’Isle- Adam, a heroína é capaz de dizer: “Minha memória, subitamente
abalada nos profundos domínios do sonho, sentiu lembranças
inconcebíveis.” Desse modo, a alma e o mundo estão ambos abertos para o
imemorial.
Assim, como um fogo esquecido, uma infância sempre pode acender-se
novamente dentro de nós. O fogo do ano passado e o frio de hoje
encontram-se num grande poema de Vincent Huidobro:
In my childhood is born a childhood burning like alcohol
I would sit down in the paths of the night
I would listen to the discourse of the stars
And that of the tree.
Now indifference snows in the evening of my soul.5
Na minha infância nasce uma infância que queima como álcool
Eu me sentava nos caminhos da noite
E ouvia o discurso das estrelas
E o das árvores.
Agora a indiferença neva no entardecer de minh'alma.
Essas imagens, que brotam das profundezas da infância, não são realmente
recordações. Para poder avaliar sua vitalidade, o filósofo teria que ser capaz
de abandonar toda a dialética que, com excessiva rapidez, é consumida
pelos termos “imaginação” e "memória”. Dedicaremos um breve parágrafo
a apontar os limites entre reminiscências e imagens.
III
...O passado não é estável; não retorna à memória nem com os mesmos
traços nem sob a mesma luz. Tão logo o passado se encontra situado no
cerne de uma rede de valores humanos, no seio dos valores internos de uma
pessoa que não esquece, ele aparece como a dupla força da mente que
lembra e da alma que festeja sua fidelidade. A alma e a mente não têm a
mesma memória. Sully Prudhomme, que sentiu pessoalmente essa divisão,
escreveu:
Oh, memory, the soul renounces,
Frightened, to conceive you.
Ó memória, a alma renuncia
Assustada, a conceber-te.
Só quando a alma e a mente são unidas num devaneio, pelo devaneio
mesmo, é que nos beneficiamos da união entre a imaginação e a memória.
Nela podemos dizer que estamos revivendo o passado. O nosso ser passado
imagina-se vivendo de novo.
A partir daí, para constituir a poética de uma infância delineada num
devaneio, é necessário outorgar às reminiscências sua atmosfera de
imagens. Para tornar mais claras as reflexões do nosso filósofo quanto à
recordação do devaneio, distingamos alguns pontos polêmicos entre fatos e
valores psicológicos.
Na sua primitividade psíquica, a imaginação e a memória aparecem num
complexo indissolúvel. Se estiverem vinculadas à percepção, estão sendo
precariamente analisadas. O passado recordado não é apenas um passado da
percepção. Uma vez que a pessoa está lembrando, o passado já está sendo
designado num devaneio como valor de uma imagem. Desde seu início
mesmo, a imaginação cobre aquelas pinturas que desejará ver de novo. Para
que os fatos alcancem os arquivos da memória, os valores devem ser
redescobertos mais além dos fatos. A familiaridade não é analisada
contando-se as repetições. As técnicas da psicologia experimental
dificilmente podem alimentar a esperança de empreender um estudo da
imaginação do ponto de vista de seus valores criativos. Para reviver os
valores do passado, a pessoa precisa sonhar, aceitar a grande expansão da
psique conhecida como rêverie, na paz de um imenso repouso. Então, a
memória e a imaginação se rivalizam no empenho de nos restituir as
imagens que pertencem às nossas vidas...
Esse projeto fenomenológico de coletar a poesia dos devaneios da infância
na sua concretude pessoal é, naturalmente, muito diferente dos exames da
criança realizados pelos psicólogos, todos muito objetivos e úteis. Mesmo
deixando-se a criança falar à vontade, observando-a sem pré-requisitos
enquanto desfruta da total liberdade de brincar, ouvindo-a com a delicada
paciência de um psicanalista infantil, não se obtém necessariamente a
pureza simples do exame fenomenológico. As pessoas são muito bem-
educadas para isso e, nessa medida, exageradamente dispostas a aplicar o
método comparativo. Uma mãe que vê seu filho como uma pessoa
incomparável está mais perto da verdade. Mas, infelizmente, uma mãe não
sabe disso por muito tempo... A partir do momento em que a criança atinge
a “idade da razão”, a partir do momento em que perde seu direito absoluto
de imaginar o mundo, sua mãe, como todos os educadores, atribui-se a
incumbência de ensiná-la a ser objetiva - objetiva no sentido simples em
que os adultos acreditam ser “objetivos”. Ele é preenchido com
sociabilidade. Ele é preparado para a vida como homem, segundo as
diretrizes do ideal do homem estabilizado. Ele também é instruído a
respeito da história de sua família. São-lhe ensinadas a maior parte das
recordações do início da sua infância, uma história completa que a criança
sempre será capaz de contar de novo. A infância - aquela pasta informe! - é
colocada dentro dos moldes para que a criança siga de perto as pegadas das
existências alheias.
Assim, a criança entra na zona de conflitos da família, da sociedade e da
vida psíquica. Torna-se um homem prematuro. É o mesmo que dizer que
esse homem prematuro se encontra num estado de infância reprimida.
A criança questionada, examinada pelo psicólogo adulto... não entrega sua
solidão. A solidão da criança é mais secreta do que a solidão de um homem.
É em geral tarde na vida que descobrimos nossas solidões da infância e da
adolescência em toda sua profundidade. No último quarto da vida,
compreendemos as solidões do primeiro quarto, ao refletirmos na solidão da
velhice as esquecidas solidões da infância.6 A criança sonhadora está muito,
muito sozinha. Vive no mundo de seus devaneios. Sua solidão é menos
social, menos relacionada com a sociedade do que a dos homens. A criança
conhece a rêverie natural da solidão, o devaneio que não deve ser
confundido com a da criança amuada. Em sua solidão feliz, a criança
sonhadora conhece o devaneio cósmico que nos vincula ao mundo.
Na nossa opinião, é nas lembranças dessa solidão cósmica que devemos
encontrar o núcleo da infância que permanece no centro mesmo da psique
humana. É lá que a imaginação e a memória estão mais intimamente
entrelaçadas. É lá que o ser da infância liga o real ao imaginário, que ele
vive as imagens da realidade na total imaginação. E todas essas imagens de
sua solidão cósmica reagem profundamente no ser da criança; além de seu
ser para os homens, é criado sob a inspiração do mundo um ser para o
mundo. Esse é o ser da infância cósmica. Os homens passam; o cosmo
permanece, um cosmo para sempre primitivo, cosmo que os maiores
espetáculos da Terra não poderão apagar, ainda que no decurso de uma vida
inteira. A qualidade cósmica de nossa infância permanece conosco. Na
solidão, ela reaparece em nossos devaneios. Esse núcleo da infância
cósmica é, então, como uma falsa lembrança dentro de nós. Nossos
devaneios solitários são as atividades de uma meta-amnésia. Parece que
aqueles nossos devaneios que se dirigem às rêveries da nossa infância nos
introduzem num ser precondicional ao nosso ser, numa perspectiva
completa sobre a antecedência do ser.
Éramos nós, ou estivemos sonhando ser, e agora, ao sonhar sobre a nossa
infância, somos nós mesmos?...
Se os sentidos recordam, não irão eles encontrar, dentro de alguma
arqueologia do perceptível, esses “sonhos minerais”, esses sonhos dos
“elementos”, que nos vinculam ao mundo numa “infância eterna”?
“Do fundo de mim mesmo até o alto,” diz o poeta. “Do fundo de mim
mesmo que vem do fundo de mim mesmo,” diz o devaneio que procura
recuar o olhar até as nascentes (as fontes) do ser; essas são as provas da
antecedência do ser. Os poetas procuram essa antecedência do ser, portanto,
ela existe. Tal certeza é um dos axiomas da filosofia do onirismo.
Onde mais os poetas são incapazes de lembrar? Não será o início da vida
um teste para a eternidade? Jean Follain pode escrever:
While in the fields
of his eternal childhood
the poet wakes
and doesn’t want to forget anything.
Enquanto está nos campos
de sua eterna infância
o poeta desperta
e não quer esquecer nada.
Como é grande a vida quando a pessoa medita sobre seus primórdios!
Meditar sobre a origem não será sonhar? E não será o sonhar sobre a
origem algo que a transcende? Para além de nossa história estende-se
“nossa incomensurável memória,” para utilizarmos uma expressão que
Baudelaire tomou emprestada de Quincey.8
Para forçar o passado, quando o esquecimento nos está cercando, os poetas
nos levam a reimaginar a infância perdida. Ensinam-nos as “audácias da
memória”.9 Um certo poeta nos fala que o passado deve ser inventado:
Invent. There is no lost feast
At the bottom of memory.
Invente. Não existe festa perdida
No fundo da memória.
E quando o poeta inventa as grandes imagens que revelam a intimidade do
mundo, ele não está lembrando?...
É assim que o poeta diz:
Of chiidhoods I have so many
That I would get lost counting them.11
Infâncias: eu tenho tantas
Que ficaria perdido contando-as.
...E estaremos sempre de volta à mesma certeza onírica: a infância é a água
humana, uma água que procede das sombras. Essa infância nas brumas e
cintilações, essa vida na lentidão do limbo nos confere uma certa camada de
nascimentos. Quantas primaveras perdidas que, não obstante, passaram! O
devaneio na direção do nosso passado, então, o devaneio que busca a
infância parece trazer de volta as vidas que nunca aconteceram, as vidas
que foram imaginadas. O devaneio é a mnemônica da imaginação. No
devaneio, recuperamos o contato com possibilidades que o destino não
conseguiu usar. Um grande paradoxo está ligado aos nossos devaneios
relativos à infância: em nós, esse passado morto tem um futuro, o futuro de
suas imagens vivas, a rêverie future que se abre diante de qualquer imagem
redescoberta.
IV
Toda infância é prodigiosa, naturalmente prodigiosa. Não que se permita ser
impregnada, como somos tentados a crer, pelas fábulas sempre artificiais
que lhe são contadas e que servem apenas para divertir o parente mais velho
que faz o relato. Quantas avós não consideram seus netinhos pequenos
idiotas! Mas a criança, que nasceu maliciosa, mobiliza a mania de contar
histórias, as eternas repetições da romântica velhice. A imaginação da
criança não vive dessas fábulas fósseis, desses fósseis de fábulas. Ela está
em suas próprias fábulas. A criança encontra suas fábulas em seus
devaneios, fábulas que ela não conta para ninguém. Então a fábula é a
própria vida: “Vivi sem saber que estava vivendo a minha fábula.” Esse
grande verso está num poema intitulado I am sure of nothing12 [Não tenho
certeza de nada]. A criança permanente sozinha pode nos devolver o mundo
da fábula. Edmond Vandercammen suplica à infância que “deslize para mais
perto do céu”.13
The sky is waiting to be touched by a hand
Of fabulous childhood
- Childhood, my desire, my queen, my cradlesong -
By a breath of the morning.**
O céu está esperando para ser tocado por uma mão
De fabulosa infância
— Infância, meu desejo, minha rainha, minha canção de ninar —
Pelo hálito da manhã.
Além disso, como poderíamos contar as nossas fábulas, quando
precisamente falamos delas como “fábulas”? Mal sabemos mais o que,
afinal de contas, é uma fábula sincera. Os adultos escrevem histórias
infantis com demasiada facilidade. Por isso produzem fábulas pueris. Para
penetrar nos tempos fabulosos é necessário ser sério como uma criança
sonhadora. A fábula não distrai o espírito, ela encanta. Perdemos a
linguagem dos encantamentos. Thoreau escreveu: “Parece que nós só
ansiamos, durante a maturidade, por contar os sonhos da nossa infância, e
estes se desvanecem da nossa memória antes de conseguirmos aprender sua
linguaguem.”14
Para redescobrir a linguagem das fábulas, precisamos participar do
existencialismo do fabuloso, dar corpo e alma a um ser que se admire e
substituir a percepção do mundo por admiração. Admiração para receber as
qualidades daquilo que é percebido. E até mesmo no passado, para admirar
a memória. Quando Lamartine regressou a Sant- Point, em 1849, local em
que estava prestes a reviver seu passado, escreveu: “Minha alma não era
nada além de um cântico de ilusões.”15 Confrontado por testemunhas do
passado, com objetos e um lugar que convocam reminiscências e as tornam
precisas, o poeta descobre a união entre a poesia da memória e a verdade
das ilusões. As recordações da infância revividas no devaneio são, na
realidade, “cânticos de ilusão” no fundo da alma.
Ah, será que a criança que existe dentro de nós permanece sob o signo da
infância proibida? Hoje estamos no reino das imagens, imagens que são
mais livres que as lembranças. A interdição do estado de suspensão que
permite o sonhar desimpedido não depende da psicanálise. Além dos
complexos parentais, existem complexos antropocósmicos contra os quais o
devaneio nos ajuda a reagir. Esses complexos bloqueiam na criança aquilo
que poderíamos chamar, como Bosco, de infância proibida. Todos os sonhos
infantis devem ser retomados novamente para assumir toda a extensão de
seu voo poético. Essa tarefa deve ser empreendida pela análise poética.
Mas, para que seja posta em prática, precisaríamos ser tanto poetas como
psicólogos, o que é uma imensa tarefa para um só homem.
Em nossos sonhos de volta à infância, nos poemas que todos gostaríamos de
escrever para dar nova vida, outra vez, aos devaneios originais, para nos
devolver o universo da felicidade, a infância aparece no próprio estilo da
psicologia profunda, como um verdadeiro arquétipo, o arquétipo da simples
felicidade. É por certo uma imagem em nós, um centro para imagens que
atrai imagens felizes e repele as experiências de infelicidade. Mas essa
imagem, no seu princípio, não é completamente nossa; ela tem raízes mais
profundas do que as nossas meras recordações. Nossa infância testemunha a
infância do homem, do ser que é tocado pela glória de estar vivo.
A partir daí, as recordações pessoais, nítidas e frequentemente retomadas,
jamais explicarão de modo cabal por que os devaneios que nos transportam
de volta à nossa infância exercem tal fascínio, têm uma tal qualidade de
alma. A razão dessa qualidade que resiste às experiências da vida é que a
infância permanece, dentro de nós, como um princípio de vida profunda, de
vida sempre em harmonia com as possibilidades de novos começos. Tudo
que em nós começa com a nitidez de um início é uma loucura da vida. O
grande arquétipo da vida que começa traz para cada início a energia
psíquica que Jung reconheceu em todo arquétipo.
Como os arquétipos do fogo, da água e da luz, o da infância, que é uma
água, um fogo que se torna luz, produz uma grande abundância de
arquétipos fundamentais. Em nossos devaneios de volta à infância, todos os
arquétipos que vinculam o homem ao mundo, que proporcionam uma
harmonia poética entre o homem e o universo são, de alguma forma,
revitalizados.
Dentro de nós, ainda dentro de nós, sempre dentro de nós, a infância é um
estado de espírito.
5. O motivo da criança divina
JUNE SINGER
A criança divina é uma manifestação universal do arquétipo da criança.
Vemo-la em exemplos como o da madona com o bebê e o da criança como
deus e herói, nos mitos. June Singer, que é analista junguiana e escritora,
utiliza tanto sua experiência clínica como seus extensos conhecimentos de
mitologia para esboçar uma imagem da qualidade divina da criança
interior. Este texto foi extraído de seu livro Boundaries of the Soul [As
Fronteiras da Alma], uma rica pesquisa sobre a psicoterapia do ponto de
vista junguiano.
O arquétipo da criança divina costuma aparecer prenunciando uma
transformação psíquica. Seu surgimento assinala as grandes eras na história
do mundo, anunciadas pela vinda de um bebê que destrona a antiga ordem
e, com paixão e inspiração, dã início a uma outra. Para mim, não existe
nada onde o poder desse arquétipo esteja mais bem expresso do que no
poema de William Blake intitulado A Song of Liberty [Uma Canção de
Liberdade]. O Eterno Feminino, a anima, dá à luz uma criança divina, um
deus-sol com cabelos flamejantes. Isto acende a ciumenta ira do velho rei, o
“rei estrelado”, da noite e das trevas e de toda a decadência que já se abateu
sobre o mundo. Embora o rei arremesse a criança divina para longe no mar
ocidental, ela não morre afogada. Uma viagem noturna pelo mar acontece
então e, ao terminar, o filho da manhã ergue-se a leste para trazer sua luz ao
mundo:
The Eternal Female groan'd! it was heard all over the Earth!
...In her trembling hands she took the new born terror,
howling:
On those infinite mountains of light, now barr’d out by the
atlantic sea, the new born fire stood before the starry
king!
Flag’d with grey brow’d snows and thunderous visages, the
jealous wings wav’d over the deep.
The speary hand bumed aloft, unbuckled was the shield;
forth went the hand of jealousy among the flaming hair,
and hurl’d the new bom wonder thro’ the starry night.
The fire, the fire is falling!...
The fiery limbs, the flaming hair, shot like the sinking sun
into the western sea...
With thunder and fire, leading his starry hosts thro’ the
waste wilderness, [the gloomy king] promulgates his ten
commands, glancing his beamy eyelids over the deep in dark
dismay,
Where the son of fire in his eastern cloud, while the
morning plumes her golden breast.
Spurning the clouds written with curses, stamps the stony
law to dust, loosing the eternal horses from the dens of
night, crying:
Empire is no more! And now the Lion & Wolf shall cease.1
A Fêmea Eterna gemeu! E ouviu-se por toda a Tena!
...Em suas mãos trêmulas pegou o novo terror que acabara de nascer,
gemendo:
Naquelas montanhas infinitas de luz, agora ocultas pelo
mar atlântico, o fogo recém-nascido ergueu-se diante
do rei estrelado!
Adornado com neves cinzentas e castanhas e semblante tempestuoso,
as invejosas asas desfraldou sobre as profundezas.
A mão pontiaguda incandesceu no ar, desafivelado estava o escudo;
a mão do ciúme avançou para o cabelo flamejante,
e atirou a maravilha recém-nascida para o fundo da noite estrelada.
O fogo, o fogo está caindo!...
Os membros ardendo, o cabelo flamejante, arremessado como o sol a
afundar
no mar ocidental...
Com trovões e fogo, conduzindo suas hostes estreladas pelas
desoladas vastidões selvagens, [o lúgubre soberano] promulga seus
dez mandamentos, lançando suas pálpebras coruscantes por sobre as
profundezas em
sombrio desalento,
Onde o filho do fogo em sua nuvem oriental, enquanto a
manhã empluma seu colo dourado.
Rejeitando aos pontapés as nuvens inscritas com maldições, pisoteia a
pétrea lei reduzindo-a a pó, e liberta os eternos cavalos dos galpões
da noite, gritando:
O Império é morto! E agora cessarão o Leão e o Lobo.
Na análise [junguiana], o motivo da criança frequentemente aparece no
decurso do processo de individuação. A princípio, o analisando tende a
identificá-lo com sua própria infantilidade e, até certo ponto, isso pode ser
apropriado. Sempre que o aparecimento da criança em sonhos ou em outros
tipos de imagens apresentar uma semelhança com o próprio sonhador, ou
com algum aspecto de sua conduta, a imagem pode ser útil para a
compreensão dos elementos pessoais do material em si. Pode servir para
refazer a história do surgimento dos elementos neuróticos até um estágio
anterior de seu desenvolvimento na pessoa.
No entanto, da mesma forma como o material de fantasia pode ser, em
parte, identificado com a história de quem o produz, a imagem da criança
divina também pode ser, em parte, nova, sem evidenciar a menor
semelhança com qualquer experiência anterior desse indivíduo. É esse
último traço que incentiva a imaginação a deter-se na futuridade do
arquétipo, ou seja, a perguntar o que essa imagem tem a sugerir acerca dos
desenvolvimentos ainda embrionários da psique, mas que são dotados do
potencial de crescer e modificar-se.
Assim como nossos filhos são, até certo ponto, extensões de nosso próprio
ego, também a “criança divina” pode ser concebida como extensão da
consciência coletiva. Assim como incutimos nossas esperanças e sonhos em
nossos filhos, desejando que eles realizem as tarefas que deixamos
inacabadas, aquilo que nunca fomos capazes de realizar, também a “criança
divina” representa os ideais de uma cultura que, na realidade, ela não é
capaz de implementar. Muitas vezes, o “salvador” se torna o bode
expiatório dos pecados da sociedade e, por causa de seu sofrimento e
sacrifício, a sociedade pode continuar, até ter uma outra oportunidade.
A criança divina é incomum desde as próprias circunstâncias que cercam
seu nascimento, ou até mesmo desde sua concepção. Talvez seja roubada de
sua mãe, para proteger sua família e comunidade de algum destino cruel.
Moisés, Édipo e Krishna foram tirados de suas mães e criados por
estranhos; Rômulo e Remo foram abandonados na floresta; todas essas
crianças foram salvas para cumprir uma missão especial. Alguma sina
milagrosa manteve-as intactas até que chegasse o momento de cumprirem
seu destino. Nos anos intermediários, a criança tem que superar muitas
dificuldades e desenvolver seu próprio sentimento de propósito e um estilo
de vida que manifeste esse propósito. No momento apropriado, ela se revela
e traz para o plano da realidade aquela mudança dinâmica que sempre foi
sua incumbência. Pouco depois morre, tendo executado a tarefa para a qual
havia sido designada.2
Em nossos sonhos, o aparecimento da criança especial frequentemente
contém em si um significado profundo. Na minha experiência clínica
constatei que é comum aparecer em sonhos a criança assassinada, doente ou
moribunda. Isso pode não ter nenhuma relação com a vida da pessoa, e
então eu me pergunto de que modo o potencial inato da pessoa que está
sonhando está sendo distorcido ou castrado. A análise de detalhes
específicos do material inconsciente e algumas comparações com detalhes
semelhantes, conforme aparecem nas situações arquetípicas da literatura do
mito e das religiões, permitem ao indivíduo ultrapassar seus pontos
imediatos de interesse e enxergar para onde está indo em termos de suas
tarefas de vida individuais. Como apontou Viktor Frankl em Man’s Search
for Meaning, [A Busca de Significado no Homem], onde relata sus
experiências num campo de concentração, aqueles que consideravam a vida
naquelas circunstâncias como “temporária” e só viviam de um dia para o
outro rapidamente perdiam as forças. Os poucos que conseguiram
encontrar, através do sofrimento num lugar onde seus corpos físicos
estavam aprisionados, o desafio de libertar seus espíritos, esses puderam
sobreviver a padecimentos praticamente insuperáveis. A criança divina em
nós proporciona significado aos nossos esforços imaturos; ela nos mostra o
lado inconsciente das limitações que experimentamos, e essa é a visão da
potencialidade que desabrocha.
Um outro arquétipo que é provável que encontremos ao longo do caminho
de individuação foi denominado por Jung puer aeternus, em homenagem ao
deus-criança Iaco, dos mistérios de Elêusis.3 Ovídio, em suas
Metamorfoses, descreve-o como jovem divino, nascido dos mistérios de
culto à mãe. Como deus da vegetação e da ressurreição, tem algumas das
qualidades do redentor. O homem identificado com o arquétipo do puer
aeternus, com a eterna juventude, é aquele que permaneceu tempo demais
na adolescência. Nele, características que são normais no jovem com menos
de vinte anos, permanecem nas etapas posteriores da vida.4 Talvez a
expressão “viver intensamente” possa descrever a que se refere este
arquétipo: o jovem mergulha em suas fantasias mais mirabolantes, entrega-
se a experiências sensoriais intensas apenas pelo gosto da excitação que
sente nelas, reúne amigos quando quer divertir-se e os abandona quando se
tornam de alguma forma uma responsabilidade. Alguns heróis de uma
cultura jovem pertencem a esta categoria e, mais uma vez, “viver
intensamente” é, para alguns, o objetivo de vida exclusivo. Viajar sem
motivo, entrar e sair de vários grupos, são características do puer. A
homossexualidade é uma expressão deste arquétipo, especialmente quando
assume a forma de relações casuais e promíscuas, de natureza compulsiva.
Se o puer tem pendor heterossexual, forma uma ligação após a outra,
apenas para abandoná-las sucessivamente, diante da primeira insinuação de
que alguma forma de compromisso está começando a se tornar
indispensável.
Von Franz, em seu estudo do arquétipo do puer aeternus,5 sugere que o
homem identificado com o mesmo busca como profissão ser piloto, mas
costuma ser rejeitado ao candidatar-se, pois os resultados dos testes
psicológicos evidenciam sua instabilidade e os motivos neuróticos de seu
interesse pela profissão.
Os sonhos de uma pessoa já estabilizada na vida numa posição segura, que
talvez já esteja na meia-idade, podem exibir o funcionamento do arquétipo
do puer aeternus. Os temas de voar (às vezes sem avião, apenas batendo os
braços), dirigir em alta velocidade, mergulhar até o fundo do mar, escalar
montanhas escarpadas, são todos típicos daqueles cujo inconsciente é
dominado por este arquétipo. Esses sonhos podem ser vistos como sinal de
advertência para que a pessoa se conscientize da maneira como o
inconsciente pode estar preparando a invasão de sua vontade autônoma no
âmbito do funcionamento conscientemente determinado.
Existe, evidentemente, uma contraparte feminina do puer, a puella aeterna,
a mulher que tem medo de crescer embora nunca venha a admiti-lo. Mesmo
assim, o medo domina boa parte de sua existência. É aquela que nunca
revela a idade, que adota toda dieta que está na moda e compra todos os
últimos lançamentos de maquiagem que prometem a fantasia do
rejuvenescimento na sua publicidade. É uma “amigona” para os filhos, e é a
eterna coquete diante dos homens. Em seus sonhos, muitas vezes está num
pedestal, inspirando a adoração dos homens, ou é uma sereia, uma
prostituta ou uma ninfeta. Na vida real, é em geral desleixada e impulsiva.
Quando se trata de tomar uma decisão importante, contudo, é muito
hesitante e pede conselhos a um bom número de pessoas. Depois age com
uma surpreendente rapidez e se arrepende de suas ações quase mesmo antes
de estarem concluídas.
Viver o arquétipo da “eterna juventude” não é inteiramente negativo, como
se poderia inferir de algumas maneiras como ele se manifesta. Alguns dos
traços mais proveitosos do puer aeternus ou da puella aeterna são o
entusiasmo juvenil e a inesgotável energia para mantê-lo, a espontaneidade
de pensamento, a produção de ideias novas e de novos meios de resolver
problemas, a disposição para atirar-se em iniciativas em várias direções sem
se deter pelo desejo de conservar o passado e seus valores.
O puer e a puella, como fatores inconscientes, constituem o ímpeto
necessário para o desbravar de novos caminhos. Nem sempre oferecem a
sabedoria para discernir se o empenho vale ou não a pena e, com
frequência, deixam de contribuir com o poder estabilizador e de
manutenção para levar a iniciativa adiante, caso a mesma venha a mostrar-
se digna de ser realizada. Quando esse arquétipo se ativa, grandes sonhos e
esquemas são concebidos. Para que possam ser bem sucedidos, mesmo que
numa mínima parte, um arquétipo compensatório deve entrar em jogo. É o
arquétipo do “senex”.6
Senex significa velho ou idoso e, como arquétipo, está na base das forças de
preservação dos valores tradicionais, que mantêm as coisas como elas são,
que aplicam o julgamento sóbrio e o discernimento nas elucubrações do
eterno jovem. No seu melhor aspecto, esse fator inconsciente é expresso
pela sabedoria madura que decorre da experiência de vida; no pior,
representa a ortodoxia limitada que não tolera a interferência daqueles que
estão em condições de romper com os padrões vigentes.
Uma variação da figura do puer aeternus, que às vezes incorpora até mesmo
aspectos do senex, é a encantadora figura arquetípica conhecida como
trapaceiro.
Nos sonhos, é aquele que interpõe obstáculos em nosso caminho por
motivos próprios; é aquele que está sempre mudando de forma e aparecendo
e desaparecendo nos momentos mais estranhos. Simboliza aquele aspecto
da nossa própria natureza que está sempre por perto, pronto para nos
derrubar quando ficamos inflados, ou para nos humanizar quando nos
tornamos pomposos. É o sátiro por excelência, cuja perspicácia mordaz
assinala as imperfeições das nossas mais insolentes ambições e nos faz rir
embora estejamos com vontade de chorar. Na sociedade, encontramo-lo no
sujeito crítico e enfadonho, e chega mesmo a imiscuir-se nos mais altos
escalões administrativos do nosso planeta.
6. O renascimento e a criança eterna
RALPH METZNER
O renascimento e a renovação são, frequentemente, experiências de
esperança e possibilidades renovadas. A criança é a promessa do futuro, o
símbolo desses processos transformadores. Neste breve excerto de seu livro
Opening to Inner Light [Abrindo-se à Luz Interior], Ralph Metzner
descreve a experiência do renascimento e seu caminho de intersecção com
a criança interior eterna.
O processo de morrer psicologicamente enquanto ainda se está vivo é
seguido de um renascimento psicológico, ou renovação. Nas palavras de
Ramana Maharshi, “Aquele que encontra seu caminho no cerne do Self, de
onde surgem todos os níveis do Eu, todas as esferas do mundo, aquele que
encontra seu caminho de volta à primeira fonte com a indagação ‘De onde
venho?’ nasce e renasce. Saiba que aquele que assim nasce é o mais sábio
dos sábios — em cada momento de sua vida ele nasce inteiramente novo”.1
Esse renascimento, como fase do processo de transformação, pode ser
vivenciado de várias maneiras: (a) primeiro, existe a ideia de uma
ressurreição, de uma recuperação da personalidade que tinha morrido e
volta à vida; (b) alternativamente, o renascimento é visto como a
substituição do pequeno eu por um Self ou Espírito maior; (c) em terceiro
lugar, diz-se que aquele que morreu, real ou metaforicamente, vive, depois
disso, num mundo diferente, num estado diferente; (d) na quarta variante, o
novo ser é, de fato, imaginado como criança: este é o arquétipo da criança
radiante, divina ou eterna, que, como Jung aponta, simboliza “o futuro
potencial”.2
(a) A ideia da ressurreição, da recuperação da vida por parte de um corpo
adulto que morreu, é descrita em muitos relatos míticos e xamanistas: Osíris
é recomposto por Ísis; os gêmeos Caçador e Jaguar, dos Popul Vuh,
recompõem-se depois de terem sido esquartejados; os xamãs que
“morreram” podem ser reconstituídos por seu aliado, ou animal de poder.
Muitos adeptos contemporâneos do trabalho xamanista relatam como foram
“cortados em pedaços”, “pulverizados”, “queimados”, “eviscerados” ou
“mortos” de alguma outra maneira, e depois reconstituídos pelo auxiliar
animal.3 Por exemplo, um homem relatou como seu animal, um “cavalo”,
posicionou-se sobre o seu “cadáver inanimado” e roçou suas grandes
narinas delicadamente sobre todo o seu corpo, “inspirando” de volta a vida
nele. Embora, de um ponto de vista cético, possamos desprezar tudo isso
dizendo que não passa de uma fantasia delirante, fruto de uma imaginação
exacerbada, ainda teríamos que explicar o fato de esse homem, como tantos
outros, ter-se sentido melhor e mais saudável depois de vivida essa
experiência.
No Novo Testamento, a história de Lázaro, assim como a do próprio Jesus,
exemplifica esse tipo de ressurreição física. Em menor grau, os relatos
modernos de experiências de quase-morte (EQM) coincidem com esse tipo
de padrão. No caso de Jesus, a ressurreição se deu em um corpo não-físico,
“espiritual”, que, no entanto, lembrava o físico em todos os aspectos
significativos, a ponto, inclusive, de possuir os ferimentos que este havia
sofrido. O mais próximo que a maioria chega dessa espécie de experiência é
padecer de uma enfermidade quase fatal e depois recobrar a saúde — o
corpo parece ter-se recuperado completamente. Um aspecto comum de
todos esses relatos, quando a pessoa está intencionalmente buscando uma
transformação de morte- renascimento, é que o novo corpo é melhor do que
o antigo, mais forte, mais saudável e mais leve.
(b) Um outro aspecto desse renascimento, dessa vivência de renovação é
que o pequeno eu é superado ou substituído pelo Grande Self; o ego pessoal
e físico é substituído pelo Espírito transpessoal, o mortal pelo Imortal.
Meister Eckhart diz que, nessa experiência, “a alma... está morta para o eu e
viva para Deus”.4 Um santo sufi escreveu: “Teu ser morre e a pessoa Dele
cobre a tua pessoa”.5 Ou, nas palavras do Evangelho de São João:
“Ninguém pode entrar no Reino de Deus sem nascer da água e do Espírito.
Aquele que nasce da carne é carne, aquele que nasce do Espírito é
espírito”.6 As pessoas que passam por tais estados sentem que os próprios
interesses e preocupações do ego se desvanecem como coisas
insignificantes, se tornam nada, diante do poder incomensurável e da luz
absoluta do Grande Self, do deus interior, da “essência diamante”, do
Atman.
O encontro com o Self pode ser um autoconfronto avassalador, aniquilador,
como apontou C. G. Jung em seu ensaio “Acerca do Renascimento”, onde
escreveu o seguinte:
Aquele que é verdadeira e desesperadamente pequeno sempre arrastará para
baixo a revelação do maior, até o nível de sua pequenez, e nunca entenderá
que o dia do juízo dessa pequenez chegou. Mas o homem que internamente
é grande saberá que o tão ansiado amigo de sua alma, o imortal, agora
realmente chegou, “para tornar cativo o cativeiro”; quer dizer, para
apoderar-se daquele por meio de quem este imortal sempre esteve
confinado e aprisionado, fazendo então com que esta vida flua para o seio
de uma vida maior - momento que contém o mais letal de todos os perigos.7
Como esta citação deixa claro, o perigo letal existe para os que estão
identificados com o pequeno eu, o ego pessoal. Nem todos os encontros
com o Self, contudo, precisam ser traumáticos ou sequer dolorosos. Afinal
de contas, existe uma vasta literatura de misticismo que entoa em louvores
extáticos a união com o divino, as mortes pacíficas e abençoadas, as
experiências de integração profunda que têm caráter nupcial, ou se
assemelham à dissolução no cerne de uma sensação oceânica de união e
fusão.
(c) Alguns relatos de experiências de morte-renascimento enfatizam a nova
qualidade da percepção consciente e da percepção sensorial que começa a
existir depois da vivência. É como se tivéssemos entrado num mundo em
que tudo tem uma aparência diferente, e uma espécie de radiância
fulgurante, primordial se infunde em tudo que percebemos. As respostas
mentais e emocionais ao que é percebido também são novas; existe uma
qualidade de alegria e espontaneidade e um transbordar de afeto e
entusiasmo. Num tratado hermético medieval, de autor anônimo, lemos: “A
ressurreição é a revelação do que é, e a transformação de coisas, a transição
(metabole) para o novo. Pois a imperecibilidade desce e penetra o perecível;
a luz flui para baixo, para dentro das trevas, engolindo-as.”8 Encontramos
aqui a metáfora do recém-nascido, paralelamente à metáfora da visão cujos
véus foram removidos, da porta da percepção que foi purificada. Os
místicos dizem que, depois da revelação da morte-renascimento, tudo é
visto pelo prisma do amor e da sabedoria, pela perspectiva do infinito e do
eterno (sub specie aeternitatis).
(d) A admoestação bíblica de que “a menos que sejais como a criança, não
entrareis no Reino dos Céus” decorre, naturalmente, do ensinamento
segundo o qual é preciso antes morrer para depois ingressar no estado
abençoado e iluminado desse Reino. Aqui, a metáfora da morte-
renascimento nos leva ao arquétipo da criança divina, o puer aeternus.
Embora a maioria das abordagens dos junguianos em relação ao tema do
puer ou puella focalize a sombra deste arquétipo e as suas manifestações
clínicas, nos “garotões” inconstantes, imaturos e nas “bonequinhas” de
luxo, elas representam apenas uma limitada interpretação desta poderosa
imagem. Os alquimistas chineses e ocidentais falavam do feto da
imortalidade, a criança filosofal que nasce em decorrência da conjunção
interior do masculino com o feminino. A ideia da criança eterna, que se
manifesta depois de uma “morte” consciente, está vinculada a numerosos
mitos, que desempenham um papel central na maioria das religiões — o do
nascimento de um deus na forma humana. As lendas hindus do menino
Krishna e a do Cristo são apenas os exemplos mais famosos.
Jung, em seu ensaio sobre “A Psicologia do Arquétipo da Criança”,
assinalou vários dos aspectos ou significados relevantes deste símbolo
profundo. Descreveu-o como antecipação da síntese entre consciente e
inconsciente, como símbolo da totalidade, ou Self. A criança-deus, ou
criança-herói, sempre tem um nascimento milagroso, incomum, ou é
concebida por uma virgem, que corresponde à “gênese psíquica” do novo
ser. A imagem da criança representa um elo de ligação com o passado, com
nossa infância, assim como uma ligação com o futuro, na medida em que
antecipa um “estado nascente de consciência”. A “criança dourada”, ou
“eterno jovem”, é andrógina, porque representa a perfeita união de opostos.
Somente o self antigo, o ego comum, se identifica como masculino ou
feminino, e ele agora está morto. A “criança” é tanto começo como fim,
“uma criatura inicial e terminal”, porque a totalidade que simboliza é “mais
velha e mais jovem que a consciência e a engloba no tempo e no espaço”.9
A criança divina é invencível. Ele/ela supera inimigos perigosos na
infância: uma das imagens do menino Krishna mostra-o pisando uma
serpente gigantesca numa dança, metáfora que serve para indicar a
superação da agressividade instintiva do réptil. Um exemplo extraído da
mitologia grega é a história do bebê Hércules, que estrangulou uma
serpente que o atacou em seu berço. A Criança tem todo o poder de um
deus, uma vez que é um deus: é O Imortal que substitui a personalidade
mortal que “morreu”. Também aqui encontramos a noção da criança divina
como a representação do triunfo sobre a morte. Cristo demonstrou o poder
da ressurreição - a dele mesmo e a de outrem (Lázaro) - e muitos outros
heróis divinos e iogues de elevado desenvolvimento demonstraram poderes
semelhantes, documentados, em especial, na literatura mística oriental.
Embora tais poderes possam parecer remotos à pessoa comum, os mitos e as
imagens que os transmitem mostram seu potencial e revelam o que os
humanos podem alcançar.
Na liturgia russa ortodoxa, o triunfo sobre a morte é expresso nas seguintes
palavras: “Cristo ergueu-se de entre os mortos, esmagando a morte com a
morte, e aos que estão no túmulo concedeu vida.” Sugiro que esta imagem
se refere à mudança que ocorre na psique quando o poder curativo e
transformador da morte intencional é vivenciado. As tendências
inconscientes de morte (thanatos), que funcionam em oposição às
tendências de preservação da vida (eros), através de doenças e outros
procedimentos destrutivos, vão sendo gradualmente reduzidas, ou melhor,
levadas a um outro ponto de equilíbrio. Um de meus professores referia-se
a “bolsões de morte” instalados em nossa natureza, que são abertos e
dissolvidos por uma percepção consciente iluminada, conferindo-nos assim
a morte da morte. Ao aceitarmos conscientemente a morte e o “morrer”, o
processo todo nos fornece alimento espiritual. Shakespeare expressa essa
ideia em um de seus sonetos:
So shalt thou feed on death,
That feeds on men,
And death once dead, there’s
No moré dying then.
Irás então alimentar-te da morte,
Que se alimenta dos homens,
E uma vez que a morte é morta,
Não há mais morrer.
Na tradição chinesa taoísta, não-teísta, o arquétipo da criança eterna
também é conhecido e honrado. A criança recém-nascida ainda está
vinculada ao Tao, à fonte de sua vida e de seu surgimento, e é por isso que
devemos imitá-la. Como diz Chuang Tzu: “Você consegue ser como uma
criança recém-nascida? O bebê chora o dia inteiro e, no entanto, sua voz
nunca enrouquece. Isso é porque ele não perdeu a harmonia da natureza.”10
De modo característico, os taoístas enfatizam o valor prático, em termos de
saúde e bem-estar, da sintonia com a percepção consciente típica do bebê.
Para a pessoa que está no processo de transformação, as imagens e a
mitologia da criança eterna estimulam a adoção de uma atitude positiva e
afirmativa diante da vida: somos incentivados a confrontar e a transformar
nosso medo da morte, a abraçar o processo de “morrer” como libertação
que proporciona sabedoria. Dessa forma, chegamos a saber que, do tumulto
e da escuridão do morrer, vem a resplandecente vitalidade do eu recém-
nascido. Esse novo eu está conectado à fonte eterna de toda vida, aquela
fonte de onde todos derivamos, a divina essência interior. É, portanto,
adequadamente chamada de “a criança eterna”.
Parte 2
A criança abandonada
Introdução
A humanidade seria órfã se não fosse por Deus, segundo Santo Agostinho.
Em termos psicológicos, isso implica que, para a criança abandonada, não
há pais “bons o bastante”... Na realidade, somos todos órfãos em parte e é
através do sofrimento desse fato arquetípico do abandono (e do abandonar)
que podemos reunir-nos em comunidades. Esse sentimento comunitário,
que se baseia no reconhecimento da nossa mútua solidão e dor, é uma
emoção religiosa, uma realidade existencial e um retorno ao mundo com o
reconhecimento de que o mundo é tudo o que temos e que talvez seja “bom
o bastante”.
- Patricia Berry, Chiron, 1985.
A criança inicia a vida num estado semelhante ao do paraíso. Pura e repleta
de possibilidades — suas necessidades sendo supridas pelo acolhimento
maternal do mundo aquático, atemporal, ilimitado e interminável - assim a
criança inocente inicia, portadora da grande promessa da humanidade.
Mas, infelizmente, essa inocência não pode durar. O que começa como
potencial infinito deve, com o tempo, encaminhar-se para o finito e
imprevisível mundo, a fim de ser concretizado. Então, uma separação ou
abandono abrupto é uma das primeiras experiências de transição de cada ser
humano, uma passagem em que a criança se torna internalizada, à medida
que a personalidade individual vai-se adaptando às exigências de suas
circunstâncias exteriores. Segundo C. G. Jung, o abandono é, de fato, o que
define inicialmente a criança interior. Ele disse: “Criança significa algo que
evolui rumo à independência. Isso não pode ser obtido sem se distanciar de
suas origens: o abandono é, portanto, uma condição necessária e não apenas
um sintoma concomitante.”
A experiência do abandono - concreta, emocional, psicológica - é, portanto,
uma iniciação na vida. É uma repetição da expulsão do Éden, uma perda da
inocência, uma decepção, assim como uma traição. Contudo, é um
acontecimento positivo, porque nos põe em movimento na nossa jornada,
nos faz seguir as voltas do nosso caminho em busca da experiência e da
identidade. O poeta Rainer Maria Rilke deu voz ao lado positivo dessa
busca solitária:
I live my life in growing orbits,
Which move out over the things of the world.
Perhaps I can never achieve the last,
but that will be my attempt.
I am circling around God, around the ancient tower,
and I have been circling for a thousand years.
And I still don’t know if I am a falcon.
Or a storm, or a great song.
Vivo minha vida em órbitas crescentes,
que me distanciam das coisas do mundo.
Talvez eu nunca consiga alcançar a última,
mas essa será a minha tentativa.
Estou girando em círculos ao redor de Deus, ao redor da antiga torre,
e há mil anos estou girando.
E ainda não sei se sou um falcão,
Ou uma tempestade, ou uma grande canção.
- (Livro de Horas, 1899, traduzido para o inglês por Robert Bly.)
O abandono exige que nos adaptemos, que aceitemos a nossa sina. “É
somente quando se está verdadeiramente sozinho”, diz a analista Rose-
Emily Rothenberg, “que o potencial criativo [a ‘criança’], instalado lá no
fundo dentro de nós, tem espaço e condições para emergir à luz do dia”.
Devemos assumir o desafio da nossa separatividade. A dor de nossa solidão
força-nos a ganhar consciência, a abrir-nos para a vivência do nosso Self
como entidade distinta dos outros. Talvez cheguemos um dia a dar a volta
inteira e, como disse T. S. Eliot, “...cheguemos ao ponto onde começamos/E
conheçamos o lugar pela primeira vez” (The Four Quartets).
Para alguns, o abandono é uma mágoa para o Self da infância que resulta
numa adaptação restritiva, em que a criança será soterrada no fundo da
pessoa, embaixo de muitas camadas de ressentimento, justificações e
cinismo. No coração de todo cínico, contudo, sangra um romântico, uma
criança interior inocente que cedo na vida foi magoada por uma desilusão
relativa aos pais ou pela descoberta de que o mundo não é tudo aquilo que
dizem.
Para todos nós, o desafio do abandono é aceitar a nossa orfandade, admitir
que, em última análise, contamos apenas com nós mesmos, o que significa
uma vida inteira de responsabilidade pelo atendimento e provimento de
nossa criança interior. A pessoa que tenta evitar a experiência do abandono
para preservar uma inocência idealista mesmo na idade adulta corre um
imenso perigo. Essa negação exige uma grande dose de energia e só pode
resultar na futilidade do dilema narcisista (tema que será abordado na Parte
3).
Enquanto a criança interior não for realmente vivida, enquanto não se tornar
uma realidade para a pessoa, será uma criança abandonada. Jung chegou até
mesmo ao ponto de sugerir que a percepção consciente da presença da
criança interior requer uma renovação periódica através de rituais, para que
possa ser reconhecida como algo real e interior. “A Criança Cristo”,
escreveu ele em seu ensaio sobre o arquétipo da criança, “é uma
necessidade religiosa apenas enquanto a maioria dos homens [e mulheres]
for incapaz de conferir realidade psicológica ao ditado: ‘A menos que vos
tomeis como as criancinhas...’ ”
Gilda Frantz, que abre esta seção, sugere que algumas pessoas passam pela
experiência do abandono antes de poderem entendê-la ou integrá-la. Ou são
uma criança indesejada, abandonada no nascimento, ou nascem de mães
deficientes que não conseguem formar o elo. “Isto é parecido com nascer
sob o arquétipo do abandonado”, diz ela, “e essa criança tem como destino
a questão de integrar a mãe provedora interior, assim como a criança
interior abandonada, em algum momento de sua vida”. O trabalho de Frantz
é tanto confessional como informativo, e suas observações finais sobre Jung
não devem ser ignoradas.
A contribuição de James Hillman, por outro lado, desafia-nos a ir mais além
do literalismo do abandono concreto e a considerarmos uma variedade de
cenários da criança interior: o abandono da criança no nosso pensar coletivo
a respeito da infância e em nossas psicologizações; o abandono da criança
nos nossos sonhos, nos nossos relacionamentos e nos nossos modelos de
imaginação e maturidade.
O artigo de Rose-Emily Rothenberg é um trabalho cabal sobre o arquétipo
do órfão, aquela parte da criança que está “oculta na mais íntima porção da
alma do homem”. Com base em sua experiência pessoal com o abandono,
ela nos recorda que somos todos órfãos e que, por meio do sofrimento do
nosso abandono, podemos perceber nossos recursos interiores.
As concisas palavras de Marion Woodman fazem-nos considerar as
questões de identidade consteladas pela nossa criança interior esquecida:
“Se vivemos atrás de uma máscara durante a nossa vida inteira, cedo ou
tarde - se tivermos sorte - essa máscara será destroçada... Talvez
enxerguemos os olhos aterrorizados de nossa própria criança minúscula,
aquela criança que nunca conheceu o amor e que agora nos suplica uma
resposta.”
M. Scott Peck isola o tema do abandono na paternagem-maternagem e
identifica as consequências destrutivas de se usar a ameaça do abandono —
consciente ou inconscientemente — como recurso para a educação das
crianças. “As crianças abandonadas, psicologicamente ou na realidade,
entram na idade adulta carentes de uma noção profunda de que o mundo é
um lugar seguro e protetor”, escreve ele.
E, finalmente, num esforço literário, a autora de ficção científica Ursula K.
LeGuin pede-nos que consideremos o dilema moral de abandonar nossa
criança interior.
7. O cruel segredo do nascimento: Oh, eu sou minha
própria mãe perdida de minha própria criança
triste
GELDA FRANTZ
O calor pessoal de Gilda Frantz decorre da intensidade com que considera
o destino e o abandono, seus efeitos sobre a criança interior e sobre a vida
do adulto. Como analista junguiana, está há muitos anos envolvida com o
trabalho de Carl Jung. São iluminadoras as suas revelações sobre o resgate
da própria criança interior efetuado por Jung e a relação entre esse
resgate e a vida criativa de Jung. Este artigo apareceu originalmente no
periódico Chiron, em 1985.
Introdução
Minha maior dificuldade para escrever este trabalho está relacionada com a
recordação do meu próprio abandono quando bebê. Fui abandonada pelo
meu pai. Com a perda desse relacionamento, o arquétipo materno também
sofreu danos e minha mãe não pôde desempenhá-lo. Esse abandono no
início de minha vida moldou-a e tingiu praticamente todas as coisas que fiz
em termos de criatividade, ambição e quanto ao desejo de encontrar meios
de me educar. Crianças como eu desenvolvem uma consciência precoce, o
conhecimento de que nasceram numa situação mais difícil, e isso pode
tomá-las mais cautelosas e precavidas. Essas qualidades podem ser de
imensa ajuda mais tarde na vida, contanto que não levem ao isolamento.
A Grande Deusa entrou na minha vida pela imaginação ativa e pelos
sonhos, na análise. Ela me cuidou e nutriu. Minha relação com o arquétipo
materno positivo entrou claramente em cena por meio do contato com
minha analista. Mas o relacionamento com o “pai bom” aconteceu com o
casamento, e o provedor masculino era tanto a “mãe perdida” quanto o
feminino. Espero que fique claro que, ao dizer “mãe perdida”, estou-me
referindo a algo que me alimenta espiritualmente. Apresento o material a
seguir com profunda gratidão por tudo o que os deuses me deram, de bom e
de ruim.
Escolhi o título desse artigo quando li, num pedacinho de papel que
encontrei na escrivaninha de meu finado marido, algo cujo sentido oculto
era numinoso e me tocou naquele ponto em que eu vivenciava o meu
abandono: parecia uma imagem poética da criança sofredora.
“‘Criança’ significa algo que evolui rumo à independência. Isso não lhe é
possível sem que se afaste de suas origens: o abandono, portanto, é uma
condição necessária e não só um sintoma concomitante.”1 Existem algumas
pessoas para quem a condição necessária do abandono acontece antes que
possam integrar seu significado ou propósito. Existem aquelas para as quais
essa vivência começa in utero, crianças cujas mães estão doentes ou
deprimidas ou morrem no parto, ou que foram abandonadas, ou cujo
nascimento não é desejado. Há aquelas mães solteiras que oferecem a
criança para adoção com grande sofrimento e relutância. O resultado desses
nascimentos fatais é que tanto a vida das crianças como a dos pais são
profundamente afetadas.2 Isso é quase o mesmo que nascer sob o arquétipo
do abandonado, e essa criança tem o destino de precisar integrar a mãe
provedora interior, assim como a criança interior abandonada, em algum
ponto de sua vida. Os órfãos são especialmente propensos a esse destino,
assim como os filhos de mães que sofrem de narcisismo.3
E quanto à criança que não sofreu nenhuma das circunstâncias acima
citadas? O abandono dessa criança vem através da falta de um cuidado
especial por parte da mãe, que não é capaz de provê-lo. A criança então se
sente abandonada, mesmo que as circunstâncias externas de sua vida
impliquem o inverso. O destino intensifica os relacionamentos já intensos
entre os pais e a criança. Embora o destino de uma criança esteja restrito ao
âmbito dos pais, o de um adulto não tem essa restrição.4 No caso de Anne,
que apresento a seguir, direi mais a esse respeito.
Destino e abandono
Tomamos certas decisões na vida e podemos evitar isto ou aquilo, ou
decidir quando nos casar e com quem, mas mesmo essas decisões colocam-
nos em direções que podem selar o nosso destino. “Talvez a humanidade
chegue à conclusão de que apenas um lado do destino pode ser dominado
pelas intenções racionais.”5 Mais uma vez, porém, o uso da vontade
racional é apenas metade do quadro. A outra metade é o ser arremessados
na direção de um destino que não escolhemos e que não podemos modificar.
Os estoicos denominaram-no “a compulsão das estrelas”, ou Heimarmene.
Um ponto em comum que posso observar nas pessoas que atendo em
análise é o destino. Algumas têm uma vida mais difícil, e nem toda a
dificuldade é merecida. Nem sempre foi algo que tenham feito ou que não
tenham feito que as fez serem abandonadas. Muitas vezes é o assim-
chamado acidente de nascimento que determina o seu destino. O desafio
está em ver o que cada um de nós pode fazer com as circunstâncias
originais de sua vida, com sua matéria bruta. A vida em si é um
experimento e, como disse Emerson, quanto mais experimentos fizermos,
melhor.
O abandono é uma experiência decisiva na qual sentimos que não temos
qualquer escolha. Sentimo-nos sós, como se os deuses não estivessem
presentes. Se sentirmos que estão ali e nos dão apoio, então não estamos
abandonados. O termo abandonado significa, literalmente, “não ser
chamado”. Tem uma relação etimológica com o termo “destino”, “fado”,
que significa “a palavra divina” e vem de fari e fatum, significando “falar”.
Quem é que nos convoca, ou não? Vamos dizer algo a respeito das Parcas.
Eram seres divinos que determinavam o curso da vida humana e eram
chamadas Moiras pelos gregos e Fata pelos romanos, ou Parcas. As Parcas,
ou Moiras, eram filhas de Nix e seus nomes eram Cloto, Láquesis e
Átropos. Cloto é a que tece o fio; Láquesis, a que o enrola e Átropos, a
implacável, é quem o corta. Homero referiu-se repetidamente a essas três ao
escrever sobre os destinos que os deuses atribuíam aos homens. Essas irmãs
eram sempre representadas em seu mister de fiar, medir e cortar o fio da
vida. O termo “mortalha” vem de uma raiz que significa “cortar”. Embora
haja muitas contradições quanto ao fato de as Moiras, ou Parcas, cumprirem
ou não o desejo dos deuses, é evidente que nem mesmo Zeus pôde escapar
de suas decisões.
As Parcas e as Erínias têm uma relação. As Erínias eram chamadas de
Fúrias pelos romanos e nasceram da terra fertilizada pelo sangue
proveniente da castração de Urano. Ésquilo descreve-as como hediondas e
ameaçadoras, mas nas esculturas e pinturas não aparecem dessa forma. As
Erínias não eram consideradas injustas nem malignas em seus feitos,
mesmo que se dissesse que elas aplicavam punições. O castigo que
infligiam era considerado uma proteção para aqueles a quem a lei humana
havia falhado em proteger, como os vitimados por membros de sua própria
família.6
As três Graças também estão associadas às Erínias e às Moiras. Eram as
Eumênides, as benfeitoras. A combinação do terrível com o benigno
também se encontra frequentemente nas divindades ctônicas. Acreditava-se
que espíritos, demônios, deidades, assim como heróis, vivessem dentro ou
embaixo da terra, e sua ocupação eram os mortos e a fertilidade do solo.
Muitas divindades ctônicas combinavam as duas funções, de punir e
apaziguar, de fertilizar e matar. Os espíritos que viviam na terra, nos
lugares em que os mortos eram enterrados e em que as plantações cresciam,
acabaram inevitavelmente sendo associados a ambos os eventos.
Durante o processo de refletir sobre o abandono, tive um sonho. A palavra
que apareceu no meu sonho para designar destino foi bashart, termo iídiche
que significa “o que tem que ser, tem que ser”. Segundo a interpretação da
dra. Clara Zilberstein, bashart significa que algo tem que acontecer numa
certa hora. Trata-se de um conceito semimístico que tem que ver com o que
foi prometido a uma pessoa, com o intento de alguém. Entre os judeus
existe uma afeição genuína por essa palavra e ela implica uma verdadeira
aceitação do que Deus nos dá, de bom e de ruim. Para mim, implicava que o
inconsciente aceitava a apresentação desse material - que estava
“destinado” - e que focalizava o meu destino como mulher judia, esposa e
viúva, bem como a minha necessidade de lidar com “o que era a intenção
do destino”.
“Sem que haja uma necessidade, nada se abala, e muito menos a
personalidade humana. Ela é tremendamente conservadora, para não dizer
entorpecida. Só a mais aguda necessidade é capaz de despertá-la.”7 O
sofrimento e o abandono despertam-nos. Através da soberana dor de não
termos sido chamados, podemos encontrar um meio de mudar o que precisa
ser mudado em nossa vida. A alquimia diz a esse respeito:
[Liquefactio] é um dos meios de primeiro dissolver a consciência e chegar
mais perto do inconsciente, que também tem um grande papel na alquimia.
Um dos estágios alquímicos iniciais é, muitas vezes, o liquefactio, a
liquefação para desfazer a prima materia, que muitas vezes está endurecida
ou solidificada de modo errado, o que, portanto, impede que seja usada para
fazer a pedra filosofal. O material tem que ser primeiro liquefeito.
Naturalmente, a imagem química implícita é a obtenção de um metal a
partir do minério, usando-se para isso a fusão, mas liquefactio contém,
muitas vezes, a conotação alquímica de uma dissolução da personalidade
em lágrimas e desespero.8
A chama externamente aplicada para derreter os metais alternadamente
aumenta e diminui de intensidade. O subir e descer da chama é a agonia do
abandono. A chama é o Destino.
Lágrimas e abandono
Na prática da psicologia analítica, é uma experiência corriqueira que o
paciente inicie a análise no estágio em que há morte e luto. A condensação
desses vapores vem na forma de lágrimas.
Num artigo inédito sobre a depressão, Kieffer Frantz (1966) realizou um
levantamento literário que incluía a postura psicanalítica então vigente.
Escreveu o seguinte:
Essas características poderiam parecer as mais consistentes evidências
observáveis da presença da depressão. Contudo se não quisermos aceitar
uma avaliação patológica como o único ponto de vista, de que maneira
devemos avaliar o fenômeno observável da depressão?
Comecemos com o sonho de uma mulher que iniciou uma terapia para curar
uma depressão. Nele a sonhadora estava chorando e as lágrimas rolavam-
lhe pelo rosto. Enquanto rolavam, transformavam-se em diamantes. As
lágrimas certamente pareciam endossar as características de desesperança,
impotência, tristeza e sofrimento interno descritas acima. Mas, e quanto aos
diamantes? Aí acontece uma mudança definitiva. Em Dois Ensaios sobre
Psicologia Analítica, Jung afirma: “Essa transformação é o objetivo da
análise do inconsciente. Se não há transformação, isso significa que a
influência decisiva do inconsciente é impermeável e que, em alguns casos,
persistirá mantendo os sintomas neuróticos a despeito de toda a análise e
compreensão que possamos realizar. Ou então sobrevirá uma transferência
compulsiva, o que é tão ruim quanto a neurose.”9
O sonho aponta um processo que começa com lágrimas e termina ou é
transformado em diamantes, a “água pura”. Desse ponto de vista, a
depressão pode ser concebida como um mergulho do inconsciente, com o
propósito de dar início à viagem. Entre o começo e o fim, há muitos
estágios diferentes e talvez muitas depressões.
Meu interesse pelas lágrimas como expressão criativa do abandono
começou com a leitura do ensaio, quando um conhecido me pediu que
encontrasse a acima citada referência às lágrimas e aos diamantes. As
lágrimas são a expressão do abandono por excelência. Mas, e quanto aos
diamantes?
Diamante significa “invencível”. Também é chamado adamantino, de onde
se pode derivar adamant, que, embora possa significar "uma substância
muito dura”, também quer dizer [em inglês] “domar”, “conquistar”.
Metaforicamente, a natureza tem que sofrer para produzir um diamante, por
causa da enorme pressão do imenso calor que a terra precisa suportar para
transformar carbono em diamante. No sonho, os diamantes evoluem das
lágrimas. Por meio da operação da liquefactio, da dissolução líquida de uma
prima materia incrustada e impropriamente endurecida, revelam-se as joias.
Dessa forma, a sonhadora obtém a esperança de que algo valioso possa
resultar de seu intenso sofrimento.
O corpo diamantino é o Self, que está dentro de cada um de nós.10 A
consciência do Self molda e dá polimento ao diamante, e depois da nossa
morte física o corpo se desfaz e esse diamante é exposto em toda a sua
estonteante beleza.11 No exemplo que utilizamos, o diamante é revelado
através do processo da depressão, ou nigredo, e do “sofrimento consciente”.
Escrevendo acerca de seu prolongado relacionamento com Jung, Hilde
Kirsch diz: “O presente mais importante que Jung me deu — e que talvez
tenha dado a toda a humanidade — é a aceitação do sofrimento como uma
necessidade.” Em seu artigo, ela faz a citação de uma carta que escreveu a
um amigo sobre o sofrer: “Tente aplicar a sério o que lhe disse para fazer;
não que você possa assim escapar do sofrimento — ninguém o consegue —
mas para que possa evitar o pior: o sofrimento cego.” Jung também
escreveu, a respeito de si mesmo:
Acho que, por sua vez, Deus concedeu-me a vida e poupou-me de ficar
petrificado. Assim, sofri e fui infeliz, mas parece-me que a vida nunca
faltou e que mesmo na mais negra das noites... pela graça de Deus pude ver
uma luz maior. Em algum lugar parece existir uma grande delicadeza nas
trevas abissais da Deidade.12
A sonhadora acima teve a experiência do sofrimento consciente, não a do
sofrimento cego. Ela estava ciente de seu sofrimento e possivelmente
conhecia a causa. Certa vez, uma vítima de um desastre me disse que “sem
isso teria continuado a ser uma dona de casa comum, mas essa perda
forçou-me a mudar e me tornei uma pessoa mais profunda”.
O simbolismo das lágrimas e do abandono existe nos mitos em que a
criação é formada a partir das lágrimas ou do chorar. A criação também é
promovida pela solidão dos deuses. Existe um mito dos Baluba no qual as
lágrimas dos animais amolecem a terra e criam, assim, um lugar para que as
sementes cresçam e se tornem abrigo para os animais.13 No conto de fadas
dos Irmãos Grimm chamado “A Virgem Sem Mão”, a filha é vendida ao
diabo e é salva por suas lágrimas. Quando o diabo pede para comprar tudo o
que está atrás do moinho, o pai, que não sabia que sua única filha estava ali,
vende-lhe a propriedade. Esse abandono da filha e sua subsequente traição
foi o que provocou as lágrimas que enfim a salvaram.
Cinderela também é abandonada pelo pai. Depois da morte de sua mãe, o
pai casa-se de novo e ela se torna parte do que hoje seria chamado de
“família misturada”. Suas novas “irmãs” são tratadas como pessoas mais
importantes que Cinderela. Quando o pai pergunta às filhas de sua mulher o
que querem que ele traga da cidade, elas lhe pedem coisas caras e preciosas.
Depois, lembrando-se de Cinderela, pergunta-lhe também e ela só deseja
um ramo da árvore que bater em seu chapéu quando estiver voltando para
casa. Enquanto compra as coisas para suas enteadas esquece-se
completamente dela, mas seu chapéu raspa num galho de árvore e isso o faz
lembrar-se. Cinderela planta o galho e cresce uma árvore. Um pássaro
pousa nela e concede-lhe três desejos. O pássaro é o espírito de sua falecida
mãe (perdida). A história de Cinderela é um lindo exemplo da criança triste
redimindo a mãe perdida e o pai que a abandona, ao relacionar-se com o
Príncipe.
O que a mãe estragou só pode ser curado pela mãe, e o que o pai estragou
só o pai pode curar.14 A relação, em si mesma, pode ser o “pai” que cura, e
pode curar uma criança ferida e ser um genitor provedor. Pensamos que
encontramos o pai no homem, mas ele também pode ser uma boa mãe. No
Boddisattva da Compaixão,1 5 Kuan Yin era masculino e permaneceu como
tal até o século XII, quando se tornou Deusa, feminina. O masculino
proporciona sua própria espécie de acolhimento.16
“Aquele que ouve os lamentos” - é assim que Kuan Yin é conhecido. Esse
mito é uma antiga afirmação da existência do abandono, do sofrimento e da
cura. No budismo tibetano, há o conceito de Dukkha, que se pode traduzir
como “sofrimento”, mas que também pode significar “insatisfação”.17 Na
tradição budista, entende-se que o sofrimento está “dentro da ‘própria’
mente e corpo da pessoa e, quando isso for compreendido, ela conhecerá a
verdadeira felicidade”. Dukkha pode ser dor física ou angústia mental, e
refere-se aos fatos “do nascimento, da velhice, da doença e da morte” e às
condições humanas comuns a todos, como “o luto, os lamentos, as dores, a
angústia e o desespero”.18
O lamento frequentemente acompanha o plantio do milho. É o choro e o
lamento pela morte do deus da fertilidade que garantem o seu retorno na
primavera.19 Quando nos entregamos inteiramente ao choro, no desespero,
choramos lágrimas e esperamos que alguém nos ouça chorar. A água é a
força viva da psique. Quando, na análise, ocorre o simbolismo do chorar e
da água, é preciso uma certa contenção e, ao mesmo tempo, a experiência é
purificadora.
Lily estava na casa dos cinquenta quando veio para atendimento. Sua vida
adulta fora dedicada a ter filhos e gerara doze filhos e filhas. Só achava
tempo para as necessidades de seu marido e de seus filhos. Sentia que havia
traído alguma coisa íntima, ao sacrificar sua criança interior em prol da
criação de tantos filhos. Tudo fazia com que chorasse, felicidade, tristeza,
raiva, frustração. Houve vezes em que pareceu ter usado uma caixa inteira
de lenços de papel no intervalo de uma hora. As lágrimas privavam-na da
chance de expressar seus sentimentos: em vez de falar, ela chorava. Havia
emergido sua criança triste.
Lily fora uma criança abandonada, cuja mãe estava tão envolvida consigo
mesma que não percebia a verdadeira natureza da filha. Sentei-me ao lado
de Lily durante muitas e muitas horas de choro, como continente para suas
lágrimas. Um dia perguntei- lhe o seguinte: “Para onde vão todas essas
lágrimas?” Ela olhou-me, estupefata, e começou a descrever um poço ou
lago profundo e largo, natural, que se havia enchido com suas lágrimas.
Começou a dialogar com as lágrimas e esses diálogos trouxeram- lhe de
volta recordações antigas e soterradas nas profundezas de sua psique.
Muitas vezes se lembrou de coisas erradas que lhe haviam sido feitas (em
geral por omissão) por parte dos pais ou irmãos. Escreveu: “Ouço a água
correndo riacho abaixo. Localizo seu leito e observo o seu fluxo. Seu
movimento é repentinamente obstruído por um obstáculo imprevisto...
composto por várias rochas despencando, perturbando a placidez da
correnteza e redirecionando-a rumo a um novo desafio.”
Esses diálogos entre o ego de Lily e o inconsciente, corporificados como
lágrimas, foram verdadeiramente curativos. Não reproduzo o diálogo inteiro
por uma questão de respeito pela qualidade orgânica e fluente do
relacionamento, mas foi imaginação ativa, em oposição à fantasia
inconsciente. O contato com o inconsciente através do diálogo escrito, para
dar um exemplo das possibilidades de se efetuar a conexão, ocorre quando
o ego abre caminho até o inconsciente rebaixando (voluntariamente) seu
domínio, permitindo assim que as energias arquetípicas ganhem voz.20 Foi
dessa forma que Lily conseguiu relacionar-se com suas lágrimas de uma
maneira mais profunda, encontrando-as em seu próprio interior.
A criança triste de Lily era filha da “terra e do céu estrelado”21 e estava
ressecada e fendida, necessitando da água da memória. Ela precisava
lembrar, retomar o que havia sido desmembrado e perdido. Ao beber o gole
da fria água de Osíris,22 ela pôde falar à mãe interior perdida da sua tristeza
e luto.
Abandono e o filho criativo
Etimologicamente, o termo lamentar-se significa “recordar” e deriva da
mesma raiz de memória. Quando nos lamentamos pela perda ou pelo
abandono, nossa memória nos mantém presos a essa vivência até
encontrarmos algo que a substitua. Esse processo de luto ocorre quer
tenhamos vivenciado uma morte real, quer não. A maioria das pessoas inicia
análise em meio a um luto intenso. Lamentação e depressão são outros
nomes para abandono.
Anne veio para análise quando eu ainda estava me sentindo abandonada e
de luto por meu marido. Foi um momento de sincronicidade. Estando eu
própria naquele estado, pude perceber como ela vivenciava sua perda. Sua
queixa inicial tinha que ver com receios relativos a coisas ditas pequenas.
Era uma pessoa reclusa, com propensão a não atender ao telefone.
Conforme sua história se foi desenrolando, tornou-se evidente que alguns
anos antes ela havia sofrido a perda de um ideal muito querido. Talvez o
que se tivesse perdido fosse a ilusão daquela possibilidade em sua vida.
Desde os sete ou oito anos vinha estudando teatro. Num ponto crucial de
seus estudos, quando estava perto dos vinte anos, sentiu que simplesmente
não tinha aquilo que era necessário para ser uma atriz e não se sentiu firme
o suficiente. Ela planejara estudar em Nova York com um famoso diretor de
teatro e, sem praticamente refletir mais, de repente abandonou seu sonho.
Esse término de carreira feriu profundamente sua criança interior.
A mãe de Anne era uma mulher forte e opiniosa e Anne estava sob a
influência de um poderoso arquétipo materno negativo. Ela estava
acostumada a ter os outros determinando o seu destino, mas não tinha ideia
do que a perda de seu sonho iria significar para si. Nos anos 70, tivera
interesse por drogas e nelas encontrara um certo consolo, mas isso não foi
solução. Embora agora já estivesse formada e trabalhasse como professora,
muitas vezes contemplava a perspectiva do suicídio diante da ausência de
significado de sua vida. Num sentido espiritual, estava apenas meio viva.
Ela não sabia que estava de luto pela perda de sua antiga ambição, de sua
carreira abandonada; só sabia que pensava muito nisso. O neurótico hesita
perpetuamente em entrar na vida e inclina-se a evitar a “perigosa luta pela
existência”. Recusando-se a verdadeiramente experimentar as situações, vê-
se forçado a negar a vida e, dessa forma, “comete um suicídio parcial”.23
Minha própria experiência de perda modificou-me. Quando voltei a
trabalhar após a morte de meu marido, descobri que um véu diáfano,
anteriormente existente, havia desaparecido. O véu poderia ser chamado de
uma “atitude profissional”. Por intermédio do meu sofrimento, um estado
praticamente não-egóico, minha psique se tornara mais permeável, mais
aberta ao inconsciente. Estava menos defendida e mais “ali”. Era quase
como se houvesse trilhas de fumaça, como as do bosquímano, circulando
entre Anne e eu. Tomei-me consciente da presença, na mãe, de um poder
curativo para o filho interior.
Os sonhos de Anne eram assustadores para ela e, não obstante,
demonstravam- me que ela contava com força de ego suficiente para a
viagem e que esta levaria tempo. Aos poucos, começou a alimentar a ideia
de que o teatro que amava e do qual desistira havia tantos anos poderia
assumir uma outra forma dentro de sua vida atual. A ideia de trabalhar em
teatro amador era repugnante, mas ela gostava de estudar e por isso
matriculou-se em turmas com professores locais e começou a desfrutar do
contato com o mundo dos atores e da representação. Em vez de se sentir
impotente e identificada com a criança triste, estava começando a encontrar
a mãe perdida. Estava começando a cuidar das suas mais preciosas
necessidades.
Em vez de relacionar-se com as necessidades de sua criança interior triste,
Anne tinha vivido uma identificação com ela. Seu destino estava vinculado
ao dos pais. Ela temia o que lhe poderia acontecer se eles morressem. Temia
o abandono. Se pudesse aceitar sua meta abandonada, poderia iniciar um
novo relacionamento com o Self. Recentemente, começara a crescer e a
ingressar no mundo adulto, mundo que ela sempre identificara com a morte,
o morrer e o abandono. Não se trata de dizer que agora não tenha mais
medos, ou que sua vida seja “perfeita”, mas que está mais dentro dela e
mais atenta e disponível a possibilidades que ainda lhe são desconhecidas.
Abandono e perda
Um caso do abandono “criança triste/mãe perdida” é a viuvez.
Ocasionalmente, nós, crianças feridas, encontramos no cônjuge a mãe e/ou
o pai de quem fomos privados nos nossos primeiros anos de vida. Com a
morte dessa pessoa, somos de novo lançados no luto mais profundo. A
“criança”, então, fica em primeiro plano, agoniada e sofrendo muito. É
como se estivéssemos vivendo o luto de Deméter e Perséfone, ou o
padecimento de Cristo na cruz, perguntando por que Deus o havia
esquecido.
Vamos falar um pouco da viuvez, para que se possa entender algo a respeito
do problema que a viúva enfrenta com relação à criança triste.
A posição das viúvas, em muitas culturas, é uma das mais tristes da
sociedade. O simples fato de terem nascido mulheres determinava-lhes o
destino. No momento em que perdiam o marido, considerava-se que a sua
própria função na vida estava encerrada. Eram, frequentemente, destruídas
para acompanhar e servir o marido falecido em sua nova vida pós-morte,
assim como acontecia na vida terrena.24
Embora hoje sejamos por demais civilizados para permitir que as viúvas
sejam postas dentro das covas, permanece o fato de que muitas mulheres
vivem por intermédio da vida dos maridos. Sylvia era uma viúva recente.
Seu marido falecera de modo repentino e inesperado. Ela era uma jornalista
bem remunerada, numa profissão de que gostava. Ficou com dois filhos, seu
luto e sua raiva. “Mas como ele pôde fazer isso comigo?”, esbravejava.
Logo ficou claro o que ele “fizera”. Sua criança interior ferida, tímida,
encontrara um lar no peito do marido. Ele era extrovertido e agressivo. Sob
sua proteção, ela era capaz de enfrentar o mundo, e agora tinha sido
abandonada.
Depois que ele morreu, ela não se sentia mais capaz de enfrentar o mundo,
e essa parte foi junto com ele para o túmulo. Sua tarefa, como a de
Perséfone, seria recuperá-la para o âmbito da consciência, ou encontrar
outro parceiro extrovertido e agressivo. Se não encontrasse esse substituto,
o que estava sendo vivido inconscientemente através dele teria de ser
conscientizado. Esse passo requer uma enorme mudança de atitude e
consciência e um novo continente para a criança triste. A mudança é difícil:
não é desejada e não é o que a pessoa busca de bom grado.
A vivência da viuvez reconstitui o arquétipo da criança abandonada. Os
sentimentos em torno da morte de um outro que é significativo,
especialmente um marido, são em geral de culpa, vergonha, raiva,
abandono, depressão, ausência de libido e esperança. Acredito que a
vergonha e a culpa tenham uma ligação direta com a tradição da morte da
viúva, em que a pessoa mais próxima ao falecido ia com ele para a terra dos
mortos. Pelo fato de permanecermos vivas, sentimos culpa e vergonha de
que a vida continue para nós. Todos nós passamos por essa experiência
turbulenta, mas a viúva precisa de todo o encorajamento possível para
deixar o mundo dos mortos e regressar à vida. O impulso para afastar-se da
vida é, nesses momentos, muito forte.
No mundo moderno existem os automóveis, onde quem se sente
abandonado pode contemplar a morte ou encontrar um refúgio onde chorar
sozinho. O carro é hoje um santuário e, nesse sentido, é um lugar que
permite à pessoa alimentar ideias de morte. Não que isso implique que o
carro seja usado para provocar a morte, mas é dentro dele que a morte é
contemplada. Pergunte a qualquer pessoa que tenha enviuvado há pouco
tempo se não usa o carro como um lugar para se enfurecer e chorar e pensar
na morte; a resposta será afirmativa.
Outra coisa a ser observada no caso de pessoas que enviuvaram diz respeito
ao dinheiro. Muitos homens recém-enviuvados, e mulheres também, ficam
obcecados por causa do dinheiro. A ansiedade relativa ao dinheiro torna-se
um substituto para o medo de ficar por conta própria. Conheci pessoas ricas
que ficaram aterrorizadas com a ideia de serem enganadas ou roubadas
pelos advogados ou contadores pululando à sua volta. Isto também se aplica
às pessoas que não têm muito dinheiro. Elas também ficam obcecadas pelo
dinheiro quando, na realidade, estão sofrendo a perda de alguém. Embora
existam de fato preocupações financeiras, há um tipo especial de
preocupação que a pessoa que enviuvou recentemente expressa, e penso que
esta seja devida ao sentimento de abandono da “criança”. O viúvo recente
sente-se tão impotente e nu, tão acabrunhado com os sentimentos de amor,
ódio, perda, etc., que a ansiedade por causa do dinheiro se torna o
continente para tudo o mais.
A morte da viúva era uma consequência natural da crença de que a vida da
mulher terminava com a morte do mando. E muitas vezes elas eram mortas
com os rituais prescritos... Ainda em 1857, havia uma lei em Oyo, na
Nigéria Ocidental, que assegurava que algumas pessoas da corte do rei,
incluindo sua mãe oficial, várias sacerdotisas e também sua esposa favorita,
fossem todas mortas quando ele morresse, e por suas próprias mãos25.
Hoje, a morte da viúva é efetuada de modo muito mais sutil. Não a
assassinamos: ela é abandonada e se torna invisível. Quanto mais a mulher
está identificada com o seu marido, mais propensa está a sentir-se
abandonada e desertada. Na minha experiência pessoal, tive sempre uma
“vida própria”, mas o golpe corporal de perda e luto que estava vivendo era
o de um casamento que tinha sido o continente seguro para a minha criança
interior triste. Sozinha, eu evitava essa criança, mas com meu marido era
seguro trazê-la à tona de vez em quando. Eu detestava a ideia de ter que
enfrentá-la sozinha. Entretanto, ou era isso, ou uma experiência parecida à
das viúvas das ilhas Hébridas, da Melanésia, em quem era colocado um
capuz de forma cônica, feito de teias de aranha, que as sufocava; eu seria
igualmente sufocada pela paralisia do isolamento e do abandono.
Quando as viúvas tinham permissão para continuar vivas, o problema
relativo ao que fazer com elas tinha de ser resolvido pelos seus parentes ou
pelos do marido. Muitas vezes ela era considerada com desconfiança e
suspeita de feitiçaria por causa do seu contato com a morte e do... medo de
que talvez tivesse causado a morte do marido. Nas sociedades em que a
viúva tinha consentimento para continuar viva, ela precisava ser ritualmente
liberada do contato com o parceiro morto antes de qualquer outra pessoa
poder tocá-la ou aproximar-se dela, pois acreditava-se que a morte era
muito contagiosa. Depois de um período de isolamento, recebia permissão
para reingressar na família, no pouco invejável papel da viúva. O
isolamento da viúva continua até hoje, mesmo no mundo ocidental.26
Nos tempos vitorianos, a expressão “trajes de viúva” era usada para
descrever as roupas que as viúvas usavam. Etimologicamente, em inglês
essa expressão remonta à palavra wadmal, que significa um tecido de trama
forte. Essa palavra encerra dois significados: wad, “um feixe apertado”, e
mal, “tempo”. Os trajes de viúva podem implicar um limite de tempo para o
período de luto ou isolamento, mas, para mim, a conotação do tecido forte
indica que essa veste é feita para durar o resto da vida.
Não é muito conhecido, fora do círculo da vida religiosa, que as freiras
católicas tiraram seus hábitos dos trajes típicos usados pelas viúvas. A Irmã
Mary Patricia Sexton contou-me que, por volta do século XVII, na França,
as freiras podiam ir até a perigosa zona portuária e realizar o trabalho da
Igreja, sabendo que ninguém as olharia ou importunaria se estivessem
vestidas como viúvas. O simbolismo do casamento com Cristo, envergando
trajes de luto, tem outros significados, mas, do ponto de vista deste artigo, é
interessante divagar sobre o que as viúvas e as freiras têm em comum.
Muitos dos primeiros conventos foram iniciados por viúvas. As roupas que
usavam tinham o propósito de ser imutáveis e de ocultar sua sexualidade.
Esse traje, essa atitude, destinavam-se a durar para sempre.27
Em certas tribos, era interditado o segundo casamento até que o corpo do
marido falecido se tivesse decomposto. A viúva aori, na região da Nova
Zelândia, envergava dois mantos especiais de penas, chamados “mantos de
lágrimas”. Os ossos, depois de algum tempo, eram exumados, envoltos nos
mantos de penas e novamente enterrados. Então a viúva estava livre para
casar-se de novo.28
Atualmente, palavras relativas à morte podem fazer parte dos votos
conjugais. Contudo, de todos os viúvos e viúvas que entrevistei, somente
uma pessoa se lembra de efetivamente ter ouvido as palavras “até que a
morte nos separe”, na hora do casamento. “Tentativas de expulsar a morte
ou de não levá-la em conta são um engano que o homem comete contra si
mesmo. Por mais que o homem se esforce para afastar e ocultar o
conhecimento do inevitável fim de sua existência terrena, ele jamais será
bem-sucedido.”29
Conclusão
A psicologia analítica incentiva as pessoas a deixarem de lado atitudes que
são por demais convencionais ou excessivamente coletivas e asfixiantes.
Considerando-se a história da execução das viúvas, pode-se ver que, dentro
de cada uma de nós, existe um poderoso e arcaico impulso para o abandono.
Encorajo as analisandas de luto a serem “diferentes”, quer dizer, a serem
autênticas perante o que sua alma quer. Uma relação com as fantasias e com
o mundo interior é um contrapeso apropriado às forças do campo coletivo
da consciência, propensas a isolar a pessoa abandonada e, em geral,
destrutivas para seu desenvolvimento. A criança triste empreende uma
viagem até o mundo inferior, tornando-se familiarizada com o escuro, o
medo e com aquela que pode ser a mais decisiva de todas as experiências, a
de ficar sozinha consigo mesma. Antes de vivenciarmos isto, alguma coisa
que nos é preciosa é sacrificada e/ou perdida, abandonada. Temos que nos
desidentificar com a fusão sujeito-objeto, com a participation mystique
inconsciente.30
Abandono é estar num estado de constante conexão com o objeto perdido.
Existe um momento, durante o processo de luto, em que há uma serenidade
no enlutado, um estado de graça. A viagem até o mundo inferior é um rito
de passagem e deve ser considerada dessa maneira. Deve-se cruzar o rio e
voltar novamente, sozinho. O perigo está em ficar atolado a meio caminho,
entre uma margem e a outra. Quantos de nós ainda não lamentamos a perda
de uma infância que não foi aquilo que desejaríamos?
Perto do poço de Mnemosine, está a fonte proibida de Lete, o
esquecimento. A noção do esquecimento é que, na morte, podemos esquecer
as aflições deste mundo e a difícil viagem até o próximo. Este é um tema
elementar, humano, que pertence não apenas aos gregos e aos mitos órficos,
mas ocorre em toda parte.31
O esquecimento pode ser um obstáculo nesta viagem. Quando os sonhos ou
as fantasias da infância são recordados no processo da análise, a cura pode
ocorrer. Essas memórias têm-se mantido ocultas para protegê-los. Mas se se
mantiverem escondidas para sempre, a pessoa pode permanecer atolada na
tristeza e no luto. Uma mulher se lembra de um jogo secreto de que
brincava quando criança. Era uma alquimista e inventou a comida perfeita
para resolver o problema da fome do mundo. Esse jogo era uma tentativa
por parte de seu inconsciente de compensar o fato de que não recebia o
alimento correto de seus pais. Acredito que as brincadeiras secretas da
infância sejam uma tentativa por parte da psique de proteger o que é
curativo e precioso da vigilância por demais invasiva da imagem parental
negativa. É por isso também que as crianças, muitas vezes, param de
desenhar e colorir em idade precoce, se seu trabalho é criticado por uma
figura de autoridade. Isso as protege de sofrerem outros ataques contra a
manifestação de sua imagética psíquica infantil, enquanto não chega a idade
adulta, quando, espera-se, possam permitir-se expressá-la outra vez.32
Os arquétipos da criança triste e da mãe perdida emergem em momentos de
perda, sofrimento e abandono intensos. O próprio Jung passou por uma
destas experiências, depois de ter rompido sua ligação com Freud. Ocorreu-
lhe uma lembrança, carregada de afeto, em que estava com a idade de dez
ou onze anos. Lembrou-se de que, quando menino, gostava de brincar com
areia e pedras e fazer castelos, e outras coisas. Percebeu que havia
esquecido esse jovenzinho, mas ficou evidente para ele que aquela criança
continuava viva e queria alguma coisa dele. Jung continuou fazendo o que a
criança pedia, anotando cuidadosamente as imagens e fantasias ativadas por
esse contato. Denominou esta atividade de “brincar a sério”.33 Isso ocorreu
na época em que Jung estava desesperado com a perda de sua relação com
Freud, assim como com o rumo de sua vida profissional e pessoal.
Por intermédio desse “brincar a sério”, Jung entrou em contato com aquela
sua criança esquecida e abandonada e a trouxe de volta para sua vida.
Poder-se-ia dizer que se tornou a mãe perdida de sua própria criança triste.
Através do contato com essa criança interior, irrompeu uma imensa onda de
criatividade. No filme Matter of Heart, von Franz disse que sempre que
Jung estava prestes a começar a escrever um livro, ia até a praia do lago e
afundava na areia, fazendo caminhos para que a água escorresse. Ele não
permitiu mais que a criança interior fosse esquecida.
O que acontece com a maioria é que permitimos à criança emergir dentro do
continente de uma relação e, muitas vezes, buscamos uma relação em que a
criança possa vir à tona e brincar. Quando esse recipiente é quebrado, pela
morte, por um divórcio ou por outra forma de separação com caráter de
abandono, a criança corre a esconder-se e sofre. Muitas pessoas já passaram
por essa experiência de trazer uma criança triste e abandonada para uma
relação, para que o outro cuide dela. Quando isso acontece, tal união se
torna um vaso sagrado para a criança interior criativa, ou um substituto para
a relação com essa criança.
8. O abandono da criança
JAMES HILLMAN
James Hillman escreve com paixão, seja qual for o tema. Aqui, onde
escreve sobre a natureza infantil de todos nós, talvez esteja em seu
momento mais eloquente. O senso de abandono de Hillman não é o da
tragédia concreta, o cenário do órfão-sem-pais. Ele enxerga uma doentia
sentimentalização da infância que relega a criança interior a um certo
estado romântico (embora imaturo), a uma atitude cultural que divide o
indivíduo em adulto versus criança, na qual a criança e seu poder de
imaginação têm que ser resgatados de um status pueril, perdido, esquecido.
Hillman não receia abordar as ambiguidades da língua e da conceituação,
para desencadear no leitor a conscientização de sua própria psicologia e,
em particular, daquele aspecto que é “perenemente infantil”.
Este ensaio é um excerto de uma palestra que o Dr. Hillman proferiu no
verão de 1971, na Conferência de Eranos, em Ascona, na Suíça. Hillman é
uma das mais instigantes vozes da psicologia contemporânea. É ex-diretor
de estudos do Instituto C. G. Jung, de Zurique, e atualmente é o mais
destacado defensor da psicologia arquetípica. É autor e conferencista
prolífico, analista junguiano e editor do respeitado periódico Spring.
O que é a criança?
O que é essa “criança”? Esta é, sem dúvida, a primeira pergunta. Tudo o
que dissermos a respeito de crianças e infância não é inteiramente, no
fundo, sobre crianças e infância. Basta que consultemos a história da
pintura para vermos como são peculiares as imagens das crianças, em
particular quando as comparamos, em suas distorções, com a exatidão de
outros trabalhos contemporâneos retratando paisagens e naturezas- mortas
ou com retratos de adultos. Basta que consultemos a história da vida
familiar, da educação e da economia para nos darmos conta de que as
crianças e a infância, no sentido em que atualmente empregamos tais
termos, são invenções recentes.1
O que é esse reino peculiar que chamamos de “infância” e o que estamos
fazendo ao estipular um mundo especial com quartos para crianças e
brinquedos infantis, roupas, livros, músicas, linguagem, babás, médicos só
para crianças, crianças brincando tão segregadas da vida real dos homens e
mulheres que trabalham? Sem dúvida, algum setor da psique chamado
“infância” está sendo personificado pela criança e por ela contido em prol
do adulto. É curiosa a semelhança entre este daseinsbereich (setor do ser) e
o mundo dos hospícios, há alguns séculos e até mesmo hoje, quando o
lunático era considerado uma criança, sob a custódia do Estado ou do olho
guardião do médico que cuidava de suas “criancinhas” - os insanos - como
de sua própria família. Como é, de fato, extraordinária a confusão entre
criança e insano, entre infância e insanidade!2
A confusão entre a criança real e a sua infância e a criança de fantasia que
ofusca nossa percepção da criança e da infância é clássica na história da
psicologia profunda. Vocês talvez se recordem de que, a princípio, Freud
acreditava que as recordações reprimidas que causavam as neuroses eram
emoções esquecidas e cenas distorcidas procedentes da infância do
paciente. Mais tarde ele abandonou essa criança, ao perceber que um fator
de fantasia havia sido introduzido nos eventos da infância, sem nunca ter de
fato ocorrido; estava em atuação uma criança da fantasia e não uma
ocorrência real da vida daquela pessoa. Ele foi então forçado a separar a
criança de fato da de fantasia, os eventos da infância exterior dos da
infância interior. Não obstante, permaneceu convicto de que a tarefa da
terapia era a análise da infância. Uma declaração datada de 1919 é típica:
Em termos estritos... o trabalho analítico merece ser reconhecido como uma
psicanálise genuína somente quando tiver conseguido remover a amnésia
que oculta do adulto o conhecimento de sua própria infância desde o início
(quer dizer, entre o 2º e o 5º anos)... A ênfase que estou dando à importância
das primeiras experiências não implica subestimar de modo algum as
influências das experiências posteriores. Mas estas se manifestam em voz
alta o bastante pela boca do paciente, ao passo que é o médico que deve
erguer a voz em defesa das solicitações da infância.3
A que infância estava Freud referindo-se? Como já assinalei aqui, há dois
anos, crianças de carne e osso nunca foram analisadas por Freud. Ele não
analisava crianças. A “infância” que o analista devia recuperar era a
infância verdadeira? Nesse sentido, o próprio Freud permanece ambíguo,
pois o pequeno ser humano real que chamamos “criança” funde-se com a
criança rousseauniana, e até mesmo com a órfico-neoplatônica, que é,
“psicologicamente, uma coisa diferente de um adulto...”4 “A infância tem os
seus próprios meios de ver, de pensar e de sentir: nada mais tolo do que
tentar substituir os seus meios pelos nossos.”5 A diferença reside na
maneira especial que a criança tem de recordar-se: “...a criança apodera-
se... da experiência filogenética quando a sua própria não lhe basta. Ela
preenche as lacunas da verdade individual com a verdade pré-histórica;
substitui ocorrências de sua vida pessoal por ocorrências da vida de seus
ancestrais. Concordo plenamente com Jung quando ele reconhece a
existência dessa herança filogenética...”6
A criança real deixava completamente de ser real porque suas experiências
consistiam em confabulações de ocorrências "pré-históricas”, isto é,
atemporais, míticas, arquetípicas. Dessa maneira, em Freud, a infância
refere-se parcialmente a um estado de reminiscência, como a memória de
Platão ou Agostinho, um reino imaginário que proporciona à criança real
“seus próprios meios de ver, pensar e sentir” (Rousseau). Esse reino, essa
modalidade de existência imaginal, segundo a psicologia popular e
profunda, pode ser encontrado nos primitivos, nos selvagens, nos loucos,
nos artistas, nos gênios e no passado arqueológico; a infância das pessoas
mergulha na infância dos povos.7
Mas a criança e a infância não são reais. Estes são termos para um modo de
existir, para uma percepção e uma emoção que ainda hoje insistimos que
pertencem a crianças reais e, por isso, construímos para elas um mundo, de
acordo com a nossa necessidade de inserir essa fantasia em algum lugar da
factualidade. Não sabemos o que as crianças são, em si mesmas,
“inadulteradas” por nossa necessidade de termos portadores do reino
imaginal, dos “primórdios” (ou seja, da “primitividade”, da “criação”) e do
arquétipo da criança. Não podemos saber o que as crianças são, enquanto
não houvermos compreendido mais a respeito do funcionamento da criança
de fantasia, a criança arquetípica que existe dentro da psique subjetiva.
Freud conferiu à imagem da criança e à fantasia da infância um grupo de
espantosos atributos que talvez vocês recordem: a criança não tem superego
(consciência), como o adulto; não faz associações livres, como os adultos,
mas confabula reminiscências. Os pais e os problemas da criança são
externos, em vez de internos, como no caso dos adultos; desse modo, a
criança não tem vida psíquica decorrente de uma transferência simbólica.8
Essa ausência de consciência pessoal, essa mistura de comportamento e
ritual, de memória e mito está muito próxima da vida mental da “loucura”,
do artista, daquilo que chamamos “primitivo”.
Mas ainda mais espantosos que os atributos enunciados por Freud são
aqueles que podemos deduzir de suas ideias. Em primeiro lugar, ele deu
primazia à criança: nada era mais importante em nossa vida do que os
primeiros anos e aquele estilo de pensamento e emoção da existência
imaginal chamado “infância”. Em segundo lugar, Freud outorgou um corpo
à criança: ela tem paixões, desejos sexuais, anseia por matar, teme,
sacrifica, é rejeitada; odeia e tem anseios e é composta por zonas erógenas,
preocupando-se com fezes, órgãos genitais e merecendo o nome de perversa
polimorfa. Em terceiro lugar, Freud atribuiu-lhe patologia: a criança vive
nas nossas repressões e fixações e está na base mesma dos nossos distúrbios
psíquicos;9 ela é o nosso sofrimento.
Esses atributos são de fato espantosos se forem comparados à criança de
Dickens, pois Dorrit e Neli, Oliver e David tinham pouco de paixão e de
corpo, além de nenhuma sexualidade, principalmente em vista do pequeno
Hans e da pequena Anna, e de outras crianças da literatura psicanalítica. A
perversidade, quando entrava nos textos de Dickens, vinha dos adultos, da
indústria, da educação, da sociedade; a patologia ocorria nos leitos de morte
que levavam as crianças de volta ao Paraíso. Quando colocamos a
perspectiva de Freud em comparação com a de Dickens, podemos enxergar
com mais clareza, mesmo que em ambos os autores a criança como fato e a
criança como imagem ainda não se tivessem desemaranhado uma da outra.
O ensaio de Jung intitulado “A Psicologia do Arquétipo da Criança”, de
1940, adiantou a questão de maneira considerável; a criança real é
abandonada e com ela a fantasia do empirismo, a noção de que nossa
apercepção do fator, em nossa subjetividade, resulta de observações
empíricas da infância real. Jung escreve o seguinte:
Talvez não seja supérfluo assinalar que o preconceito leigo tende sempre a
identificar o motivo da criança com a “criança” da experiência concreta,
como se a criança real fosse a causa e a pré-condição da existência do
motivo da criança. Na realidade psicológica, porém, a “criança”, como ideia
empírica, é apenas o meio... pelo qual se pode expressar um fato psíquico
que não pode ser formulado com mais exatidão. Portanto, enfatizo que,
pelas mesmas razões, a ideia mitológica da criança não é uma cópia da
criança empírica... não é - e esse é o ponto - uma criança humana.10
Que precisão os nossos estudos da criança humana podem ter enquanto não
tivermos reconhecido suficientemente a criança arquetípica em nossa
subjetividade, como fator que intervém na nossa visão? Deixemos,
portanto, a criança e a infância de lado e acompanhemos, em vez disso,
aquilo que Jung denomina o “motivo da criança” e o “aspecto infância da
psique coletiva”.
Nossa questão, agora, passa a ser a seguinte: o que é o motivo da criança,
que se projeta com tanta nitidez e atrai para si tais fantasias? Jung responde:
A “criança” é tudo o que está abandonado e exposto e que é, ao mesmo
tempo, divinamente poderoso; é o começo insignificante e dúbio e o fim
triunfal. A “eterna criança” no homem é uma experiência indescritível, uma
incongruência, uma desvantagem, e uma divina prerrogativa; um
imponderável que determina a presença ou ausência últimas de valor numa
personalidade.11
Jung elabora os seguintes aspectos gerais e especiais: futuridade, divina
invencibilidade heroica, hermafroditismo, princípio e fim, e o motivo do
abandono, do qual derivo o meu tema. As elaborações de Jung datadas de
1940 deveriam ser consideradas um acréscimo àquelas já existentes em seus
trabalhos anteriores, nos quais o motivo da criança está relacionado ao
pensamento mítico arcaico, ao arquétipo da mãe12 e à bem-aventurança
paradisíaca.13 Alguns aspectos discutidos por Jung já haviam sido descritos
por Freud em seu próprio estilo de linguagem. A ideia da criança criativa é
encontrada na equação freudiana criança - pênis; e a criança rejeitada, em
sua equação criança = fezes. “‘Fezes’, ‘criança’ e ‘pênis’ formam, assim,
uma unidade, um conceito inconsciente (sit venia verbo) — a saber, o
conceito de uma pequena coisa que pode tornar-se separada do próprio
corpo.”14
A estas características acrescento duas outras, procedentes de nossa tradição
ocidental: a primeira, especificamente cristã; a segunda, especificamente
clássica. Na tradição cristã (Legasse), “criança” refere-se também ao que é
simples, ingênuo, pobre e comum — os órfãos — na sociedade e na psique,
como na linguagem dos Evangelhos, em que criança significava pária, pré-
requisito para a salvação e, mais adiante, estava associada aos sentimentos
do coração, em oposição ao aprendizado mental. Na tradição clássica, a
criança aparece naquelas configurações da psicologia masculina
representadas especificamente por Zeus, Hermes e Dioniso, suas imagens,
mitemas e cultos. O tema da criança pode ali manter-se distinto dos temas
da criança-e-mãe e também dos temas da criança-herói, que têm uma
implicação psicológica diferente.
Nosso tema segue literalmente Jung quando ele diz: “O tema da criança
representa algo que não só existiu no passado distante como existe agora...
não só um vestígio, mas um sistema que funciona no presente e cujo
propósito é compensar ou corrigir, de maneira significativa, a
unilateralidade e extravagâncias inevitáveis da mente consciente.”15 Se, de
acordo com Freud, a essência do método psicanalítico é alterar alguma
coisa e se, segundo Jung, a criança é o que atua como corretivo psicológico,
nossas reflexões requerem que tragamos de volta a criança, tirando-a de seu
abandono, inclusive quando falamos dela. Então, o tema geral pode passar a
concentrar-se especificamente na subjetividade particular de cada uma e
agir no sentido de modificar a unilateralidade da consciência com relação à
criança.
O abandono nos sonhos
Antes de mais nada, encontramos a criança abandonada nos sonhos, em que
nós mesmos, um filho ou outra criança desconhecida é negligenciada,
esquecida, está chorando, correndo perigo, passando necessidades, ou
coisas assim. A criança torna conhecida a sua presença através dos sonhos;
embora abandonada, ainda podemos ouvi-la, sentir o seu chamado.
Nos sonhos modernos, encontramos a criança correndo o perigo de se
afogar, de se deparar com animais, de enfrentar o trânsito de veículos, de
ser deixada dentro do porta-malas (o tema da “arca”), ou num carrinho de
supermercado ou de carregar criança (o tema da “cesta”); outros perigos são
os sequestradores, os ladrões, os membros da família, os incompetentes; as
doenças, deformidades físicas, infecções secretas, retardo mental e lesão
cerebral (a criança idiota); ou uma catástrofe mais ampla e menos
específica, como guerra, inundação, incêndio. Às vezes, a pessoa acorda no
meio da noite com a sensação de ter ouvido uma criança chorar.
Em geral, a resposta do sonhador ao tema do abandono é uma preocupação
aguda, uma responsabilidade cheia de culpa: “Eu não deveria ter deixado
que isso acontecesse; devo fazer alguma coisa para proteger a criança; sou
um pai/uma mãe ruim.” Se for um bebê que aparece no sonho, acreditamos
que devemos manter a noção dessa “criança” conosco o tempo todo,
alimentá-la a cada três horas
com meticulosa atenção, levá-la às nossas costas como um bebê índio.
Nossa tendência é considerar a criança uma lição de moral.
Mas a culpa impõe o encargo de mudar alguma coisa (Freud) e de corrigir
alguma coisa (Jung), em escala extensa, no ego enquanto agente. Afinal de
contas, o sonhador não é só o responsável pela criança, ele também é a
criança. Por conseguinte, as emoções de preocupação, culpa e
responsabilidade, conquanto possam ser moralmente virtuosas e em parte
corrigir o descaso, também podem impedir outras emoções, como o terror, a
perda e o desamparo. Às vezes, quanto mais nos preocupamos com a
criança, menos ela realmente nos alcança. Assim, enquanto assumimos
perante um sonho principalmente a postura do ego responsável, reagindo
com culpa e com o ímpeto de consertar as coisas, de melhorar com
providências a situação, mudando atitudes, extraindo dos sonhos lições de
moral para o ego eticamente responsável, reforçamos justamente esse ego.
E, dessa forma, enfatizamos o abismo que existe entre pais e filhos: o ego
se torna o genitor responsável que apenas nos destitui das emoções da
criança.
É crucial para a integração do sonho - a integração, não a interpretação,
pois estamos agora falando de integridade em relação ao sonho, de
permanecer ao seu lado e dentro dele, acolhendo-o em todas as suas partes,
participando do total de seu enredo - que haja a vivência emocional de
todas as suas partes. A Gestalt-terapia tenta realizar isso ao exigir do
sonhador que se sinta em todos os elementos do sonho: o pai aflito e
também os cães selvagens, o rio que transborda e inunda, a infecção
secreta, a criança desprotegida. É tão importante desmoronar com o choro
da criança sofredora, e odiar selvagemente o pueril, como ir para casa, ao
final da hora terapêutica, decidido a tomar melhor conta das partes novas e
frágeis que necessitam de ajuda para crescer.
Da mesma forma como a interpretação e a responsabilidade do ego podem
fortalecer o pai às custas do filho, também a amplificação não pode atingir
a criança abandonada. A amplificação da criança à beira do rio, vagando
perdida pela floresta, ou tentando executar uma tarefa que está além de suas
forças, nos termos dos contos de fadas, dos mitos e ritos de iniciação, pode
macular o tema de forma precisa para que vejamos alguns aspectos
claramente - em especial a nova consciência heroica que está emergindo
mas a técnica contaminadora da amplificação para fazer aflorar o
significado objetivo também pode obliterar a realidade subjetiva do
desamparo. A amplificação frequentemente nos afasta da infelicidade, ao
colocá-la num nível geral. Para muitos eventos psíquicos, é exatamente essa
ampliação do campo da consciência por meio da amplificação que é
necessária, mas, precisamente para este tema ela parece ser contraindicada,
porque a criança esquecida pode ser mais bem reencontrada por um
movimento de aproximação da infelicidade subjetiva e pela acurada
observação de sua localização.
Tanto a responsabilidade como a amplificação são métodos insuficientes
para este tema. Na qualidade de atividades da pessoa madura, cerebral,
distanciam-nos ainda mais da criança.
O abandono no casamento
Uma vez que todo lar estabelecido, todo ninho, todo nicho de hábitos
oferece um santuário à criança abandonada, o casamento inevitavelmente
evoca a criança. Às vezes, um casamento precoce encerra a intenção óbvia
de encontrar um cesto para a criança, inaceitável no lar de origem. O padrão
pode prosseguir por muito tempo daí em diante: o marido e a esposa, num
acordo tácito, cuidam da criança que foi abandonada em seus próprios lares
de origem, e o fazem de tal forma que não conseguem encontrar a criança
apropriada a si mesmos.
Estar em casa, voltar para casa, dirigir-se à casa — estas são emoções que
se referem às necessidades da criança. Elas indicam abandono. Essas
emoções transformam a casa real, suas paredes e teto, na fantasia de um
livro de gravuras, com paredes psíquicas e teto psíquico, na qual colocamos
nossa vulnerabilidade e dentro da qual podemos nos expor em segurança à
perversa e polimorfa fragmentação das nossas demandas. Em casa, não
somos apenas a mãe que abraça e o pai que traça a diretriz; somos também
a criancinha. Aquilo que em todos os outros lugares é rejeitado deve ser
consentido em casa.
Essa realidade, que alguns psicoterapeutas chamaram de “a criança interior
do passado” e outros de ‘‘interação neurótica no casamento”, é tão
importante nas fantasias concretizadas no casamento como o são os vários
padrões da coniunctio descritos por Jung. O que impede a realização das
aspirações da coniunctio são as ferozes exigências incestuosas da criança,
cujos desejos de união são de uma outra ordem que não a do quatérnio
conjugal16 e cuja imagem de quem “contém” e de quem é “contido”17
obedece inteiramente aos termos do seu ansioso desamparo. Aonde mais ela
pode ir? Esta também é sua casa e, mais importante para ela do que marido
e mulher, são mãe e pai, acolhimento e proteção, onipotência e idealizações.
Um dos propósitos do casamento tem sido definido como a procriação e a
criação dos filhos. Mas também existe a criança arquetípica, constelada
pelo casamento e cuja necessidade de atendimento destruiria o casamento
ao insistir que ele pusesse em prática os padrões arquetípicos, que são
“pré”-conjugais (não-iniciados, infantis, incestuosos). Ocorrem então
aqueles conflitos entre as crianças de verdade e o filho psíquico dos pais,
conflitos sobre quem vai ser abandonado. O divórcio então ameaça não só
os filhos de verdade como também a criança abandonada dos pais, que
encontra no casamento um continente.
A concentração do abandono no casamento porque não há outro lar para ele
faz com que o casamento se torne o palco principal para a encenação do
arquétipo da criança (e não da coniunctio). No casamento, encontramos as
idealizações da criança: o matrimônio como alfa e ômega da vida, o
hermafroditismo vivido como “partilha de papéis”, a futuridade vivida
como planejamento das esperanças e dos temores, a vulnerabilidade
defensiva. As tentativas do casal para conter a criança (e não um ao outro)
produzem um padrão familiar que se alterna entre a emotividade e a
ausência absoluta de emoções, e um casamento petrificado na norma social.
Perdida nessa oscilação está a imaginação que a criança pode trazer. A
imaginação é purgada em afetos ou concretizada em planos e hábitos que
mantêm a criança imobilizada. Se podemos falar de uma ‘‘terapia
conjugal”, esta teria que se basear, não na ‘‘interação neurótica” do casal,
mas na criança como fator central do casamento, e na sua imaginação, quer
dizer, no cultivo da psique imaginal, a peculiar vida de fantasia que
transcorre ludicamente entre a sua criança e a minha.
O batismo da criança
Em geral, sentimos que há alguma coisa fundamentalmente errada com
relação à criança, e esse erro é então atribuído por nós à criança. As
sociedades têm que fazer alguma coisa com respeito às crianças, para
consertar esse erro. Não recebemos as crianças do modo como elas nos são
dadas; elas precisam ser removidas da infância. Nós as iniciamos,
educamos, circuncidamos, vacinamos, batizamos. E se, à maneira dos
românticos, idealizamos a criança — e idealizações são sempre um sinal de
distância — e a chamamos de espelho da natureza, nem por isso confiamos
cegamente nessa natureza. Até Emanuel (Isaías, 7:14-16) teve primeiro que
comer manteiga e mel antes de poder distinguir entre o bem e o mal. A
criança, em si, deixa-nos inquietos, ambivalentes; sentimo-nos ansiosos
diante das propensões humanas concentradas no símbolo da criança. Ele
evoca uma grande parte daquilo que ficou do lado de fora, que é
desconhecido, e se associa facilmente ao que é primitivo, louco e místico.
Quando analisamos as primeiras controvérsias sobre o batismo das crianças,
refletimos sobre qual era exatamente o conteúdo psicológico que animava
aquelas excelentes mentalidades patrísticas. A energia que investiram na
criança é comparável à que a moderna psicologia lhe tem devotado. A
princípio, porém, eles (Tertuliano, Cipriano) não insistiam no batismo
precoce, e Gregório de Nazianzo preferia que a criança já exibisse um certo
grau de mentalidade, por volta dos três anos, para então batizá-la. Mas
Santo Agostinho era inflexível. Uma vez que o homem nascia do pecado
original, trazia consigo a mácula para o mundo, tal como Agostinho fizera,
em seu passado pagão. Somente o batismo poderia purificar a criança.
Santo Agostinho era incisivo a respeito da necessidade de salvação da
criança, e escreveu: “Os que pedem pela mimese da criança não devem
amar a sua ignorância, mas sim a sua inocência.”18 E o que é inocente? “É a
fraqueza das faculdades da criança que é inocente, não sua alma.”19 Como
isto é freudiano: a criança não pode desempenhar com suas faculdades,
ainda por demais juvenis, aquelas perversidades latentes que estão em sua
alma. A alma não continha o mero pecado geral, mas o pecado específico
dos impulsos pré-cristãos, a-cristãos, típicos do paganismo politeísta que
Freud, mais adiante, iria descobrir e batizar de “perverso polimorfo” e que
depois Jung descreveria, com maior compreensão, como arquétipos. O
batismo poderia redimir a alma de sua infantilidade, daquele mundo
imaginal de uma multiplicidade de formas arquetípicas, de deuses e deusas,
seus cultos e as práticas não-cristãs que consubstanciaram.
Na medida em que a criança não é um vestígio, mas um sistema que está em
funcionamento agora, e na medida em que um sacramento não é um
vestígio de um acontecimento histórico passado, mas continua vivo agora, o
batismo da criança está acontecendo sempre. Estamos continuamente
batizando a criança, polindo a “infância” da psique, seus “primórdios”, suas
reminiscências, com os ritos apotropaicos da nossa cultura agostiniana,
purgando a alma de sua possibilidade imaginal politeísta, que,
emblematicamente, está contida na criança, tornando assim a criança da
psique uma “prisioneira de Cristo” (Gregório de Nazianzo: “Em Honra de
Basílio”), de um modo muito semelhante àquele como a Igreja, no início,
substituía os bebês dos cultos aos heróis e do panteão pagão pela criança
Jesus.
Esse processo de cristianização desenrola-se sempre que nos vinculamos
aos temas da criança nos nossos sonhos e sentimentos usando apenas os
modelos cristãos. Consideramos, então, o potencial polimorfo de nosso
inerente politeísmo como fundamentalmente necessitado de atualização por
meio de sua transformação em unidade. É assim que impedimos a criança
de desempenhar sua função como fator que provoca alterações. Nós a
corrigimos, em vez de deixar que ela nos corrija.
Regressão, repressão
O batismo servia a duas funções para as quais temos termos
contemporâneos: ele impedia a regressão e oferecia repressão. Nossa
vivência imediata da criança, hoje, é através dessas experiências.
O que a psicologia profunda chegou a denominar regressão não é senão o
retorno à criança. Sendo assim, poderíamos indagar da psicologia, de uma
forma mais fundamental, o que ela acha de uma maturidade que tem como
contrapartida a regressão, e o que ela acha de um desenvolvimento que
exige que a criança seja abandonada. A regressão é a sombra inevitável de
estilos lineares de pensamento. O modelo do desenvolvimento será
atormentado por seu contramovimento, o atavismo; e sua reversão será
vista, não como um retorno, através da semelhança, à realidade imaginal
segundo diretrizes neoplatônicas (Proclus, Plotinus), mas como regressão a
uma condição pior. A psicologia apresenta o “retornar” como “descer”,
como involução a padrões anteriores e inferiores. Maturidade e regressão
tornam-se incompatíveis. Perdemos o respeito pela regressão, esquecendo-
nos de que as coisas vivas precisam “voltar” aos “primórdios”.
A regressão se torna tolerável na teoria de hoje somente em termos de uma
“regressão a serviço do ego” (E. Kris, Psychoanalytic Explorations in Art,
1952). Mesmo Jung considerava a regressão principalmente compensatória,
um recuar para saltar melhor adiante. Em Maslow, Erikson, Piaget, Gesell e
também na psicologia freudiana do ego, se não avançamos segundo certas
trilhas bem pesquisadas, de um estágio para outro, tornamo-nos fixados na
“infância” e exibimos um comportamento regredido, estilos denominados
pueris e infantis. Por trás de cada passo adiante rumo à “realidade” existe a
sombra ameaçadora da criança, hedonista ou mística, dependendo de como
consideramos a reversão à primordialidade. Essa criança nós apaziguamos
com sentimentalismo, superstição e “kitsch”, com férias condescendentes e
com presentes, e com a psicoterapia, que, em parte, deve sua existência e
subsistência material ao empuxo regressivo da criança.
Nosso modelo de maturidade tende a tornar atraente a regressão.
Idealizamos a distância o estado angelical da infância e sua criatividade. Ao
abandonar a criança, colocamo-la na arcádia, nascida à beira-mar,
embalada, ninada suavemente ao nível da água entre caniços e arbustos,
nutrida por ninfas que satisfazem com prazer cada um de seus caprichos,
por pastores, velhas e doces babás que acolhem o pueril, o regredido. É
claro que, depois, instala-se novamente o contramovimento: constela-se o
aqui; da criança abandonada brota o grande salto adiante, a drenagem do
Zuyder Zee à qual Freud comparou o trabalho da psicanálise.20
Uma vez que o conteúdo principal da regressão é a criança, a revolução
contemporânea em defesa do reprimido - o negro ou o pobre, o feminino ou
o natural ou o subdesenvolvido - torna-se, inevitavelmente, a revolução da
criança. As formulações tornam-se imaturas, num estilo patético, o
comportamento, regredido e a ambição, ao mesmo tempo invencível e
vulnerável. O hermafroditismo do arquétipo também desempenha seu papel
na revolução, tal como aquela peculiar mistura de começo e fim: a
esperança exemplificada na destruição apocalíptica. O nosso tema toca,
portanto, na relação que a psicologia tem com a sua época e no seu embate
com a criança; e tudo isso sugere que pode ser produtivo refletir sobre as
declarações de (Herbert) Marcuse, (R. D.) Laing e (Norman O.) Brown a
respeito da revolução contemporânea do reprimido à luz da psicologia
arquetípica, isto é, como manifestações do culto à criança.
Seria preferível à divisão em criança e adulto e aos subsequentes padrões de
abandono que estivemos delineando uma psicologia menos entregue à
criança, com seus tormentos e seu romantismo. Teríamos então uma
psicologia descritiva do homem — de quem um aspecto é perenemente
criança, contendo sua incurável fraqueza e a babá para ela - que não
representaria a criança nem pelo desenvolvimento nem pelo abandono, mas
que conteria a criança, o conteúdo criança. Nossa experiência subjetiva
poderia então refletir-se numa psicologia que seria ao mesmo tempo mais
exata em sua descrição e mais sofisticadamente clássica, em que a criança
está contida no homem, que carrega em si, no rosto e no semblante, a
vergonha do pueril, sua psicopatologia imutável — não transcendida, não
transformada — e as invencíveis e elevadas esperanças ao lado da
vulnerabilidade dessas mesmas esperanças, que carrega em si seu abandono
com dignidade, e cuja liberdade vem do imaginal, redimido da amnésia da
infância.
9. O arquétipo do órfão
ROSE-EMILY ROTHENBERG
Este ensaio define o arquétipo do abandono, do órfão, e o acompanha com
consumada habilidade através dos mitos, histórias, contos de fadas,
literatura e, o que talvez seja o mais importante, através da experiência
pessoal da própria autora. Este é um bem-esculpido tratamento do tema do
abandono, que detalha os apuros do “órfão interior”. A sra. Rothenberg,
analista junguiana, fala com máxima profundidade quando diz: "Somente
quando a pessoa está verdadeiramente só é que o potencial criativo,
encravado no mais fundo de seu ser, tem espaço e condições para emergir à
luz do dia.” Este texto foi originalmente publicado no periódico
Psychological Perspectives, 1983.
Meu nome é Rose-Emily em homenagem à minha mãe. Antes de eu nascer,
ela confidenciou à sua melhor amiga que pensava que ia morrer. Seis dias
depois de eu ter nascido, enquanto ainda estava no hospital, ela teve uma
infecção e morreu.
Um ano e meio mais tarde meu pai casou-se de novo. Minha primeira
recordação de infância é a de estar em pé na sala de jantar, com meu pai, a
esposa dele e minhas duas irmãs. Meu pai então nos disse: “Esta não é sua
verdadeira mãe, é sua madrasta.” Minha irmã de 14 anos não disse nada.
Mas minha outra irmã, um ano e meio mais velha que eu, berrou e chutou e
gritou: “Não, isso não é verdade!” Eu só fiquei ali, em silêncio. Senti um
medo imenso, sabendo que teria que agradar a essa mãe de qualquer jeito,
senão ela também iria deixar-me.
Muitos anos depois, tentei imaginar o que eu devia ter sentido quando
minha mãe me deixou depois de apenas seis dias. Imaginei cair num grande
abismo negro, sem nada lá para me segurar. Tudo estava incrivelmente
parado. Senti-me abandonada, como se tivesse sido arremessada num
abismo e largada lá, sozinha. Tenho-me consolado muitas vezes pensando
que Deus criou o mundo em seis dias. Eu tive minha mãe por seis dias: foi
só o tempo suficiente para que eu tivesse um começo.
O primeiro sonho de que me recordo tem vivido com nitidez em mim. Na
época eu tinha mais ou menos quatro anos.
Estou em pé no centro da casa onde morei na infância. Atrás de mim está
uma árvore morta com galhos nus, sem folhas. Dos meus antebraços
nascem cobras pretas.
Contei esse sonho para vários analistas e todos ouviram com atenção, mas
nenhum deles tentou interpretá-lo. Eu o venho contemplando, pois vivo
com ele. A árvore é muitas vezes um símbolo do espírito eterno que perde
suas folhas, morrendo para depois viver. A árvore morta do meu sonho
parecia conter a alma de minha verdadeira mãe, e as serpentes que nascem
dos meus braços representavam a reação de minha psique à sua morte.
Serpentes transmitem energias poderosas. Essas energias podem ser usadas
como veneno ou como panaceia. As serpentes exemplificam tanto o que é
mais elevado como o que é mais baixo no homem: a destruição ou a
sabedoria divina. As serpentes simbolizam tanto o nível de vida mais
primitivo como o renascimento e a ressurreição. Podem também representar
a encarnação dos mortos e, talvez, fossem, no sonho, um continente para o
espírito de minha mãe.
Dar serpentes à luz foi o meu dilema de órfã. Eu poderia permanecer no
inconsciente e sucumbir aos seus venenos ou usar os seus poderes de cura
para participar da vida.
Muitos anos depois, tive um sonho em que Jung aparecia.
Eu estava indo visitar Jung, pois ele iria morrer em breve. Eu queria falar
com ele a respeito dos meus progressos no treinamento para analista. Ele
me disse: “Você precisa integrar as duas dores da sua vida. É sobre isso que
você precisa trabalhar.”
Até no sonho eu sabia que ele queria dizer que eu precisava entender e
integrar a morte da minha mãe e a vinda de minha madrasta, e o que
significava ser órfã.
O termo órfão foi usado pelos alquimistas como nome de uma pedra
singular, gema semelhante ao nosso atual brilhante solitário, encontrado na
coroa do Imperador. Os alquimistas igualavam a pedra órfã à lapis
philosophorum, a pedra filosofal. Essa pedra corresponde à totalidade, ao
“um”; representa a idéia psicológica do Self. A lapis é a pedra dos sábios, a
gema do processo de individuação. Num certo texto, era conhecida como o
órfão sem lar, morto no começo do processo alquímico para facilitar a
transformação. Essa representação é a forma gráfica do que sucede ao órfão
real depois que lhe é imposta a separação inicial e brutal. Também ele é
“morto” antes que o processo de transformação lhe permita descobrir o
significado deste evento ímpar em sua vida.
A lapis ou pedra também é conhecida como algo que é ao mesmo tempo
vulgar e precioso, constituindo um conjunto de opostos bastante familiar ao
órfão. Ele muitas vezes se sente como se fosse ou o “mais inferior” ou o
“mais superior”.
A imagem bíblica da pedra rejeitada pelos construtores, que se torna a
principal pedra angular de uma edificação (Salmos, 118:22), também invoca
o arquétipo do órfão. A pedra que Jung esculpiu em sua torre de Bollingen
era dessa natureza. Em Memórias, Sonhos e Reflexões, Jung fala sobre um
erro que aconteceu nas dimensões da pedra angular. O pedreiro de Jung
queria devolvê-la. Jung imediatamente sentiu que ela era a “sua” pedra e
insistiu em mantê-la. Subitamente um verso em latim lhe veio à mente,
verso que se referia à lapis como elemento menosprezado e rejeitado, e ele
inscreveu-o na pedra:
Aqui está a pedra malvinda, a pedra sem valor.
É de preço muito barato!
Quanto mais é desprezada pelos tolos
Mais é amada pelos sábios.
No terceiro lado da pedra, o que ficaria de frente para o lago, ele “deixou
que a própria pedra falasse” e esculpiu as seguintes citações alquímicas
(traduzidas da inscrição em latim):
Sou órfã, solitária. Apesar disso, encontram-me em toda parte. Sou uma,
mas oposta a mim mesma. Sou jovem e velha e uma só ao mesmo tempo.
Não conheci nem pai, nem mãe, porque tive que ser buscada no fundo,
como um peixe, ou caí como uma pedra branca do céu. Nas matas e
montanhas vagueio, mas estou oculta no mais íntimo recesso da alma do
homem. Sou moral para todos e, no entanto, não sou tocada pelos ciclos das
eras.
O arquétipo do órfão frequentemente é ilustrado num número
surpreendentemente grande de figuras míticas e legendárias, sugerindo a
íntima ligação entre ser órfão e ser herói. Entre essas figuras temos a do
herói mesopotâmico chamado Sargon e as figuras bíblicas de Moisés e
Joshua Ben Nun; temos incontáveis deidades gregas (Édipo, Esculápio e
Dioniso), a rainha síria Semíramis, o fundador de Roma, Rômulo, e o rei
inglês Artur, além de seu cavaleiro Tristão. Todas essas figuras partilharam
o destino de serem separadas de suas mães e criadas por outras pessoas.
Como indicam muitos exemplos mitológicos, o arquétipo do órfão está
inextricavelmente vinculado ao do herói, mas também tem sido constelado
na psique dos mortais que estão prestes a partir na jornada do herói. Por
exemplo, a imagem do órfão tem um apelo para o jovem que empreende seu
rito de passagem, deixando a segurança e a proteção da família. Ele se
submete à perda psíquica de seus pais e a subsequentes sentimentos de
solidão e isolamento, que recordam a separação física entre o bebê e sua
mãe. O adolescente que perde o pai ou a mãe é duplamente afetado pelas
perdas, a simbólica e a real, e pode sofrer de maneira considerável.
E m Símbolos de Transformação, Jung escreveu que os adolescentes cujas
condições domésticas são difíceis e que têm um futuro desconhecido pela
frente podem devanear que são filhos adotados cujos verdadeiros pais são
reis que algum dia regressarão para pegá-los de volta. Sua verdadeira
identidade será então revelada de forma dramática. Uma outra variação do
devaneio do órfão incorpora o fato de que quem é literalmente órfão, por
não ter os elos familiares habituais, está livre para se dedicar à descoberta
dos mistérios da vida, participando de quaisquer aventuras românticas que
venha a imaginar e realizando inúmeras proezas ao longo do caminho.
A fantasia de ser adotado não está, de modo algum, limitada aos
adolescentes. Muitas crianças menores têm repetidos devaneios de serem
órfãs. Independentemente da idade, a ocorrência frequente desta fantasia
pode indicar uma tentativa por parte da psique de estabelecer a ideia da
singularidade pessoal e do impulso intrínseco de empreender a própria
viagem individual, na vida, para cumprir o próprio destino.
Embora estas fantasias sobre os órfãos se baseiem, na sua maior parte, em
antigas crenças folclóricas, também se originam de algumas práticas sociais
consagradas. Na antiguidade, as crianças eram às vezes cruelmente
abandonadas e expostas ao desamparo por causa de algum estigma social
relacionado com defeitos de nascimento, tabus religiosos, ilegitimidade e
pobreza. Quando os pais queriam oferecer-lhe alguma chance de
sobrevivência, embrulhavam o bebê num cobertor e deixavam-no numa
região bastante povoada, onde seria facilmente descoberto. Por outro lado,
algumas crianças não-desejadas eram largadas em pontos isolados, onde
seria inevitável sua morte pelo ataque de animais selvagens ou pela
exposição ao clima e a carências de vários tipos.
O órfão, como arquétipo, tem aberto seu caminho através de múltiplas
narrativas. As conhecidas histórias de Harold Grey - Orphan Annie -, de
Johanna Spyri - H e i d i — e de Frances Hodson Burnett — The Little
Princess (ou Sara Crew) — são todas muito famosas como narrativas sobre
órfãs.
Também são igualmente famosas as crianças de Charles Dickens. Em “The
Dickens Child: From Infantilism to Wholeness”, John McNeary discute
cada um dos personagens de Dickens, os estágios iniciais de seu abandono,
como são incompreendidos e maltratados e, por fim, sua viagem arquetípica
de descoberta da própria identidade. McNeary escreveu que a criança órfã
alcança suas metas “somente após terríveis dificuldades e a quase
destruição, pois a luz que a criança carrega sempre corre o perigo de ser
tragada pela escuridão”.
Dois dos andarilhos mais notáveis da literatura americana são Ismael, de
Melville, narrador bíblico de Moby Dick, e Ahab, capitão de seu navio, o
Pequod.
E m Melville’s Moby Dick: A Jungian Commentary, Edward Edinger
escreveu: “Ismael é o órfão rejeitado que, não por culpa sua de qualquer
espécie, foi cruelmente expulso e condenado a vagar sem rumo fora dos
limites de sua região. Portanto, Ismael é o protótipo do homem alienado, do
forasteiro que se sente sem lugar na natureza das coisas.”
Além da alquimia, da mitologia e da literatura, está a realidade crua daquele
que é literalmente órfão. Muitos autores tornaram-se eles mesmos órfãos
antes dos seis anos: Edgar Allan Poe, as irmãs Brontë, George Sand,
Jonathan Swift, Rousseau, Tolstoi, Baudelaire, Hawthorne, Byron, Dante e
tantos outros. Os personagens de seus livros frequentemente refletem as
vivências de suas perdas prematuras.
Para examinar os complexos psicológicos que atormentam os órfãos,
precisamos primeiro considerar o significativo relacionamento primário do
qual surge o órfão, e do qual saiu como criança abandonada. Em seu livro
The Child, Erich Neumann escreve: “Assim que avaliarmos o significado
positivo da total dependência da criança em relação ao vínculo primal, não
poderemos surpreender-nos diante dos efeitos catastróficos que se seguem
quando esse relacionamento é perturbado ou destruído.”
Pessoas não-órfãs, como crianças adotadas ou filhos de pais divorciados,
também podem deparar-se com o trauma psicológico da perda. Mesmo
quando o pai e a mãe estão presentes, a criança pode sentir-se abandonada,
se sentir que sua mãe não a escuta, não a ouve. Quando a criança não é
aceita em sua realidade, ela não vivencia a autenticidade de seus próprios
sentimentos. Alice Miller, em Prisoners of Childhood, observou que isso
cria uma sensação de vazio, futilidade e expatriação na criança. Não é
preciso que ela seja literalmente órfã para ter os sentimentos da orfandade,
mas estes sentimentos são mais intensos em quem é literalmente órfão.
Já em idade muito precoce, a mãe representa o Self. Uma viva ligação com
a mãe, que contém essa importante projeção geradora de vida, é crucial para
que o recém-nascido tenha a sensação de segurança e valor pessoal. A mãe
também contém o elo com o passado maternal, que remonta até o primeiro
elo com a própria Terra. Quando esse relacionamento primário fundamental
for comprometido, ou quando a nova vida do bebê for isolada logo no
nascimento, o seu ego será prematuramente remetido a si mesmo e reduzido
a contar com seus próprios recursos. O bebê experimentará então o
abandono.
Segundo a minha concepção, três complexos psicológicos principais
costumam resultar dessa catástrofe. Eles constituem o perfil psicológico
básico do órfão. Em primeiro lugar, existe uma profunda sensação de
ausência pessoal de valor. O calor materno oferece à criança a sensação de
valor, num nível primário. Quando esse amor é retirado a pessoa se sente
rejeitada, acha que fez alguma coisa errada ou foi considerada totalmente
inaceitável. Neumann traduziu a situação com as seguintes palavras: “A
criança é expulsa da ordem natural das coisas e passa a duvidar da razão de
sua própria existência.”
Essa sensação de ausência de valor coliga-se ao segundo aspecto mais
proeminente da psicologia do órfão, que é a sensação de culpa. Essa culpa é
arcaica, e não deve ser confundida com a culpa mais consciente que a
pessoa sente quando deixa os pais, que tem maior afinidade com a culpa de
tornar-se mais consciente ou de estar vivo. Neumann disse: “A vivência de
não ser amado é idêntica à de ser anormal, doente, leproso e, acima de tudo,
condenado. Em vez de acusar o mundo ou os outros, o órfão sente culpa.”
Uma vez que o Self não foi constelado, o órfão sente que o Self (a mãe) lhe
deu as costas, e que esse é um julgamento de ordem superior pelo qual deve
carregar sua condenação.
A busca do genitor perdido, ou daquilo que a mãe representa é, na vida do
órfão, soberana. Fruto dessa necessidade insaciável de preencher a lacuna
criada pela morte da mãe, ele a busca em toda parte. Em seu artigo
“Paracelsus as a Spiritual Phenomenon”, Jung escreveu: “Quanto mais
remota e irreal for a mãe pessoal, mais profunda e inexorável será a ânsia
na alma deste filho, despertando aquela imagem primordial e eterna da mãe
em nome da qual tudo que abraça, protege, nutre e ajuda assume uma forma
material, desde a Alma Mater da universidade até a personificação das
cidades, dos países, das ciências e dos ideais.” Essa interminável busca pela
mãe pode desencadear sérios apuros na vida da pessoa.
Em geral, o órfão sente que tem uma dor que não pode ser aliviada e, dessa
maneira, consente em ter pena de si mesmo. Espera que os outros sintam
pena dele e o coloquem sob sua proteção pessoal. Sente que é “o magoado”
e por isso precisa de toda a assistência que conseguir obter. Esse quadro
mental desencadeia um problema de dependência de magnitude
considerável. Uma vez que o órfão perdeu sua ligação com a fonte original
de sustentação da vida, apega-se à pessoa que lhe oferece segurança — pela
qual tanto esperou - como se sua própria sobrevivência dependesse disso.
Para tanto, apegar-se-á a qualquer objeto, pessoa ou forma de
comportamento que, para ele, represente segurança (sexo, dinheiro, etc.),
até o momento que descobrir que esse objeto não tem mais para si o mesmo
significado, ou seja, não contém mais a projeção da mãe. Nesse momento, o
órfão simplesmente descartará o objeto de sua projeção ou se afastará,
alimentando, geralmente, sentimentos hostis por quem não correspondeu às
suas necessidades ou expectativas.
Uma vez que o órfão não tem o bastante de “si mesmo”, sente que tem valor
apenas quando está na presença de uma outra pessoa. Estar com terceiros
torna-se vital, mas serve apenas para dar-lhe a ilusão de segurança. No caso
de se desenvolver uma dependência mútua, as duas pessoas podem então
ficar emaranhadas num elo simbiótico inconsciente. Nenhuma das duas
consegue deixar esse vínculo enquanto o conteúdo de sua união, de seu
envolvimento, não se tornar consciente.
Essa condição de dependência do órfão coloca-o na “posição da criança
inocente” e constela o genitor na outra pessoa; o órfão, então, torna-se a
criança-vítima da autoridade induzida dessa outra pessoa. Sente que “se eu
for a criancinha boazinha, talvez ela cuide de mim”. Sua identidade de
vítima-desamparada elicia o arquétipo correspondente da megera-tirano por
parte da outra pessoa. Também pode acontecer o inverso. O órfão começa a
se comportar exatamente como a megera ou o tirano, e a assumir suas
características e padrões de comportamento. Viver sob o jugo de um destes
dois papéis — o da vítima ou o do opressor — sugere que a pessoa está
possuída pelo lado negativo do arquétipo pai-filho. Quando ela se identifica
com um dos lados ou é possuída por um deles, abdica de seu funcionamento
independente.
A situação de excessiva dependência entre duas pessoas cria uma condição
psicológica improdutiva e, consequentemente, perigosa para os dois
indivíduos em questão. Para evitar a sufocação que essa situação
inevitavelmente cria, ou um ou o outro será forçado a partir. Isto
desencadeia um dos complexos mais obsessivos do órfão, o medo de ser
deixado, que inclui a sempre presente preocupação com a possibilidade de
“ser deixado de fora” e, por outro lado, a necessidade de ser constantemente
incluído.
O órfão tem um medo imenso de ser deixado ou abandonado, especialmente
por uma pessoa que tenha adquirido para ele uma grande significação. Fará
coisas impensáveis para evitar que isso aconteça. O medo pode ser um
sentimento bastante insidioso em sua vida. Ele pode, inclusive, deixar a
pessoa primeiro, apesar de seu desejo de ficar na relação, apenas para evitar
que se repita a experiência de ser largado. Por outro lado, pode envolver-se
em mentiras, trapaças ou sonegação de informações (até pessoais), se estas
de alguma maneira indicarem a perspectiva de uma separação ou de um
afastamento. Ao lançar mão desse subterfúgio, ele se trai e trai também a
outra pessoa, sacrificando de roldão importantes valores existenciais.
Torna-se vítima das forças obscuras que tentou ocultar. Até que o órfão se
torne consciente dessa atitude de excessiva dependência e de suas eventuais
consequências, ele pode constelar seu destino original de ser repetidamente
abandonado.
O terceiro legado psíquico mais significativo do órfão é uma profunda
atração pela morte. A imagem arquetípica do órfão inclui o elo de ligação
entre a vida e a morte. O órfão é o sobrevivente de uma experiência de
morte, mas está ligado por poderosos elos de afeto e lealdade a esse genitor,
que está no além. A mãe morta exerce uma profunda atração sobre a criança
órfã, e a ausência ou a morte da mãe pressagiam a morte da própria criança.
Na realidade, alguma parte da psique não-nascida ainda pode morrer com a
mãe e não se desenvolver. A pessoa sente que alguma coisa está faltando,
alguma coisa que ficou para trás, no útero.
Depois de ter sobrevivido a uma experiência compartilhada de morte e de
ter novamente recuperado a vida, o órfão pode se sentir especialmente
favorecido pelos deuses. Uma vez que alguém ou alguma coisa poupou sua
vida, ele presume que deve ser uma pessoa muito especial, para ter
merecido essa especial graça. Desta atitude inflada, nasce muitas vezes uma
inflação de consideráveis proporções e sintomas subsequentes de
narcisismo e egocentrismo. Por outro lado, uma inflação negativa que
assume a forma do “sofredor heroico”, com um complexo de inferioridade,
pode se desenvolver com igual facilidade. Sentimentos de culpa e de
ausência de valor pessoal são ingredientes básicos desse complexo de
inferioridade.
O impulso de morte possui encantos peculiares para o órfão. É equivalente
à atração do grande inconsciente. É tanto temido quanto apavorante e, ao
mesmo tempo, sedutor e cativante. A pessoa racionaliza: “Se (minha mãe)
fez isso, por que não eu?” Num certo nível, essa tensão entre vida e morte é
vivenciada quando a pessoa se encontra no limiar de cada renascimento ou
empreendimento criativo. A ânsia de recusar a tarefa e de não ultrapassar o
estado atual é um dilema sempre presente. Para o órfão, o estado inevitável
de caos que precede cada novo nascimento é um doloroso momento de
recordação de sua experiência traumática inicial de caos. Por ter tido sua
vida nova em folha apartada no instante em que nasceu, o órfão pode dar
suas costas à vida. Também pode entrar num estado de dependência no
momento em que se situa no limiar do desconhecido. Sem uma ligação
consciente com essa experiência de medo e sem o entendimento de suas
raízes, ele pode facilmente imobilizar-se nesse momento crucial de
transcendência e não superá-lo.
Uma outra experiência de morte que ocorre com o órfão é a “síndrome do
aniversário”. Existe nele uma poderosa tendência a reviver seu trauma de
infância num momento específico, como quando o órfão atinge a idade
cronológica da mãe ao morrer, ou quando a filha órfã está para dar à luz.
Um bom exemplo disto pode ser encontrado num artigo de 1928, escrito por
Marie Bonaparte, analisanda, amiga e colega de Freud. Na tradução para o
inglês chamou-se “The Identification of a Girl with Her Dead Mother” [A
Identificação de uma Menina com Sua Mãe Morta]. A mãe de Marie
morrera de tuberculose quando ela estava com um mês de nascida. Aos
quatro anos, Marie ficou doente de tuberculose e não se esperava que
passasse de uma certa noite. Embora tivesse se recuperado plenamente de
sua doença, seus sintomas voltaram alguns anos antes de ela completar
vinte e um anos, que era a idade de sua mãe quando morreu. Apesar de
todas as garantias de que estava com saúde, convenceu-se de estar sofrendo
de tuberculose e foi de um médico a outro, até entregar-se, por fim, a um
período de repouso absoluto. Logo depois ultrapassou a marca dos 21 anos
e sentiu-se completamente curada. Um outro detalhe interessante do artigo é
que ela possuía um anel com uma opala que a mãe comprara logo depois de
casada e que Marie achava que devia ter sido um mau presságio,
prenunciando sua morte iminente. Na época em que ficou grávida, Marie
procurou o anel e ele havia misteriosamente desaparecido. Depois que ela
decidiu não ter mais filhos, milagrosamente encontrou o anel em uma
gaveta de sua cômoda. Não se deu conta da ligação entre esses
acontecimentos de sua vida e a identificação inconsciente com a morte da
mãe até a irrupção desses elementos em sua análise com Freud. Mais tarde
escreveu a respeito de suas fobias e visões, e de sua sensação de ter vivido a
infância com culpa e medo de vingança, por ter causado a morte da mãe.
Quando acontece um trauma ou um dano profundo, surge um esforço
compensatório na psique, que com isso procura alcançar um estado de
equilíbrio. Sempre que existe perda ou vácuo, a natureza tenta preenchê-lo.
No caso do órfão, quando uma pessoa tão significativa quanto a mãe está
ausente ou é perdida, normalmente será encontrada uma mãe substituta.
Depois do trauma inicial da morte da mãe real, essa é, muitas vezes, a
segunda maior dificuldade a ser superada pelo órfão.
Se o órfão não tomou plena consciência dos aspectos tenebrosos de seu
destino, nem os integrou, esses aspectos, então inconscientes, serão
usualmente projetados. É assim que a mãe substituta fica incumbida de
conter o lado escuro do arquétipo, independentemente de ele se ajustar a ela
ou não. Uma vez que a mãe real está ausente, o órfão tem, com frequência,
a fantasia de que ela teria sido perfeita, ideal, altruísta. E à mãe viva resta
conter o elemento oposto, o lado demoníaco e escuro. Já que a madrasta não
é a “coisa real”, nem o enteado é o “verdadeiro filho”, tanto ela como ele
ficam relegados a suportar uma psicologia de “o remédio é esse”, nessa
constelação dual mãe-filho.
Uma pesquisa de 1980 sobre a morte prematura de genitores e a
enfermidade mental, conduzida por John Birtchnell na Inglaterra, revelou
um ponto interessante acerca da substituta negativa da mãe. A pesquisa
indicou que não era a morte precoce da genitora que predispunha o sujeito a
uma enfermidade mental, mas, sim, a qualidade da substituição da mãe que
era o fator crítico da futura condição mental do órfão. As circunstâncias que
cercam o órfão após a morte exercem uma profunda influência sobre o seu
bem-estar psíquico. Lidar conscientemente com as questões e com os
sentimentos que inevitavelmente surgem, falar sobre eles, pode ajudar a
criança a integrar a experiência.
As atitudes e o comportamento do genitor sobrevivente afetam de maneira
significativa a capacidade do órfão de integrar a perda e os seus
sentimentos de luto. Se a criança for forçada a pôr em prática o papel de
esposa e mãe perdidas, perderá de todo o contato com sua infância e seu
local apropriado na estrutura familiar. Se o genitor sobrevivente se tornar
emocionalmente dependente do órfão, este pode-se deparar com a
dificuldade, entre muitas outras, de efetuar uma separação normal desse
genitor, quando for o momento adequado para deixar o lar.
Ter uma mãe substituta no lugar da mãe natural elicia o arquétipo da mãe
dual, implícito no destino do órfão. Nesse arquétipo existem dois opostos
fortemente constelados, que podem ser chamados “negativo-madrasta-
megera” e “positivo-mãe-espírito”. O primeiro tem potencial destrutivo
sobre o órfão, e o segundo pode surtir um efeito curativo.
Existe um conto de fadas popular em que se encontram estes opostos da
madrasta negativa e da fada madrinha. A vivência intensa dessas duas mães
proporciona o elemento catalisador para colher uma boa sorte. Trata-se da
história de Cinderela. Como esse é um conto muito bem conhecido, limitar-
me-ei, em minha amplificação, à parte da história em que o aparecimento da
fada madrinha ajuda Cinderela a abrir seu caminho de transformação,
deixando de ser uma serviçal para tornar-se uma linda mulher que vai ao
baile e encontra o príncipe.
Nos séculos XVII e XVIII, surgiram muitas histórias na Escócia, na China,
na Alemanha e na Itália com o tema básico da Cinderela. Contudo,
revelaram algumas variações interessantes sobre o motivo da fada
madrinha. Vários exemplos encontrados em The Classic Fairy Tales, de
Opie, ilustram a presença curativa do espírito da fada madrinha.
Numa das versões, a mãe de Cinderela (ou Rashin Coatie, neste conto)
tinha morrido e, como herança, deixara-lhe um bezerro vermelho que, se ela
solicitasse, lhe daria o que ela pedisse. Quando sua malvada madrasta
descobriu isso, fez com que ele fosse parar no açougue. Mas o bezerro
vermelho lhe disse: “Recolha-me, osso por osso, e coloque-me embaixo da
pedra cinza.” O espírito da mãe residia no bezerro vermelho e foi desse
espírito da mãe que ela ganhou as belas roupas que usou para ir ao baile.
Em outra versão, a empregada borralheira, Aschenputtel, permaneceu fiel à
memória de sua mãe morta. Seu pai lhe deu um ramo de aveleira e ela o
plantou no túmulo da mãe. Quando uma grande árvore ali nasceu, um
pássaro pousou e realizou cada desejo seu. Numa outra versão, ainda,
Cinderela plantou uma árvore nova, uma tamareira, que seu pai lhe havia
trazido. Em quatro dias a tamareira ficou do tamanho de uma mulher e,
nela, havia uma fada que satisfazia seus desejos.
Numa versão chinesa, Cinderela pescou um peixe domesticável que ficou
de um tamanho enorme: três metros. O peixe apoiava sua cabeça na
ribanceira ao lado da moça. Quando sua madrasta descobriu, matou o peixe
e comeu-o. Um homem veio do céu e informou a Cinderela que os ossos
daquele peixe tinham sido enterrados no monte de estrume e que, se ela os
reunisse e guardasse em seu quarto, só precisava rezar para eles que obteria
tudo que quisesse.
Nestes contos sobre Cinderela, as criaturas benevolentes representam o
espírito numinoso da mãe real e também os instintos. Desenvolver uma
íntima afinidade com os próprios instintos significa relacionar-se com a
própria terra e com a mãe que os mesmos representam. Os animais
oferecem a Cinderela a ligação vital com os aspectos provedores da Grande
Mãe que pode resgatá-la, livrando-a daquela vida miserável e do cerco da
Mãe Terrível. Ela pode então tornar-se princesa. Outro exemplo deste
fenômeno apareceu nos mitos dos heróis antes mencionados. Em muitas
lendas, os animais e as “pessoas da terra” (lavradores, camponeses,
jardineiros, etc.) prestaram assistência aos heróis infantis.
O apoio do inconsciente e, neste caso, a ligação com o espírito materno
positivo, é um fator vital na cura dos padecimentos do órfão. O espírito
materno vem quando a atitude da pessoa é receptiva e aberta à sua
intervenção.
O tema básico de Paracelso, filósofo alquímico e pioneiro da psicologia
empírica, foi a autenticidade da própria vivência da natureza, contra a
autoridade imposta pela tradição. A mãe de Paracelso morreu quando ele era
ainda muito pequeno e a perda de sua mãe parece ter resultado no
aparecimento de profundos e abundantes anseios em sua pessoa. Jung
escreveu que Paracelso foi tratado por si próprio e extraiu seus
conhecimentos do espírito inato que é a lumen naturae, a “luz da natureza”.
Da mesma forma como se encontra naturalmente presente nos animais,
também habita no homem, que a traz para o mundo em si próprio. Paracelso
sentiu que ela era “mentora dos homens”, e que, “embora os homens
morram, a mentora continua ensinando”.
Para que o órfão comece a se relacionar com essa luz dentro de si próprio e
a ter uma relação consciente com o seu destino como indivíduo, ele
primeiro precisa ser libertado de uma identificação completamente
consumidora com o mesmo. Precisa vivenciar-se como ser autônomo e
separado, com perfil próprio. Para assimilar o significado de seu mito e
extrair o valor que sua experiência traumática possa ter, o órfão tem que se
expor aos seus sentimentos com relação à sua fraqueza, e deve compreender
os complexos que resultaram de sua perda original. O luto pela perda do
ente querido precisa ser vivenciado até o fim.
O órfão precisa aceitar sua realidade e não negar seus sentimentos e
carências. Para entrar num acordo completo com sua realidade, ele não
pode evitar a dor envolvida no processo de reviver seu destino e os efeitos
que o mesmo teve sobre ele. Ao se permitir sentir a dor, a raiva e a mágoa,
além da tristeza, ele começa a sacrificar suas expectativas de dependência.
Ao efetuar este sacrifício, começa a assumir mais responsabilidade por si
mesmo. Se a pessoa assume a incumbência de viver sua própria vida, tem
mais chances de perder seu amargo ressentimento por não obter aquilo que
vê as outras pessoas terem, e de que se sente carente. Essa incumbência
heroica cultiva no órfão uma maior capacidade de ater-se ao apoio positivo
e gerador de vida, em lugar de cair de novo no abismo, sendo arrastado para
a atração tenebrosa do mundo inferior. Quanto mais entra na vida, mais
afasta a influência da morte para longe de si.
A solução final para o dilema do órfão é uma retomada da ligação com a
mãe natural em sua fonte arquetípica. Quando a pessoa efetua uma conexão
com o inconsciente, recebe o tão longamente ansiado apoio de um processo
materno. A personificação da Grande Mãe é o aspecto provedor do
inconsciente, e a pessoa pode entrar em contato com esse aspecto de muitas
maneiras. Alguns exemplos são: escrever poemas, trabalhar com materiais
artísticos, fazer exercícios de imaginação ativa com a pessoa que representa
as fontes interiores de conforto e interesse. Ao proceder dessa maneira, a
pessoa ativa uma ligação recíproca entre o ego e o inconsciente. Sem o
apoio do inconsciente, o ego provavelmente se sentirá órfão e abandonado
pelo Self, e sem o envolvimento recíproco do ego, é provável que o Self se
sinta igualmente abandonado pelo ego.
Quando a pessoa começa a separar-se de sua identificação com seu destino
de órfão, pode começar a conceituar o “órfão interior” que tem dentro de si
e que precisa do cuidado e da proteção do seu ego. O órfão precisa proteger
seu “órfão interior” de exigências externas e, por sua vez, desenvolver seu
próprio estado individual de autonomia e independência, intencionado para
ele por sua própria orfandade. É apenas quando a pessoa está
verdadeiramente só que o potencial criativo, contido em seu mais íntimo
recesso, tem espaço e condições para emergir à luz do dia. Em Psicologia
da Religião Oriental e Ocidental, Jung disse: “É... somente num estado de
abandono e solidão absolutos que vivenciamos os poderes prestimosos de
nossa própria natureza.”
Não escapei da minha identidade como órfã. Na minha vida, esse drama
continua sendo representado. Quando estava com 35 anos, idade da minha
mãe quando morreu, tive uma enfermidade grave. Quando meu próprio
filho nasceu, meu marido passou por uma doença crítica e meu filho bebê e
eu enfrentamos a possibilidade de ele morrer. Sempre senti minha mãe nos
momentos de grande necessidade. Sua presença tem-me ajudado a
continuar.
O continente em que muitos heróis-órfãos legendários foram colocados
depois de terem sido abandonados veio-me num sonho.
Estava no meu quarto de infância, olhando um livro de arte e cheguei a uma
gravura que mostrava um berço maravilhosamente esculpido, com uma
forma oval muito singular. Tinha ripas de madeira distantes uns dois
centímetros umas das outras que, quando o berço se fechava, guardavam o
bebê ali dentro. O título da pintura era “Berços Para um Bebê Mortalmente
Doente”.
Logo depois deste sonho, ocorreu-me um pensamento tão profundo quanto
curativo. Meus sentimentos de culpa pela morte de minha mãe e de raiva
por ter sido abandonada estavam inextricavelmente entrelaçados e faziam
com que eu me sentisse inadequada e sem valor. Nesse momento, porém, vi
o quadro por um prisma completamente diferente. Vi-me como uma
semente voando no espaço, esperando para nascer. Os deuses, sabendo da
morte iminente de minha mãe, estavam procurando por uma semente
disponível que fosse capaz e digna de sobreviver quando a mãe morresse. E
escolheram a mim!
10. A criança da alma
MARION WOODMAN
Este é um trabalho apaixonado sobre “a criança abandonada” que
abrigamos em nosso íntimo. Aquela criança que é a nossa própria alma
implora, logo abaixo do burburinho da nossa vida, muitas vezes instalada
no cerne do nosso pior complexo, que digamos “Você não está sozinha. Eu
amo você.”
Como o leitor por certo irá perceber ao ler este ensaio, a analista
junguiana canadense Marion Woodman sabe manejar as palavras. Elas
fluem de dentro dela como um inesperado e surpreendente socorro que
atende e sacia os inúmeros famintos de entendimento psicológico,
felizardos por terem entrado em contato com seu trabalho. O que ela
escreve é altamente relevante à vida contemporânea. Este capítulo é um
excerto de seu livro The Pregnant Virgin.
Descobri que as pessoas tendem a repetir o padrão de seu próprio
nascimento toda vez que a vida lhes exige a passagem para um novo nível
de consciência e atenção. Da mesma forma como entraram no mundo
continuam a reentrar, toda vez que se apresenta um novo anel da espiral de
crescimento. Se, por exemplo, seu parto foi simples e direto, tendem a
superar as dificuldades com coragem e ímpeto natural. Se o parto foi difícil,
tornam-se extremamente temerosas, manifestam sintomas de sufocação,
tornam-se claustrofóbicas (psíquica e fisicamente). Se nasceram
prematuras, tendem a estar sempre um pouco à frente de si mesmas. Se o
parto foi retardado, o processo de renascimento pode ser muito lento. Se
estavam sentadas na hora de nascer, tendem a viver a vida inteira
apresentando antes as costas (e as nádegas) às situações. Os nascidos de
cesariana costumam evitar confrontos. Se a mãe estava muito dopada, essas
pessoas podem chegar ao momento do impasse com vigor e depois, de
repente, sem qualquer razão aparente, parar ou entrar numa regressão,
esperando, daí em diante, que alguém faça alguma coisa. Costuma ser nesse
momento que os vícios reaparecem: o de petiscar, de jejuar até a morte, de
beber, de dormir, de exceder-se no trabalho — qualquer coisa que lhes
permita evitarem o confronto com a realidade de ingressar num mundo que
as desafia.
Aparecem nos sonhos muitos bebês encantadores, assim como muitos
pequenos tiranos que precisam de uma firme e amorosa disciplina. Há uma
criança, no entanto, que é ostensivamente diferente das demais. É a
abandonada, que pode aparecer nas corridas de touros, na palha de um
celeiro, numa árvore, quase sempre em algum lugar esquecido ou
longínquo. Essa criança será radiante, iluminada, robusta, inteligente,
sensível. Em geral já é capaz de falar poucos instantes após o nascimento.
Ela tem Presença. É a Criança Divina, trazendo consigo a “dura e amarga
agonia” da nova disposição: a agonia dos Reis Magos de Eliot. Quando se
dá este nascimento, os velhos deuses têm que partir.
Uma vez que o gradiente natural da psique se dirige para a totalidade, o Self
tentará impelir a parte negligenciada para que obtenha reconhecimento. Ela
contém a energia do mais elevado valor, o ouro no meio do estrume. Na
Bíblia, é a pedra rejeitada que se torna a pedra angular.1 Ela manifesta uma
mudança súbita, ou uma alteração repentina na personalidade, ou, ao
contrário, um fanatismo ao qual o ego existente se adapta a fim de tentar
manter do lado de fora a nova e ameaçadora forma de energia. Se o ego não
consegue atravessar o canal psíquico do nascimento, manifestam-se
sintomas neuróticos tanto de ordem física como de ordem psíquica. O
sofrimento pode ser intenso, mas baseia-se na adoração de falsos deuses.
Não é o sofrimento genuíno que acompanha os esforços de incorporação da
nova vida. O neurótico está sempre uma fase atrás de onde está sua
realidade. Quando deveria estar-se deslocando rumo à maturidade, apega-se
aos desvarios juvenis. Sem jamais conseguir ser congruente consigo mesmo
ou com os outros, nunca está onde parece estar. O que ele não consegue é
viver no agora.
Muitas pessoas estão sendo arrastadas para a totalidade na sua vida diária,
mas, por não compreenderem os ritos de iniciação, não conseguem
encontrar significado no que lhes está acontecendo. Vestem uma máscara
sorridente durante o dia inteiro e voltam para o apartamento, à noite, onde
choram até o raiar do dia. Talvez a pessoa amada tenha partido com outra
pessoa; talvez se estejam defrontando com uma doença terminal; talvez seu
parceiro tenha morrido. Talvez, e isso é o pior, tudo tenha começado a dar
errado sem motivo aparente. Se não têm nenhuma noção do que seja um rito
de passagem, sentem-se vítimas, impotentes para resistir ao Destino
arrebatador. Seu sofrimento sem sentido faz com que procurem escapar
usando comida, álcool, drogas, sexo. Ou então afrontam os deuses com a
pergunta “Por que eu?”
Essas pessoas estão sendo presenteadas com a possibilidade de renascerem
para uma vida diferente. Através de fracassos, sintomas, sentimentos de
inferioridade e problemas imensos, estão sendo impelidas à força a
renunciar aos apegos existenciais que se tornaram redundantes. A
possibilidade do renascimento constela-se com a perda do que aconteceu
antes. É por isso que Jung enfatizava o propósito positivo de uma neurose.2
Mas como não entendem, as pessoas apegam-se ao que lhes é familiar,
recusando-se a fazer os sacrifícios necessários, e resistem ao próprio
crescimento. Incapazes de desistir de sua vida habitual, são também
incapazes de receber a nova vida.
A menos que rituais culturais sustentem o salto de um nível de consciência
para o próximo, não há paredes continentes dentro das quais o processo
possa desenrolar-se. Sem um entendimento do rito ou da religião, sem um
entendimento da relação entre a destruição, a criação e o renascimento, os
indivíduos sofrem os mistérios da vida como se estes fossem apenas uma
carnificina tresloucada — e sozinhos. Para amenizar o sofrimento sem
sentido, podem aparecer os vícios, que são uma tentativa de reprimir as
confusas exigências do processo de crescimento que as estruturas culturais
não conseguem mais esclarecer nem conter.
A questão escaldante que atormenta a pessoa que entra em análise é: “Quem
sou eu?” O problema imediato, entretanto, assim que começam a emergir as
emoções poderosas, é geralmente uma cisão psique/soma. Embora as
mulheres tenham mais facilidade que os homens para falar de seu corpo,
ambos os sexos, na nossa cultura, padecem de uma séria distância em
relação às suas vivências corporais. As mulheres dizem: “Não gosto deste
corpo”; os homens dizem: “Sinto dor.” Quando falam de uma maneira
impessoal ao se referirem ao seu corpo, está clara sua noção de alienação.
Podem até falar “meu coração”, “meus rins”, “meus pés”, mas seu corpo,
como um todo, está despersonalizado. Dizem repetidamente: “Não sinto
coisa alguma do pescoço para baixo. Tenho sensações na cabeça, mas nada
no coração.” Sua falta de resposta emocional a uma poderosa imagem
onírica reflete essa cisão. E, no entanto, quando praticam a imaginação
ativa com aquela imagem onírica localizada em seu corpo, os músculos
liberam ondulações de um luto reprimido. O corpo tornou-se o poste das
chibatadas. Se a pessoa é ansiosa, o corpo está famélico, ingurgitado,
drogado, intoxicado, é forçado a vomitar, é usado até a exaustão ou
mobilizado a reações frenéticas de autodestruição. Quando esse animal
magnífico tenta enviar sinais de alerta, é silenciado com pílulas.
Muitas pessoas conseguem ouvir e entender seu gato de maneira mais
inteligível do que entender seu próprio corpo, desprezado. Por darem
atenção e carinho ao animal de estimação, este as recompensa pelo amor
que recebe. Já o seu corpo, por outro lado, pode ter que emitir um berro
capaz de abalar a própria terra, para conseguir ser minimamente ouvido.
Antes que os sintomas apareçam, vêm nos sonhos gritos menos agudos: um
filhote de elefante esquecido, uma ninhada de gatinhos esfomeada, um
cachorro com a perna estropiada. Quase sempre o animal ferido está suave
ou ferozmente tentando chamar a atenção do sonhador, que pode ou não
dar-lhe atenção. Nos contos de fadas, é o animal amistoso que muitas vezes
encaminha o herói ou a heroína até sua meta, porque o animal é o instinto
que sabe como obedecer a deusa, quando a razão falha.
É possível que o grito que vem do corpo esquecido, o grito que se manifesta
num sintoma seja o grito da alma que não consegue encontrar qualquer
outro caminho para ser ouvido. Se vivemos por trás de uma máscara nossa
vida inteira, cedo ou tarde — se tivermos sorte — essa máscara será
esmagada. Então será preciso que nos olhemos no espelho, enxergando
nossa própria realidade. Talvez fiquemos apavorados. Talvez estejamos
então olhando para os olhos aterrorizados de nossa própria criancinha,
daquela criança que nunca conheceu o amor e que agora suplica que lhe
demos atenção. Essa criança está sozinha, ficou esquecida antes mesmo de
sairmos do útero, no próprio momento do parto, ou quando começamos a
fazer as coisas para agradar aos nossos pais e aprendemos a manejar nossas
melhores atuações para ganhar aceitação. À medida que a vida avança,
continuamos a abandonar a nossa criança procurando agradar aos outros —
professores, patrões, amigos e parceiros, até mesmo os analistas. Essa
criança, que é a nossa própria alma, implora, por baixo do burburinho da
nossa vida, muitas vezes imersa no cerne mesmo do nosso pior complexo,
que digamos: “Você não está sozinha. Eu amo você.”
A seguir transcrevo um sonho que se repetiu frequentemente na infância de
uma mulher de cinquenta anos, e que continuou perseguindo-a até ser
compreendido e integrado através do processo analítico:
Tenho quatro ou cinco anos. Estou com minha mãe num edifício apinhado
de gente, provavelmente uma loja de departamentos. Minha mãe está com
roupas escuras, um casaco e um chapéu marrom ou preto, e o tempo todo só
vejo suas costas. Ao sairmos daquela loja sou retida pela multidão e minha
mãe, sem perceber, continua adiante e desaparece entre as pessoas. Tento
chamá-la, mas ela não me ouve, assim como ninguém mais. Estou muito
assustada, não apenas por me perder, mas porque minha mãe não percebeu
que nós nos separamos.
Saio do prédio e fico diante de uma escada comprida, com degraus largos,
parecida com a do lado de fora da Galeria Nacional, em Londres, mas mais
alta. Os degraus, embaixo, levam até uma praça grande, sem nenhum
objeto, mas degraus parecidos conduzem a edifícios nos outros lados. A
praça, os degraus e os prédios são muito limpos e brancos. Do ponto onde
me situo olho para a praça, esperando ver minha mãe. Ela não está em lugar
algum que minha vista alcance. Estou sozinha nos degraus. Há outras
pessoas ali, mas ninguém toma conhecimento de mim. Sei que nada do que
eu fizer irá fazê-las reparar em mim.
Entro em pânico e me invade por completo a sensação da perda, de ter sido
abandonada. É como se eu tivesse deixado de existir para minha mãe, ela
não vai dar-se ao trabalho de voltar por minha causa e pode até ter-se
esquecido de mim; na realidade eu não consigo fazer com que ninguém
perceba que eu existo. Por um momento, e ao mesmo tempo, sou uma
observadora adulta do outro lado da praça que vê uma criança pequena
sozinha no alto dos degraus, tentando gritar. Essa também sou eu, uma
mulher adulta que sente uma imensa piedade dessa criança, ansiando por
confortá-la e tranquilizá-la, mas incapaz de alcançá-la. Alguma coisa - a
inconsciência das outras pessoas ou o pânico da própria criança - impede a
comunicação entre a criança e a adulta que se importa e compreende.
A mulher associou este sonho ao quadro The Scream [O Grito], de Edvard
Munch, que evocava nela um pânico semelhante. “O fundo é escuro e
sombrio,” ela disse, “enquanto no meu sonho o ambiente é muito claro,
branco e com ângulos cortantes, com figuras escuras, mal definidas, mas
igualmente marcadas por ângulos cortantes. O homem que grita no quadro,
está tentando sair do seu ambiente; a criança nos degraus está tentando
entrar em contato com o ambiente dela.” Muitos homens e mulheres se
mantêm presos em vidas que são um mudo desespero enquanto não se
viram para ajudar essa criança interior.
Image
M. SCOTT PECK
Este trabalho, extraído do imensamente popular The Road Less Travelled
de M. Scott Peck analisa a natureza do amor destrutivo, do tipo que produz
medo e incerteza no ambiente emocional da criança e que resulta num
déficit significativo para a criança que existe no adulto. Diz o psiquiatra
Peck: “Para a criança, o abandono imposto pelos pais é equivalente à
morte.” Ele sugere que a ameaça do abandono sacrifica o envolvimento
amoroso pelo controle sobre a criança. É uma das mais indecentes e cruéis
interações entre pais e filhos, produzindo angústia existencial e um
autoconceito precário, que surte efeitos catastróficos na criança interior.
Não é que as casas de crianças que não têm autodisciplina estejam carentes
de disciplina imposta pelos pais. Na maioria das vezes, essas crianças são
frequentemente punidas com severidade pelos pais durante toda a infância -
espancadas, beliscadas, chutadas, açoitadas - até pelas menores infrações.
Mas essa é uma disciplina sem sentido - porque é uma disciplina
indisciplinada.
Uma das razões pelas quais ela é sem sentido é que os próprios pais não
têm disciplina pessoal e, portanto, servem como modelos indisciplinados
quanto ao papel que representam para seus filhos. Eles são do tipo “façam
como eu digo, não como eu faço”. Embebedam-se com frequência na frente
dos filhos. Podem brigar entre si diante dos filhos, sem constrangimento,
dignidade ou racionalidade. Podem ser desmazelados. Fazem promessas que
não cumprem. Suas próprias vidas são, de maneira frequente e evidente,
uma desordem e uma desorganização, e suas tentativas de ordenar a vida
dos filhos parecem, por isso, fazer para essas crianças muito pouco sentido.
Se o pai espanca regularmente a mãe, que sentido tem para um menino que
sua mãe bata nele porque ele bate na irmã? Faz sentido dizerem-lhe que ele
tem que aprender a se controlar? Uma vez que, quando somos pequenos,
não temos o benefício da comparação, nossos pais são figuras divinas aos
nossos olhos infantis. Quando eles fazem as coisas de uma determinada
maneira, parece à criança pequena que essa é a maneira certa, a maneira
como as coisas devem ser feitas. Se a criança vê os seus pais comportando-
se diariamente com disciplina, contenção, dignidade e a capacidade de pôr
ordem na própria vida, então a criança virá a sentir, nas mais profundas
fibras de seu ser, que esse é o jeito certo de viver. Se a criança vê os seus
pais diariamente vivendo sem comedimento e sem autodisciplina, então
passará a acreditar, nas mais profundas fibras de seu ser, que é assim que se
deve viver.
No entanto, o amor é ainda mais importante do que a modelagem de papéis,
pois mesmo nos lares caóticos e desordenados está presente,
ocasionalmente, um amor genuíno, e deles podem resultar crianças
autodisciplinadas. E, não raro, pais com formação profissional - médicos,
advogados, membros de associações, filantropos - que levam uma vida de
estrita organização e decoro, mas destituída de amor, dão ao mundo filhos
tão indisciplinados e desorganizados como qualquer criança vinda de um lar
caótico e miserável.
Em última análise, o amor é tudo...
Quando amamos alguma coisa ela tem valor para nós, e quando alguma
coisa tem valor para nós passamos tempo com ela, tempo desfrutando dela e
tempo cuidando dela. Observe um adolescente apaixonado pelo seu carro e
veja quanto tempo ele passa admirando-o, lustrando-o, consertando-o,
acertando o ponto do motor. Ou uma pessoa de mais idade, com seu
adorado jardim de rosas e o tempo que gasta em podar, cruzar mudas,
fertilizar e estudar as plantas. Assim é quando amamos as crianças:
passamos tempo admirando-as e cuidando delas. A elas dedicamos o nosso
tempo.
Uma boa disciplina requer tempo. Quando não temos tempo para dedicar
aos nossos filhos, ou não estamos dispostos a ter esse tempo, nem sequer os
observamos com a necessária proximidade para nos tornarmos cientes de
quando sua necessidade de uma assistência disciplinar da nossa parte é
expressa de forma sutil. Se a sua necessidade de disciplina é tão evidente
que se impõe à nossa consciência, podemos, mesmo assim, ignorá-la,
alegando que é mais fácil deixar que façam as coisas à sua própria maneira:
“Eu simplesmente não tenho a energia necessária para lidar com eles hoje.”
Ou, por fim, se as suas atitudes inconvenientes ou a nossa irritação nos
impelem a agir, iremos impor uma disciplina, em geral brutal, que é fruto
mais da raiva do que da deliberação, sem examinar o problema nem gastar
tempo considerando que forma de disciplina é a mais apropriada àquele
problema em particular.
Os pais que devotam tempo aos filhos mesmo quando isso não lhes é
cobrado por infrações ostensivas percebem neles sutis necessidades de
disciplina, às quais reagirão com suaves advertências ou reprimendas,
organização ou elogios, administrados com bom senso e atenção. Esses pais
irão observar como os filhos comem bolo, como estudam, quando estão
contando inverdades sutis, quando fogem de seus problemas em vez de os
enfrentarem. Dedicarão tempo à realização dessas pequenas correções e
ajustes, ouvindo os filhos, respondendo a eles, apertando um pouco aqui,
soltando um pouco ali, passando pequenos sermões, contando historinhas,
dando abraços e beijos, fazendo pequenas admoestações, dando alguns
tapinhas nas costas.
Essa é a qualidade da disciplina dispensada por pais amorosos, superior à
dos pais não-amorosos. Mas isso é só o começo. Ao dedicarem tempo à
observação e à reflexão sobre as necessidades de seus filhos, os pais
amorosos muitas vezes ficarão agoniados diante das decisões a serem
tomadas e, num sentido muito real, sofrerão ao lado dos filhos. As crianças
não são cegas a isso. Percebem quando os pais estão dispostos a sofrer com
elas e, embora possam não responder com demonstrações imediatas de
gratidão, também aprenderão a sofrer. “Se meus pais estão dispostos a
sofrer comigo,” dirão a si mesmas, “então o sofrimento não deve ser tão
mau e eu preciso estar disposto a sofrer comigo.” Esse é o começo da
autodisciplina.
O tempo e a qualidade do tempo que os pais dedicam às crianças indica
para elas o grau em que os pais as valorizam. Alguns pais, basicamente não-
amorosos, numa tentativa de encobrir sua falta de afeto, declaram muitas
vezes seu amor pelos filhos, de forma repetitiva e mecânica, e falam o
quanto eles são importantes, mas não lhes dedicam um tempo significativo
e de alta qualidade. As crianças nunca são totalmente ludibriadas por essas
palavras vazias. Podem conscientemente apegar-se a elas, querendo
acreditar que são amadas, mas, inconscientemente, sabem que as palavras
de seus pais não condizem com seus atos.
Por outro lado, as crianças verdadeiramente amadas, embora em momentos
de ressentimento possam sentir-se conscientemente negligenciadas, ou dizer
que o são, sabem, inconscientemente, que são valorizadas. Esse
conhecimento vale mais do que todo o ouro do mundo. Pois, quando as
crianças sabem que estão sendo valorizadas, quando verdadeiramente
sentem que são valorizadas, no mais fundo de si mesmas, então sentem que
têm valor.
A sensação de ter valor - “sou uma pessoa de valor” - é essencial à saúde
mental e é uma pedra angular da autodisciplina. É um produto direto do
amor dos pais. Essa convicção deve ser obtida na infância; na idade adulta é
extremamente difícil alcançá-la. Por outro lado, quando as crianças
aprenderam, através do amor de seus pais, a se sentirem valiosas, é
praticamente impossível que as vicissitudes da fase adulta destruam seu
espírito.
Essa sensação de ter valor é a pedra angular da autodisciplina, porque
quando a pessoa se sente valiosa cuidará de si mesma de todas as maneiras
que forem necessárias. Autodisciplina é afeto por si mesmo. Vamos, por
exemplo, examinar a questão do tempo, já que estamos discutindo o
processo de retardar as recompensas, estabelecer cronogramas e organizar o
tempo. Se sentimos que somos valiosos, nosso tempo terá valor para nós e,
sendo assim, iremos querer usá-lo bem. A analista financeira que adiava não
valorizava seu tempo. Se o valorizasse, não se teria permitido passar a
maior parte do seu dia infeliz e de maneira improdutiva. Não foi indiferente
para ela o fato de, durante toda a sua infância, ter sido “exilada em
fazendas”, nas férias escolares, para viver e morar com pais substitutos
pagos, embora os seus próprios pais pudessem perfeitamente bem ter
cuidado dela, caso o tivessem desejado. Eles não lhe deram valor. Não
quiseram cuidar dela. Ela cresceu, então, sentindo-se pouco valiosa, não-
merecedora do cuidado de ninguém. Portanto, não se importava consigo
mesma. Não se sentia alguém que valesse a pena ser disciplinada. Apesar de
ser inteligente e competente, era uma mulher que precisava da instrução
mais elementar quanto à autodisciplina, porque não contava com uma
autoavaliação realista de seu próprio valor e do valor de seu tempo pessoal.
Assim que pôde perceber que o seu tempo era algo valioso, passou,
naturalmente, a querer organizá-lo, e protegê-lo, maximizando seu uso tanto
quanto possível.
Como resultado da vivência contínua de ser objeto do amor e da atenção
dos pais, ao longo da infância, algumas crianças afortunadas ingressam na
idade adulta não só com uma noção interior de seu próprio valor pessoal,
mas com uma profunda sensação interna de segurança. Todas as crianças
ficam aterrorizadas diante da perspectiva do abandono, e por bons motivos.
Esse medo começa por volta dos seis meses, assim que a criança se torna
capaz de se perceber como pessoa, como indivíduo separado dos pais, pois
com essa percepção vem a constatação de que, enquanto indivíduo, é um ser
muito desprotegido, totalmente dependente e totalmente à mercê dos pais
para todas as formas de sustento e meios de sobrevivência. Para a criança, o
abandono por parte dos pais é equivalente à morte. A maioria dos pais,
mesmo que em outros sentidos relativamente ignorantes ou toscos, são
instintivamente sensíveis ao medo de abandono dos filhos e, portanto, todos
os dias, milhares de vezes por dia, dirão espontaneamente às crianças:
“Você sabe que a mamãe e o papai não vão deixar você sozinho”; “Claro
que a mamãe e o papai vão voltar para buscar você”; “Mamãe e papai não
vão esquecer-se de você”. Se essas palavras corresponderem a atos, mês a
mês, um ano após outro, por volta da adolescência a criança já terá perdido
o medo de ser abandonada e, em lugar deste, haverá a profunda sensação
interior de que o mundo é um lugar seguro para se estar e de que sempre
haverá proteção quando for necessário. Com essa sensação interna de
segurança consistente diante do mundo, essa criança está livre para adiar as
gratificações de uma ou outra espécie, está segura por saber que as
oportunidades de gratificação, como a casa e os pais, estarão sempre lá,
disponíveis quando necessário.
Mas muitas crianças não têm tanta sorte. Um número substancial delas são
realmente abandonadas pelos pais durante a infância, pela morte, por
deserção, por pura negligência, ou, como no caso da analista financeira, por
simples falta de atenção. Outras, embora não abandonadas de fato, deixam
de receber dos pais a tranquilização de que não serão abandonadas. Existem
alguns pais, por exemplo, que, em seu desejo de impor disciplina tão fácil e
rapidamente quanto possível, chegarão, de fato, ao uso da ameaça do
abandono, ostensiva ou sutil, para atingir esse objetivo. A mensagem que
transmitem aos filhos é: “Se vocês não fizerem exatamente o que eu quero
que façam não vou mais amá-los e vocês podem muito bem imaginar por si
mesmos o que isso quer dizer.” Claro que isso significa abandono e morte.
Esses pais sacrificam o amor em nome de sua necessidade de controlar e
dominar os filhos, e o que conseguem como retorno dessa atitude são filhos
excessivamente medrosos diante do futuro. É assim que essas crianças,
abandonadas psicológica ou realmente, entram na idade adulta sem uma
noção profunda de que o mundo é um lugar seguro e protetor. Pelo
contrário, percebem-no como perigoso e ameaçador, e não estarão dispostas
a deixar de aproveitar toda e qualquer forma imediata de gratificação e
segurança em nome de alguma gratificação ou segurança maiores no futuro,
pois para elas o futuro é altamente duvidoso.
Em resumo, para que as crianças desenvolvam a capacidade de adiar
gratificações, é necessário que tenham modelos de desempenho de papéis
autodisciplinados, uma sensação de seu valor como pessoas e um certo grau
de confiança na segurança de sua existência. Essas “posses” são, de maneira
ideal, adquiridas pela autodisciplina dos pais e por sua atenção consistente,
genuína; elas são os mais preciosos bens que mães e pais podem legar aos
filhos. Quando esses presentes não forem ofertados pelos próprios pais, é
possível obtê-los junto a outras fontes, mas nesse caso o processo de
aquisição é, invariavelmente, uma luta contra obstáculos imensos, que em
geral dura a vida inteira e que, em geral, não é bem-sucedida.
12. Os que vão embora de Omelas
URSULA K. LEGUIN
É conveniente encerrar esta seção sobre o abandono com uma história
sobre o bode expiatório, pois esta é uma ideia que atinge o dilema moral do
sacrifício: uma alma torturada em troca da felicidade de uma comunidade
inteira. Isso é análogo ao problema moral da comunidade interna: pode a
criança interior, com suas necessidades, ser abandonada a fim de
assegurar a sobrevivência e o contentamento da personalidade adulta?
Como a sra. LeGuin, a primeira vez que encontrei esse motivo foi em Os
Irmãos Karamazov, de Dostoievsky, em que Aliosha, o irmão mais jovem, é
incumbido do desafio moral de criar uma sociedade utópica, o céu na
terra, o que só pode acontecer se ele estiver disposto a sacrificar a vida de
um bebê humano. Ele o fará?
Considere o seu próprio esforço moral: você sacrificaria [você abandonou]
a criança interior em troca da promessa da perfeição? LeGuin pergunta:
“Você iria embora de Omelas?” Ela demonstra, neste conto, um fato tão
maravilhoso para o moralmente perverso que seu talento irá despertar os
seus mais secretos sentimentos.
Esta história apareceu originalmente numa coletânea da autora, The
Wind’s Twelve Quarters. A sra. LeGuin é uma famosa e consagrada autora
de histórias de ficção.
***
A ideia central deste psicomito, o bode expiatório, aparece em Os Irmãos
Karamazov, de Dostoievsky, e várias pessoas me perguntaram, com grande
desconfiança, qual a razão de eu atribuir esse crédito a William James. O
fato é que não pude mais reler Dostoievsky, embora goste muito do seu
trabalho, desde os meus vinte e cinco anos, e simplesmente esqueci que ele
usou a mesma ideia. Mas quando a localizei no trabalho de James
intitulado “The Moral Philosopher and the Moral Life”, tive uma sensação
de choque de reconhecimento. Eis como James a expõe:
Ou, se nos fosse oferecida a hipótese de um mundo em que as utopias dos
srs. Fourier, Bellay e Morris devessem ser concretizadas, e milhões
permanecessem felizes para sempre com a única e simples condição de que
uma determinada alma, perdida no limite extremo das coisas, devesse levar
uma vida de solitários tormentos, o que, a não ser uma espécie
determinada e independente de emoção, poderia fazer-nos imediatamente
perceber - mesmo que em nosso íntimo brotasse o impulso de nos
apegarmos com unhas e dentes à felicidade assim oferecida — quão odioso
seria desfrutar dessa coisa quando ela fosse deliberadamente aceita como
fruto de tal barganha?
O dilema da consciência americana dificilmente encontraria melhor
expressão. Dostoievsky foi um grande artista, aliás radical, mas seu
precoce radicalismo social inverteu-se, fazendo dele um reacionário
violento. Por outro lado, o americano James, que parece tão moderado, de
um cavalheirismo tão ingênuo — observe-se como diz “nós”, presumindo
que todos os seus leitores são tão decentes quanto ele mesmo! — foi,
permaneceu e ainda permanece sendo um pensador genuinamente radical.
Logo depois da passagem sobre a “alma perdida”, ele prossegue dizendo:
Todos os ideais mais elevados e penetrantes são revolucionários.
Apresentam-se muito menos sob o disfarce de efeitos da experiência
passada do que como causas prováveis de experiências futuras, fatores aos
quais o meio ambiente e as lições que até então nos ensinou devem
aprender a curvar-se.
Essas duas sentenças aplicam-se de modo muito direto a esta história e à
ficção científica, assim como a todo pensamento sobre o futuro. Os ideais
são “a provável causa de experiências futuras” - eis um comentário sutil e
revigorante!
É claro que não li James, e sentei-me e disse: Agora vou escrever uma
história a respeito dessa “alma perdida”. As coisas raramente acontecem
com tanta simplicidade. Sentei-me e comecei uma história apenas porque
senti vontade, sem nada mais em mente do que a palavra “Omelas”. Ela
viera de uma placa de sinalização: Salem (Oregon) lida de trás para
diante. Você nunca leu as placas de trás para diante? RAGAVED, saçnairc.
oãS ocsicnarF... Salem igual schelomo igual salaam igual Paz. Melas. O
2
melas. Omelas. Homme helas. “De onde a senhora tira suas ideias, sra.
LeGuin?” De esquecer Dostoievsky e de ler sinais de estrada de trás para
diante. De onde mais?
Com um clamor de sinos que agitou em revoada todo o bando de
andorinhas, veio o Festival de Verão para a cidade de Omelas, à beira do
mar resplandecente. O cordame dos barcos no cais faiscava com o brilho
das bandeirolas. Nas ruas, entre casas de telhado vermelho e paredes
caiadas, entre jardins com o musgo alto e sob avenidas de árvores, ao longo
de grandes parques e edifícios públicos, caminhavam procissões. Algumas
eram decorosas: pessoas idosas em trajes longos e empertigados, em malva
e cinza, solenes capatazes de fábricas, mulheres contentes e caladas
carregando seus bebês, entretendo-se em conversinhas enquanto
caminhavam. Em outras ruas, a música era mais acelerada, um alternar-se
de gongos e tamborins, e as pessoas passavam dançando, a procissão era
uma dança. As crianças corriam para todo lado e suas vozes agudas subiam
como as andorinhas, cuja rota de voo se cruzava no alto com a música e o
canto. Todas as procissões rumavam para o lado norte da cidade, onde, no
grande charco conhecido como Campo Verde, os meninos e as meninas, nus
à claridade do dia, com os pés e os tornozelos tintos de lama e com os
longos e graciosos braços, exercitavam os cavalos fogosos, antes da corrida.
Os animais não estavam aparelhados, exceto por um cabresto, sem freio.
Suas crinas estavam trançadas com fios de cor prata, ouro e verde. Abriam
as ventas, empinavam e exibiam-se uns para os outros. Estavam
imensamente excitados, pois os cavalos são os únicos animais que adotaram
as nossas cerimônias como se fossem as suas. Bem ao norte e a oeste, as
montanhas erguiam-se, rodeando a baía de Omelas num semicírculo. O ar
da manhã estava tão claro que a neve ainda coroava os Dezoito Picos com
um fogo de ouro branco, atravessando quilômetros e quilômetros de ar
ensolarado, sob o azul profundo do céu. Soprava apenas o vento necessário
para que as bandeirinhas assinalando o percurso da corrida panejassem e
esvoaçassem de vez em quando. No silêncio dos vastos charcos verdes
podia-se ouvir a música rodopiando pelas ruas da cidade, mais perto e
depois mais longe, mas sempre aproximando-se, uma débil e buliçosa
doçura do ar que, de tempos em tempos, tremia e reunia-se e rompia num
grande e exuberante clangor de sinos.
Jubilosos! Como se falar de júbilo? Como descrever os cidadãos de
Omelas?
Não eram gente simples, sabem, embora fossem felizes. Nós, porém, não
dizemos muito mais com as palavras. Todos os sorrisos se tornaram
arcaicos. Diante de uma descrição como esta, a pessoa tende a fazer
determinadas suposições. Diante de uma descrição como esta, a pessoa
tende a procurar pelo Rei, que está próximo, montado num garanhão
magnífico, cercado por nobres cavaleiros, ou talvez sentado numa liteira de
ouro conduzida por musculosos escravos. Mas não havia nenhum rei. Não
usavam espadas nem tinham escravos. Não eram bárbaros. Não conheço as
regras e leis de sua sociedade, mas suspeito que eram singularmente
poucas. Assim como passavam sem monarquia e escravatura, também
viviam sem bolsa de valores, publicidade, polícia secreta e a bomba.
Contudo, repito, não eram gente simples, nem pastores dúlcidos, nobres
selvagens ou utópicos amenos. Não eram menos complexos do que nós. O
problema é que temos o mau hábito, incentivado por pedantes e
sofisticados, de considerar a felicidade uma coisa muito estúpida. Somente
a dor é intelectual, somente o mal é interessante. Essa é a deslealdade do
artista: uma recusa em admitir a banalidade do mal e o terrível tédio da dor.
Se você não consegue derrotá-los, una-se a eles. Se doer, repita. Mas
elogiar o desespero é condenar o deleite, acolher a violência é deitar fora
tudo o mais. Quase o fizemos: não podemos mais descrever o homem feliz,
nem celebrar o júbilo de maneira alguma. Como dizer-lhes das pessoas de
Omelas? Não eram crianças ingênuas e felizes, embora suas crianças
fossem de fato felizes. Eram adultos maduros, inteligentes, apaixonados,
cujas vidas não eram um desastre. Ó milagre! mas quereria poder descrevê-
los melhor. Gostaria de poder convencer você. Omelas, dentro de minhas
palavras, ecoa como uma cidade de um conto de fadas, há muito, muito
tempo, e muito, muito longe, lá onde era uma vez. Talvez fosse melhor você
imaginá-la como sua imaginação quiser, na suposição de que corresponda
como convém, pois sem dúvida eu não posso agradar-lhe por completo. Por
exemplo, como é a questão da tecnologia? Acho que não existiriam carros
nem helicópteros, nas ruas e acima delas. Isso vem do fato de o povo de
Omelas ser feliz. A felicidade baseia-se numa justa discriminação do que é
necessário, do que não é nem necessário, nem destrutivo, e do que é
destrutivo. Na categoria intermediária, porém, a do desnecessário mas não-
destrutivo, a do conforto, luxo, exuberância, etc., o povo de Omelas poderia
perfeitamente bem ter aquecimento central, metrôs, máquinas de lavar, e
todo tipo de equipamentos maravilhosos ainda não inventados, como fontes
flutuantes de luz, energia não proveniente de combustível, cura para o
resfriado comum. Ou poderiam não ter nada disso, também: não faz
diferença. Como queira. Inclino-me a pensar que os habitantes das cidades
ao longo da costa continuam vindo para Omelas, nos últimos dias antes do
Festival, em trenzinhos muito rápidos ou em bondes de dois andares, e que
a estação de trem de Omelas é, na verdade, o edifício mais bonito de toda a
cidade, embora mais simples que o estupendo Farmer’s Market. Mesmo
com trens e tudo, temo que para você Omelas, até aqui, não passe de uma
coisinha dengosa. Sorrisos, sinos, paradas, cavalos, bah! Assim, por favor,
acrescente um pouco de orgia. Se a orgia funcionar, nem hesite. Mas não
vamos colocar templos de onde emergem belos sacerdotes e sacerdotisas
nus em pelo, já semiembriagados pelo êxtase e prontos a copular com
qualquer homem ou mulher, conhecido ou forasteiro, em busca de união
com a profunda deidade do sangue, apesar de essa ter sido a primeira ideia
que me ocorreu. Na verdade, porém, seria melhor não haver templos em
Omelas, pelo menos templos guarnecidos de pessoas. Religião, sim; clero,
não. Certamente os belos desnudos podem simplesmente ir de um lado para
outro, oferecendo-se como suflês divinos para saciar a fome dos
necessitados e a volúpia da carne. Que se unam às procissões. Que o som
dos tamborins encubra o das cópulas, que a glória do desejo seja
proclamada com os gongos, que (aspecto igualmente relevante) os
descendentes desses deliciosos rituais sejam amados e cuidados por todos.
Uma coisa que, tenho certeza, não existe em Omelas de jeito nenhum é
culpa. Mas, o que mais deveria existir? Penso que, primeiro, não haveria
drogas, mas isso é puritanismo. Para os que gostam delas, a suave e
insistente doçura de druz é capaz de perfumar os caminhos da cidade, druz,
que primeiro causa uma sensação de leveza e luminosidade na mente e nos
membros; depois, escoadas algumas horas, um langor fantasioso e por
último, visões maravilhosas dos próprios arcanos e dos mais íntimos
segredos do Universo, bem como a excitação do prazer sexual além de toda
possibilidade de imaginação. E não causa dependência. Para gostos mais
moderados, penso que deveria constar cerveja. O que mais, o que mais faz
parte dessa cidade jubilosa? A sensação de vitória, certamente a celebração
da coragem. Mas, assim como passamos muito bem sem clero, não temos
precisão de soldados. O júbilo que vem de uma matança bem-sucedida não
é a espécie correta de júbilo; não vai adiantar muito; vem com receios e é
trivial. O contentamento ilimitado e generoso, o triunfo magnânimo sentido,
não contra um inimigo externo, mas em comunhão com o melhor e mais
elevado das almas de todos os homens, de todas as procedências, e o
esplendor do verão na Terra: isso é o que preenche o coração do povo de
Omelas. A vitória que celebram é a da vida. Aliás, não acredito que muitos
deles precisem de druz.
Neste momento, a maioria das procissões já chegou ao Campo Verde. Um
magnífico odor de comida sobe das tendas vermelhas e azuis dos postos de
abastecimento. O rosto das criancinhas está benignamente lambuzado. Na
benévola barba cinzenta de um homem, umas duas casquinhas de um
salgadinho delicioso ficaram enroscadas. Os jovens e as moças montaram
em seus cavalos e estão começando a se agrupar perto da linha de partida.
Uma velhinha sorridente, gorda e baixota, distribui flores de um cesto, e os
jovens garbosos exibem flores em seus cabelos reluzentes. Uma criança,
com nove ou dez anos, senta-se na orla do grupo, sozinha, tocando sua
flauta de madeira. As pessoas detêm-se para ouvir, sorriem, mas não lhe
dirigem a palavra, pois ela não para de tocar e não vê ninguém, seus olhos
escuros inteiramente inebriados pela volúpia da fina e doce magia da
sonoridade.
Ela termina de tocar, e abaixa devagar as mãos que seguram a flautinha de
madeira.
Como se aquele pequeno instante particular de silêncio fosse o sinal, uma
trombeta repentinamente se faz ouvir em um dos pavilhões próximos à
linha de partida: imperiosa, melancólica, penetrante. Os cavalos apoiam-se
nas pernas traseiras e alguns relincham. Com fisionomia sóbria, os jovens
cavaleiros e amazonas acariciam o pescoço de seus animais e os acalmam,
sussurrando: ‘‘Quieto, quieto, minha beleza, minha esperança...” Começam
a se posicionar ao longo da linha inicial. A multidão ao longo do trajeto é
como um campo gramado e florido ao vento. Tem início o Festival de
Verão.
Você acredita? Você aceita o festival, a cidade, o júbilo? Não? Então deixe-
me descrever mais uma coisa.
Num porão, embaixo de um dos mais belos edifícios públicos de Omelas,
ou talvez na adega de uma de suas espaçosas residências, existe um
aposento. Tem a porta trancada e não tem janelas. Pequenas infiltrações de
luz insinuam-se empoeiradas entre as rachaduras das pranchas de madeira,
filtradas pelas teias de aranha que recobrem alguma janela de algum lugar
acima do porão. Num canto desse pequeno aposento uma dupla de esfregões
de pelos duros, amarfanhados, fétidos, apoiam-se num balde enferrujado. O
chão está sujo, um pouco úmido ao toque, como costuma ser a poeira de um
porão. O aposento deve medir duas passadas de largo e três de comprido:
não passa de uma dispensa de vassouras ou de um armário grande e em
desuso, para guardar ferramentas. Nele está sentada uma criança. Pode ser
um menino ou uma menina. Parece ter seis anos, mas na realidade já tem
dez; sua mente é fraca. Pode ter nascido com algum defeito ou talvez se
tenha tornado imbecil por causa de medos, desnutrição e descaso. Cutuca o
nariz e de vez em quando mexe os dedos dos pés ou brinca com os genitais,
enquanto fica ali sentada, toda corcunda, no canto mais distante do balde
com os dois esfregões. Ela tem medo dos esfregões; acha que são horríveis.
Fecha os olhos, mas sabe que eles continuam ali. A porta está trancada e
ninguém virá. A porta está sempre trancada; e nunca vem ninguém, exceto
às vezes - essa criança não tem noção de tempo ou intervalo —, às vezes a
porta range com um som terrível e se abre e uma pessoa, ou várias pessoas,
entram. Uma delas vem e chuta a criança para fazer com que se ponha em
pé. As outras nunca se aproximam, mas ficam ali olhando de través, com
medo, com nojo. A vasilha de comida e o jarro de água são apressadamente
enchidos, a porta é novamente trancada, os olhos desaparecem. As pessoas
da porta nunca dizem uma palavra, mas a criança, que nem sempre viveu ali
naquele quartinho de ferramentas, e pode se lembrar da luz do sol e da voz
de sua mãe, às vezes fala. “Serei boazinha”, ela diz. “Por favor, me deixem
sair. Vou ser boazinha!” Eles nunca respondem. A criança costumava gritar
pedindo ajuda à noite e chorava muito, mas agora só manifesta uma espécie
de lamento - “eh-haa, eh-haa” - e fala cada vez menos. Está tão magra que
não tem mais carne nas pernas; sua barriga é protuberante; seu sustento é
meia tigela de milho e gordura por dia. Está nua em pelo. Suas nádegas e
coxas são uma massa de feridas purulentas, pois está continuamente sentada
sobre os próprios excrementos.
Todas as pessoas de Omelas sabem que ela está lá. Algumas foram vê-la,
outras contentam-se em sabê-la lá. Todos sabem que ela tem que ficar onde
está. Alguns compreendem por que, outros não, mas todos sabem que sua
felicidade, a beleza de sua cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de
seus filhos, a sabedoria de seus eruditos, a habilidade de seus artesãos, até
mesmo a abundância de suas colheitas e o clima ameno de seus céus
dependem inteiramente da abominável miséria dessa criança.
Em geral, isso é explicado às crianças entre os oito e os doze anos, quando
mostram que podem entender. A maioria dos que vão ver a criança são
jovens, embora muitas vezes algum adulto venha ou retorne para vê-la.
Apesar de todas as excelentes explicações que são dadas, esses jovens
espectadores sempre ficam chocados e enojados com a cena. Sentem
náusea, algo a que até então se consideravam superiores. Sentem raiva,
indignação, impotência, apesar de todas as explicações. Gostariam de fazer
alguma coisa pela criança. Mas não há o que possam fazer. Se a criança
fosse levada ao sol, retirada daquele lugar imundo, se fosse limpa,
alimentada e consolada, isso seria uma boa coisa, sem dúvida; mas, se isso
fosse feito, naquele mesmo dia e hora toda a prosperidade, toda a beleza e
toda a maravilha de Omelas feneceria e seria destruída. Essas são as
condições: trocar toda a bondade e graça de cada vida de Omelas por esse
simples e pequeno gesto de melhora; jogar fora a felicidade de milhares
pela oportunidade de felicidade de um: isso seria de fato consentir com a
culpa.
Os termos são estritos e absolutos: não é permitido sequer dirigir uma
palavra gentil à criança.
Muitas vezes os jovens voltam para casa aos prantos, ou num estado de
raiva impotente, depois de terem visto a criança e testemunhado esse
terrível paradoxo. Podem ficar ruminando essa cena durante semanas, ou
anos. Mas, à medida que o tempo vai passando, vão-se dando conta de que
mesmo que a criança fosse libertada não desfrutaria muito de sua liberdade:
uma vaga e limitada satisfação da necessidade de calor e comida, sem
dúvida, mas pouco mais que isso. É por demais degradada e imbecil para
conhecer o verdadeiro júbilo. Há muito tempo que vem sentindo medo de
libertar-se do medo. Seus hábitos são por demais selváticos para que
responda a um tratamento humanitário. Aliás, depois de tanto tempo,
provavelmente seria destruída, sem aquelas paredes para protegê-la, sem a
escuridão para os seus olhos e sem os próprios excrementos para sentar-se.
As lágrimas dos outros perante essa amarga injustiça secam quando eles
começam a perceber a terrível justiça da realidade, e a aceitam. Contudo,
são suas lágrimas e sua raiva, sua iniciativa de generosidade e a aceitação
de sua impotência que talvez constituam a verdadeira fonte do esplendor de
suas vidas. Sua felicidade não é irresponsável, nem insossa. Eles sabem
que, como a criança, não estão livres. Conhecem a compaixão. É a
existência da criança, e o conhecimento de sua existência, que torna
possível a nobreza de sua arquitetura, a pungência de sua música, a
profundidade de sua ciência. É por causa da criança que são tão suaves com
as crianças. Eles sabem que, se a miserável não estivesse choramingando no
escuro, a outra, que toca flauta, não produziria uma música tão jubilosa
enquanto os jovens cavaleiros e amazonas se alinham para a beleza da
corrida à luz do sol, na primeira manhã do verão.
Agora você acredita neles? Não se tornaram mais verossímeis? Mas há uma
coisa ainda a dizer, e essa é totalmente inacreditável.
Às vezes, um dos adolescentes que vai ver a criança não volta para casa
para chorar ou enfurecer-se; aliás, simplesmente não volta mais para casa.
Às vezes, também um homem ou mulher bem mais velhos ficam em
silêncio por um dia ou dois, e depois saem de casa. Essas pessoas vão para
as ruas e por elas caminham, sozinhas. Continuam andando e vão em frente
até sair da cidade de Omelas, atravessando seus magníficos portões. Vão
andando e passam pelas terras plantadas em volta de Omelas. Cada um
destes vai embora sozinho, rapaz ou moça, homem ou mulher. Cai a noite.
O andarilho deve cruzar as ruas de aldeias, passando por entre casas com
janelas iluminadas de amarelo e afundar na escuridão da mata. Cada uma
dessas pessoas, sozinha, vai para o oeste e o norte, rumo às montanhas. Vão
adiante. Elas partem de Omelas, deixam Omelas, andam no caminho da
escuridão e não regressam. O lugar para onde se encaminham é ainda
menos imaginável para nós do que a cidade da felicidade. Não posso,
absolutamente, descrevê-lo. Mas eles parecem saber para onde estão indo,
os que vão embora de Omelas.
Parte 3
JOEL COVITZ
Este ensaio dá o tom da Parte 3, ao delinear o contexto geral do dilema
narcisista: vivemos numa época em que a paternagem/maternagem parece
correr o risco de se tornar uma arte perdida. As saudáveis necessidades
das crianças e os seus direitos muitas vezes não são entendidos e
frequentemente são abafados e negados, remetidos de volta sem satisfação
para o ego imaturo da criança, do que advêm resultados desastrosos. Joel
Covitz, analista junguiano trabalhando em Boston, considera essa
negligência por parte dos pais como abuso psicológico de crianças. “Os
pais têm um poder tremendo,” diz ele, e os danos causados à alma da
criança têm consequências vitalícias, das quais os outros ensaios desta
seção falam em detalhes. Este capítulo é um excerto do livro de Covitz
publicado em 1986, Emotional Child Abuse: The Family Curse, um útil
manual sobre estilos salutares de criação de filhos.
Cada época parece ter suas perturbações características. Freud descobriu a
histeria como queixa predominante; o terapeuta de hoje mais provavelmente
atenderá pacientes deprimidos ou compulsivos, que sentem falta, na sua
vida, de afeto, de atenção, de relacionamentos gratificantes.
Quando examinamos as raízes das perturbações narcisistas, torna-se claro
que a maioria delas está ligada à infância. Em termos bem simples, uma
criança cujas primeiras e saudáveis necessidades narcisistas (de atenção,
afeto e respeito, assim como de alimento e proteção) não são atendidas tem
dificuldade em desenvolver força interior, independência e autoestima. Os
pais que repetidamente não satisfazem essas primeiras necessidades estão
abusando psicológica e emocionalmente de seus filhos. Em praticamente
todos os casos, isso é o oposto do que os pais pretendem. Eles querem ser
acolhedores e prestativos, mas a coisa não funciona desse jeito. Em alguns
casos, eles simplesmente não sabem o que é ser pai e mãe. Em outros, eles
mesmos são tão carentes — porque as suas primeiras necessidades
narcisistas não foram satisfeitas — que não conseguem satisfazer as dos
filhos. Enquanto esses pais não conseguirem romper o círculo do abuso, o
efeito do mesmo sobre os filhos será arrasador, e esse padrão destrutivo
provavelmente será repetido nas gerações seguintes.
A incidência do abuso físico de crianças na nossa sociedade levanta um
sério questionamento sobre a cultura em que vivemos. As crianças
espancadas que chegam aos prontos-socorros dos hospitais com os
ferimentos decorrentes da raiva e da frustração dos pais carregarão essas
cicatrizes para sempre. Mas as crianças que sofrem abusos emocionais e
psicológicos também têm cicatrizes, difíceis de serem vistas, a princípio,
mas não menos incapacitantes e problemáticas quanto à cura.
Evidentemente, um dos motivos pelos quais esse é um problema tão difícil
de solucionar está no fato de que essas crianças, em geral, não conseguem
revidar ao ataque de modo eficaz. Como diz Maria Montessori em The
Child in the Family, “Nenhum problema social é tão universal quanto a
opressão da criança... Nenhum escravo jamais chegou a ser propriedade do
seu dono no mesmo grau em que isso acontece com as crianças.”1 A nossa
sociedade considera a criança como propriedade dos pais. Os pais têm um
tremendo poder, e as crianças têm poucos meios eficazes de protestar contra
o abuso, enquanto ainda são pequenas. Mas, com o tempo, o preço desse
abuso será cobrado da geração seguinte. Em seu livro Prisoners of
Childhood, Alice Miller escreve: “... daqui a vinte anos, essas crianças
serão adultos que terão que dar o troco disso tudo aos seus próprios
filhos.”2
Quando as necessidades narcisistas de uma criança são frustradas, ela
geralmente manifestará sua frustração como raiva dos pais ou como
depressão. Mas, à medida que vai crescendo e ficando mais “socializada”,
sua tendência é reprimir a raiva e procurar comportar-se de maneira a
conquistar a afeição dos pais ou a assegurá-la (o que, às vezes, é uma tarefa
impossível). A raiva e a dor reprimidas deverão, em última análise, vir à
tona posteriormente, de alguma forma, seja como dificuldade para obter
sucesso, seja alimentando uma autoimagem precária, seja em tendências
autodestrutivas, ou mediante a adoção de alguns mecanismos de defesa
usados pelos pais: tirania, promiscuidade, inadequação. Seja qual for o
comportamento de adaptação, a frustração subjacente não vai embora por si.
Somente quando uma criança puder cavar por trás das suas defesas e chegar
às raízes do problema é que poderá compreender esse comportamento
abusivo de seus pais. As sombras do comportamento dos pais quase sempre
podem ser localizadas em suas próprias condutas. É impossível romper a
cadeia familiar de abusos de uma forma cabal, desvincular-se inteiramente
da própria herança emocional (em seus bons e maus aspectos). Mas o
entendimento das bases do comportamento de abuso pode ajudar os pais e
os filhos a modificá-lo - e o objetivo é a possibilidade de um passo adiante
a cada geração.
Não há segredos para o inconsciente de um filho, embora às vezes os pais
ajam como se suas palavras conscientes e seus atos fossem as únicas
mensagens que transmitem às crianças. Boa parte da comunicação dos pais
com os filhos é não-verbal. Transferidas subliminarmente de pai para filho,
todas as mensagens serão percebidas pelo inconsciente da criança e ela
obterá uma percepção razoavelmente precisa da personalidade de seus pais.
Como disse Jung em O Desenvolvimento da Personalidade:
As crianças estão tão profundamente envolvidas na atitude psicológica de
seus pais que não é de espantar que a maioria das perturbações da infância
possa ser atribuída a uma atmosfera psíquica comprometida no lar de
origem... Não pode haver dúvida de que é de máximo valor que os pais
enxerguem os sintomas de seus filhos à luz dos seus próprios problemas e
conflitos. É seu dever como pais procederem dessa forma. Sua
responsabilidade a esse respeito contém a obrigação de fazerem tudo o que
estiver ao seu alcance no sentido de não levarem uma vida que possa
prejudicar seus filhos. Geralmente dá-se uma ênfase muito menor do que a
necessária à importância da conduta dos pais para com a criança, porque
nem sempre são as palavras que importam, mas sim os atos. Os pais devem
estar sempre conscientes do fato de que eles mesmos são, em princípio, a
causa da neurose em crianças.3
Mas devemos lembrar-nos de que os pais não são os únicos responsáveis
pela maldição da família. Como também disse Jung: “Não são tanto os pais,
e sim os ancestrais — avós e bisavós — que são os verdadeiros
progenitores.”4
A criança pode ser levada a repetir as inadequações de seus pais. Por
exemplo, a mãe de Katherine sempre havia-se considerado uma mulher
inteligente, mas não bonita. Em vez de tentar lidar com essa situação, no
entanto, ela transmitiu aos filhos a ideia de que só a inteligência era
importante, não a capacidade de atrair ou de estar com os outros com
facilidade, ou de ter amigos. Os seus filhos e a sua filha cresceram
intelectualmente competentes, mas socialmente ineptos. Katherine havia
sido ensinada a não dar valor às suas roupas, nem à aparência. Estava
sempre limpa, mas descrevia- se como aquele tipo de criança cujas meias
soquetes sempre estavam escorregando, cujo cabelo estava sempre
desarrumado. Todas as suas roupas vinham de herança das primas.
Maquiagem era algo depreciado na sua casa. As crianças cresceram
pensando que eram inteligentes e feias, o que não era realmente verdade.
Katherine, em especial, tinha dificuldades para ajustar-se socialmente. Era
vítima da maldição familiar.
É praticamente impossível livrar-se por completo da maldição da família.
Mas os pais podem tomar consciência das manifestações dessa maldição em
seus filhos, e podem trabalhar para modificar as condições que a
incentivam. Eles têm a oportunidade de mudar tudo o que puderem, a fim
de tornar a vida deles mais saudável. Como Jung diz: “A natureza não se
presta à alegação de que ‘não se sabia’.”
As bases do problema
Como pode tanta coisa sair errada logo no início da vida de uma pessoa? A
razão disso é dupla: a inadequação no desenvolvimento da personalidade de
seus próprios pais, que quase sempre foram, eles mesmos, vítimas de abuso
na infância; e as frustrações que os pais sentem quando tentam criar seus
filhos numa cultura que desprestigia o ter filhos.
Nossas crianças são vítimas da visão cada vez mais predominante de que ter
filhos é algo frustrante e complicado, que atrapalha o crescimento e a vida
do sujeito, em vez de enriquecê-la. A ausência de uma cultura criativa e
funcional no que se refere a ter filhos torna-se mais grave quando
observamos o colapso atual da vida familiar. Crianças de casais
divorciados, ou abandonadas pelos pais; crianças que, algumas até com
menos de dez anos, fogem para viver nas ruas em vez de enfrentar pais que
abusam delas; crianças que decidem terminantemente nunca ter seus
próprios filhos; crianças que se tornam pais enquanto ainda são
adolescentes; crianças que se odeiam e descontam nos outros - todas são
vítimas não apenas de pais que abusam delas, mas de uma cultura que
desvalorizou a arte de ser pai ou mãe.
“Mas o que você está fazendo com a sua vida?” - perguntar isso a uma moça
que está criando dois filhos pequenos significa dizer a essa mãe que o que
ela está fazendo — ser mãe — não é uma atividade digna de respeito.
Quando uma cultura destitui os papéis de mãe e de pai de seu status, a
autoestima decorrente de assumir esses papéis diminui
correspondentemente, como se essa sociedade estivesse punindo os pais, em
vez de respeitá-los, por estarem enfrentando uma tarefa de importância
tremenda. Apenas os empregos no “mundo real” parecem merecer esse
respeito. Uma dessas jovens mães, cuja situação reflete a de outras
milhares, decidiu voltar a trabalhar quando seu filho estava com dois meses
de idade, mesmo que o custo do berçário e outras despesas exigisse uma
parte tão grande de seu salário que na realidade estava ganhando menos de
um dólar por hora. Quando lhe perguntei a razão de sua escolha, respondeu-
me: “Não quero que minha autoestima venha do fato de meu marido me
dizer que preparei um bom jantar para a família.”
O desejo de ter autoestima, assim como o de trabalhar fora, não é negativo,
absolutamente. Mas é uma lástima que a nossa cultura não incentive mais as
pessoas a sentirem autoestima quando trabalham na educação e no
atendimento de uma família. John Bowlby expressa uma abordagem mais
encorajadora da criação de filhos:
A criança precisa sentir que é um objeto de prazer e orgulho para sua mãe; a
mãe precisa sentir uma expansão de sua própria personalidade na
personalidade de seu filho: ambos necessitam sentir-se intimamente
identificados um com o outro. A criação de um filho não é algo que possa
ser feito de modo mecânico; trata-se de uma relação humana viva, que
altera o caráter dos parceiros envolvidos.
...É necessário continuidade para o crescimento de uma mãe. Assim como o
bebê tem necessidade de sentir que pertence à sua mãe, a mãe precisa sentir
que pertence ao filho e é só quando tem a satisfação desse sentimento que
se torna fácil para ela dedicar- se a ele. O fornecimento de uma atenção
constante... é possível somente para a mulher que obtém uma satisfação
profunda de ver seu filho crescer, deixando de ser bebê para atravessar as
muitas fases da meninice, até tornar-se um homem ou mulher independente,
sabendo que foram os seus cuidados que tornaram isso possível.6
Nossa cultura, porém, em vez de encorajar ambos os pais a desenvolverem
essa “satisfação profunda”, leva-os a ficarem frustrados com as exigências
que a criança faz por uma “atenção constante”.
Por esse motivo, muitos casais decidem não ter filhos. Sentem que devem
tê-los apenas se os quiserem, e consideram a criação dos filhos um encargo
indesejável. Se é assim que pensam, então sua escolha presumivelmente é
benéfica tanto para eles como para os filhos que não nasceram. Mas o que
isso implica em relação à nossa cultura? E quais seriam as possíveis razões
para tal decisão?
As razões pelas quais uma pessoa decide não ter filhos relacionam-se, em
geral, de uma maneira bastante direta com suas próprias vivências quando
criança. A razão principal para a rejeição do papel de pai ou mãe é ter sido
criado num lar negativo, disfuncional, que, instintivamente, não querem
recriar como ambiente para gerações futuras. Muitos desses adultos foram
crianças que experimentaram, em primeira mão, o que significa ter pais que
não os desejam. Uma paciente contou-me que havia decidido não ter filhos
porque não seria capaz de suportar a rejeição que eles lhe demonstrariam,
igual à que sentira por sua própria mãe, que era o que esta havia sentido por
sua avó.
As pessoas que fazem a escolha de não ter filhos geralmente decidiram isso
há tanto tempo quanto conseguem lembrar-se. Para elas, a infância foi um
desastre pessoal, e não sentem desejo algum de participar da continuidade
desse ciclo de vida. Do ponto de vista de suas vivências, podem estar
tomando uma atitude compreensível. Mas o número cada vez maior de
decisões dessa natureza serve como um triste comentário acerca da vida
familiar de hoje. Numa era de individualismo, a decisão de não ter filhos é
um direito da pessoa - mas também pode ser um erro trágico.
Avaliação da situação particular
Para determinar a natureza e a extensão do abuso emocional, cada família
deve ser examinada do ponto de vista de sua situação particular. A família
como instituição é uma coisa; a família individual é outra. Cada aspecto do
relacionamento entre pais e filhos é afetado por essa margem de
especificidade. Quando consideramos uma dada família, estamos analisando
sua combinação ímpar de esperanças, educação, recursos e aspirações. A
criança está consciente da situação peculiar da família em que é criada e
leva-a em conta. Existe uma diferença enorme, por exemplo, entre um pai
abastado que cria o filho como “pobre” e aquele que realmente não tem
dinheiro para oferecer.
O pai de Keith, professor universitário, disse-lhe: “Quando eu tinha a sua
idade, tive que trabalhar para pagar a faculdade. Tive que ganhar o dinheiro
necessário para toda a minha educação e espero que você faça o mesmo.”
Keith enxergou a falácia no raciocínio de seu pai. Uma vez que o avô de
Keith tinha morrido quando seu pai estava com 6 anos, ele fora forçado a
trabalhar no início de sua adolescência, e fora criado num ambiente de
classe média baixa. Mas, na época em que Keith estava prestes a entrar na
faculdade, seu pai já fazia parte da classe média alta, onde é comum os pais
sustentarem os estudos dos filhos. O pai de Keith estava funcionando como
se ainda estivesse contido pelas limitações de um nível socioeconômico
inferior; recusava-se a tomar consciência das necessidades e expectativas
especiais de sua família. Não conseguia entender nem perceber que
desenvolver a capacidade de lidar com a situação familiar tal qual ela é - e
não simplesmente como foi vivida no passado, ou como se gostaria que
fosse - é parte essencial da arte de ser pai ou mãe.
O desenvolvimento do Self genuíno
Como diz o mito grego, Narciso fitava interminavelmente o seu próprio
reflexo na água. Não sentia desejo algum de desenvolver um Self autêntico;
estava enamorado do que tem sido denominado “o falso self’, aquele que só
quer lidar com o belo, o agradável, o lado feliz da vida. Essa fixação isolou-
o da vivência de toda uma variedade de experiências de vida e respostas
emocionais, como a inveja, o ciúme e a raiva. Essa relutância em chegar a
um entendimento com o lado perturbador da vida é característica da pessoa
com distúrbio narcisista na personalidade. Existe uma porção da vida que
não é consciente, que está escondida, indisponível. Esse lado desconhecido,
que pode ser chamado de sombra, contém qualidades desconhecidas que
podem ser boas ou más, mas que permanecem obscuras, imersas na
escuridão.
Como assinala Jung, “a infância não é importante apenas por representar o
ponto de partida para um possível comprometimento do instinto, mas
também por ser a época em que, aterrorizantes ou encorajadores, esses
sonhos e imagens que enxergam tão longe e procedem da alma da criança
preparam seu destino inteiro”.7
A responsabilidade dos pais, nessa época, é extensa. O Self genuíno é um
tesouro que cada um de nós vive para descobrir. O comportamento abusivo
dos pais pode inibir o desenvolvimento de um Self genuíno nos filhos.
14. A busca do verdadeiro self
ALICE MILLER
Este capítulo é extraído do consagrado trabalho da psicanalista suíça Alice
Miller, autora de textos de excepcional qualidade que, a partir de 1981,
ofereceu ao público americano um manual básico sobre o distúrbio
narcisista e uma condenação impiedosa das modernas práticas de
educação dos filhos. Para muitos, ela vem sendo a santa padroeira da
criança interior.
Em Prisoners of Childhood [Prisioneiros da Infância] (rebatizado como
The Drama of the Gifted Child [O Drama da Criança Bem-dotada] em
edições subsequentes), ela esboça pela primeira vez o dilema narcisista da
criança interior. O texto reproduzido abaixo compreende o capítulo central
desse livro. Depois, em For Your Own Good, ela define a “pedagogia
tóxica” que existe por trás da crueldade desfechada contra as crianças e
descreve extensamente a vida de três crianças famosas (entre elas a de
Adolf Hitler), cuja criança interior foi atormentada e esmagada por
práticas destrutivas de educação. Em Thou Shalt Not Be Aware, ela rompe
com a teoria tradicional do impulso, defendida pela psicanálise, acusando
a própria sociedade de trair a criança. (Um excerto desse livro está
incluído na Parte 4 desta coletânea.)
Na sua introdução a O Drama da Criança Bem-dotada, a dra. Miller
confessa que está contando a história do abuso e do sofrimento da sua
própria criança interior, que, ela descobriu, constitui um espelho para
muitas outras pessoas. “Compreendi”, diz ela, “que eu não conseguiria
mudar em nada o passado dos meus pais e professores, que os havia
deixado cegos. Mas, ao mesmo tempo, senti que podia e devia tentar
mostrar aos jovens pais de hoje - e, em especial, aos futuros pais - o risco
de usarem inadequadamente seu poder; senti que é meu mister sensibilizá-
los para esse perigo e fazer com que escutem com maior facilidade os
sinais da criança que há dentro deles, assim como os das crianças que há
em toda a parte.”
Introdução
A experiência tem-nos ensinado que possuímos uma única arma duradoura
na nossa luta contra a enfermidade mental: a descoberta emocional e a
aceitação emocional da verdade sobre a história individual e peculiar da
nossa infância. É possível, então, com a ajuda da psicanálise, libertarmo-
nos por completo das ilusões? A história demonstra que estas se insinuam
por toda a parte, que toda e qualquer vida está cheia delas, talvez porque a
verdade seja, muitas vezes, insuportável. Não obstante, para muitas pessoas
a verdade é tão essencial que elas têm que pagar muito caro por sua perda,
ficando seriamente doentes. No decorrer da análise, tentamos, num
processo demorado, descobrir a nossa própria verdade pessoal. Essa
verdade sempre provoca muita dor antes de nos oferecer uma nova
dimensão de liberdade - a menos que nos contentemos com a sabedoria já
conceitualizada e intelectualizada, baseada nas dolorosas experiências das
outras pessoas, como, por exemplo, as de Sigmund Freud. Nesse caso,
porém, permaneceremos na esfera da ilusão e do autoengano.
Existe um tabu que tem resistido a todos os esforços recentes de
desmistificação: a idealização do amor materno. O curso comum das
biografias ilustra isso com muita clareza. Ao ler as biografias de artistas
famosas, por exemplo, tem-se a impressão de que suas vidas começaram na
puberdade. Antes disso, diz-se que eram “felizes”, “contentes”, que sua
infância foi “livre de preocupação”, ou que foi “muito carente”, ou “muito
estimulante”. Mas o que uma determinada infância realmente foi não parece
ser do interesse desses biógrafos, como se as bases de uma vida inteira não
estivessem ocultas nem entranhadas em sua infância. Gostaria de ilustrar
isto com um exemplo simples.
Henry Moore descreveu, em suas memórias, como, quando ainda era um
menino pequeno, massageou as costas da mãe com óleo para aliviar sua dor
de reumatismo. Ao ler isso, de repente ficou claro para mim o que eram
suas esculturas: as grandes mulheres reclinadas com cabeça pequena. Agora
eu via nelas a mãe vista pelos olhos de um filho pequeno, com a cabeça lá
no alto, numa perspectiva diminuída, e as costas próximas e à sua frente,
grandemente aumentadas. Isso pode ser irrelevante para muitos críticos de
arte, mas para mim demonstra a força com que as vivências infantis podem
permanecer no inconsciente e que possibilidades de expressão elas podem
despertar no adulto, que está livre para manifestá-las. No caso de Moore,
sua recordação não foi prejudicial e por isso pôde sobreviver intacta. Mas
as vivências conflitivas de toda infância têm que ficar escondidas e
trancadas na escuridão, e a chave para a compreensão da vida que acontece
depois está escondida junto com elas.
A pobre criança rica
Às vezes me pergunto se algum dia conseguiremos apreender a extensão da
solidão e do abandono aos quais fomos expostos quando crianças,
continuando, como consequência, a ser intrapsiquicamente desprotegidos,
na idade adulta. Não estou me referindo aqui, basicamente, aos casos de
abandono óbvio por parte dos pais, ou de separação deles, embora estes, é
claro, possam ter resultados traumáticos. Tampouco estou pensando em
crianças que evidentemente não foram cuidadas, que foram totalmente
ignoradas, e que sempre tiveram consciência disso ou, pelo menos,
cresceram com a noção de que as coisas eram assim.
Além destes casos extremos, existem muitas e muitas pessoas que sofrem
de distúrbios narcisistas clássicos e que, em muitos casos, tiveram pais
sensíveis e atenciosos, dos quais receberam muito incentivo. Não obstante,
essas pessoas estão sofrendo de severa depressão. Elas iniciam a análise na
crença, com a qual cresceram, de que sua infância foi feliz e protegida.
Com muita frequência nos deparamos com pacientes dotados, que foram
elogiados e admirados por seus talentos e realizações. Praticamente todos
esses analisandos passaram pelo aprendizado das noções básicas de higiene
[toilet training] no primeiro ano de vida e muitos deles, com idade entre um
ano e meio e cinco anos, foram considerados capazes de tomar conta de
irmãos menores. Segundo as atitudes gerais vigentes, essas pessoas —
orgulho de seus pais — deveriam ter um forte e estável senso de
autoconfiança. Mas dá-se exatamente o inverso. Em tudo o que
empreendem se saem bem e, em geral, até com excelência. São admirados e
invejados. São bem- sucedidos sempre que o desejam, mas isso não adianta
nada. Por trás de tudo está o fantasma da depressão, o sentimento de vazio e
de autoalienação, uma sensação de que sua existência não tem nenhum
significado. Esses sentimentos escuros vêm à tona assim que deixa de surtir
efeito a droga da grandiosidade, assim que não estão “por cima”, que
deixam definitivamente de ser o “superastro”, ou sempre que,
repentinamente, sentirem que não conseguiram corresponder a uma imagem
ideal qualquer, a um padrão ideal que lhes parece devem satisfazer. Então a
praga da ansiedade os infesta, assim como sentimentos profundos de culpa
e vergonha. Quais são as razões desses distúrbios narcisistas, em pessoas
talentosas?
Logo na primeira entrevista dirão ao analista que tiveram pais
compreensivos, ou que um deles o foi, e que, se alguma vez deixaram de sê-
lo, sentiram que era culpa deles, e de sua incapacidade de se expressarem
de modo apropriado. Relatam suas mais precoces recordações sem a menor
simpatia pela criança que foram um dia, e isso é bastante chocante, pois são
pacientes não só dotados de pronunciada capacidade introspectiva, mas
também bastante capazes de desenvolver empatia com outras pessoas. Seu
relacionamento com o mundo emocional de sua infância, contudo, é
caracterizado por falta de respeito, compulsão de controle, manipulação e
exigência de resultados. Muitas vezes expressam desdém e ironia, e até
mesmo escárnio e cinismo. Em geral, existe uma ausência completa de um
verdadeiro entendimento emocional ou valorização genuína das vicissitudes
de sua própria infância, nenhuma noção de quais são suas autênticas
necessidades — além da necessidade de obterem resultados. A
internalização do drama original foi tão completa que pode ser mantida a
ilusão de terem tido uma boa infância.
A fim de delinear o referencial para a descrição do clima psíquico desses
pacientes, formularei antes alguns pressupostos básicos que nos servirão de
ponto de partida e que têm afinidade com os trabalhos de D. W. Winnicott,
Margaret Mahler e Heinz Kohut.
A criança tem uma necessidade primária de ser considerada e respeitada
como a pessoa que realmente é, a qualquer momento, e como centro - o ator
central - de sua própria atividade. Em contraposição aos desejos
libidinosos, estamos falando aqui, por certo, de uma necessidade que é
narcisista, embora legítima, e cuja satisfação é essencial para o
desenvolvimento de uma autoestima saudável.
● Quando falamos aqui “da pessoa que realmente é, a qualquer momento,”
estamos falando de suas emoções, sensações e de sua expressão desde o seu
primeiro dia depois de nascida. Mahler (1968) escreve: “As sensações
internas do bebê formam o cerne do self. Parecem permanecer como o
ponto central, a cristalização da ‘sensação do self, em torno da qual se
estabelecerá uma ‘noção de identidade’”.1
● Numa atmosfera de respeito e tolerância por seus sentimentos, a criança,
na fase da separação, será capaz de abandonar a simbiose com a mãe e de
dar os passos que a colocam no rumo da individuação e da autonomia.
● Para que satisfaçam os pré-requisitos de um narcisismo saudável, os
próprios pais precisam ter crescido nessa atmosfera.
● Os pais que não vivenciaram essa condição doméstica em sua infância
têm, eles próprios, carências narcisistas; ao longo de sua vida inteira estarão
em busca daquilo que seus próprios pais não puderam dar-lhes no momento
certo: a presença de uma pessoa que tem total percepção deles, que os leva
a sério, que os admira e acompanha.
● Essa busca, evidentemente, nunca pode alcançar pleno êxito, pois está
relacionada a uma situação que pertence de maneira irrevogável ao passado,
ou seja, ao tempo em que o self estava começando a se formar.
● Não obstante, uma pessoa com essa necessidade insatisfeita e
inconsciente (por ter sido reprimida) é impelida a tentar gratificá-la por
meios substitutos.
● Os objetos mais apropriados para a gratificação dos pais são os próprios
filhos. Um bebê recém-nascido é completamente dependente de seus pais e,
uma vez que o cuidado deles é indispensável à sua sobrevivência, ele faz
tudo que pode para não perdê-los. Desde o primeiro dia pós-parto, ele
deverá concentrar todos os seus esforços com essa finalidade, assim como
uma plantinha que se volta na direção do sol para sobreviver.2
Até aqui, ative-me ao círculo de fatos relativamente bem conhecidos. Os
próximos pressupostos são derivados mais de observações efetuadas ao
longo de análises que conduzi ou supervisionei, e também de entrevistas
com candidatos a psicanalistas. Em meu trabalho com todas essas pessoas,
descobri que cada uma delas tem uma história de infância que a mim parece
significativa.
● Havia uma mãe que, no fundo, era emocionalmente insegura e que
dependia, para seu equilíbrio narcisista, de que seu filho se comportasse ou
agisse de uma certa maneira. Essa mãe era capaz de esconder sua
insegurança do filho e de todas as demais pessoas por trás de uma fachada
dura, autoritária e até totalitária. (Com o termo “mãe” quero dizer aqui a
pessoa mais próxima da criança em seus primeiros anos de vida. Essa não é
necessariamente sua mãe biológica, nem mesmo precisa ser uma mulher. No
decurso dos últimos vinte anos, muitos pais vêm assumindo essa função.)
● O filho tinha uma capacidade notável para perceber e reagir
intuitivamente, quer dizer, para responder inconscientemente a essa
necessidade de sua mãe, ou de ambos os pais, e assim assumiu o papel que
inconscientemente lhe havia sido atribuído.
● Esse papel assegurava que a criança receberia “amor”, ou seja, a catexe
narcisista dos pais. Ela podia sentir-se necessária e sentia que isso garantia
para ela certa dose de segurança existencial.
Essa habilidade é depois ampliada e aperfeiçoada. Mais tarde, tais crianças
não só se tornam mães (confidentes, consoladoras, conselheiras,
sustentáculos) de suas próprias mães, como também assumem a
responsabilidade pelos irmãos e, com o tempo, desenvolvem uma
sensibilidade especial para captar os sinais inconscientes que manifestam as
necessidades dos outros. Não é de espantar que muitas vezes escolham no
futuro a profissão de psicanalistas. Quem mais, sem essa história pregressa,
teria concentrado um interesse tão grande numa atividade que implica
passar o dia inteiro tentando descobrir o que está acontecendo no
inconsciente de outra pessoa? Mas o desenvolvimento e o aperfeiçoamento
desse sensorial diferenciado — que no passado ajudou a criança a
sobreviver e agora lhe permite, adulta, praticar essa estranha profissão -
também contêm os alicerces do distúrbio narcisista.
O mundo perdido dos sentimentos
A fenomenologia do desequilíbrio narcisista é hoje bastante conhecida.
Com base na minha experiência, gosto de pensar que sua etiologia pode ser
encontrada na adaptação emocional inicial do bebê. De qualquer modo, as
necessidades narcisistas da criança de respeito, resposta, compreensão,
simpatia e de se ver refletida são submetidas a um destino muito especial,
como decorrência dessa adaptação inicial.
Uma séria consequência dessa adaptação inicial é a impossibilidade de
vivenciar conscientemente determinados sentimentos seus (como o ciúme, a
inveja, a raiva, a solidão, a impotência e a ansiedade), seja durante a
infância, seja na vida adulta. Isso é ainda mais trágico por estarmos aqui
diante de pessoas sensíveis, capazes dos sentimentos mais diferenciados.
Isso se torna evidente naqueles momentos, durante a análise, em que
descrevem vivências da infância não marcadas por conflitos. Quase sempre
se trata de vivências com a natureza que puderam desfrutar sem magoar a
mãe ou fazer com que ela se sentisse insegura, sem diminuir seu poder ou
pôr seu equilíbrio em risco. Mas é extraordinário como essas crianças,
atentas, vivazes e sensíveis, capazes, por exemplo, de lembrar exatamente
como descobriram a luz brilhante do sol na grama aos quatro anos, aos oito
ainda não são capazes de “perceber nada”, nem de mostrar curiosidade pela
mãe grávida, ou, ainda, “não tiveram nenhum” ciúme quando nasceu o
irmão. Aos dois anos, uma dessas crianças pôde ser deixada sozinha quando
os soldados invadiram a casa e a revistaram, e ela “ficou boazinha”,
sofrendo aquilo tudo em silêncio e sem chorar. Essas crianças
desenvolveram a arte de não sentir seus sentimentos, pois uma criança só
pode ter seus sentimentos quando existe ali alguém que os possa aceitar
completamente, entendendo-a e dando-lhe apoio. Se isso está faltando, se a
criança deve arriscar-se a perder o amor da mãe, ou o da figura materna
substituta, então ela, além de não poder vivenciar seus sentimentos em
segredo, “só para si”, não consegue mais vivenciá-los de modo algum.
Apesar disso... alguma coisa fica.
Durante sua vida adulta, essas pessoas criam inconscientemente situações
nas quais esses sentimentos rudimentares podem despertar, mas sem que a
conexão original se tome clara. A finalidade desse “jogo”, como Jurgen
Habermas (1970) o chamou, só pode ser decifrada na análise, quando o
analista reúne as partes desse quebra-cabeça e as intensas emoções
vivenciadas na análise são, com êxito, relacionadas à situação original.
Freud descreveu isto em 1914 em seu trabalho “Recollection, Repetition
and Working Through”.
Vejamos, por exemplo, o caso da sensação de abandono, não a que o adulto
vive, quando se sente só e, portanto, toma bolinhas ou drogas, vai ao
cinema, visita os amigos ou telefona “sem razão”, para tentar suprir a
lacuna de alguma maneira. Não. Estou me referindo à sensação original no
bebê pequeno, que não tinha nenhuma dessas oportunidades de distração e
cuja comunicação, verbal e pré-verbal, não alcançava a mãe. Não porque
ela fosse má, mas porque ela mesma tinha carências narcisistas, e a
dependência de um eco específico de um filho que era tão essencial para ela
por ela mesma ser uma criança em busca de um objeto que pudesse estar à
sua disposição. Apesar desse quadro poder parecer bastante paradoxal, a
criança está à disposição da mãe. Uma criança não pode fugir dela como
sua própria mãe fez, tantos anos antes. A criança pode ser criada de uma tal
maneira que se torne aquilo que ela, a mãe, quer que ela seja. A mãe pode
forçar seu filho a mostrar respeito, pode impor seus próprios sentimentos a
ele, ver-se refletida no amor e na admiração que ele lhe dedica e sentir-se
forte em sua presença, mas quando essa criança se torna demais ela pode
abandoná-la nas mãos de um desconhecido. A mãe pode sentir-se como o
centro das atenções, pois os olhos da criança seguem-na por toda a parte. Se
uma mulher teve que suprimir e reprimir todas essas necessidades em
relação à sua própria mãe, elas irrompem do fundo de seu inconsciente e
buscam gratificação através de seus próprios filhos, apesar de toda a sua
instrução e boas intenções, e apesar de toda a percepção que tem do que
uma criança necessita. A criança sente isso com total nitidez e em muito
pouco tempo suprime a manifestação de suas próprias dores. Mais tarde,
quando esses sentimentos de desamparo começam a vir à tona na análise do
adulto, vêm acompanhados de tal intensidade de dor e desespero que fica
muito clara a razão pela qual essa pessoa não poderia ter sobrevivido a tanta
dor. Isso só teria sido possível num ambiente empático, atento à sua
condição, e isso ela não teve. A mesma dinâmica é válida para as emoções
associadas ao drama edipiano e a todo o desenvolvimento da libido infantil.
Tudo isso teve que ser expurgado. Dizer, porém, que estava ausente seria
negar as evidências empíricas obtidas na análise.
Vários tipos de mecanismos podem ser identificados na defesa contra os
primeiros sentimentos de abandono. Além da negação pura e simples, existe
a inversão (“Estou-me acabando com toda essa constante responsabilidade,
porque os outros precisam incessantemente de mim”), a transformação do
sofrimento passivo numa conduta ativa (“No momento em que sinto que
sou essencial para uma mulher, tenho que deixá-la”), a projeção em outros
objetos e a introjeção da ameaça de perda do amor (“Se eu for sempre bom
e agir segundo as normas, não correrei riscos; sinto constantemente que as
exigências são excessivas, mas não posso mudar isso; devo realizar sempre
mais do que os outros”). A intelectualização é muito frequente, pois se trata
de um mecanismo de defesa de grande confiabilidade.
Todos esses mecanismos de defesa são acompanhados da repressão da
situação original e das emoções que a ela pertencem, que só podem ser
trazidas de volta à tona depois de anos de análise.
A acomodação às necessidades dos pais costuma levar (mas não sempre) a
uma “personalidade do tipo como se” (Winnicott descreveu-a como o “falso
self’). Essa pessoa desenvolve-se de modo a revelar apenas o que é
esperado dela e funde-se tão completamente com o que revela que - antes
de iniciar a análise - dificilmente suspeitaria quanto existe de si mesma por
trás dessa “visão mascarada de sua pessoa”.3 Ela não consegue desenvolver
e diferenciar seu “verdadeiro Self”, porque é incapaz de vivê-lo. Este
permanece num “estado de incomunicação”, segundo a expressão de
Winnicott. É compreensível que tais pacientes se queixem de uma sensação
de vazio, futilidade ou desterro, pois esse vazio é real. Um processo de
esvaziamento, empobrecimento e morte parcial de seu potencial aconteceu
de fato quando tudo que era vivo e espontâneo dentro de si foi eliminado.
Na infância, essas pessoas muitas vezes têm sonhos nos quais se vivenciam
como parcialmente mortas. Gostaria agora de dar três exemplos:
Meus irmãos menores estão de pé numa ponte e lançam uma caixa na água.
Eu sei que estou deitada dentro da caixa, morta; apesar disso, ainda ouço
meu coração batendo. Neste momento eu sempre desperto (sonho que se
repete).
Esse sonho combina a agressão inconsciente (inveja e ciúme) contra os
irmãos menores, para quem a paciente sempre fora uma "mãe” atenciosa,
com a “morte” de seus próprios sentimentos, desejos e exigências, por meio
de formação reativa. Um outro paciente sonhou o seguinte:
Vejo uma extensa campina e nela há um caixão branco. Receio que minha
mãe esteja dentro dele, mas levanto a tampa e, felizmente, não é minha
mãe, sou eu.
Se esse paciente, quando criança, tivesse sido capaz de manifestar sua
decepção com a mãe — vivenciando sua fúria, sua raiva — poderia ter
ficado vivo. Mas isso teria desencadeado a perda do amor materno e, para
uma criança, isso é o mesmo que a perda do objeto e a morte. Assim,
“matou” sua raiva e, com ela, uma parte de si mesmo, para poder preservar
seu objeto de self, sua mãe. Uma menina costumava sonhar:
Estou deitada na minha cama. Estou morta. Meus pais falam e olham para
mim, mas não se dão conta de que estou morta.
As dificuldades inerentes ao processo de vivenciar e desenvolver as
próprias emoções provocam a permanência do vínculo, que impede a
individuação, algo em que ambas as partes têm interesse. Os pais encontram
no “falso self” de seu filho a confirmação que estavam buscando, um
substituto de suas próprias estruturas ausentes. O filho, incapaz de
consolidar suas próprias estruturas, depende dos pais primeiro
conscientemente e depois inconscientemente (através do introjeto). Não
consegue confiar nas suas próprias emoções, pois não chegou a vivenciá-las
por meio da tentativa e erro, não tem noção de suas reais necessidades, e
está alienado de si mesmo no mais alto grau. Em tais circunstâncias, não
consegue separar-se dos pais e, mesmo quando adulto, continua a depender
da afirmação do parceiro, ou de algum grupo, ou, especialmente, de seus
próprios filhos. Os herdeiros dos pais são os introjetos, dos quais o
“verdadeiro Self’ deve ser mantido oculto; dessa forma, a solidão no lar de
origem é posteriormente seguida de isolamento no self. A catexe narcisista
do filho pela mãe não exclui a devoção emocional. Pelo contrário, ela ama o
filho, como seu objeto de self, excessivamente, embora não da maneira
como ele necessita, e sempre com a condição de que ele apresente seu
“falso self”. Isso não constitui obstáculo ao desenvolvimento das
capacidades intelectuais, mas serve de empecilho ao desabrochar de uma
vida emocional autêntica.
Em busca do verdadeiro Self
Como pode a psicanálise ajudar nesse caso? A harmonia retratada em
Kathchen von Hollbronn (a heroína romântica de Heinrich von Kleist, no
drama homônimo de 1810) provavelmente só é possível na fantasia, e é
especialmente compreensível que decorra do anelo interior de uma pessoa
narcisisticamente atormentada, como o foi Kleist. A simplicidade do
Falstaff de Shakespeare - de quem se diz que Freud comentou que
representava a tristeza de um narcisismo saudável — não é nem possível
nem desejável para tais pacientes. O paraíso da harmonia pré-ambivalente,
pelo qual tantos pacientes esperam, é inatingível. Mas a vivência da
verdade pessoal, e o conhecimento pós-ambivalente da mesma, possibilitam
regressar ao mundo dos próprios sentimentos num nível adulto, sem
paraíso, mas com a capacidade de sentir a perda.
Um momento decisivo na análise é aquele em que o paciente com distúrbio
narcisista chega à introvisão emocional de que todo o amor que conquistou
com tanto esforço e negação de si mesmo não lhe era destinado por ele ser
quem realmente era, que a admiração de sua beleza e de seus feitos dirigia-
se à sua beleza e aos seus feitos, e não a ele próprio. Na análise, a criança
pequenina e solitária que está escondida por trás de suas realizações acorda
e pergunta: “O que teria acontecido se eu tivesse aparecido na sua frente
feia, ruim, zangada, ciumenta, preguiçosa, suja, malcheirosa? Onde iria
parar o seu amor? E eu fui todas essas coisas, também. Será que isso
significa que não era realmente a mim que você amava, mas apenas àquilo
que eu fingia ser? A criança bem-comportada, confiável, empática,
compreensiva, conveniente, que nunca foi criança de verdade? O que
aconteceu com a minha infância? Será que ela não me foi roubada? Nunca
poderei voltar a ela. Nunca poderei encontrar substituto para ela. Desde o
começo fui um pequeno adulto. As minhas habilidades, será que
simplesmente foram malversadas?”
Essas indagações são acompanhadas de muito luto e dor, mas o resultado é
sempre o estabelecimento de uma nova autoridade no analisando (como
uma herança da mãe que nunca existiu), uma nova empatia com o seu
próprio destino, nascida do luto. Quanto a esse aspecto, um certo paciente
sonhou que matara uma criança havia trinta anos e que ninguém o ajudara a
salvá-la. (Trinta anos antes, precisamente na fase edipiana, os que viviam
com ele notaram que essa criança se tornou totalmente reservada, educada e
boazinha, deixando de manifestar qualquer reação emocional.)
Agora esse paciente não brinca mais com as manifestações do seu Self, não
ri nem zomba mais delas, embora inconscientemente as ignore ou
desconsidere do mesmo modo sutil com que seus pais lidavam com ele,
quando criança, na época em que não tinha palavras para expressar suas
necessidades. Serão então revividas também fantasias de grandeza, que
tinham sido menosprezadas e, por isso, cindidas. Agora podemos ver a
relação entre essas e as necessidades frustradas e reprimidas de atenção,
respeito, compreensão, sintonia e espelhamento. No centro dessas fantasias,
sempre existe um desejo que o paciente nunca pôde aceitar antes. Por
exemplo: estou no centro, meus pais estão prestando atenção a mim e
ignorando seus próprios desejos (fantasia: sou a princesa servida por
escravos); meus pais compreendem quando tento expressar os meus
sentimentos e não riem de mim (fantasia: sou uma artista famosa e todos me
levam a sério, mesmo os que não me compreendem); meus pais são bem-
dotados quanto a talentos e coragem e não dependem dos meus resultados,
não precisam do meu conforto e nem do meu sorriso (eles são o rei e a
rainha). Isso significaria para uma criança: posso ficar triste ou feliz sempre
que alguma coisa me deixar triste ou feliz; não preciso ficar com uma cara
sorridente, para o sossego de quem quer que seja, e não preciso reprimir o
meu desconforto, nem a minha ansiedade, para satisfazer as necessidades de
mais ninguém. Posso sentir raiva, e ninguém vai morrer nem ficar com dor
de cabeça por causa disso. Posso ficar furiosa e amassar as coisas sem
perder meus pais. Nas palavras de D. W. Winnicott: “Posso destruir o objeto
e ainda assim sobreviver.”4
Uma vez que essas fantasias grandiosas (em geral acompanhadas por
fenômenos obsessivos ou perversos) foram vivenciadas e compreendidas
com a forma alienada daquelas necessidades reais e legítimas, a cisão pode
ser superada e pode ocorrer a integração. Qual é o curso cronológico?
1. Na maioria dos casos, não é difícil indicar ao paciente, no início da
análise, de que maneira ele tem enfrentado seus sentimentos e necessidades,
e que essa estratégia foi para ele uma questão de sobrevivência. É um
grande alívio para ele que as coisas que estava acostumado a sufocar
possam ser reconhecidas e levadas a sério. O psicanalista pode usar o
material que o paciente apresenta para demonstrar-lhe como ele encara seus
sentimentos com ridículo e ironia, como tenta persuadir-se de que não
existem, como os menospreza; além disso, ou não toma em absoluto
consciência deles, ou o faz apenas muitos dias depois, quando já passaram.
Aos poucos, o próprio paciente percebe como é forçado a ir em busca de
distração quando está perturbado, transtornado ou triste. (Quando a mãe de
um menino de seis anos morreu sua tia lhe disse: “Você precisa ter
coragem. Não chore. Agora vá para o seu quarto brincar direitinho.”) Ainda
existem muitas situações nas quais ele se vê como os outros o veem,
constantemente se perguntando qual é a impressão que está causando, e
como deveria estar reagindo, ou quais sentimentos deveria estar tendo. Mas,
no geral, sente-se muito mais livre do que no período inicial e, graças à
atuação do analista como seu ego auxiliar, ele pode ter mais consciência de
si mesmo quando seus sentimentos imediatos são vivenciados dentro da
sessão e levados a sério. Ele também está muito grato por essa
possibilidade.
2. Isso, sem dúvida, irá mudar. Além desta primeira função, que
permanecerá por um longo tempo, o analista deve assumir uma segunda,
assim que a neurose de transferência se tiver desenvolvido: a função de
figura transferencial. Vêm então à superfície sentimentos de vários períodos
da infância. Esse é o estágio mais difícil da análise, aquele em que há maior
atuação. O paciente começa a dar voz a si mesmo e rompe com suas
atitudes coniventes anteriores, mas, em virtude de suas primeiras
experiências, não consegue acreditar que isso seja possível sem um perigo
mortal. A compulsão à repetição faz com que provoque situações nas quais
seu medo da perda do objeto, da rejeição e do isolamento tenha base na
realidade presente, situações às quais arrasta o analista consigo (como mãe
rejeitadora ou exigente, por exemplo), para que mais tarde possa gozar o
alívio de ter corrido o risco e de ter sido verdadeiro consigo mesmo. Isso
pode começar de maneira totalmente inofensiva. O paciente é surpreendido
por sentimentos que de outra maneira não teria reconhecido, mas agora é
tarde demais: a conscientização de seus próprios impulsos já foi despertada
e não há como retroceder. Agora o analisando deve (e tem a permissão
para!) vivenciar-se de uma maneira que nunca antes julgara ser possível.
Embora esse paciente sempre houvesse desprezado a sovinice, de repente
percebe-se reclamando dos dois minutos que perdera de sua sessão por
causa de um telefonema. Embora antes nunca tivesse feito exigências aos
outros, agora fica furioso porque sua analista vai sair de férias. Ou fica
aborrecido por ver outras pessoas na sala de espera do consultório. O que
pode ser isso? Certamente não é ciúme. Essa é uma emoção que ele não
consegue identificar! Não obstante... “O que estão fazendo aqui? Há outras
pessoas além de mim vindo aqui?” Ele antes não se dera conta disso. A
princípio é mortificador verificar que ele não é só bom, compreensivo,
tolerante, controlado e, acima de tudo, adulto, pois essa sempre tinha sido a
base de seu respeito por si próprio. Uma outra mortificação ainda mais
pesada é acrescida à primeira quando este analisando descobre os introjetos
em si mesmo, e que ele tem sido prisioneiro deles, pois sua raiva, suas
exigências e sua avareza não aparecem, de início, numa forma adulta e
dócil, mas na forma infantil-arcaica em que foram reprimidos. O paciente
fica horrorizado quando se dá conta de que é capaz de gritar de raiva da
mesma forma que tanto odiava em seu pai, ou que, ainda ontem,
interrompeu e controlou seu filhó “praticamente como minha mãe fazia!”
Essa revivência dos introjetos, o aprender a chegar a um acordo com eles,
com a ajuda da transferência, forma a maior parte da análise. O que não
pode ser recordado é inconscientemente reencenado e, dessa forma,
indiretamente descoberto. Quanto mais capaz ele for de admitir e vivenciar
esses sentimentos iniciais, mais forte e mais coerente se sentirá. Isso, por
sua vez, permite-lhe expor-se a emoções que brotam de sua mais tenra
infância, e vivenciar a impotência e a ambivalência desse período.
Existe uma grande diferença entre ter sentimentos ambivalentes por alguém
na idade adulta e, depois de elaborar boa parte da própria história pregressa,
repentinamente perceber-se sentindo-se como um menino de dois anos que
está sendo alimentado pela empregada na cozinha e pensando com
desespero: “Por que minha mãe sai todas as noites? Por que ela não gosta
de ficar comigo? O que há de errado comigo para ela preferir sempre estar
com outras pessoas? O que posso fazer para que ela fique em casa? Não
chore, simplesmente não chore.” A criança não poderia ter pensado nestes
termos naquela época, mas na sessão, no divã, esse homem era ao mesmo
tempo adulto e um bebê de dois anos, e podia chorar com toda a amargura.
Não era apenas um choro catártico; era, antes, a integração de seu anseio
original pela mãe, que até então sempre tinha negado. Nas semanas
subsequentes, o paciente atravessou todos os tormentos de sua ambivalência
pela mãe, que era uma pediatra bem-sucedida. Sua imagem, anteriormente
“congelada”, derreteu e mostrou uma outra, a de uma mulher com aspectos
adoráveis, mas que não tinha sido capaz de oferecer a esse filho a
necessária continuidade do relacionamento entre ambos. “Eu odiava aqueles
bestas que estavam sempre doentes e tirando a minha mãe de mim. Eu
odiava a minha mãe porque ela preferia estar com eles em vez de estar
comigo.” Na transferência, as tendências ao apego e o sentimento de
impotência vinham misturados a uma raiva de há muito acumulada contra o
objeto de amor que não lhe tinha estado disponível. Como decorrência, o
paciente poderia libertar-se de uma perversão que o havia atormentado por
muito tempo; a questão agora estava fácil de compreender. Seus
relacionamentos com as mulheres perderam então suas características
acentuadas de catexe narcisista, e sua compulsão de primeiro conquistar
para depois abandonar desapareceu completamente.
Neste estágio da análise, o paciente vivenciou de novo seus sentimentos
iniciais de impotência, de raiva e de estar à mercê do objeto amado, de uma
maneira que ele não poderia ter antes lembrado. A pessoa só pode lembrar-
se daquilo que vivenciou de forma consciente. Mas o mundo emocional de
uma criança com perturbação narcisista é em si mesmo o resultado de uma
seleção que eliminou os elementos mais importantes. Esses primeiros
sentimentos, juntamente com a dor de não ser capaz de entender o que está
acontecendo, que faz parte do período mais inicial da infância, são então
conscientemente vivenciados pela primeira vez, durante a análise.
O verdadeiro Self permaneceu num “estado de incomunicação”, como diz
Winnicott, porque teve que se proteger. O paciente nunca precisa ocultar
nada com tanto cuidado, tão profundamente e por tanto tempo quanto seu
verdadeiro Self. Assim, parece um milagre ver, a cada vez, como tanta
individualidade conseguiu sobreviver por trás de dissimulação, negação e
autoalienação, e como pode reaparecer assim que o trabalho do luto traz a
liberdade em relação aos introjetos. Não obstante, seria errado interpretar
que as palavras de Winnicott querem dizer que existe um Self plenamente
desenvolvido escondido atrás do falso self. Se fosse assim, não haveria a
perturbação narcisista, mas uma autoproteção consciente. O ponto
importante é que a criança não sabe o que está escondendo. Um paciente
expressou-se da seguinte maneira:
Eu vivia numa casa de vidro dentro da qual minha mãe podia ver o que
quisesse, a qualquer momento. Numa casa de vidro, porém, você não pode
esconder nada sem se trair, a não ser enterrando-se no chão. E aí nem você
mesmo vai conseguir vê-lo.
O adulto só pode estar plenamente consciente de seus sentimentos se tiver
internalizado um objeto de self afetuoso e empático. As pessoas com
perturbações narcisistas não têm esse objeto. Portanto, nunca são tomadas
de assalto por emoções inesperadas e só irão admitir os sentimentos aceitos
e aprovados pelo censor interno, que é o herdeiro dos pais. Depressão e
uma sensação de vazio interior é o preço que devem pagar por esse tipo de
controle. Retomando o conceito de Winnicott, o verdadeiro Self não pode
comunicar-se porque permaneceu inconsciente e, portanto, não se
desenvolveu, em sua prisão interior. O pelotão de guardas da prisão não
incentiva o desenvolvimento jovial. Somente depois de ter sido liberado na
análise é que o Self começa a se articular, a crescer e a desenvolver sua
criatividade. Onde antes só tinha havido um vazio ameaçador ou fantasias
grandiosas igualmente ameaçadoras, existe agora o desabrochar de uma
inesperada abundância de vitalidade. Não se trata de um regresso ao lar,
porque esse lar nunca existiu. É a descoberta do lar.
3. A fase da separação começa quando o analisando adquiriu, numa
extensão confiável, a capacidade de sentir a perda e pode enfrentar os
sentimentos de sua infância sem a necessidade constante do analista.
15. Puer aeternus
JEFFREY SATINOVER
Este trabalho de Jeffrey Satinover pega o fio da meada no ponto em que é
deixado pelo ensaio de von Franz. Ele começa localizando especificamente
as origens da psicologia do puer no início do desenvolvimento da criança,
demonstrando de maneira direta os elementos comuns entre a psicologia do
puer aeternus e as diversas dificuldades narcisistas. Na qualidade de
psiquiatra e analista junguiano, Satinover situa as fontes do dilema do puer
em ambos os extremos do tratamento dispensado pelos pais - negligência
ou indulgência excessiva - na fase das primeiras vivências do Self
emergente do bebê. Os pais dos pueri aeterni com comprometimento
narcisista não conseguem reconhecer as “necessidades gêmeas da criança:
a aceitação de sua grandeza e de sua natureza especial, ainda que
irrealistas, e as moderadas frustrações da realidade, ainda que dolorosas”.
Ele sugere que os pais que negam aos filhos tanto as saudáveis inflações
como as dores corriqueiras da realidade são portadores de um dilema não-
resolvido do tipo puer em si mesmos, e por isso se veem por demais
consumidos pelas reações às necessidades de sua própria criança interior
para poderem responder às do Self de seu filhó. Este trabalho é um excerto
de uma discussão mais extensa originalmente publicada no periódico
Quadrant, em 1980.
Que eventos levam ao puer? Para responder, precisamos antes esboçar um
quadro aproximado de como o Self se constela e de quais são as
consequências dessa peculiar constelação para a personalidade emergente.
A constelação do Self na infância tem um efeito definido sobre o ego,
semelhante ao de experiências posteriores e mais conscientes do Self: ela
catalisa a coalizão dos fragmentos do ego para comporem uma unidade
funcional. Essa reunião é marcada por um funcionamento grandemente
melhorado, da mesma forma como mais tarde, na vida, uma perda do senso
de identidade é acompanhada por uma grave diminuição nas capacidades do
ego, enquanto ele regressa a um estado análogo ao que prevalece na
infância, antes do aparecimento do Self.
Um exemplo: uma mulher lembrava-se de ter acordado, numa certa tarde,
depois de uma soneca, quando estava com dois anos e meio de idade,
percebendo quem ela era e com a súbita noção de que ela podia decidir
sozinha se iria ou não cochilar um pouco. Chamou os pais ao quarto e
anunciou que, daquele dia em diante, não iria mais dormir à tarde.
Essa primeira e abrupta vivência da identidade é marcada por sentimentos
específicos, dotados de uma certa peculiaridade e importância, até mesmo
de grandeza ou semelhança a Deus, de onisciência e onipotência. Esses
sentimentos sugerem que, de fato, se trata do Self, que, logo abaixo da
superfície, se constelou.
No cerne da identidade adulta posterior, portanto, está aquilo que
poderíamos chamar de uma inflação necessária. A criança, como parte da
constelação normal do Self, precisa vivenciar um grandioso alargamento de
sua noção de quem ela é. Assim, a criança de dois anos e meio pode
convocar os pais a virem até o seu quarto, com a voz do Self, e afirmar
autoridade diante deles.
É desse modo que o Self é vivenciado na infância. O “Self da infância”,
como irei referir-me a esse dinamismo daqui por diante, permanece no
cerne das futuras vivências de identidade, proporcionando, mais do que
toda argumentação racional e todo relativismo diante da realidade social e
física, uma profunda convicção da própria importância e valor da pessoa.
Essa primeira vivência do Self também constitui as bases de uma posterior
e salutar introversão. Quer dizer, a criança que tiver experimentado
profundamente essa sensação de unidade e grandeza sabe que, nos
momentos de frustração e fracasso, sempre pode olhar para dentro de si
mesma e ter contato com seu próprio valor pessoal. Esse ato de voltar-se
para dentro de si, aprendendo, portanto, a depender de si mesmo, torna-se
um hábito.
No curso normal do desenvolvimento, o efeito do Self da infância sobre a
identidade da criança passa por muitas modificações. No momento em que
o mesmo é constelado, ela se vivencia como alguém muito mais potente do
que de fato é. É nessa época da infância que a imaginação atinge o auge, em
que a criança pode brincar de rei, rainha, guerreiro, construtor, pai/mãe,
explorador, vilão, tudo com a mesma facilidade. É como se, na imaginação,
toda a gama do que significa ser humano - a imagem do Antropos -
estivesse à disposição da criança. Nenhuma capacidade humana é grande ou
aviltante demais para ser incorporada pela vida de fantasia e brincadeiras.
No entanto, a criança se defronta com a tarefa de adaptar-se cada vez mais à
realidade mundana e, para isso, suas capacidades encontram-se tão
subdesenvolvidas quanto as habilidades de imaginação do Self da infância
são ricas.
Quando a criança é impelida rumo à realidade pelas suas fantasias
grandiosas, o resultado inevitável é a frustração. Essa frustração é uma
coisa boa e necessária. Se a criança a for vivenciando lentamente, parte por
parte, as fantasias sobre quem ela é, geradas pelo Self, irão sendo
lentamente modificadas e diminuirão aos poucos. Ao mesmo tempo, as
capacidades e funções do ego, por meio da prática, irão crescendo e
tornando-se mais eficientes. Mais tarde, na adolescência, será idealmente
alcançado um ponto em que as idealizações de si mesma e a pressão para a
vivência da grandiosidade exercida pelo Self estarão reduzidas ao ponto de
corresponderem às suas habilidades, cada vez maiores.
Nessa fase, pode começar um processo novo, adulto e mais extrovertido. O
jovem adulto ainda tem uma profunda noção de suas peculiaridades e de seu
valor, heranças do Self da infância, mas suas fantasias sobre quem ele é
estão mais limitadas. O sentido de pessoa especial empresta às suas metas e
desejos um sentido vagamente consciente de numinosidade, tornando-os
consistentemente dignos de serem perseguidos. Agora, em lugar da
frustração vivenciada antes, quando suas fantasias eram maiores do que
suas capacidades, ele vivencia a validação de sua autoimagem. Agora, suas
ideias a respeito de quem ele é, de seus talentos e limitações, correspondem
às suas verdadeiras habilidades. Ele descobre que é de fato quem esperava
vir a ser e conquista um renovado senso de satisfação com essa constatação.
Desse modo, alcança e reforça uma identidade estável.
Existem duas maneiras pelas quais esse processo pode dar errado e produzir
o puer, mais tarde na vida. Primeira: a constelação do Self pode ser
consistentemente obstruída; segunda: depois de constelado, o Self pode ser
protegido das limitações da realidade que modificam e reduzem a sensação
grandiosa de identidade que ele produz.
A psicologia do puer no homem é às vezes atribuída (von Franz, Puer
aeternus) às primeiras vivências de uma mãe que ataca a masculinidade
emergente em seu filho. Uma visão psicanalítica clássica do mesmo
desenvolvimento atribui-lo-ia a excessivos temores de castração pelo pai
(medo que é proporcional ao apego à mãe). Cada uma dessas visões localiza
a origem da psicologia do puer igualmente entre os três e os cinco anos
(mais tarde do que eu considero), atribuindo-lhe um caráter sexual e
explicando-a de uma maneira que faz com que se adapte mais facilmente à
psicologia masculina. O puer, no entanto, pode ser encontrado com tanta
frequência em homens como em mulheres. Isso, além do fato de que o puer,
seja qual for o sexo, tende a uma identidade sexual mais ou menos
indistinta, sugere que a origem do puer é anterior, remontando a uma fase
que antecede a diferenciação da identidade segundo parâmetros sexuais.
Eu diria que o puer pode resultar de um ambiente familiar que, numa
criança entre as idades de dezoito meses e dois anos, aproximadamente,
interrompe regularmente toda manifestação de assertividade, de ação ou de
fantasias que contenham os sinais distintivos não da masculinidade, mas de
ser alguém especial, de valor. Essa espécie de assertividade está igualmente
presente, em determinadas idades, tanto nos meninos quanto nas meninas.
Comprometê-la irá gerar perturbações futuras de identidade sobre as quais
se acumularão problemas com a masculinidade e a feminilidade. Essa
espécie de comprometimento que tenho em mente é semelhante ao hábito
que todos nós temos, em maior ou menor grau, de atacar as inflações que
percebemos nos outros (aliás, a origem desse hábito está nas nossas
próprias vivências iniciais, quando fizeram isso conosco).
O comprometimento do Self da infância quando o mesmo se constela irá
fazer a criança retornar vezes seguidas a um estado precedente que
chamamos de fragmentação, a menos que ela possa encontrar um refúgio
em que sim inflação seja aceita — um avô, um outro amigo adulto, um
terapeuta.
Se o comprometimento não for neutralizado, a criança irá depois
internalizar a desaprovação dos pais expressa ao seu Self de infância, e
então a própria criança assumirá mais tarde o papel de arruinar nas bases
suas autoidealizações. Caso este processo se mantenha até a idade adulta,
esta crítica interna emergirá sempre que brotar uma nova ideia, um
entusiasmo, um espírito de esperança ou uma fantasia de autogratificação.
Toda resposta promissora à questão “Quem sou eu?” será detida com um
“Oh, é só uma inflação”. Na criança, como parte do impulso inato de
desenvolvimento, o Self tentará constelar-se. Assim, instala-se um círculo
vicioso interno, e cada constelação do Self, acompanhada de uma onda de
fantasias grandiosas, é seguida por uma outra onda de autocríticas e
refragmentação.
Essa alternância cíclica entre estados grandiosos, nos quais o Self é
constelado, e estados de desespero, nos quais o Self é fragmentado, é um
aspecto típico da psicologia do puer e é a fonte da exótica sensibilidade que
ele manifesta. Se ele mesmo não desfecha o golpe que acelera a
fragmentação, a menor crítica de uma outra pessoa o fará.
A persistência de um estado de fragmentação, embora às vezes induzida por
eventos externos, não depende dos mesmos. O Self irá constelar-se de novo,
em seu próprio ritmo. Assim, desculpas e explicações razoáveis, que
agradam ao ego, surtirão pouco efeito. A pessoa que sofre dessa espécie de
fragmentação permanecerá deprimida, abatida ou zangada,
independentemente das tentativas de desfazer o dano, muitas vezes para o
desespero, frustração e culpa dos que parecem tê-lo infligido.
Quando se reconstela, no puer, o Self está em sua forma infantil e, por isso,
encontra-se especialmente propenso à refragmentação. Como não foi
amoldado por uma imersão na realidade, reage tal e qual na criança. Essa
sensibilidade é a causa da semelhança essencial entre os filhos de pais que
não foram suficientemente solidários com eles e os de pais que se
excederam em suas demonstrações de apoio. Nestes últimos, o Self tem a
permissão para se constelar, mas permanece alheio às frustrações da vida
real, que tornam a identidade menos grandiosa, mas mais coesa. Neste caso,
as fantasias grandiosas não só são aceitas como são incentivadas. Os pais
superestimulam na criança sua noção de ser alguém especial, pressionando-
a a exibir comportamento e a realizar coisas que não são próprios de sua
idade. A precocidade torna-se o bem que ela troca por amor e admiração.
Essa criança pode, na realidade, ficar viciada no Self de sua infância. Mais
tarde, dedicará boa parte de sua vida a ir em busca de experiências que
mantenham ou reestabeleçam a constelação grandiosa, enquanto evitam as
frustrações que diminuem sua sensação de ser alguém especial.
O puer, decorrente de ambos os tipos de educação, impressiona os outros
como pessoa narcisista: a introversão, em ambos, é dedicada a um esforço
incessante para manter a vivência do Self da infância, e cada um desses
tipos escolherá as circunstâncias externas — drogas, romances passageiros,
atividades mentais ou físicas intensas — que promovam essa vivência. O
puer de ambas as origens parece extraordinariamente sensível e propenso a
mudanças repentinas e radicais em sua autoestima.
Existe uma outra fonte que também pode gerar vários graus de psicologia
d o puer e, por isso, no curso da autoinvestigação, é possível efetuar uma
busca relativamente infrutífera das raízes da própria neurose, localizando-as
no relacionamento da pessoa com seus pais. Por outro lado, a fantasia de ser
dotado é uma das mais frequentes autodefinições produzidas pelo Self da
infância, que leva à mui conveniente redefinição das próprias imperfeições
como o preço necessário da genialidade. Uma vez que este último problema
pode ocorrer tão facilmente numa pessoa que seja um autêntico gênio como
numa outra menos talentosa, a questão é confusa. É importante distinguir
entre uma avaliação objetiva da própria capacidade e a necessidade de
considerar-se especialmente capaz.
O talento produz uma psicologia do puer mediante o seguinte processo: tal
como no indivíduo pouco dotado, o Self da infância, constelado, produz
fantasias de onipotência e grandiosidade na criança talentosa. Esta, porém,
depara-se com muito menos frustrações na tentativa de concretizar suas
fantasias, em comparação com a criança não-talentosa. A título de exemplo,
portanto, a maneira mágica, infantil de tocar um instrumento com pouca ou
nenhuma prática é, para a criança com talento musical, praticamente
possível. A diversidade multiforme do Self, o Antropos, é mais do que
apenas uma rica inflação para a criança multidotada. De fato, esta se
aproxima da capacidade de fazer praticamente tudo.
Em decorrência disso, a criança talentosa encontra menos pressão para
modificar sua autoimagem grandiosa do que ocorre com a criança não-
dotada. Suas capacidades correspondem às suas fantasias e sua visão de si
mesma se confirma, não apenas no final da adolescência, mas desde muito
cedo, quando ela ainda conserva boa parte de seu esplendor original. Seus
pais, estupefatos e orgulhosos, refletem-lhe de volta uma verdadeira visão
de sua pessoa, e não a inflação artificial dos pais exageradamente solidários
e solícitos.
Dessa maneira, o desenvolvimento da criança talentosa assemelha-se ao da
criança criada mim ambiente com excesso de apoio. Ela é presa do traço
essencial do puer, ou seja, de uma identidade instável, porque se apoia num
Self menos modificado do que o da criança normal, e, consequentemente,
seu senso de identidade é mais lábil. Naturalmente, a criança dotada furta-
se à fragmentação e mantém-se no alto da maneira que melhor conhece:
pondo seus talentos em pratica. Portanto, é nessa área que ela mostra maior
sensibilidade às críticas, e é por isso que, muitas vezes, a crítica da
produção de uma pessoa criativa acelera a fragmentação de sua identidade.
A psicologia do puer no adulto
Alguns traços característicos da síndrome do puer podem relacionar-se ao
modelo precedente. O elemento mais geral deste modelo é que, no puer, a
noção de identidade está intimamente vinculada aos ciclos do Self, e uma
porção relativamente pequena da mesma deriva das conquistas do ego no
mundo físico e social, ou presta-se a uma verificação por meio delas.
Existem duas amplas categorias que podemos examinar deste ponto de
vista. Uma é a área das metas e conquistas; a outra é a área dos
relacionamentos pessoais. Em ambas, existem duas fontes básicas de
características do puer. algumas dessas características decorrem diretamente
dos estados de fragmentação e inflação, enquanto outras procedem de
defesas contra a vivência de um ou outro estado.
Na área das metas e conquistas, podemos examinar duas coisas: os
problemas na estipulação e obtenção de metas realistas, e as fantasias de ser
alguém especial. Um traço característico do puer é a pressão das intensas e
recorrentes fantasias de grandeza. Essas fantasias são a tradução da
identidade na consciência e uma forma de definir a identidade com base no
Self da infância. Dependendo do grau de modificação pela experiência, as
fantasias correspondem mais ou menos à imagem pura do Self.
As fantasias mais comuns da atualidade podem ser organizadas dentro de
uma escala de grandiosidade decrescente: 1) fantasias messiânicas em que a
identidade pessoal é equivalente ao Self; 2) fantasias de ser espiritualmente
escolhido, ou de ter uma elevada realização espiritual; 3) fantasias de ser
um gênio, de ser dotado e especialmente criativo; 4) o desejo de obter uma
grande fama ou muito poder, 5) o desejo de ser muito rico; 6) o desejo de
obter sucesso profissional.
Tendo em mente que o cerne de cada fantasia permanece sendo o Self,
vemos que, à medida que diminui a pressão exercida pelo Self da infância, e
aumentam as capacidades realistas, atinge-se um ponto em que as fantasias
se tornam realistas. Alcançar esse ponto é algo que, evidentemente, depende
das capacidades reais da pessoa. No decurso de uma análise bem-sucedida,
as fantasias de grandeza apresentarão um decréscimo.
Frequentemente se ignora que essas fantasias não são apenas gratificantes,
mas também dolorosas. O puer vivencia essas fantasias como um apelo à
ação e, de acordo com o grau em que consegue avaliar genuinamente a
realidade e suas limitações, o fracasso em corresponder ao chamado será
vivido como uma reprovação interna que, em si mesma, leva de novo à
fragmentação e à sensação de ausência de valor pessoal. Ele muitas vezes
“sabe” que suas fantasias não são realistas, mas, como puer, é incapaz de
sentir satisfação com outras coisas. Assim, ou se vê compelido a esforços
cada vez maiores (de natureza geralmente exibicionista, com resultados
amplos e imediatos), ou aliena a pressão de maneira radical e perde, assim,
toda a motivação (“fica derrotado”). Ele nunca obtém uma verdadeira
satisfação das conquistas que efetua, pois estas jamais correspondem às
exigências de seu Self da infância.
Quando os talentos dessas pessoas são suficientes, é comum que tenham
uma ascensão meteórica numa profissão que as mantém perante o reflexo da
aprovação do público: é isso que explica a atual abundância de
superestrelas e o esforço desesperado pela fama, por “ser alguém”. É
comum o puer fantasiar ou sonhar que está voando. Considero que este
traço é a representação intrapsíquica essencial da pressão de ser alguém
especial e da pressão da grandiosidade, exercidas pelo Self da infância.
Esses sonhos e fantasias (e, num plano mais geral, a experiência ou a
representação simbólica de “estar no alto”) são, com frequência,
interpretados como sinal de que a pessoa está fora de contato com a
realidade. Ou então são interpretados como indícios de uma ascensão
espiritual. Se com o termo “realidade” queremos dizer o mundo externo e
suas exigências, essa interpretação às vezes é correta, mas apenas
secundariamente. Preferencialmente, o tema do voo representa a maneira
como a sensação de ser alguém especial leva a pessoa para além de suas
limitações. O sonho ancestral do homem de voar sempre foi a expressão
prototípica da ânsia de escapar às restrições da existência mundana. É
pertinente que esses sonhos tenham como fonte o Self. Da mesma maneira,
o tema do acidente é tão comum na fantasia do puer como o do voo. Os dois
tipos de sonho representam os estados polarizados do Self: a constelação e a
fragmentação.
No âmbito terapêutico, é crucial que o puer se familiarize com o modo
como estes dois estados estão entrelaçados, e isso percebendo e
compreendendo como atrás de cada vivência de estar no alto se encontra
uma sensação de desespero, assim como atrás de cada fase de depressão
está uma luta pela glória. Os sonhos costumam assinalar o aparecimento
dessa constatação. Por exemplo: “Sou erguido por uma gigantesca máquina
de lançar paraquedistas, mas estou sem o paraquedas. Quando chega ao
alto, deixa-me cair e eu me arrebento na terra. Então, a máquina me pega e
me levanta de novo. Isso acontece sem parar.”
Um elemento comum a este tipo de sonho é a natureza mecânica dos ciclos,
como neste exemplo. Isso corresponde a um traço introspectivo da
psicologia do puer que a pessoa ao menos parcialmente consciente de sua
natureza irá expressar: “Não posso impedir-me de subir, nem posso impedir
o desastre da queda que vem em seguida.” Como resultado disso, acusar
uma pessoa dessas de estar inflacionada, quando está, raramente surte um
efeito benéfico. Pelo contrário, exacerba a sensação subjacente de
frustração, isolamento e desproteção diante do que ela já sabe que é um
problema.
Devido à difusão de grupos ocultistas e espirituais de toda espécie, a
fantasia messiânica — ser um guru com maior ou menor número de
seguidores — tornou-se muito mais aceitável e corriqueira do que antes.
Essa ambição, assim como aquela, ligeiramente menor, de chegar à
iluminação perfeita, são comuns no puer e com muita frequência são postas
em ação de modo concreto. Por que isso acontece?
Mais uma vez, o fato raramente mencionado é que a grandiosidade da ideia
da conquista espiritual perfeita exerce um poderoso fascínio sobre o puer.
Ao assumir o papel de mestre ou discípulo, o puer adquire uma identidade
que contém em si a numinosidade do Self em sua forma concreta, menos
diluída. Além disso, a noção geral de que a elevação espiritual pode tirar a
pessoa da dimensão mundana, principalmente porque encontra apoio em
certas abordagens herméticas do espírito, alivia o Self da infância
constelado das frustrações cotidianas e preserva-o em sua forma original,
inalterada. A tenacidade com que o puer se apega a tais cultos decorre do
preço que ele teria que pagar pelo sacrifício desta conquista: a
fragmentação de sua identidade.
Em seu livro sobre o puer (ver o ensaio anterior), a dra. Marie-Louise von
Franz assinala que o puer muitas vezes se dedica a uma busca espiritual
daquela espécie típica do final da adolescência. Eu diria ainda que, no final
da adolescência, a busca espiritual muitas vezes declina de repente. Isso
acontece no ponto em que há uma maior correspondência entre a menor
pressão para ser alguém especial e as capacidades realistas cada vez
maiores. Pode-se constatar que a espiritualidade do adolescente em geral
exibe uma busca de identidade que não está sendo conscientemente
reconhecida como tal (embora, anos mais tarde, a pessoa possa entre
sorrisos admitir que, na verdade, era disso que se tratava). Quando a
identidade é encontrada, os interesses espirituais podem ser deixados de
lado com segurança. Vale o mesmo para a personalidade do puer mais
velho. Os interesses espirituais intensos geralmente mascaram a ausência de
identidade. Quando a identidade pessoal estiver bem forjada, a busca
espiritual de significado pode desaparecer.
É claro que nem sempre é esse o caso. Existem pessoas cujo verdadeiro
dom é o do espírito. Nestas, a resolução da estrutura do puer proverá uma
identidade pessoal formada em tomo de uma completa e realista orientação
rumo a questões espirituais prementes. Jung teria sido uma destas pessoas.
Mas a espiritualidade delas apresenta uma grande modificação em relação
àquele ideal gerado pelo Self da infância. Devido ao conflito com a
realidade, falta-lhes o gradiente de intensa grandiosidade, pessoal e
subliminar, que marca a espiritualidade do puer e, mais ainda, não se
sentem atraídas por sistemas perfeitos, fechados, com resultados garantidos.
Para essas pessoas, espírito e significado são sempre grandes questões em
aberto; elas são orientadas mais pela dúvida do que pela crença, mais pelo
que não conhecem do que pelo que conhecem. A identidade ausente
impossibilita ao puer e à puella manter essa espécie de abertura. Essa
ausência de certeza interior cria uma dependência narcisista daquilo que é
percebido como verdade externa.
Uma interessante questão, a propósito, é por que a psicologia junguiana
tanto atrai o puer, especialmente quando o próprio Jung concebeu que seu
trabalho dizia respeito principalmente a questões da segunda metade da
vida. Acredito que a resposta seja a seguinte: a psicologia junguiana
representa uma possibilidade de ter uma relação próxima com o Self e os
arquétipos, e é isso que o puer busca. No entanto, ele busca isso por
motivos diferentes e está interessado numa espécie de relação de
proximidade com o Self diferente daquela que interessava a Jung. Enquanto
Jung procurou encontrar uma relação objetiva entre o Self e um ego que
percebe uma identidade pessoal já estipulada (com “objetiva” quero dizer,
precisamente, como objeto do campo da consciência), o puer busca o Self
como sujeito, a fim de adquirir uma identidade pessoal. Jung e seus
primeiros alunos encontraram-se no caminho da individuação por uma
questão de necessidade. O puer busca a individuação por causa de seus
atrativos.
Uma outra fantasia relacionada ao desejo da individuação e comum no puer
hoje em dia é a de ser criativo. Como antes, quero fazer uma nítida
distinção entre a criatividade em si e a necessidade de se considerar
criativo, que pode estar presente tanto em pessoas criativas como nas que
não o são. A fantasia de ser criativo pertence ao Self constelado na infância.
Ser criativo nem sempre foi o sinal distintivo da identidade pessoal, como
passou a ser atualmente. Na Idade Média, boa parte do trabalho de mais alto
teor criativo era anônimo (como nos manuscritos iluminados dos monges),
ou coletivo (como nas grandes catedrais, que em geral exigiam três
gerações de pedreiros para serem concluídas). “Criatividade”, como o
próprio termo sugere, era prerrogativa de Deus. Portanto, no plano
psicológico, aparece agora como uma fantasia gerada pelo Self.
Durante a Renascença, a identificação das pessoas como criadoras floresceu
a ponto de termos tido o “Homem da Renascença” e a grande preocupação,
nessa época, com a catalogação dos sinais de genialidade. Os românticos,
retomando a Renascença, da mesma forma como a Renascença havia
retomado os gregos, disseminaram o culto ao gênio numa maior escala,
através dos poetas, que, como na frase de Shelley, são “os legisladores não-
reconhecidos da humanidade”. Nós, como herdeiros da tradição romântica,
e transformando-a num produto popular, exigimos hoje escrita criativa,
calçados criativos, casamentos criativos e divórcios criativos. O irônico é
que a fantasia de ser criativo pode ser um grande obstáculo a sê-lo de fato.
A pressão que essa fantasia exerce sobre o puer é muitas vezes o que inibe
ou enfraquece suas capacidades expressivas. E isso nos leva ao tópico mais
geral da ambição.
Apesar de suas grandes ambições, espirituais, criativas, de fama ou do que
quer que seja, muitos homens do tipo puer são descritos como pessoas
preguiçosas. “Preguiça” não é exatamente a palavra. É verdade que o puer
tem distúrbios específicos em relação ao trabalho, mas não acredito que
esses distúrbios decorram de uma indisposição para trabalhar. Quer dizer,
não são distúrbios do ego, ou da vontade. Na verdade, muitos homens do
tipo puer sabem muito bem que têm grandes ambições, mas percebem-se
incapazes de lutar por elas do modo adequado. A dolorosa tensão entre as
ambições e a incapacidade de concretizá-las é, segundo a minha
experiência, a queixa isolada que mais frequentemente aparece.
E alguns pueri são fanáticos pelo trabalho que não conseguem parar de
trabalhar, nem desfrutar dos benefícios de seus esforços. Essas pessoas
procuram a análise com menos frequência porque, por algum tempo, pelo
menos, obtêm uma satisfação suficiente da imagem de si mesmos como
trabalhadores incansáveis, o que dissimula seu vazio interior.
A incapacidade de trabalhar, associada à sua grande ambição, é uma fonte
de sofrimentos para muitos pueri. Estes frequentemente buscam a análise
depois de terem tentado trabalhar com afazeres criativos: são os que sofrem
do bloqueio do escritor, do pânico do palco ou, mais comumente, são
incapazes de completar sua tese do doutorado. Muitas vezes, envolvem-se
com o que parecem ser comportamentos deliberadamente autodestrutivos:
saem do curso no último semestre antes da formatura; não estudam para um
exame final ou para um teste de admissão profissional (embora tenham tido
excelente desempenho em todos os trabalhos anteriores ou satisfeito todas
as exigências); adiam tarefas importantes até o último momento, mesmo
que isso não lhes custe mais do que um telefonema. Adiam as etapas de um
projeto de larga escala a tal ponto que depois precisam fazer tudo com
máxima rapidez, garantindo dessa maneira uma produção impressionante,
mas de qualidade medíocre.
É muito comum que os pueri simplesmente não concluam seus projetos já
iniciados, seja parando inteiramente com o trabalho, ou refazendo o que já
estava pronto, de modo que não terminam nunca. Nestes e em outros casos
semelhantes, o problema pode ser atribuído às pressões exercidas pelo Self
constelado na infância. O problema é o medo do fracasso, e mais
especificamente, o medo de fracassar numa área em que, por definição, o
fracasso é garantido. O puer costuma admitir esse medo, constatando que
ele o paralisa ou o leva a desfazer o que já estava pronto. Isso ocorre com
mais facilidade nos casos de pânico do palco, em que o medo e a paralisia
são agudos, intensos e evidentes. Em projetos de longo prazo, como uma
tese, não ocorre com tanta frequência. Em todos os casos, o que está menos
acessível à consciência é o fato de que o projeto deve fracassar, seja qual
for o nível do êxito concreto. Isso advém do fato de nenhum sucesso ter
condições de corresponder à fantasia central do Self da infância.
Esse dinamismo central é o arquétipo da criança divina. O indivíduo
narcisisticamente preso a esta imagem para configurar sua identidade só
pode vivenciar uma satisfação que proceda de feitos concretos se essa
identidade atingir a grandiosidade de tal imagem arquetípica. Ele deve
conter as qualidades de grandeza, de absoluta singularidade, de ser o
melhor e, acima de qualquer outra coisa, deve ser prodigiosamente precoce.
Esta última qualidade explica a enorme fascinação dos prodígios infantis e
também explica por que até mesmo um grande sucesso não oferece
satisfação permanente para o puer. sendo adulto, nenhum resultado seu será
precoce, a menos que ele permaneça artificialmente pueril ou compare seus
feitos aos das pessoas idosas (donde decorre uma prematura busca da
sabedoria dos idosos).
O puer convive com uma vaga e constante sensação de ter fracassado, uma
vez que nunca corresponde a contento à exigência arquetípica. Projetando-
se em seu ambiente, enxerga, portanto, o mundo à sua volta como um outro
fracasso. O tempo da glória foi antes, na sua infância ou nos dias mais
juvenis de sua cultura. Nada no presente, seja o seu ou o da sociedade,
nenhum novo resultado pode jamais compensar o déficit e, por isso, o
passado se reveste de nostalgia. Essa atitude afeta intensamente a estética
d o puer, que se agrada de coisas triviais e antiguidades. O anseio
retrogressivo é menos um anseio pela mãe e pelo mundus imaginalis (o
mundo imaginal), como já explicamos de várias maneiras, do que pelo Self
e pela época da vida em que o Self ainda não havia sido contraposto à
realidade.
O início de um projeto é assinalado por fantasias de sua grandeza e
singularidade e, em particular, por fantasias sobre a grandeza e a
singularidade de seu criador. O projeto, desse modo, é encetado com uma
forte sensação de identidade, cuja fonte é o Self da infância reconstelado.
Mas, à medida que o projeto vai-se arrastando, o entusiasmo definha;
aproxima-se a sua conclusão e ele começa a parecer apenas mais um livro,
ou tese, ou peça musical, como milhares de outros. Com o advento dessa
percepção, a noção restabelecida de identidade começa a se fragmentar e a
depressão se reinstala. O projeto, ou é abandonado em benefício de algum
outro que reconstele o Self, ou a fragmentação é protelada por revisões
intermináveis, pautadas num conjunto extremamente elevado de
parâmetros.
Como alternativa, à medida que a conclusão vai se aproximando, os
métodos são planejados de modo a arrancar das garras de uma vitória banal
uma grandiosa derrota. Passar com nota mínima num teste de admissão sem
ter estudado nada resguarda mais a ideia de prodigalidade do que conseguir
um desempenho excelente como resultado de um esforço extenuante. A
pessoa prefere ser conhecida, e conhecer-se, como brilhante, mesmo que
preguiçosa, a ser um trabalhador bem-sucedido. O puer prefere seus
potenciais fantasiados às suas reais capacidades, porque os primeiros
preservam mais do sabor do Self da infância.
Precisamos agora retornar ao momento, no início da infância, em que a
constelação original do Self é determinada. Devemos lembrar que uma das
importantes funções dos pais — normalmente da mãe, nessa idade - é servir
de reflexo para o Self emergente da criança. Ao refletir de volta para seu
filho o quanto ele é uma criança especial e grandiosa, os pais ajudam a
alimentar essa espécie de inflação necessária. Essa inflação irá motivar a
criança a ir em busca de um mundo em incessante expansão no qual,
sofrendo derrotas toleráveis, a inflação será modificada e a identidade
pessoal se assentará cada vez mais sobre as capacidades do ego.
Nas situações em que não se dá esse espelhamento — seja pela ausência,
seja pelo excesso - a interação entre o Self da infância e o mundo deixa de
acontecer e interrompe-se o desenvolvimento normal. A pessoa vivencia,
então, até a idade adulta, uma pressão constante para retornar ao estado do
Self constelado na infância, para que o desenvolvimento possa recomeçar a
partir daí. As manifestações da psicologia do puer, portanto, não são tanto
patológicas, mas sim a expressão, na idade adulta, de um processo normal,
e de há muito atrasado, que decorre de um caminho de desenvolvimento
determinado pelo arquétipo. A razão de esse processo tantas vezes
simplesmente não se desenrolar e efetuar uma autocura é o fato de que a
pessoa internalizou, das suas vivências de infância, uma introversão
defeituosa — uma introversão que, ou ataca automaticamente o Self assim
que este se constela, ou o protege de modificar-se quando as frustrações são
percebidas.
O cerne das relações do puer é este: o puer quer relacionamentos que
funcionem para ele como aquele tipo de reflexão que ele não consegue dar a
si próprio. O que nele aparece como extroversão não é nada disso. Na
realidade, o puer não se relaciona com objetos (no sentido analítico); ele se
relaciona, em vez disso, com a parte que falta nele mesmo e que vê em
outra pessoa ou faz com que ela manifeste. Os objetos, para o puer,
funcionam principalmente como meio indireto de introversão.
Um relacionamento do tipo puer é aquele no qual um indivíduo, a fim de
manter uma identidade baseada no Self da infância, vai em busca de um ou
mais admiradores que lhe devolvam o reflexo de sua própria singularidade e
grandiosidade. Embora as situações mais comuns sejam as amizades ou o
casamento, isso também ocorre na psicanálise.
A reconstelação do Self
Podemos agora nos dirigir à questão final deste ensaio: o que se pode fazer
a respeito disso tudo? Acredito que haja uma abordagem concreta que pode
ser posta em prática, tanto nos relacionamentos cotidianos como na terapia.
O desenvolvimento do puer é uma consequência da reação dos pais à
constelação do Self na criança. Podemos nos perguntar, agora, por que o pai
ou a mãe não reconhecem as necessidades gêmeas da criança: a de
aceitação de sua grandeza e singularidade, por mais que estas possam ser
irreais, e a de moderadas frustrações impostas pela realidade, mesmo que
estas possam ser dolorosas. A resposta deveria estar clara: o pai ou a mãe
não reconhecem isso, não podem reconhecer isso, porque ele ou ela, em
virtude da sua própria psicologia puer ainda não resolvida, reage com muita
intensidade aos seus próprios estados interiores para conseguir reconhecer e
reagir ao Self do filho.
O padrão da interação nas díades puer-puella, padrão que repete, para
ambos, a constelação imprópria da infância, deve sofrer interferência. O
caminho para isso é, em geral, desviar a atenção do conteúdo da interação
para o processo.
Em termos concretos, isso significa que os parceiros devem evitar entregar-
se à irritação, à raiva ou à fúria à qual são impelidos pela fragmentação
iminente de seu próprio Self. Em vez disso, precisam olhar para dentro e
perguntar qual é o sentimento que está despertando essa raiva. Em geral, o
comentário que detona a irritação surtiu o efeito de fazer a pessoa sentir-se
pequena, sem valor, magoada. A resposta que sai da ponta da língua é uma
resposta a esse estado interior, e não realmente uma resposta à outra pessoa.
O fato de como a pessoa está-se sentindo - sem valor - pode ser comunicado
de modo simples e neutro, sem recriminações implícitas.
A demonstração direta e objetiva de sentimentos consegue várias coisas.
Em primeiro lugar, é um ato de intimidade, mesmo quando os sentimentos
são negativos. O fato de a pessoa estar disposta a mostrar sua
vulnerabilidade ao outro revela uma atitude de confiança que interrompe o
avanço da fragmentação deste. Portanto, é uma forma implícita do
espelhamento que ele precisa. Em segundo lugar, o fato de a pessoa ser
capaz de falar com neutralidade sobre a dor que está sentindo significa que
existe uma parte — a que observa e comenta — que fica de fora do ciclo da
inflação- fragmentação. Em terceiro lugar, um dos parceiros observa que o
outro tem uma relativa facilidade com sentimentos dolorosos, que está
disposto a aceitá-los e que não se fragmenta por causa deles. Portanto, ele
sente menos a acusação implícita de que é o responsável pelo mal-estar do
parceiro e, assim, alcança um pouco mais de estabilização.
Em geral, a meta a ser perseguida nos relacionamentos pessoais, como a
terapia, é a criação de um terceiro ponto de vista, que nem é extraído dos
ciclos de inflação-fragmentação, nem completamente mergulhado no Self,
tanto constelado quanto fragmentado. Esse ponto de vista externo é o
núcleo em tomo do qual será criada uma nova identidade, não mais
dependente dos ciclos do Self.
Se as defesas do Self forem elaboradas e a pessoa receber a reflexão de
imagem necessária, o Self irá reconstelar-se. Reflexão adequada significa
que a criança divina está sendo aceita por outrem e, portanto, pela própria
pessoa, depois de algum tempo. Como resultado das frustrações
subsequentes, também adequadamente refletidas, o Self sofrerá o tipo de
modificações que não ocorreram na infância.
17. O Pequeno Príncipe
HELEN M. LUKE
A necessidade do narcisista de ser elevado acima e além das limitações
pessoais, fantasia esta que, segundo os dois autores precedentes, é um
problema característico do puer aeternus, costuma evidenciar-se numa
irresistível atração por aviões e por voar. A conselheira junguiana Helen
M. Luke, em sua sensível abordagem desse problema, condensa a fantasia
de voar do puer. Ela ilustra o problema contando-nos a história da famosa
figura da criança interior em O Pequeno Príncipe e do adulto a quem esta
criança pertence, o autor/aviador Antoine de Saint-Exupéry. O conto pode
ser tomado como uma advertência, na medida em que nos alerta para os
perigos de uma identificação excessiva com o arquétipo da criança interior.
O tratamento psicológico da história de O Pequeno Príncipe foi
empreendido pela primeira vez por Marie-Louise von Franz, em suas
palestras sobre o puer aeternus, apresentadas entre 1959 e 1960 no C. G.
Jung Institute, em Zurique. O trabalho da sra. Luke baseia-se no anterior,
ao mesmo tempo que evidencia seu talento de contadora de histórias. Este
ensaio constitui um capítulo de seu livro The Inner Story.
Dois livros famosos foram escritos no século XX a respeito do “eterno
menino” e, embora muito diferentes como histórias, têm, essencialmente, o
mesmo tema: o do menino que se recusa a crescer. Peter Pan, de James
Barrie, escrito em 1902, é um absorvente conto de fadas para crianças, uma
fantasia com piratas, fadas, índios, uma mãe adorável, crianças audaciosas
que aprendem a voar e o menino-herói que consegue encarar a morte como
“uma grande aventura”, mas que não vive no mundo adulto dos seres
humanos. O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry,1 escrito quase
quarenta anos depois, não é realmente dirigido para o público infantil,
apesar das palavras da dedicatória. É um livro acerca da criança que existe
nos adultos, uma história infinitamente triste sobre a esterilidade do mundo
e a sabedoria e beleza perdidas da infância. É a tragédia das pessoas da
nossa era, a cujo grupo Saint-Exupéry pertencia, cujos olhos estão abertos
para o mundo interior dos sonhos e imagens, que conhecem a sabedoria da
inocência infantil e a insensatez e o vazio dos valores coletivos, mas que
não conseguem transpor a distância entre sua visão interna e as asperezas da
realidade externa. Pessoas como estas colocam-se à parte de tal maneira que
chegam ao ponto do suicídio, às vezes de um suicídio concreto, físico,
consciente ou inconsciente, mas certamente do suicídio de um ou outro
valor.
Desde o início fica claro que o livro trata das vivências de uma criança
concreta. Um menininho não é separado da humanidade dessa maneira,
vivendo num lugar remoto e vazio com três vulcões, um dos quais extinto, e
observando tristemente a beleza dos pores-do-sol. A sensação do trágico
final já está aí. Infância é aurora, não ocaso, estejamos falando da criança
humana ou da criança arquetípica no inconsciente do adulto. A criança que
aparece em nossos sonhos fala de recomeçar, ou aponta para a totalidade do
fim, quando sol e lua brilham juntos. Comparemos a atmosfera do planeta
do Pequeno Príncipe com a da Terra do Nunca de Peter Pan e Os Meninos
Perdidos. (Se alguém só conhece Peter Pan através do desenho de Walt
Disney, que elimine de sua mente essa imitação grotesca da história.) A
Terra do Nunca também está muito longe do mundo do dia-a-dia, mas está
vigorosamente viva, com a resplandecente fantasia da criança. Os meninos
voam no ar, vivem embaixo da terra, lutam contra os piratas malvados,
entre os quais está, para nossa delícia, o “adorável” Smee; eles têm os
índios e as fadas como amigos, derrotam os lobos, e Peter é salvo das águas
da lagoa azul por um pássaro. Quando Wendy se reúne a eles, os meninos se
voltam imediatamente para ela como se fosse a mãe deles, e, por intermédio
dela, voltam finalmente para o mundo real, e todos, exceto o próprio Peter,
aceitam a necessidade de crescer, de encarar o monótono mundo da escola,
do trabalho e da responsabilidade. Existe tristeza, pois a maioria, sabe-se,
irá perder o contato com o resplendor do mundo infantil e sua sabedoria; é
só assim, no entanto, que pode haver alguma esperança de totalidade no
final. Há em Peter um indício do arquétipo - vivendo nas árvores sozinho e
sendo visitado todo ano por Wendy. Tudo vem com leveza, tingido cá e lá
de sentimentalidade, mas, apesar disso, podemos ver em Wendy uma
insinuação da função da anima, conectando o consciente ao mundo
inconsciente da fantasia.
É interessante fazer a comparação com o símbolo do feminino em O
Pequeno Príncipe. No menino humano, é o amor e o cuidado que vêm da
mãe que o vinculam (sendo ela uma verdadeira mãe) ao mundo e o impelem
para fora do ninho quando chega o momento certo. A criança presa dentro
do homem pode ser despertada de seu estado desconectado pelo despontar
de uma incômoda percepção de que nem tudo está bem em sua própria vida
afetiva, apesar de ser “linda” a existência que ele leva, e isso o mobiliza a
tentar ligar-se ao mundo dos homens. A rosa solitária do Pequeno Príncipe
(seu potencial para ligar-se afetivamente) mostra-se muito fútil e
absolutamente não-confiável; por isso o menino a rejeita e dá início à
jornada que leva à Terra.
Suas primeiras experiências não são encorajadoras. Ele visita vários outros
planetas minúsculos e isolados, e em cada um deles um homem tão solitário
quanto ele vive em seu mundo particular, perseguindo o alvo vazio do
poder, ou da riqueza, ou do conhecimento, ou do prazer. No último, ele
encontra um acendedor de lampiões, com quem sente certa afinidade - o
homem comum, não aprisionado pela obsessão de sua própria importância
mas, ainda assim, sozinho, limitado por seus afazeres cotidianos e sem
jamais olhar mais adiante, acendendo e apagando seu lampião conforme o
sol se põe e se levanta a cada poucos minutos em seu minúsculo mundo,
sem tempo para descansar, sem olhos para ver o belo. Em seus primeiros
vislumbres da humanidade, o Pequeno Príncipe só viu o oposto polar da
simplicidade da criança, ou seja, a obsessão por metas e objetivos.
O Pequeno Príncipe atinge agora finalmente a própria Terra. Ainda está
sozinho no deserto, mas, estando na Terra, vê-se imediatamente confrontado
pela vida do instinto. Ele encontra a cobra, o mais ligado ao chão dentre
todos os animais, o bicho mais distante da consciência humana, que o
adverte de que o mundo dos homens e mulheres mostrar-se-á a ele tão
solitário quanto o planeta de onde ele vem e faz com que se lembre de que a
mordida da serpente pode trazer a morte e a liberdade final. Ela não vai
morder agora a criança, pois as cobras não fazem mal a quem é
completamente inocente. Somente quando o Pequeno Príncipe quiser voltar
para o seu planeta e voltar a este lugar é que a cobra irá mordê-lo e, dessa
forma, libertá-lo da Terra. Existe uma sutil indicação de um cinismo
diabólico nisto: a cobra não acredita absolutamente no êxito da tentativa da
criança de enfrentar o mundo dos adultos. No momento mesmo em que se
põe em marcha, o Pequeno Príncipe assegura-se de uma alternativa de recuo
de sua aventura. Com isso escapa ao universo infantil! Sente-se o quanto
está fatalmente não-comprometido. Ele tem uma apólice de seguro.
Agora o Pequeno Príncipe atravessa o deserto em busca de pessoas e vai
ficando progressivamente mais infeliz, até que, um dia, chega a um jardim
de rosas. Pela primeira vez, ele sabe que a sua rosa, no seu planeta, não é a
única no universo; ele se lança ao chão e chora. Naquele momento, sua rosa
torna-se um “nada mais do que” - aquele bem-conhecido estado de ânimo, o
oposto polar do orgulho possessivo. É nesse momento de colapso que
encontra a raposa.
A raposa, então, é uma espécie de símbolo de Mercúrio, ou Hermes, no
mundo interior. É atilada, esperta, travessa, e é um guia: uma imagem que,
até mesmo hoje, contém a numinosa intuição do elo entre caça e caçador.
The Running Foxes, de Joyce Stranger, é uma história muito bonita e
verdadeira sobre este tema. Parece que uma raposa velha chega até mesmo
ao ponto de convidar os caçadores a persegui-la. É este animal, o caçador
impiedoso, constantemente caçado, que ensina ao Pequeno Príncipe o que
significa ter um amigo e qual é a real natureza da singularidade.
A raposa pede ao Príncipe que a cative e, em resposta à indagação do
menino, diz que cativar e ser cativado significa “criar laços” — em outras
palavras, ter relacionamento e responsabilidade. Ela ensina ao Pequeno
Príncipe que ser único não consiste em possuir a única rosa no mundo todo
— ser único é algo que vem quando o amor é despertado entre dois seres,
seja o outro uma raposa, uma rosa ou uma pessoa. Como todos nós
sabemos, é uma ilusão profundamente poderosa do ego esta identificação de
nosso valor como pessoas com a posse de alguma habilidade, virtude ou
conquista especial. A raposa revela o profundo paradoxo segundo o qual a
singularidade de cada pessoa só emerge por intermédio de sua capacidade
de “criar laços”, elos conscientes entre ela e o “outro” (seja este outro uma
realidade interna ou uma realidade externa), e através de sua disposição
para sacrificar os laços inconscientes da possessividade.
Agora a raposa diz ao Pequeno Príncipe como cativar alguém. Ela lhe conta
que, com paciência infinita, deve sentar-se perto desse alguém, todo dia,
sem dizer palavra e, a cada dia, aproximar-se mais um pouco. Também é
bom observar os “ritos apropriados”, o que, segundo ela explica, significa
vir sempre na mesma hora todos os dias, infundindo assim nesse simples
ato o poder de um ritual — e esse é um conselho muito sensato,
principalmente quando se trata de “cativar” nossas imagens interiores.
Agora, a raposa chega ao coração da sua mensagem: o estranho paradoxo
que se constitui num elemento essencial ao estabelecimento de laços é a
aceitação da partida, mesmo da partida final. A singularidade do laço não
fica perdida; pelo contrário, encontra sua máxima realização na separação
inevitável, pois, a partir da dor dessa experiência aceita (aceita diariamente,
não só nos momentos de perda externa), nasce um significado onde antes
não havia significado. O ouro dos campos de trigo, até então ignorado pela
raposa e sem sentido para ela, fica daí em diante vivo em sua beleza porque
o cabelo de seu amigo é da cor dourada. Todo campo de trigo daí em diante
é único por causa da singularidade daquele Pequeno Príncipe. O sinal
distintivo de um amor purgado da possessividade e que se tornou um elo
entre dois seres que consentem em ser separados é que esse vínculo não é
exclusivo (assim, tudo que está fora dele torna-se fundido numa massa
informe). Pelo contrário, ele convida à intuição da singularidade e do
significado de cada pessoa, de cada vivência com que nos deparamos. Tudo
isso não quer dizer que a dor da partida seja menor. “Eu vou chorar”, diz a
raposa.
A última mensagem da raposa é esta: “O que é essencial é invisível aos
olhos... É o tempo que você gastou com a sua rosa que a torna tão
importante... Você se torna para sempre responsável por aquilo que cativa.”
Torna-se imediatamente visível que o Pequeno Príncipe, por mais que
houvesse compreendido profundamente a lição da raposa, ainda não captou
o elemento essencial da mensagem. A seguir, transcrevo a passagem em que
ele revela sua incompreensão, aliás a do próprio Saint-Exupéry. Ele está
olhando para o canteiro de centenas de rosas e diz:
Vocês não são de jeito nenhum como a minha rosa. Até agora vocês não são
nada. Ninguém cativou vocês, e vocês não cativaram ninguém. Vocês são
como a minha raposa na primeira vez em que a vi. Ela era só uma raposa,
como centenas de outras raposas. Mas eu fiz dela minha amiga, e agora ela
é única em todo o mundo.
Vocês são lindas, mas são vazias. Ninguém poderia morrer por vocês. É
claro que um transeunte comum poderia pensar que minha rosa fosse igual a
vocês - a rosa que me pertence. Mas ela sozinha é mais importante do que
todas as centenas de vocês, outras rosas: porque foi a ela que dei água;
porque foi ela que pus dentro do globo de vidro; porque foi a ela que
protegi atrás do abrigo; porque foi por causa dela que matei as lagartas
(exceto as duas ou três que salvamos para que virassem borboletas); porque
foi a ela que dei ouvidos, quando resmungava ou se vangloriava, ou mesmo
quando não dizia nada. Porque ela é minha rosa.
Isso é verdade, mas não é a verdade inteira. Ele se dá conta de sua
responsabilidade pela rosa que cativou neste planeta, aceita suas
imperfeições e começa a conhecer o amor. Mas não vê que, assim como a
sua responsabilidade perante a raposa envolve aceitar a sua tristeza e a da
raposa quando chega o momento da partida, sua responsabilidade por esta
rosa significa também aceitar a distância dela para que sua beleza possa
viver no mundo, e não só em seu planeta particular. Por isso ele olha para a
centena de rosas, não com a alegria do reconhecimento da imagem da
amada em cada uma delas, como a raposa olhava os campos de trigo, mas
com uma piedade mesclada de desprezo.
A seguir ele passa ao encontro com o mundo das pessoas. Vê multidões
entrando e saindo inutilmente de trens, fala com um comerciante que
inventou pílulas para saciar a sede, de modo que as pessoas são poupadas
da perda de tempo de buscar água. (Que imagem perfeita para o apuro que
ora vivemos!) Seria possível imaginarmos que, nesse ponto, a raposa
dissesse: “Olhe além do que o olho enxerga, do que o ouvido escuta, e verá
o ser humano por trás dessa máscara falsa. Então você se dará ao trabalho
de cativá-lo. O brilho rosado de suas bochechas, e até a tinta vermelha da
locomotiva, poderiam lembrá-lo de sua rosa e dar a essas pessoas e coisas
beleza e significado. É assim que você deve carregar a responsabilidade por
sua rosa.” Mas o Pequeno Príncipe não compreende esse aspecto: ele só
pensa na beleza de sua rosa, na necessidade que ela tem dele, e, por isso,
apresenta sua recusa final de envolver-se com a vida nesta Terra e, ao
apegar-se à sua rosa, ele a trai da maneira mais trágica. Ele reinicia sua
jornada regressiva até a cobra, que irá oferecer-lhe a morte - não a morte
que é a aceitação da vida e do destino, mas a morte que é a recusa da vida e
da responsabilidade. Jung disse que “a ameaça da cobra” indica o perigo de
uma nova consciência recentemente adquirida ser tragada de volta pela
psique instintiva. É precisamente isso o que acontece com o Pequeno
Príncipe.
Antes da tragédia final, ele encontra um aviador consertando seu avião
acidentado e pede-lhe um carneiro para levar de volta consigo para o seu
planeta. Os desenhos que o aviador faz são rejeitados. O carneiro é muito
velho ou muito fraco; finalmente, é aceito o desenho de uma caixa, dentro
da qual o carneiro está deitado, invisível, e pode ser imaginado pelo
Pequeno Príncipe da forma que lhe aprouver. Isso seria uma delícia para um
menininho, mas não para o homem identificado com a criança. Sem dúvida,
trata-se, mais uma vez, de um perigoso mal-entendido quanto às palavras da
raposa: “O essencial é invisível aos olhos,” o que, certamente, não significa
que você possa converter um carneiro de verdade numa imagem particular
daquilo que você gostaria que ele fosse, mas que por trás da aparência
externa de um carneiro, seja ele velho ou fraco, existe uma singularidade
essencial, que pode ser encontrada se você “cativá-la”. É essa a
incompreensão fatal da personalidade infantil, por meio da qual a
imaginação, a intuição das verdades finais pode ser usada para distorcer a
realidade presente, em vez de preenchê-la com significado.
O homem, conduzido pelo menino, encontra um poço no deserto. Eles não o
imaginam apenas - sabem que a água da vida está ali, sob a superfície árida,
pois a beleza do deserto está na existência do poço. Ali o homem aprende a
profunda sabedoria da criança eterna, mas, em vez de levar essa sabedoria
para o encontro e o processo de cativar a própria vida, não a arrisca entre os
homens e pensa em preservá-la como algo remoto e separado, no céu, de
modo que tem que passar sua vida com os olhos postos nas estrelas, num
contínuo tormento, sem saber se ela ainda vive ou não, pois o Pequeno
Príncipe levou com ele de volta alguma coisa da Terra: o carneiro, que pode
comer a rosa. O homem tinha-se esquecido de pôr uma fita em volta da
caixa, para controlar o carneiro; isso foi uma providência do inconsciente,
pois não temos condições de garantir a segurança de coisa alguma. Tendo
vindo para a Terra, a criança havia vivenciado os opostos; não poderia
retornar incólume ao seu paraíso infantil. Ela queria preservar da viagem
apenas o que desejasse, mas, sem querer, levou consigo aquela ânsia
instintiva inconsciente que poderia comer o mato de seu planeta e,
igualmente, seria capaz de devorar suas rosas e deixá-lo ainda mais solitário
do que antes. Assim, o homem que se recusou a ouvir a mensagem inteira
da raposa, e que tenta preservar a beleza de sua vida interior isolada do
mundo, imaculada em relação a ele, deve viver, daí em diante, e para
sempre, com uma dúvida atroz no coração. Será que o carneiro destruiu a
rosa? É uma dúvida que nos persegue sempre que retomamos, mesmo que
brevemente, a mensagem da raposa.
Dessa forma, o livro termina com a mesma imagem com a qual começa. O
desenho real da criança que fez uma jiboia com um elefante dentro é repleto
de imaginação e promessas que o adulto embrutecido não consegue
enxergar, mas essa imagem passou por uma separação de opostos e chegou
à possibilidade da conscientização, apenas para terminar numa regressão em
que um dos opostos pode ser novamente tragado para dentro do ventre do
outro - a terna singularidade da rosa devorada pela coletividade ovina, da
qual o Pequeno Príncipe buscou escapar. O homem vive, a partir de então,
com os olhos postos nas estrelas, enxergando sua beleza, repleto de um
insaciável anseio, pois ele conheceu e amou a criança interior. Mas a terra
embaixo de seus pés foi por ele rejeitada com desprezo e a totalidade deve
para sempre escapar-lhe nesta vida. É uma história comovente e
maravilhosamente narrada, com o impacto de uma verdade trágica, mas
uma sensação de tristeza e impotência desesperançada permeia o livro
inteiro.
Assim aconteceu com a vida do próprio Saint-Exupéry — um homem de
genialidade potencial que nunca superou sua identificação com a eterna
criança. Alguém que o conheceu bem escreveu a seu respeito que ele tinha
em igual proporção “um profundo e real misticismo, um grande apetite
pelos prazeres dos sentidos e uma total irresponsabilidade perante a vida
diária”. Também foi dito que ele foi “um extremista em todas as coisas. Não
conseguia suportar as contradições”. Estas são as características da sua
identificação. É interessante que alguns psicólogos tenham dito que uma
grande proporção de aviadores são desse tipo, particularmente, talvez, os
pilotos de voos de alto risco - os de caças de guerra e os pilotos de prova.
Saint-Exupéry raramente era feliz, exceto quando voava. Essa era uma
necessidade essencial de sua natureza, quase como se ele estivesse
constantemente tentando alcançar o seu Pequeno Príncipe, sozinho e triste
em seu planeta. No ar, sentia-se livre de toda a pequenez e mesquinharia
letais do homem comum das ruas, a cujo respeito escreve com um desprezo
fulminante. Até mesmo seus maiores admiradores admitem que ele tinha
essa atitude de menosprezo. Foi um piloto de grande habilidade, mas
causava em todos uma enorme ansiedade com o que era conhecido como
“alheamento”. Ele se esquecia de fazer descer o trem de pouso; perdido em
seus devaneios, voava fora de rota, e de repente voltava à realidade perante
uma situação de perigo, e assim por diante. Há em homens assim um
cortejar inconsciente da morte, o anelo profundo pela mordida da cobra que
pode resgatar neles a criança perdida. Finalmente, encontrou a morte no ar,
vivendo o símbolo em sua realidade plena. Seu avião se perdeu em algum
lugar da França, na última missão que lhe confiaram na guerra. Nunca foi
encontrado nenhum vestígio dele. Simplesmente desapareceu, da mesma
forma como desapareceu o corpo do Pequeno Príncipe.
Como é comum no caso de tais personalidades, ele tinha sido o filho
favorito de sua mãe e a vida inteira a adorara. Também Barrie tinha essa
devoção por sua mãe. Em Peter Pan, o pai, o sr. Querido, aparece como
homem ignorante e maldosamente cruel. O casamento de Saint-Exupéry foi
um caso tempestuoso e irresponsável, como seria de esperar, com
discussões violentas, separações e reconciliações igualmente passionais.
Quando estava separado de sua esposa escrevia emotivamente a respeito de
sua responsabilidade para com sua “pobre Consuelo”. Ele sentia de modo
genuíno essa responsabilidade, mas não conseguia vivê-la. Nunca
conseguiu viver de modo responsável, porque havia rejeitado metade da
sabedoria da raposa e, com isso, sua delicada percepção dos valores reais
permaneceu "no ar”, constantemente ameaçada pelo “carneiro”. O carneiro,
de duplo sentido, como todas as imagens arquetípicas, é o símbolo tanto da
inocência como da estupidez coletiva, que ele tão amargamente desprezava.
As imagens de seu inconsciente - o Rei, o Sábio, o Trabalhador Prático, o
Amante das Brincadeiras, o Servo - permaneceram para sempre em seus
solitários planetas, possessivas e sem sentido até o fim. Pois a criança, que
poderia tê-las trazido todas para a terra, caso ele tivesse atentado à
mensagem da raposa, preferiu regressar ao seu planeta. Dessa forma, o
homem não conseguiu crescer e chegar ao verdadeiro encontro de opostos
no qual a criança interior permanece intensamente viva mas “cativa(da)”,
vinculada à realidade externa. Saint-Exupéry tinha o gênio e não se evadiu
à responsabilidade de expressá-lo. Mas, inevitavelmente, seu gênio não
amadureceu. Talvez tenha sido apenas em O Pequeno Príncipe que ele
tenha realmente vindo à terra, pois nesse texto ele descreve sua própria
tragédia com força e verdade. Muitos aclamaram The Wisdom of the Sands
como seu maior livro. Ele também achava isso. Apesar de muito belo, como
a maioria das coisas que ali são ditas, permanece, de alguma maneira,
distante da humanidade e, por isso, mesclado de irrealidade e
sentimentalismo. Nesse livro, o rei de um reino no deserto divulga todos os
seus pensamentos sobre a vida e seu significado. É relevante anotar que,
próximo ao início do livro, o rei sobe numa torre bem alta e, olhando para
baixo, para os homens, sente pena deles e resolve curá-los. Depois
proclama: “Embelezei a alma de meu povo.” O rei está interessado no
“povo”, não nos indivíduos. Ele fica sozinho com sua rosa, até o final. O
título desse livro em francês é La Citadelle [A Cidadela] - a torre, a
fortaleza, o lugar seguro de onde o rei olha o mundo, de cima para baixo.
Um desses homens-meninos veio procurar-me para fazer análise, há muitos
anos. Sua rapidez de compreensão, sua apreensão intuitiva do inconsciente
e seu ávido entusiasmo eram plenos de promessas. Mas ele não tinha
dezessete anos — estava com quase trinta e não tinha a menor noção do que
significava aceitar a responsabilidade da masculinidade. Esses homens
geralmente têm grande poder de encantar, pois contêm a imagem da eterna
promessa da juventude. As mulheres mais velhas perdoam-lhes repetidas
vezes suas atrocidades. Este homem entrava e saía constantemente de
empregos e era sua esposa, mais velha que ele, que ganhava o básico para o
sustento de ambos. Como no caso de Saint-Exupéry, separações e
reconciliações sucediam-se com uma velocidade estonteante. Ele não era
aviador, mas cortejava a morte dirigindo carros de maneira totalmente
descuidada. Quando sua carteira de motorista foi apreendida nunca lhe
ocorreu parar de dirigir — o risco apenas tornava aquilo uma excitação
ainda maior! Correr riscos selvagens no mundo exterior é uma
compensação para a recusa interior de pôr a psique infantil em risco diante
do confronto com as responsabilidades de um homem. Tomou inúmeras
boas decisões, imbuído da mais completa sinceridade, mas estas se
esfacelavam ao mero toque da realidade, ou perante a necessidade de
disciplina. Mas como conhecia a sabedoria que se aproxima do estúpido e
do respeitável! Morreu violentamente num acidente. Tinha regressado à sua
cobra, recusando-se a abandonar seu paraíso infantil e a expor sua rosa ao
mundo.
A personalidade do tipo puer aeternus raramente aparece numa forma tão
extrema. Mas, para cada um de nós, existe uma advertência nas imagens da
história de Saint- Exupéry. Precisamos tornar-nos conscientes das maneiras
parciais segundo as quais nos identificamos com a nossa criança interior,
que, por isso, banimos para um planeta solitário. Pois, seja com o que for
que nos identifiquemos, isso está perdido para nós como realidade. Se nos
ativermos ao valor da inocência e da insensatez da criança, ao mesmo
tempo que aceitamos plenamente as realidades do espaço e do tempo; se
suportarmos as separações por meio das quais se dissolvem a
possessividade e a exigência de sermos “especiais”, nossos pés se plantarão
firmemente na terra enquanto estivermos contemplando as estrelas em sua
trajetória. Somente então, tendo emergido do paraíso fácil da infantilidade
inconsciente, poderemos “cativar” a Criança interior e ser “cativados” por
ela, que confere a verdadeira singularidade e a totalidade final. Essa
imagem adorável nos vem em nossos sonhos, grave e contente, sábia e
inocente, a promessa do início e a plenitude do fim. “A menos que vos
torneis como as criancinhas (tornar-se, não identificar-se), não entrareis no
Reino dos Céus” (Mateus, 18:33).
Voltemos agora às palavras de Jung: “A criança é o começo e o fim... A
criança simboliza a natureza pré e pós-consciente do homem — sua
totalidade... A criança é tudo o que é abandonado e exposto e, ao mesmo
tempo, divinamente poderoso. O início duvidoso, o final triunfante. A
‘eterna criança’ no homem é uma experiência indescritível — um
imponderável que determina a presença ou ausência essencial de valor
numa personalidade.”2
Parte 4
CHARLES L. WHITFIELD
A s pessoas que trabalham no processo de recuperação de casos de
dependência química, especialmente os participantes do crescente
movimento conhecido como Filhos Adultos de Alcoólatras, usam a
linguagem da criança interior para se referirem àquela parte de nós que é
o nosso Self real. É muito provável que as pessoas que cresceram em
famílias com desequilíbrio proveniente do alcoolismo ou de qualquer outro
tipo de problema tenham sofrido a negação de seu verdadeiro Self. Como
reação a isso, muitas desenvolvem uma identificação com um self falso,
codependente. Portanto, surge a necessidade de intervir no processo de
negação e curar e resgatar a criança interior.
A recuperação do verdadeiro Self é um dos principais pontos onde se
concentra o trabalho do terapeuta e autor Charles L. Whitfield. Este texto
foi extraído de sua obra Healing the Child Within, recordista de vendagem
e que se tornou um livro-texto para modelos de recuperação no trabalho
com a criança interior. Recentemente, como complemento, o dr. Whitfield
publicou um manual prático de exercícios, intitulado A Gift to Myself.
Para redescobrir nosso Self Real, ou Verdadeiro, e curar nossa Criança
Interior, podemos dar início a um processo que envolve as quatro iniciativas
seguintes:
1. Descobrir e praticar que somos o nosso Self Real, ou Criança Interior.
2. Identificar as necessidades físicas, mentais-emocionais e espirituais que
estão ativas em nós.
3. Identificar, reviver e sofrer a dor de nossas perdas não-sentidas ou
traumas ignorados na presença de pessoas confiáveis e acolhedoras.
4. Identificar e elaborar nossas questões centrais (descritas abaixo).
Estas ações se inter-relacionam de modo intenso, embora não apareçam
numa sequência específica. Trabalhar nelas e, dessa maneira, curar nossa
Criança Interior é algo que geralmente ocorre de maneira circular, pois o
trabalho e as descobertas que se dão numa área ligam-se aos que ocorrem
em outra.
Estágios do processo de recuperação
Sobrevivência
- Para chegarmos ao ponto da recuperação é preciso termos sobrevivido. Os
sobreviventes são, necessariamente, pessoas codependentes. Usamos muitos
meios de encobrir e muitas defesas do ego para conseguir isso. Os filhos de
alcoólatras e de outras famílias comprometidas e desestruturadas
sobrevivem trapaceando, escondendo-se, negociando, cuidando dos outros,
fingindo, negando, aprendendo e adaptando-se a permanecer vivos
utilizando quaisquer métodos que deem certo. Aprendem outros
mecanismos de defesa do ego, geralmente não-saudáveis, conforme foi
descrito por Anna Freud1 e sintetizado por Valliant,2 mecanismos que
incluem intelectualização, repressão, dissociação, deslocamento e formação
reativa (todos estes, quando excessivamente empregados, podem ser
considerados neuróticos), além de projeção, comportamento passivo-
agressivo, representação, hipocondria, grandiosidade e negação (todos
estes, quando excessivamente empregados, podem ser considerados
imaturos e, às vezes, psicóticos).
Embora essas defesas sejam eficientes na nossa família desequilibrada, sua
tendência é servir-nos mal quando chegamos à idade adulta. Quando
procuramos participar de relacionamentos saudáveis, essas defesas não
conseguem promover nossos melhores interesses. Ao utilizá-las, abafamos e
entorpecemos nossa Criança Interior e promovemos e reforçamos nosso self
falso e codependente.
Ginny era uma moça de vinte e um anos que cresceu numa família de
alcoólatras. No início de sua recuperação, ela escreveu o poema que
transcrevo abaixo, no qual exemplifica parte da dor presente no estágio da
sobrevivência.
COM MEDO DA NOITE
Como a criança que espera à noite
Por mãos calorosas e braços que a envolvam
E abracem sua solidão:
Para perder-se nas lágrimas de uma súbita segurança -
E de amor.
Também eu, na escura solidão do Self não-amado,
Desgarrado, abandonado, e negado,
Ainda convoco com gritos mudos de criança
A antiga esperança -
A velha certeza mágica de ser querida.
A criança ainda vive em mim
Com aquela ávida mágoa da inocência estupefata
E traída. Ah, que doloroso paradoxo!
Sentir o resgate
E saber que não virá nenhum.
Inundada, porém, por velhos sonhos, pálidos mas poderosos.
Recordações do terno e querido toque do amor,
Eu espero.
Espera-se. Sempre se espera.
Está esquecida - essa necessidade sem nome
Os anos vêm batendo em meu desgastado coração.
Mas como se fora alguma força primordial informe
Acena, invade minha realidade,
Neutraliza a empertigada razão.
E eu sou grotesca no desejar desesperançado,
Voltando minha mente para dentro, para trás.
Vaga também é a dor, com lembranças jovens
Que enfraquecem e desafiam,
Submetem e depois morrem.
Eu não vivo:
Espero nessa inesperança.
Ginny expressa sua dor, seu torpor, seu isolamento e seu desespero.
Entretanto, também reflete um raio de esperança em potencial no verso “A
criança ainda vive em mim”*4.
Parte da recuperação é a descoberta de nós mesmos, da nossa Criança, e o
modo como usamos esses ineficazes meios de relacionamento com nós
mesmos, com os outros e com o universo, o que pode ser conseguido com
máximo aproveitamento nos estágios operacionais da recuperação.
Embora esteja claro que estamos sobrevivendo, também é verdade que
vivenciamos uma boa dose de dor e sofrimento; ou nos tornamos
entorpecidos; ou nos alternamos entre um estado de torpor e o sofrimento.
Lentamente, vamos tomando consciência de que essas mesmas habilidades
e defesas que nos permitiram sobreviver como bebê, criança e adolescente
maltratado não funcionam muito bem quando procuramos ter
relacionamentos íntimos e saudáveis na idade adulta. A frustração que esse
tratamento inadequado causou, o sofrimento da codependência, assim como
o fracasso de relações que não servem para nós, é que às vezes nos
empurram e até nos forçam a começar a procurar em outros lugares,
deixando de lado esses métodos ineficazes. Procurar em outra parte pode
desencadear nossa recuperação.
Gravitz e Bowden descrevem a recuperação em seus pacientes dos grupos
de Filhos Adultos de Alcoólatras (FAA) como um processo de seis fases: 1)
sobrevivência; 2) conscientização emergente; 3) questões centrais; 4)
transformações; 5) integração; 6) gênese (ou espiritualidade).3 Esses
estágios apresentam-se paralelamente aos quatro estágios de crescimento e
transformação descritos por Ferguson4 e aos três estágios da clássica
jornada do herói ou heroína mitológicos, descrita por Campbell5 e outros.
Podemos esclarecer e resumir as semelhanças entre essas abordagens da
seguinte maneira:
ALEXANDER LOWEN
Este capítulo é um relato pessoal da vivência de Alexander Lowen em sua
terapia com Wilhelm Reich, pioneiro do trabalho psicoterapêutico com o
corpo. A poderosa vivência da criança interior que Lowen retrata aqui teve
sem sombra de dúvida um poderoso efeito sobre o desenvolvimento de sua
própria criatividade como terapeuta e professor inovador. Este trabalho é
um excerto de seu livro Bioenergética, que descreve a metodologia de
mesmo nome, que ele ideou com base no trabalho revolucionário de Reich e
em colaboração com John Pierrakos.
Comecei minha terapia pessoal com Reich na primavera de 1942. No ano
anterior eu fora um visitante bastante assíduo de seu laboratório. Ele me
mostrou parte do trabalho que estivera fazendo com os biopreparados e com
o tecido canceroso. Então, um dia, ele me disse: “Lowen, se você está
interessado neste trabalho, só existe um meio de entrar nele, e é fazendo
terapia.” Sua declaração me surpreendeu, pois eu não havia pensado nessa
possibilidade. E lhe disse: “Estou interessado, mas o que eu quero é tornar-
me famoso.” Reich levou esse comentário a sério, pois me respondeu: “Eu
irei tomá-lo famoso.” Com o passar do tempo, vim a considerar como
profética essa declaração de Reich. Foi o empurrão que eu precisava para
superar minha resistência e entrar de vez no trabalho que me ocuparia pelo
resto de minha vida.
Minha primeira sessão terapêutica com Reich foi uma experiência que
jamais esquecerei. Fui munido da ingênua suposição de que não havia nada
de errado comigo. Seria simplesmente uma análise didática. Deitei-me na
cama com um calção de banho. Reich não usava divã, pois sua terapia era
de natureza corporal. Disse-me que flexionasse os joelhos, relaxasse e
respirasse de boca aberta com o maxilar descontraído. Segui suas instruções
e esperei para ver o que acontecia. Depois de algum tempo, Reich disse:
“Lowen, você não está respirando.” Respondi: “Claro que estou respirando,
senão estaria morto.” Ele então observou: “Seu tórax não está se mexendo.
Sinta o meu peito.” Apoiei minha mão em seu tórax e percebi que subia e
descia a cada ciclo. O meu, claramente, não.
Deitei-me de novo, desta vez respirando com o peito movimentando-se para
fora na inspiração e para dentro na expiração. Nada aconteceu. Minha
respiração acontecia fácil e profundamente. Depois de mais um tempo,
Reich disse: “Lowen, deixe a cabeça pendurar-se para trás e arregale os
olhos ao máximo.” Fiz o que ele pediu e... um berro irrompeu de minha
garganta.
Era um dia lindo de início de primavera e as janelas do consultório davam
para a rua. Para evitar constrangimentos com os vizinhos, Reich pediu-me
que endireitasse a cabeça, o que deteve o berro. Retomei a respiração
profunda. Era estranho, mas o grito não me havia perturbado. Eu não estava
emocionalmente ligado a ele. Não senti medo algum. Depois de ter
respirado mais um pouco, Reich pediu-me que repetisse o procedimento:
dependurar a cabeça para trás e arregalar os olhos. Novamente saiu o grito.
Hesito em dizer que gritei porque não me pareceu tê-lo feito. O grito
aconteceu em mim. Mais uma vez estava desligado dele, mas saí da sessão
com a sensação de que eu não estava tão bem quanto imaginara. Havia
outras “coisas” (imagens, emoções) em minha personalidade que estavam
escondidas da consciência e eu sabia, a partir de então, que elas precisariam
vir à tona.
Naquela época Reich chamava sua terapia de vegetoterapia analítica do
caráter. A análise do caráter tinha sido sua grande contribuição à teoria
psicanalítica, e por ela era altamente considerado nos círculos analíticos. A
vegetoterapia referia-se à mobilização dos sentimentos através da
respiração e de outras técnicas corporais que ativavam os centros
vegetativos (os gânglios do sistema nervoso autônomo) e liberavam as
energias “vegetativas”.
Para Reich, então, o primeiro passo do procedimento terapêutico consistia
em pedir ao paciente que respirasse sem forçar, profundamente. O segundo
era mobilizar qualquer manifestação emocional que mais se evidenciasse no
rosto ou nos modos do paciente. No meu caso, essa expressão era de medo.
Já vimos que poderoso efeito esse procedimento surtiu em mim.
As sessões subsequentes obedeceram ao mesmo padrão geral. Eu ficava
deitado na cama respirando tão naturalmente quanto conseguisse, tentando
permitir uma expiração profunda. Fui instruído a ceder ao meu corpo e a
não controlar qualquer manifestação ou impulso que brotasse. Várias coisas
aconteceram que, aos poucos, foram- me levando a um contato com
memórias e experiências do início de minha vida. No começo, a respiração
profunda, à qual eu não estava acostumado, produziu fortes sensações de
latejamento em minhas mãos que, em duas ocasiões, se tornaram severos
espasmos carpopodais que contraíram fortemente minhas mãos. Essa reação
desapareceu conforme meu corpo foi-se acostumando ao incremento de
energia que a respiração profunda estava produzindo. Apareceram tremores
em minhas pernas quando movimentei suavemente os joelhos para fora e
para dentro, e em meus lábios, quando segui o impulso de alcançar algo
com eles.
Seguiram-se vários episódios marcantes de irrupção de sentimentos e
lembranças correlatas. Numa determinada ocasião, enquanto estava deitado
na cama, respirando, meu corpo começou a se sacudir de maneira
involuntária. As sacudidas aumentaram, até eu me sentar. Depois, sem
parecer que eu estivesse fazendo aquilo, saí da cama, virei-me de frente
para ela, e comecei a dar-lhe socos com ambos os punhos. Enquanto eu
fazia isso, o rosto de meu pai apareceu no lençol e eu de repente soube que
o estava espancando porque ele me havia dado uma surra quando eu era
bem pequeno. Alguns anos depois perguntei algo a meu pai acerca desse
incidente e ele disse que tinha sido a única surra que me dera em toda a
vida. Explicou que eu tinha chegado muito tarde em casa e que minha mãe
estava preocupada e aborrecida. Ele me havia surrado para que eu não
fizesse aquilo de novo. A parte interessante dessa vivência, como a do grito,
foi sua natureza completamente espontânea e involuntária. Fui levado a
socar a cama da mesma forma como o grito brotara de dentro de mim, não
movido por algum pensamento consciente, mas por uma força interior que
me havia possuído e tomado por completo.
Em outra ocasião, deitado na cama e respirando, comecei a ter uma ereção.
Tive o impulso de tocar meu pênis, mas o inibi. Então me recordei de um
interessante episódio de minha infância. Vi-me aos cinco anos, andando
pelo apartamento onde morava e urinando no chão. Meus pais tinham saído.
Eu sabia que estava me desforrando de meu pai, que no dia anterior tinha
me repreendido por eu ter segurado meu pênis.
Foram-me necessários perto de nove meses de terapia para descobrir o que
tinha causado o grito da primeira sessão. Desde então eu não gritara mais.
Com o passar do tempo, pensei que tinha a nítida impressão de existir uma
imagem que eu tinha medo de ver. Ao contemplar o teto, de minha posição
sobre a cama, senti que ela um dia iria aparecer. Isso aconteceu, e era a face
de minha mãe olhando-me com uma expressão de intensa raiva nos olhos.
Soube imediatamente que essa era a face que me havia assustado. Revivi a
experiência como se estivesse ocorrendo naquele instante. Eu era um bebê
de mais ou menos nove meses e estava deitado no carrinho perto da porta
de casa, do lado de fora. Eu tinha chorado alto, chamando minha mãe. Ela,
evidentemente, estava ocupada dentro de casa e meu choro persistente a
irritara. E então saiu, furiosa comigo. Deitado ali, na cama do consultório
de Reich, aos trinta e três anos, olhei para o seu rosto e, usando palavras
que, quando bebê, eu não poderia ter conhecido, perguntei-lhe: “Por que
você está com tanta raiva de mim? Eu só estou chorando porque quero
você.”
Naqueles tempos, Reich usava uma outra técnica para reforçar a terapia. No
início de cada sessão, ele pedia aos pacientes que expressassem todos os
pensamentos negativos que tivessem a seu respeito. Ele acreditava que
todos os pacientes tinham por ele uma transferência negativa, além da
positiva, e não confiava na positiva a menos que primeiro fossem expressos
os pensamentos e ideias negativos. Para mim isso era extremamente difícil.
Tendo-me comprometido com Reich e a terapia, eu havia banido da mente
todos os pensamentos negativos. Achava que não tinha do que me queixar.
Reich sempre tinha sido generoso comigo e eu não tinha dúvidas quanto à
sua sinceridade, integridade ou quanto à validade de seus conceitos. De
uma forma característica, eu estava determinado a tornar aquela terapia um
sucesso, e não foi senão quando ela quase fracassou que expus todos os
meus sentimentos a Reich.
Depois da vivência do medo em que vi a face de minha mãe, passei por uma
longa sucessão de meses em que não progredi em nada. Ia a três sessões por
semana com Reich nessa época, mas estava bloqueado porque não
conseguia contar-lhe tudo que sentia por ele. Queria que ele tivesse por
mim um interesse paternal — não apenas terapêutico — mas tomar
consciência disso era uma solicitação sem pé nem cabeça. Não podia
expressá-la. Vivendo aquela luta interior com o problema, não podia ir mais
adiante. Reich não parecia se dar conta do meu conflito. Por mais que eu
tentasse, não conseguia deixar que minha respiração se tornasse mais
profunda e completa; simplesmente não adiantava.
Já estava em terapia havia mais ou menos um ano quando surgiu esse
impasse. Quando tive a impressão de que ele se prolongaria por um tempo
indefinido, Reich sugeriu que eu parasse: “Lowen, você não está
conseguindo entregar-se aos seus sentimentos. Por que não desiste?” Suas
palavras foram como uma condenação. Desistir significava o fracasso de
todos os meus sonhos. Não me aguentei mais e chorei profundamente. Era a
primeira vez que eu chorava de soluçar, desde a infância. Não pude mais
conter meus sentimentos. Disse a Reich o que queria dele e ele me ouviu
com simpatia.
Eu não sei se ele de fato tinha a intenção de encerrar a terapia ou se sua
sugestão para que a encerrássemos foi uma manobra para derrubar minha
resistência, mas tive a forte impressão de que ele estava sendo sincero. De
qualquer modo, sua atitude provocou o resultado desejado. Retomei mais
uma vez o avanço terapêutico.
Para Reich, o objetivo da terapia era o desenvolvimento, no paciente, da
capacidade de entregar-se por completo aos movimentos espontâneos e
involuntários do corpo, que faziam parte do processo respiratório. Desse
modo, a ênfase incidia em deixar que a respiração acontecesse de maneira
profunda e completa. Quando isso se dava, as ondas respiratórias
produziam um movimento ondulatório do corpo, que Reich chamava
reflexo do orgasmo.
Minha terapia com Reich foi retomada no outono de 1945, com sessões
semanais. Em pouco tempo o reflexo do orgasmo acontecia de maneira
consistente. Havia diversas razões para esse resultado positivo. Durante os
anos de interrupção provisória da terapia, o esforço para agradar a Reich e
obter saúde sexual esteve em suspenso, e fui capaz de assimilar e integrar
meu trabalho anterior com ele. Também nessa época, atendi meu primeiro
paciente como terapeuta reichiano, o que me serviu de extraordinário
incentivo. Sabia que tinha enfim chegado à minha casa e estava ciente de
uma sensação de segurança quanto à minha vida. Entregar-me ao meu
corpo, o que também significava entregar-me a Reich, tornou-se muito
fácil. Em poucos meses tornou-se evidente para nós dois que, de acordo
com seus critérios, a terapia tinha chegado a um fim bem-sucedido. Anos
mais tarde conscientizei-me, no entanto, de que eu não havia resolvido
muitos dos meus maiores problemas de personalidade. O meu medo de
solicitar alguma coisa que eu quisesse, mesmo que fosse sem pé nem
cabeça, não tinha sido elaborado. O meu medo do fracasso e a minha
necessidade de ter sucesso também não tinham sido elaborados. A minha
incapacidade de chorar a menos que estivesse encurralado contra a parede
não havia sido explorada. Esses problemas foram finalmente resolvidos
muitos anos depois, através da bioenergética.
Não desejo afirmar que a minha terapia com Reich foi ineficaz. Mesmo que
não tenha resolvido plenamente todos os meus problemas, tornou-me mais
ciente deles. O mais importante, no entanto, foi que me abriu o caminho
para a autorrealização e me ajudou a prosseguir rumo a esse objetivo.
Aprofundou e fortaleceu meu compromisso com o corpo enquanto alicerce
da personalidade. E proporcionou-me uma identificação positiva com a
minha sexualidade, que mostrou ser a pedra angular da minha vida.
21. Em defesa da criança
ALICE MILLER
A psicanalista e autora Alice Miller é uma ardorosa defensora de uma
postura de interferência ativa por parte de testemunhas esclarecidas, em
prol de crianças que estejam sendo vítimas de abuso. Os adultos que têm
uma ligação com a criança interior precisam, segundo ela, agir em nome
de crianças que estejam correndo risco. “Se ao menos uma pessoa tivesse
compreendido o que estava acontecendo comigo e tivesse vindo em minha
defesa,” diz ela na introdução a O Drama da Criança Bem-dotada, “isso
poderia ter modificado minha vida inteira... Na nossa sociedade, com sua
hostilidade para com as crianças, essas pessoas ainda são difíceis de
encontrar, mas seu número cresce diariamente.” Além disso, na qualidade
de terapeuta, ela desafia a psicoterapia a desenvolver uma nova visão de
seu papel à luz dos novos conhecimentos sobre a verdade da criança
interior e do que sabemos agora acerca da socialização destrutiva da
criança. Este excerto foi extraído do terceiro livro da dra. Miller, Thou
Shall Not Be Aware.
Há mais de 80 anos, Freud declarou ter “demonstrado” que as recordações
de seus pacientes de terem sido sexualmente molestados por adultos quando
crianças não eram recordações de eventos reais, mas apenas fantasias.
Como é que ele pôde demonstrar isso? Somente depois de ter-me tornado
mais familiarizada com as circunstâncias que cercam o abuso sexual é que
me dei conta de que a conclusão de Freud, que constitui uma importante
premissa para sua teoria das pulsões, e tem sido repetida de boa-fé
incontáveis vezes por alunos que prestam exames, “demonstra” uma coisa
que ele só pode ter conjecturado. Pois, com a ajuda de testemunhas,
podemos demonstrar que um certo ato aconteceu, mas nunca podemos ter
certeza de que algo não aconteceu, se ambas as partes integrantes do ato
têm interesse em mantê-lo em sigilo. Esse é, geralmente, o caso dos
episódios de abuso sexual, pois nem a própria vítima consegue tolerar a
verdade, por causa dos sentimentos concomitantes de medo, vergonha e
culpa.
A importância desse aspecto merece ser enfatizada o máximo possível, pois
o fato de ele ser ou não ser compreendido determinará se o paciente, na
sociedade, assim como a criança, na família, ficará sozinho com o seu
trauma ou encontrará a compreensão necessária por parte do terapeuta, ou
seja, a compreensão do fato de que a realidade é mais trágica do que todas
as fantasias, as quais, aliás, contêm certos aspectos do trauma vivenciado,
mas, essencialmente, servem para ocultar a intolerável verdade.
Uma dificuldade notável - na realidade, um obstáculo concreto - para a
recordação, na terapia, surge como resultado do mecanismo de esquivar-se
da verdade, que antes foi necessário à sobrevivência e que se pode
manifestar nas fantasias e nas imagens dos contos de fadas, assim como nas
perversões crônicas. A perversão, os vícios e os atos autodestrutivos —
assim como as fantasias - desempenham a função de ocultar. Organizam o
sofrimento atual em exato acordo com o padrão do passado e, desse modo,
asseguram que o sofrimento anterior, insuportável, permaneça reprimido.
Por certo que hoje existem inúmeras técnicas que permitem que os
sentimentos da infância venham à tona, num curto período de tempo, e
assim oferecem um alívio temporário. Essas técnicas podem ser aprendidas,
mas não podem ser chamadas de terapia se, ao mesmo tempo, não se
propiciar um apoio adequado num grau suficiente. A aplicação de técnicas
aprendidas pode ter efeitos tão perniciosos que o paciente permanece
imobilizado numa depressão ou no caos dos sentimentos despertados.
Resultados deste tipo não são raros, mesmo que o terapeuta seja
tecnicamente hábil e tenha uma postura bem-intencionada e interessada,
mas com tendências que são tanto pedagógicas como destinadas a poupar os
pais, em sua abordagem clínica.
Nessa medida, o apoio adequado do terapeuta deve ser reforçado por seu
conhecimento e por suas vivências emocionais. Empreendi todos os
esforços no sentido de chamar a atenção para aquele aspecto do
conhecimento que tem que ver com a situação real da criança na nossa
sociedade, porque o considero uma condição necessária (embora não
suficiente) para que a terapia obtenha êxito. Quando ele estiver ausente, até
mesmo o melhor dos métodos de nada adiantará e, se o tratamento
fracassar, não será necessariamente culpa do método. Mas a compreensão
apenas teórica também não é suficiente. Somente os terapeutas que tiveram
a oportunidade de vivenciar e elaborar seu próprio passado traumático
estarão em condições de acompanhar os pacientes em seu percurso rumo à
verdade acerca de si mesmos, sem obstar-lhes avanço. Esses terapeutas não
confundirão seus pacientes, não os deixarão ansiosos, não os educarão, não
os instruirão, não abusarão deles nem os seduzirão, pois não temem mais a
irrupção em si mesmos de sentimentos que foram sufocados há muito tempo
e conhecem, por experiência própria, o poder curativo desses sentimentos.
Entretanto, esse conhecimento expansivo dificilmente emanará de
instituições autoritárias, como universidades e institutos. Assim que os
sobreviventes dos abusos (sexuais ou de outra ordem) se sentem
verdadeiramente acolhidos pela sociedade e por seus terapeutas, de modo a
estarem em condições de encontrar sua própria forma de expressão, os
terapeutas estarão aprendendo mais com eles do que com qualquer
professor. Em decorrência disso, os terapeutas terão mais facilidade em
abrir mão dessas equivocadas crenças que se baseiam em princípios
pedagógicos de séculos anteriores.
Somente a libertação das tendências pedagógicas desencadeará as ideias
decisivas sobre a verdadeira situação da criança. Esses princípios
pedagógicos podem ser resumidos nos seguintes pontos:
1. A criança sempre é inocente.
2. Toda criança necessita, dentre outras coisas: cuidados, proteção,
segurança, afeto, contato de pele, toques, carícias, ternura.
3. Essas necessidades raramente são satisfeitas a contento; pelo contrário,
costumam ser exploradas pelos adultos em seu próprio benefício (trauma do
abuso infantil).
4. O abuso da criança tem efeitos vitalícios.
5. A sociedade fica do lado do adulto e culpa a criança pelo que lhe foi
impingido.
6. A vitimização da criança tem sido historicamente negada e continua
sendo negada, ainda hoje.
7. Essa negação tem possibilitado que a sociedade venha ignorando há tanto
tempo os efeitos arrasadores da vitimização infantil.
8. Quando traída pela sociedade, a criança não tem outra escolha senão
reprimir o trauma e idealizar o agressor.
9. A repressão leva a neuroses, psicoses, distúrbios psicossomáticos e à
delinquência.
10. Nas neuroses, as necessidades da criança são reprimidas e/ou negadas e,
em seu lugar, são vivenciados sentimentos de culpa.
11. Nas psicoses, o tratamento impróprio recebido é transformado numa
versão ilusória disfarçada (loucura).
12. Nos distúrbios psicossomáticos, a dor engendrada pelo tratamento
impróprio é sentida, mas as suas verdadeiras origens são dissimuladas.
13. Na delinquência, a confusão, a sedução e o tratamento impróprio
dispensados à criança são repetidamente representados.
14. O processo terapêutico só pode ter êxito se estiver baseado na
transparência da verdade a respeito da infância do paciente, em vez de
negar essa realidade.
15, A teoria psicanalítica sobre a “sexualidade infantil” na realidade protege
os pais e reforça a cegueira da sociedade.
16. As fantasias sempre servem para ocultar ou minimizar a realidade
intolerável da infância, em nome da sobrevivência da criança; portanto, o
suposto trauma inventado é uma versão menos prejudicial do trauma real
reprimido.
17. As fantasias expressas na literatura, na arte, em contos de fadas e nos
sonhos costumam, inconscientemente, transmitir vivências do inicio da
infância de uma maneira simbólica.
18. Esse testemunho simbólico é tolerado na nossa cultura graças à crônica
ignorância da sociedade quanto à verdade no que se refere à infância. Se o
impacto dessas fantasias fosse compreendido, elas seriam rejeitadas.
19. Um crime passado não pode ser anulado porque compreendemos a
cegueira e as necessidades insatisfeitas do agressor.
20. Novos crimes, porém, podem ser impedidos se as vítimas começarem a
enxergar e a tomar consciência do que lhes tem sido feito.
21. Portanto, os relatos das vítimas poderão desencadear uma maior
percepção consciente, maior consciência, e um maior senso de
responsabilidade na sociedade.
Graças a esses honestos relatos de experiências da infância, outros homens
e mulheres serão encorajados a confrontar sua própria infância, a levá-la a
sério e a falar sobre ela. Assim procedendo, estarão, por sua vez,
oferecendo informações aos outros a respeito do que tantos seres humanos
tiveram que passar no início da vida, sem nunca terem sabido disso mais
tarde e sem que mais ninguém soubesse disso também. Antes, simplesmente
não era possível tomar consciência dessas questões e não havia
praticamente nenhuma publicação dos relatos das vítimas que não
idealizasse os agressores. Hoje, no entanto, esses relatos estão disponíveis e
continuarão a aparecer, supostamente num número cada vez maior. Não
acredito que tal processo possa mais ser revertido.
Não fundei uma escola ou instituto de psicanálise, assim como não formei
grupos, e não estou em condições de oferecer nomes e endereços de
terapeutas. Minha intenção foi descrever o mandamento implícito que nos
proíbe de enxergar a verdadeira situação das crianças de nossa sociedade.
Assim que sua luta se tiver tornado visível, será mais fácil oferecer ajuda
terapêutica por meio dos canais existentes, e o perigo de que as práticas
terapêuticas sejam usadas para subjugar as pessoas (em seitas, por exemplo)
será reduzido. A pesquisa de campo também será mais útil aos terapeutas do
que antes, assim que os pesquisadores houverem aceitado a verdade, que
não é menos verdadeira por ser dolorosa, razão pela qual justamente contém
forças de cura e transformação.
A verdade sobre nossa infância está encerrada em nosso corpo e, embora
possamos reprimi-la, jamais poderemos alterá-la. Nosso intelecto pode ser
logrado, nossos sentimentos, manipulados, nossas percepções, confundidas,
e nosso corpo, ludibriado com medicamentos. Mas, algum dia, o corpo
apresentará sua conta, pois é tão incorruptível quanto uma criança que, de
espírito íntegro, não aceitará concessões ou desculpas e não deixará de nos
atormentar enquanto não pararmos de fugir à verdade.
22. Sobre o incesto e o abuso de crianças
ROBERT M. STEIN
Este breve ensaio gira em torno de uma crença do analista junguiano
Robert M. Stein segundo a qual “o modo como trato minha criança interior
é o modo como irei tratar minha criança exterior”. A quase epidemia do
abuso de crianças em nossa cultura atual revela uma desconexão terrível
em relação à criança interior, tanto individual como coletivamente. A
rigorosa porém sensível abordagem do tema feita por Stein faz dele um
líder no campo da compreensão do fenômeno do abuso, assim como no que
tange às providências que podemos tomar para modificá-lo. Ele questiona
a visão de Alice Miller da criança “sempre inocente”, sugerindo que essa
idealização literal da criança externa não corresponde à verdade e pode-se
constituir numa maneira perigosa de cair numa cumplicidade inconsciente
com a raiva da criança interior ferida. O debate que se desenvolve entre
estes dois destacados profissionais é, de fato, instigante.
Este artigo foi originalmente publicado na revista Voices, em 1986, e
depois foi reelaborado para o jornal Spring, no ano seguinte.
O abuso de crianças sempre reflete uma ausência de conexão com a criança
interior ou psíquica, uma falta de respeito para com ela. Como arquétipo, a
imagem da criança está associada a um aspecto recém-desenvolvido da
psique, ainda em grande parte contido na natureza. Segundo Kerényi, estar
à vontade no mundo primordial é uma qualidade essencial do arquétipo da
criança.1 A atitude relativa à criança que parece termos herdado dos tempos
vitorianos, se não de antes, é a de que a psique do bebê recém-nascido é
uma tabula rasa (prancha em branco) e o desenvolvimento infantil depende
inteiramente de como a educamos e moldamos. Tratar a criança como
objeto a ser moldado, em vez de nos relacionarmos com ela como alma
inteligente e capaz de intencionalidade e escolha, é a principal base
psicológica do abuso de crianças. Pesquisas com pais que cometem abusos
mostram que a maioria deles afirma terem sido eles próprios vítimas de
abusos na infância. Os abusos vêm sendo perpetrados internamente por um
superego sem afeto e crítico que não entende nem respeita a criança
interior.
A psicologia profunda sustenta que os mundos interno e externo refletem
um ao outro. Se a epidemia que ora existe de casos de incesto e abuso de
crianças reflete nossa atitude coletiva perante a criança interior, precisamos
então perguntar o que está por trás da necessidade compulsiva de abusar da
criança exterior e de molestá-la sexualmente.
O modo como eu trato a minha criança interior é o modo como irei tratar a
minha criança exterior. Por que eu quereria abusar de minha criança
interior? Como abuso dela? Se a minha criança está saindo da linha, quero
detê-la, e isso pode resultar em abuso. Por exemplo, minha criança gosta de
ficar brincando e apenas existir, não gosta muito de horários e da pressão
que exerço sobre ela para trabalhar, para escrever este artigo, para fazer
qualquer coisa que não seja divertida. Abuso de minha criança,
fundamentalmente, por lhe permitir apenas raras ocasiões em que dirige a
situação e por recriminá-la por ser tão preguiçosa e improdutiva. E quando
ela se torna esquiva e deprimida, no início faço tudo que é possível para pô-
la em movimento, para mantê-la ocupada com alguma atividade útil.
Quanto mais nossas atitudes e metas são ditadas pelo ego e quanto mais
elas são de natureza coletiva, mais provável será que tenhamos problemas
no trato com a nossa criança interior, porque a criança arquetípica contém
conhecimentos a respeito de suas próprias necessidades de desenvolvimento
que, muitas vezes, se opõem à nossa orientação egocentrada. E aqueles que
não são espertos o bastante para manipular e controlar verbalmente a
criança em geral recorrem a medidas físicas de abuso para mantê-la em seu
lugar.
Paradoxalmente, a necessidade compulsiva do adulto de ter intimidade
sexual pode, inicialmente, decorrer de um profundo sentimento de
compaixão pela criança que sofreu abuso e foi negligenciada. O que estou
sugerindo é que o outro lado deste ódio pela criança problemática é um
amor e compaixão profundos pelo aspecto vulnerável, negligenciado,
abandonado e maltratado da alma. A necessidade que a alma tem de união é
expressa, geralmente, mediante imagens de intimidade sexual. Quando um
adulto sofre de uma profunda cisão espírito/carne, mente/corpo, amor/sexo,
cairá, frequentemente, sob o poder compulsivo do impulso sexual para
concretizar essas imagens. A cura não está em tentar superar esses desejos
“pervertidos”, mas em conseguir vivenciar plenamente os desejos
incestuosos, nos planos emocional e das imagens. Dessa maneira, o impulso
sexual vai sendo gradualmente transformado e a criança (interior e exterior)
pode ser amada, estimada e respeitada como um ser singular.
A imagem da criança como pessoa inocente, impotente, desprotegida e
carente de impulso sexual parece fundamentar-se mais no arquétipo da
virgem divina e inocente (Cora) do que nas realidades empíricas da
infância. Perséfone, a inocente deusa virginal que é estuprada e raptada por
Hades, que a leva ao mundo subterrâneo, representa uma qualidade sedutora
e encantadora da alma, que, sem dúvida, pertence à criança. Essa qualidade
inocente, vulnerável e virginal da alma, tão facilmente violada - e que até
mesmo convida à violação por parte das obscuras forças inferiores -
pertence à necessidade que a alma tem de ser penetrada e aprofundada. Essa
penetração psicológica que procede de baixo, em geral vivenciada como
estupro, precisa ser reconhecida como processo psicológico essencial à
consolidação da alma, ou o processo tenderá a ser vivido de forma literal,
quer dizer, por meio de identificação com a vítima inocente ou por meio de
vínculos de apego com outras pessoas nas quais o arquétipo é projetado.
Talvez a epidemia atual de abuso e molestação sexual de crianças também
se deva em parte ao fato de que o arquétipo de Cora tem sido projetado em
nossas crianças, que então tendem a viver por nós essa projeção.
Acredito que no seu livro Prisoners of Childhood,2 Alice Miller descreve a
criança que está identificada com a projeção de Cora e que, em
consequência disso, é repetidamente violada porque não tem acesso aos
alicerces de seu ser instintivo. Nenhum animal jovem saudável se permite
ficar próximo de qualquer pessoa que sinta ser abusiva, assim como não
tolera, sequer por um instante, que alguém se aproveite de sua confiança e
vulnerabilidade. Por que uma criança saudável seria em algum sentido
menos capaz de se proteger? Minha neta de três anos, que é tão vulnerável e
sedutora quanto um gatinho brincalhão, também é tão determinada,
independente e poderosa quanto um tigre, quando quer alguma coisa. A
imagem que Miller esboça da criança como “sempre inocente” e sua
rejeição das teorias de Freud acerca da sexualidade infantil, como projeção
de atitude vitoriana patriarcal com respeito às crianças,3 parecem-me antes
uma regressão à projeção pré-freudiana, vitoriana, idealizada da criança.
Freud destruiu a imagem vitoriana da criança como ser inocente, puro,
impotente e assexual em seu trabalho insuperável Três Ensaios sobre a
Sexualidade.4 Ao nos tornar conscientes da importância crucial da pulsão
sexual na infância e meninice para o desenvolvimento psicológico, Freud
estava, paradoxalmente, estabelecendo que o instinto sexual e,
provavelmente, outros instintos humanos básicos contêm uma inteligência e
uma intencionalidade que ultrapassam a mera sobrevivência física da
espécie. Assim, quando, na criança, os instintos sexuais estão bloqueados,
ou se ela não tem a vivência deles, em consequência de um complexo
edipiano ou do que denominei ferida do incesto, ela perde o contato com
uma força e uma inteligência instintivas que poderiam protegê-la de abusos
e manipulação.
Freud abandonou sua teoria do trauma não porque acreditasse que essas
recordações da infância fossem relativas a seduções que não tinham
ocorrido, mas porque se deu conta de que o fato de essas lembranças
sexuais serem ou não verdadeiras era menos importante, do ponto de vista
psicológico, do que a realidade psíquica das imagens. Em meu livro Incest
and Human Love,5 apresento a ideia de que, psicologicamente, o tabu do
incesto funciona para estimular a imaginação sexual e a formação da
imagem do casamento como uma União Sagrada, o hieros gamos, para
humanizar e transformar a sexualidade; para nos fazer tomar consciência de
nossa incompletude e para estimular o desejo de nos sentirmos completos,
primeiro pela união com uma outra pessoa, mas, fundamentalmente, por
meio de uma união interna. Também defendo que estão contidos na
polaridade do arquétipo do incesto tanto o desejo como a inibição, e que a
tensão entre estes opostos é essencial ao desenvolvimento psicológico.
Proponho que a repressão, seja do desejo, seja da inibição, causa uma cisão
na psique da criança entre amor/sexo, mente/corpo, espírito/carne, e usei a
e x p r e s s ã o ferida do incesto para descrever essas cisões do
desenvolvimento. A profundidade da ferida do incesto é determinada pela
gravidade da cisão psíquica entre amor e sexo, mente e corpo, desejo e
inibição. A meu ver, as feridas da alma decorrentes da repressão da
sexualidade podem ser tão perniciosas quanto o contato sexual concreto
entre pais e filhos. O atual enfoque míope sobre a violação literal do tabu
do incesto é lastimável, porque acabou desviando a atenção de questões que
são mais profundas e relevantes do ponto de vista psicológico. O literalismo
antipsicológico de Alice Miller sugere que ela se tornou presa de uma
identificação com sua própria criança interior zangada, negligenciada e
carente. Infelizmente, nada é mais prejudicial à criança e à sua rica vida
de imagens do que o literalismo.
Existe, acaso, alguma ligação entre a exploração e o abuso de crianças nos
tempos vitorianos e o surgimento da era industrial? Será que existe uma
ligação semelhante entre o surgimento de nossa moderna era
computadorizada e a epidemia de abuso de crianças? Estaremos nós, como
nossos ancestrais vitorianos, talvez inflacionados com o nosso poder recém-
encontrado de entender e manipular as forças naturais do universo?
Estaremos, talvez, identificados com aquilo que Jung chamaria de arquétipo
do senex, o Velho Sábio onisciente?
A identificação com um arquétipo sempre leva a inflação, unilateralidade e
literalismo. Alheio à renovadora vitalidade do arquétipo da criança, o senex
se torna, progressivamente, estreito, árido e rígido. Quanto maior a cisão
interna entre os arquétipos do senex e da criança, mais desesperada é a
necessidade que o senex tem de integrar as qualidades de deslumbramento
inocente, abertura, vulnerabilidade e frescor virginal que a criança contém.
Mas a criança também precisa da estabilidade proporcionada pela força,
pela sabedoria espiritual ancestral, pelos limites e pela profundidade do
senex. Dessa forma, o Senex e a Criança são uma polaridade que funciona
criativamente para o desenvolvimento psicológico somente quando formam
uma totalidade complementar, e não uma cisão oposicional. Essa espécie de
cisão é, provavelmente, um dos principais fatores responsáveis pela
necessidade compulsiva de tantos adultos de terem intimidade sexual com
crianças. Quanto à criança, que pode estar vivendo o dinamismo da
projeção desse arquétipo da Cora virginal e inocente, ela não só foi privada
da sua força instintiva para se proteger desses abusos, como também está
nas garras de um poder arquetípico que precisa integrar sua outra metade.
A histeria contemporânea com relação ao incesto e à molestação sexual
intensifica o medo da sensualidade e da sexualidade entre pais e filhos, em
lugar de inspirar- nos a encontrar uma nova maneira criativa de nos
relacionarmos com o mistério do incesto. Sugeri que a função primária da
proibição do incesto é a de estimular a imaginação sexual e colocar os
instintos a serviço do amor, da fraternidade e da criatividade. Isso significa
que é essencial à saúde e à maturação psicológicas da criança que ela
vivencie um fluxo e uma vinculação erótica com seus pais e irmãos, sem
medo, culpa ou violação.
Gostaria de concluir estas reflexões com duas citações de um artigo
extraordinário e original, “O Amor Edipiano na Contratransferência,” de
Harold Searles. Ele propõe que a experiência mútua de sentimentos
românticos e eróticos entre analista e analisando constitui uma faceta
essencial à resolução do complexo edipiano na análise.6
Tenho constatado, vezes seguidas, que no transcurso do trabalho com cada
um de meus pacientes que tenha progredido rumo a uma minuciosa cura
analítica, ou avançado bastante nesse sentido, eu vivencio desejos
românticos e eróticos de casar e fantasias de estar casado com aquele
paciente.7
Ele indica que vivenciou o mesmo fenômeno com pacientes de ambos os
sexos.8 Searles oferece evidências adicionais para sustentar seus conceitos
através de suas vivências como pai e marido:
Com respeito à minha filha, hoje com oito anos, tenho experimentado
inúmeras fantasias e sensações do tipo romântico-amoroso, profundamente
complementares ao comportamento romanticamente adorador e sedutor que
ela tem demonstrado para com seu pai em muitas ocasiões, desde que
estava com dois ou três anos. Eu às vezes me percebia um tanto preocupado
quando ela brincava de uma maneira absolutamente confiante e “coquete”
comigo, e também ficava extasiado com seus encantos; depois cheguei à
convicção, já faz algum tempo, de que tais momentos de vivência da
ligação só poderiam ser nutritivos para sua personalidade em
desenvolvimento, além de deliciosos para mim. Se uma menininha não pode
sentir-se capaz de conquistar o coração do pai, que a conhece tão bem e há
tanto tempo, que está ligado a ela por vínculos de sangue, pensei, então
como poderá a moça que nela despertará mais tarde ter uma confiança
profunda em seu poder como mulher?9
23. O sussurro das paredes
SUSANNE SHORT
A analista junguiana Susanne Short leva-nos até o mundo intensamente
dramático de D. H. Lawrence e seu “Rocking Horse Winner”, para nos
mostrar os efeitos esmagadores do amor destrutivo inconsciente sobre a
vida interna e externa da criança. Este original artigo se concentra na
palavra não-dita na vida familiar, que, para a criança, é uma experiência
“insidiosa e prejudicial e pode levar a pessoa à loucura, porque não há
evidências do que está realmente acontecendo”. Infelizmente, algumas
crianças sofrem de maneira inconsolável com este destino.
Jung considerava que esta sina infeliz envolvendo pais e filhos tinha uma
solução limitada: “O que um pai estragou,” dizia ele, “só pode ser
reparado por um pai, assim como aquilo que foi estragado pela mãe só
pode ser reparado pela mãe” (Obras completas, vol. 14, parág. 182). Este
penoso tema é consideravelmente atenuado pelo tratamento afetuoso e
compassivo dado pela sra. Short, que vê a criança interior como aquela
porção de nossa alma que vivencia a angústia e que sofre. Ela diz que, “a
menos que ouçamos a criança dentro de nós, somos como os pais que não
dão ouvidos aos próprios filhos”.
"O sussurro das paredes” foi originalmente publicado como parte de um
trabalho mais extenso que apareceu na revista Psychological Perspectives,
edição de outono de 1989, número especial dedicado à criança.
“O sussurro das paredes” vem de uma história de D. H. Lawrence. Refere-
se ao que não se diz em família, particularmente ao que é palpável mas
silenciado na vida dos pais, e à maneira como isso afeta os filhos. Jung
achava que “nada influencia mais as crianças do que os fatos silenciosos
que ficam no fundo” da vida familiar.1 Um dos fatos silenciosos era a “vida
não-vivida dos pais”, como ele a chamava: aquela parte da vida afetada por
circunstâncias que haviam impedido os pais de irem em busca de sua
própria satisfação, ou aquela parte da vida de que se haviam furtado,
consciente ou inconscientemente. Outro desses fatos silenciosos era a
negação de suas próprias necessidades de amor ou de poder. Ele pensava,
especialmente, que os problemas vividos pelos pais em seus
relacionamentos amorosos tinham um grande efeito sobre o modo como as
crianças conseguiam negociar sua própria vida afetiva. E o último dos fatos
silenciosos eram as mudas expectativas dos pais de que o filho preenchesse
suas próprias necessidades narcisistas. Em outras palavras, de um jeito ou
de outro, a criança é forçada a dar vida à sombra de seus pais. Estas formas
sutis de crueldade em geral passam por “boa educação dada aos filhos” e
dificilmente nos dão indicações do que saiu errado no desenvolvimento
psíquico da criança. A crônica de Lawrence “The Rocking Horse Winner”
ilustra esse sutil processo de comprometimento. É uma história que os
analistas facilmente podem ouvir em seus consultórios:
Havia uma mulher que era linda, que tinha começado com todas as
vantagens, mas não tinha sorte. Ela se casara por amor, e o amor virara pó.
Tinha filhos robustos, mas sentia que eles lhe tinham sido impingidos e ela
não conseguia amá-los. Eles a olhavam com frieza, como se estivessem
encontrando os seus defeitos. E bem depressa ela precisava encobrir alguma
falha de sua pessoa. Porém, o que deveria encobrir, ela mesma nunca ficou
sabendo. Apesar disso, quando os filhos estavam presentes, sempre sentia
que o miolo do seu coração endurecia. Isso a incomodava e, à sua maneira,
ela se tornava ainda mais delicada e ansiosa em relação a eles, como se os
amasse muito. Somente ela sabia que, no miolo do seu coração, havia um
ponto duro que não conseguia sentir amor, não, por ninguém. Todos diziam
a seu respeito: “Mas que boa mãe ela é. Ela adora os seus filhos.” Somente
ela mesma, e seus próprios filhos, sabiam que isso não era bem assim. Eles
liam nos olhos uns dos outros.
Havia um menino e duas menininhas. Moravam numa boa casa, com jardim,
e tinham empregados discretos. Sentiam-se superiores a todos os outros
vizinhos.
Embora vivessem com todo o conforto e elegância, sempre sentiam uma
ansiedade pela casa. Nunca havia dinheiro suficiente.
Por isso a casa acabou sendo perseguida pela frase que ninguém
pronunciava: Precisa haver mais dinheiro! Precisa haver mais dinheiro! As
crianças conseguiam ouvi-la o tempo todo, embora ninguém a dissesse em
voz alta. Eles a escutavam no Natal, quando os dispendiosos e esplêndidos
brinquedos enchiam o quarto de brincar. Por trás do cavalinho de madeira
brilhante uma voz começava a sussurrar Precisa haver mais dinheiro!
Precisa haver mais dinheiro! E as crianças paravam de brincar, para escutar
por um instante. Elas olhavam umas nos olhos das outras para ver se todas
tinham ouvido. Precisa haver mais dinheiro! Precisa haver mais dinheiro!
Mas ninguém dizia isso em voz alta. O sussurro estava em toda parte, e por
isso ninguém falava.2
A história se concentra em Paul, o menino, que fica maluco tentando fazer
sua mãe feliz para que ela se sinta livre para amá-lo. Paul pensa que, se
conseguir ganhar bastante dinheiro para sua mãe, ela se sentirá feliz. (É
comum as crianças pensarem em recorrer ao pensamento mágico quando
não conseguem compreender o que está acontecendo no mundo à sua volta.)
Com a ajuda do jardineiro da família, que aposta em corridas de cavalos,
Paul começa a ganhar dinheiro sabendo qual cavalo vai vencer em cada
páreo. O jardineiro lhe diz os nomes dos animais de cada corrida. Paul sobe
em seu cavalinho de madeira e fica ali balançando até que o nome certo lhe
ocorra - embalando-se até entrar em transe, ele enfim consegue que o nome
do cavalo aflore, vindo do inconsciente. O jardineiro faz a aposta e os dois
ganham dinheiro. Tudo isso acontece em segredo. O menino então dá o
dinheiro ao tio para que este doe a quantia anonimamente para sua mãe.
Mas não importa quanto dinheiro Paul lhe dê, nunca basta. Por fim, ele se
esgota de tanto balançar em seu cavalo de madeira, fica doente e morre, não
antes de ganhar para sua mãe a quantia final de 80.000 libras. Em uma das
últimas linhas da história, o tio de Paul diz para a mãe do menino: “Você
tem 80.000 libras de sobra e um pobre filho de menos.”
Muitas crianças se sacrificam pelas necessidades de seus pais. Matam-se na
tentativa de tornar os pais felizes e de corresponder às expectativas que eles
e a sociedade alimentam a seu respeito. Como Jung disse, vivem a vida não-
vivida dos pais em vez de viverem a sua própria, e não sabem sequer que
estão fazendo isso. Nos últimos anos, todos nos temos conscientizado dos
índices cada vez maiores do suicídio infantil e adolescente, nos subúrbios
afluentes de nossas cidades. As crianças suicidas geralmente são as que
mais resultados obtêm em seus esforços e iniciativas. O caso envolvendo a
criança mais jovem de que tenho notícia registra que ela estava com dez
anos. Muitos sistemas escolares atualmente oferecem cursos de prevenção
do suicídio. Esses jovens aparecem para análise deprimidos e distantes de
seus próprios sentimentos, sem qualquer noção de quem são. Em geral, o
único sentimento que lhes está disponível é uma sensação de vazio, que os
junguianos chamariam de “a desesperançada perda da alma”. Sentem-se
emocionalmente abandonados, como se não fossem mais do que um produto
das expectativas de seus pais e da sociedade, como já disse.
Para compreender sua própria infância, é importante saber o que a casa
sussurrava quando você era criança, ou o que continua sendo sussurrado.
Ela pode sussurrar: Não há dinheiro suficiente. (Nas majestosas cidades da
América, onde o dinheiro é abundante, esse é um sussurro muito ouvido,
mesmo entre os ricos.) A casa pode sussurrar: Não há ninguém responsável
por aqui. Ou: Você não é bom o bastante, você não é tão bonita como a sua
irmã, você não é tão esperto quanto o seu irmão, você nunca vai prestar
para nada, você deve se destacar ou ter uma carreira que valha a pena.
Ou: Não está perfeito o suficiente, o que você está fazendo não é bom o
bastante para alguém com tantos talentos como você, você realmente
poderia sair-se melhor (comentário que torna uma maldição qualquer
talento que a criança tenha).
Uma das tarefas naturais da infância é desenvolver o ego. Quando você é
criança e está seguindo seu caminho natural, é uma tragédia ouvir no
silêncio que existe algo de errado em você, ou que algo vagamente
pressentido é esperado de você. T. S. Elliot disse: ‘‘É a conversa que não se
ouviu por trás da porta, que não tinha a pretensão de ser ouvida, juntamente
com os olhares de esguelha, que levam a morte ao coração de uma
criança.”3 “São essas as coisas que ficam em suspenso no ar,” escreveu
Jung, “e a criança sente-as vagamente, como a opressiva atmosfera de uma
previsão que se instala em sua alma e a envenena como um vapor
intoxicante4... atravessando as mais grossas paredes do silêncio, os alvos
sepulcros do logro, da complacência e da evasão.”5
Mesmo que não sejam ditas, as mensagens são ouvidas na psique da criança
com tanta clareza como se cada palavra houvesse sido pronunciada. A
palavra não-dita é insidiosa e prejudicial e pode levar a pessoa à loucura,
porque não há evidências do que está realmente acontecendo. (Os analistas
muitas vezes ouvem seus pacientes dizerem, a respeito de sua infância:
“Não havia absolutamente nenhuma evidência para o que eu estava
vivenciando.”) A palavra falada fere e magoa, causa rebeldia ou capitulação
nas crianças, mas é o sussurro das paredes da casa que as leva à neurose,
porque nunca estão certas de onde ele está vindo, de quem o disse, ou do
que ele quer exatamente dizer. As mensagens sussurradas procedem, por
assim dizer, do próprio madeiramento da casa, e devoram a confiança da
criança, seu senso de bem-estar, de ser amada. Em vez de ser um porto
seguro para a criança, sua casa se torna então um continente que não
contém, um continente que não reflete de volta para ela quem ela é ou o que
sente. Segundo Jung, o que a criança capta são apenas os conflitos não-
resolvidos de seus pais.
A criança precisa tornar-se consciente de seus misteriosos sentimentos,
ouvir alguém confirmar que a mensagem não-falada é, na realidade,
verdadeira. Se alguém tivesse dito a Paul: “Parece que as paredes
sussurram... O que está acontecendo na verdade é que sua mãe não se sente
feliz porque nunca está satisfeita com o que tem... Mas seus pais não falam
disso, e por isso você sente que tem que fazer alguma coisa para torná-la
feliz e, então, fazê-la sentir-se livre para amá-lo”, isso teria feito Paul saber
no que consistia o verdadeiro sofrimento: sua mãe não podia amá-lo apesar
do quanto se esforçasse. O sofrimento dele, então, teria sido legitimado e
não o teria feito adoecer.
Jung diz que neurose é a evitação do sofrimento legítimo. Sofrimento
significa, aqui, sofrimento consciente. Parece esquisito ser favorável a que
uma criança sofra, mas, paradoxalmente, o sofrimento legítimo e consciente
é o que a salva. Quando a criança não tem permissão para vivenciar
sentimentos de tristeza, raiva, perda e frustração, seus sentimentos reais
tornam-se neuróticos e distorcidos; na idade adulta, essa criança irá dispor
inconscientemente sua vida para repetir as mesmas repressões de
sentimentos. O psicólogo infantil Bruno Bettelheim lamenta que as crianças
não tenham consentimento para vivenciar o sofrimento legítimo. Ele afirma
que até mesmo os livros que elas leem na escola mostram a vida como nada
além de uma sucessão de prazeres. Ninguém fica realmente com raiva,
ninguém sofre de verdade, não há emoções reais. Bettelheim está apontando
o mesmo problema que Jung tinha descrito.
A mãe de Paul evitava o sofrimento legítimo. Se tivesse conseguido falar
com alguém e tivesse dito: “Adoro meus filhos, mas quando estou com eles
meu coração fica duro e penso que devo encobrir alguma falha em mim,”
ela teria chegado a compreender o problema subjacente. Ela não só
precisava falar de suas experiências, como também precisava saber qual era
seu verdadeiro sofrimento. Quando uma criança busca amor, atenção ou
confirmação de um pai ou mãe não-afetuosos, sabemos que é isso o que
esse pai ou mãe também precisa. A mãe de Paul buscava a mesma coisa que
ele: amor e atenção, que ela parecia nunca ter recebido.
De que maneira podemos esperar desvencilhar-nos deste pântano? Pode até
parecer que nossas vidas são por demais determinadas e restritas pela
potência da influência familiar. Mas será que o destino de uma criança está
inteiramente contido nos limites da família?
A declaração de Jung, de 1928, de que “os pais devem sempre estar cientes
do fato de que eles mesmos são a principal causa da neurose de seus
filhos”6 é muito inquietante. Sua noção de que “as coisas que exercem o
mais poderoso impacto sobre os filhos não necessariamente vêm do estado
consciente dos pais, mas de seu lastro inconsciente,”7 é assustadora, porque
podemos controlar nossa vida consciente em maior ou menor grau, mas o
inconsciente é incontrolável. É importante reconhecer que, embora a visão
de Jung, nesse aspecto, seja até certo ponto verdadeira, ela ignora o fato de
q u e a criança tem uma natureza que lhe é própria, a qual pode ou não
excluir uma predisposição a incorporar a neurose da família. Existe um
conjunto fascinante de pesquisas psicológicas baseado no trabalho de
Manfred Bleuler, cujas investigações, ao longo de trinta anos, sobre os
filhos saudáveis de pais esquizofrênicos ilustram esse ponto. O papel da
própria personalidade da criança na geração de seu destino e de sua
psicologia como portadora do sintoma familiar não deve ser esquecido. As
dificuldades psicológicas são, em última instância, tanto o resultado da
dinâmica familiar como das variáveis constitucionais únicas de cada
criança. Desde 1928 sabemos que a criança é um indivíduo e que a teoria da
fusão pais-filhos pode ser um exagero. Aliás, até mesmo Jung amenizou
seus pontos de vista com o passar dos anos.
Independente do quanto seja pequena, a criança é uma pessoa em si - não
uma tabula rasa sobre a qual os adultos “escrevem”, como pensaram certos
filósofos. Decerto que um bebê muito pequeno é uma pessoa em formação,
mas, mesmo assim, é um indivíduo.
A criança traz algo especial e singular ao contexto do relacionamento com
seus pais. Quando as crianças nascem, nasce nelas também uma parte
daquilo que virão a ser. Têm em si as “matérias-primas” de que precisarão
para crescer e maturar. Desenvolver-se-ão não só no plano físico, mas
também no psíquico. Gertrude Stein disse certa vez que não importa o que
Paris dá a você, mas o que a cidade não lhe tira. Vale o mesmo para as
crianças. A questão não é tanto o que os pais lhes dão, mas o que eles não
lhes tiram. Podemos aplicar esta ideia a nós mesmos: precisamos entender o
que tivemos permissão para manter, o que não nos foi retirado e o que foi
levado embora, para então podermos providenciá-lo de novo. Jung disse:
“Se, por causa de sua própria insegurança, os pais não conseguem aceitar
suficientemente a natureza básica de seu filho, então a personalidade da
criança sofre um comprometimento. Se este for além das vicissitudes
normais da vida, a criança será então apartada do cerne de seu ser e se
sentirá forçada a abandonar seu padrão natural de desenvolvimento.”8
Como é facilitado esse padrão natural de desenvolvimento? Sabemos da
importância do espelhamento: quando existe uma pessoa significativa no
mundo da criança, em quem ela deposite bastante confiança, amor, ou que
possa interpretar para ela o que ela mesma está sentindo, essa criança irá
vivenciar sua realidade como uma realidade verdadeira. Para impedir que as
paredes sussurrem, o adulto deve dar voz aos sussurros. A criança sente o
que sente, mas sua linguagem e seu equipamento conceitual para interpretar
tais sentimentos não estão plenamente desenvolvidos. O ideal é que o
adulto responsável, equipado com processos racionais de pensamento e de
percepção não-distorcida, se incumba de observar e refletir o que a criança
está sentindo.
Espelhar é autoafirmar e revela à criança o que ela é e o que está se
tornando. É importante distinguir entre elogio e espelhamento. O elogio
tende a ser valorativo; implica julgamento e pode criar a necessidade de
uma confirmação constante. O espelhamento, por sua vez, afirma o Self.
Por exemplo, se eu elogiar você, estarei dizendo a você o que sinto ou
penso a seu respeito. Se eu espelhar você, estarei refletindo para você o que
você sente ou pensa a seu próprio respeito. Se não houver verificação da
realidade da própria criança, ela pode se sentir desorientada. A ausência de
verificação cria a sensação de não-ser. A criança poderá então sentir-se
culpada por alguma coisa ruim que esteja acontecendo.
Lembremo-nos, por exemplo, da história de D. H. Lawrence. O mais trágico
era que os sussurros nunca se concretizavam numa conversa, numa
comunicação real dentro da família. Permaneciam como sussurros das
paredes. Para desfazer o dano que esses murmúrios podem causar,
precisamos tornar real a mensagem da família, seja ela qual for.
As crianças necessitam que todos os seus sentimentos verdadeiros sejam
confirmados e espelhados, a fim de que possam desenvolver fé e dedicação
às suas próprias experiências. Quando a criança se dá conta de que seus pais
nunca confirmarão o que ela sente, ela desiste e desenvolve uma persona
falsa que esconde um alicerce bastante frágil. Se ela não tiver permissão
para ser quem é e vivenciar seus próprios sentimentos, irá tornar-se uma
outra pessoa. Isso acontece com a maioria. Tornamo-nos nossa mãe ou
nosso pai, ou a fantasia do que é a criança boazinha, ou do que é a criança
má. Às vezes nos escondemos tão bem que, com o tempo, nem mesmo nós
conseguimos mais reconhecer nossos próprios disfarces. Envergando-os,
afastamo-nos de nossa ligação original com o Self. Somente no incômodo
de nossas depressões ou ansiedades é que somos forçados a ir em busca de
uma reconciliação. É a vaga sensação de estar “com saudade de casa
quando estamos em casa”9 que nos mobiliza para a busca de respostas nas
escuras cavernas da infância.
Jung disse: “Há no adulto a presença sorrateira da criança - uma criança
eterna, algo que está sempre se tornando, que nunca está completo, e que
pede atenção, cuidados e educação sempre maiores. É essa parte da
personalidade humana que deseja desenvolver-se e tornar-se completa.”10
Nossa consciência de ego, altamente desenvolvida, resiste a essa criança
interior. Essa resistência torna crítica a tarefa de descobrir a criança
interior. Quais são suas qualidades? Jung apresentou várias respostas. A
criança interior é “algo que existiu não só no passado, mas que também
existe agora”; é “não só a imagem de algumas coisas esquecidas na
infância, mas também um aspecto pré-consciente da psique coletiva... A
ideia da criança é um meio de expressar um fato psíquico que não pode ser
formulado com mais precisão... É um sistema que funciona para compensar
unilateralidades da mente consciente... A consciência precisa ser
compensada através do estado da infância, que continua existindo”.11
A parte de nossa psique que vivencia a angústia e o sofrimento é a parte que
contém a criança interior. A menos que nos tornemos conscientes dessa
criança interior, iremos às vezes comportar-nos de modo inconsciente,
mobilizados por essa parte em nós. Muitos reprimem ou ignoram as
vivências de sua infância e de sua criança interior. Quando temos essa
espécie de cegueira, estamos limitando nossa consciência e nossa
capacidade de viver a vida. A menos que ouçamos a criança interior,
seremos como os pais que não ouvem seus próprios filhos.
Parte 5
O resgate da criança
Introdução
Volta ao começo;
Torna-te outra vez criança.
- Tao Te Ching
As pessoas tornam-se absolutamente intoleráveis quando têm em seu ventre
uma ideia criativa que não conseguem dar à luz. Por isso alguém precisa
ajudá-las a trazer essa criança para fora.
- Marie-Louise von Franz
Os ensaios desta seção não necessitam de uma grande introdução geral, pois
o tema que têm em comum é evidente por si: foram escolhidos por sua
abordagem prática e direta da tarefa de conscientização da criança interior,
e cada um deles discute como recuperar os talentos peculiares à criança,
como se valer de sua vitalidade.
Lucia Capacchione criou uma série de exercícios que ajudam você a
compreender e a amar sua criança interior, baseando-se em sua descoberta
do vínculo entre a autoexpressão através da mão não-dominante e a criança
interior. Incluímos material para você obter o conhecimento de sua criança
interior, para curar e resgatar sua criança vulnerável e para encontrar-se
com sua criança lúdica.
Em seu ensaio direto e objetivo, Joyce C. Mills e Richard J. Crowley
descrevem técnicas para se entrar em contato com a criança interior, além
de abordagens para lidar com ela, usadas por dois mestres da terapia, o
proeminente psicanalista C. G. Jung e o decano dos hipnoterapeutas, Milton
Erickson.
Em “Liberando sua criança interior perdida”, o popular terapeuta e
professor John Bradshaw descreve um processo que ele chama de “redução
da vergonha” para a retomada da criança interior e do Self autêntico.
Com clareza de voz e espírito, o ensaio do autor John Loudon responde a
difícil questão de como tornar-se semelhante a uma criança e, ao mesmo
tempo, colocar no seu devido lugar as coisas da infância.
O psicólogo e autor Nathaniel Branden criou alguns exercícios bastante
práticos de complementação de sentença para despertar a percepção
consciente do Self-criança e para facilitar sua integração. Trata-se de um
poderoso recurso de autossugestão para o resgate da criança.
O artigo de Jean Houston, “Recordando a criança”, pede ao leitor que
receba a criança que um dia foi e a associe ao seu Self Superior, para evocar
aquilo que ela chama de seu “senso extenso de ser”, conhecendo então a
presença viva da criança interior.
Em “Revendo os filmes de sua infância”, Adelaide Bry reuniu uma série de
técnicas de visualização para a religação com a criança e para aprender a
confiar em sua natureza mais profunda.
O trecho de entrevista intitulado “Matando o dragão” é de autoria do grande
mitólogo visionário Joseph Campbell e fala do entrar em contato com a
criança que vive dentro de nós.
Por fim, num ensaio irrefutável, desafiador e gratificante, o analista
junguiano Robert M. Stein discute a redenção da criança interior
negligenciada, nos relacionamentos, nos casamentos e na psicoterapia.
24. O poder da sua outra mão
LUCIA CAPACCHIONE
A consultora e líder de workshops Lucia Capacchione tem um grande
entusiasmo pela vida da criança interior. Seu trabalho parece um manual
introdutório para cursos de tipo “Criança Interior 101”. Por meio de seu
processo pessoal de cura e resgate, ela descobriu uma maneira de soltar a
criança que existe dentro de nós. E generosamente reconhece também o
trabalho de vários outros articulistas desta coletânea, descrevendo como
integrar certos elementos de suas técnicas práticas à que ela apresenta,
criando então um programa completo e mobilizador para o resgate da
criança interior. Este texto foi extraído do livro de mesmo título publicado
pela autora.
O abuso de crianças é uma espiral descendente, uma trágica aflição
transmitida de uma geração para a seguinte. Sempre existiu, mas, nos
últimos anos, tem-se ouvido falar mais a seu respeito nos meios de
comunicação de massa. Pode ser que se tenha tornado um problema pior ou,
simplesmente, que estejamos mais dispostos a ventilá-lo agora do que antes.
E ficamos chocados diante do que descobrimos: tormento psicológico,
abuso físico e sexual nas famílias e nas escolas, pornografia envolvendo
crianças, sequestro de menores. Um número cada vez maior de crianças está
escapando e formando gangues, usando drogas e, às vezes, até mesmo
suicidando-se.
Desde o começo da moderna psicoterapia, a questão do trauma infantil tem
sido o fator central em muitos métodos de tratamento. Mais recentemente,
os trabalhos publicados pela psicanalista Alice Miller informam-nos acerca
de como a sociedade alimenta a psicopatologia e a violência dentro de casa,
na escola e em outras instituições. A maioria das pessoas sofreu abusos na
infância em maior ou menor grau. Os profissionais de terapia que trabalham
com adultos, adolescentes ou crianças atestam o fato sombrio de que muitas
pessoas preferem negar o tratamento deplorável que receberam em seus
primeiros anos de vida - a omissão dos pais, sua coerção ou mesmo a
violação direta — em favor de uma memória de fantasia que cria uma
“infância feliz”. Enquanto permanecer essa negação não há meios de se
“elaborar” o abuso, de modo que ele continua sendo legado às gerações
seguintes.
A negação tem sido uma questão central nas famílias de
alcoólatras/viciados/obsessivo-compulsivos. A negação dos problemas
familiares é tão grande que, no caso dos filhos adultos de alcoólatras, são
precisos muitos anos, depois de sair da casa paterna, para que a verdade
tenha permissão de vir à tona, às vezes inundando a pessoa de dor, sensação
de perda e ira. O problema atingiu, nos Estados Unidos, proporções
estarrecedoras. Em seu livro Healing the Within: Discovery and Recovery
for Adult Children of Dysfunctional Families, o dr. Charles Whitfield
escreve que os novos grupos de autoajuda para filhos adultos de alcoólatras
estavam se formando, nos últimos anos da década de 80, à razão de um por
dia. Essas organizações não-profissionais, gratuitas, reproduziam os
programas altamente bem-sucedidos dos grupos de Alcoólicos Anônimos e
Alanon. Como participante desses programas, posso, pessoalmente,
confirmar sua eficácia. Eles oferecem esperança aos desesperados e força
aos impotentes.
Nos campos da psicoterapia, assistência social e educação, um número
crescente de profissionais está lidando com o problema do abuso de
crianças. E no trabalho de aconselhamento de adultos o tema da cura e do
resgate da Criança Interior está sendo apresentado em livros, cursos,
seminários e programas de treinamento profissional. Se Whitfield está certo
em sua estimativa de que 80 a 95% da população não recebeu dos pais um
atendimento e uma atenção adequados, a cura e o resgate da Criança
Interior se torna a tarefa da maioria das pessoas.
Começando nos anos 60 e 70, Hugh Missildine (Your Child of the Past) e
Eric Berne (Análise Transacional) introduziram o conceito de Criança
Interior. Nos anos 80, Miller, Whitfield e Stone e Winkelman prosseguiram
com livros e técnicas terapêuticas, para encontrar e curar a Criança Interior.
Todos esses especialistas concordam em que ainda existe uma criança viva
em cada um de nós, uma criança que continua precisando de pai e mãe. Mas
nós devemos tornar-nos o pai e a mãe de nós mesmos. Devemos oferecer à
nossa própria Criança Interior a compreensão, compaixão e orientação que
o pai e mãe podem dar.
A Criança Interior consiste de todos os nossos instintos, sentimentos,
intuições, espontaneidade e vitalidade de natureza infantil. Ela é
naturalmente aberta e confiante, a menos que aprenda a se fechar por uma
questão de autoproteção. É emotiva e expressiva, até ser condenada por ser
o que é: uma criança. É brincalhona, até ser esmagada por ser infantil. Essa
Criança Interior é criativa, até ser ridicularizada por sua expansividade. É
mágica, até ser punida por ter imaginação. Podemos enterrá-la, distorcê-la,
prejudicá-la, fazê-la adoecer, mas não podemos livrar-nos dela.
Mais ou menos na época em que a maioria chega à idade adulta, nossos
traços naturais, saudáveis e infantis estão já tão feridos e magoados que
estão praticamente mortos. Ou estão distorcidos a ponto de serem
irreconhecíveis. O alcoolismo, o vício em drogas, a obsessão sexual, os
distúrbios alimentares, a compulsão de gastar dinheiro e as apostas em
jogos de azar são algumas das equivocadas tentativas de retornar à infância.
O comportamento resultante é uma infantilidade imprópria, em vez de uma
autêntica infantilidade.
Hal Stone e Sidra Winkelman escrevem a esse respeito de maneira
pungente:
A perda da Criança Interior... é uma das mais profundas tragédias do
processo de “crescimento”. Perdemos uma imensa parcela da magia e do
mistério de viver. Perdemos em igual medida a delícia da intimidade em
uma relação. Uma dose correspondente da destrutividade que despejamos
uns nos outros como seres humanos resulta da nossa falta de conexão com
nossas suscetibilidades, nossos receios, nossa própria magia... Talvez o eu
mais universalmente repudiado, em nosso mundo civilizado, seja a Criança
Vulnerável. Não obstante, essa Criança Vulnerável pode ser a nossa mais
preciosa subpersonalidade — a mais próxima da nossa essência aquela que
nos permite ser verdadeiramente íntimos, vivenciar completamente os
outros, e amar.
Mas existe esperança. A Criança não morre. Está ainda lá e pode ser
localizada, revivida. Como diz Charles Whitfield:
Nossa Criança Interior flui naturalmente, desde o momento que nascemos
até o momento de nossa morte, e durante todos os momentos de transição
entre ambos. Não temos que fazer nada... ela simplesmente existe. Se nós
apenas a deixarmos existir, ela irá expressar- se sem nenhum esforço
especial de nossa parte. Aliás, qualquer esforço é, geralmente, no sentido de
negar a sua percepção e expressão.
E onde vive essa Criança? Em nossas fantasias, pressentimentos,
preferências e repugnâncias; em nossos desejos e sonhos; em nossos
devaneios e em nossas mais alucinadas imaginações. Os exercícios deste
capítulo têm por objetivo ajudá-lo a encontrar, compreender e amar essa
Criança Interior: a Criança Vulnerável, a Brincalhona, a Mágica e todas as
outras nuanças sutis de sentimento contidas nesta sua parte. Você aprenderá
técnicas para recuperar-se dos abusos da infância.
Antes de tudo, você terá uma oportunidade para passar algum tempo
familiarizando-se com sua Criança Interior. Irá então descobrir quem esse
aspecto de sua personalidade realmente é, do que gosta e do que não gosta,
como se sente, do que precisa. Você também terá uma oportunidade para
aceitar e nutrir sua Criança Interior de uma maneira mutuamente benéfica.
Você pode até sentir-se de volta à casa, no regozijo de sua Criança Interior.
Para conhecer sua Criança Interior
1. Imagine um lugar que você sente que seria confortável para sua Criança
Interior, como:
um ponto próximo de um lago, de um rio ou do mar
um gramado
um jardim
uma bela sala.
2. Agora convide sua Criança Interior para entrar na imagem. Veja essa
criança em sua imaginação e pergunte-se: é um menino ou uma menina? De
que idade? Qual é sua aparência?
3. Agora comece a escrever um diálogo. Com sua mão dominante
cumprimente a criança, apresente-se e pergunte o nome dela. Deixe a
Criança Interior responder escrevendo com sua outra mão.
4. Diga à criança que você quer conhecer seus sentimentos, necessidades,
preferências e repugnâncias. Depois continue o diálogo. O Pai/Mãe
Acolhedor escreve com a mão dominante e a Criança Interior, com a não-
dominante.
5. Complete sua conversa perguntando à Criança Interior sobre uma coisa
especial que ela gostaria de ganhar de você. Cheguem a um acordo que seja
agradável para ambos, que satisfaça as necessidades da Criança e também
as do Pai/Mãe Acolhedor, responsável por concretizar o acordo. Certifique-
se de que você quer manter de pé o acordo firmado com a Criança. Caso
não queira, não faça promessas, pois assim irá decepcionar a Criança e
causar-lhe mais mágoas.
6. Agradeça à Criança por ter vindo. Se você quiser encontrá-la de novo,
combinem um momento e lugar.
No exercício seguinte, você poderá encontrar sua Criança Vulnerável. Uma
vez que ela não se ajusta à imagem “adulta”, esta pode ser a parte repudiada
de sua pessoa. Provavelmente está enterrada bem fundo. Mas, como vimos,
deixar que se manifeste pela escrita da mão não-dominante pode dar-lhe a
oportunidade de aparecer com mais facilidade. Pode levar mais tempo, mas
valerá bastante a pena, como você mesmo descobrirá por si. A energia e a
vitalidade que resultam desses diálogos são notáveis.
A cura e o resgate da Criança Vulnerável
1. Visualize um lugar bastante seguro, um ambiente protetor e
tranquilizador, como um quartinho aconchegante com mobília macia, ou
algum outro espaço que pareça quente e convidativo.
2. Imagine sua Criança Vulnerável em todos os detalhes: idade, sexo,
aparência, lugar no aposento ou no ambiente que você criou.
3. Cumprimente-a e convide-a a ficar com você. Anote a conversa, usando
as duas mãos. O Self Acolhedor escreve com a mão dominante e a Criança
Vulnerável, com a mão não-dominante.
4. Faça à Criança Vulnerável as seguintes perguntas:
Quem é você?
Como você se sente?
Por que você se sente desse jeito?
O que posso fazer para ajudá-la?
5. Diga à sua Criança Vulnerável exatamente o que você irá fazer para ir até
o fim e atender às necessidades dela. Se você não puder, não faça
promessas. Isso irá trair a confiança de sua Criança e só piorará as coisas.
6. Se você quiser encontrar-se com sua Criança Vulnerável outra vez,
combinem um momento e lugar. Agora agradeça-lhe por ter vindo e
despeça-se, por enquanto.
Observe, em sua vida cotidiana, os momentos em que sua Criança
Vulnerável está presente. Isso geralmente acontece quando você sente
cansaço, está doente, tem medo, sente-se triste, está intimidado ou
decepcionado. Observe o que você faz com esses sentimentos. Você se
permite senti-los? Você os neutraliza comendo, drogando- se, bebendo,
trabalhando além da conta, ficando muito com os amigos, vendo TV sem
parar?
Da mesma forma como é possível estabelecer um vínculo com a Criança
Vulnerável que vive hoje em nós, também é possível curar a Criança do
Passado. Um dos meus alunos que curou sua Criança Vulnerável é Tom, um
médico de meia-idade e excelente aparência, que também trabalha como
conselheiro. Ele participava das minhas aulas semanais de redação de diário
por motivos pessoais, mas também para aprender alguns métodos que usaria
com seus pacientes, especialmente com os hospitalizados.
Quando Tom veio para a aula pensava que era destro. Mas, como veio a
perceber, ele na realidade era um canhoto frustrado (canhoto forçado a
tornar-se destro). Não há dúvida para mim de que essa coerção para forçá-la
a conformar-se com a “mão da maioria causa profundos danos psicológicos
à Criança Vulnerável da pessoa. Mas essa ferida pode ser curada na idade
adulta, como veremos no caso de Tom.
Quando Tom teve permissão de escrever com sua mão esquerda reviveu
uma situação com sua antiga professora. Enquanto escrevia, ele realmente
reviveu alguns eventos dolorosos e mais tarde relatou uma história sombria.
No início de sua infância, uma professora havia forçado o pequeno Tom
(por meio de abuso físico e de ameaças) a ser destro. Ele tentara rebelar-se,
mas a professora por fim vencera.
Querida Criança Vulnerável, estou muito feliz por tê-la encontrado de novo. Há alguma coisa que
você gostaria de me dizer hoje?
Sim. Quero que você fique comigo. E me leve com você aonde você for. Por
favor, ouça o que eu sinto e cuide de mim. Não deixe que esses outros me
empurrem para o lado ou me tratem mal. Não deixe que eles convençam
você a me deixar de fora porque você não pode me deixar de fora. Eu sou
sua própria criança e vivo dentro de você. E nunca vou crescer nem ir
embora. Eu vou estar sempre aqui.
Ele a via como uma bruxa e conseguiu sentir a intensa raiva e frustração
que tinha sido forçado a reprimir, sendo uma criança num mundo de
adultos. Mais tarde, conseguiu perdoá-la ao
estava sorrindo mais transformá-la, de bruxa, numa mulher (uma pessoa que
estava fazendo o melhor que podia). Quando a perdoou, Tom curou o
trauma de sua infância, de ser forçado a trocar sua dominância lateral.
Algumas semanas depois de Tom ter começado a escrever com sua mão
esquerda, os elementos do grupo observaram que ele e parecia muito mais
descontraído. Vários anos mais tarde, é da seguinte maneira que ele se
descreve como canhoto:
Minha caligrafia com a mão esquerda é mais elegante e realmente mais
legível do que a que sai com a mão direita. Se eu tenho tempo, anoto
minhas expressões pessoais com a mão esquerda, e a caligrafia que sai com
a mão direita é desagradável para mim, agora.
A história de Tom teve um final feliz: ele curou sua Criança Vulnerável.
Forçado a renunciar à sua dominância esquerda natural por um adulto que
tinha mais autoridade e era mais forte, o Pequeno Tom tinha negado seu
estilo natural de expressão. O Grande Tom finalmente resgatou o Pequeno
Tom colocando uma caneta em sua mão e deixando que ele escrevesse.
O próximo exercício irá permitir-lhe revisitar e curar uma situação que
pode tê-lo oprimido quando você era criança. Você estará aniquilando o
tempo por assim dizer, e trazendo o passado até o presente. Você estará
lidando com uma situação concreta, com sentimentos e reações específicas
que há muito tempo estão enterrados. Este exercício pode conferir-lhe o
poder de assumir responsabilidade por si mesmo, em vez de culpar seus
pais ou outras pessoas de sua infância. Se ainda vivem em você sentimentos
que pertencem a situações passadas, então a Criança Interior continua viva.
E você, o adulto, é agora seu pai/mãe. Cabe-lhe oferecer à Criança a
delicadeza e a compreensão de que necessita, em lugar de exigir que os
outros façam isso por você.
A cura da Criança do Passado
1. Volte a um momento de sua infância em que você sentiu medo, tristeza,
solidão ou alguma emoção muito forte que na ocasião não conseguiu
expressar.
2. Imagine que o adulto do presente visita essa Criança do Passado e se
senta para conversar com ela. Seja o conselheiro dessa Criança.
3. Converse com a Criança Interior do Passado. Na qualidade de
conselheiro, deixe a Criança falar de si mesma, do que aconteceu e do que
ela precisa. Deixe o conselheiro escrever com sua mão dominante e convide
a Criança Interior do Passado a escrever com a outra mão. Peça-lhe que
responda às seguintes perguntas:
Qual é seu nome ou apelido?
Que idade você tem?
Fale-me de você. O que aconteceu?
Como você se sente?
Por que você se sente assim?
Do que você precisa agora? Como posso ajudá-la?
Observe quais são seus sentimentos na vida cotidiana. Observe se essa
Criança do Passado aparece.
O próximo exercício tem a intenção de ajudá-lo a encontrar sua Criança
Brincalhona. Essa é a parte de sua pessoa que adora divertir-se, que é
autenticamente espontânea e exuberante. Ela pode ser boba, ter senso de
humor e sentir prazer em estar viva. A Criança Brincalhona está muito
presente no corpo e no momento. Aprecia sensações agradáveis: cores
bonitas, sabores deliciosos, a sensação da brisa marinha, movimentar o
corpo de maneira gostosa, tomar banho quente quando faz frio. A Criança
Brincalhona não faz coisas só porque elas “devem fazer-lhe bem”, e sim
porque é gostoso.
Para isso, mande seu “adulto metido e sabido” para umas férias rápidas
(quer dizer, aquela parte em você que só trabalha e nunca se diverte) e
convide a Criança Brincalhona que vive dentro de você a vir para fora.
A Criança Brincalhona
1. Imagine um local em que sua Criança Brincalhona gostaria de encontrá-
lo, como, por exemplo:
um quarto de brinquedos
um parquinho de diversões
um zoológico
um centro de diversões
a praia
um local de recreação
2. Agora convide a Criança para sair ao seu encontro. Deixe que a Criança
Brincalhona faça um desenho de si mesma com sua mão não-dominante.
Peça à Criança que lhe diga qual é seu nome e que o escreva no desenho.
3. Escrevendo agora com a mão dominante (como seu eu adulto), converse
com sua Criança Brincalhona (que escreve com a mão não-dominante).
Pergunte à Criança tudo o que quiser saber sobre ela.
Do que você gosta? Do que você não gosta?
Onde você gosta de brincar?
Que tipo de coisas você gosta de fazer quando brinca?
Com quem você gosta de brincar?
O que você gosta de comer e beber?
Quais são seus lugares favoritos para comer?
Onde você gostaria de ir nas férias?
Que tipo de roupa você gosta de usar?
Quais são as suas cores prediletas?
Qual é o seu aposento predileto? E o seu lugar favorito?
4. Pergunte à sua Criança Brincalhona como ela se sente a respeito do lugar
que tem em sua vida neste momento. Ela se sente querida e incluída? Ou
ignorada e desprezada?
5. Pergunte à sua Criança Brincalhona que coisa ela quer de você agora. Se
você estiver disposto a fazer isso, diga à Criança exatamente como irá
satisfazer o desejo dela. Seja específico. Se você não vai pôr isso em
prática, não faça promessas. Isso apenas decepcionará a Criança e
enfraquecerá a confiança entre vocês.
6. Agradeça à sua Criança Brincalhona por ter vindo conversar com você e
combine um novo encontro com ela, se você quiser.
Mais tarde, perceba a presença da Criança Brincalhona quando ela quiser
vir à tona em sua vida cotidiana. Ela pode querer um tempo especial para
um banho quente, para colher flores ou para dar uma volta de bicicleta até a
loja, em vez de ir de carro.
25. O contato com a criança interior
JOHN BRADSHAW
O conselheiro e líder de cursos John Bradshaw tem uma capacidade
deveras impressionante de sintetizar ideias numa forma verdadeiramente
útil. Muita gente já sentiu essa qualidade em suas apresentações pela
televisão de programas sobre a família, que obtêm altíssimos índices de
audiência. Este trabalho, que é um capítulo de seu livro Healing the Shame
That Binds You, representa as atuais ideias de Bradshaw acerca da criança
interior. O conceito de criança interior é um tema que se tem destacado em
seu trabalho a partir de uma variedade de fontes, mas o movimento de
recuperação do alcoolismo em programas de doze passos continua sendo
seu modelo fundamental e sua metáfora essencial para a cura, o resgate e o
crescimento. Sua “meditação da criança interior perdida” aqui
apresentada é de um interesse especial.
Provavelmente, também eu teria ficado presa na compulsão de proteger os
pais... se não tivesse entrado em contato com a criança em mim, que
apareceu tarde na minha vida, querendo contar-me um segredo... cheio do
medo do escuro de um adulto... Mas eu não consegui fechar a porta e deixar
a criança sozinha até morrer... Tomei uma decisão que iria mudar
profundamente a minha vida... depositar minha confiança naquele ser
praticamente autista que tinha sobrevivido ao isolamento de décadas.
- Alice Miller, “Pictures of Childhood”
Bradshaw On: The Family [Bradshaw Sobre: A Família] descreve três fases
distintas da redução de minha própria vergonha e do meu processo de
externalização. A figura ilustrativa mais à frente oferece uma imagem
visível dessas fases.
A primeira é a fase da recuperação. Por meio do apoio do grupo e de seu
amor e espelhamento, recuperei meu senso de valor próprio. Arrisquei-me a
sair da toca e a expor o meu eu que era fruto da sensação de vergonha. Ao
me ver refletido nos olhos livres de vergonha das outras pessoas, senti-me
bem dentro de mim. Resgatei a ligação comigo mesmo. Não estava mais
completamente sozinho e fora de mim. O grupo e outras pessoas
significativas ajudaram-me a recompor minha sensação de ter um vínculo
interpessoal.
O processo de recuperação é uma mudança de primeira grandeza. Isso quer
dizer que mudei um tipo de comportamento por outro. Deixei de beber e de
isolar-me. Partilhei minhas vivências, minha força e esperança. Comecei a
falar e a contar o que estava sentindo. Comecei a ter sentimentos outra vez.
Desloquei minha dependência para a nova família que havia descoberto.
Ainda existia uma criança dependente e cheia de vergonha, em mim, que
fez do novo grupo a segurança de um salvo-conduto, como a que os pais
oferecem.
Minha vergonha estava menor, mas ainda era ativa, o que se evidenciava no
fato de eu ainda ser compulsivo e ter dificuldades com a intimidade.
Escolhia mulheres que eu sentia precisarem de mim, confundindo amor com
piedade. Criava relacionamentos que mais lembravam equipes de resgate,
nos quais os outros se tornavam dependentes de mim e me enxergavam
como todo-poderoso. Comecei a trabalhar doze horas por dia, inclusive aos
sábados. Fumava mais e comecei a ingerir muito açúcar. É verdade que
havia detido o avanço de uma doença que ameaça a vida, chamada
alcoolismo, que havia reduzido a vergonha, que me sentia melhor comigo
mesmo, mas eu ainda era compulsivo e impulsivo. Ainda não estava livre.
Para ficar livre, precisava fazer um trabalho relativo à minha família de
origem. Eu ainda precisava crescer e realmente sair de casa.
Fritz Perls disse, uma vez: “O objetivo da vida é passar do apoio dado pelo
ambiente para o apoio dado pelas próprias pernas.” O objetivo da vida é
alcançar a não-dependência. A não-dependência fundamenta-se numa noção
saudável de pudor. Somos responsáveis por nossa própria vida.
Nossos relacionamentos iniciais foram marcados por precários modelos de
identificação e pelo abandono. Isso é o que cria uma identidade alicerçada
na vergonha. Pelo fato de não termos um Self autêntico, apegamo-nos aos
nossos provedores estabelecendo um vínculo de fantasia, ou erguemos à
nossa volta os muros que nos defendem de possíveis agressões de fora.
Essas primeiras impressões tingem todos os relacionamentos subsequentes.
Certa ocasião estava ouvindo Werner Erhard, o fundador do est, dizer:
“Enquanto não resolvermos os nossos relacionamentos originais jamais
estaremos de fato em algum outro relacionamento.” Sair de casa significa
romper os nossos relacionamentos originais. E uma vez que carregamos
grande parte de nossa vergonha como decorrência dessas relações, sair de
casa é uma maneira poderosa de reduzir a vergonha.
Sair de casa
O que está envolvido no processo de sair de casa? Como o fazemos?
Sair de casa é a segunda fase da jornada rumo à totalidade. Denomino-a
Fase do Desnudar. Implica fazer contato com a mágoa e com a criança
interior solitária que há muitos anos foi abandonada. Essa criança é aquela
parte em nós que abriga nossa energia emocional bloqueada. Essa energia
sofre um bloqueio especial quando passamos por abusos graves. Para
recuperar a ligação com essa criança ferida e magoada, temos que voltar
atrás e reviver as emoções que estiveram bloqueadas.
Quando formamos bloqueios à energia emocional, eles afetam seriamente a
nossa capacidade de pensar e raciocinar. Nossa mente sofre uma diminuição
do âmbito de visão. Ficamos contaminados em nossos julgamentos, em
nossa percepção e em nossa capacidade de raciocinar sobre eventos
concretos de nossa vida pessoal. (Esse bloqueio emocional não parece
comprometer as modalidades de pensamento abstratas ou especulativas.)
*Serendipidade quer dizer a faculdade de fazer acidentalmente descobertas felizes. (N.T.)
JOHN LOUDON
A ideia de se tornar como uma criança na idade adulta é um paradoxo que
muitos interpretadores têm tentado resolver: como é possível, indaga John
Loudon, efetuar essa tão sutil tarefa? O ensaio de Loudon, na realidade,
faz muito mais do que abordar essa questão. Ele cria um contexto
filosófico, espiritual e religioso para essa busca, enfatizando o processo de
desenvolvimento de uma vida inteira. “Em certo sentido”, diz ele, “tornar-
se uma criança - atingir o nível, as habilidades, as orientações e tudo o
mais a que somos convocados - pode ser uma tarefa que leve a vida inteira
para ser completada. ”
Este trabalho foi originalmente publicado na revista Parábola (Volume IV,
nº 3), numa edição dedicada à criança. Loudon é escritor e editor no norte
da Califórnia.
E disse: Na verdade eu vos digo que, se vos não converterdes e vos não
tornardes como as criancinhas não entrareis no reino dos céus.
- Mateus, 18:3
Quando eu era menino, falava como criança, apreciava as coisas como
criança, discorria como criança. Mas, quando me tornei homem feito, fiz
desaparecer o que era próprio da criança.
- Coríntios I, 13:11
As tradições religiosas, especialmente o cristianismo, parecem oferecer
mensagens conflitantes acerca da infância como um estado ideal. Por um
lado, os Evangelhos dizem que, a menos que você mude a direção de sua
vida (na metanoia) e se torne como uma criança pequena, não poderá entrar
no reino do céu. No Evangelho de São João, de teor mais místico, Jesus diz:
“Em verdade, em verdade vos digo que não pode ver o reino de Deus senão
aquele que nascer de novo” (João 3:3). Por outro lado, Jesus rejeita
regularmente a monótona passividade da religiosidade pueril e Paulo nos
adverte a deixar de lado, como ele mesmo fez, as coisas da infância. É
ainda mais significativo que todas as proclamações de Paulo e todos os
Evangelhos sejam, na realidade, histórias cujo clímax está na paixão, morte
e ressurreição de Jesus e em sua declaração de que apenas perdendo sua
vida é que você irá encontrá-la. Que ideal é esse que se parece em parte
com a infância e, no entanto, só vem com a maturidade, com a morte para o
Self e o nascimento para uma nova vida?
Há aqui, sem dúvida, duas visões diferentes da infância. Para mim, o
paradoxo que representam parece ser mais um dos profícuos aparentes
conflitos dos quais as tradições vivas estão repletas e que assim convidam a
uma sondagem mais profunda, a uma busca pelo entendimento.
Uma linha de resolução - aquela que adotam os teólogos e a maioria dos
exegetas cristãos - consistiria em estudar as passagens que parecem
contraditórias com uma meticulosa postura analítica (examinando a
linguagem, o contexto, a função, a data, etc. de cada passagem) e chegar a
uma interpretação sintética. Por certo que alguns desses estudos já foram
bem conduzidos. Mas hesito em remover com tanta afobação o aguilhão da
contradição. Há aqui uma sensação de desafio que vale a pena ser
enfrentado e que, para mim, é um desafio autêntico de algum modo,
fundamental para aquilo que o Novo Testamento quer dizer.
Proponho, portanto, uma via talvez mais frutífera, ou pelo menos inédita,
para se chegar à verdade que está no cerne do paradoxo. Consiste em
investigar o aparente ideal da infância à luz das concepções tradicionais e
contemporâneas acerca dos estágios da vida. De que forma a admoestação
para que nos tornemos como as crianças se relaciona com as várias
dimensões e passos discerníveis do desenvolvimento humano? Será
anômala a injunção bíblica, ou um dito em código que reflete os debates
dos primeiros cristãos, ou conteria ela uma introvisão acessível a respeito
do crescimento e potencial humanos, a respeito das leis do nosso devir e da
perfeição?
As distinções mais universais entre os estágios da vida, nas sociedades e
religiões tradicionais, são, certamente, as que são apresentadas pelos ritos
de passagem. Como francamente se expressou uma mulher apache:
Pensamos na vida da mulher como uma coisa compartimentalizada. Um dos
compartimentos é o da meninice, outro é o da mocidade, outro, o da meia-
idade, outro, o da velhice. As canções têm a função de ir levando-a de um
para outro. As primeiras canções descrevem o lar sagrado e a cerimônia.
Depois vêm as canções sobre flores e coisas que crescem. Estas
representam sua juventude e, da mesma forma como as canções vão
passando pelas estações do ano, também a moça vai amadurecendo até
chegar à velhice.
Há ritos para a gestação, para o parto, para a infância, para a iniciação na
idade adulta, para o período de compromisso e o casamento, para a
iniciação no sacerdócio e para a morte como passagem final. O que é
especialmente digno de nota nestes estágios identificados pelos ritos é o
fato de estarem associados ao crescimento, ao desenvolvimento. São
cumulativos, e cada transição acrescenta uma dimensão ou nível à vida da
pessoa. Dessa forma, por exemplo, as iniciações na idade adulta em geral
envolvem a aquisição de um conhecimento especial, com a simultânea
desilusão em relação às crenças infantis, e o acréscimo de uma nova carga
de responsabilidades. Em algumas tradições, esses estágios da vida foram
discriminados em ideais religiosos distintos, e cada um deles tem seus
atrativos, perigos e responsabilidades. No hinduísmo, por exemplo, há
quatro estágios (ashramas) no caminho do conhecimento: discípulo, chefe
da família (família, carreira), eremita (recluso, ascético) e andarilho (o
homem santo, o sannyasin). Embora uma relativa perfeição possa ser
alcançada em cada estado, o ensinamento diz claramente que o
desenvolvimento completo, a plena consecução de moksha (a libertação da
finitude) só vem com a conclusão do ciclo. E, em geral, as divisões
tradicionais dos estágios da vida sugerem com convicção que a infância é
um estágio que, obviamente, deve ser ultrapassado para que a pessoa atinja
o pleno conhecimento, a totalidade da vida e do ser. Não obstante — e esta
observação começa a insinuar algo da resposta ao dilema proposto —
existem aspectos do estágio final (simplicidade, uma certa dependência,
contemplação, etc.) que, de alguma forma, trazem de volta todo o círculo da
vida para o mundo da infância.
A psicologia do desenvolvimento humano é, em grande parte, uma ciência
independente, fruto do século XX, baseando suas conclusões em evidências
empíricas. O psicólogo suíço Jean Piaget foi o pioneiro dos estudos sobre o
desenvolvimento, com suas meticulosas observações sobre o
desenvolvimento intelectual e moral das crianças, tendo elaborado testes
engenhosos para averiguar seus estágios de amadurecimento. Identificou
quatro estágios básicos do desenvolvimento infantil até a idade de doze
anos, e cada um deles implica uma expansão dos mundos infantis iniciais de
respostas autocentradas que ocorrem no eixo sensação-ação, para depois
abrangerem um mundo mais amplo, por meio da linguagem, da socialização
e do pensamento. Erikson baseou- se no trabalho estrutural de Piaget (e no
de Freud) para identificar oito estágios em toda a extensão da vida humana:
quatro estágios da infância até a adolescência, vindo depois a adolescência,
o início da idade adulta, a meia-idade e a maturidade. Em cada estágio,
deparamo-nos com uma nova esperança, novas potencialidades e uma nova
responsabilidade, e o sucesso ou fracasso básico com que enfrentamos cada
desafio afeta a plenitude do nosso desenvolvimento através da vida.
Dessa forma, por exemplo, no estágio da infância (que corresponde
aproximadamente ao primeiro ano de vida), uma sensação fundamental de
confiança ou desconfiança é firmada e depois fará parte da pessoa pelo
resto de sua vida. Assim, a “tarefa” do primeiro ano de vida é, para a
criança, desenvolver uma noção fundamental de bem-estar e de ser aceita,
de pertencer, de se sentir em casa no universo. As tarefas subsequentes são
a “conquista” da autonomia, da iniciativa, da diligência, da identidade, da
intimidade, da generatividade (produtividade num sentido bastante amplo) e
da integridade (uma sensação de satisfação perante uma vida cujas partes se
somam para a composição de um todo bem-vivido). O fracasso nessas
“realizações” psicológicas produz uma involução correspondente no
potencial humano. Assim, por exemplo, se na meia-idade a pessoa não
atinge a “autorrealização” que o dinamismo do desenvolvimento humano
está pedindo, ela tende à “estagnação” — nas palavras de Erikson —
assinalada por um retrocesso a deleites pueris e por uma interrupção do
desenvolvimento da personalidade e das relações pessoais.
É desnecessário dizer que o trabalho de Piaget e de Erikson é, muitas vezes,
técnico e bastante complexo, e tem sido integrado em um amplo programa
contemporâneo de pesquisas e teorizações. Tendo nossos objetivos
imediatos em vista, o importante é saber que se podem determinar
cientificamente estágios razoavelmente claros do desenvolvimento e que
esses estágios não são apenas uma sequência automática que se desenrola
porque a pessoa vai ficando mais velha. Pelo contrário, existe um
dinamismo no desenvolvimento — pulsões internas e exigências externas
— que nos impele de um estágio para o seguinte, e cada estágio envolve
tarefas fundamentais que devem ser executadas, assim como dimensões de
nossa humanidade a serem descobertas e integradas para que nos tornemos
pessoas inteiras. Num certo sentido, portanto, o Self é um projeto para a
vida toda, e durará enquanto nos lembrarmos de que é um projeto que exige
de nós tanto passividade como atividade (para usar as expressões de
Teilhard) - tanto receptividade como assertividade, yin e yang.
Uma vez que estamos lidando aqui com a infância em sua qualidade de
ideal religioso, um outro aspecto da psicologia do desenvolvimento merece
investigação, a saber, a análise dos estágios do desenvolvimento moral e
religioso. No final dos anos 50, Robert Havighurst e Robert Peck
identificaram cinco tipos de caráter que as pessoas podem desenvolver: na
infância, o amoral; no início da meninice, o oportunista; no final da
meninice, o conformista (que obedece a uma norma externa) e o irracional-
consciencioso (que obedece à sua própria norma interna); e por último o
racional-altruísta (tomadas de decisão objetivas), que os adolescentes são
capazes de adotar (embora essa capacidade raramente seja concretizada).
Eles descobriram que os adolescentes e os adultos poderiam estar em
qualquer um desses estágios, embora a maioria permaneça no segundo tipo.
Depois disso, nas duas últimas décadas, Lawrence Kohlberg elaborou testes
que permitem discernir seis estágios de posturas morais que guardam uma
relação sequencial entre si. No desenvolvimento moral, ele constatou que
existem níveis pré-convencionais, convencionais e pós-convencionais
(adotando as distinções de John Dewey), de dois estágios cada um. As
crianças menores (até a metade do 1º Grau, aproximadamente) pertencem
sobretudo ao primeiro nível, tentando manter as regras que as figuras de
autoridade impõem; no estágio um (6-7 anos), as crianças obedecem às
regras com a finalidade de escapar aos castigos; no estágio dois (8-9 anos) o
modo correto de agir é identificado com a satisfação de necessidades
pessoais, como aceitação, prêmios, etc. As crianças maiores podem avançar
até o segundo nível: no estágio três - que segue a orientação do bom
menino/boa menina - a criança age para conquistar a aprovação do grupo;
no estágio quatro — que segue a orientação da lei-e-ordem - agir
corretamente significa obedecer à lei, respeitar a autoridade, manter a
ordem social. O terceiro nível implica autonomia e princípio e pode ser
alcançado apenas quando a pessoa tem a capacidade de tomar decisões
sensatas (ou seja, com o surgimento do pensamento abstrato, na
adolescência); o estágio cinco orienta-se pelo contrato social, com
princípios avaliados segundo a contribuição para o bem supremo (que pode
ser contrário às convenções vigentes da lei e da ordem); o estágio seis
requer julgamentos morais baseados em princípios morais universais (e
universalizáveis) - segundo Kohlberg - e raramente é atingido. É importante
notar que o progresso no desenvolvimento moral depende do
desenvolvimento psicológico e intelectual.
No âmbito religioso, Lewis Sherrill (em The Struggle of the Soul, 1951)
traçou, há mais de quarenta anos, os paralelos entre o desenvolvimento
religioso e os estágios de desenvolvimento psicossocial de Erikson. Dizia
que as várias encruzilhadas críticas da vida representam uma luta entre a
reversão a um nível de fé e compromisso anterior e mais simples e o desafio
imposto por uma fase mais elevada de maturidade. Esses pontos de
transição ocorrem quando a criança sai da infância e entra na meninice, com
o advento da idade adulta e, depois, com a meia-idade e a velhice.
Mais recentemente, James Fowler desenvolveu testes e análises baseados no
trabalho de Kohlberg, os quais permitem seis estágios de desenvolvimento
da fé: 1. fé infantil/indiferenciada - imerso nas sensações e numa vivência
mágica; 2. fé mítica/literal - dependência das explicações religiosas dadas
pelas figuras de autoridade; 3. fé sintética/convencional - partilhar dos
significados e valores da casa, da escola, da igreja, dos companheiros; 4. fé
individual/reflexiva — a pessoa decide por si os significados da vida; 5. fé
polarizada/dialética - reapropriação pessoal das próprias tradições; 6. fé
completamente integrada - postura que é, ao mesmo tempo, completamente
pessoal e universal. Para Fowler, assim como para outros
desenvolvimentalistas, é possível que a pessoa se detenha em qualquer
estágio, ou que haja uma reversão para estágios anteriores. Dessa forma,
atingir a fé madura não é tanto uma questão de encontrar as coisas certas
em que acreditar, e sim aquilo que John Dunne chama de “uma aventura
espiritual”, uma odisseia de descobertas com mais portos para ancorar do
que aqueles que são providenciados pela fé convencional. O
desenvolvimento — psicológico, moral, religioso, e até mesmo fisiológico
— implica exigências constantes, passagens repentinas e radicais para
novos níveis, e as nossas “conversões”, ou metanoias, em cada estágio, são
consecuções frágeis.
Vamos retomar nossa questão original. Em que sentido somos convocados a
nos tornar crianças e, ao mesmo tempo, a deixar de lado as coisas da
meninice? Com base em nosso breve apanhado das visões tradicionais e
contemporâneas do desenvolvimento humano, parece que a própria infância
implica vários estágios, e estes formam os fundamentos dos estágios
subsequentes, até à morte. A infância é um período da vida em que certas
coisas básicas devem ser conseguidas, para que depois se processe o
desenvolvimento humano pleno. E parece claro que as lutas de crescimento
da meninice continuam pela vida afora; num certo sentido, tornar-se criança
— atingir os níveis, habilidades, orientações, etc., aos quais somos
convocados — pode ser uma tarefa que leve a vida inteira para ser realizada
a contento.
Mas penso que existe uma maneira mais fértil de captar o sentido do
paradoxo, na perspectiva do desenvolvimento. Como é sugerido pela
citação apache, os vários estágios aos quais aludimos antes podem ser
simplesmente compreendidos como os estágios da infância, adolescência,
idade adulta e maturidade. Neste esquema, assim como nas análises mais
elaboradas, cada estágio tem uma dupla fase: é repleto de promessas e de
perigos, de esperanças e desespero. A infância, popular e psicologicamente,
representa uma espécie de ideal: no fundo, parece que o potencial puro e
imaculado da criança pequena é o elemento mais atraente. Aparentemente
isenta das responsabilidades desgastantes e das exigências aprisionadoras, a
criança dá a impressão de possuir uma totalidade, uma simplicidade, uma
espontaneidade e uma integridade que todos os nossos esforços adultos não
parecem conseguir atingir (ou recuperar). A criança tem a glória de apenas
ser, como uma flor ou um animal, sem a necessidade de fazer coisa alguma,
de tornar-se qualquer coisa para ser completamente quem é. Essa espécie de
idealização da infância tem recebido um destaque especial no Ocidente,
principalmente após a Renascença e depois com os Românticos. Representa
inocência, deslumbramento, originalidade, ausência de premeditação, de
ambições mesquinhas e propósitos escusos. Às vezes, a criança parece
peculiarmente capaz de encamar o ideal hindu de “agir sem buscar os frutos
da ação”, ou seja, o wu-wei (“não-ação”), o viver com o Tao.
Apesar disso, as aparências enganam e grande parte da nossa idealização da
infância envolve projeções adultas de nossas próprias esperanças e receios.
Pois a infância, como Piaget e outros demonstram, é uma fase de
desenvolvimento intenso e vital — de tornar-se e fazer, e não apenas ser e,
na medida em que suas tarefas ficam inacabadas, a vida da criança vai,
correspondentemente, tornar-se problemática. Pois a criança pequena vive
num mundo de imediatismo (real, importante é o que é saboreado, tocado,
visto, etc.), é dependente dos outros para perceber os significados e os
valores, é constitucionalmente autocentrada e vive num mundo de mágica e
fantasia que pouco pode relacionar-se com o modo como as coisas
realmente acontecem. Nesse sentido, a religiosidade da infância - como
observou Gordon Allport — é muito dependente, plena de crenças mágicas
e de fantasias incontroláveis e, se levada até a vida adulta (como tantas
vezes acontece), retarda outros aspectos do desenvolvimento e se torna um
dos fatores de má reputação da religião, do mito e da contemplação, por
exemplo.
No final da meninice, a criança passa pela socialização segundo valores e
significados convencionais. Embora isto seja necessário para uma adequada
noção do valor pessoal e para uma orientação elementar, além de servir à
ordem social, um grande número de indivíduos pode ficar retido neste
estágio do desenvolvimento e pode ser levado ao que Paul Tillich chama de
vida “heterônoma”, em que algo externo estipula as nossas prioridades e
estabelece o que é significativo e válido.
Dessa forma, o emergir da adolescência é tanto liberador como
amedrontador. O surgimento de dúvidas, distinções, questionamentos,
complicações, ansiedades (quanto ao sexo e à morte), responsabilidades de
aprendizado e trabalho, rebeliões e reconciliações, sofrimentos, abre
caminho para a autonomia e autodeterminação. É vital à escolha dos
próprios significados e valores e à descoberta da própria identidade. Mas
são muitos os perigos, e podemos ser varridos pelas impetuosas vagas que,
como a maré, sobem e descem. Em muitas áreas de nossa vida, nossa
tendência é permanecer na adolescência: nossos questionamentos podem
degenerar numa espécie de niilismo funcional, nossos desafios à autoridade
se tornam rebeliões sem causa, nossa autodescoberta não passa de uma
inflação do ego. Torna-se muito fácil abrir mão do trabalho de
desenvolvimento, fugir ou ficar perdido nas trevas das “noites sem fim” e
recuar sucessivamente — quando vêm as crises — para o seio do
hedonismo, do egocentrismo, da superficialidade da mente pueril.
Mas se nos entregamos ao processo de crescimento, se assumimos a busca
da totalidade, o empenho em entender (em lugar do vão anseio pelas
certezas), estamos num caminho que não nos conduzirá de volta à infância
que talvez estejamos, nostalgicamente, idealizando, mas nos impelirá
adiante, rumo a uma plenitude e uma integração autênticas. Se não
empreendemos essa busca, permanecemos infantis: se não nos
comprometemos com o verdadeiro crescimento, continuamos a ser filhos
pródigos que nunca voltam para casa. E, por isso, há os desafios da idade
adulta, em que nossos impulsos e necessidades juvenis devem ser satisfeitos
para que desenvolvamos intimidade, identidade pessoal, criatividade. E isso
não significa apenas que nos tornamos pessoas crescidas, que amam, têm
convicções e uma sensação de que existem e têm importância, que fazem
contribuições para o acervo mundial de significados, de beleza, de valor e
de vida; significa, antes, que, ao enfrentar as “tarefas” da idade adulta,
estamos “constituindo” a nós próprios. Na proporção em que recuamos
diante das exigências, dos sacrifícios, dos esforços, nessa medida somos
menos nós mesmos e somos, ao contrário, pessoas tacanhas, “homens
rasos”, símbolos vazios. Como disse Tillich, é preciso coragem para existir.
Contudo, também é possível ficar enredado na trama das tarefas da
manutenção da casa e, assim, fazer com que a vida não passe de um
conjunto de obrigações convencionais, para que a luta seja tolerada, mas
sem o benefício das transformações que oferece. A impressão mais fácil é a
de que são os frutos tangíveis da ação que importam, e a pessoa mede sua
vida por seus resultados externos (ao passo que, no final das contas, o que
parece importar é a espécie de pessoa que o indivíduo está se tornando no
transcurso de todas as suas atividades). Essa atitude também é uma espécie
de regressão aos simples princípios do prazer e da dor e aos
comportamentos convencionais da meninice. Parece que, na meia-idade, a
pessoa precisa, de alguma maneira, manter os ideais potenciais da infância
e os impulsos da adolescência.
A maturidade, portanto, é a realização da síntese. Não se trata simplesmente
de um estágio cronológico da vida. Como síntese, representa uma espécie
de segunda meninice - uma totalidade, uma certa perfeição e completude,
uma alegria de ser -, mas uma meninice “alcançada”, em que os ideais do
início, e até mesmo os antigos sonhos, já estão integrados à vida real. A
pessoa está repleta de maravilhamento, mas não é mais ingênua; é
reverente, mas não simplória; é humilde sem ser tola. Isso implica estar
centrado, implica integridade, sabedoria, compaixão, coisas que só advêm
para quem trilhou o caminho inteiro, para quem atravessou a via crucis das
crises (como Erikson as denomina) de seu caminho de vida. Existe
objetividade e um conhecimento genuíno; é perante os verdadeiros
mistérios que a pessoa se maravilha, é na autêntica elegância do cerne do
ser que a pessoa confia.
Este estágio final de integração é conhecido das grandes tradições da
espiritualidade e da filosofia. Aparece nos anciãos da tribo, no staretz russo,
que coroa uma longa existência de aquisições espirituais com a
transformação do indivíduo em guia espiritual, em Mestre e guru
verdadeiro, no pensador genuíno que conhece seu campo não só nos dados
particulares, mas em sua essência, no crente maduro que vivenciou os
consolos e suportou as noites escuras para delas emergir com a fé
temperada, no crítico que pode reagir a obras literárias com um deleite
esclarecido, uma “imaginação educada” (Northrop Frye), no buscador que
encontrou o caminho com o coração e aprendeu como querer uma coisa. E
as virtudes da criança que a pessoa é desafiada a vir a ser acabam
revelando-se e esta me parece ser a resposta de Jesus à nossa questão —
como as beatitudes do Sermão da Montanha: “Abençoados os pobres de
espírito, pois deles é o reino dos céus” (Mateus 5:3).
Para quem investiga a literatura do misticismo e da jornada espiritual, e as
histórias de vida daqueles que parecem ter-se tornado pessoas maduras, o
objetivo mostra-se comum: uma integração que abrange a plenitude da
potencialidade humana, que é ao mesmo tempo descomplicada, sábia,
alegre, e até mesmo lúdica. Podemos pensar em Gandhi, Merton, Einstein,
João XXIII. Ou em alguém mais próximo a nós em termos de capacidades e
circunstâncias, como Dag Hammarskjold, cujo Markings revela uma
notável sensibilidade aos rigores e às recompensas do desenvolvimento
humano pleno. Ele sabia que “a mais longa das jornadas é a viagem
interior” e passou por algo que lembra o estágio final dessa viagem:
Chega o ponto em que tudo se torna simples e não há mais nenhuma
questão de escolha, porque tudo em que você apostou será perdido, se você
olhar para trás.
Maturidade: entre outras coisas, a desanuviada felicidade da criança que
brinca, que avalia como inquestionável sua comunhão com aqueles com
quem brinca.
Chegar à maturidade não deve ser compreendido como o final da jornada.
Ao contrário, trata-se de um novo começo, e é, num certo sentido, o
começo, e pela primeira vez irrompe quando nos entregamos à busca e nos
propomos a vivê-la por inteiro. Como se expressa John Dunne em The
Reasons of the Heart “Participar da aventura espiritual é... ‘nascer de novo’,
‘nascer do Espírito’” E, no mesmo livro:
A pessoa emerge na vida... sempre que uma profunda solidão... via de regra
não atingida no amor, no trabalho e na vida em comunidade, se torna tão
intensa que começa a enfraquecer as interações humanas comuns e as faz
parecer insatisfatórias, quando não parece mais que seja possível encontrar
a realização no amor, no trabalho e na vida em comunidade. Quando isso
acontece, a aventura espiritual... pode começar.
“Os velhos deviam ser exploradores,” escreveu T. S. Eliot, e todos os
estágios no caminho da vida são jornadas vitais, também, pois nos
encaminham para nossa vocação final — para aquela viagem rumo ao seio
do desconhecido, tão semelhante ao aventurar-se do bebê recém-nascido
pela vida adentro.
28. A integração do self mais jovem
NATHANIEL BRANDEN
O psicólogo Nathaniel Branden organizou seus dados de maneira muito
atraente, criando uma abordagem prática para a compreensão e o resgate
da criança interior. Rejeitamos essa criança da mesma maneira como,
talvez, os outros um dia nos rejeitaram , diz ele, “e nossa crueldade para
com essa criança pode continuar diariamente indefinidamente, durante
toda a nossa vida.” Como antídoto contra essa possibilidade negativa,
Branden recomenda ações pacíficas como o trabalho de complementação
de sentenças. Trata-se de um “faça-você-mesmo” no melhor estilo, extraído
do livro Autoestima, de Branden.
“Quando eu era menina, queria desesperadamente que minha mãe me
amasse”, diz uma mulher de trinta e sete anos, dentista. “Eu morria de
vontade de que apenas me tocassem ou mostrassem qualquer espécie de
afeto. Vendo outra vez o meu passado, apavora-me o quanto me percebo
carente. Acho que é por isso que não gosto de olhar para trás. Não gosto de
saber dessas coisas a meu respeito, pelo menos de saber como eu fui no
passado. Será que essa realmente fui eu? Recuso-me a acreditar. Gosto de
pensar que aquela menina morreu há muitos anos e que eu sou uma outra
pessoa.
Quando seu marido a deixa, queixando-se de que ela parece incapaz de dar
ou receber amor, fica arrasada e estupefata: confessa que não entende o que
ele quer dizer.
“Não gosto de me lembrar de mim quando era pequeno,” repete um
programador de computador, homem de 46 anos. “Eu me sentia aterrorizado
o tempo todo. Meu pai voltava bêbado para casa - batendo em quem quer
que chegasse perto dele. Minha mãe nunca nos protegia. Eu me escondia,
estava sempre procurando lugares onde me esconder; estava a maior parte
do tempo com muito medo, até mesmo de falar. Era de enlouquecer. Aquela
criança era de deixar qualquer um doente. Não sinto qualquer ligação com
ela.”
Seus filhos não entendem por que o papai parece não conseguir brincar com
eles. Eles só sabem que, emocionalmente, o papai raramente parece estar ali
— como se eles não tivessem pai.
“Minha mãe era muito sarcástica,” conta uma enfermeira, hoje com 31
anos. “Sua língua conseguia matar. Quando eu era bem pequena não
conseguia aguentar isso. Chorava muito. Quando penso em mim com três,
quatro, cinco anos, me arrepio toda.”
Alguns de seus pacientes, porém, queixam-se de seus modos bruscos e de
suas ocasionais observações mordazes. Ela sabe que costumam não gostar
dela, mas não compreende claramente por quê.
Quando eu tinha doze anos”, diz um advogado de cinquenta e um anos,
“havia um valentão na nossa rua que sempre me aterrorizava. Ele me bateu
algumas vezes e, depois disso, só de vê-lo eu me reduzia a nada. Nem gosto
de lembrar disso. Não gosto de pensar a respeito. Aliás, não gosto de
admitir o quanto fui um garotinho assustado. Por que esse garotinho não
conseguia fazer alguma coisa melhor com essa situação? Prefiro me
esquecer o mais rápido possível desse desgraçadinho.”
Embora seja brilhante no trabalho, poucos entre seus clientes conseguem
gostar dele. Acham que é insensível e cruel. “É um valentão provocador,”
observaram vários deles.
Existem muitas razões pelas quais as pessoas sentem que não conseguem
perdoar a criança que foram um dia. Da mesma forma que os clientes
citados acima, negam e repudiam essa criança. Traduzidas em palavras,
suas atitudes querem dizer o seguinte: não posso perdoar o fato de ter sido
tão aterrorizada por minha mãe; de perseguir com tanto desespero a
aprovação de meu pai; de me sentir tão pouco capaz de ser amada; de ter
uma fome interminável de atenção e afeto; de ficar todo confuso com as
coisas; de excitar sexualmente a minha mãe, de alguma maneira; de ter feito
alguma coisa, mesmo não sabendo o quê, que levou meu pai a abusar de
mim; de ser tão desajeitada na aula de ginástica; de me sentir tão intimidado
pela professora; de sofrer tanto; de não ser popular na escola; de ser tímida;
de ser envergonhado; de não ser mais durão; de sentir medo de desobedecer
aos meus pais; de fazer o que quer que fosse para que gostassem de mim; de
morrer de vontade de ser tratada com delicadeza; de ser revoltado e hostil;
de sentir ciúme de meu irmão mais novo; de achar que todo mundo era
compreendido, menos eu; de não saber o que fazer quando estava sendo
ridicularizado; de não me defender diante dos outros; de minhas roupas
serem sempre as piores e mais desajeitadas de toda a escola.
Na realidade, a criança que um dia fomos pode ser vivenciada como uma
fonte de dor, raiva, medo, constrangimento, humilhação, alguém a ser
reprimido, repudiado, ignorado, esquecido. Rejeitamos essa criança da
mesma maneira como, talvez, os outros um dia nos rejeitaram, e nossa
crueldade para com essa criança pode continuar diariamente,
indefinidamente, durante toda a nossa vida, no teatro da nossa própria
psique, onde a criança continua existindo como uma subpersonalidade,
como um self-criança.
Inconscientes do que estamos fazendo, nós, adultos, confessamos encontrar
evidências de rejeição em toda parte, nos nossos atuais relacionamentos,
sem nos darmos conta de que as bases dessa vivência de rejeição são
internas, e não externas. Nossa vida inteira pode ser um ato de incessante
autorrepúdio, enquanto continuamos em frente, queixando-nos de que os
outros não nos amam.
Quando aprendemos a perdoar a criança que um dia fomos, por ela não
saber, não conseguir fazer, não conseguir lidar, por sentir ou não sentir,
quando compreendemos e aceitamos que essa criança estava lutando para
sobreviver da melhor maneira que podia, então o self-adulto não se coloca
mais como adversário do self-criança. Uma parte não estará mais em pé de
guerra com a outra parte. E as nossas respostas como adultos serão mais
apropriadas.
O self-criança é a representação interna da criança que fomos no passado, a
constelação das atitudes, sentimentos, valores e perspectivas que foram
nossos há muitos anos e que desfrutam de imortalidade psicológica como
componentes do nosso self total. Trata-se de um subself, de uma
subpersonalidade, de um estado interior que pode dominar em maior ou
menor extensão, a qualquer momento, e com base no qual às vezes
funcionamos de maneira quase exclusiva, sem necessariamente nos darmos
conta disso.
Podemos (de maneira implícita) relacionar-nos com o nosso self-criança de
forma consciente ou inconsciente, benevolente ou hostil, compassiva ou
áspera. Como espero que os exercícios deste capítulo venham a deixar
claro, quando o self-criança é abordado de maneira positiva e consciente,
pode ser assimilado e integrado ao Self total. Quando abordado de forma
inconsciente e/ou negativa, o self-criança é abandonado, numa espécie de
esquecimento alienante. Neste caso, quando o self-criança permanece
inconsciente, é ignorado ou repudiado, ficamos fragmentados, não nos
sentimos inteiros e, em alguma medida, sentimo-nos alienados de nós
mesmos. Nossa autoestima fica comprometida.
Quando não é reconhecido, nem compreendido, ou é rejeitado e
abandonado, o self-criança pode transformar-se num “criador de encrencas”
que coloca obstáculos à nossa evolução, assim como ao nosso prazer de
existir. A manifestação externa deste fenômeno é aquilo que às vezes
constatamos como condutas pueris prejudiciais, como padrões de
dependência inadequada, como personalidade narcisista, ou a sensação de
que o mundo pertence aos “grandes”.
Por outro lado, quando é reconhecido, aceito, acolhido e, portanto,
integrado, o self-criança pode ser uma fonte magnífica que enriquece nossas
vidas, com seu potencial para a espontaneidade, para a ludicidade, para a
imaginatividade.
Antes que você possa dar as boas-vindas ao self-criança e integrá-lo, para
que coexista num relacionamento harmonioso com o restante de sua pessoa,
você deve primeiro entrar em contato com essa identidade de seu mundo
interior. À guisa de introdução de clientes e alunos ao seu self-criança,
peço-lhes, às vezes, que entrem numa fantasia, que se imaginem andando
por uma estrada perdida no campo e que, a distância, vejam uma criança
pequena sentada perto de uma árvore; à medida que vão se aproximando,
percebem que aquela criança é alguém que um dia já foram. São
incentivados a conversar em voz alta, a aprofundar a realidade da vivência.
O que querem ou precisam dizer um ao outro? Não é raro haver lágrimas; às
vezes há alegria. Mas sempre existe a conscientização de que, de alguma
forma, a criança ainda existe dentro da psique (como estado anterior) e tem
uma contribuição a dar para a vida do adulto — e, com isso, um self mais
completo e mais rico emerge da descoberta. Muitas vezes, existe a triste
constatação de haver equivocadamente pensado que era preciso livrar-se
daquela criança para poder crescer.
Quando trabalho com um cliente para a integração de seu self-criança,
costumo sugerir que realize este simples exercício, que você mesmo pode
executar com facilidade. (Se você quiser, peça a alguém que leia as
instruções seguintes para você, em voz alta; senão, você pode gravá-las
numa fita cassete, para depois ouvi-las; ou então leia-as, simplesmente, até
dominá-las, antes de começar o exercício.)
Reveja durante algum tempo fotografias de quando você era criança (se
tiver alguma foto desse período; se não tiver, faça o exercício mesmo sem
elas). Agora feche os olhos e respire algumas vezes o mais profundamente
que conseguir. Volte-se para seu interior e veja o que acontece quando você
se pergunta o seguinte: Como você se sentia quando tinha cinco anos?
Como você imagina que sentia o seu corpo então?... Como se sentia quando
ficava triste?... Como se sentia quando ficava excitado?... Como se sentia
vivendo em sua casa?... Como você se sentava? Sente-se da maneira como
você imagina que se senta uma criança de cinco anos. Preste atenção aos
seus sentimentos. Permaneça nessa vivência.
Se você apenas realizar este exercício todos os dias, durante duas ou três
semanas, e nada mais, começará a armazenar não só uma conscientização
mais intensa acerca do seu self-criança, mas também um nível, para integrá-
lo, superior ao que você provavelmente consegue no momento, porque
estará dando o primeiro passo no sentido de tornar o seu self-criança visível
e de levá-lo a sério.
O trabalho de complementação de sentenças é um recurso mais adiantado e
poderoso para despertar a percepção consciente de seu self-criança e para
facilitar a integração do mesmo. Como já mencionei antes, use um caderno
e anote cada uma das sentenças incompletas abaixo relacionadas no alto de
uma página em branco. Depois complete com seis a dez conclusões para
cada uma delas, trabalhando de modo tão rápido e isento de críticas quanto
puder, inventando quando for preciso, para não quebrar o ritmo.
Quando eu tinha cinco anos...
Quando eu tinha dez anos...
Quando penso no que o mundo me parecia quando eu era bem pequeno...
Quando penso em como sentia meu corpo quando eu era bem pequeno...
Quando penso em como sentia as pessoas quando eu era bem pequeno...
Com meus amigos eu me sentia...
Quando me sentia sozinho eu...
Quando me sentia excitado eu...
Quando me lembro do que a vida me parecia quando eu era bem pequeno...
Se a criança que há em mim pudesse falar, ele/ela diria...
Uma das coisas que precisei fazer quando criança para sobreviver foi...
Uma das maneiras como trato o meu self-criança e que é igual à maneira
como minha mãe o fazia é...
Uma das maneiras como trato o meu self-criança e que é igual à maneira
como meu pai o fazia é...
Quando minha criança interior se sente ignorada por mim...
Quando minha criança interior se sente criticada por mim...
Uma das coisas que essa criança faz para me colocar em apuros é...
Acho que estou agindo como meu self-criança quando...
Para que essa criança possa ser aceita por mim...
Às vezes, o difícil em aceitar completamente essa criança interior é...
Se eu conseguisse perdoar mais o meu self-criança...
Eu seria mais delicado com minha criança interior se...
Se eu escutasse as coisas que essa criança precisa me dizer...
Se eu aceitar plenamente essa criança como uma parte valiosa de mim...
Estou começando a perceber que...
Quando olho para mim deste ângulo...
Fiz com que alguns clientes realizassem esse exercício algumas vezes, a
intervalos de cerca de um mês. Pedi a eles que não olhassem quais tinham
sido os finais anteriormente escritos. Cada vez que escreviam uma
conclusão inédita, isso os levava a se aprofundarem mais. Sem terem
realizado qualquer outro trabalho nesta área, obtiveram níveis
extraordinários de perspicácia e integração, que resultaram em autocura e
em resgate da própria autoestima.
Recomendo que você experimente completar este conjunto de sentenças e
descubra o que ele pode fazer por você. Com esse exercício, tornar-se-á
mais real para você como esse tipo de trabalho pode beneficiar sua
autoconfiança, seu respeito por si mesmo, seu senso de totalidade.
Eis agora um nível mais avançado de trabalho, que pode ser feito sobre o
território desbravado com os exercícios anteriores. Comece novamente com
Quando eu tinha cinco anos..., prosseguindo com Uma das coisas que meu
self de cinco anos precisa receber de mim e nunca recebeu é... Agora,
complete: Quando meu self de cinco anos tenta falar comigo..., Se eu
tivesse disposição para ouvir o meu self de cinco anos com aceitação e
compaixão..., Se eu me recusar a estar disponível para o meu self de cinco
anos..., Quando penso em voltar atrás para ajudar o meu self de cinco
anos... Agora faça a mesma sequência para as idades de seis, sete, oito,
nove, dez, onze e doze anos. Você irá produzir um milagre de autocura.
Finalmente, depois que você sentir que já estabeleceu uma boa noção de seu
self-criança como uma entidade psicológica, algo que esse exercício de
complementação de sentenças deve ter-lhe proporcionado, considere mais
um exercício para facilitar a integração do mesmo, exercício ao mesmo
tempo simples e de extraordinário poder.
Use o tipo de imagens que quiser - visuais, auditivas, cinestésicas - para
gerar a sensação de seu self-criança em pé, à sua frente. Depois, sem dizer
palavra, imagine que está recebendo essa criança em seus braços,
abraçando-a, acariciando-a de leve, para que se instaure uma relação
acolhedora entre vocês. Permita à criança reagir ou não, de maneira
positiva. Permaneça suave e firme. Deixe que o toque de suas mãos, de seus
braços e de seu peito comunique aceitação, compaixão e respeito.
Lembro-me de uma cliente chamada Charlotte que no início teve
dificuldade com este exercício porque, como dizia, seu self-criança era uma
amálgama de dor, ira, desconfiança. “Ela fica o tempo todo escorregando”,
disse Charlotte. “Ela não confia em mim - em ninguém.” Assinalei que
dadas as vivências de seu passado, esta reação era perfeitamente natural.
Depois acrescentei: “Imagine que me aproximo de você com uma menina e
digo: ‘Aqui está alguém de quem eu gostaria que você cuidasse. Ela passou
por algumas situações bastante ruins e desconfia muito de todo mundo. Só
para dar um exemplo, um tio tentou abusar sexualmente dela e, quando ela
quis contar para sua mãe, esta ficou zangada com ela. Então ela se sente
abandonada e traída. (Charlotte havia passado por esta experiência aos seis
anos.) Seu novo lar - e sua nova vida - será com você. Provavelmente, você
terá que ensiná-la a confiar em você e a perceber que você é diferente dos
outros adultos que ela conheceu. Mais tarde, você pode falar com ela e
ouvir, deixar que ela lhe conte as coisas que sentir vontade e necessitar que
um adulto compreenda. Mas, primeiro, apenas a abrace. Faça com que ela
sinta segurança através da qualidade de seu ser, da qualidade de sua
presença. Você pode fazer isso?’”
“Sim”, respondeu Charlotte com intensidade. “Até aqui, tratei-a como todos
os outros a tinham tratado. Fingia que ela não existia, que não estava aqui,
porque a sua dor me assustava. Acho que eu também a culpava, quase como
minha mãe fez.”
“Então feche os olhos, crie essa menina à sua frente, depois receba-a em
seus braços e deixe que ela sinta o seu acolhimento. Como é isso para
você?... O que sera que você gostaria de dizer para ela?... Não se apresse,
fique nessas sensações.”
Mais tarde, Charlotte disse: “Durante todos esses anos tentei ser adulta
negando a criança que um dia fui. Eu sentia muita vergonha, muita magoa,
muita raiva. Mas senti-me como um adulto de verdade pela primeira vez
quando a peguei em meus braços e a aceitei como parte de mim.”
Essa é uma das maneiras de se formar a autoestima.
29. Recordando a criança
JEAN HOUSTON
A professora e filósofa Jean Houston pede-nos, com este exercício, que
voltemos à criança e a recebamos sem reservas. Trata-se de uma
abordagem bastante prática para evocar aquilo que a sra. Houston chama
de “um senso ampliado de ser”. É recomendável que você pratique este
exercício com outra pessoa servindo de guia. “Recordando a criança” foi
extraído do livro de 1982 da mesma autora, intitulado The Possible Human.
O que aconteceria se você, em sua idade atual e sabendo o que sabe agora,
pudesse voltar atrás e tornar-se o grande amigo e guia de você mesmo,
quando criança? As muitas pessoas que vivenciaram essa aventura relatam
que a criança, dentro delas, parece reagir positivamente a essa amizade, de
tal maneira que elas sentem como se sua vida passada tivesse sido
enriquecida, embora não necessariamente modificada. Em seu estado adulto
presente, sentem os efeitos que resultam de vivenciar uma vida anterior
enriquecida, muitas vezes sentindo-se mais fortes, mais seguras e joviais,
mais criativas, e até mesmo começando a perder alguns comportamentos
incapacitantes e neuróticos que podem ter-se iniciado na infância.
Lembre-se de que, à medida que você volta em sua vida passada para
encontrar- se com a criança que vive dentro de você, é conveniente que
você escolha encontrar essa criança em algum momento em que ela teria
sido receptiva à chegada de um desconhecido simpático. Muito poucas
crianças são capazes de dar as boas-vindas a uma pessoa nova quando estão
passando por um forte trauma emocional. Assim que você e sua criança se
tornarem conhecidos um do outro e se aceitarem mutuamente, você poderá
repetir o exercício em outras ocasiões e abordar áreas mais sensíveis. Você
Pode escolher como momento do encontro a ocasião em que a criança vai
para a escola pela primeira vez, quando cai um dente, quando ela precisa de
um empurrãozinho no balanço ou de alguém com quem conversar no
escuro.
No segundo estágio deste exercício, você irá entrar em contato com a
pessoa que virá a ser no futuro, permitindo a todas as três - você agora,
você no passado e você no futuro — sentirem a renovação inerente a este
encontro. Pode ser possível avançar no tempo, tanto quanto recuar até o
passado. Se mantemos essa perspectiva, os eus futuros podem estar
dispostos a acolher e redimir nossa existência presente, tendo ao mesmo
tempo a capacidade de fazê-lo. Com toda a razão, a física moderna sugeriu
que o tempo não é linear, mas, ao contrário, constitui uma dimensão
onipresente da realidade, e que são apenas as nossas limitações vivenciadas
que nos mantêm presos à perspectiva sequencial de acontecimentos nesta
dimensão.
Preparação
Este exercício é mais bem executado quando uma outra pessoa serve de
guia e lê as instruções. O guia precisará soar um tambor ou gongo para
assinalar a passagem do tempo. Se isso não for possível, as instruções e o
ritmo do tambor ou gongo podem ser gravados em fita.
O exercício
Estágio um: Dar as boas-vindas a você mesmo quando criança
Sente-se, de olhos fechados, respire profundamente e acompanhe a
inspiração e a expiração. Para este exercício, faça de conta que o seguinte é
verdade: que ainda existe em você um ser que é criança, que não sabe que,
em outro momento de sua existência, já está adulto.
Conforme soa o gongo (ou tambor), chame esta criança para vir à frente,
saindo de onde está. Você pode querer abrir sua mão direita para que a
criança a alcance. Essa criança, que foi você, pode aparecer enquanto soa o
tambor ou o gongo, ou depois dos sons terem acabado. Em ambos os casos,
assim que você sentir sua presença, seja atencioso com ela. Há quem prefira
fazer isso usando a imaginação ativa, enquanto outros embalam a criança ou
dão uma volta com ela; faça este exercício de maneira totalmente ativa.
Encontre a maneira que lhe parecer certa para você.
Você pode até achar que sente uma mãozinha em sua mão direita. Perceba
quais são as necessidades e a personalidade dessa criança. Se ela quiser,
pegue-a no colo. Fale com ela. Passeiem juntos. Leve-a, se quiser, ao circo,
à praia, ao zoológico, ou deixe que ela o leve a outros lugares. Brinque com
essa criança que você foi. Dê-lhe amor, amizade, acolhimento, e permita-se
receber dela, que na realidade pode ter tanto ou mais a oferecer a você do
que você a ela. Você tem quinze minutos para começar a amizade consigo
mesmo quando criança.
Se você sair, será chamado de volta pelo som de uma campainha.
O guia então fará soar o tambor ou o gongo, lentamente, entre trinta e
sessenta vezes.
Neste momento, dependendo de você querer ou não passar para a próxima
sequência deste exercício, você pode fazer várias coisas. Se o exercício
estiver sendo feito em grupo, você pode reunir-se a mais uma ou duas
pessoas, formando um pequeno círculo, e cada uma dessas pessoas virá com
sua criança, de modo que os adultos e suas “crianças” partilharão das
experiências. Deixe sua criança falar e agir através de você, beneficiando-
se, ao mesmo tempo, de sua consciência amadurecida. Neste tipo de troca
em grupo, a realidade da criança é respeitada e, dessa forma, torna-se mais
clara.
Se você estiver realizando este trabalho interior sozinho, faça alguma coisa
com a criança - um desenho, um bonequinho de argila, um poema - que
sirva para lembrar você deste encontro e do que você aprendeu. Trabalhe
com sua criança como parceira na execução deste trabalho.
Quando este processo estiver completo, você pode se despedir da criança,
assegurando-lhe que voltará para visitá-la com frequência, se for essa sua
intenção. Se você agora decidir partir para a sequência seguinte, em que
você é recebido de braços abertos pelo seu self ampliado, diga à criança que
voltará a chamá-la em poucos minutos.
Estágio dois: Ser recebido de braços abertos pelo seu ser ampliado
Nesta próxima sequência, você se torna como uma criança para a versão
ampliada de si mesmo. Esse self ampliado é sua enteléquia — aquele que
você disse que viria a ser e que poderia ser, se realizasse seu potencial ao
máximo. Esse Self Superior é o carvalho do qual, hoje, você é ainda apenas
a bolota. Estamos presumindo que, em algum plano de sua psique, este ser
já existe, assim como a criança que você foi ainda persiste.
Feche os olhos e acompanhe o percurso de sua respiração, inspirando e
expirando, e então tome consciência do seguinte: seu ser ampliado está
prestes a entrar na realidade presente e a ser, para você, o que você foi para
sua criança. Este é o ser superior a você, pleno de sabedoria e graça, livre
de mesquinharias e futilidades, repleto de amor fortalecedor, que tem
múltiplos meios para conhecer, aprender e compartilhar. Este é o Sábio em
você, é você com uma centena de anos a mais, capaz de trabalhar
conscientemente consigo mesmo.
Agora, ao ouvir o som do gongo ou do tambor, este ser potencial estará
tornando-se real, pois ele é realmente verdadeiro. Este self ricamente
ampliado está vindo ao seu encontro, procedente de uma dimensão que está
além do espaço e do tempo.
Soe o gongo ou tambor, lentamente, entre dez e vinte vezes.
Quando este ser chegar e cuidar de você, deixe que ele lhe dê alento,
fortaleça e desperte. Receba os dons que seu Self Superior tem a lhe
oferecer e deixe-se aprimorar por ele.
Tome de cinco a dez minutos do seu tempo para fazer essa experiência.
Sentindo-se orientado e atendido, amado, recebido com respeito, evocado,
chame de novo a criança que você foi. Segure-a em seus braços, da mesma
forma como está sendo acolhido pelo seu próprio ser ampliado. Agora,
vocês três estão reunidos, numa trindade que é uma perfeita união. Deixe
que o continuum de amor, encorajamento e fortalecimento interior flua entre
vocês três, de tal sorte que a criança ofereça seu frescor de perspectivas ao
ser que foi ampliado enquanto este vitaliza a criança e você se entrega a
ambos.
Tome cinco minutos do seu tempo para fazer esta experiência.
Libere agora tanto a criança como o self ampliado, para que ambos possam
regressar a seus locais naturais de origem, sabendo que podem ser
convocados ao seu plano de realidade quando necessário. Saiba também que
essas duas partes de sua pessoa têm acesso entre si e que essa comunhão e
comunicação é uma prática elevada que deve ser alimentada, para ser
conhecida.
Agora, voltando à sua realidade habitual, permaneça em silêncio por alguns
minutos, enquanto vai lentamente abrindo os olhos. Reflita sobre o que lhe
foi ofertado e sobre o que você ofereceu. Sinta a ampliação de sua pessoa
fluindo por todo seu corpo, conforme você começa a andar. Fale sobre isso,
se quiser, com outra pessoa, ou anote em seu diário.
Discussão
Como sugeri anteriormente, um senso ampliado do próprio ser é evocado
neste exercício. Conhecendo a presença viva da criança interior e a
promessa da pessoa em quem você está se transformando, você está livre
para valer-se destes dois seres, para enxergar a realidade presente por meio
dos olhos deles e, dessa maneira, abrir múltiplas perspectivas que
conservem a integridade de suas próprias experiências e de sua própria
natureza.
Embora isto pareça verdadeiro para a maioria das pessoas, ainda existe a
possibilidade de uma ampla gama de reações individuais, que vão desde a
mordacidade até a morbidez e as gargalhadas de rolar pelo chão. Uma
mulher que não tinha qualquer lembrança de seu pai, que havia falecido
quando ela estava com três anos, descobriu- se com sua criancinha de dois
anos, enquanto o pai lhe cantava canções de ninar. Outras pessoas têm-se
surpreendido ao descobrirem a grande capacidade de recuperação e a força
de sua criança.
Você pode aumentar a força e as possibilidades deste exercício se permitir
que a sua criança e o seu Self Superior tenham, cada qual, uma parcela
legítima do seu dia, um tempo no qual você se diverte ou ouve música -
paga suas contas! - guiado pelo saber peculiar deste ser. Alguns pais, mães
e professores descobriram que sua criança interior tem tido uma grande
capacidade de percepção a respeito das crianças exteriores, oferecendo
conselhos úteis e introvisões que esclarecem o que se passa com a criança
cabeçuda de nove anos, ou com o adolescente choroso. O Self Superior
oferece uma sensação de tempo diferente, ao inserir o drama e o trauma - e
até mesmo o tédio — do momento numa perspectiva mais ampla e
profunda. Quando estes seres se tornarem seus aliados, você terá ampliado
os horizontes de seu self contido no tempo.
30. Revendo os filmes de sua infância
ADELAIDE BRY
Este capítulo aplica técnicas modernas de visualização à recuperação da
criança interior. O mesmo apareceu, originalmente, como parte de um livro
desta autora, decorrente de sua extensa pesquisa e intitulado Visualization:
Directing the Movies of Your Mind. Trata-se de uma perspectiva
inteiramente nova sobre a criança interior; com uma piscadela e um acenar
de cabeça, a autora e psicoterapeuta Adelaide Bry pede-lhe que dê uma
olhada nas verdadeiras vivências de sua criança, com sua sensibilidade de
adulto, e descubra a verdade que ela sempre soube e guardou o tempo todo.
A autora diz que, quando estava preparando o livro, certa vez perguntou,
durante uma visualização, como poderia apresentar a incrível verdade das
técnicas de visualização de “tal modo que pudesse tocar profundamente as
pessoas, ajudá-las a se aproximarem mais da totalidade e da felicidade,
abrindo-as para este processo de extrema relevância”. Uma adorável
criança dourada apareceu no espaço à sua frente e entregou-lhe a seguinte
mensagem: “Fale com a criança dourada que existe em todos e em cada
um.”
Eu informo ao paciente... que verá à sua frente uma recordação. E rogo-lhe
que comunique a mim essa imagem ou ideia.
- Sigmund Freud
Desafio-o a se lembrar de como as coisas realmente eram quando você
estava crescendo.
Para início de conversa, quem mandava em sua casa - sua mãe ou seu pai?
Quando estavam juntos, como estavam juntos? Um conduzia o outro... eram
parceiros... ou ambos tinham poderes iguais, embora distintos?
Com estas indagações em mente, você está pronto para dirigir o seguinte
filme mental.
I. Roteiro: Pais correndo pelo campo
Comece fechando os olhos e relaxando. Respire profundamente, a partir do
abdômen, e sinta a suave descontração que flui através do seu corpo.
Agora, na sua imaginação, veja uma verde e adorável campina, na
primavera. Quando a estiver vendo com bastante nitidez, com a grama, as
árvores em volta dela, as florezinhas do campo, e até mesmo as borboletas
e o som soprando entre as folhas, veja sua mãe e seu pai correndo por essa
campina.
Olhe-os bem de perto e veja qual a expressão que têm no rosto e como seus
corpos se movimentam. Embora a ideia de os dois estarem correndo pelo
campo possa estar muito distante da vida real, deixe-se ir com a fantasia e
vê-los fazendo isso. Não faz diferença se estão com a idade atual ou se se
parecem com os pais que foram quando você era criança. A verdade da
história é a única coisa que importa aqui.
Enquanto você os observa, faça a si próprio estas perguntas: Estão os dois
correndo, ou um deles se recusa a ir? Quem está correndo mais depressa?
Estão correndo com pressa, em velocidade moderada, ou devagar, quase
parando? Que aparência têm os seus corpos enquanto estão correndo -
estão tensos, descontraídos, frouxos, rígidos? Sem pressa, veja o filme
desenrolar-se observando tudo o que acontece.
Esta visualização faz com que você veja seus pais sob uma nova luz, de um
modo que talvez seja muito diferente daquilo que você costuma acreditar
que corresponda a eles. Você, provavelmente, perceberá que suas imagens
da corrida de ambos pelo campo correspondem ao modo como eles se
moveram pela vida. Depois de fazer o exercício e não antes, espero, eis
algumas diretrizes para ajudar na interpretação.
Na nossa cultura, é comum ver o pai correndo mais depressa que a mãe,
pois o mais provável é que o homem seja a figura dominante na família. Se
a mãe corre mais depressa, isso indica que ela pode ter sido a pessoa
dominante no casal.
Quando suas pernas se movimentam de maneira livre e eles estão
descontraídos enquanto correm, temos um sinal de um ambiente doméstico
relativamente descontraído. Embora talvez tenham existido áreas de
conflito na sua infância, provavelmente não foram sérias ou drásticas.
As pessoas que tiveram muitos conflitos com os pais e fizeram este
exercício geralmente os descrevem correndo de modo rígido; aliás, a rigidez
mental e a rigidez das pernas andam juntas, tanto na vida como na fantasia.
Quando o pai ou a mãe apresenta tendência à autopiedade ou a ser mártir,
em geral tem membros rígidos, nas visualizações.
Uma moça que estava tendo dificuldade para se afastar do controle de sua
mãe contou-me que via os pais correndo por um campo dourado brilhante e
magnífico, com grandes nuvens brancas pairando acima. Correram juntos
até o alto de uma colina de longas e inclinadas encostas, e o pai corria de
punhos cerrados; então, repentinamente, a mãe arrancou sozinha, como se
estivesse determinada a vencer uma corrida. Ao contar o enredo de seu
filme, a moça reconheceu como as imagens correspondem à sua situação
real: “Minha mãe ultrapassava a todos nós, com sua irada determinação,”
observou ela com amargura. Ficou em silêncio por um instante e depois
começou a chorar. “Também vejo em seu rosto uma coragem monumental.”
Essa sessão mostrou ser uma grande reviravolta em sua vida. Ela viu a mãe
como realmente era: irada, determinada - e também corajosa. Ter posto a
mãe em perspectiva ajudou-a a se colocar também em perspectiva, e
começou a ver que poderia comandar sua própria vida.
Um outro paciente começou vendo a mãe correndo ao lado do pai. Depois,
sem qualquer aviso, ela se virou e correu na direção oposta, diante do que o
pai a seguiu, incontinenti. Essa imagem desencadeou nele uma torrente de
lembranças, muito diferentes daquela que ele antes lembrava a respeito do
pai, e também lhe deu uma nova compreensão de seu próprio casamento.
Tal como seu pai, ele era o apaziguador no relacionamento conjugal, muitas
vezes às custas de seus sentimentos e de suas necessidades mais profundas.
Esta técnica específica é criação de Akhter Ahsen, psicólogo paquistanês
que veio há dez anos para os Estados Unidos, trazendo uma teoria que ele
denominava “olho psíquico”. Conheci Akhter logo que chegou à Filadélfia
e comecei a considerar, então, pela primeira vez em minha vida, o valor das
imagens, mais do que o das palavras, para chegar à verdade sobre o passado
de uma pessoa. “Palavras não são vivência,” ele me dizia então. “Elas
apenas falam sobre a experiência.” Desde o meu primeiro encontro com
Akhter, que se tornou um dos maiores especialistas do país nesse campo,
meu fascínio pelas imagens mentais tem aumentado cada vez mais.
A visualização dos pais no campo foi uma das que usei comigo própria. Ao
criar a cena de meu pai e minha mãe correndo pelo campo, vi minha mãe —
que tinha artrite e andava com dificuldade - puxando meu pai pelo braço e
quase arrastando-o por aquele campo. Isso foi suficiente para me convencer
da validade do método Akhter. Embora eu não admitisse isso, minha mãe
dirigia nossa casa com mão de ferro!
A brincadeira de detetive na sua casa de infância
Freud, o próprio mestre, usou a visualização por algum tempo, mas depois
parou, em favor de outros instrumentos analíticos. Se tivesse continuado,
todo o contexto da psicoterapia, nos últimos cinquenta anos, poderia ter
sido diferente.
O que acontece com muitas pessoas que entram em terapia é que
simplesmente repetem para o terapeuta as palavras que estão repetindo em
sua mente há muito tempo. Falar dos sentimentos não é o mesmo que
vivenciá-los. Por causa disso, existe hoje um grande número de pessoas que
trabalham com as imagens mentais, tanto como técnica terapêutica
preferida, como na qualidade de recurso acessório, para fazer com que os
pacientes saiam de seus entrincheirados padrões mentais, no que diz
respeito à infância.
Quando o paciente revê os filmes de sua meninice, mesmo que apenas por
poucos segundos, isso de fato o lança para fora dos antigos e, muitas vezes,
imobilizantes pensamentos, permitindo-lhe, nesse voo, ver a antiga situação
de uma perspectiva interior diferente. O trazer para o campo da consciência
essas antigas lembranças tem o poder de curar as antigas mágoas e, com
isso, as pessoas se aproximam ainda mais da totalidade.
Na minha própria experiência clínica presencio que, embora possam estar
muito infelizes, os pacientes se apegam às distorções que elaboram sobre os
acontecimentos do período em que estavam crescendo. A maneira mais
eficiente que encontrei de atravessar essa parede consiste em convidá-los a
brincarem de detetive em sua casa de infância.
Sugiro que se vejam deitados na cama, na infância, observando tudo que
está à sua volta, as rachaduras do teto, a sensação da coberta, o odor da
casa, os sons abafados dos pais conversando em outro aposento.
Depois de ter digerido a vivência de seus pais correndo por um campo,
sugiro que você investigue as imagens correspondentes à sua própria
infância. Posso prometer que serão fascinantes e, além disso, você também
poderá descobrir uma sensação maravilhosa ao liberá-las.
II. Roteiro para rever o filme da sua infância
Escolha qualquer momento ou lugar da sua vida e veja-se nele. Quando o
filme começar a passar, preste uma atenção particular aos detalhes ou ao
local em que você se encontra. Sinta-se realmente ali e, dessa maneira,
estará criada a cena para o desenrolar do enredo.
As coisas mais importantes a serem observadas nesse filme são seus
pensamentos e julgamentos. Conscientize-se deles quando vierem — “Eu
estava certo, ele estava errado”; “Eu sou bom, ela foi ruim”; “Nunca fiz
nada que prestasse,” etc. - e deixe então que suavemente flutuem para
longe de sua mente. Cada um destes impulsos negativos simplesmente
reforça antigos pensamentos e impede que seu filme seja projetado sem
empecilhos.
É possível que você veja filmes infelizes, e até amedrontadores. Da mesma
maneira como você faz quando está vendo um filme de terror no cinema,
simplesmente o observe e perceba quais os sentimentos que ele evoca,
sabendo que passarão. Quando você se dispõe a olhar para a imagem que
causa incômodo, muitas vezes ela se transforma por si em algo mais feliz.
O dr. Robert Leichtman, psiquiatra de Baltimore que trabalha com as
imagens internas, sugere que, quando você vir uma imagem assustadora -
humana ou animal - em sua tela particular de projeção, ofereça-lhe um
pouco de comida.
Ele conta a história de uma paciente que viu um urso gigantesco aparecer
diante dela no momento seguinte à visualização de sua mãe e de seu pai.
Ficou assustada com essa imagem e achou que poderia ser destruída.
Quando o dr. Leichtman sugeriu que espalhasse mel no chão para oferecer
ao urso, a imagem instantaneamente mudou, primeiro para um panda e
depois para um fox-terrier brincalhão.
Nesse instante, ela pensou em seu pai, que sempre a havia assustado. Para
sua surpresa, seu pensamento seguinte foi o de um homem que precisava de
amor e ternura. Depois dessa constatação, seu relacionamento com o pai,
até então muito defensivo, começou e mudar, e ela conseguiu sentir amor
por ele. Por seu lado, ele se permitiu mostrar por ela o amor que havia
retido, com medo de ser rejeitado. Essa adorável história de amor nos
lembra, mais uma vez, que por trás de nossos medos se escondem
afetividade, ternura e amor. Quando as pessoas aprisionam o que chamo de
seus “sistemas afetivos”, distanciam-se de toda e qualquer emoção.
O dr. Peter Brill, psiquiatra na Universidade da Pensilvânia e pessoa de
espírito livre, contou-me a seguinte história, em que empregou os filmes da
imaginação para ajudar um homem com quem trabalhava a entrar em
contato com seus sentimentos. Peter realiza “workshop de transição” para
homens e mulheres cuja vida pessoal e profissional está em fase de
mudança.
Essa pessoa, particularmente, um viúvo de quarenta e cinco anos,
simplesmente não conseguia manifestar emoções; seu rosto era inexpressivo
e morto. Contou a Peter que seu pai abandonara sua mãe quando ele tinha
três anos e depois morrera. Havia sido criado pela mãe e pela avó e disse
que sempre se sentira “congelado”.
Como parte do programa do curso, os participantes foram instruídos a
pensar num momento feliz ou infeliz de sua infância, focalizando a seguir o
primeiro instante que lhes viesse à mente. Esse homem lembrou-se de
quando tinha ido à escola pela primeira vez e do medo incrível que isso lhe
causara. Repentinamente, lembrou-se de seu ursinho predileto, no qual não
havia pensado durante anos.
À sugestão de Peter, ele desenhou o ursinho num grande pedaço de papelão.
As lembranças começaram a jorrar. Recordou o quanto sua mãe e sua avó
faziam gozações com ele por querer o brinquedo, e como se sentia
humilhado. Lembrou-se especificamente do momento profundamente
angustiante em que pôs o ursinho dentro do armário para sempre. Ao rever
as cenas desse importante episódio de sua infância, uma torrente de
lágrimas brotou e ele então se sentiu capaz de entrar em contato com outros
sentimentos e de falar sobre eles.
Ao explicar-me o que acontece num caso como estes, Peter disse-me
acreditar que os eventos importantes de nossa vida são, basicamente,
experiências visuais, retidas em nossa memória como imagens. Assim como
aconteceu com outros profissionais que estão agora trabalhando com este
notável recurso, ele descobriu que as pessoas têm acesso a esses
acontecimentos muito melhor através das imagens armazenadas no seu
interior do que falando sobre eles.
Uma imagem vale mais que mil palavras
A psicossíntese, criada pelo dr. Roberto Assagioli, psiquiatra italiano, é um
sistema extraordinário que usa imagens interiores, ao lado de outras
técnicas, para psicoterapia, conscientização individual e crescimento.
Um exemplo deste sistema de grande eficácia pode ser visto na história
verídica de uma mulher que identificava no marido dominador o principal
problema de sua vida. Quando lhe foi pedido que visualizasse a maneira
como se sentia em relação à vida conjugal, ela imediatamente se viu como
um filhote de passarinho na palma da mão de alguém. Esse passarinho não
conseguia livrar-se e estava sendo esmagado.
O terapeuta sugeriu que ela visse a mão abrindo-se. Quando o fez, o
passarinho voou para um galho que estava próximo e pousou nele,
recusando-se depois a sair dali. Por mais que tentasse ver o pássaro voar
daquele galho, ele continuava ali, parado. Com base nessa imagem, ela viu
claramente que era ela quem se permitia ser dominada pelo marido, porque
isso lhe oferecia uma sensação de segurança. E disso emergiu uma nova
constatação: que ela era a única responsável por sua situação e que tinha a
liberdade de ser ou não dominada, dependendo apenas da sua escolha.
Quando parou de culpar o marido por sua situação miserável, foi capaz de
enxergar outras opções em sua vida.
Robert Gerard, psicoterapeuta de Los Angeles que trabalha com imagens,
usa um roteiro de visualizações que chama de “a porta”. O paciente é
solicitado a enxergar uma porta na parede, ou na entrada de uma casa e,
sobre ela, deve imaginar uma palavra, que pode ser sugerida por ele
mesmo: ansiedade, depressão, amor, ódio, esperança, por exemplo. Depois
o paciente abre a porta e relata o que vê do outro lado. No filme espontâneo
que se segue, ele geralmente revê uma cena real de sua infância que está
associada à palavra - os pais discutindo, talvez, ou ele mesmo numa sala de
aula sendo alvo de gozações.
O que acontece aqui difere de simplesmente lembrar um incidente da
infância que tenha sido especialmente perturbador, porque a palavra na
porta ajuda-nos a expandir a maneira como enxergamos a cena original.
Também a vemos com mais objetividade do que quando apenas a
recordamos, uma vez que recordar, geralmente, tem uma qualidade
possessiva, controladora.
Meu irmão, por exemplo, tinha uma estação de radioamador e eu me lembro
de que ele às vezes costumava segurar meus dedos nos fios para me dar um
leve choque elétrico (naturalmente, longe das vistas de nossos pais). Toda
vez que volto a pensar nisso, revivo minha emoção original de medo e
raiva. Quando usei a técnica de Robert Gerard e vi a palavra “medo” na
porta, e depois passei por ela para observar o incidente de meu irmão
dando-me um choque, minhas imagens forçaram-me a esquecer o que eu
havia lembrado. Pela primeira vez, vi o medo nos olhos do meu irmão
enquanto ele fazia isso, o que para mim foi uma revelação incrível. Depois
olhei para mim e vi claramente que eu tinha provocado sua agressão ao
irritá-lo e desafiá-lo. Depois de ter sintetizado minha memória com a
verdade, nunca mais pude inocentemente recitar as linhas do antigo texto:
“Quando eu era bem pequena, meu irmão costumava agarrar-me as mãos e
dar-me um choque elétrico com aqueles fios.” Essa história tinha um dia
sido maravilhosamente útil para eu me enxergar como vítima, mas agora eu
só podia aceitar tal versão como uma fração da verdade.
III. Roteiro para chegar à verdade
Neste exato momento, por certo, você tem uma raiva ou um ressentimento
antigos ou atuais perpassando sua mente. Estes, ou o preocupam com
assiduidade, ou brotam em sua mente apenas naqueles momentos em que
você não tem nada melhor a fazer de que tirar uma boa soneca. Para
ajudá-lo a ir em frente, libertando-se desse peso, tente o seguinte:
Imagine a palavra que mais se aplica ao problema que você tem agora e
veja-a claramente, em grandes letras garrafais de imprensa, escrita no alto
de uma porta. Aproxime-se da porta e observe os seus detalhes. Talvez seja
uma porta antiga, decorada com entalhes artísticos, ou uma porta muito
simples, de madeira, com ou sem pintura. Veja novamente a palavra que
você escolheu destacando-se claramente nessa porta.
Com suavidade, vá abrindo-a e olhe à sua frente, para a esquerda e para a
direita, para ver o que está ali, da mesma forma como você faria se
entrasse num aposento em que nunca esteve antes.
Se vir uma pessoa, comece a falar com ela sobre o seu problema. Se não vir
nada além de um vasto horizonte, continue em frente e veja outra porta;
passe por ela até encontrar uma pessoa ou animal com quem falar a
respeito do seu problema, ou até achar um lugar onde possa ficar sozinho
com ele.
Não se apresse, fique tempo suficiente com o seu problema. Depois, dê-se
mais tempo para enxergar a verdade sobre essa situação. Podem entrar em
cena antigas recordações e pessoas do passado, associadas a essas
lembranças. Observe de que maneira elas se relacionam com o problema.
Veja-as como elas são, mesmo que isso se mostre diferente do que você
pensava a respeito delas.
Agora, abra os olhos e ponha o hemisfério cerebral esquerdo
deliberadamente em funcionamento para esclarecer o que essas imagens lhe
estiveram transmitindo. Você pode agora associar suas imagens à vida que
leva hoje, fazendo-as trabalhar para você. O que elas lhe disseram é o que
você precisa saber.
Ouse perguntar-se: “Quem Sou Eu?”, e espere uma resposta que seja
profundamente satisfatória. O dr. Roberto Assagioli disse: “Você pode
confiar em seu ser mais profundo, aprendendo a viver com base nesse
alicerce. O você verdadeiro sabe tudo que você necessita saber, conhece o
futuro, e irá conduzi-lo.” O dr. Assagioli, assim como muitos outros que o
seguiram, considerava a visualização um canal para o Self Superior — o
cerne essencial do ser de cada um, a centelha de individualidade em todos
nós, a conexão entre a pessoa e a vida como um todo — que é a fonte tanto
da nossa individualidade como da nossa universalidade. É a partir deste
ponto em nós que a vida adquire riqueza e significado e funciona como a
fonte do prazer que a maioria de nós almeja conquistar.
31. Matando o dragão
JOSEPH CAMPBELL
Com a morte do grande mitólogo Joseph Campbell, em 1987, uma onda de
interesse por seu trabalho parece ocorrer sincronicamente ao lançamento
de livros, programas de televisão e vídeos. Considerando-se o quão amplos
foram os horizontes de suas investigações e especulações a respeito da
natureza universal dos motivos mitológicos, Campbell teve peculiarmente
pouco a dizer sobre a criança ou a criança interior. Contudo, o que de fato
disse foi claro, sucinto e objetivo, como o leitor poderá constatar logo
abaixo. A questão que se coloca é bastante evidente: “De que modo nós
podemos, como indivíduos, entrar em contato com a criança que vive
dentro de nós?”
Transcreveremos um excerto das entrevistas que Campbell deu num
programa de rádio ao vivo, de alcance nacional, chamado “Novas
Dimensões”, ao apresentador Michael Toms. O conjunto destes programas
encontra-se transcrito em um livro publicado com o título: An Open Life:
Joseph Campbell in Conversation with Michael Toms.
Tem-se falado dos gurus orientais, mas também temos gurus no Ocidente.
Penso, por exemplo, no pessoal do movimento pró-potencial humano:
algumas pessoas assumiram o papel de guru.
Essas pessoas estão seguindo o modelo oriental, eu diria. Mas realmente
deve ser muito agradável ouvir algo como: “Você é iluminado? Eu sou!
Então ouça! Não me venha com enrolação.” Uma das coisas típicas do
Oriente é que toda crítica desqualifica você como candidato à instrução
ministrada por um guru. Pelo amor de Deus, isso é apropriado para a mente
ocidental? Trata-se simplesmente de transferir sua submissão ao pai da
infância para um pai de sua idade adulta, o que significa que você não está
crescendo.
De maneira semelhante, existe na psicanálise a ideia toda da transferência.
O que você transfere para o analista? Você transfere todos os sistemas
parentais de relacionamento - portanto, você continua limitado; ainda é
submisso e dependente.
Quando você fala de maturidade na idade adulta lembro o que Jesus disse:
“Você deve tornar-se como uma criancinha para entrar no reino do céu.”
Vamos justapor essa sentença à idade adulta e á maturidade. Como é que
elas se aproximam?
Penso que ele falava da espontaneidade. Mas a resposta à sua pergunta está
em Nietzsche, na sua introdução ao Zaratustra. É curioso falar de Nietzsche
junto com Jesus, porque o comum é pensar-se nele como o anticristo, e ele
mesmo se considerava um pouco assim. Mas foram ambos grandes mestres
e os grandes mestres costumam dizer coisas semelhantes em línguas
diferentes.
Nietzsche diz que há três estágios para o espírito. O primeiro é o do camelo.
Ele se ajoelha e diz: “Ponha carga nas minhas costas.” Essa é a condição da
juventude e do aprendizado. Quando o camelo está bem carregado, ele se
ergue sobre os próprios pés e corre para o deserto. Esse é o lugar para onde
se dirige a fim de ficar sozinho para se encontrar, e ali é transformado num
leão. A função e o feito de um leão é matar o dragão, e o nome do dragão é
“Tu deves”. Em cada escama do dragão há a inscrição de uma lei, e algumas
datam de 2000 a.C., enquanto outras procedem do noticiário de ontem.
Quando o camelo está bem carregado, o leão é potente e o dragão é morto.
Veja, são duas coisas bem diferentes. Uma é submissão, obediência,
aprendizado; a outra é forte e assertiva. E quando o dragão é morto, o leão
se transforma numa criança.
Nas palavras do próprio Nietzsche, “uma roda que gira a partir de seu
próprio centro”. É isso o que a criança representa, nesta linguagem mística.
O ser humano recuperou aquela espontaneidade e inocência, aquela
indiferença para com as regras que é tão maravilhosa na infância. O
pequenino que se aproxima e diz coisas absolutamente constrangedoras
para o desconhecido de visita em sua casa — assim é a criança; não a
criança obediente, mas a criança inocente, que é espontânea e tem a
coragem de viver seus impulsos.
Como podemos nós, enquanto indivíduos, entrar em contato com a criança
que vive dentro de nós?
Matando o dragão que se chama “Tu deves”.
Optando por não viver segundo as regras dos outros?
Certo. Respeitando-as mas não vivendo por elas. Respeitando-as mais ou
menos da maneira como você respeita as luzes verde e vermelha dos
semáforos. Existem outras regras que parecem aconselháveis - se, em sua
própria inteligência, você vê que essa regra representa uma coisa decente,
por exemplo. Mas uma regra que lhe é imposta como regra - “Tu não deves”
— é uma outra história. Penso que se pode aprender a ter coragem, o que
também implica assumir responsabilidade pelo que você está fazendo -
sendo punido se você cometeu erros radicais que feriram terceiros. Isso
pode ser feito.
32. A redenção da criança interior no casamento e
na terapia
ROBERT M. STEIN
O dr. Robert M. Stein, analista junguiano que exerce a clínica há trinta
anos, tem publicado trabalhos inteligentes e persuasivos sobre o tema da
criança interior, sempre com honestidade e compaixão. Suas ideias a
respeito da criança interior são originais e se baseiam numa abordagem
construtiva e livre de sentimentalismos.
Stein concentra seu enfoque nestas duas formas de relacionamento, o
casamento e a psicoterapia, porque elas representam dois dos mais viáveis
- e ameaçados - instrumentos de nossa cultura para o que chama de
“cultivo da alma”. Ele sugere que a criança interior negligenciada em
ambos os parceiros domina a maioria das relações de casamento, mantendo
marido e esposa fixos na dinâmica que predomina ente pais e filhos. A
criança interior que sofre de mágoas decorrentes de relações amorosas,
segundo Stein, também é o que em geral leva as pessoas a irem em busca
de ajuda psicoterapêutica. Por conseguinte, podemos analisar o casamento
e a terapia para encontrar e recuperar a criança interior. Este ensaio é
tanto um recurso desafiador como instigante para a redenção da criança.
O dr. Stein elaborou este ensaio especialmente para a presente coletânea,
atualizando os dados relativos à criança interior originalmente publicados
em sua já famosa obra Incesto e Amor Humano.
O casamento e a criança negligenciada
O casamento não é um casamento se não estiver baseado na masculinidade
e na feminilidade essenciais do marido e da esposa. Quando a polaridade
masculino/feminino começa a deteriorar no casamento, este é um sinal
indiscutível de que a criança interior negligenciada em ambos os parceiros
assumiu o controle da relação. Essa situação é, provavelmente, a fonte de
muitas insatisfações nos casamentos modernos. A pura masculinidade e a
pura feminilidade se atraem fortemente. Não são inimigas, não são
adversárias hostis, como parecem ser na maioria das relações conjugais de
hoje.
Embora a masculinidade e a feminilidade informe da criança comecem a
emergir assim que ela nasce - assim que é concebida, melhor dizendo - a
criança não atinge sua identidade sexual enquanto não se torna consciente
da própria sexualidade. E essa conscientização não pode ocorrer antes que
os centros corporais de sua sexualidade despertem por completo, enquanto
sua capacidade de tomar consciência não estiver desenvolvida o suficiente
para receber o obscuro mistério da paixão sexual. Na maioria das culturas,
os ritos de transição para a plenitude adulta masculina e feminina
concentram-se, principalmente, em torno dos mistérios da sexualidade e da
identidade sexual. A humanidade sempre considerou necessário ajudar a
criança a atravessar essa perigosa passagem com a assistência de rituais
complexos. São poucos os indivíduos da atualidade que completaram com
êxito essa passagem psicológica para a maturidade masculina e feminina;
portanto, a criança não-iniciada e amedrontada que vive em nós pede
continuamente ajuda e instruções. E essa criança negligenciada domina a tal
ponto o relacionamento conjugal que este rapidamente deteriora,
transformando-se no conforto e segurança assexuados do relacionamento
pais-filhos arquetípico.
Enquanto a criança não tiver sido iniciada nos mistérios da masculinidade e
da feminilidade não estará pronta para o casamento. Enquanto a criança não
se transformar em homem ou mulher, não poderá conter o mistério de sua
própria natureza sexual obscura. Somente então é que marido e esposa
irrompem em todo o esplendor e dignidade de sua própria masculinidade e
feminilidade. Somente então podem, mais uma vez, vivenciar a poderosa
atração da polaridade sexual de que a alma necessita.
O que pode ser feito por essa criança negligenciada e insatisfeita para que
ela possa, verdadeiramente, tornar-se homem ou mulher? É evidente a
necessidade de algum rito de iniciação ou cura. Acredito que a análise
junguiana pode ser esse rito. Mas é um ritual longo, lento e ainda
inadequado. Com ou sem análise, a criança perturbada não tem
necessariamente que dominar, se cada parceiro tentar, pelo menos, assumir
a responsabilidade pelos cuidados devidos à sua própria criança interior.
A criança exigente é aquela que se deparou com muitas vivências
destrutivas de resistência ao seu desenvolvimento peculiar, que foi levada a
sentir-se culpada e envergonhada pela singularidade de sua própria
natureza. A criança que há dentro do adulto precisa desesperadamente sentir
que sua natureza é plenamente aceita, sentir-se absolvida da culpa
deformante que detém até então o seu desenvolvimento. Infelizmente, a
criança exigente em geral provoca críticas e censura por parte dos outros,
especialmente quando fala no corpo de um adulto. O que essa criança quer
é ter permissão para viver de forma espontânea e natural. Mas quando nós
mesmos criticamos e rejeitamos nossa criança interior, como podemos
esperar que os outros a aceitem? Além disso, mesmo quando os outros
mostram compaixão por ela, o arquétipo do Progenitor Negativo, na nossa
própria psique, se torna ainda mais rejeitador que os outros e, por
conseguinte, a necessidade de aprovação da criança se torna insaciável,
nunca conseguindo sentir-se genuinamente gratificada.
Quando a criança exigente que há dentro de nós lança sua súplica na
direção de outra pessoa, costuma fazer com que esta caia no papel de
Progenitor Negativo. É então que vivenciamos rejeição e traição, e uma
sensação ainda mais profunda de inadequação e humilhação. Quando isso
acontece no casamento, o fluxo de Eros encontra-se totalmente obstruído.
Por certo, é fundamental para o redespertar da ligação masculino-feminino
o desenvolvimento da capacidade de conter os sofrimentos da criança
exigente. Nós apenas prolongamos o processo de sua transformação toda
vez que submetemos essa criança a mais situações de rejeição e
humilhação.
É difícil conter as dolorosas necessidades da criança exigente porque elas
sempre nos parecem muito corretas e despretensiosas: “Claro que todo ser
humano tem direito a um pouco de amor e compreensão. Por que é que eu
deveria sofrer e conter uma necessidade básica que é tão fácil de satisfazer?
Mostre-me uma causa importante e significativa e eu lhe mostrarei o que
consigo suportar! Mas por que é que eu deveria sofrer só porque você se
recusa a fazer uma refeição decente ou manter a casa em ordem? Por que é
que eu deveria suportar a dor que sinto por você me deixar sexualmente
frustrado? Por que é que eu deveria sofrer por causa de sua frieza e
ausência de compreensão por minhas necessidades tão simples e básicas?
Uma pessoa desconhecida mostraria por mim mais afeto do que você.
Simplesmente não vou mais tolerar isso! Você pode falar tudo o que quiser
a respeito de sofrimento significativo, gritar a plenos pulmões, mas eu sei
que tenho o direito de esperar algo e a simples delicadeza humana não é
uma exigência grande demais...”
Aí está você. Temos o direito de privar o bebê de seu leite? De privar
nossos entes queridos do leite da delicadeza humana, da simples
compreensão? Bem, o bebê ou a criança certamente têm o direito de esperar
que seus pais satisfaçam algumas de suas necessidades básicas. Marido e
esposa, no entanto, não são os pais um do outro; esperar mais do que
honestidade e abertura mata o fluxo de amor entre ambos. E, se a criança
interior ainda persiste em exigir do outro os seus direitos, o casamento
permanecerá imobilizado no padrão arquetípico Pai-Filho. Não há
possibilidade de qualquer ligação vital entre homem e mulher, então, e
nenhuma autêntica sexualidade. Portanto, minha resposta ao homem e à
mulher que não enxergam motivo para suportar as exigências “justificadas”
de sua própria criança negligenciada e frustrada é a seguinte: não há
nenhuma esperança de mudança real no seu casamento, nenhuma chance de
retomar a ligação com os grandes ritmos naturais de seu próprio ser e do
cosmo, enquanto isto não for plenamente reconhecido e vivido, e seu
casamento só pode ser uma prisão estéril ou um campo de batalha.
A transformação da criança exigente não pode ocorrer, porém, sem uma
mudança interna paralela no arquetípico do Progenitor Negativo. Assim que
alguém exige do outro aquilo que sente que é seu “direito”, é ativado no
outro o Progenitor Negativo, crítico e rejeitador. E acrescento o seguinte: o
Pai Negativo é constelado também na própria pessoa tão logo ela começa a
sentir-se magoada ou enraivecida porque alguém a menosprezou, ou não lhe
deu aquilo que ela sente que tem o “direito” de esperar.
Quero agora descrever de que maneira vejo o Progenitor Negativo
funcionando no plano interno. Ele entra em cena assim que a criança
interior começa a exigir seus direitos, suas simples necessidades de amor,
compaixão e compreensão. O Progenitor Negativo nos faz sentir culpados
por termos necessidades tão pueris e imaturas: “Será que você não consegue
ficar em cima das suas próprias pernas? Que criancinha dependente, sem
nenhum valor, que você é - uma nulidade.”
Somos então esmagados por palavras como estas e fazemos um esforço
determinado para nos levantar sozinhos desta posição tão rebaixada. Com
isso, rejeitamos as necessidades da nossa criança interior. Mas ela é
persistente e em breve reaparece com suas exigências, e até com maior
insistência do que antes. Agora a batalha está em sua máxima fúria e vemo-
nos imobilizados entre estas duas forças adversárias: a criança de nossa
própria natureza e a força antivida do Progenitor Negativo. E tornamo-nos
desvitalizados, paralisados por tudo isso, sem saber que rumo tomar. Se nos
aliamos ao Pai Negativo, nossa força vital interior submete-se à sua mão de
ferro e sentimo-nos aprisionados. Se nos aliamos à criança, na tentativa de
conseguir que os outros satisfaçam as nossas necessidades, apenas
recebemos, de fora, a mesma reação do Progenitor Negativo.
Esse dilema só pode ser resolvido quando conquistamos a capacidade de
conter a batalha, o que possibilita ao Progenitor Negativo interior
transformar-se, enfim, em Progenitor Positivo que ampara e provê a
criança. Essa criança interior começa então a receber a compaixão de que
necessita, e pode descobrir quais são os melhores meios possíveis de
satisfazer suas necessidades instintivas negligenciadas.
A psicoterapia e a criança negligenciada
As pessoas vão em busca de ajuda psicoterapêutica por causa da dor, do
desespero, da raiva e das necessidades insatisfeitas da criança interior
negligenciada. Uma repetição dos padrões que acabamos de descrever na
sua forma conjugal logo se manifesta na relação terapêutica. Elaborar essas
profundas mágoas da infância, ao serem ativadas na assim chamada
transferência para o terapeuta, pode ser enormemente curativo. O termo
transferência descreve o fenômeno pelo qual uma pessoa transfere (projeta)
uma vivência reprimida do passado para o terapeuta, ou seja, o paciente
pode vivenciar o terapeuta como uma autoridade paterna ou materna não-
afetuosa, crítica e condenatória.
Na infância, todas as funções psíquicas que acabam humanizando a criança
são primeiro vivenciadas como atributos dos outros. Enquanto porções
vitais da própria totalidade da pessoa forem suficientemente internalizadas,
ela vive num estado contínuo de dependência psíquica. A iniciação à fase
adulta é, antes de mais nada, um processo por meio do qual as projeções
arquetípicas contidas pelas figuras parentais são gradualmente resgatadas e
internalizadas pela pessoa que as projetou. Na nossa cultura, tem- se
registrado um sério colapso nesse processo essencial de humanização. O
fenômeno por meio do qual uma pessoa se torna portadora de um fator
arquetípico inconsciente ou negligenciado no lugar de outra sempre ocorre
quando ela se sente poderosamente atraída ou repelida por essa outra
pessoa.
A projeção arquetípica não necessariamente diminui à medida que a pessoa
se aproxima do equilíbrio interior. É provavelmente um fator essencial a
qualquer relacionamento dinamicamente criativo, tornando-se negativa e
impeditiva somente quando a constelação arquetípica se imobiliza. A
internalização psíquica nunca termina; é, ao contrário, um caminho
contínuo e individualizado que contém a chave do mistério do nosso
desenvolvimento psicológico. As fixações nos pais, tão características da
nossa cultura, são, em grande extensão, o fator responsável pela interrupção
da nossa capacidade de internalização. Em decorrência disso, temos a
tendência a fixar-nos, a deter-nos em enquadramentos arquetípicos, nos
nossos relacionamentos mais importantes. Uma internalização interrompida
impede-nos também de viver a nossa própria “criança”, ou seja, perdemos
nossa capacidade de liberdade no plano imaginário. Somente quando nos
libertarmos da fixação em nossos pais poderemos ser a criança e então
encontrar nossa imaginação emocional, uma vez que ela é essencial para a
autorrealização psicológica.
Uma relação comprometida com o mundo imaginal pode manifestar-se não
só como fracasso ou bloqueio da imaginação, mas também como falta de
diferenciação entre o mundo imaginal interior e o mundo concreto externo.
Provavelmente, tanto o fracasso da imaginação como a sua falta de
diferenciação são os dois lados de uma mesma moeda. Por exemplo, a vida
de fantasia aparentemente desinibida e tresloucada que ocorre em muitos
estados psicóticos é, muitas vezes, uma defesa contra emoções e fantasias
dolorosas e inaceitáveis. As fantasias delirantes da psicose são,
frequentemente, uma consequência de repressões severas que bloqueiam a
imaginação. Por outro lado, uma pessoa cuja imaginação parece esparsa e
obstruída geralmente teme abrir-se às suas imagens interiores porque não
tem uma clara distinção entre o âmbito imaginal interno do pensamento e
do sentimento e o âmbito externo das expressões e ações.
O desenvolvimento psicológico criativo, a individuação, depende da
liberdade espiritual. Quando dizemos, por exemplo, que um homem tem o
espírito livre, será que estamos querendo dizer que ele transgride
livremente, ou necessariamente, os modos, costumes e tabus impostos por
sua cultura? Creio que não. Isso significa, sim, a liberdade de fazer
qualquer coisa ou de ir a qualquer lugar onde deseje no plano imaginal. Ele
é o homem que distinguiu de modo claro o mundo sagrado e atemporal do
mundo secular e histórico. Ele sabe que pode movimentar-se com dignidade
imaculada entre os deuses e demônios do mundo imaginal, sem o receio de
transgredir os tabus que pertencem ao plano mundano. Essa espécie de
liberdade não pode ocorrer numa forma primitiva de consciência, em que as
realidades interna e externa são governadas pelas mesmas leis e valores.
Neste sentido, a nossa tradição judaico-cristã é primitiva, na medida em que
os nossos pensamentos e desejos estão submetidos aos mesmos dogmas, à
mesma regulamentação que os nossos atos. A liberdade espiritual requer
uma ruptura com a tradição bíblica e o desenvolvimento de uma nova forma
de consciência, que promova o cultivo da liberdade para o imaginário.
Na psicoterapia, tanto o terapeuta como o paciente são imediatamente
lançados nos papéis arquetípicos de Médico-Paciente, Professor-Aluno, Pai-
Filho, tão logo começam a trabalhar juntos. Essa costuma ser a constelação
transferencial inicial, mas trata-se de algo mútuo, mais que um fenômeno
unilateral: o terapeuta projeta o arquétipo da Criança impotente ou carente
no paciente, ao mesmo tempo que este transfere para ele o arquétipo do Pai
ou Mãe prestativo e forte. Enquanto isso continua assim, as duas partes
estão essencialmente desempenhando seus papéis uma para a outra e o
relacionamento é apenas impessoal.
Consideremos agora algumas possibilidades de se usar terapeuticamente a
transferência: 1) como instrumento para incentivar a conscientização e a
diferenciação; 2) como possibilidade de vivenciar certas constelações
arquetípicas críticas com o analista; 3) como meio de afastar de uma
fixação arquetípica e se encaminhar para um relacionamento humano mais
individualizado. Esse último fator, dentre todos, é dotado de enorme poder
curativo. Depois de algumas vivências dessa espécie de cura e resgate, a
capacidade de internalização começa a se tornar uma função viável e
confiável, e a pessoa fica cada vez menos temerosa de expor sua alma aos
outros.
Com base nessas formulações, pode-se ver que o correto entendimento da
transferência colabora para o surgimento de uma autêntica experiência de
cura e resgate. Se a transferência for inconsciente ou malversada, o melhor
que se pode esperar é um aumento da consciência do ego, e o pior é uma
intensificação da distância entre a mente e o corpo e uma maior
desconfiança diante de relacionamentos humanos abertos. Torna-se também
evidente que as questões importantes relativas à resolução da transferência
precisam ser reconsideradas. Dado que se trata de uma parte da condição
humana cair continuamente em constelações arquetípicas, a ideia de que a
transferência só é resolvida quando as projeções arquetípicas são retiradas e
internalizadas é um objetivo falso e impossível. Proponho, em vez disso,
um objetivo mais plausível para a resolução da transferência: o
desenvolvimento da capacidade de internalizar, evidenciado pela
capacidade da pessoa de reconhecer constelações arquetípicas e depois
afastar-se delas.
Enquanto se mantém a situação de análise, não será possível afastar-se em
caráter permanente da situação arquetípica, que força o analista a assumir o
papel de portador de uma consciência mais ampla. Embora essa constelação
arquetípica possa ser transcendida, a própria natureza da situação torna
inevitável que as duas partes recaiam nela. O término definitivo da relação
analítica é essencial para que a pessoa possa sair desse enquadramento
arquetípico. Mas o término é difícil, porque, em geral, significa o término
de uma relação que pode ter-se tornado algo importante em si, sem
considerar suas metas terapêuticas ou espirituais. A possibilidade de um
continente para manter o relacionamento deve existir, ou bem a relação
permanecerá imobilizada numa situação arquetípica em que o analista é
portador da consciência mais ampla, independente de a análise prosseguir
ou cessar. Os seminários para alunos, mantidos por Freud, e o clube
psicológico de Jung, que seus analisandos podiam frequentar, eram talvez
tentativas de satisfazer essa necessidade de alguma maneira, mantendo
então a ligação. Essa estrutura, nos últimos anos, transformou-se na
experiência da terapia em grupo. Uma objeção que se levanta contra essa
alternativa de trabalho é que o analista continua desempenhando o papel
arquetípico de portador da consciência e não há, portanto, a possibilidade
de analista e analisando se conscientizarem da dimensão individualizada da
relação, de seu valor, significado e lugar em meio ao padrão maior de suas
vidas.
Por que essa tomada de consciência é essencial ao processo analítico e à
resolução da transferência? Não basta que o paciente tenha desenvolvido a
capacidade de internalizar? Sim, isso deveria ser suficiente, mas, mesmo
assim, a possibilidade de vivenciar um relacionamento mais pessoal é
essencial tanto para o analista como para o analisando, ou a função de
internalização se torna vazia e sem sentido. Se a internalização for sentida
como o fim de uma ligação humana profundamente relevante, quem vai
querê-la? Quando a criança ou adolescente fica imobilizado numa fixação
parental, isso não ocorre porque necessariamente ele seja incapaz de
superá-la, mas porque muitas vezes ele tem o medo de, ao sair do papel
arquetípico, ver-se isolado do afeto e das qualidades humanas positivas que
são tão importantes à sua alma. Se a análise repete essa vivência de perda e
mágoa, inerente à situação arquetípica entre pais e filhos, o paciente
termina com a mesma sensação de desilusão e traição que sentiu quando
criança.
A transferência positiva
A sensação da criança interior sofrendo mágoas decorrentes de
relacionamentos amorosos é o que em geral leva a pessoa a procurar a
análise. Em decorrência dessas mágoas da infância sofridas pela alma, a
função de eros encontra-se, em geral, subdesenvolvida ou prejudicada, o
que torna extremamente difícil, quando não impossível, que a pessoa
vivencie uma ligação íntima, criativa e crescente com outra pessoa. Neste
sentido, a criança ferida representa também aquele aspecto de alma que
necessita e exige a união com o outro. A compaixão do analista e seu desejo
de ajudar esta criança constelam a necessidade humana fundamental de
união e o desejo de união entre analista e analisando é acionado. Mas o
desenvolvimento do eros apenas na criança não é suficiente para permitir-
lhe entrar nessa união. A criança, antes de mais nada, é dependente do amor
alheio. Portanto, a conexão do eros do analista com a criança ferida, e seu
desejo de ajudá-la, inicia uma transferência positiva.
Apesar de tudo isso, o paciente não é uma criança. A menos que tenha
sofrido danos psicológicos de extrema gravidade, o paciente em geral é
capaz de vivenciar a paixão adulta e o desejo correspondente de união.
Embora a criança ferida seja normalmente a responsável por evocar o amor
do analista, o fluxo subsequente de amor envolve a totalidade, tanto do
analista como do analisando. Eros circula não só em volta da criança
interior mas também entre as duas pessoas envolvidas em cuidar da mesma.
Nesse sentido, embora a transferência tenha a natureza da relação entre pais
e filhos, não há possibilidade de satisfazer o desejo de união vivido pela
alma enquanto a criança não for transformada e curada. Sua natureza
negligenciada e vítima de abuso deve ser atendida e cuidada, para que ela se
torne capaz de amar outra pessoa.
Essa contaminação das necessidades instintivas da criança doente e
negligenciada e da necessidade que a alma tem de amar a outrem é uma
fonte primária das dificuldades que emergem no relacionamento analítico.
O fato de a criança vivenciar o analista como pai, mãe, Deus curador, etc.
não elimina o fato de ter sido posto em movimento o fluxo do amor. É vital,
tanto para o analista como para o analisando, manter a ligação via eros e,
sempre que esta estiver obstruída ou for interrompida (na maioria das vezes
por causa das exigências da criança), será a criança necessitada de cura e
resgate a que mais sofrerá. Mas a alma, em ambos os participantes, também
sofrerá porque deseja a união.
A mútua necessidade que analista e analisando sentem de uma ligação entre
almas está por trás das emaranhadas projeções arquetípicas liberadas na
transferência. Todas as tentativas de aprofundar o desenvolvimento
psicológico do paciente, de compreender e eliminar as resistências
obstrutivas e outras manifestações da transferência negativa são só em parte
devidas ao interesse terapêutico e ao desejo profissional do analista. A mais
profunda necessidade da alma, em qualquer relação humana, nunca é de
ordem terapêutica: trata-se do desejo de unir-se ao outro. Nessa medida, o
desejo que o analista tem de curar e resgatar nunca é puro. Mesmo quando o
analista tenta assumir uma postura objetiva, mesmo quando ele procura
concentrar-se na ferida ou na psicopatologia, o fluxo de eros está ativado, e
isso, por sua vez, mobiliza sua necessidade de ligação humana.
A capacidade de analista e analisando sustentarem ambos a ligação de eros
com a criança ferida depende amplamente do fluxo entre eles. A
diferenciação entre o amor de um pelo outro e pela criança é, até certo
ponto, artificial, embora necessária. Pode- se encontrar um paralelo no
relacionamento entre marido e esposa quando os dois estão preocupados em
promover a saúde e o desenvolvimento da criança. O amor entre pais e
filhos, contudo, é em grande parte unilateral, porque o eros da criança é
subdesenvolvido e basicamente adstrito às suas necessidades instintivas
básicas. Um desejo e capacidade recíprocos de comunhão são necessários
para que a igualdade de uma relação criativa seja possível. Em termos
psicológicos, sabemos que, quando os pais sofrem de uma falta de ligação
entre si, a criança sobrecarrega-se com a necessidade de comunhão de
ambos, insatisfeita.
Quando é dada menos importância à necessidade de união entre analista e
analisando do que à necessidade terapêutica do relacionamento, ela
funcionará de maneira autônoma e inconsciente, da mesma forma como
acontece no relacionamento típico entre pais e filhos. Em vez de a criança
negligenciada ser curada e resgatada na análise, suas mágoas serão ainda
mais intensificadas. Sobretudo, chamar de “transferência” essa necessidade
de união, tentando limitá-la a uma interpretação, torna a terapia o inverso
destrutivo de si mesma. Tanto a criança como a individuação da alma
sofrem danos.
A transferência negativa
A frustração e a desilusão emocionais que a criança sentiu na relação com
os pais são reconsteladas na transferência negativa. Este aspecto do
relacionamento analítico deve ser satisfatoriamente resolvido, pois, caso
contrário, a união interna entre os opostos masculino e feminino não ocorre.
Esta vivência é um passo essencial no processo de restabelecimento da
conexão com a própria alma.
As exigências da criança ferida são, em grande medida, responsáveis pela
fixação, que divide a alma, presente na transferência negativa. Mas, como
vimos, a criança é ferida, antes de mais nada, porque partes vitais de sua
alma não foram internalizadas e continuam sendo contidas pelas figuras dos
pais. No início, o paciente vivencia essa parte perdida de si mesmo como
um atributo do analista. Grande parte de sua frustração e de sua raiva
decorre de sua incapacidade de unir-se a essa imagem que o analista
encarnou. Uma vez que não é possível qualquer união, a aceitação de tal
realidade é a única solução de cura para a transferência negativa. A
necessidade do paciente de união com sua própria alma está por trás dessa
imagem idealizada. Este é um fenômeno que merece mais explicações.
A experiência parental negativa ocorre quando a criança deve ser a
portadora de aspectos vitais da alma de um de seus genitores, o que
geralmente decorre da ausência de conexão de almas entre marido e esposa.
Resulta disso o típico triângulo incestuoso e a criança vê-se privada da
possibilidade de vivenciar sua totalidade na relação com ambos os pais. Em
lugar de vivenciar essa atração e harmonia básicas entre os opostos
masculino e feminino, a criança sente que esses arquétipos - yin e yang, lua
e sol, terra e céu, carne e espírito - são adversários hostis. Acima de tudo,
parece ser esta a experiência responsável pela cisão mente/corpo que aflige
atualmente as pessoas. A desesperada necessidade de sanar essa cisão, de
tornar-se inteiro, está no cerne mesmo da transferência negativa. Seja qual
for o arquétipo constelado na transferência - o da mãe, o do pai ou o do
herói-salvador-amante - ainda é a necessidade de unificação do Rei e da
Rainha arquetípicos - o hierosgamos - que subjaz à transferência. Enquanto
a harmonia não for restituída aos opostos masculino/feminino internos, não
pode ser mantida nenhuma conexão de almas. A transferência analítica será
resolvida assim que for integralmente aceito, tanto pelo analista como pelo
paciente, que a satisfação dessa necessidade arquetípica em sua relação não
é nem possível nem desejável.
A natureza desse aspecto mutuamente frustrante da relação analítica precisa
ser compreendida e aceita antes do término, pois, se isso não ocorre, ambas
as partes encerram a análise na ilusão de que está tudo bem e certo entre
elas. Essa é uma ilusão que tende a perpetuar a cisão interna do paciente,
porque ele não confrontou realmente a impossibilidade da situação
arquetípica. Uma vez que a frustração da alma, na transferência negativa, é
idêntica ao emaranhamento incestuoso da criança com o genitor negativo,
essa experiência dolorosa da infância é apenas repetida, se a análise for
encerrada com a falsa premissa de que analista e analisando estão satisfeitos
com a ligação que têm um com o outro. Evidentemente, ela também fere
quando o paciente termina a análise sentindo raiva e desilusão. Precisa
haver compreensão e respeito de ambas as partes pela situação arquetípica
frustrante, constelada pela análise. Esse reconhecimento da natureza
essencialmente impessoal das obstruções que estão interferindo com a
ligação entre almas é um processo humanizador, e torna-se possível, então,
encerrar a análise com dignidade, respeito mútuo e sentimentos pessoais
positivos, livres das ilusões que fragmentam a alma. A ideia de que a
transferência negativa pode ser modificada dentro da própria situação
analítica é perigosa e enganosa. Ela tende a prolongar em demasia a relação
analítica. O encerramento da análise com a transferência negativa ainda
intacta e plenamente exposta é de enorme valor e, nesse caso, esse valor se
perde por completo. Recapitulando: a plena aceitação mútua da
transferência negativa promove a reconciliação interna dos opostos
masculino e feminino. Essa internalização dos arquétipos da união (o
arquétipo do incesto) é a chave da ligação com a própria alma e da
individuação.
Existe ainda uma outra dimensão no dilema da transferência. Especialmente
na análise junguiana, a experiência analítica muitas vezes é equivalente à
iniciação numa ordem espiritual ou num culto a um mistério. As profundas
mudanças que ocorrem constelam a libido da fraternidade, que tende então,
compreensivelmente, a encaminhar-se na direção de outros iniciados. Se a
pessoa vivenciar um autêntico renascimento, estará pronta para entrar numa
nova vida, em que a irmandade espiritual se torna um elo mais forte do que
os laços de sangue. Tenho constatado em minha experiência clínica que, a
menos que se desenvolva entre analista e analisando essa fraternidade
espiritual, o processo fica muito limitado. Essa ligação fraternal é um elo
que não se rompe com o término da análise. Pode, porém, ser destruído se a
transferência negativa não for aceita, ou, por conseguinte, se houver a
negação de validade da experiência analítica. A ausência de ligações
fraternas firmemente plantadas na alma é, talvez, mais responsável pela
atual sensação de isolamento e alienação do que outro fator isolado. A
frequente renovação obtida através da conexão fraternal é um alimento
básico para o nosso bem-estar espiritual e físico.
Transferência e totalidade interior
A passagem para o estágio final da análise parece exigir o pleno e mutuo
reconhecimento de que a situação e o relacionamento têm uma natureza
não-secular e especial. Tanto o analista como o paciente devem ser capazes
de reconhecer sua necessidade, caso ela exista, de prosseguirem com a
relação relativamente desobstruída que têm um com o outro, e a
impossibilidade de fazê-lo. O sacrifício consciente que devem realizar é
semelhante àquele que tanto o genitor como o filho devem fazer quando
este está pronto para deixar o continente do abrigo parental e entrar no
mundo. Numa relação do tipo pai-filho positiva, tão rara hoje em dia, o
filho não tem nenhuma garantia de que venha um dia a se sentir tão
intimamente ligado a outra pessoa quanto o foi com os pais. Não obstante, o
filho deve partir e os pais devem encorajá-lo a ir. É claro que a situação não
é idêntica na análise: mas a pílula que se deve engolir é amarga quando a
pessoa se dá conta de que irá ser extremamente difícil encontrar ou criar
uma situação comparável na vida cotidiana capaz de cultivar essa ligação
entre almas e a transformação das mesmas. Se o paciente for incapaz de
aceitar e apreciar plenamente essa realidade, se sentir que foi traído e
iludido por ela, a ferida, na sua alma, não será curada. E se o analista tiver
uma dificuldade semelhante, sentir-se-á fracassado e profundamente
desiludido com a análise.
Nunca é demais enfatizar a importância de instrumentos criativos viáveis
para a promoção da ligação entre almas. Esses instrumentos são as formas
sociais e as estruturas básicas de uma sociedade. Eles influenciam e
determinam os padrões de vida e o estilo de vida de uma cultura. Existe
atualmente uma grande necessidade de novas formas de casamento,
amizade e comunidade que promovam o desenvolvimento de eros e de
sentimentos de conexão fraternal. Mas se passará provavelmente muito
tempo até que haja alguma mudança criativa real nas unidades estruturais
básicas da nossa sociedade. O que fazer, entrementes, com a grande
disparidade entre a realidade de viver num mundo doente e fragmentado e a
nossa visão de um modo melhor de se viver? O que deve fazer o paciente
depois de completar a análise e recuperar a ligação com a visão criativa
inerente à sua alma, depois de ter vivenciado a realidade concreta de uma
conexão aberta e prolongada com uma outra pessoa?
O intercâmbio de substância anímica que ocorre quando duas almas se
encontram e se tocam é essencial à vida e à saúde do corpo e do espírito. A
totalidade interior logo se torna fria, rígida e letal se a alma não for
continuamente reumanizada e renovada através da conexão humana.
Contudo, é justamente por serem tão raras e difíceis, na nossa cultura, as
conexões entre almas que a cura interior da cisão mente/corpo e da
totalidade interior é tão importante. Esse é outro paradoxo que não podemos
evitar.
A necessidade de manter a própria alma cuidadosamente resguardada e
protegida desaparece quando a pessoa não depende mais da conexão com
outrem para sentir-se completa. Não há mais o temor de vivenciar e
expressar os próprios sentimentos, as próprias reações diante de alguém,
simplesmente porque a integridade e a totalidade do ser não dependem de
um relacionamento em particular. Isso aumenta a possibilidade de vivenciar
conexões humanas intimas e diminui as exigências e expectativas que todos
somos especialistas em alimentar com relação àqueles que nos são
importantes. Além disso, a alma, revelada, geralmente evoca a emoção do
amor, especialmente quando nada exige do outro. Dessa forma a totalidade
interior abre a porta para muitas possibilidades de conexão entre almas, a
despeito da ausência, na nossa cultura, de instrumentos propícios à
promoção do eros.
Existe, no entanto, outra dificuldade que ameaça sem cessar a ligação com a
criança interior e a totalidade: a visão de um mundo novo e melhor.
Independentemente das inúmeras formas que essa visão possa adquirir, ela
tem sua origem no Arquétipo da União, expresso em imagens como o
Casamento Sagrado do Casal Real (o hierosgamos, a Quaternidade, a
Mandala). Uma conexão com este arquétipo, e a crença de que ele será com
o tempo realizado e satisfeito, confere direção, sentido e equilíbrio à vida.
A compreensão e a satisfação podem ocorrer em muitos níveis: no nível
interno, como harmonia e união interiores; no externo, como união e
abertura para o outro, a comunidade, o mundo e o cosmo. As imagens de
um mundo ideal, por meio dos quais o arquétipo se expressa, têm
determinadas características em comum: a saber, um mundo em que a paz, a
harmonia e o amor são a regra; uma comunidade fraternal em que cada
pessoa vive com orgulho e silenciosa dignidade, protegida da invasão de
forças alienígenas; uma comunidade regida pelo princípio de Eros, em que
os instintos agressivos e o princípio do poder são forças criativas em ação
para promover a verdade, a beleza e os valores estéticos. Esses elementos
são os fundamentos comuns em que se baseiam todas as visões celestiais do
Paraíso, da Nova Jerusalém. A análise deve ser capaz de resgatar a fé do
indivíduo nessas visões enquanto realidade psíquica, como o fundamento
imaginal essencial ao desenvolvimento da criança interior e da alma, ou
então fracassará em sua promessa de guiar a pessoa ao longo do caminho do
autoconhecimento e da busca da sua totalidade.
Parte 6
JAMES HILLMAN
Eis uma breve e fascinante consideração dos enriquecedores efeitos da
“consciência das histórias” na vida interior das crianças. Segundo o
psicólogo arquetípico James Hillman, “a primeira tarefa é re-historiar o
adulto - o professor, os pais e os avós - para restaurar então a imaginação
no seu lugar de primazia na consciência em cada um de nós,
independentemente da idade que tenha”. As ideias de Hillman estão sempre
acima da maioria das observações acadêmicas da psicologia. Ele nos
exorta a alimentar a imaginação infantil desde cedo, de modo a manter
uma longa e saudável vida interior.
Este capítulo pertence a uma coletânea de ensaios do autor intitulada
Loose Ends. Foi originalmente publicado em Children’s Literature: The
Great Excluded, vol. III.
Do meu ponto de vista como praticante da psicologia profunda, considero
que aqueles que têm uma ligação com as histórias estão em melhor forma
do que aqueles a quem as histórias precisam ser apresentadas, podendo-se
fazer um melhor prognóstico. Esta é uma afirmação bastante ampla e
gostaria de reparti-la nos seus vários aspectos. Mas não quero reduzir sua
asserção mais evidente qual seja: a de que possuir a “consciência das
histórias” é, em si, psicologicamente terapêutico. É bom para a alma.
Ter desfrutado histórias de qualquer tipo durante a infância - e aqui incluo
as histórias orais, sejam contadas ou lidas (pois a leitura tem um aspecto
oral, mesmo que a pessoa leia para si mesma), mais do que vê-las numa tela
- coloca a pessoa diante do reconhecimento básico da história em si,
familiariza-a com essa realidade legítima. É algo dado com vida, com fala e
comunicação, e não uma coisa que mais tarde vem com o aprendizado e a
literatura. Vir cedo, com vida, já é uma perspectiva na vida. A pessoa
integra a vida como uma história porque tem histórias no fundo da mente
(inconsciente), como continentes para organizar acontecimentos na forma
de experiências significativas. As histórias são meios para a pessoa
encontrar a si mesma em eventos que, de outra maneira, talvez não fizessem
nenhum sentido psicológico. (Explicações econômicas, científicas e
históricas são tipos de “histórias” que costumam não dar à alma a espécie
de sentido imaginativo que ela busca para entender sua vida psicológica.)
Se a pessoa, na infância, cresceu desfrutando histórias, ela em geral terá
uma relação melhor com o material patologizado das imagens obscenas,
grotescas ou cruéis que aparecem espontaneamente nos sonhos e fantasias.
Os que defendem a teoria racionalista e associacionista da mente, que
colocam a razão contra a imaginação e num nível superior, argumentam
que, se não tivéssemos introduzido contos tão sombrios nos primeiros e
mais impressionáveis anos da vida, não teríamos tantas patologias e, em seu
lugar, haveria mais racionalidade nos anos seguintes. A minha experiência
prática demonstra, ao contrário, que quanto mais afinado e experimentado
for o lado imaginativo da personalidade, menos ameaçador será o
irracional, menor será a necessidade de repressão e, portanto, menos
patologia de verdade será praticada nos acontecimentos concretos da vida
cotidiana. Em outras palavras, através das histórias a qualidade simbólica
das imagens e temas patológicos encontra seu lugar, de tal sorte que essas
imagens e esses temas estão menos propensos a uma interrupção naturalista,
imbuída de literalismo clínico, como sinais de doença. Essas imagens
encontram na história um lugar legítimo. Elas pertencem aos mitos, lendas e
contos de fadas, onde, tal como nos sonhos, todas as espécies de figuras
peculiares e condutas deformadas podem aparecer. Afinal de contas, “A
Maior de Todas as Histórias Já Contadas”, como algumas pessoas gostam
de se referir à Páscoa, está repleta de imagens lúgubres com grandes
detalhes patológicos.
A consciência das histórias propicia um melhor caminho do que o que é
oferecido pela consciência clínica para a pessoa entrar num acordo com o
seu histórico. O histórico também é uma forma de ficção escrita por
milhares de mãos em milhares de clínicas e consultórios, arquivado em
fichários e raramente publicado. Essa forma de ficção chamada ‘“registro
anamnésico” obedece ao gênero do realismo social: acredita em fatos e
eventos e aceita com excessivo literalismo tudo o que as histórias lhe
dizem. Na análise profunda, analista e paciente, juntos, reescrevem o
histórico do caso e fazem dele uma nova história, criando a “ficção” no
trabalho de colaboração da análise. Uma parte da cura e do resgate que
acontecem, talvez sua essência mesma, é essa ficção feita em colaboração,
esse reunir de todos os eventos caóticos e traumáticos da vida numa nova
história. Jung disse que os pacientes precisam de “ficções curativas”, mas
temos dificuldade em atinar com essa perspectiva, a menos que já exista
uma predileção pela consciência das histórias.
A terapia junguiana, pelo menos a que eu pratico, promove uma forma de
consciência segundo a qual a fantasia é uma atividade criativa, que conta
continuamente para a pessoa ora uma história, ora outra, levando-a a entrar
em cada uma delas. Quando examinamos essas fantasias descobrimos que
elas refletem os grandes temas impessoais da humanidade, tal como a
tragédia, o épico, o folclore, a lenda e o mito os retratam. Segundo nosso
modo de ver, a fantasia é uma tentativa da própria psique de remitologizar a
consciência; nós tentamos incentivar essa atividade ao encorajarmos a
familiaridade com os mitos e os relatos folclóricos. A alma se constrói ao
mesmo tempo que a consciência deixa de ser literal e que se recupera sua
conexão com os padrões míticos e metafóricos de pensamento. Em vez de
interpretar as histórias segundo conceitos e explicações racionais,
preferimos considerar as explicações conceituais como elaborações
secundárias de histórias básicas que são continentes e provedoras de
vitalidade. Como disseram Owen Barfield e Norman Brown: “O literalismo
é o inimigo.” E eu acrescentaria: “O literalismo é a doença.” Toda vez que
nos atemos a uma visão literal, a uma crença literal, a uma afirmação literal,
perdemos a perspectiva metafórica imaginativa a nosso próprio respeito e a
respeito do nosso mundo. A história é profilática no sentido de apresentar-
se sempre como “era uma vez”, uma realidade “como se”, um “faz-de-
conta”. É o único modo de relatar, ou contar, que não se postula como real,
factual, revelado, ou seja, literal.
Isto nos remete à questão do conteúdo. Que histórias precisam ser
contadas? Quanto a isso, sou ortodoxo e defendo as velhas e tradicionais
histórias da nossa cultura: os mitos gregos, romanos, celtas e nórdicos; a
Bíblia; as lendas e o folclore. E com o menor teor possível de modernas
técnicas mercadológicas (atualização, editoração, filtragem de passagens,
etc.), ou seja, com a menor interferência possível do racionalismo
contemporâneo, tão sujeito ao próprio estreitamento do campo de
consciência que é justamente o que as histórias buscam expandir. Mesmo
não sendo celtas ou nórdicos, e não tendo ancestrais gregos, essas coleções
de histórias são fundamentais para a nossa cultura ocidental e atuam sobre a
nossa psique quer queiramos, quer não. Podemos considerá-las distorcidas,
em suas predileções pró-arianas, pró-masculinas ou pró-guerreiras, mas
enquanto não compreendermos que esses contos esboçam os motivos
básicos da psique ocidental, permaneceremos na ignorância dos motivos
básicos da nossa dinâmica psicológica. Nossa psicologia do ego ainda
ressoa com o motivo e as motivações do herói, da mesma forma como a
psicologia do que chamamos de “o feminino” reflete ainda hoje os padrões
das deusas e ninfas da mitologia grega. Esses contos temáticos canalizam a
fantasia. Os platônicos, há muito tempo, e Jung, mais recentemente,
apontaram o valor terapêutico dos grandes mitos que oferecem ordem ao
aspecto caótico e fragmentado da fantasia. O corpo principal dos contos
clássicos e bíblicos encaminha a fantasia rumo a padrões psicológicos
organizados e profundamente revitalizantes. Essas histórias apresentam os
modos arquetípicos do viver a vida.
Penso que as crianças precisam ser menos convencidas que os adultos a
respeito da importância das histórias. Ser adulto significa, hoje, ser
adulterado por explicações racionalistas e esquivar-se às pueridades que
encontramos nos contos de fadas. Tenho tentado mostrar em meus trabalhos
de que maneira adultos e crianças acabaram sendo colocados em posições
adversárias: infância tende a significar deslumbramento, imaginação,
espontaneidade criativa; idade adulta, a perda dessas perspectivas.1 Por
isso, a primeira tarefa que julgo importante é re-historiar o adulto - o
professor, os pais e os avós - para restaurar então a imaginação no seu lugar
de primazia no campo da consciência em cada um de nós,
independentemente da idade que tenhamos.
Cheguei a esta conclusão a partir de uma perspectiva psicológica, em parte
porque desejo afastar a história de sua muito estreita associação com a
educação e a literatura, ou seja, com algo que é ensinado e estudado.
Interesso-me pela história como algo que é vivido e através do qual se vive;
considero-a um caminho pelo qual a alma se encontra na vida.
34. Explorando a infância como adulto
BRUNO BETTELHEIM
Bruno Bettelheim, eminente psicólogo infantil, incentiva os pais a irem
além da empatia com seus descendentes e a reexplorarem “os passos que
demos para sermos quem somos”. Eis aí um sábio conselho sobre a
maneira de alcançar uma maior aproximação das crianças recapturando a
nossa própria criança interior das vivências. Este artigo é um excerto de
seu mais recente livro sobre a criação de filhos, A Good Enough Parent
[Pais Bons o Bastante],
Não devemos parar de explorar
E o fim de toda a nossa exploração
Será chegar ao ponto de partida
E conhecer esse lugar pela primeira vez.
- T. S. Eliot
Entre as mais valiosas mas menos apreciadas experiências que a
paternidade pode proporcionar estão as oportunidades que oferece de
explorar, reviver e resolver nossos próprios problemas de infância no
contexto de nossa relação com nosso filho. Como T. S. Eliot nos lembra, só
mediante a exploração e reexploração dos passos que demos para sermos
quem somos podemos verdadeiramente saber quais foram nossas
experiências de infância e que significado tiveram em nossas vidas. Se
conseguirmos obter esse conhecimento, o impacto dessas ocorrências em
nossa personalidade será modificado. Nossa atitude com relação à nossa
experiência mudará, assim como a nossa atitude quanto a experiências
análogas com os nossos filhos. O crescimento do nosso autoconhecimento
deve, inevitavelmente, resultar numa compreensão melhor dos nossos
filhos, sobretudo quando as novas descobertas decorrem de experiências
que envolvem estes mesmos filhos.
Infelizmente, quase todas as nossas primeiras experiências estão perdidas
para a memória consciente, porque aconteceram cedo demais para deixar
mais do que vagos traços em nossa mente. Não podemos tornar a
experimentá-las, mas podemos, pelo menos, explorar imaginativamente
alguns de seus aspectos, à medida que observamos como o nosso filho
responde ao seu processo interior, a nós e ao seu mundo.
Por exemplo, se nos damos conta de que o mundo da criança, quando
acordada, consiste em apenas duas experiências que são opostas —
felicidade e bem-estar físico, e infelicidade e dor -, isso pode-nos ajudar
também a compreender a origem e a natureza ambivalente de todas as
emoções fortes. Na medida em que são os pais, normalmente, que tiram a
criança de um estado negativo motivado pela fome ou pelo desconforto das
fraldas sujas, para um estado de satisfação, alimentando-a ou trocando sua
roupa, ela sente seus pais como todo-poderosos e como fonte de toda
felicidade e infelicidade; e também como seres que tudo dão e tudo
frustram. É assim que se constrói a ambivalência no nosso inconsciente,
sobretudo no que diz respeito aos nossos pais. Mais tarde, eles e seus
substitutos, na pessoa dos nossos mais significativos educadores, continuam
a dispensar-nos tanto o prazer como a dor, elogiando-nos, por exemplo, ou
criticando-nos e frustrando-nos. Dessa maneira, os sentimentos
ambivalentes originais, tão profundamente enraizados no nosso
inconsciente, continuam a ser alimentados pelas inúmeras experiências da
nossa vida cotidiana.
Entender essa origem infantil da ambivalência, especialmente no que se
refere aos nossos pais, pode-nos ajudar a compreender melhor os nossos
filhos quando nos confrontamos com suas manifestações de ambivalência
em relação a nós. Quanto mais pudermos aceitar seus sentimentos
ambivalentes para conosco, maiores oportunidades terão eles, à medida que
crescem, de neutralizar e controlar essas ambivalências - e menos
necessidade terão de agir de um modo, num determinado momento, e do
modo oposto, em outro. Aceitando o fato de que os aspectos negativos
dessa ambivalência devem ser manifestados, de vez em quando, reduzimos
em nossos filhos a necessidade de reprimi-los; e quanto menos forem
reprimidos, mais acessíveis se tornarão à investigação racional e à
modificação.
Quando crianças, nós também nos sentimos dilacerados por nossas emoções
ambivalentes. Mas, quando expressávamos seus aspectos negativos, a
desaprovação de nossos pais era em geral tão violenta que éramos
obrigados a reprimir esses sentimentos, que, dessa forma, retinham a
totalidade de sua força em nosso inconsciente. Quando nos confrontamos,
na condição de pais, com sentimentos similares em nossos filhos, a
experiência tende a reativar alguma coisa desse material reprimido.
Podemos admitir que nossos filhos tenham muito menos controle do que
nós, desde que seu comportamento não desperte em nós sentimentos que
desejamos manter reprimidos; mas, quando nossas próprias repressões
tornam a mobilizar-se, já não podemos lidar de modo realista com o
negativismo de nossos filhos.
Que reprimamos os aspectos negativos de nossos sentimentos a respeito de
nossos pais é compreensível; afinal, precisamos deles e não queremos
ofendê-los ou afastá-los, demonstrando-lhes abertamente nossa hostilidade.
É mais difícil entender porque também reprimimos nossa identificação com
aquilo que, para nós, enquanto crianças, parecem ser os aspectos negativos
de nossos pais. Quase todos nós estamos bem conscientes de que nos
aproximamos de muitas das coisas que apreciamos em nossos pais, mas não
estamos conscientes de que também nos identificamos com os aspectos
negativos de sua atitude em relação a nós, internalizando-os. Disso ficamos
sabedores - geralmente para nossa grande surpresa - quando nos ouvimos
repreender nossos filhos exatamente no mesmo tom, até com as mesmas
palavras, que nossos pais usavam conosco. E isso, apesar de termos tido
objeções quanto ao seu comportamento, e de termos pensado que nunca
agiríamos da mesma maneira com nossos filhos.
Por outro lado, quando falamos ternamente com os nossos filhos, não
somos, de forma alguma, compelidos a usar os mesmos termos que os
nossos pais empregavam. Nas nossas expressões de comportamentos
positivos, somos inteiramente nós mesmos, e falamos muito com a nossa
própria voz. A razão disso, mais uma vez, é que, não havendo motivo para
reprimirmos nossa identificação positiva com os nossos pais, ela não ficou
encapsulada no inconsciente, mas permaneceu acessível à modificação à
medida que nós próprios nos desenvolvemos. A identificação negativa, em
contraste, foi reprimida e, assim, permaneceu inalterável.
Com muita frequência, as relações do filho com o pai do mesmo sexo são
mais assediadas pela ambivalência do que suas relações com o pai do sexo
oposto. A razão disso é que, aos nos relacionarmos com o filho de nosso
próprio sexo, tendemos a experimentar novamente alguns dos aspectos mais
difíceis de nossa própria relação com o pai do mesmo sexo. Assim, é mais
provável que uma mãe se surpreenda falando como sua própria mãe, quando
critica sua filha, enquanto um pai se apanhará repetindo, em sua interação
negativa com o filho, aquelas interações semelhantes que aconteceram em
sua infância entre ele e seu pai.
Este é apenas um exemplo de como tendemos a projetar nossos próprios
conflitos não-resolvidos em nossos filhos. Se tirarmos proveito da
oportunidade que essas situações oferecem para reexaminarmos o que nos
faz agir dessa maneira, poderemos ser capazes, enfim, de solucionar
conflitos infantis que não conseguimos resolver antes. Essa abertura aos
nossos próprios sentimentos também facilitará nossa compreensão de que é
exatamente a tremenda importância que temos para os nossos filhos, e o
amor deles por nós, que gera sua hostilidade ocasional. Ficará evidente que,
quando a hostilidade se declara abertamente, aquilo com que nos
confrontamos é apenas o reverso de sua grande afeição por nós. Essa
compreensão alterará nossa atitude de aborrecimento ou coisa pior para uma
atitude de aceitação compreensiva das forças emocionais subjacentes,
embora ainda tenhamos que inibir o comportamento agressivo de nosso
filho. Isso pode até fazer- nos reconhecer que, ao refreá-lo, estamos
reproduzindo a conduta dos nossos pais em situações análogas. Lembrarmo-
nos de como achávamos nossos pais injustos nos ajudará a não reagir
excessivamente ao comportamento de nosso filho. Com essas deliberações,
as coisas devem ficar em seu lugar certo, e o que hoje nos aborrece com
relação ao nosso filho não será alimentado e agravado por sua ligação com
todos os sentimentos hostis que reprimimos no nosso inconsciente.
Sobretudo, na medida em que percebemos que, apesar de todas as
tendências agressivas que tínhamos quando crianças, crescemos e nos
tornamos adultos não-violentos, respeitadores da lei, é menos provável que
sejamos severos demais com relação ao comportamento agressivo do nosso
filho devido ao medo de que se torne incontrolável quando ele for adulto.
A repressão do lado negativo dos sentimentos ambivalentes de uma criança
para com seus pais, se feita com excessivo rigor, pode ter como resultado a
interferência na expressão dos sentimentos positivos, que são apenas o
outro lado dessa ambivalência. Conheci muitas crianças que só puderam
estabelecer ligações com seus pais depois de deixarem de sentir-se
compelidas a reprimir todos os seu sentimentos negativos em relação a eles.
Evidentemente, se somos capazes de reconhecer, através da introspecção,
que os nossos sentimentos para com o nosso filho tampouco são
completamente livres de ambivalência, já não precisamos reprimir
quaisquer sentimentos negativos que brotem dentro de nós de vez em
quando. A pressuposição de que o nosso filho, por causa de sua imaturidade
e falta de controle, tem ocasionalmente sentimentos negativos em relação a
nós, enquanto nós estamos inteiramente livres desses sentimentos para com
ele, pode trazer sérios problemas para o relacionamento.
Compreendendo os pesadelos
O que foi dito a respeito das origens dos nossos sentimentos ambivalentes
para com os nossos pais vale, mutatis mutantis, para todo o período da
infância. As nossas primeiras experiências, e as do nosso filho, são em sua
maior parte inconscientes e, portanto, não estão disponíveis de forma direta
à nossa memória, mas estágios posteriores de seu desenvolvimento repetem
algumas de nossas experiências que não foram necessariamente
inconscientes ou reprimidas por nós, ou que, se o foram, não o foram tão
profundamente. Essas lembranças podem ser invocadas com mais
facilidade, embora ainda seja possível que haja a necessidade de um esforço
considerável.
Poucos de nós conseguimos lembrar-nos, com todos os detalhes, dos
pesadelos com que tanto sofremos, como todas as crianças; mesmo aquelas
que conseguem lembrar-se de alguma coisa do conteúdo de seus pesadelos,
e de como eles eram perturbadores, têm pouca noção de suas causas, além
do fato óbvio de que a criança pequena se sente irremediavelmente ansiosa
a respeito de muitas coisas incompreensíveis para ela. Não são muitas as
pessoas que percebem que uma das grandes fontes de pesadelos da criança
pequena é o seu superego em desenvolvimento, que tenta puni-la por suas
“inaceitáveis”, senão “pecaminosas”, tendências. Entre outras, estas podem
ser necessidades sexuais, ou o desejo de se rebelar contra a autoridade, ou
de se ver livre de um pai ou irmão. Como precursor, como um estágio
anterior de uma consciência mais plenamente integrada, o pesadelo
desempenha um papel importante no desenvolvimento da personalidade de
todos nós; teve esse papel no nosso desenvolvimento, como o tem agora no
de nosso filho.
Perceber isso nos ajudará a tratar os pesadelos de nosso filho com maior
cuidado e com o respeito que uma consciência em desenvolvimento merece.
Quanto mais compreendemos nossos pesadelos (dos quais não estamos
inteiramente livres, mesmo na vida adulta), mais bem equipados estaremos
para ajudar nossos filhos com os seus. O fato de termos esquecido tanta
coisa a respeito deles sugere que reprimimos os desejos e medos infantis
que se manifestavam nesses sonhos obsedantes. Subjacente a essa alienação
de algumas das nossas vivências infantis está o desejo de não saber do que
se tratava, talvez até algum vago reconhecimento de que o terror que
sentimos então deixou em nós alguns resíduos dos quais não conseguimos
livrar-nos inteiramente. Serve de exemplo a ansiedade irrealística de que
muitas pessoas ainda sofrem, por exemplo, quando confrontadas com
animais inofensivos, como cobras de jardim. Seu medo está frequentemente
enraizado nos pesadelos infantis em que cobras ameaçavam devorá-las.
Assim, podemos utilizar os pesadelos dos nossos filhos como uma
oportunidade de explorar e reexplorar - como sugeriu T. S. Eliot - o que
pode ter-se escondido por trás dos nossos, e quaisquer resquícios disso que
ainda possamos carregar conosco. Portanto, devemos realmente, pela
primeira vez, conhecer de verdade nossos pesadelos e seu significado em
nossa vida. Na medida em que consigamos realizá-lo, isso será uma dádiva
para nós e para os nossos filhos, já que então seremos capazes,
compreendendo-nos, de ajudá-los com seus pesadelos com uma simpatia
pessoal tanto por seu sofrimento imediato quanto pelo significado dessas
experiências na formação de sua personalidade, uma profundidade de
empatia que, de outro modo, poderia não estar ao alcance de nenhum de
nós.
Ao contrário dos nossos pesadelos, de que temos apenas vagas recordações,
nossas ansiedades com relação à entrada na escola permanecem com a
maioria de nós; na verdade, algumas pessoas passam a vida demonstrando
para elas mesmas, mais do que para os outros, que seus temores infantis de
fracasso acadêmico e social eram irreais. Como essas preocupações
geralmente fazem parte das nossas lembranças conscientes, ainda que,
frequentemente, apenas de forma fragmentária, temos uma compaixão
considerável pelas ansiedades do nosso filho quando de sua primeira ida à
escola. Infelizmente, alguns pais parecem ter esgotado a compaixão quando
uma criança mais velha desenvolve uma fobia à escola por motivos
análogos. É aqui que uma compreensão baseada nas próprias vivências de
cada um poderia ser de especial utilidade.
Essas situações são semelhantes a muitas outras que podem ocorrer no
convívio com os nossos filhos; esforços no sentido de compreender o papel
desempenhado por eventos análogos no nosso desenvolvimento sempre
trazem mudanças benéficas, na medida em que fornecem uma nova clareza
sobre nós mesmos. Ganhamos uma compreensão mais profunda do que
certas experiências significaram em nossa vida e na nossa relação com os
nossos pais, assim como do modo pelo qual essas vivências modelam agora
nossa atitude em relação àquilo que o nosso filho sente e manifesta quando
ocorrem coisas semelhantes. Essa compreensão nos permite sentir empatia
com o que quer que mobilize nosso filho, e isso quase sempre dá à nossa
relação com ele maior profundidade e sentido, tornando-a uma experiência
mais agradável para ambos. Portanto, no que se refere a uma experiência
em comum, não apenas influenciamos as atitudes de nosso filho como
também mudamos as nossas, porque obtemos uma compreensão melhor do
que significaram eventos semelhantes para nós enquanto crianças.
As crianças são muito sensíveis às razões que seus pais têm para fazer
alguma coisa com elas ou para elas. Será que os pais acham que devem
fazer isso, ou gostam disso de verdade? Será que mamãe está lendo uma
história para mim porque quer que eu me acalme? Ou será porque ela acha
que é sua obrigação? Talvez ela acredite que eu vá gostar dessa história em
especial, ou de que ela leia para mim, ou de ambas as coisas... É claro que
se trata de uma experiência mais gratificante para um filho, se ele percebe
em sua mãe o desejo de lhe dar prazer.
A vivência da criança para quem se lê é radicalmente diversa da do pai ou
da mãe, embora estejam empenhados juntos em um única atividade. No
entanto, quando os próprios pais reagem à história, ambos podem realmente
partilhar a experiência. Talvez o pai, ou a mãe, seja levado a recordar
importantes lembranças de sua própria infância. Disseram-me que algumas
pessoas que leram o meu livro sobre contos de fadas — The Uses of
Enchantment — subitamente compreenderam por que uma determinada
história tinha sido especialmente significativa para elas, em sua infância.
Naquela ocasião, tinha-as cativado de alguma forma, tinha despertado nelas
ansiedade ou prazer, ou ambos; só agora, porém, é que percebiam a razão
disso, com que experiências ou problemas pessoais o conto estivera
relacionado, de forma a tornar-se singularmente significativo para elas.
Quando crianças, essas pessoas queriam que o pai, ou a mãe, lesse a
história repetidas vezes por um motivo que ignoravam na ocasião mas que
compreendem agora, ou seja, porque esperavam, subconscientemente, que
ela transmitisse um importante recado para o leitor. Para uma tinha sido A
Família Robinson; tecendo fantasias em torno dessa história, encontrava
consolo para sua situação familiar infeliz. O mesmo livro também tinha
sido significativo para outra menina, que sofria com as repetidas e
prolongadas ausências de seus pais, quando ficava entregue aos cuidados de
parentes que cuidavam muito bem dela fisicamente, mas que a menina
detestava, principalmente porque tomavam o lugar de seus pais. Só depois
de adulta se deu conta de que tinha apoquentado os pais e os parentes para
lerem A Família Robinson em voz alta para ela porque tinha esperanças de
que recebessem o recado de que as crianças precisam da presença dos pais.
Subconscientemente, esperava que, a partir da história, eles
compreendessem o quanto ela queria que seus pais ou parassem de viajar ou
a levassem com eles.
Assim que essa mulher percebeu que o desejo de uma criança de ouvir uma
certa história repetidas vezes pode derivar de sua esperança de que seu pai
ou mãe entendam o recado que ela presume que a história transmite, ler
histórias para o seu próprio filho tornou-se uma experiência muito mais
gratificante para ela. Mais que isso, começou a prestar uma atenção bem
diferente às histórias que seu filho pedia, pois se lembrava com especial
pungência de como ficava gravemente desapontada pelo fato de nem seus
pais, nem seus parentes terem entendido a mensagem que ela procurava
mandar-lhes através de A Família Robinson.
Ler histórias para seu filho tinha agora adquirido outros níveis de
significado para ela. Antes ela lia para ele porque se lembrava de como essa
atividade fora importante para ela e queria dar-lhe prazer. Agora lhe ocorria
que, ao pedir determinado conto, seu filho poderia estar tentando transmitir-
lhe algo, ou seja, um recado sobre algum assunto de grande importância
para ele. Ela apreciava essa demonstração de confiança nela, seu desejo de
dizer-lhe - não importa por meio de que circunlóquio - alguma coisa de
sentido pessoal.
Sua compreensão da importância que A Família Robinson teve um dia para
ela deu a essa mãe uma nova perspectiva de sua própria infância. O que
anteriormente recordara e vira apenas como uma fuga para fantasias
realizadoras de desejo, agora reconhecia como uma ação inteligente,
dirigida para uma meta e com um propósito específico: assegurar alívio
numa situação aflitiva, a longa e frequente ausência de seus pais. Antes,
lembrava-se de si mesma como incapaz de melhorar as condições que a
oprimiam, mas agora compreendia que, na verdade, tinha feito o melhor que
podia para persuadir a família a mudar sua maneira de agir. A partir daí,
quando lia histórias para seu filho, sempre se lembrava de que foi através
dessa experiência que adquiriu uma imagem mais positiva de si mesma
como criança e, com ela, de si mesma como pessoa.
O que foi dito aqui com relação à leitura de histórias vale também, com as
devidas variações, para muitos outros aspectos da criação de filhos.
Compreender nossas vivências de infância como adultos pode proporcionar
novas e importantes introvisões. Quando isso acontece, tanto o pai como o
filho têm uma significativa vivência através do que estão fazendo juntos;
embora eles estejam em níveis distintos, as diferenças são de menor
importância do que o fato de que cada um está grato ao outro por ter tido
uma mais aguda introvisão e por ter proporcionado o ambiente necessário a
esse desenvolvimento. O elemento de igualdade numa vivência partilhada
como essa é muito importante para a criança, porque cada participante se
torna provedor e beneficiário ao mesmo tempo.
Muitas experiências de infância ficaram, por necessidade, profundamente
enterradas no inconsciente durante o processo de desenvolvimento de nossa
personalidade adulta. Essa separação ou distanciamento da própria infância
já não é necessária quando a personalidade adulta está formada com
plenitude e segurança, mas, a essa altura, a distância já se tornou, para a
maioria das pessoas, uma parte dessa mesma personalidade. A separação de
nossa infância é temporariamente necessária, mas, se for mantida
permanentemente, priva-nos de experiências íntimas que, quando são
restauradas em nós, podem-nos manter jovens de espírito e também
permitir-nos uma proximidade maior com os nossos filhos.
35. A relevância histórica da infância humana
ERIK H. ERIKSON
Acompanhando a evolução do tema sobre o aprimoramento da criação dos
filhos, o psicanalista freudiano Erik H. Erikson nos mostra o contexto do
qual surgiu o resgate psicológico da criança, a saber, o trabalho de
Sigmund Freud. Sendo um homem de intelecto indômito e coragem
inabalável, Freud realmente ressuscitou a infância do status de submersão
em que se encontrava. Diz Erikson: “Ele inventou um método específico
para a detecção daquilo que universalmente deteriora o gênio da criança
que há em cada ser humano.”
Este capítulo é um tributo à contribuição pioneira de Freud, à sua
percepção do potencial criativo da criança, tanto a interior como a
exterior. Este é um excerto da coletânea do autor intitulada Insight and
Responsibility, e também uma parte da palestra proferida no dia 6 de maio
de 1956 na Universidade de Frankfurt, em comemoração ao 100º
aniversário do nascimento de Freud.
O verdadeiro valor da psicanálise está em aprimorar a criação dos filhos.
- Sigmund Freud
A mudança em termos de autopercepção (desencadeada pelas descobertas
de Freud) não pode permanecer confinada a parcerias profissionais como a
que existe entre o observador e o observado, entre o médico e seu paciente.
Ela implica uma orientação ética fundamentalmente nova para a relação do
homem adulto com a infância - com a sua infância, que está atrás e dentro
dele; com o seu filho, que está adiante dele; e, ainda, com os filhos de todo
e qualquer homem que estejam à sua volta.
Os campos de estudo que lidam com as dimensões históricas do homem
estão muito distantes entre si, no que tange ao modo como consideram a
infância. As mentes acadêmicas, cujas perspectivas de longo alcance
conseguem ignorar as urgências cotidianas das artes educativa e curativa,
prosseguem em seu jovial mister de redigir histórias completas do mundo
sem vestígio algum de mulheres e crianças, relatos antropológicos inteiros
sem qualquer referência aos variados estilos de infância. Ao documentarem
as relações causais passíveis de ser discernidas nas realidades políticas e
econômicas, parecem menosprezar acidentes históricos devidos à “natureza
humana”, tais como os medos e fúrias nos líderes e nas massas, como
indiscutíveis resíduos de emoções infantis. É verdade que os eruditos
podem ter sido justificadamente repelidos pelas primeiras e entusiásticas
intromissões dos médicos da mente em suas disciplinas ancestrais. Mas sua
recusa em considerar a relevância histórica da infância humana só pode ser
devida àquela aversão e àquela repressão mais profundas e universais que o
próprio Freud anteviu. Por outro lado, deve-se admitir que, na literatura
clínica (e na que se tornou clínica em seu conjunto), a aversão cedeu lugar a
um interesse, ditado pela moda, pelos aspectos mais sórdidos da infância,
como se estes fossem os determinantes últimos do destino humano.
Nenhuma destas tendências pode deter o surgimento de uma nova verdade,
a saber, que a vida coletiva da humanidade, com toda a sua legitimidade
histórica, é alimentada pelas energias e imagens de sucessivas gerações, e
que cada geração contribui para o destino humano com um inescapável
conflito entre suas metas éticas e racionais e suas fixações infantis. Este
conflito acaba fazendo com que o homem execute tantas coisas espantosas
— e isso pode ser sua ruína. É uma condição da humanidade do homem e a
causa primeira de sua interminável desumanidade. Pois sempre e onde quer
que o homem abandone sua postura ética, ele só o faz às custas de
regressões poderosas que põem em risco as próprias defesas de sua
natureza.
Freud revelou essa tendência regressiva ao dissecar suas manifestações
patológicas nas pessoas. Mas também assinalou aquilo que fica tão
amplamente e regularmente perdido com os ambivalentes ganhos da
civilização: ele falava da “inteligência radiante da criança” - aquele ímpeto
inocente, aquela coragem natural, aquela fé incondicional da infância, que
acaba submergindo por causa das ambições desmesuradas, dos
ensinamentos à base do medo, das informações limitadas e limitantes.
Sempre de novo nos vemos dizendo que o gênio preservou em si a clareza
de visão da criança. Mas não justificaríamos nós com excessiva rapidez as
regressões das massas ao apontar o ocasional aparecimento dos líderes
geniais? Não obstante, sabemos (e temos um mórbido anseio em sabê-lo)
como é torturado o gênio que com uma mão é impelido a destruir aquilo
que criou com a outra.
Em Freud, um gênio desenvolveu um novo instrumento de observação à sua
infância, à infância de todos nós. Ele inventou um método específico para a
detecção daquilo que universalmente deteriora o gênio da criança que há em
cada ser humano. Ao ensinar-nos como reconhecer o mal daimônico nas
crianças, ele nos instou a não sufocar o que é criativamente bom. Desde
então, a natureza do crescimento tem sido estudada por observadores
engenhosos do mundo todo: nunca antes a humanidade conheceu tanto
acerca de seu passado - filogenético e ontogenético. Nesse sentido,
podemos considerar Freud um pioneiro da autocura, dessa tendência
equilibradora inerente à conscientização do ser humano. Pois, agora que as
invenções tecnológicas se aprestam a conquistar a lua, as gerações
vindouras talvez se vejam diante da necessidade de terem maior clareza a
respeito de sua impetuosidade e maior consciência das leis da
individualidade; elas podem muito bem ter a necessidade de valorizar e
preservar a puerilidade mais genuína, a fim de evitar irrecuperáveis
criancices cósmicas.
36. O que sai da boca dos bebês
THEODORE REIK
Este texto anedótico é um simpático reconhecimento da criança interior,
produzido pelo eminente psicanalista Theodore Reik, um dos mais
brilhantes discípulos de Freud. Ele diz que o psicanalista deve ir em busca
da criança que há no homem, em si mesmo e nos outros. “Seria um sério
engano da parte do analista”, diz ele, “subestimar o poder das ideias e dos
ideais da criança que continua existindo no adulto.” Todo aquele que tem
ou virá a ter filhos pode beneficiar-se da sabedoria das palavras deste
afável estudioso. Este ensaio é um capítulo de Listening With the Third Ear,
um fascinante relato da experiência interna do psicanalista, publicado pela
primeira vez em 1948.
Nem tudo que o analista se esforça por desvendar é material reprimido. A
área do inconsciente alcança muito além da esfera que lhe é atribuída por
acadêmicos da psicanálise. Inclui material deslocado, distorcido e
repudiado. Há outros eventos e emoções ainda que nunca foram conscientes
porque acontecem quando a pessoa era jovem demais para apreender-lhes o
significado. Estes pertencem ao período pré-histórico da personalidade
individual.
Nós, adultos, estamos a uma tal distância das maneiras e formas peculiares
da nossa infância que estas se tornaram estranhas para nós. Todos têm
vivências desse tipo. Nossos pais ou amigos idosos de nossa família
disseram-nos que, quando éramos crianças, falamos isto ou fizemos aquela
coisa estranha. Na maioria dos casos, não nos lembramos de nossas próprias
palavras e atos. E, mesmo quando nos recordamos, não conseguimos mais
descobrir por que agimos ou falamos daquele jeito. Não podemos pôr em
dúvida a veracidade da história, mas não nos reconhecemos na situação que
nos é mostrada. Temos que admitir que fomos aquela menininha ou aquele
garotinho, mas não conseguimos reconhecer qualquer identidade
psicológica com o nosso passado. Este desapareceu como a neve do ano
passado.
Recordações desta natureza brotam repetidas vezes na psicanálise. São
conscientes no sentido de que o seu conteúdo pode ser averiguado, mas seu
significado está perdido. Esse significado não foi reprimido. Tornou-se
estranho à pessoa porque o adulto não tem condições de recobrar os
processos de pensamento peculiares à infância. A perda de um antigo modo
de sentir ou pensar pode ser já observada nas próprias crianças. Uma
garotinha de oito anos não consegue acreditar que, quando estava com três
anos apenas, quisera pegar uma lesma e ficara apreensiva com a ideia de
que aquele bicho poderia sair correndo. Se, depois de alguns anos, as
próprias crianças não conseguem mais reconhecer-se, como esperar que
homens e mulheres aceitem sua identidade psicológica com o bebê que
foram um dia? As atividades, as alegrias, os sofrimentos, os pequenos jogos
que as crianças às vezes recordam representam sua verdadeira natureza,
mas o self do passado parece desconhecido. Elas se espantam consigo
mesmas e não conseguem imaginar o que as tornava tão esquisitas ou as
levava a dizer coisas tão engraçadas. O psicanalista frequentemente tem
dificuldade em lidar com lembranças desse tipo, uma vez que também em
seu caso nenhum esforço consciente pode ajudá-lo a recuperar sua
perspectiva infantil diante do mundo. Ele teria que estudar as crianças por
muito tempo e com uma habilidade psicológica especial para compreender
o que seus pacientes lhe dizem a respeito de alguns episódios de sua
infância. Não o anseio pelo paraíso perdido, mas o desejo de compreensão
psicológica lhe recorda a canção de Brahms que diz: “Oh, se eu apenas
soubesse o caminho de volta, o querido caminho de volta até os dias de
minha infância...”
Às vezes nos damos conta do quanto estamos distantes da maneira de sentir
e pensar comum à criança, quando ouvimos as coisas peculiares que elas
dizem. Não me refiro às “explicações brilhantes”, mas sim às observações e
comentários que chamamos de ingênuos e que nos fazem rir porque são tão
encantadores. Uma vez ouvi uma menininha na praia queixar-se de seu
amiguinho: “Mamãe, Bobby não devia pegar tanta água do mar. O mar vai
ficar vazio.” Outro dia vi uma charge mostrando um pintor sentado diante
de sua tela, no campo. Estava mergulhado em seu trabalho, e não prestava
atenção à menininha caipira que o observava com muita atenção. De
repente a criança quebra o silêncio, dizendo: “Eu tive sarampo....” Os dois
momentos, o da garotinha preocupada com o amiguinho que vai esgotar o
mar, e o da outra criança, que quer parecer importante e inicia uma
conversa com a interessante novidade de que já teve sarampo, representam
todo um grupo de pronunciamentos que mostram como é diferente o mundo
que se reflete nessas cabecinhas.
Às vezes, no meio da psicanálise, ocorrem lembranças que nos deixam
estupefatos porque não conseguimos entender de imediato o que significam,
nem o que significaram para a criança que, vinte ou trinta anos depois, está
como paciente em nosso consultório. Outras vezes é fácil e imediato captar-
lhes o sentido; não temos dificuldade em nos colocar no mundo emocional
da criança porque percebemos que somos ecos do mesmo sentimento
quando cavamos fundo o suficiente em nossas próprias memórias. Acredito
que todos irão ouvir um eco quando eu disser o que uma certa paciente
lembrou sobre sua infância.
Quando ainda era bem pequena, esgueirou-se de sua cama e foi até a sala de
jantar, no escuro, porque queria saber como a mobília, a mesa, as cadeiras e
os abajures se comportavam quando estavam sozinhos, sem testemunhas.
Estava convencida de que a sala e a mobília iriam comportar-se de outro
modo, quando pensassem que não estavam sendo observadas. As
concepções animistas das crianças a respeito do mundo são igualmente
ilustradas por um outro paciente, que se lembrou de ter um dia perguntado
ao irmão mais velho se os postes do telégrafo conversavam com os postes
de iluminação. Compreendemos imediatamente que o zunido na fiação era o
motivo da indagação.
Todo psicanalista já se viu em apuros para lidar com memórias de infância,
quando os próprios pacientes não compreendem o sentido de suas
recordações. Por exemplo, houve uma mulher que se lembrava de, quando
pequenina, ter um dia começado a chorar porque seu pai a conduziu ao
elevador de um hotel no qual a família, interrompendo uma viagem, iria
passar a noite. Sua lembrança lhe diz que o elevador era mais espaçoso do
que qualquer outro que ela tenha visto desde então e que havia bancos
estofados em três lados. Ela também está segura de que essa tinha sido a
primeira vez que entrara num elevador. Ela sem dúvida recorda ter ficado
desesperada ao entrar nele, e que o pai tentava em vão consolá-la e conter-
lhe as lágrimas. Embora essa recordação se tenha repetido várias vezes em
sua análise, nós não conseguíamos encontrar a razão para sua bizarra
conduta naquele momento. Ela negava ter sentido medo quando o elevador
começou a subir, porque já estava aos prantos antes disso acontecer. Nós - a
paciente e eu - ficamos sem entender até que um dia, de repente, ocorreu-
lhe que ela deve ter pensado que o espaçoso elevador era uma sala e que
ela, em sua primeira visita a um hotel, talvez tivesse que dormir com o pai
nessa sala. Ela havia pensado que os bancos estofados eram sofás-camas.
Claro que essa recordação foi significativa para a compreensão do
relacionamento entre a paciente e seu pai.
Em outros casos, o significado especial do comportamento de uma criança,
ou de suas palavras, não é captado com tanta facilidade. Existem momentos
em que não há conhecimentos, investimentos de tempo e de energia
intelectual consciente, ou reflexões concentradas, que consigam penetrar
nesses perdidos meandros dos processos emocionais da criança. Não há
outro caminho para se atravessar essa área escondida além do da
identificação inconsciente com o paciente como criança.
Um homem lembrava-se de que, quando menino, tinha se comportado, certa
vez, de uma forma estranha com sua mãe, enquanto estavam num ônibus.
Uma mulher tinha descido do ônibus enquanto este ainda estava em
movimento, caíra na calçada, sem, porém, machucar-se muito. O menino
tinha protestado, em desespero, alegando não ter empurrado a mulher. Na
realidade, ele estivera de pé a uma certa distância daquela passageira, de
modo que teria sido impossível para ele tentar qualquer coisa do tipo. Não
havia dúvida em sua memória de que o incidente acontecera assim mesmo.
A interpretação analítica desta recordação de infância começou pressupondo
que, de alguma maneira, suas emoções devem ter sido apropriadas. Depois
ficamos sabendo que, naquela ocasião, ele se sentia muito hostil e agressivo
com relação à mãe, que estava ao seu lado no ônibus. Diante de um sério
conflito conjugal entre seus pais, ele se aliara ao pai. Pareceu-nos provável
que sua hostilidade em relação à mãe tivesse levado a desejos agressivos,
que reapareceram quando se deu o incidente do ônibus. Seus pensamentos
pela mãe foram deslocados para a desconhecida. A mulher que machucara
fora inconscientemente concebida como substituta da mãe. Quando ela se
feriu, ele pode ter-se sentido culpado, como se tivesse realmente sido o
responsável, porque havia nutrido desejos maldosos contra a mãe. Era como
se seus desejos se tivessem tornado realidade, no acidente sofrido pela outra
mulher. Existem muitos casos que mostram pessoas crescidas comportando-
se de maneira semelhante quando um crime que desejavam ver acontecer é
realmente cometido por terceiros.
Estou escolhendo um caso relativamente simples de minha experiência
como psicanalista para demonstrar que apenas o retorno a um mundo
ideativo como o da criança pode solucionar o enigma de uma recordação
que para a própria pessoa adulta se tornou ininteligível.
Um paciente inglês lembrou-se de que, quando menino, tinha dito alguma
coisa para sua irmã (dois anos mais velha que ele) que não fazia sentido
para ele até aquele dia. Ele se lembrava da situação de maneira minuciosa.
Estavam ambos perto de uma janela, em sua casa de campo, e começava a
anoitecer. Olhavam as vacas regressando para o curral, atravessando a rua.
O menininho se voltou para a irmã e perguntou-lhe: “Você consegue
imaginar o tio Harry como uma vaca?” Bom, isso parece uma tolice e tanto
e o paciente tendia a deixar de lado a sentença que lhe ocorrera à
lembrança, pensando que era apenas uma das ideias estranhas que tantas
vezes ocorrem às crianças. Ele se lembrava de que a irmã rolara pelo chão
de tanto rir e que mais tarde brincava com ele, citando aquela sua pergunta.
Tentei convencê-lo de que essa sentença deveria ter feito algum sentido
então. Suas associações parecem levá-lo até um passo bastante remoto,
resgatando recordações de seu tio Harry e da tia Mabel, sua esposa,
incluindo outros parentes, e do contraste entre a vida no campo e em
Londres. O único fato que parecia ser digno de consideração, nessas
associações, era que, pouco depois, a tia Mabel dera à luz um filho.
Suponho que algo no comentário da criança aludia a esse acontecimento,
talvez à gestação, que o menino tinha notado. Mas eu ainda não conseguia
atinar com o significado daquela sentença: “Você consegue imaginar o tio
Harry como uma vaca?” Nada indicava que o menininho suspeitasse de uma
ausência de masculinidade em seu tio. Pelo contrário, esse tio era
especialmente famoso como paquerador. Não chegamos a uma solução
satisfatória da intrigante recordação que teve naquela sessão. Havia apenas
a vaga ideia de que a sentença poderia ter alguma relação com a gravidez da
tia Mabel.
A elucidação de seu sentido ocorreu-me muito tempo depois, quando o
paciente, em outro momento e contexto, mencionou que as vacas às vezes
se comportavam de modo esquisito na primavera. Saltam umas nas costas
das outras, imitando os touros. De repente, tudo ficou claro. As crianças, o
menino e sua irmã deviam ter falado antes a respeito do que os adultos
fazem em suas relações sexuais, comparando-as ao comportamento sexual
lúdico das vacas. A pergunta “Você consegue imaginar o tio Harry como
uma vaca?” tinha, nessa medida, o seguinte significado: “Você consegue
imaginar o tio Harry comportando-se como uma vaca e saltando sobre as
costas de outra vaca?” Isso, portanto, queria dizer: “Você consegue
imaginar o tio Harry tendo uma relação sexual?” As crianças podem ter,
nessa época, reparado na gravidez da tia e seus pensamentos se voltaram
para as experiências sexuais dos parentes. A pergunta do menino é de
natureza sexual. Agora faz sentido, depois que a traduzimos de sua
linguagem infantil para as expressões que ora são familiares. A risada de
sua irmã, compreendemos agora, não fora causada apenas pela maneira
como a pergunta fora formulada: a menina rira, como um adulto riria,
diante de uma alusão sexual cômica.
Tornou-se claro que essa interpretação de uma lembrança ininteligível de
infância era fundamental para a análise desse paciente. Ele negara ter
qualquer conhecimento dos processos sexuais antes de uma determinada
idade. Embora o adulto não a compreendesse, ali estava a prova perfeita de
que ele conhecia o segredo sexual antes da tal idade. Seus pais adiaram as
informações sexuais; pareciam estar esperando de modo indefinido, “até
que as vacas voltassem para casa". Mas as crianças conheciam o segredo
havia muito tempo e o regresso das vacas só lhes serviu de oportunidade
para reverem o que tinham aprendido. Muitas vezes, são justamente essas
recordações de infância incompreendidas que, ao serem interpretadas pela
psicanálise, oferecem importantes indicações sobre a história de vida e a
formação do caráter dos nossos pacientes.
A criança é o pai do homem. Na realidade, há três pessoas no consultório do
psicanalista: o analista, o paciente, tal como é agora, e a criança que
continua sua existência dentro do paciente. Reconhecemos como as antigas
convicções da infância vivem nos subterrâneos da personalidade, lado a
lado com as opiniões e visões do adulto. Antigos valores, conscientemente
descartados há muito tempo, atuam no escuro e influem na vida do
paciente. Seria um sério equívoco da parte do analista subestimar o poder
das ideias e dos ideais da criança, que continuam existindo no adulto. Estes,
às vezes, irrompem de maneira muito repentina de suas profundezas para a
clara luz da vida consciente. O adulto sente um súbito temor do escuro e
imagina que um quadro se tornou vivo. Está então revivendo a crença
animista da infância, quando todo objeto inanimado tinha vida e alma
próprias. Para nossa imensa admiração, muitas vezes nos damos conta de
que algumas crenças infantis permanecem intactas dentro de nós, não
estando, de modo algum, mortas e enterradas, mas apenas submersas.
Seria um equívoco mostrar indiferença diante desse fenômeno. O
psicanalista deve buscar a criança no homem, em si mesmo e nos outros.
Ele não compreenderá a profundidade das emoções se não tiver consciência
desses vestígios de infância na maturidade. Essas ideias infantis não
precisam ser criancices, por serem pueris. Algumas delas são construídas
em torno de um núcleo de verdades precocemente apreendidas e revelam
uma visão surpreendentemente clara do ambiente social contida no estreito
círculo que constitui o mundo infantil.
Há aproximadamente cem anos, viveu em Viena um ator e satirista
brilhante, chamado John N. Nestroy, cujas peças cheias de humor eram
adoradas pelos vienenses. Numa dessas peças um personagem fala dos
aprendizes de sapateiro, que eram conhecidos como jovens muito espertos e
atirados, precocemente maduros, como os rapazes da parte baixa do East
Side de Nova York. “Gostaria de saber,” diz esse personagem, “o que enfim
acontece com todos vocês, rapazes aprendizes, tão ladinos?” Freud, que
frequentemente citava essa fala, respondeu: “Eles se tornam sapateiros
estúpidos.” Freud disse que, numa certa altura da infância, a repressão
sexual começa a atuar e põe fim à inteligência natural e brilhante da
criança. Penso que sua resposta é unilateral. A criança aprende também a
aceitar a autoridade e a reprimir suas agressões, rebeldia e independência de
pensamento, que lhe são naturais. Não obstante, é verdade que, muitas
vezes, crianças muito brilhantes de repente manifestam, numa certa idade,
uma espécie de enfraquecimento de seus poderes naturais de observação e
julgamento, como se o ajustamento à sociedade as forçasse a sacrificar
essas qualidades pessoais do início de suas vidas.
As ideias das crianças, como dissemos, costumam conter um germe de
verdade apresentada de uma maneira infantil que às vezes parece
engraçada. Tive um paciente a quem os pais explicaram os processos
sexuais quando ainda era bem pequeno. Apesar disso, o menino se manteve
intrigado a respeito da sexualidade masculina, porque tentava imaginá-la
em termos de animais e flores, que era a maneira como os pais lhe tinham
explicado. Ele imaginava que um certo marido batia na porta do quarto da
esposa, certas noites da semana, e dizia: “Mary, a semente está aqui.” Não
há dúvida de que existe uma certa verdade biológica na concepção desse
garotinho. Quando você remove os adereços e chega ao cerne, dá-se conta
de que o mundo é assim como o Joãozinho o enxerga.
Muitas vezes nos recordamos, no nosso trabalho analítico, de que a criança
continua viva dentro do homem e da mulher. A própria vida testemunha
essa sobrevivência. Quando minha filha Miriam era pequenininha e a
levamos ao dentista pela segunda vez, ela engatinhou para baixo de uma
mesa e não houve o que se dissesse que conseguisse amenizar sua
ansiedade. A mãe tentou em vão convencê-la: “Você acha que uma senhora
iria engatinhar de quatro para baixo da escrivaninha do dentista?” Minha
filha respondeu: “Ela bem que gostaria, mas é grande demais.”
37. O pai ferido interior
SAMUEL OSHERSON
Este comovente ensaio, de autoria do psicoterapeuta Samuel Osherson, foi
extraído de seu interessante livro a respeito de questões inacabadas entre
os homens e seus pais, intitulado Finding Our Fathers. Embora se concentre
especificamente nos conflitos interiores do homem, os sentimentos
mencionados ultrapassam a questão do sexo: sentimentos de abandono,
anseios profundos, carências, que tanto homens como mulheres têm
dificuldade em aceitar como parte de si mesmos. “Por não termos tido uma
maior capacidade de cuidar das partes carentes e vulneráveis de nós
mesmos,” escreve Osherson, ‘ ‘trazemo-las sempre conosco, onde quer que
estejamos, formando um resíduo infantil zangado e triste que tantas vezes
molda as nossas relações na vida adulta. ”
Todavia, este é um ensaio específico sobre os homens e a vulnerabilidade
masculina: “O meu trabalho com homens tem-me convencido de que existe
uma vulnerabilidade do sexo masculino nos relacionamentos que pode ser
atribuída às primeiras vivências infantis de perda e separação.” Osherson
sugere que os homens têm uma tarefa que, sem dúvida, corresponde à das
mulheres, e que consiste em abandonar as “identificações distorcidas e
dolorosas” com seus pais. Sua inequívoca mensagem é que devemos curar
e resgatar o pai, dentro de nós, a fim de nos tornarmos acolhedores, tanto
para nossa criança interior como para a exterior. Osherson sugere que isso
não só é possível como necessário paia que nos sintamos fortes na vida.
Este é um texto de liberação, adequado para encerrar este livro, enquanto
mensagem para homens e mulheres.
As atuais situações familiares estão reavivando questões de perda e
separação que os homens não tiveram oportunidade de elaborar durante sua
fase de crescimento. Essas questões dizem respeito à nossa própria
vulnerabilidade e dependência enquanto homens; às incertezas que temos
com respeito à nossa identidade e ao que significa ser homem; às
necessidades de apoio e tranquilização que muitos de nossos pais
encobriram sob a máscara superficial de constelações familiares
tradicionais e que transmitiram — impropriamente — aos filhos. As
exigências normais da vida familiar contemporânea são poderosamente
moldadas pelas vivências iniciais que os homens tiveram com seu pai e sua
mãe e pelas lições aprendidas a partir dessas vivências a respeito do que
significa ser homem.
Muitas vezes os homens reagem ao envolvimento das esposas com o
trabalho ou com os filhos sentindo-se como crianças abandonadas e
famintas da atenção e carinho dos pais. Quando a esposa sai de casa para
trabalhar, eles podem sentir - sem o saberem - algo de vulnerabilidade e
raiva que, quando criança, também sentiam quando queriam, ao mesmo
tempo, segurar a Mamãe e afastar-se dela. O fato de muitos pais saírem
todo dia para o trabalho, deixando-nos sozinhos com nossas mães, aumenta
a importância da mãe e enfraquece o papel do pai como figura de transição,
necessária, para completar o processo normal de separação-individuação em
relação à mãe. Além disso, como raramente observou o pai assumir um
papel secundário em relação ao da mãe, o homem pode não saber qual o
grau de confiança que pode depositar numa esposa que trabalha.
Um dia, um bem-sucedido advogado de 38 anos, com um luxuoso escritório
em Manhattan, estava me contando sobre seu casamento. O tom confiante e
envolvente daquele homem de repente se tornou queixoso: “Sem querer
parecer condescendente, sempre supus que minha esposa teria sua própria
carreira profissional. Só que nunca previ que seria assim.” Este assim
referia-se à mescla de perda, sensação de abandono e necessidades
insatisfeitas de dependência que ele sentia à noite e nos fins de semana,
quando sua esposa dedicava seu tempo e energia à própria carreira e não a
ele.
Esse lamuriento advogado não está só em sua sensação de abandono. Um
famoso professor universitário também falava sobre o lado mais escuro de
um casamento em que ambos eram profissionais de carreira. Sensato e
gentil, ele se sentia evidentemente orgulhoso das realizações da esposa, que
conseguira criar um centro de aconselhamento, agora que os filhos estavam
crescidos. No entanto, deteve-se numa certa altura de nossa conversa para
refletir que “a segurança é uma ilusão, sabe, e eu preciso de que minha
esposa apoie em mim a noção de que posso obter êxito, de que consigo
fazer o trabalho escrito que é necessário toda semana, publicar os artigos na
corrida pelas qualificações. Desde que minha esposa começou a trabalhar
tem tido muito menos tempo para mim, e eu sei que manter a confiança em
mim é uma luta incessante em meu íntimo”.
De maneira semelhante, a chegada dos filhos pode reavivar alguns dos
nossos anseios de sermos cuidados dessa mesma forma paradisíaca, assim
como nosso desesperado desejo de provar que abandonamos esses anseios e
que somos independentes. Tornar-se pai pode também mobilizar um
conflito de identidade no homem que, carente de modelos de papéis em seu
passado, não tem nenhuma segurança quanto à forma como pode ser um pai
presente para seus filhos.
Um executivo contou-me com orgulho o quanto participara do nascimento
de sua filha. Falou, porém, todo encabulado de como se sentira traído pela
esposa, que manteve sua atividade profissional, numa carreira que a
solicitava bastante como advogada, agora que já tinha nascido a primeira
filha do casal. Durante dez anos tinham partilhado a maioria do tempo livre.
Agora que a esposa fazia malabarismo para conciliar a pratica forense e os
cuidados devidos a um bebê de um ano, parecia-lhe como se ela tivesse
tempo para tudo menos para mim”. Estendendo as mãos à sua frente num
tímido gesto de constrangida carência, ele exclamou: “O novo bebê está
indo muito bem, mas e quanto ao velho bebê? Eu!”
Existem inúmeras circunstâncias na vida adulta que nos fazem sentir como
crianças — carentes, indefesos, para mudar as coisas. Ao crescerem, os
homens têm grande dificuldade em conviver com a dependência e a
vulnerabilidade, porque muitas vezes os pais lhes mostraram que esses são
sentimentos inaceitáveis, que, para serem bem- sucedidos como homens,
para conquistarem aprovação de seus pais, deviam realizar-se somente no
plano externo. Nossa vulnerabilidade e dependência tornaram-se envoltas
por uma competente e instrumental pose de adulto, ou pelo enfoque
exclusivo daquilo que nós, homens, sabemos fazer bem: nossa capacidade
de realizar no mundo do trabalho.
No entanto, apesar de nossa segurança no que se refere ao trabalho, esse
campo também é rico em incertezas. Grande parte da incerteza diz respeito
ao grau de comprometimento que é necessário para fazer uma carreira de
sucesso; há uma certa sensação de desconforto na autoimagem promovida
pelo mercado profissional competitivo. Um estupefato funcionário público
de Washington, diretor adjunto de uma poderosa instituição do governo,
disse-me, com total desânimo, depois de uma entrevista repleta de relatos
heroicos de êxitos profissionais: “Uma grande preocupação me incomoda...
Sinto-me cada vez mais como uma ferramenta bem afiada para o meu
chefe.” Depois, a pista: “Ele é como um pai para mim.” São muitos os
homens de hoje que se perguntam até que ponto têm que viver sua vida da
mesma forma que o seu chefe ou o seu mentor.
É evidente que a capacidade de autonomia, independência e identidade
separada são elementos essenciais a uma vida adulta saudável. Mas a ênfase
que damos a essas qualidades nos meninos obscurece a luta que vivenciam
em seu processo de separação do pai e da mãe. Por não termos tido uma
maior capacidade de nutrir as partes carentes e vulneráveis de nós mesmos,
trazemo-las sempre conosco, onde quer que estejamos, formando um
resíduo infantil zangado e triste que tantas vezes molda as nossas relações
da vida adulta com a esposa, os filhos, o chefe e os nossos próprios pais.
Os homens costumavam ser protegidos das questões não-resolvidas com
suas mães e seus pais pela tradicional divisão do trabalho. Mas os que
foram criados nas décadas durante as quais o movimento feminista se
tornou uma força poderosa estão agora vivendo mudanças sociais de
proporções épicas: o claro e direto movimento das mulheres rumo a
posições de maior poder e igualdade no mercado de trabalho e o movimento
dos homens para o seio da vida familiar. Independentemente de os homens
estarem ou não participando mais da vida familiar (e as evidências sugerem
que há, de fato, um discreto movimento nesse sentido), eles não estão mais
sendo protegidos daquelas partes da vida que tiveram de reprimir ou
desvalorizar a fim de crescer.1 Hoje, quando a esposa sai para trabalhar,
quando chega o bebê, ou quando família se reorganiza em função da saída
dos filhos da casa paterna, o homem é menos capaz de voltar a adotar os
papéis e expectativas tradicionalmente masculinos. Muitas vezes, é posto de
novo em contato com antigos sentimentos de desespero e impotência que,
quando criança, não elaborou completamente, e é apanhado de surpresa,
sentindo uma dor que, na realidade, não consegue compreender de onde
vem.
A natureza volátil desta situação é exacerbada pela desconfiança mútua
entre os sexos. Nesta época de transição dos papéis sexuais, é frequente os
homens e as mulheres se olharem com desconfiança mútua. Muitas
mulheres se sentem impacientes diante da resistência dos homens a mudar,
e sentem que eles estão apenas tentando apegar-se ao seu poder nas
relações, ou que se mostram desesperadamente incapazes para a intimidade.
Por sua vez, os homens costumam assumir a defensiva perto das mulheres,
sentindo-se acusados e criticados pelo movimento feminista. Alguns
procuram então ocultar sua impotência ou incompetência escondendo-se
por trás de uma postura emocionalmente encouraçada. Em muitos dos
casamentos atuais, a esposa não tem simpatia nem paciência pelos temores
e ansiedades pueris do mando, conforme ambos tentam desenvolver novas
composições trabalho-família, em sua convivência.
Os dois sexos parecem ter hoje um estereótipo em comum: os homens são
distantes e desvinculados, enquanto os relacionamentos são a especialidade
das mulheres. Muita gente acredita que as mulheres se importam mais com
o amor do que os homens. Contudo, a divisão dos sexos, que coloca os
homens como seres racionais e as mulheres como seres que sentem,
simplesmente não é verdadeira, além de ser um mito muito perigoso e
prejudicial. Em tudo com que o feminismo contribuiu para a nossa cultura,
ele também introduziu uma sutil idealização das mulheres e uma menos
sutil difamação ou incompreensão dos homens. O meu trabalho com
homens tem-me convencido de que existe uma vulnerabilidade do sexo
masculino nos relacionamentos que pode ser atribuída às nossas primeiras
vivências infantis de perda e separação. A chave para as questões não
resolvidas da masculinidade consiste em desemaranhar e abandonar nossas
identificações dolorosas e distorcidas com os nossos pais.
Para compreender os conflitos adultos dos homens com relação ao trabalho
e à intimidade, no mundo de hoje, temos que entender o modo como o
menino se vivencia, e como vivencia as mulheres e os homens, da mesma
forma como temos que compreender suas relações atuais como homem
adulto com o pai e a mãe de sua infância.
É possível curar o pai ferido interior. Os homens não são vítimas passivas;
grande parte do nosso desejo de nos envolvermos mais com os nossos filhos
ou de nos tornarmos mentores no trabalho, grande parte da fome de
intimidade que tantos homens revelam é, na realidade, uma tentativa de
curar a ferida que temos dentro do peito, para podermos nos tornar mais
confiantes e acolhedores como homens. À medida que aprendemos mais a
respeito do ciclo da vida adulta, descobrimos que as pessoas revivem as
questões de separação e individuação dos pais durante toda a sua vida
adulta. O dr. George Vaillant, diretor do Grant Study, numa pesquisa
longitudinal com homens de Harvard, conclui: “Repetidas vezes, durante a
pesquisa, constatávamos a mesma lição: a infância não acaba aos vinte e
um. Até mesmo esses homens, escolhidos entre o corpo discente
universitário devido a sua saúde psicológica, continuavam, nas duas
décadas seguintes, desmamando dos pais.”2
Já conversei com um número suficiente de homens para saber que tanto o
trabalho como a família podem ser experiências curativas para os homens;
sobretudo quando se portam como maridos e pais acolhedores, podem curar
e resgatar o relacionamento com seus próprios pais e mães, deixando de
lado as opressivas fantasias sobre o que lhes aconteceu enquanto cresciam
para se tornar homens. Não obstante, também há muitos homens que
continuam representando com o chefe e a esposa aquelas questões não-
resolvidas do relacionamento com o pai e a mãe.
Curar e resgatar o pai ferido interior é um processo psicológico e social que
se desdobra com o passar do tempo e implica a investigação da nossa
própria história, testando e explorando um novo senso de nós mesmos, bem
como a compreensão dos complexos entrecruzamentos existentes no seio de
nossa família, os quais tanto nos afetaram durante nossa fase de
crescimento. É certo que significa tolerar a raiva e as sensações de carência
que o trabalho e a vida em família provocam atualmente, e não tentar
descartar com muita pressa esses incômodos e infantis sentimentos de
impotência que latejam por baixo da pose de competência e identidade
masculinas.
O pai ferido interior
Vi esse menininho dentro de mim num certo dia de verão, no nosso chalé de
New Hampshire, há vários anos. Aconteceu num período em que me sentia
estagnado e frustrado em meu trabalho. Apesar do sol brilhando do lado de
fora, eu trabalhava com afinco num livro cujo tema central tinha-me
escapado por completo. Inundou-me uma profunda sensação de
afundamento. Eu caminhava em meio a pilhas congeladas de palavras, que
chegavam até a altura dos joelhos, entediado com o que estava escrevendo,
além de zangado e enfurecido.
Minha esposa estava observando meu melodrama diário de frustração. Certa
manhã, para me levantar o ânimo, ela sugeriu que caminhássemos por uma
de nossas trilhas favoritas.
“Não, não posso. Quero terminar este capítulo, Julie. Não posso folgar
agora”, respondi entredentes.
“Então, como está indo o trabalho?”
“Péssimo. Odeio este texto. Por que estou fazendo isto? Será que precisa ser
tão difícil?”
Captei uma expressão de pena, irritação e enfado cruzando o rosto de Julie,
aquela espécie de olhar que as pessoas mostram quando veem uma pessoa
que amam fazendo mal a si própria outra vez. E da mesma forma. Pela
enésima vez. E dessa vez ela descarregou:
“Você já me disse isso um milhão de vezes, Sam. Quando é que você vai
ouvir a você mesmo? Por que não dá uma parada e pensa melhor nisso
tudo? Você não tem certeza do que quer dizer nesse livro, e nem mesmo de
que está fazendo do jeito certo.”
“Você parece um menininho andando pela rua, puxando o caminhãozinho
cheio de pedras, chorando e pedindo ajuda.” Tal como os meninos que
procuram a mãe, os homens crescidos procuram a esposa para receber
conforto e apoio sem terem que levar a sério sua dor. Quando eu era
pequenininho eu ia até minha mãe com a dor que estivesse sentindo
(constrangido e inadequado), mas nunca consegui ir satisfatoriamente até o
meu pai com esse problema.
Gostei do interesse e da preocupação de Julie e, por fim, segui seu conselho
e deixei o livro de lado. Contudo, ao identificar minhas expectativas e o
jogo que eu estava praticando, ela também o encerrava. Senti-me
envergonhado e enfurecido. Uma voz interior bastante zangada gritou em
resposta:
“É sua obrigação para comigo!”
Ali estava o trato tradicional que os homens fazem com as mulheres: eu
trabalho bastante e sofro e ela tem que ser simpática, confortar-me e
tranquilizar-me. Muitas vezes, a incapacidade que os homens têm de se
despedir da mãe parece um prêmio de consolação pela ausência de uma
sensação paterna tranquilizadora.
Ali estava eu, naquela maravilhosa região do interior de New Hampshire,
sofrendo - ela deveria, supostamente, consolar-me, não desafiar-me a
crescer! Ela não estava correspondendo ao seu papel no meu drama
passional.
Se minha raiva naquele momento tivesse mais voz, eu poderia ter dito:
“Você é uma mulher, não vai entender — não é possível que você possa
perceber o que é ser homem.”
Vem à minha mente uma imagem de meu pai olhando para a TV, todo
carrancudo, depois de ter trabalhado pesado o dia todo. Minha mãe,
aparentemente mais animada, vibrante; meu pai, parecendo derrotado de
uma maneira sobre a qual realmente não se podia falar. Afinal de contas, ele
era um grande sucesso no trabalho, mas a sensação que ele tinha de estar
preso numa armadilha não era um tópico apropriado para conversa em
família, ou assim me pareceu na época.
Para meu grande espanto, sentado há vários anos naquele chalé de verão, vi
que, da mesma forma como eu estava zangado em relação ao rosto triste e
impotente de meu pai, em nossa casa, aquela parte dele existia em mim
também. E minha mulher tinha posto o dedo naquela parte zangada e
aprisionada dentro de mim que eu tinha medo de encarar.
Em algum remoto recesso onde nos vemos com clareza, topei com a
assustadora verdade: sentia-me impotente para assumir o controle de minha
vida. Estava fazendo Julie de minha mãe enquanto, em minha dramatização
passional, eu me tornava meu pai ou, no mínimo, minha imagem dele. A
lição de John Updike veio-me à mente, explorada na viagem do rabino
Angstrom ao longo da idade adulta: o destino dos homens americanos é
permanecerem meninos, sem jamais alcançarem a liberdade, seja do pai,
seja da mãe.
Para que os homens sintam sua força, para que cheguem a um acordo com
sua identidade e lidem honestamente com sua esposa, seus filhos e com as
solicitações profissionais, é preciso que cuidem do pai interior ferido,
daquela versão triste-zangada de si mesmos que se sente não-amada e não-
amorável. Isso quer dizer chegar a um acordo final com aquela pessoa
distorcida que nunca conseguimos conhecer suficientemente bem: o pai.
Epílogo:
4
ABREVIAÇÕES USADAS NAS NOTAS
CW Collected Works of C. G. Jung (Bollingen Series XX), traduzido por R. F. C. Hull e organizado
por H. Read, M. Fordham, G. Adler e William McGuire (Princeton, N.J.: Princeton University
Press; e Londres: Routledge e Kegan Paul, 1953); as citações aparecem com a indicação do número
do volume, do parágrafo ou da página.
MDR C. G. Jung, Memories, Dreams, and Reflections (Nova York: Random House, 1961).
PC “The Psychology of the Child Archetype” in CW, vol. 9, parte I, The Archetypes and the
Collective Unconscious [Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.]
Introdução/Abrams
As citações de todos os colaboradores provêm de seus respectivos ensaios, exceto onde é dada
indicação em contrário. Os subtítulos são citados da seguinte maneira: “Onde está a vida que
perdemos enquanto fomos vivendo?” - T. S. Eliot; “Leva muito tempo para nos tornarmos jovens”
— Picasso; “Cantai, ó Musa, a Criança!” - Homero.
Citação de abertura do capítulo: C. G. Jung, CW, vol. 17, p. 286.
1. C. G. Jung, CW, vol. 16, The Practice of Psychotherapy [A Prática da Psicoterapia] (Princeton,
N.J.: Bollingen, 1954), p. 32.
2. Oliver Barker, “Healing the Child Within”, in The Wake of Jung (Londres: Coventure, 1983), pp.
48-49.
3. Ronald W. Clark, Einstein: The Life and Times (Nova York: Abrams, 1984), p. 13.
4. Paul A. Schlipp, org., Albert Einstein: Philosopher-Scientist (Nova York: Tudor, 1951), p. 17
(conforme citação em Cradles of Eminence, de Goertzels; vide bibliografia).
5. Segundo citação em Marshall McLuhan e Quentin Fiore, The Médium is the Massage (Nova
York: Bantam Books, 1967), p. 93.
6. Johann Wolfgang von Goethe, “The Holy Longing”, 1814, tradução de Robert Bly, conforme
edição em News of the Universe (São Francisco: Sierra Club Books, 1980), p. 70.
7. C. G. Jung, 1932, da Introdução ao livro de M. Esther Harding, The Way of All Women (Nova
York: C. G. Jung Foundation, 1970), p. xvii.
8. William Butler Yeats, “The Second Coming”, Selected Poems and Two Plays of William Butler
Yeats, org. M. L. Rosenthal (Nova York: Collier, 1962), p. 91.
9. “To Find Our Life”, segundo Ramon Medina Silva, conforme publicado em Technicians of the
Sacred, org. Jerome Rothenberg (Berkeley: University of California Press, 1968, 1985), p. 232.
Capitulo 1/Sullwold
1. George Bemard Shaw, “Essay on Parents and Children”, in Prefaces (Londres: Constable & Co.,
1934), p. 47.
2. William Wordsworth, “Ode: Intimations of Immortality...” in Laurel Poetry Series (Nova York:
Dell, 1968), p. 115.
3. PC, p. 170.
Capítulo 2/Jung
1. Talvez não seja supérfluo assinalar que o preconceito leigo está sempre disposto a identificar o
motivo da criança com a “criança” da experiência concreta, como se a criança real fosse a causa e a
pré-condição da existência do motivo da criança. Para a realidade psicológica, entretanto, a ideia
empírica “criança” é apenas um meio (e não o único) de expressar o fato psíquico que não pode ser
formulado com mais exatidão. Portanto, de acordo com esse raciocínio, a idéia mitológica da
criança é, decididamente, não uma cópia da criança empírica, mas um símbolo claramente
identificável enquanto tal: é uma criança-maravilha, uma criança divina, concebida, nascida e
criada nas circunstâncias mais extraordinárias e não - e essa é a questão - uma criança humana.
Seus feitos são tão milagrosos ou monstruosos como sua natureza e constituição física. Somente
em virtude dessas propriedades altamente não-empíricas é que se torna, aliás, necessário falar de
um “motivo da criança”. Além disso, a “criança” mitológica tem várias formas: ora é um deus, ora
um gigante, ora o Pequeno Polegar, ora um animal, etc., e isso indica a vigência de uma
causalidade que não tem nada de racional ou concretamente humano. O mesmo é válido para os
arquétipos do “pai” e da “mãe”, que, mitologicamente falando, são símbolos igualmente
irracionais.
2. C. G. Jung, Psychological Types [Tipos Psicológicos], in CW, vol. 6 (fonte alternativa: tradução
de H. G. Baynes (Londres e Nova York: 1923)) Def. 48; e Two Essays on Analytical Psychology
[Dois Ensaios sobre Psicologia Analíticai], in CW, vol. 7, 2ª edição (Nova York e Londres: 1966),
índice, ver “persona”.
3. ______ [Tipos Psicológicos], in CW, vol. 6, capítulo V, 3: “O significado do símbolo de união.”
4. ______ Psychology and Alchemy [Psicologia e Alquimia], in CW, vol. 12, 2ª edição (Nova York
e Londres: 1968).
5. ______ Two Essays on Analytical Psychology [Dois Ensaios sobre Psicologia Analítica], in CW,
vol. 7, parágrafos 399 ss.
6. ______ [Psicologia e Alquimia], in CW, vol. 12, parágrafos 328 ss.
Capitulo 3/Young
1. C. G. Jung, “A psicologia do arquétipo da criança”, in Psyche and Symbol, org. Violet S. de
Laszlo (Garden City, N.Y.: Doubleday & Co., 1958), p. 124n.
2. Este conto aparece em Heinrich Zimmer, Myths and Symbols in Indian Art and Civilization
[Mitos e Símbolos da Arte e Civilização da índia], org. Joseph Campbell (Nova York: Harper &
Row, 1962), pp. 4-10.
3. Heinrich Zimmer, The King and the Corpse: Tales of the Soul’s Conquest of Evil, org. Joseph
Campbell, Princeton/Bollingen (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1971), p. 134n.
4. Zimmer, The King and the Corpse, p. 192.
5. Minha discussão das idéias de Jung a respeito do arquétipo da criança fundamenta-se nos
seguintes ensaios de Jung: “A psicologia do arquétipo da criança” e "A fenomenologia especial do
arquétipo da criança”, in Psyche and Symbol, org. Violet S. de Laszlo.
6. As citações da poesia de Wordsworth foram obtidas em Wordsworth: Poetical Works, org.
Thomas Hutchinson, revisto por Ernest de Selincourt (Londres: Oxford University Press, 1969).
7. Erich Neumann, The Origins and History of Consciousness, tradução de R. F. C. Hull (Nova
York: Harper & Brothers, 1962), p. 23. [História da Origem da Consciência, Editora Cultrix, São
Paulo, 1990.]
8. Jung, “A psicologia do arquétipo da criança”, p. 131.
9. Jung, “Fenomenologia especial do arquétipo da criança”, p. 135.
10. Meu resumo se baseia em Jung, “A psicologia do arquétipo da criança”, pp. 125 ss.
11. Ibid., p. 135.
12. Ibid., p. 130.
13 Richard J. Onorato, The Character of the Poet: Wordsworth in the Prelude (Princeton, N.J.:
Princeton University Press, 1971), p. 203.
14. A. Charles Babenroth, English Childhood: Wordsworth’s Treatment of Children in the Light of
English Poetry (Nova York: Colúmbia University Press, 1922), p. 314.
15. Zimmer, The King and the Corpse, p. 131.
Capítulo 4/Bachelard
1. Alain Bosquet, Premier testament (Paris: Gallimard), p. 17.
2. Charles Plisnier, Sacre, XXI.
3. Paul Chaulot, Jours de beton, org. Amis de Rochefort, p. 98.
4. Conde de Villiers de L’Isle-Adam, Ísis (Bruxelas e Paris: Librame Internationale, 1862), p. 85.
5. Vincent Huidobro, Altaible, tradução de Vincent Verhesen, p. 56.
6. Oerhard de Nerval escreve: “As recordações da infância retornam à vida quando a pessoa
alcança a metade do caminho da sua vida” (Les filies du feu, Angelique, 6ª carta, org. du Divan, p.
80). Nossa infância espera um longo tempo antes de ser reintegrada à nossa vida. Essa reintegração
é sem dúvida possível apenas na segunda metade da vida, quando a pessoa regressa, colina abaixo.
Jung escreve (Die Psychologie der Uebertragung, p. 167): “A integração do Self, considerada no
seu sentido mais profundo, é uma questão para a segunda metade da vida.” Enquanto a pessoa está
no florescer da vida, parece que a adolescência que sobrevive em nós coloca uma barreira à
infância que está à espera de ser revivida. Essa infância é o reino do Self, do Selbst, proposto por
Jung. A psicanálise deveria ser praticada por homens idosos.
7. Jean Follain, Exister, p. 37.
8. Baudelaire, Les paradis artificiels, p. 329.
9. Pierre Emmanuel, Tombeau d’Orphee, p. 49.
10. Robert Ganzo, L’oeuvre poétique, Grasset, p. 46.
11. Alexandre Amoux, Petits poèmes (Paris: Seghers), p. 31.
12. Jean Rousselot, Il n’y a pas d’exil (Paris: Seghers), p. 41.
13. Edmond Vandercammen, Faucher plus près du ciel, p. 42.
14. Henry David Thoreau, Walden, p. 48.
15. Lamartine, Les foyers du peuple, 1ª série, p. 172.
Capítulo 5/Singer
1. William Blake, A Song of Liberty.
2. PC, in CW, vol. 9, p. i.
3. Cf. também Baco, Dioniso.
4. Marie-Louise von Franz, O problema do puer aeternus.
5. Ibid.
6. Uma discussão completa deste arquétipo e do precedente aparece no ensaio de James Hillman
“Senex e Puer: Um aspecto do presente histórico e psicológico” in Eranos-Jahrbuch XXXVI/1967
(Zurique: Rhein-Verlag, 1968).
Capítulo 6/Metzner
1. Ramana Maharshi, The Spirituai Teachings of Ramana Maharshi, com prefácio de C. G. Jung
(Boulder, Colo.: Shambhala, 1972). [Ramana Maharshi - Ensinamentos Espirituais, Editora
Cultrix, São Paulo, 1991.]
2 . PC, p. 164. Jung continua: “Na psicologia do indivíduo, a ‘criança’ sedimenta o caminho para
uma futura mudança na personalidade. No processo de individuação, antecipa a figura que vem
com a síntese dos elementos consciente e inconsciente da personalidade. É, portanto, um símbolo
que une os opostos, um mediador, um portador de cura e resgate interiores, quer dizer, aquele que
torna completo.”
3. Michael Harner, The Way of the Shaman (São Francisco: Harper & Row, 1980). [O Caminho do
Xamã, Editora Cultrix, São Paulo, 1989.]
4. Meister Eckhart, Meister Eckhart, tradução de Raymond B. Blakney (Nova York: Harper & Row,
1941).
5. Fritz Meier, “The Transformation of Man in Mystical Islam”, in Man and Transformation, org.
Joseph Campbell; Eranos Anuários, vol. 5; Bollingen Series, nº 30 (Princeton, N.J.: Princeton
University Press, 1964).
6. Edição King James da Bíblia: Novo Testamento, João 3:3.
7. C. G. Jung, “Sobre o renascimento” in The Archetypes and the Collective Unconscious [Os
Arquétipos e o Inconsciente Coletivo], p. 121, CW, vol. 9, parte I.
8. Evelyn Underhill, “Treatise of the Ressurrection” in Mysticism (Nova York: New American
Library, 1955).
9. PC, pp. 151-181.
10. Chuang Tsu, Inner Chapters, tradução de Gia-Fu Feng e Jane English (Nova York: Random
House, 1974).
Capítulo 7/Frantz
1. PC, parágrafo 287.
2. M. Woodman, “Psyche/Soma Awareness” (Artigo apresentado na Conferência de Analistas
Junguianos em Nova York, de 3-6 de maio de 1984).
3. N. Schwartz-Salant, Narcissism and Character Transformation (Toronto: Inner City Books,
1982). [Narcisismo e Transformação do Caráter, Editora Cultrix, São Paulo, 1988.]
4. MDR, p. 152.
5. CW, vol. 5, Symbols of Transformation [Símbolos da Transformação], parágrafo 165.
6. E. Tripp, The Meridian Handbook of Classical Mythology (Nova York e Scarborough, Ontário:
New American Library, 1970).
7 . CW, vol. 17, The Development of Personality, 1954, p. 173. [O Desenvolvimento da
Personalidade, Editora Pensamento, São Paulo, 1990.]
8. M-L von Franz, Creation Myths (Nova York: Spring Publications, 1972).
9 . CW, vol. 7, Two Essays on Analytical Psychology [Dois Ensaios sobre Psicologia Analítica],
1966, parágrafo 342.
10. J. Blofeld, Bodhisattva of Compassion: The Mystical Tradition of Kuan Yin (Boulder, Colo.:
Shambhala, 1978).
11. von Franz, Creation Myths, p. 237.
12. H. Kirsch, “Reveries on Jung”, in Professional Reports da Annual Conference of the Society of
Jungian Analysts of Northern and Southern California, edição particular patrocinada pelo C. G.
Jung Institute de São Francisco, 1975.
13. von Franz, Creation Myths, p. 122.
14. I Ching, 1950, p. 81.
15. J. Blofeld, Bodhisattva of Compassion, 1978.
16. G. A. Foy, “On Feeling: The Feeling Function Revisited” (Artigo apresentado na 13ª Biennial
Bruno Klopfer Workshop, Asilomar, Califórnia, 1983).
17. XIV Dalai Lama, The Opening of the Wisdom-Eye (Wheaton, Ill.: The Theosophical Publishing
House, 1966), p. 142.
18. Ibid., pp. 142-143.
19. A. de Vries, Dictionary of Symbols and Imagery (Amsterdam e Londres: North-Holland
Publishing Co., 1974).
20. J. Dallett, “Active Imagination in Practice” in Jungian Analysis, org. M. Stein (La Salle, Ill.:
Open Court, 1982), pp. 173-191.
21. J. Harrison, 1903, Prolegomena to the Study of Greek Religion (Nova York: Meridian Books,
1955), p. 574.
22. Ibid., p. 575.
23. CW, vol. 5, Symbols of Transformation [Símbolos da Transformação], 1956.
24. L. Taylor, Mourning Dress: A Costume and Social History (Londres: George Allen & Unwin,
1983), p. 48.
25. Ibid., p. 49.
26. Ibid., p. 51.
27. Ibid., pp. 48-60.
28. Ibid., p. 56.
29. H. Feifel, The Meaning of Death, ed. rev. (Nova York e Londres: McGraw Hill Book Co.,
1965), p. 124.
39. G. Frantz, “On the Meaning of Loneliness”, in Chaos to Eros, org. R. Lockhart (Los Angeles:
C. G. Jung Institute, 1976).
31. Harrison, Prolegomena.
32. G. Frantz, “Images and Imagination: Wounding and Healing” (Artigo apresentado no C. G.
Jung Institute de São Francisco, 1980).
33. MDR, p. 173-174.
Capitulo 8/Hillman
1. P. Aries, Centuries of Childhood [tradução de R. Baldrick de L’Enfant et la vie familiale sous
1’ancien regime, Paris: Plon, 1960] (Nova York: Knopf e London: Cape, 1962), parte I.
2. Michel Foucault, Madness and Civilization [tradução de R. Howard de Histoire de la Folie,
Paris: Plon, 1961] (Nova York: Pantheon, 1965).
3. S. Freud, Collected Papers, vol. II (Londres: Hogarth, 1924, 1925), p. 177.
4. S. Freud, New Introductory Lectures on Psycho-Analysis, tradução de Sprott (Londres: Hogarth,
1933, 1957), p. 190.
5. Rousseau, Emile, II.
6. Freud, “From the history of an infantile neurosis (1918)” in Collected Papers, vol. III (Londres:
Hogarth, 1924, 1925), pp. 577-578.
7. Cf. Collected Papers, vol. III, p. 470, o último parágrafo da discussão de Freud sobre o caso
Schreber.
8. Freud, New Introductory Lectures, p. 190.
9. Freud, Collected Papers, vol. II, p. 188.
10. CW, vol. 9, parte I, 2ª edição (Londres: Routledge, 1968), p. 161, nota de rodapé.
11. CW, vol. 9, I, parágrafo 300.
12. CW, vol. 5, passim.
13. CW, vol. 6, parágrafo 422 s, 442.
14. Freud, Collected Papers, vol. III, p. 562 s.
15. CW, vol. 9, I, parágrafo 276.
16. CW, vols. 14 e 16, passim.
17. CW, 331c e seguinte.
18. Santo Agostinho, Enar. in Ps. XLIV, I.
19. Santo Agostinho, Confissões, I, 7, II.
20. Freud, New Introductory Lectures, p. 106.
Capítulo 10/Woodman
1. Versão King James da Bíblia, Salmos 118:22.
2. C. G. Jung, “As palestras de Tavistock”, in CW, vol. 18, The Symbolic Life [A Vida Simbólica],
parágrafo 389.
Capítulo 13/Covitz
1. Maria Montessori, The Child in the Family (Nova York: Hearst Corporation, Aron Books, 1970),
pp. 14-15.
2. Alice Miller, Prisoners of Childhood (reintitulado Drama of the Gifted Child) [O Drama da
Criança Bem-dotada] (Nova York: Basic Books, 1981), p. 69.
3. CW, vol. 17, O Desenvolvimento da Personalidade, pp. 40-41.
4. Ibid., p. 44.
5. Ibid.
6. John Bowlby, Child Care and the Growth of Love (Middlesex, Inglaterra: Penguin Books, Ltd.
1965), pp. 77-78.
7. C. G. Jung, “Sobre a energia psíquica” in CW, vol. 8, p. 52.
Capítulo 14/Miller
1. M. Mahler, On Human Symbiosis and the Vicissitudes of Individuation (Nova York: International
Universities Press, 1968), p. 11.
2. Alice Miller, “Zur Behandlungstechnik bei Sogenannten Narzisstischen Neurosen”, Psyche
25:641-668.
3. J. Habermas, “Der universalitatsanspruch der Hermeneutik”, in Kultur und Kritik (Frankfurt: M.
Suhrkamp, 1973).
4. D. W. Winnicott, “The use of an object”, International Journal of Psychoanalysis 50:700, 716,
1969.
Capítulo 15/von Franz
1. Ovídio, Metamorphoses, vol. IV (Londres e Cambridge, Mass.: Loeb Classical Library, 1946),
pp. 18-20.
2. C. G. Jung, CW, vol. 5, Símbolos de Transformação.
3. J. G. Magee, Jr., “High Flight”, in The Family Álbum of Favorite Poems, org. P. E. Ernest (Nova
York: Grosset & Dunlap, 1959).
4. Gerhard Adler e Aniela Jaffé, orgs., C. G. Jung: Letters, 2 vols. (Princeton: Princeton University
Press, 1973), vol. 1, p. 82, carta datada de 23 de fevereiro de 1931.
Capítulo 17/Luke
1. Antoine de Saint-Exupéry, The Little Prince [O Pequeno Príncipe] (tradução de Katherine
Woods (Nova York: Harcourt, Brace e World, 1943).
2. C. G. Jung e C. Kerényi, Essays on a Science of Mythology (Nova York: Harper Torchbooks,
1963), p. 96.
Capítulo 18/Whitfíeld
1. Anna Freud, The Ego and the Mechanisms of Defense [O Ego e os Mecanismos de Defesa], ed.
rev. (Nova York: International Universities Press, 1986).
2. George Valliant, The Natural History of Alcoholism (Cambridge, Mass.: Harvard University
Press, 1983).
3. H. L. Gravitz e J. D. Bowden, Guide to Recovery: A Book for Adult Children of Alcoholics
(Holmes Beach, Fla.: Learning Publications, 1985).
4. M. Ferguson, The Aquarian Conspiracy: Personal and Social Transformation in the 1980's (Los
Angeles: Tarcher, 1980).
5. J. Campbell, The Hero with a Thousand Faces (Princeton, N.J.: Princeton Press, 1949). [O Herói
de Mil Faces, Editoras Cultrix/Pensamento, São Paulo, 1988.]
6. Ferguson, Aquarian Conspiracy, C. L. Whitfield, Alcoholism, Other Drug Problems, and Other
Attachments and Spirituality: Stress Management and Serenity During Recovery, A Transpersonal
Approach (Baltimore, Md.: The Resource Group, 1985).
7. Gravitz e Bowden, Guide to Recovery.
8 T. L. Cermak e S. Brown, “International group therapy with the adult children of alcoholics”,
International Journal Group Psychotherapy 32:375-389, 1982.
9. B. Fischer, Workshop on Shame (Baltimore, Md.: The Resource Group, 1985).
Capitulo 19/Stone e Winkelman
1. Lucia Capacchione, The Power of Your Other Hand (Van Nuys, Calif.: Newcastle Co., Inc.
1988).
Capítulo 22/Stein
1. C. Kerényi e C. G. Jung, Essays on a Science of Mythology (Nova York; Pantheon Books Inc.,
1949), p. 40.
2. Alice Miller, O Drama da Criança Bem-dotada (Nova York: Basic Books, Inc., 1981).
3. Alice Miller, Thou Shalt Not Be Aware (Nova York; Farrar, Straus & Giroux, 1984).
4. Sigmund Freud, Edição Standard das obras psicológicas de S. Freud, vol. VII.
5. Robert M. Stein, Incest and Human Love: The Betrayal of the Soul in Psychotherapy [Incesto e
Amor Humano: a Traição da Alma na Psicoterapia], (Dallas: Spring Publications Inc., 1984).
6. Harold Searles, “Oedipal Love in the Countertransference” (1959) in Collected Papers on
Schizophrenia and Related Subjects (Nova York: International University Press, 1965), p. 284
7. Ibid.
8. Ibid., p. 295.
9. Ibid., p. 296.
Capitulo 23/Short
1. CW, vol. 17, O Desenvolvimento da Personalidade, parágrafo 153.
2. D. H. Lawrence, The Complete Short Stories (Penguin Books, 1983), pp. 790-791.
3. T. S. Eliot, The Complete Poems and Plays (Nova York; Harcourt, Brace & Co., 1952), p. 260.
4. CW, vol. 17, parágrafo 217a.
5. Ibid., parágrafo 154.
6. Ibid., parágrafo 84.
7. Ibid.
8. Ibid.
9. G. K. Chesterton, Orthodoxy (Nova York Vintage Books, 1959), p. 80.
10. Ibid., parágrafo 286.
11. Ibid.
Capítulo 25/Mills e Crowley
1. V. Axline, Play Therapy [Ludoterapia] (Nova York Ballantine, 1969 - originalmente publicado
em 1947). Ver também A. Freud, The Psychoanalytic Treatment of Children [O Tratamento
Psicanalítico de Crianças] (Londres: Imago, 1946); R. Gardner, Therapeutic Commumcation with
Children: The Mutual Story-telling Technique (Nova York Science House, 1971); G. Gardner e K.
Olness, Hypnosis and Hypnotherapy with Children (Nova York Grune & Stratton, 1981); V.
Oaklander, Windows to Our Children [Descobrindo Crianças] (Moab, Utah: Real People Press,
1978); e S. Russo, "Adaptations in behavioral therapy with children”, Behavior Research &
Therapy 2:43-47.
2. MDR, pp. 173-174.
3. Ibid., pp. 174-175.
4. PC.
5. C. G. Jung, Psyche and Symbol (Nova York Doubleday, 1958), pp. 125-128.
6. Ibid., pp. 135-136.
7. E. Rossi e M. Ryan, orgs. Life Reframing in Hypnosis. II: The Seminars, Workshops and
Lectures of Milton H. Erikson (Nova York: Irvington, 1985), p. 51.
8. Ibid., p. 65.
Parte 6: Introdução
Citação de abertura: “Sobre a energia psíquica”, C. G. Jung, CW, vol. 8, p. 52.
Capítulo 33/Hillman
1. James Hillman, "Abandoning the Child”, in Loose Ends: Primary Papers in Archetypal
Psychology (Dallas: Spring Publications and The University of Dallas, 1975).
Capítulo 37/Osherson
1. J. M. Ross, ‘ ‘In Search of Fathering: A Review’ ’, in Father and Child, orgs. Cath, Gurwitz e
Ross.
2. D. Hall, “My Son, My Executioner”, in The AlligatorBride (Nova York: Harper & Row, 1969).
Epílogo/Abrams
“May You Stay Forever Young”: Bob Dylan, “Forever Young”, 1973, Ram’s Hom Music. Citação
de abertura: C. G. Jung, “A psicologia do arquétipo da criança”, CW, vol. 9, i, parágrafo 299.
Sobre os colaboradores
Gaston Bachelard foi um dos pensadores mais significativos da França
moderna. Autor de textos de filosofia e psicologia, Bachelard é considerado
um verdadeiro livre-pensador que reconhecia a imaginação como a
substância fundamental do mundo. Foi catedrático de história e filosofia da
ciência na Sorbonne, de 1940 até 1962, ano de sua morte.
Bruno Bettelheim é Professor Emérito de Educação e de Psicologia e
Psiquiatria na Universidade de Chicago. Entre seus livros estão A Good
Enough Parent [Pais Bons o Bastante], Love Is Not Enough, Children of the
Dream, Freud and Man’s Soul e The Uses of Enchantment [Psicanálise dos
Contos de Fada]. Este último trabalho conquistou o Prêmio Nacional do
Livro e o Prêmio da Associação Nacional dos Críticos Literários, em 1977.
John Bradshaw vem trabalhando nos últimos 20 anos como conselheiro,
teólogo, consultor administrativo e orador público. É o apresentador da
série em cadeia nacional da Rede PBS intitulada Bradshaw On: The Family
e autor de um livro do mesmo título. Healing the Shame That Binds You é
seu trabalho mais recente.
Nathaniel Branden é psicólogo clínico no Instituto Biocêntrico em Los
Angeles. Tem escrito extensamente sobre psicologia e entre seus trabalhos
encontram-se The Psychology of Romantic Love, The Psychology of Self-
Esteem e How to Raise Your Self-Esteem [Auto-estima].
Adelaide Bry tem livros sobre vários temas psicológicos, entre os quais
incluem-se The TA Primer, Inside Psychotherapy, How to Get Angry
Without Feeling Guilty, est: 60 Hours That Transform Your Life, e
Visualization: Directing the Movies of Your Mind.
Joseph Campbell, o grande bardo e erudito da mitologia morto em outubro
de 1987, é muito conhecido por seu trabalho na área da mitologia mundial
comparada. Lecionou no Sarah Lawrence College, na cidade de Nova York
durante quase quarenta anos, onde foi criada a Cadeira Joseph Campbell de
Mitologia Comparada, em sua homenagem. Escreveu livros entre os quais
se destacam The Mythic Image, The Masks of God (4 volumes), The Hero
With a Thousand Faces [O Herói de Mil Faces, Editoras
Cultrix/Pensamento, São Paulo, 1988.], Myths to Live By, The Atlas of
World Mythology e as transcrições póstumas de entrevistas sob forma de
livro, The Power of the Myth [O Poder do Mito] e An Open Life.
Lucia Capacchione é arteterapeuta licenciada, consultora e organizadora de
cursos. Entre seus livros estão The Creative Journal, The WellBeing
Journal, e The Power of Your Other Hand. Seus métodos atualmente estão
sendo empregados no tratamento de pacientes com AIDS e nos programas
de doze etapas para a recuperação de vários problemas.
Joel Covitz é psicólogo clínico e analista junguiano em Brookline,
Massachusetts, onde vive com a mulher e dois filhos. É autor de Emotional
Child Abuse e seu próximo livro intitular-se-á Visions of the Night: A Study
of Jewish Dream Interpretation.
Erik H. Erikson é uma das figuras de maior destaque no campo da
psicanálise e do desenvolvimento humano. Ganhador do Prêmio Pulitzer e
do Prêmio Nacional do Livro, é autor de Gandhi’s Truth, Young Man Luther,
Identity: Youth and Crisis, Childhood and Society [Infância e Sociedade], e
Insight and Responsibility.
Gilda Frantz é analista junguiana com consultório particular em Santa
Mônica, Califórnia e editora-fundadora do periódico Psychological
Perspectives, publicado pelo C. G. Jung Institute de Los Angeles.
Marie-Louise von Franz, psicanalista suíça, é provavelmente a mais
importante discípula viva de C. G. Jung, tendo trabalhado diretamente com
ele durante 31 anos. Seu trabalho abrange plenamente a essência dos
ensinamentos de Jung, embora ela seja também uma pensadora original e
provocante. Muitas de suas palestras foram publicadas e encontram-se em
forma de livro. Entre seus livros constam Number and Time, The Grail
Legend [A Lenda do Graal, Editora Cultrix, São Paulo, 1990.] (com Emma
Jung), Puer Aeternus, Projection and Re-Collection in Jungian Psychology,
The Feminine in Fairy Tales e On Dreams and Death [Os Sonhos e a Morte,
Editora Cultrix, São Paulo, 1990.]. (Faleceu em 17 de fevereiro de 1998,
Küsnacht, Suíça.)
James Hillman, representante da terceira geração do pensamento junguiano,
está rapidamente se tornando reconhecido como um dos mais originais
pensadores psicológicos da atualidade, nos Estados Unidos. Com formação
de analista junguiano, autodenomina-se psicólogo arquetípico e seus textos
escritos têm atraído a imaginação de romancistas, poetas, feministas,
historiadores da cultura, assim como a de seus colegas analistas. É
conferencista convidado de várias instituições e editor do periódico Spring.
Entre seus livros estão Suicide and the Soul, The Myth of Analysis [O Mito
da Análise], Re-Visioning Psychology, Anima [Anima - Anatomia de uma
Noção Personificada, Editora Cultrix, São Paulo, 1990] e Loose Ends.
Jean Houston é diretora da Foundation for Mind Research de Nova York.
Realiza seminários e trabalhos pioneiros sobre o desenvolvimento humano
em mais de 35 países, e já escreveu mais de dez livros, entre os quais The
Search for the Beloved [A Psicologia do Sagrado. A Busca do Ser Amado,
Editora Cultrix, São Paulo, 1993], The Possible Human Life Force [A
Redescoberta do Potencial Humano, Editora Cultrix, São Paulo, 1993], e
Mind Games.
C. G. Jung, que morreu em 1961, uma das grandes personalidades de nosso
tempo, é provavelmente mais conhecido como um dos fundadores da
psicanálise. Suas reflexões abrangeram todo o amplo espectro dos
problemas e preocupações da moderna alma humana. Seu ponto focal de
interesse foi o mistério da consciência e da personalidade, e o
relacionamento de ambas com o grande inconsciente. Seus livros compõem
uma coleção de Obras Completas em vinte volumes, Man In Search of a
Soul e sua popular autobiografia Memories, Dreams, and Reflections
[Memórias, Sonhos e Reflexões].
Ursula K. Leguin é renomada romancista e contista. Entre seus livros
figuram Planet of Exile, The Left Hand of Darkness, The Dispossessed e a
coleção The Wind’s Twelve Quartels. Vive com sua família em Portland,
Oregon.
John Loudon foi o editor original do periódico Parábola. Atuou como
editor da divisão religiosa/textos gerais da Harper & Row, em Nova York e
em São Francisco. Vive no norte da Califórnia.
Alexander Lowen, diretor do Instituto de Análise Bioenergética, em Nova
York, é o criador da bioenergética, prática que incorpora o trabalho direto
sobre o corpo ao processo psicanalítico. É autor de numerosos livros, entre
os quais Love and Orgasm [Amor e Orgasmo], Betrayal of the Body [O
Corpo Traído], Pleasure [O Prazer], Depression and the Body [O Corpo em
Depressão] e Bioenergetics [Bioenergética].
Helen M. Luke é conselheira junguiana e diretora da Apple Farm, um centro
para retiro em Three Rivers, Michigan. É autora de The Way of Woman:
Ancient and Modern; Earth and Spirit, White Rose e The Inner Story.
Ralph Metzner tem pesquisado e lecionado na área da consciência há mais
de 25 anos. É psicoterapeuta e professor de psicologia comparada Oriental-
Ocidental no California Institute of Integral Studies de São Francisco. Seus
livros incluem Maps of Consciousness e Opening to the Light.
Alice Miller, que vive em Zurique, tem se dedicado desde 1979 à atividade
literária, depois de ter clinicado e lecionado por mais de vinte anos como
psicanalista. Seus três livros, recordistas de vendas, instigadores de muita
polêmica e responsáveis pela criação de um movimento de ativistas pela
defesa das crianças, intitulam-se Prisoners of Childhood (rebatizado como
The Drama of the Oifted Child) [O Drama da Criança Bem-dotada], For
Your Own Good, e Thou Shalt Not Be Aware.
Joyce C. Mills e Richard J. Crowley são terapeutas de crianças que clinicam
na região sul da Califórnia. Sua colaboração produziu um livro, Therapeutic
Metaphors for Children and the Child Within, e um livro em quadrinhos
para crianças vítimas de abuso sexual, Gardenstone: Fred Protects the
Vegetables.
Samuel Osherson é psicólogo pesquisador e psicoterapeuta em Cambridge,
Massachusetts. É autor de Holding On or Letting Gó e Finding OUT
Fathers, e tem escrito uma coluna mensal para a revista Boston.
M. Scott Peck é psiquiatra com consultório em New Milford, Connecticut. É
autor do enormemente popular The Road Less Traveled, sua continuação
People of the Lie, e The Different Drum.
Theodore Reik, nascido em Viena em 1888, foi um dos primeiros discípulos
de Freud. Escreveu a primeira dissertação de doutoramento sobre
psicanálise, na Universidade de Viena. Veio para os Estados Unidos em
1938 e clinicou como psicoterapeuta em Nova York durante muitos anos.
Entre seus livros encontram-se Masochism in Modern Man, A Psychologist
Looks at Love e Listening with the Third Ear.
Rose-Emily Rothenberg é analista junguiana com consultório particular em
Los Angeles. Foi editora de A Well of Living Waters, livro que foi uma
homenagem à psicanalista e sua mentora, Hilde Kirsch.
Jeffrey Satinover é membro do Child Study Center da Faculdade de
Medicina da Universidade de Yale, diretor do Sterling Institute em Weston,
Connecticut, e analista junguiano com consultório particular.
Susanne Short é analista junguiana com consultório particular na cidade de
Nova York.
June Singer é analista junguiana, autora e professora do Institute of
Transpersonal Psychology, Palo Alto, Califórnia. Seus livros incluem
Androgyny [Androginia - Rumo a Uma Nova Teoria da Sexualidade, Editora
Cultrix, São Paulo, 1991.] Energies of Love, The Unholy Bible, Boundaries
of the Soul, e Seeing Through the Visible World.
Robert M. Stein é analista didata no Jung Institute de Los Angeles e tem seu
consultório particular em Beverly Hills. É autor de numerosos artigos e do
livro Incest and Human Love: The Betrayal of the Soul in Psychotherapy.
Hal Stone é psicólogo clínico e professor e diretor da Academy of Delos, no
norte da Califórnia, onde ele e sua mulher, Sidra Winkelman, oferecem
grupos de treinamento no Diálogo entre Vozes. É autor de Embracing
Heaven and Earth e co-autor de Embracing Our Selves e Embracing Each
Other.
Edith Sullwold fundou o Hilde Kirsch Children’s Center no C. G. Jung
Institute de Los Angeles. Foi diretora do Turning Point, um grupo
profissional de trabalho para atendimento de crianças portadoras de doenças
graves. Atualmente leciona e supervisiona terapeutas em várias partes do
mundo, mais recentemente, no Quênia.
Charles L. Whitfield é psicoterapeuta e autor de Healing the Child Within e
de seu livro concomitante de exercício, A Gift to Myself. Pertence ao corpo
docente da Escola de Verão para Estudos sobre o Alcoolismo da
Universidade Rutgers, assim como da Faculdade de Medicina da
Universidade de Maryland.
Sidra Winkelman é psicoterapeuta, mãe e co-criadora do Método de
Diálogos entre Vozes, que ela e o marido, Hal Stone, ensinam nos Estados
Unidos e no exterior. É co-autora de Embracing Our Selves e Embracing
Each Other.
Marion Woodman é analista junguiana com consultório particular em
Toronto. Viaja extensamente para ministrar palestras. Entre seus livros
estão The Owl Was a Baker’s Daughter: Obesity, Anorexia Nervosa and the
Repressed Feminine [A Coruja era Filha do Padeiro: Obesidade, Anorexia
Nervosa e o Feminino Reprimido, Editora Cultrix, São Paulo, 1991];
Addiction to Perfection: The Still Unravished Brider, e The Pregnant Virgin.
James H. Young é autor regularmente publicado por Quadrant, revista da C.
G. Jung Foundation de Nova York.
Bibliografia
Os trabalhos abaixo citados incluem as fontes dos ensaios deste livro, assim
como outros títulos relevantes, relativos aos temas desta coletânea.
Recomendo-os ao leitor, assim como as bibliografias de referências
contidas nos próprios livros citados. [Sempre que possível, será dado o crédito da obra
em português, com tantos dados da referência bibliográfica quantos se puder ter obtido. (N.T.)]