67170AIMGFvolume13-1 Rcaso5
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Autores:
Sofia Bodas de Carvalho1, Marta Moreno Luís Monteiro1, Luís Filipe Teixeira2
RESUMO
Introdução: A transformação cavernomatosa da veia porta surge pelo desenvolvimento de vasos colaterais secundários à
trombose da veia porta. A clínica é variável, muitas vezes assintomática ou com queixas inespecíficas, sendo o diagnóstico
confirmado por exame de imagem. Uma das complicações é a isquémia intestinal, devido à obstrução da veia mesentérica
superior. Esta entidade clínica ocorre predominantemente em doentes com cirrose hepática ou carcinoma hepatocelular,
sendo também frequente a presença de síndromes pró-trombóticas. O presente caso clínico relata uma apresentação
atípica de trombose da veia porta, em utente jovem e sem cirrose.
Descrição do caso: Mulher de 37 anos recorre à consulta por quadro com três meses de evolução de epigastralgia, pirose,
eructação excessiva e sensação de enfartamento pós-prandial. O exame objetivo da região abdominal não mostrava alte-
rações pelo que foi pedida endoscopia digestiva alta e iniciada medicação com omeprazol 40 mg id em jejum. A utente
não realizou o exame e voltou à consulta um ano depois por agravamento dos sintomas. Foi então pedida uma ecografia
abdominal, cujo resultado sugeria a presença de transformação cavernomatosa da veia porta, sem aparente trombose. Foi
referenciada com urgência para a consulta de Gastrenterologia, suspendeu a contraceção estroprogestativa (0,02 mg de
etinilestradiol e 0,075 mg de gestodeno id) e foi encaminhada para a consulta de Hematologia com vista à exclusão de
doenças mieloproliferativas. Mantém atualmente a vigilância em ambas as consultas.
Comentário: A clínica inespecífica do cavernoma da veia porta pode levar a um atraso no diagnóstico. O caso é enrique-
cido pela particularidade de ser uma apresentação incomum, dada a ausência de cirrose ou suspeita de carcinoma, o que
não exclui o cavernoma da veia porta como diagnóstico. O presente caso sublinha a importância do médico de família no
diagnóstico diferencial de sintomas inespecíficos e encaminhamento precoce dos utentes.
ABSTRACT
Introduction: The cavernomatous transformation of the portal vein arises from the development of collateral vessels sec-
ondary to portal vein thrombosis. The presentation is variable, often asymptomatic or with unspecific complaints, and
the diagnosis is confirmed by imaging. One of the complications is intestinal ischemia, due to obstruction of the superior
mesenteric vein. This clinical entity occurs predominantly in patients with liver cirrhosis or hepatocellular carcinoma, and
the presence of prothrombotic syndromes is also frequent. The present case reports an atypical presentation of portal vein
thrombosis in a young patient without cirrhosis.
Case description: 37-year-old woman presenting for three months with epigastric pain, heartburn, excessive belching and
postprandial bloating. On physical examination the abdomen did not show changes. It has then requested an esophago-
gastroduodenoscopy and initiated omeprazole 40 mg one time daily before breakfast. The patient did not undergo the ex-
amination and returned to the consultation a year later due to worsening of symptoms. An abdominal ultrasound was then
requested, the result of which suggests the existence of a cavernous transformation of the portal vein, without apparent
thrombosis. There was an urgent referral to Gastroenterology where was suspended the estroprogestative contraception
(0.02 mg of ethinylestradiol and 0.075 mg of gestodene one time daily) and made a new referral to Hematology in order to
exclude myeloproliferative diseases. She currently maintains surveillance on both consultations.
Comment: The non-specific clinic of portal vein cavernoma can lead to a delay in diagnosis. The case is enriched by the
particularity of being an uncommon presentation, given the absence of cirrhosis or suspicion of carcinoma, which does
not exclude portal vein cavernoma as a diagnosis. The present case emphasizes the importance of the family doctor in the
differential diagnosis of non-specific symptoms and early referral of patients.
______________________________________________
1. Médica Interna de Formação Especializada em Medicina Geral e Familiar, USF Benfica Jardim, ACeS Lisboa Norte
2. Assistente em Medicina Geral e Familiar, USF Benfica Jardim, ACeS Lisboa Norte
A
INTRODUÇÃO descritos eram agravados pela ingestão de alimentos
transformação cavernomatosa da veia condimentados e ricos em lípidos, negando fatores
porta surge pelo desenvolvimento de de alívio. Ao exame objetivo, apresentava-se com
vasos colaterais secundários à trombose bom estado geral, anictérica, apirética, sem sinais
da veia porta. Esta ocorre predominan- de desidratação, sem sinais de discrasia hemorrá-
temente em doentes com cirrose hepática ou na pre- gica, destacando-se apenas dor à palpação epigás-
sença de síndromes pró-trombóticas. Doenças sisté- trica, sem outras alterações no exame abdominal e
micas como neoplasias mieloproliferativas, mutação restante exame objetivo. Foi pedida uma endoscopia
do gene Janus kinase 2 V617F e malignidade estão digestiva alta e iniciada medicação com omeprazol
presentes em 50% a 60% dos doentes que apresen- 40 mg id em jejum.
tam trombose da veia porta sem presença de cirrose Um ano depois, em março de 2021, a utente re-
hepática associada. Cerca de 25% não apresenta fa- corre novamente à consulta de patologia aguda por
tor de risco identificável. A apresentação clínica é agravamento dos sintomas inicialmente descritos.
variável, muitas vezes assintomática ou com queixas Nesta consulta, explica que não se encontrava a cum-
inespecíficas, sendo o diagnóstico confirmado por prir a medicação prescrita, por pouco alívio, e que
exame de imagem.1,2 não realizou a endoscopia digestiva alta por motivos
Uma das complicações é a isquemia intestinal, económicos. Ao exame objetivo, mantinha-se dor à
através da obstrução da veia mesentérica superior. palpação abdominal, desta vez mais difusa, sem ou-
Mais frequentemente relata-se hipertensão portal e tros sinais de relevo. Pelas dificuldades económicas e
por raras vezes podem ocorrer complicações bilia- achados objetivos, foi optado em plano partilhado a
res. Para a prevenção das complicações secundárias requisição de ecografia abdominal, análises de san-
à transformação cavernomatosa da veia porta pode gue com hemograma, função renal e parâmetros de
ser instituída uma terapêutica anticoagulante, con- função e lesão hepática e agendada uma consulta de
tudo o risco-benefício deve ser avaliado individual- reavaliação.
mente dada a fraca evidência científica atualmente Um mês depois, na consulta de seguimento, apre-
existente.3 senta os achados da ecografia abdominal, que suge-
Este caso clínico permite alertar para o diagnós- rem presença de transformação cavernomatosa da
tico precoce desta patologia de forma prevenir as veia porta, sem aparente trombose. Não apresenta
possíveis complicações decorrentes da mesma, assim alteração das queixas ou novos achados objetivos.
como para a importância da multidisciplinaridade de Foi, por isso, realizada referenciação da utente com
especialidades na gestão dos doentes. urgência para Gastrenterologia e pedida angioto-
mografia abdominal em ambulatório, cujo resultado
DESCRIÇÃO DO CASO apoiou a suspeita diagnóstica: “Objectiva-se a exis-
M.F., sexo feminino, 37 anos, cabeleireira, autó- tência de varicosidade ao nível do hilo hepático, em
noma, coabita com os seus dois filhos. Índice obs- topografia da porta, aspectos que sugerem trans-
tétrico: 3122. Apresenta como antecedentes o diag- formação cavernosa da veia porta”. Nesse mês, fez
nóstico de perturbação depressiva, patologia hemor- também endoscopia digestiva alta, que evidenciou
roidária e aborto espontâneo (morte fetal in utero às gastropatia superficial e bulbite erosiva, sem altera-
12 semanas com necessidade de indução de parto). ções nas biópsias realizadas incluindo pesquisa de
Sem antecedentes cirúrgicos nem conhecimento Helicobacter Pylori negativa, pelo que iniciou esome-
de alergias medicamentosas. Nega consumos noci- prazol na dosagem de 40 mg uma vez por dia. A ava-
vos, nomeadamente álcool, tabaco e outras drogas. liação laboratorial não apresentava alterações.
Medicada diariamente com sertralina 50mg id e con- A utente foi observada pela primeira vez na con-
traceção hormonal combinada (0,02mg de etiniles- sulta de Gastrenterologia em maio de 2021, com o
tradiol e 0,075 mg de gestodeno id). História familiar diagnóstico de cavernoma da veia porta, pelo que
materna de tromboflebites, sem outros antecedentes suspendeu a contraceção hormonal combinada e foi
familiares de relevo. encaminhada para consulta de Hematologia para es-
Recorre a consulta de patologia aguda em março tudo etiológico. Foi observada nesta consulta em ju-
de 2020 por quadro com três meses de evolução de nho de 2021 e pedido estudo genético do gene Janus
dor abdominal localizada no epigastro, sem irradia- kinase 2 V617F, do gene da calreticulina (CALR) e
ção, acompanhada de pirose, eructação excessiva e gene do recetor da trombopoietina (MPL), os três ne-
sensação de enfartamento pós-prandial. Os sintomas gativos. Em Maio de 2022 teve alta da consulta de
COMENTÁRIO
O caso ilustra uma apresentação pouco típica de
uma situação incomum, principalmente pela ausên-
cia de diagnóstico prévio de cirrose. A transformação
cavernomatosa da veia porta pode ser assintomática
ou apresentar-se com sintomas inespecíficos e cul-
minar em complicações graves caso seja reconhecida
tardiamente. Neste caso não podemos afirmar com
certeza se a clínica inaugural da utente se deveu às
alterações endoscópicas encontradas, ao cavernoma
da veia porta ou a ambas. Em acréscimo, apesar da
fraca resposta ao omeprazol relatada pela utente, o
que levou ao abandono da terapêutica, a sintomato-
logia aliviou após introdução de esomeprazol. A ade-
são terapêutica pode ter tido aqui um papel funda-
mental, pois sabemos que a utente passou a ser mais
cumpridora após o resultado da endoscopia.
O diagnóstico de cavernoma da veia porta leva,
por sua vez, a uma vasta investigação etiológica que
deve ser realizada, com vista a excluir cirrose hepá-
tica e fatores pró-trombóticos locais e sistémicos,
como trombofilias hereditárias e adquiridas, neopla-
sias mieloproliferativas, hemoglobinúria paroxística
noturna e doenças autoimunes.3
A anticoagulação profilática deve ser avaliada
caso a caso conforme as comorbilidades dos doentes
e as patologias que possam estar relacionadas com
o cavernoma da veia porta, tais como neoplasias e
patologia hepática.
Nestes utentes, a visão multidisciplinar e acom-
panhamento conjunto de especialidades como
a Medicina Geral e Familiar, Gastrenterologia e
Hematologia, são essenciais, para que seja possível a
sua orientação de medidas como a revisão terapêu-
tica, necessidade de anticoagulação para a preven-
ção de complicações e vigilância periódica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1- DynaMed. Chronic Portal Vein Thrombosis. EBSCO Information Services.
Accessed September 2, 2021. https://www.dynamed.com/condition/
chronic-portal-vein-thrombosis.
2- Intagliata NM, Caldwell SH, Tripodi A. Diagnosis, Development, and
Treatment of Portal Vein Thrombosis in Patients With and Without
Cirrhosis. Gastroenterology. 2019 (in press).
3- European Association for the Study of the Liver. EASL Clinical Practice
Guidelines: Vascular diseases of the liver. J Hepatol. 2016 (in press).