Amilase e Lipase
Amilase e Lipase
Amilase e Lipase
ARTIgO ORIgINAl
1. Acadmica do Internato Complementar de GastrenterologiaServio de Gastrenterologia Centro Hospitalar de Coimbra EPE, Portugal. 2. Especialista em Medicina Intensiva, Servio de Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar de Coimbra EPE, Portugal.
RESUMO Objetivos: A elevao da lipase e amilase sricas so frequentemente encontradas em doentes internados em unidade de terapia intensiva sem que exista doena pancretica prvia, constituindo um desafio diagnstico e teraputico. Baseados nesta evidncia os autores propuseram-se a determinar a incidncia de hiperlipasemia assintomtica nos doentes crticos, fatores desencadeantes e evoluo clnica destes doentes. Mtodos: Estudo retrospectivo dos doentes internados na unidade de terapia intensiva de 1 de janeiro a 31 de dezembro de 2006, excludas internaes por pancreatite aguda, histria de patologia pancretica, insuficincia renal ou falta de dados. Pacientes foram distribudos em dois grupos (com e sem hiperlipasemia) e feita comparao considerando diversas variveis clnicas, laboratoriais, imagiolgicas. Anlise estatstica: SPSS 13; testes t de Student e qui2 (IC 95%), com significncia estatstica se p<0.05. Resultados: Incluidos 102 doentes, a
hiperlipasemia esteve presente em 39.2% deles. Lipase mdia de 797U/L. Os doentes com hiperlipasemia tiveram mais dias de internao (p<0.001), nutrio parenteral (p<0.001), ventilao mecnica (p=0.04), temperatura >38 C (p<0.001), hiperamilasemia (p<0.05), hiperbilirrubinemia (p=0.003) e elevao das transaminases (p=0.001), sem diferena significativa em diagnsticos, sexo, idade, APACHE II, SOFA, SAPS, mortalidade, hipotenso, fosfatase alcalina, hemoglobina, lactato, tolerncia nutrio enteral e utilizao de propofol. O estudo radiolgico revelou alteraes morfolgicas do pncreas em dois doentes com hiperlipasemia. Concluses: A elevao da lipase srica foi frequente, relacionou-se com internao prolongada, mas no se acompanhou de aumento dos ndices de gravidade clnica ou mortalidade. Foi mais frequente nos doentes submetidos a nutrio parenteral. Uma minoria preencheu os critrios de pancreatite aguda. Descritores: Pancreatite; Lipase; Amilases; Unidades de terapia intensiva
Recebido do Servio de Cuidados Intensivos, Departamento de Anestesiologia e Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar de Coimbra EPE, Portugal. Submetido em 01 de Julho de 2008 Aceito em 10 de Novembro de 2008 Autor para correspondncia: Margarida Ferreira Servio de Gastrenterologia Centro Hospitalar de Coimbra EPE Quinta dos Vales, So Martinho do Bispo, Coimbra, Portugal Tel: 936488695 E-mail: [email protected]
INTRODUO A amilase e a lipase sricas so largamente utilizadas como marcadores de inflamao pancretica, contudo a sua elevao nem sempre prediz a presena de doena pancretica.(1) Podem estar elevadas em algumas situaes que mimetizam a pancreatite aguda (Quadro 1), nomeadamente outras doenas intra-abdomiais como doenas do trato biliar, processos de ocluso ou isquemia intestinal, apendicite aguda, entre outros.(1,2) A especificidade das enzimas est tambm reduzida na insuficincia renal, doena heptica, abuso de lcool e vrias doenas extraabdominais. Por exemplo, em doentes com insuficincia renal sem dor abdominal, encontra-se hiperlipasemia em 80%. Estas elevaes comeam a ser evidentes com clearance da
363
creatinina inferior a <50 ml/min. Esta falta de especificidade implica que estas duas enzimas, embora podendo suportar o diagnstico de pancreatite aguda, no asseguram o diagnstico definitivo.(3) O diagnstico de pancreatite, a avaliao da gravidade do quadro e o uso de exames complementares imagiolgicos assenta em critrios e diretrizes cientificamente estabelecidas. Segundo as diretrizes de 2006 do American College of Gastroenterology (ACG), o diagnstico de pancreatite aguda requer a presena de pelo menos duas das seguintes caractersticas: 1) dor abdominal tpica, 2) amilase e/ou lipase superiores a trs vezes o normal e 3) achados caractersticos nos exames de imagem (ultrasonografia, tomografia abdominal computorizada (TAC), ressonncia magntica).(4)
Quadro 1 - Causas de elevao dos nveis sricos de amilase e lipase Amilase lipase Pancreatite aguda Pancreatite aguda Pseudocisto pncreas Pseudoquisto pncreas Pancreatite crnica Pancreatite crnica Carcinoma pncreas Carcinoma pncreas Doena trato biliar (colecistite, Doena trato biliar (colecistite aguda, colangite, colecolangite, coledocolitiase) docolitiase) Ocluso/subocluso intestinal Isquemia intestinal Perfurao intestinal Apendicite aguda Gravidez ectpica Insuficincia renal (<50 ml/min) Parotidite Macroamilasemia Cisto ovrio/neoplasia ovrio Carcinoma pulmo Cetoacidose diabtica Infeco pelo HIV Traumatismo intracraniano Ocluso/subocluso intestinal Apendicite aguda Doena inflamatria intestinal Insuficincia renal Alcoolismo Bulimia/anorexia nervosa Neoplasias malignas Hepatite C
Adaptado de: Forsmark CE, Baillie J; AGA Institute Clinical Practice and Economics Committee; AGA Institute Governing Board. AGA Institute technical review on acute pancreatitis.Gastroenterology. 2007;132(5):2022-44. Review. HIV Virus Imunodeficincia humana
A elevao destas enzimas verifica-se com frequncia nos doentes crticos internados em unidades de terapia intensiva sem que haja evidncia cnica de pancreatite aguda e/ ou outra patologia pancretica. Esta elevao pode refletir uma produo pancretica ou extrapancretica.(3,5,6,7) Esto descritos alguns fatores que podem condicionar alteraes inflamatrias a nvel pancretico no doente crtico,
tais como: 1) isquemia por hipoperfuso, que ocorre por exemplo no choque circulatrio, grandes cirurgias (bypass cardiopulmonar ou aneurismas toracoabdominais); 2) frmacos, como por exemplo alguns antibiticos, frmacos com ao cardiovascular, propofol; 3) alteraes metablicas como hipertrigliceridemia e hipercalcemia provocada ocasionalmente por administrao endovenosa de clcio; 5) lama biliar, situao que frequente nos doentes acamados e naqueles submetidos a nutrio parenteral.(3,6,8,9) A elevao das enzimas observada, por exemplo, em doentes com traumatismo, tumores ou hemorragias intracranianos, doentes com traumatismos abdominais e doentes submetidos a cirurgia cardaca.(2,10) Episdios recorrentes de pancreatite aguda podem ocorrer, ocasionalmente, vrios meses ou anos aps um acidente, principalmente por leso do Wirsung a nvel do corpo.(10,11) A hiperamilasemia no contexto de cirurgia cardaca deve-se fundamentalmente diminuio da excreo urinria e no propriamente a leso pancretica assim como tem sido dada cada vez mais relevncia administrao endovenosa de clcio.(3) Liu et al. verificaram que 15% de um grupo de doentes admitidos por trauma, infeco, tumor ou outras leses intracranianas apresentavam elevao da amilase e lipase, sem nenhuma evidncia clnica ou radiolgica de pancreatite, no recomendando a monitorizao por rotina das enzimas nestes doentes.(5) Noutro estudo prospectivo com 130 doentes crticos, Denz et al., verificaram que a presena de hiperlipasemia foi comum, contudo no se acompanhou, na maioria dos casos, de alteraes radiolgicas do pncreas ou de relevncia clnica.(7) Em suma, a elevao das enzimas pancreticas em doentes crticos constitui um desafio, existindo poucos estudos que esclaream o seu significado clnico, permanecendo dvidas quanto orientao diagnstica e teraputica: necessidade de realizar mais exames complementares nomeadamente radiolgicos, alterar teraputicas ou frmulas de alimentao, etc. Com base nesta problemtica, os autores propuseramse a efectuar um estudo cujo principal objectivo foi determinar a frequncia de hiperlipasemia nos doentes crticos internados numa unidade de terapia intensiva, e possveis fatores associados com esta elevao, assim como avaliao da gravidade e evoluo clnica dos doentes. Foram escolhidos os nveis de lipase por serem mais especficos e ligeiramente mais sensveis que os valores da amilase no diagnstico de pancreatite aguda. (2) MTODOS Realizada uma anlise retrospectiva de 189 processos clnicos referentes a internaes consecutivas na unidade
364
de terapia intensiva de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2006, aps devida autorizao do Comite de tica. Foram recrutados para o estudo um total de 102 doentes. Foram includas internaes do foro clnico, cirrgico e neurocirrgico, tendo sido excludas internaes por pancreatite aguda, doentes com antecedentes de patologia pancretica benigna ou maligna, doentes com creatinina srica>2mg/dl ou internaes com falta de dados clnicos. Excludos pacientes com <18 anos e internaes com menos de 72 horas. Foram recolhidos do processo clnico as seguintes informaes: 1) nveis sricos de amilase e lipase: registados os valores at normalizao e calculado o nmero de dias de elevao da lipase; considerados valores alterados quando lipase>300 UI/L e amilase>115U/L; 2) dados demogrficos e clnicos: idade, sexo, dias de internamento, mortalidade, tolerncia da alimentao, febre (temperatura axilar>38C), hipotenso arterial (presso sistlica<90mmhg), hbitos etlicos ou patologia heptica conhecida; 3) outros dados laboratoriais e imagiolgicos: transaminase glutamil oxalactica (TGO) (>2 vezes o valor normal), transaminase glutamil pirvica (TGP) (>2 vezes o valor normal), fosfatase alcalina (FA) (>2 vezes o valor normal), hiperbilirrubinemia >2mg/dl, anemia (hemoglobina<8g/dl), hiperglicemia >300mg/dl, lactato elevado >2,5mEq/L, bacteremia, alteraes pancreticas sugestivas de pancreatite na ecografia abdominal (aumento volume pncreas, diminuio da ecogenicidade, presena de colees peripancreticas ou retroperitoneais) e tomografia abdominal computorizada (edema localizado ou difuso, irregularidade de contornos, apagamento gordura, reas heterogneas com alterao da densidade do parnquima, colees lquidas peripancreticas ou retroperitoneais); 4) ndices de gravidade: Acute Physiological and Chronic Heatlh Evaluation (APACHE) II, Sequential Organ Failure Assessment (SOFA), Simplified Acute Phisiology Score (SAPS) II; 5) teraputica e nutrio: necessidade de ventilao mecnica, tipo de alimentao (enteral e parenteral) e tolerncia, teraputica com propofol a 2%. A tolerncia alimentao enteral foi avaliada pela presena de estase gstrica. Os doentes foram subdivididos em 2 grupos: 1) lipase normal; 2) lipase elevada. Foi feita comparao entre os dois grupos nas variveis estudadas, considerando-se a lipase a varivel dependente. Os valores de amilase e lipase foram dosados em todos os doentes admitidos na unidade de terapia intensiva no perodo considerado. Posteriormente, com o objetivo de identificar as variveis que diferenciam os doentes que no desenvolveram hiperlipasemia dos que a desenvolveram, procedemos a uma anlise discriminante utilizando o mtodo stepwise.
Para o tratamento estatstico dos dados do estudo foi utilizado o programa SPSS (Statistical Package for the Social Science), na verso 16.0 de 2007. Foram calculadas medidas descritivas (frequncias absolutas e percentuais, mdias, mediana e desvios padro e amplitude semi-interquartlica) e medidas inferenciais (teste t de Student para diferena de mdias, teste de Mann-Whitney, teste Quiquadrado, coeficiente Odds Ratio e respectivo intervalo de confiana a 95% e anlise descriminante). Considerado estatisticamente significativo valores de p>0.05. RESUlTADOS Dos 102 doentes envolvidos no estudo, verificou-se que 39,2% desenvolveram hiperlipasemia, estando esta elevada, em mdia, 6,15 dias (mnimo (min)=1, mximo (max)= 30 dias). Destes doentes, 37,5% (n=15) apresentavam valores de lipase superiores a 3 vezes o normal. A mdia da lipase srica foi de 797 UI/ml (min -= 13; mx -4594). O valor mximo de lipase srica (4594 UI/ml) registou-se num doente de 72 anos com falncia respiratria no contexto de uma rickettsiose, no apresentando alteraes radiolgicas e verificando-se elevao da lipase durante 5 dias, com posterior normalizao. A elevao da amilase srica observou-se em 23,5% (n=24) doentes. Destes, 20,8% (n=5) no apresentavam hiperlipasemia, sendo a mdia de amilase neste grupo de 64,8 U/L (min=3; mx=345) e 79,1% (n=19) apresentavam concomitantemente hiperlipasemia sendo nestes a mdia de lipase 140,6 U/L (min=30; max=703). Verificou-se diferena estatisticamente significativa nestes dois grupos de doentes (p<0,05). Dos doentes com hiperamilasemia e hiperlipasemia concomitantes, 52,6% (n=10) apresentavam valores de lipase superiores a 3 vezes o normal, contudo a relao no apresentou significncia estatstica. Eram do sexo masculino 65,7% doentes (Tabela 1), verificandose que a proporo de casos, com ou sem hiperlipasemia, foi semelhante em ambos os sexos. Os doentes que desenvolveram hiperlipasemia apresentaram uma mdia de idades mais baixa, mas a diferena para o grupo dos que no desenvolveu hiperlipasemia no foi estatisticamente significativa (p>0,05). Verificou-se tempo de internao significativamente superior (p<0,001) nos doentes com lipase elevada. Os diagnsticos encontram-se discriminados na tabela 2, no se tendo registrado diferenas com significado estatstico nos dois grupos (p=0,538). Verificou-se maior percentagem de doentes com histria de hbitos etlicos e hepatopatia crnica no grupo com hiperlipasemia, contudo sem significncia estatstica na comparao dos dois grupos como se discrimina na tabela 2. O grupo de
365
doentes com hiperlipasemia apresentou resultados mais elevados nos trs ndices de gravidade estudados (APACHE II, SOFA e SAPS) mas as diferenas para o grupo de doentes que no desenvolveu hiperlipasemia no foram estatisticamente significativas. Em termos de mortalidade, tambm no se verificou diferena estatisticamente significativa entre os dois grupos. No tocante s caractersticas clnicas e analticas dos doentes (Tabela 3) verificamos que os que desenvolveram hiperlipasemia tiveram mais frequentemente sintomas,
Tabela 1 - Variveis demogrficas e clnicas Variveis Sexo masculino Idade (anos) Tempo de internao (dias)* APACHE II SOFA SAPS Mortalidade Histria de hbito etlico Histria de hepatopatia crnica
como hipotenso, hipertermia, elevao das transaminases e fosfatase alcalina, hiperbilirrubinemia, anemia, hiperglicemia e bacteremia. Em relao elevao do lactato a proporo mais elevada no grupo de doentes que no desenvolveu hiperlipasemia . Analisando a tabela 3 podemos constatar que as diferenas estatisticamente significativas ocorrem apenas nas propores de casos de hipertermia, de elevao das transaminases e hiperbilirrubinemia. Em relao ao tipo de alimentao efetuada (Tabela 4) os doentes submetidos a nutrio artificial (parenteral ou
Hiperlipasemia No Sim (n = 62) (n = 40) 40 (64,5%) 27 (67,5%) 55,8 18,5 48,7 20,7 5,0 3,5 13,5 6,2 18,4 5,9 19,8 5,2 6,4 3,8 7,8 3,3 38,9 15,4 41,2 15,3 15 (24,2%) 5 (12,5%) 4 (6,45%) 4 (10%) 3 (4,83%) 2 (5%)
Valor de p 0,757 0,072 <0,001 0,239 0,070 0,476 0,146 0,515 0,971
APACHE - Acute Physiology And Chronic Health Evaluation; SOFA - Sequential Organ Failure Assessment; SAPS - Simplified Acute Physiology Score * Mediana amplitude semi-interquartlica, teste de Mann-Whitney
Tabela 2 - Diagnsticos clnicos Diagnstico (n) Clnico Choque sptico Falncia respiratria Falncia cardaca Sindrome Hellp Ttano Choque anafiltico Cirrgico Cirurgia emergente Cirurgia vascular Cirurgia torcica Cirurgia heptica -Cirurgia gastrointestinal Cirurgia geral Politraumatizado Neurocirrgico TCE Tumor/lesao expansiva Aneurisma Total*
TCE- Traumatismo cranio-enceflico; *p=0,538
Total 28 (27,3%)
42 (41,1%)
32 (31,3%)
102 (100%)
366
Tabela 3 - Caractersticas clnicas e analticas Variveis Sintomas PAS (<90 mmHg) Creatinina (>2 mg/dl) Febre (>38 C) Transaminases (>2 vezes) FA (>2vezes) Bt (>2 mg/dl) Hemoglobina (<8 g) Glicose (>300) Lactato (>2.5 meq/l) Bacteremia Tabela 4 - Teraputica e alimentao Variveis Nutrio parenteral Nutrio enteral Tolerncia alimentao enteral Ventilao mecnica Propofol 2% Hiperlipasemia No Sim (n = 62) (n = 40) 12 (19,4%) 27 (67,5%) 32 (51,6%) 28 (70,0%) 29 (90,6%) 25 (89,3%) 50 (80,6%) 38 (95,0%) 34 (54,8%) 29 (72,5%) Odds ratio (IC95%) 8,6 (3,5 21,6) 2,2 (0,9 5,1) 0,9 (0,2 4,7) 4,6 (1,1 21,6) 2,2 (0,9 5,1) Valor de p <0,001 0,065 0,863 0,040 0,073 Hiperlipasemia No Sim (n = 62) (n = 40) 5 (8,2%) 9 (22,5%) 22 (35,5%) 19 (47,5%) 8 (12,9%) 8 (20,0%) 21 (33,9%) 28 (70,0%) 17 (27,4%) 24 (60,0%) 7 (11,3%) 10 (25,0%) 3 (4,8%) 10 (25,0%) 12 (19,4%) 8 (20,0%) 1 (1,6%) 1 (2,5%) 27 (43,5%) 14 (35,0%) 4 (6,5%) 7 (17,5%) Odds ratio (IC95%) 1,6 (0,7 3,7) 1,7 (0,6 4,9) 4,6 (1,9 10,7) 4,0 (1,7 9,2) 2,6 (0,9 7,6) 6,6 (1,7 25,6) 1,0 (0,4 2,8) 1,6 (0,1 25,7) 0,7 (0,3 1,6) 3,1 (0,8 11,3) Valor de p 0,074 0,227 0,336 <0,001 0,001 0,070 0,003 0,936 1,000 0,390 0,079
Tabela 5 - Resumo dos resultados da anlise discriminante Variveis Coeficiente Nutrio parenteral 1,639 Tempo de internamento 1,175 Febre 0,694 Constante -2,700 Funo discriminante
enteral) apresentaram mais frequentemente hiperlipasemia, verificando-se significncia estatstica relativamente nutrio parenteral quando comparados os dois grupos. No se verificou diferena na tolerncia alimentao enteral nos dois grupos. Tambm se verificou maior proporo de doentes com hiperlipasemia que foram submetidos a ventilao mecnica e teraputica com propofol a 2% (Tabela 4). Verificaram-se diferenas com relevncia estatstica entre grupos em relao ventilao mecnica (p = 0.040). Realizaram estudo radiolgico (ecografia abdominal ou TAC) 19 (30.6%) dos doentes sem hiperlipasemia, tendo sido encontrado um doente com heterogeneidade pancretica. Dos doentes com hiperlipasemia, 17 (42.5%) realizaram estudo radiolgico tendo sido encontradas alteraes ra-
diolgicas em dois: pseudoquisto pancretico em doente submetido a cirurgia de urgncia (lipase mxima de 492UI/l) e presena de colees peripancreticas num doente politraumatizado (lipase mxima 1069 UI/L). Por fim, na anlise discriminante efetuada (Tabela 5) foram utilizadas como variveis independentes aquelas com associao positiva com a hiperlipasemia, ou seja tempo de internao, febre, elevao de transaminases, nutrio parenteral e ventilao mecnica. Esta anlise revelou a existncia de uma nica funo com poder discriminante altamente significativo sendo constituda pelas variveis nutrio parenteral, tempo de internao e febre. Atendendo a estes resultados podemos afirmar que estas so as variveis que mais significativamente diferen-
367
ciaram os doentes que desenvolveram hiperlipasemia dos doentes que no a desenvolveram, e os valores dos coeficientes permitem escrever a funo discriminante do seguinte modo: Hiperlipasemia = 1.639nutrio parenteral + 1.175tempo de internao + 0.694febre 2.700 De acordo com os coeficientes obtidos, os doentes com hiperlipasemia recebem mais frequentemente nutrio parenteral, tendem a apresentar tempo de internao mais elevados e desenvolver quadros febris. De acordo com os resultados da tabela 6, em termos globais a funo classificou corretamente 75 dos 102 doentes, o que corresponde a 73.5% de classificaes corretas.
Tabela 6 - Cruzamento dos resultados observados com os preditos pela funo discriminante Resultados preditos com base na funo discriminante Hiperlipasemia No Sim Resultados observados No Sim 43 (69,4%) 8 (20,0%) 19 (30,6%) 32 (80,0%)
DISCUSSO A elevao da lipase e amilase sricas constitui um problema comum na prtica clnica de uma unidade de terapia intensiva, no sendo exclusiva da inflamao pancretica (12-15). Existem poucos estudos neste mbito, por isso os autores propuseram-se a efetuar um estudo retrospectivo de uma srie de doentes internados numa unidade de terapia intensiva polivalente com internaes tanto do foro cirrgico, neurocirrgico ou clnico, e avaliar a sua incidncia, fatores relacionados e gravidade clnica destes doentes. Nesta srie encontramos esta alterao da lipase srica num nmero significativo de doentes, acompanhando-se de elevao concomitante da amilase num menor nmero de doentes. Como seria de esperar, na maioria dos doentes a hiperamilasemia acompanhou-se de lipase elevada. Na maioria dos casos, esta elevao no atingiu nveis diagnsticos (62.5%), ou seja, superiores a 3 vezes o normal e associou-se a quadro de pancreatite, segundo as diretrizes da ACG, apenas em 4 doentes. Claro que realamos o fato de se tratarem de doentes na maioria dos casos entubados e sedados o que torna o diagnstico clnico problemtico. De fato, encontraram-se doentes com sintomatologia enquadrvel na pancreatite aguda numa minoria de doentes. Os exames imagiolgicos podem nestes doentes desempenhar um papel muito importante no esta-
belecimento do diagnstico. A ultrasonografia abdominal, apesar de ser um exame incuo, apresenta limitaes no estudo do pncreas, nomeadamente baixa sensibilidade no diagnstico de inflamao peripancretica, colees fluidas ou necrose. A TAC abdominal a tcnica gold standard no diagnstico de pancreatite aguda, permitindo confirmar o diagnstico, excluir diagnsicos alternativos e determinar a gravidade e presena de complicaes.(2) Apesar de mais sensvel apresenta, contudo, mais riscos nomeadamente, e segundo alguns autores, agravamento da necrose pancretica por alteraes na microcirculao provocada pelo contraste endovenoso.(2) No nosso estudo encontramos alteraes morfolgicas do pncreas numa minoria de doentes com hiperlipasemia, e dos dois doentes apenas um apresentava elevao maior que trs vezes o valor normal. Contudo, realamos o fato de o estudo radiolgico ter sido efetuado numa pequena percentagem de doentes e segundo critrios mal esclarecidos, limitaes inerentes ao fato de ser um estudo retrospectivo. Como descrito anteriormente, em alguns estudos prospectivos realizados com TAC abdominal em grupos de doentes com caractersticas idnticas, a percentagem de alteraes pequena e com pouco importncia clnica.(7,11,12) No registamos diferenas significativas na incidncia de hiperlipasemia nos doentes do foro clnico ou cirrgico. O doente com o valor de lipase mais elevado apresentava, como j referido, quadro de falncia respiratria no contexto de rickettsiose. Este doente no apresentava elevao concomitante da amilase. Numa reviso da literatura encontram-se descritos poucos relatos de pancreatite aguda nas rickettsioses.(13) No nosso estudo, verificamos tambm que a hiperlipasemia no se acompanhou de maior gravidade clnica, avaliada pelos ndices de prognstico, ou de maior mortalidade. Apesar disso relacionou-se com internao mais prolongada e com presena de ventilao mecnica. A hiperlipasemia nos doentes ventilados poder relacionada com fenmenos isqumicos na microcirculao pancretica e alteraes do tnus vascular da circulao corporal, incluindo presso craniana, provocadas por alteraes dos gases sanguneos e alteraes de presso induzidas pela ventilao. (14,16-18) Nos doentes que fizeram alimentao parenteral encontramos mais frequentemente elevao das enzimas pancreticas, dados corroborados pela literatura, o que poder estar relacionado, por exemplo, com elevao dos triglicerideos sricos ou formao de lama biliar(19,20). No verificamos o mesmo em relao alimentao enteral que mesmo nos doentes com lipase elevada foi bem tolerada, ou seja, no se verificou maior estase gstrica ou ileo paraltico que impossibilitasse esta forma de alimentao.
368
Deve-se citar o fato de esta forma de alimentao ser administrada por sonda naso-gastrica em todos os doentes. No verificamos maior frequncia de hiperlipasemia na utilizao de propofol o que poder estar relacionado com o fato deste frmaco na formulao utilizada (a 2%) apresentar um menor teor lipdico relativamente formulao a 1%.(8,9,21-23) A elevao da lipase srica acompanhou-se tambm de elevao das transaminases e bilirrubina o que poder estar em relao com fenmenos de colestase, nomeadamente maior frequncia de lama biliar nestes doentes. Na anlise multivariada efetuada observamos que os fatores que mais frequentemente diferenciaram os doentes com hiperlipasemia foram o elevado tempo de internao, a presena de nutrio parenteral e a febre. Estas variveis colocam-nos em alerta para a existncia de hiperlipasemia, caso estejam presentes, e possivelmente podero ajudarnos a selecionar os doentes em que realmente ser importante fazer a dosagem das enzimas. CONClUSO Em suma, os resultados globais deste estudo retrospectivo eram os esperados e os encontrados na maioria das referncia bibliogrficas. Embora o nmero da amostra no nos permita tirar concluses com peso estatstico, este estudo alertou-nos para a elevada frequncia de hiperlipasemia nos doentes crticos, que na maioria dos casos no acrescentou gravidade clnica ou maior mortalidade, apesar de se relacionar com internao mais prolongada. Uma minoria de doentes preencheu os critrios de diagnstico de pancreatite aguda. Estes resultados podem-nos indicar que estas elevaes podero constituir, na maioria dos casos, um epifenmeno de uma doena mais grave. Outros estudos sero necessrios para nos ajudarem a interpretar estas alteraes e assim responder a questes frequentemente colocadas por quem lida diariamente com esta situao: necessidade de determinao destas enzimas REFERNCIAS
1. Byrne MF, Mitchell RM, Stiffler H, Jowell PS, Branch MS, Pappas TN, et al. Extensive investigation of patients with mild elevations of serum amylase and/or lipase is low yield. Can J Gastroenterol. 2002;16(12):849-54. Forsmark CE, Baillie J; AGA Institute Clinical Practice and Economics Committee; AGA Institute Governing Board. AGA Institute techical review on acute pancreatitis. Gastroenterology. 2007;132(5):2022-44. Republished in:
por rotina ou s em casos com suspeita clnica mais evidente; nveis de valores que devem suscitar a nossa ateno e que devem implicar realizao de estudos radiolgicos; interveno teraputica, nomeadamente a alterao do tipo de alimentao ou suspenso de frmacos.
ABSTRACT Objectives: Elevated lipase and amylase are commonly found in patients in intensive care unit without a previously recognized pancreatic illness, constituting a diagnostic and therapeutic challenge. The authors therefore proposed to determine the frequency of asymptomatic high serum lipase in critically ill patients, involved risk factors and outcome. Methods: Retrospective study of patients admitted in an intensive care unit from January 1 to December 31, 2006, excluding admissions for acute pancreatitis, history of pancreatic disease, renal insufficiency or lacking of data. Patients were divided in two groups (with and without high serum lipase) that were compared for clinical, laboratory and radiological variables. Statistical analysis: SPSS 13; Students t test and Chi-square test (CI 95%) with statistical significance if p< 0.05). Results: 102 patients were included with high serum lipase was present in 39.2% of patients, mean lipase of 797U/L. Patients with high serum lipase had longer hospital stay (p< 0.001), parenteral nutrition (p< 0.001), ventilator support (p=0.04), fever (p< 0.001), hyperamylasemia (p<0.05), hyperbilirrubinemia (p=0.003) and rise of transaminases (p=0.001), with no significant differences in diagnosis, gender, age, APACHE II, SOFA, SAPS, mortality, hypotension, alkaline phosphatase, hemoglobin, lactate, tolerance to enteral nutrition and use of propofol. Imaging study revealed pancreatic alterations in two patients with high serum lipase. Conclusions: Elevated lipase was commonly found in critical patients, it related with longer length of stay but was not accompanied by increased clinical severity or mortality. It was more frequent with parenteral nutrition. A minority of patients met the criteria of acute pancreatitis. Keywords: Pancreatitis; Lipase; Amylases; Intensive care units Rev Gastroenterol Mex. 2007;72(3):257-85. Manjuck J, Zein J, Carpati C, Astiz M. Clinical significance of increased lipase levels on admission to the ICU. Chest. 2005;127(1):246-50. Comment in: Chest. 2005;127(1):7-10. Banks PA, Freeman ML; Practice Parameters Committee of the American College of Gastroenterology. Practice guidelines in acute pancreatitis. Am J Gastroenterol. 2006;101(10):2379-400. Comment in: Am J Gastroenterol. 2007;102(5):1127; author reply 1127-8.
3.
4.
2.
369
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
Liu KJ, Atten MJ, Lichtor T, Cho MJ, Hawkins D, Panizales E, et al. Serum amylase and lipase elevation is associated with intracranial events. Am Surg. 2001;67(3):215-9; discussion 219-20. Pezzilli R, Morselli-Labate AM, Romboli E, Dibenedetti F, Massa M, Migliori M, et al. Pancreatic involvement during the early phase of shock. JOP. 2002;3(5):139-43. Denz C, Siegel L, Lehmann KJ, Dagorn JC, Fiedler F. Is hyperlipasemia in critically ill patients of clinical importance? An observational CT study. Intensive Care Med. 2007; 33(9):1633-6. Devlin JW, Lau AK, Tanios MA. Propofol-associated hypertriglyceridemia and pancreatitis in the intensive care unit: an analysis of frequency and risk factors. Pharmacotherapy. 2005;25(10):1348-52. Piper SN, Kumle B, Maleck WH, Suttner SW, Fent MT, Boldt J. Effects of postoperative sedation with propofol and midazolam on pancreatic function assessed by pancreatitis-associated protein. Anaesthesia. 2001;56(9):836-40. Yang RW, Shao ZX, Chen YY, Yin Z, Wang WJ. Lipase and pancreatic amylase activities in diagnosis of acute pancreatitis in patients with hyperamylasemia. Hepatobiliary Pancreat Dis Int. 2005;4(4):600-3. Delaney K, Luber S. The relative sensitivity of serum lipase versus amylase for radiological image-positive pancreatitis. Critical Care. 2007;11(Suppl 2):P402. Frank B, Gottlieb K. Amylase normal, lipase elevated: is it pancreatitis? A case series and review of the literature. Am J Gastroenterol. 2000; 94(2):463-9. Comment in: Am J Gastroenterol. 2000;95(3):823-4. Yi SY, Tae JH. Pancreatic abscess following scrub typhus associated with multiorgan failure. World J Gastroenterol. 2007;13(25):3523-5. Santos JS, Elias Jnior J, Scarpelini S, Sankarankutty AL.
15.
16.
17.
18.
19.
20. 21.
22.
23.
Pancreatite aguda: atualizao de conceitos e condutas. Medicina (Ribeiro Preto). 2003;36(2/4):266-82. Beauregard JM, Lyon JA, Slovis C. Using the literature to evaluate diagnostic tests: amylase or lipase for diagnosing acute pancreatitis? J Med Libr Assoc. 2007;95(2):121-6. Pacheco RC, Nishioka SA, Oliveira LCM. Validade da amilasemia e lipasemia no diagnstico diferencial entre pancreatite aguda/crnica agudizada e outras causas de dor abdominal aguda. Arq Gastroenterol. 2003;40(4):233-8. Clavien PA, Robert J, Meyer P, Borst F, Hauser H, Herrmann F, et al. Acute pancreatitis and normoamylasemia. Not an uncommon combination. Ann Surg. 1989;210(5):614-20. Comment in: Ann Surg. 1990;212(5):648-9. Gumaste VV, Roditis N, Mehta D, Dave PB. Serum lipase levels in nonpancreatic abdominal pain versus acute pancreatitis. Am J Gastroenterol. 1993;88(12):2051-5. Buechter KJ, Arnold M, Steele B, Martin L, Byers P, Gomez G, et al. The use of serum amylase and lipase in evaluating and managing blunt abdominal trauma. Am Surg. 1990;56(4): 204-8. Godinho R. Etiopatogenia da pancreatite aguda. Rev Port Med Intensiva. 2000;9(2):123-34. Possidente CJ, Rogers FB, Osler TM, Smith TA. Elevated pancreatic enzymes after extended propofol therapy. Pharmacotherapy. 1998;18(3):653-5. Comment in: Pharmacotherapy. 1999;19(10):1181-2. Nanas S, Angelopoulos E, Tsikriki S, Kritikos K, Voutsinas E, Zervakis D, et al. Propofol-induced hyperamylasaemia in a general intensive care unit. Anaesth Intensive Care. 2007;35(6):920-3. Liu TH, Kwong KL, Tamm EP, Gill BS, Brown SD, Mercer DW. Acute pancreatitis in intensive care unit patients: value of clinical and radiologic prognosticators at predicting clinical course and outcome. Crit Care Med. 2003;31(4):1026-30.