Paula Pederiva 2023 Meensinaassoviar

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Artigo

Me ensina a assoviar?
A musicalidade da criança surda

Do you teach me to whistle?


The musicality of the deaf child

Tatiane Ribeiro Morais de Paula, Dra.


Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal
[email protected]

Patricia Lima Martins Pederiva, Dra.


Universidade de Brasília
[email protected]

Como citar este texto:


PAULA, T. R. M.; PEDERIVA, P. L. M. Me ensina a assoviar? A musicalidade
da criança surda. Diálogos Sonoros, v. 2, n. 1, p. 1-19, jan./jun. 2023.
Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/dialogossonoros/article/view/30843.

Submetido em: 18/11/2022.


Aceito em: 26/06/2023.

Diálogos Sonoros, Natal, v. 2, n. 1, p. 1-19, jan./jun. 2023 | 1


Me ensina a assoviar? A musicalidade da criança surda

RESUMO

O presente artigo faz parte da tese intitulada “A musicalidade da criança


surda: educação e desenvolvimento” e tem como objetivo trazer reflexões a
respeito da organização de processos educativos voltados para o
desenvolvimento da musicalidade da criança surda. Dado que esse
desenvolvimento é constituído por suas vivências e experiências educativas
na cultura, é possível organizar processos educativos voltados para o
desenvolvimento da musicalidade da criança surda. O pressuposto teórico
que norteia a investigação é a Teoria Histórico-Cultural que compreende que
o desenvolvimento humano, na cultura, extrapola os impedimentos orgânicos
existentes. Este desenvolvimento engloba a dialética do impedimento
orgânico (biológico) com o cultural, e por isso está vinculado às experiências
e relações com o outro na cultura. O método utilizado foi a pedologia, ciência
do desenvolvimento da criança, assim denominada por Vigotski na Rússia
soviética. A partir desta ótica percebe-se que o desenvolvimento infantil
acontece de forma cíclica; possui uma desproporcionalidade e há a existência
de mudanças qualitativas neste processo. A participante da pesquisa, Paula, é
uma menina surda bilateral que faz uso da Libras e da oralidade para se
comunicar. Assim, este estudo nos possibilita trazer reflexões que fogem às
padronizações dos estereótipos dentro da prática em educação musical, dos
processos educativos voltados para o desenvolvimento da musicalidade da
pessoa surda. Considerando essas ideias, os processos educativos devem
respeitar as experiências e vivências musicais trazidas pela criança surda e,
dessa forma, alimentar sua autonomia, sua reflexão em torno do seu saber, do
seu aprender e do seu ensinar.

Palavras–chave: Teoria histórico-cultural. Pessoa surda. Educação musical.


Musicalidade. Processos educativos.

ABSTRACT

This article is part of the thesis entitled "The musicality of the deaf child:
education and development" and aims to bring reflections on the organization
of educational processes oriented to the development of musicality of the deaf
child. Understanding that this development is constituted by their
experiences and educational experiences in culture, it is possible to organize
educational processes oriented to the development of musicality of the deaf
child, called by Vigotski. In the sovietic Russia. The theoretical assumption
that guides the investigation is the cultural-historical theory that understands
the human development in culture goes beyond the existing organic
impediments. This development encompasses the dialectic of organic
(biological) and cultural impediments, and therefore is linked to experiences
and relationships with the other in the culture. The method used was
pedology, the science of child development. From this point of view, realize

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that the child development happens cyclically; it has a disproportionality and


there are qualitative changes in this process. The research participant, Paula,
is a bilaterally deaf girl who uses Libras and orality to communicate. Thus, this
study allows us to bring reflections that escape the standardization of
stereotypes within the practice of music education, the educational processes
oriented to the development of musicality of the deaf person. Considering
these ideas, the educational processes must respect the musical radical
experience and experiences brought by the deaf child and, in this way, feed
their autonomy, their reflection around their knowledge, their learning and
their teaching.

Keywords: Historical-cultural Theory. Deaf person. Musical education.


Musicality. Educational process.

1 INTRODUÇÃO

É possível perceber que ainda encontramos, na área da educação musical, a


concepção de que nem todas as pessoas são seres musicais, perpetuando ideias equívocas
sobre a musicalidade da pessoa surda, por exemplo. A única condição efetiva, entretanto,
para o desenvolvimento da musicalidade nos seres humanos é que sejam oferecidas todas
e quaisquer oportunidades educativas para isso (PAULA; PEDERIVA, 2018).
Para início das reflexões aqui propostas temos que apontar algumas definições
necessárias para a perfeita compreensão do que entendemos por musicalidade e música.
A musicalidade é comportamento humano relacionado ao universo sonoro (PEDERIVA,
2009), assim, direcionamos e pontuamos de onde estas reflexões têm seu início sobre a
musicalidade. Essa elucidação é ainda necessária visto que, muitas vezes, há uma
confusão envolvendo a musicalidade e seu vínculo ao desempenho musical, isto é, ao uso
convencional da música para a formação musical de profissionais, por exemplo; e/ou o
uso convencional da música em aulas de canto e coral, sendo analisados aspectos, como
mencionado, de desempenho para a classificação desta musicalidade.
Música enquanto atividade musical é muito mais do que o senso comum faz ou
acredita, é uma atividade singular que possui papel no desenvolvimento humano, como
afirmado por Pederiva (2009):

[...] como atividade social organizada por meio de signos e de


instrumentos, ela modifica o próprio homem, permite-lhe o controle
sobre seu comportamento, o controle da natureza e modifica o rumo de
seu desenvolvimento. Ela inaugura novas funções humanas. [...] A

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atividade musical ligou-se às características e às necessidades singulares


de cada agrupamento humano (PEDERIVA, 2009, p. 59).

Musicalidade e música podem caminhar juntas, mas são elementos distintos neste
processo de desenvolvimento. Nem sempre preciso de uma música para desenvolver a
musicalidade da pessoa, pois a música pode ser uma atividade que emerge da relação com
os sons e silêncios organizados que proporcionam o desenvolvimento da musicalidade, e
como diz Pederiva (2009, p. 26) “[...] música é o que os homens fazem e ela age como
ferramenta de organização do trabalho humano”. Dessa maneira, sempre que falarmos
sobre musicalidade, nosso ponto de partida é pensar sobre o comportamento humano
relativo ao universo sonoro. Por universo sonoro entendemos todos os fenômenos
sonoros e que se ligam ao campo de possibilidades que acontecem em nosso organismo e
que está para além das experiências exclusivas da audição. As próprias características
presentes no som como altura, intensidade, timbre e duração, perpassam e adentram todo
o corpo humano, todo o organismo, engendrando e oportunizando vivências sonoras que
não têm a ver especificamente com a especificidade da percepção auditiva. Portanto, a
vivência com o universo/fenômeno sonoro perpassa todo nosso corpo.
À vista disso, as pessoas deveriam gozar do direito de terem consideradas todas as
suas experiências e vivências com o universo sonoro, sejam essas relativas à audição ou
não, visto que, geralmente, quando não estão vinculadas ao campo auditivo elas são
negligenciadas por propostas de educação musical excludentes, como bem mencionado
por Pederiva (2009):

Por sua vez, aqueles que não se adaptam ao padrão de aprendizagem


estabelecido pela escola de música formal, ou seja, o padrão de corpos
previamente aptos para a atividade - tônus muscular apropriado, audição
capaz de reconhecer e identificar freqüências, resposta física rápida para
a execução de ritmos, reconhecimento e reprodução de tempos e
dinâmicas, entre outros - são excluídos (PEDERIVA, 2009, p. 13).

Essa exclusão é vista também quando estudantes surdos não são convidados a
participar das aulas de artes em momentos em que a atividade educativa proposta em sala
de aula diz respeito à dança que, além do uso da música, que também envolve a criação de
movimentos, pressupondo a necessidade da audição para que seja possível a realização
da tarefa proposta. Há, de maneira categórica, este imaginário social relativo do vínculo
estrito da audição ao som.

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A possibilidade das pessoas surdas vivenciarem sua musicalidade tal como a


concebemos, ou seja, das mais diversas formas, não é reconhecida/contemplada na
maioria das práticas em educação musical que, às vezes, nem consideram esta alternativa,
por entenderem que música e surdez não se relacionam. Mércia Santana Mathias, em seu
artigo intitulado “Produção acadêmica sobre música e surdez: o que revelam as
publicações brasileiras” mostrou o seguinte: “[...] não encontramos muitos argumentos
que destaquem a importância das vivências musicais para pessoas surdas em qualquer
idade” (MATHIAS, 2019, p. 74-75).
Podemos perceber, mais uma vez, como há certa negligência no campo da
educação musical quando pensamos na pessoa surda. Não são considerados outros modos
de vivência da musicalidade humana e ela não é percebida como comportamento humano
frente ao universo sonoro, antes, diz respeito à aprendizagem convencional da música. O
desenvolvimento da musicalidade não está condicionado somente à aprendizagem de um
instrumento, mas este é uma possibilidade. Rever estes conceitos e pensar novas
estruturas oportuniza à pessoa surda sair do limbo do campo das artes, e da educação.
Concordamos sobre a importância destas vivências musicais para que a pessoa
surda se perceba um ser musical. Paula e Pederiva (2018) evidenciaram o quanto ter
experiências e vivências sonoras, desde a mais tenra idade, acarreta nesta percepção da
pessoa surda como pertencente a este universo, que desde cedo lhe é privado por pessoas
que desconhecem o fato de sermos, todos, seres musicais. Quanto mais for ofertado às
pessoas surdas, mais elas se perceberão e se constituirão como seres musicais.
Vale destacar que, em Vigotski 1 (2003) as experiências são responsáveis por
engendrar a consciência do nosso comportamento, portanto, seja a pessoa surda ou não,
quanto mais experiências tiver com o universo sonoro, mais percepção e apropriação terá
deste comportamento, isto é, de sua musicalidade. Isto reforça a importância da
experiência e vivência musical na vida de cada pessoa para este desenvolvimento.
É corriqueiro percebermos que algumas pessoas ainda não se atentaram ao fato de
que o indivíduo surdo é um ser musical, quiçá, vislumbrar a ideia de ele gostar de música,
e da possibilidade de desenvolvimento de sua musicalidade por meio de uma atividade

1 Ao longo do texto optamos pela grafia única do nome Vigotski, porém, nas referências será
escrito conforme a literatura regente.

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musical educativa em que haja a possibilidade de expressão, criação e interpretação do


universo sonoro por meio de suas vivências musicais.
Por conta dessas situações, lembramos Gonçalves (2017) quando nos apresenta e
nos propõe, em sua tese, um outro olhar para a prática da atividade musical, num fazer
que contemple todas as pessoas:

Tudo leva a crer que as investigações no campo da educação musical


raramente objetivam detectar sua essência e ao mesmo tempo seus
principais mitos, suas nebulosidades e lacunas metodológicas a fim de
proporcionar uma nova síntese oriunda dos limites e avanços alcançados
pelas teorias e práticas dualistas, que por serem inúmeras e indistintas,
acabaram tornando-se contraditórias, confusas e que somente fazem
sentido no âmbito de determinados contextos, em situações localizadas
que, em resumo, não se expressam em uma educação musical voltada
para as mais variadas tradições musicais e pessoas, em suas inteirezas
(GONÇALVES, 2017. p. 17).

Os aspectos que trazemos para reflexão com base no exposto, fogem às


padronizações dos estereótipos no âmbito do fazer em educação musical. Se, e quando
partirmos do princípio educativo de que todos somos seres de possibilidades e seres
musicais, não há o certo e o errado no processo pedagógico em música, nas práticas
existentes sobre a atividade musical educativa. Não há a dicotomia do bom ou o ruim
partindo deste princípio do respeito às diversas maneiras de se expressar, criar e
interpretar o universo/fenômeno sonoro. Há narrativas deste fazer, e para cada uma
delas, uma determinada intencionalidade pedagógica se faz possível.
Porém, se partimos da suposição de que a musicalidade existe somente para, e em
algumas pessoas, vemos nesta premissa um pressuposto equivocado e que cerceia
possibilidades de desenvolvimento da musicalidade do ser humano, visto que essa é
condição e comportamento humano relativo ao mundo sonoro. Por esse prisma, há que
se ter vigilância quanto às atividades educativas propostas, pois elas podem alijar o ser
humano de um processo de desenvolvimento nessa atividade, que lhe pertence por direito.

2 DESENVOLVIMENTO HUMANO

Embora ao longo deste trabalho incluamos a surdez no desenvolvimento humano


com impedimento orgânico por meio da Teoria Histórico-Cultural, sabemos da discussão

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sobre considerá-la deficiência ou diferença, e concordamos com o pensamento de que


deve ser vista a partir da “diferença linguística, em função da necessidade de se respeitar
uma comunidade que se expressa e se desenvolve por outra via que não a oral” (SILVA,
2002, p. 36). À título de compreensão para o leitor e leitora do motivo de trazermos a obra
da Defectologia de Vigotski, sempre que falarmos sobre a pessoa surda, ela será vista, em
todos os seus direitos, conforme a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui a Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, por isso, abordada, também, nos
aspectos da pessoa com deficiência (BRASIL, 2015).
A manutenção da ciência enquanto saber que legitima o ser humano em
determinada especificidade de desenvolvimento é o que nos leva a refletir sobre este
poder dado a ela, atrelado também ao saber científico da medicina. A grande questão é
pensar que, mesmo diante da existência de um desenvolvimento padrão, isto é, de uma
regularidade de desenvolvimento humano, ele não pode ser visto, e não podemos deixar
que seja percebida e validada como qualitativamente melhor porque, quando falamos de
desenvolvimento humano, nos direcionamos para processos qualitativamente diferentes
que aparecem com mais, ou menos regularidade.
As percepções que temos das pessoas são cotidianamente construídas enquanto
acontece a vida. E é nesse contexto que nossos posicionamentos precisam mostrar e
elucidar que essa pessoa, em meio as suas especificidades de desenvolvimento, é um ser
humano e como tal, precisa ser visto assim, não por meio da imposição da normalidade,
“[...] Como se o ser diferente fosse sinônimo de sobra, de desperdício. Como se o diferente
não pudesse viver entre os homens e devesse se retirar da vista do mundo” (SKLIAR,
2019, p. 155). Há ainda o costume de olharmos, o que nos é diferente, o que não nos
pertence, com estranhamento, como algo anormal, com o eco do passado de que este
outro vale menos que nós.
Iniciamos, apoiados pela Teoria Histórico-Cultural, um novo olhar para o
desenvolvimento biológico humano. Aqui, partimos do princípio de que o desenvolvi-
mento da condição humana, diferentemente dos animais, extrapola o que é considerado
biologicamente “atípico”. Portanto, a pessoa surda tem seu pleno desenvolvimento
vinculado às suas experiências e relações com o outro, aos seus vínculos sociais. Assim,

A maneira como percebemos o ser humano engloba a dialética do


desenvolvimento de seu biológico irregular na cultura e, assim,

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caminhamos a partir de premissas positivas, em que a pessoa é


considerada como um ser de possibilidades. Assim, precisamos organizar
os espaços educativos e sociais para proporcionar seu pleno desenvolvi-
mento atrelado as suas especificidades. Por exemplo, pensar o
desenvolvimento humano da criança com deficiência nos permite
percebê-la como um ser de possibilidades, pois, a existência da
irregularidade orgânica não impede este desenvolvimento. O que ocorre
é um condicionamento social relacionado as suas possibilidades pois, “[...]
O que decide o destino da pessoa, em última instância, não é o defeito em
si mesmo, mas suas consequências sociais, sua realização psicossocia2”
(VIGOTSKI, 2012b, p. 19 apud PAULA; PEDERIVA, 2022, p. 8).

A sociedade é composta por desenvolvimentos humanos com e sem deficiência,


sendo pensados segundo suas especificidades e diferenças qualitativas. Como mencio-
nado, não há hierarquia entre eles. Infelizmente, a sociedade caminha em passos lentos
na sua organização para as pessoas cujo desenvolvimento orgânico apresenta, segundo
Vigotski (2012b), algum defeito.
Um adendo para o sentido da palavra defeito nas citações de Vigotski. Quando ele
escreveu sua obra Defectologia (1924), à época, usou esta palavra no campo biológico do
ser humano, para designar o impedimento biológico da pessoa com deficiência. Conforme
preconizado pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização
das Nações Unidas (2006) e a Lei Brasileira de Inclusão nº 13.146 de 2015,

Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de


longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em
interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação
plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais
pessoas. (BRASIL, 2015).

Fazendo uso da explicação de Fonseca e concordando com seu pensamento, temos


por impedimento de natureza física, mental, intelectual ou sensorial:

[...] atributos, peculiaridades ou predicados pessoais, os quais, em


interação com as diversas barreiras sociais, podem excluir as pessoas que
os apresentam da participação na vida política, aqui considerada no
sentido amplo. As barreiras de que se trata são os aspectos econômicos,
culturais, tecnológicos, políticos, arquitetônicos, comunicacionais, enfim,

2 “[...] Lo que decide el destino de la persona, en última instancia, no es el defecto en sí mismo, sino
sus consecuencias sociales, su realización psicosocial” (VIGOTSKI, 2012b, p. 19).

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a maneira como os diversos povos percebem aqueles predicados3. O que


se nota culturalmente é a prevalência da ideia de que toda pessoa surda,
cega, paraplégica, amputada ou com qualquer desses impedimentos, foge
dos padrões universais e por isto têm um “problema” que não diz respeito
à coletividade (FONSECA, 2012, p. 48).

Quando pensamos que o desenvolvimento é uma unidade dialética entre o orgâ-


nico e o cultural, podemos perceber que a condição social da deficiência perpassa muito
mais que a existência do impedimento orgânico, ela se apresenta e representa, para a
pessoa que carrega o rótulo da deficiência, uma sensação constante de inadequação social,
trazendo um sentimento de inferioridade. “[...] Adler denomina sentimento de inferioridade
(Mindenwentigkeitsgefuhl) ao complexo psicológico que surge sobre a base da degradação da
posição social por causa do impedimento4” (VIGOTSKI, 2012b, p. 18, tradução nossa).
Pensar o desenvolvimento humano a partir da Teoria Histórico-Cultural, engloba
o que foi dito, isto é, perceber o desenvolvimento natural (orgânico) e o cultural (social)
como uma unidade dialética, como uma fusão. Vigotski afirma que “[...] Ambos os planos
de desenvolvimento - o natural e o cultural - coincidem e se fusionam um com outro5”
(VIGOTSKI, 2012b, p. 26, tradução nossa).
Quando consideramos que o desenvolvimento humano envolve esses dois aspectos
como parte de um único processo percebemos que, na cultura, torna-se possível a compensação
do desenvolvimento com impedimento orgânico realizando assim, caminhos confluentes.
Quando falamos de compensação tratamos de processos compensatórios em nosso
organismo, considerando diversos fenômenos psicológicos, e diretamente relacionados
às funções psíquicas superiores. Elas são novas estruturas geradas a partir das já existentes
no organismo, que têm como alavanca o desenvolvimento humano na cultura. Esses fenô-
menos psicológicos estão relacionados à memória, atenção, atividade combina tória,
pensamento abstrato (VIGOTSKI, 2021).

3 A palavra “predicado” é utilizada aqui no sentido poético, como fez o poeta Chico Buarque na
canção Choro Bandido: “Mesmo que você feche os ouvidos/ E as janelas do vestido/ Minha
musa vai cair em tentação/ Mesmo porque estou falando grego/ Com sua imaginação/ Mesmo
que você fuja de mim por labirintos e alçapões/ Saiba que os poetas como os cegos/ Podem ver
na escuridão” (nota da citação).
4 “[...] Adler denomina sentimiento de inferioridad (Mindenwentigkeitsgefuhl) al complejo
psicológico que surge sobre la base de la degradación de la posición social a causa del defecto”
(VIGOTSKI, 2012b. p. 18).
5 “[...] Ambos planos del desarrollo – el natural y el cultural - coinciden y se fusionan uno con el
otro”. (VIGOTSKI, 2012b, p. 26).

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Um dos processos compensatórios acontece quando:

“[...] umas funções se substituem por outras, traçam-se vias colaterais e


ele (o processo de desenvolvimento cultural), em seu conjunto, oferece
possibilidades completamente novas para o desenvolvimento da criança
anormal6” (VYGOTSKI, 2012a, p. 152-153, tradução nossa).

Percebemos, então, que

A compensação é definida de forma diferente ao senso comum quando,


por exemplo, alguém menciona que a compensação da pessoa cega
acontece pela existência de um “tato mais desenvolvido” e da pessoa
surda por uma “excelente visão”. Embora esses aspectos existam, em
nada são relacionados à compensação mencionada aqui; o fato do tato
mais desenvolvido e de uma visão mais aguçada diz respeito somente ao
uso mais frequente de tais sentidos, ao seu uso contínuo e habitual para
determinadas ações do cotidiano. A compensação no campo da THC 7
compreende a explicação a seguir: “[...] Se por causa de uma menos valia
morfológica ou funcional algum órgão não pode cumprir plenamente suas
tarefas, o sistema nervoso central e o aparato psíquico do homem
assumem a tarefa de compensar o funcionamento dificultado deste órgão.
Criam sobre o órgão ou a função insuficiente uma sobreestrutura
psicológica que tende a proteger o organismo no ponto falho, no ponto
ameaçado. [...] O defeito converte-se, por conseguinte, em ponto de
partida e principal força motriz do desenvolvimento psíquico da
personalidade8” (VIGOTSKI, 2012b, p. 15 apud PAULA; PEDERIVA, 2022,
p. 9-10, tradução nossa).

Esses pontos destacados a respeito da dialética do desenvolvimento com, ou sem


impedimento orgânico do ser humano e dos processos compensatórios, incluem o
desenvolvimento de sua musicalidade. Nossa musicalidade é constituinte humana, está
presente em nossa organização biológica e se desenvolve na cultura. Os processos
compensatórios, as vias colaterais psicofisiológicas existentes neste processo evidenciam
a importância e urgência de oferecermos o máximo de experiências para que ocorra o

6 “[...] unas funciones se sustituyen por otras, se trazan vías colaterales y ello, en su conjunto, ofrece
posibilidades completamente nuevas para el desarrollo del niño anormal” (VIGOTSKI, 2012a, p.
152-153).
7 THC diz respeito a Teoria Histórico-Cultural de Vigotski.
8 “[...] Si a causa de una minusvalía morfológica o funcional algún órganono puede cumplir
plenamente sus tareas, el sistema nervioso central y el aparato psíquico del hombre asumen la tarea
de compensar el funcionamiento difi cultado de ése órgano. Crean sobre el órganoo la función
insufi ciente una sobreestrutura psicológica que tiende a proteger al organismo en el puntodébil,
en el punto amenazado. […] El defecto se convierte, por consiguiente, en punto de partida y
principal fuerza motriz del desarrollo psíquico de la personalidad” (VIGOTSKI, 2012b, p. 15).

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pleno desenvolvimento integral do ser humano, tanto no aspecto de sua musicalidade,


quanto em qualquer outro aspecto.
A unidade com que nosso organismo funciona é capaz de se beneficiar de toda e
qualquer experiência. Em se tratando da musicalidade é fundamental, mais
especificamente, contarmos com as experiências musicais, para que suas vivências sejam
marcos neste desenvolvimento.
Para a pessoa surda,

[...] aprender a ouvir música e reproduzir sons e pulsações é adquirir um


“estilo” de ouvir, um uso novo do corpo, é enriquecer a imagem corporal.
Seja este corpo um sistema motor ou um poder perceptivo, ele certa-
mente não é apenas um objeto para um “eu penso”, ele é um agrupamento
de significados vividos que se dirige ao equilíbrio. Algumas vezes forma-
se uma nova organização de significados, os movimentos anteriores
integram-se em entidades motoras novas, os dados visuais transforma-se
em entidades sensoriais, os dados auditivos transformam-se em outras
entidades mais complexas (HAGUIARA-CERVELLINI, 1986, p. 9).

Dessa forma fica evidenciado também o papel que as experiências trazem nas
novas organizações do nosso organismo, em seus processos compensatórios estruturados
e possibilitados pelo desenvolvimento cultural.

3 O MÉTODO

É a Teoria Histórico-Cultural que norteia nosso caminho, sendo aqui compre-


endida como o próprio método de investigação, nos fenômenos analisados em relação à
pessoa surda e suas vivências musicais. Trazemos, portanto, e para melhor compreensão
das nossas análises, o método pedológico. Com ele estabelecemos os limites da realidade
que estamos buscando, ou seja, na própria teoria delimitamos nosso objeto de estudo, que
é o desenvolvimento da criança, e apontamos as especificidades existentes ao estudarmos
a pedologia gerada por Vigotski.
Então, o que seria a pedologia? Em Vigotski (2018), temos que esta é a ciência do
desenvolvimento da criança e compreende o desenvolvimento infantil a partir de algumas
características, como exemplo: o desenvolvimento que acontece de forma cíclica; possui
uma desproporcionalidade e, há a existência de mudanças qualitativas neste processo.

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Na pedologia, conforme Vigotski (2018), considera-se que o desenvolvimento


acontece de forma cíclica, e não linear, em que o tempo histórico é considerado, ou seja,
nosso desenvolvimento está envolto em momentos de elevações, quedas e retrações. Não
se encontra em uma linha reta. É uma dinâmica circular. Também não está engessado em
um tempo cronológico, fundado em etapas, em que este acontece estanque e isolado. Caso
não ocorra naquele tempo, daquele jeito, a criança costuma ser considerada como atrasada
em seu desenvolvimento.
Aqui, pelo contrário, ela passa a ser comparada com ela mesma para que haja uma
compreensão de qual momento em seu processo ela se encontra, e para tentar compre-
ender como ela pode se desenvolver por meio de processos educativos organizados
intencionalmente para isso.
Quanto à desproporcionalidade no desenvolvimento podemos tomar como refe-
rência o crescimento dos membros do corpo. Às vezes, os braços estão maiores que as
pernas, e a cabeça apresenta desproporção em relação ao corpo. De igual modo, as funções
psíquicas superiores (memória, atenção voluntária etc.), que se desenvolvem de forma
dinâmica. Assim, o organismo e a personalidade vão se reestruturando em cada novo
momento durante o processo de desenvolvimento.

[...] Na vida mental da criança, num determinado período de


desenvolvimento, nunca ocorre que, digamos, sua percepção, sua
memória, sua atenção, seu pensamento se desenvolvam de forma
completamente regular e por igual. Sempre algum aspecto de sua vida
mental se desenvolve mais rapidamente e outros, mais devagar
(VIGOTSKI, 2018a, p. 24).

Em Vigotski (2018a), como aludido, temos que as funções psíquicas superiores,


como a atenção, memória voluntária, pensamento abstrato, são fruto do desenvolvimento
cultural do ser humano. Elas possuem como fundamento, uma base orgânica, mas seu
desenvolvimento acontece na cultura. Isso abre portas para encarar os processos
educativos como caminhos possíveis para o desenvolvimento humano.
Outra característica da pedologia (Vigotski, 2018a): o desenvolvimento da criança
possui mudanças qualitativas em seu processo, assim como na metamorfose de uma lagarta
em borboleta, em que um dado momento do processo há transformação da lagarta em
casulo e depois em borboleta, acontecendo alterações qualitativas, e não quantitativas. A

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borboleta não é melhor que o casulo, que não é melhor que a lagarta, ambos fazem parte de um
todo, e possuem características distintas em determinados momentos de seu desenvolvimento.
Ainda pensando o método pedológico, ou seja, a maneira de se investigar o
desenvolvimento da criança, temos outra característica presente: o caráter genético
comparativo. Devemos enfatizar este ponto pois, significa comparar a criança a ela
mesma, diferentemente de um método puramente comparativo que realiza a comparação
entre várias crianças.

4 VIVÊNCIA SONORA

A pesquisa realizada e aqui relatada teve como contexto o ambiente escolar,


considerando os acontecimentos cotidianos que transbordam vida e musicalidade, de compor-
tamentos musicais, criados e expressos por Paula para além do espaço físico que tivemos.
Paula, a participante da investigação, é uma menina alegre, divertida, amorosa,
surda bilateral, por vezes tímida, outras vezes, é comunicativa, embora nem sempre seja
possível compreender sua fala oral, sendo apoiada pelo uso da língua brasileira de sinais
- Libras. Enquanto sua intérprete educacional passei cinco dias da semana, durante 5h por
dia, junto à Paula. Começávamos nossas atividades às 7h30 e finalizávamos às 12h30.
Durante esse período tivemos nossos momentos de conversa paralela ao conteúdo minis-
trado pela professora, o que nos permitiu trocar experiências, informações e, ao mesmo
tempo, usufruir de uma constante observação sobre este processo de desenvolvimento de
sua musicalidade.
Nesse caminhar, com base nos modos de vivência da musicalidade da pessoa surda,
buscamos organizar processos educativos que, por meio dos comportamentos musicais
expressos por ela, nos apontassem pistas a respeito do desenvolvimento de sua musicalidade.
Em se tratando da metodologia da pesquisa, percebemos que as observações
diárias realizadas e registradas em áudio e vídeo, bem como o uso de conversas informais,
como ferramentas metodológicas, nos serviram como recursos disponíveis e viáveis para
o nosso fazer metodológico, sem engessar, sem amarrar, sem padronizar, respeitando,
sobretudo, as especificidades presentes num fazer baseado na Teoria Histórico-Cultural.
Dentre algumas vivências sonoras em que Paula demonstrou o desenvolvimento
de sua musicalidade pontuamos o momento que teve início quando Paula me viu
assoviando. Vale lembrar que a musicalidade, enquanto comportamento musical que é,

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Me ensina a assoviar? A musicalidade da criança surda

diz respeito à criação, exploração e interpretação dos sons, seja a partir do próprio corpo
ou de outros instrumentos/ferramentas culturais.
A vivência a seguir, pode exemplificar um pouco mais sobre a constituição de seres
musicais e a organização de processos educativos para o desenvolvimento da musicali-
dade da criança surda no que diz respeito à exploração dos sons a partir do próprio corpo.
Lembrar de uma música e desejarmos assovia-la, batucá-la, estalar os dedos em
seu acompanhamento ou, e ainda, realizar tudo isso na presença da música, expressam
comportamentos musicais que conseguimos perceber no processo investigativo. Porém,
algumas vezes ele não se exterioriza efetivamente, visto que “[...] a música nos motiva para
alguma coisa, age sobre nós de modo excitante porém mais indefinido, ou seja, de um
modo que não está diretamente vinculado a nenhuma reação concreta, a nenhum
movimento ou atitude” (VIGOTSKI, 1999, p. 319).
A relação fenômeno sonoro e audição, som e ouvido é tão forte, enraizada na cultura,
que muitas vezes não abre espaço para outros olhares. O que demonstramos aqui é
exatamente o oposto, as pessoas surdas podem assoviar, batucar e cantarolar uma música.
E da mesma maneira que imitamos outros processos, este também pode ser imitado.
Paula me viu assoviando e perguntou:

Paula: - O que você está fazendo?


Pesquisadora: - Estou assoviando. Lembrei de uma música.
Paula: - Eu não sei assoviar. Me ensina?
Pesquisadora: - Sim. É parecido com assoprar uma vela de aniversário e precisa de
treino…

O papel dos educadores e educadoras extrapola a mera organização de processos


educativos calculados, algumas vezes de maneira fria, em busca de resultados por si só. A
responsabilidade pelo processo, e não somente pelo resultado, enriquece as relações e
proporciona um desenvolvimento saudável visto que,

O educador, com suas palavras, seus gestos, e até mesmo com seu olhar,
pode estar, de alguma forma, comunicando algo à criança. Quem nunca se
sentiu contente ou motivado ao ver que o professor sorriu alegremente
após uma resposta correta? Um simples “parabéns!” ou mesmo um
“muito bem, continue assim” são capazes de influenciar fortemente a

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PAULA, T. R. M.; PEDERIVA, P. L. M.

aprendizagem do aluno, gerando consequências positivas e incalculáveis


(BELING; LUSTOSA, 2014, p. 3).

Dessa forma, quando Paula pediu para ensiná-la a assoviar, a única resposta
plausível foi a que executamos. Não houve objeção em momento algum. Paula demonstrou
interesse em explorar os sons de outras formas, de descobrir possibilidades a partir do
próprio corpo, evidenciando o quanto ela se percebia musical e neste pequeno diálogo,
organizamos o processo educativo para o desenvolvimento de sua musicalidade, ou seja,
a instrução do assovio, visto que “[...] a instrução deve ajustar-se não ao nível do desenvol-
vimento atual, mas à zona de desenvolvimento iminente” (VIGOTSKI, 2021, p. 150).
Paula se percebe musical e sabemos disso por causa do seu comportamento. Ela
poderia ter ignorado o fato de ter me visto assoviando, o que não seria de se estranhar,
visto que ao longo da constituição da pessoa surda há, diversas vezes, um distanciamento
em relação ao fenômeno sonoro/musical. Essa atitude é rotineiramente imposta pelas
pessoas não surdas a partir da ideia equivocada de que é necessário a audição para se ter
qualquer experiência com os sons.
Ela poderia também dizer que não sabia, que não era capaz porque, sendo uma
pessoa surda, seria mais difícil fazê-lo, e isso não ocorreu. Sucedeu exatamente o oposto,
ela optou pela oportunidade da experiência sonora e, quanto mais ela deseja criar,
explorar, experimentar os sons, seu conhecimento se expande ampliando também sua
vivência, desenvolvendo sua musicalidade, selando cada vez mais a tomada de
consciência de ser musical que é.
A pele é o maior órgão do sentido, portanto seria mais que natural usufruir dessa
descoberta para fazer som, para desenvolver música, para oportunizar o desenvolvi-
mento da musicalidade. Montagu (1988), em seu estudo sobre a pele nos diz:

Após o nascimento, a pele é convocada a constituir muitas respostas


adaptativas novas a um meio ambiente ainda mais complexo do que
aquele ao qual esteve exposta até então, no útero. São transmitidos pelo
meio atmosférico, além dos deslocamentos de ar, gases, partículas,
parasitas, vírus, bactérias, mudanças na pressão, na temperatura, na
umidade, na luz, na radiação e muitas mais (MONTAGU, 1988, p. 25).

E ainda “[...] o desenvolvimento de sua sensibilidade depende, em grande medida,


do tipo de estimulação ambiental recebida” (MONTAGU, 1988, p. 24). Ao ouvirmos uma
música, por exemplo, todos nós estamos sob esta estimulação sensorial, porém, as pessoas

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Me ensina a assoviar? A musicalidade da criança surda

não surdas acabam usando a audição em contrapartida ao uso direto da pele, ou da visão,
pelas pessoas surdas.
Imaginemos então, a quantidade de estímulos que a pessoa surda sente em sua
pele. Por não ser regida por experiências sonoras a partir do órgão da audição, ela pode
captar, por sua pele, inúmeras sensações que, por vezes, nós, pessoas não surdas, não
captamos, ou demoramos a captar. E aqui vale ressaltar que não é uma questão de que
sejam mais sensíveis às vibrações, por exemplo, mas pelo fato de ter sua percepção sonora
aguçada pela, e a partir da pele que “[...] pertence à classe dos órgãos denominados
exteroceptores porque recolhe sensações de fora do corpo” (MONTAGU, 1988, p. 113).
Sendo assim, sabemos que para todo o desenvolvimento humano é de extrema
importância ofertar o máximo de possibilidades pois, “[...] Quanto mais a criança viu,
ouviu e vivenciou, mais ela sabe e assimilou; maior é a quantidade de elementos da
realidade de que ela dispõe em sua experiência” (VIGOTSKI, 2018b, p. 25), inclusive para
se perceber musical. Portanto, a intenção sempre foi ofertar à Paula todas as experiências
sonoras possíveis para potencializar o desenvolvimento de sua musicalidade.
O desenvolvimento humano é um processo cíclico e acontece em unidade
(VIGOTSKI, 2018a), portanto, Paula desenvolve sua musicalidade à medida que está se
desenvolvendo como ser humano. Embora nossa ênfase seja sobre o aspecto de sua
musicalidade, é impossível fragmentar este processo. Nada nele é isolado, há uma unidade
ímpar no funcionamento do corpo.
Se falamos do uso do corpo como possibilidade para desenvolver a musicalidade,
seja por meio do assovio, do estalar dos dedos, dos sons elaborados pela voz, podemos
dizer então que nosso corpo é um instrumento musical? Concordamos com a reflexão que
Consorte (2013) traz, de maneira muito interessante e importante, acerca do corpo
enquanto “recurso musical” em contraponto a “instrumento musical”, vejamos:

Dependendo de como usamos a terminologia, estaremos optando por


valores diferentes. Por exemplo, se, em vez de usarmos a palavra
‘instrumento’, usarmos a palavra ‘recurso’, estaremos transformando a
visão de mundo atribuída ao corpo. Nós somos o nosso próprio corpo e,
ao considerá-lo um instrumento, no sentido de ‘objeto’ ou ‘utensílio’,
estamos atribuindo este valor a nós mesmos. Diferentemente, quando
dizemos que o corpo é um recurso, no sentido de ‘origem’ ou ‘fonte’,
exercitamos uma outra percepção: ao produzir música a partir dele,
estamos produzindo música a partir de nós mesmos. Esta diferença é
crucial para entendermos o significado da música que é produzida a

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PAULA, T. R. M.; PEDERIVA, P. L. M.

partir dos sons do corpo, prática que sempre nos acompanhou, desde
nossas origens (CONSORTE, 2013).

Desse modo, temos na organização do processo educativo para o desenvolvimento


da musicalidade de Paula a utilização de seu corpo enquanto recurso musical, capaz de
produzir sons e fazer música.
A intencionalidade educativo-musical, aqui, no contexto do assovio, era Paula
poder me observar e depois imitar e perceber que, usando nosso corpo como recurso
musical, podemos fazer música e nos desenvolvermos musicalmente. Os processos
educativos englobaram também a organização de um momento em que Paula pôde
assistir ao vídeo da música cantarolada, mesmo que num segundo momento, haja vista
que ela estava envolvida em outra atividade, bem como a prática do assovio, pela imitação.
Processos educativos extrapolam o espaço físico de uma sala de aula, pois, a
amplitude da vida, dos elementos constitutivos em processos educativos são todos oportu-
nidades para o desenvolvimento humano em suas relações humanas, por meio de diversas
experiências e vivências.
Embora sendo um ser musical, o comportamento social da criança surda seria entendido
como não participar de atividades sonoras, mas, em meio a cultura, quando lhe são ofertadas
experiências sonoras, ela tem a oportunidade de organizar seu comportamento musical.
Assim, seu desenvolvimento não é estanque, continua a cada dia que novas
experiências sonoras são possibilitadas, seja na escola ou na vida. Quando demonstramos
que organizando processos educativos é possível desenvolver sua musicalidade, a
intencionalidade educativa nesses processos potencializa este desenvolvimento. Isso
ocorre visto que podemos, a todo instante, reorganizar as práticas educativas, assim,
possibilitando que outras crianças, no processo de desenvolvimento de sua musicalidade,
também se percebam musicais.
Portanto, ao ensinarmos à Paula o assovio, a utilização do seu corpo como instru-
mento musical, como possibilidade do fazer música, organizamos um processo educativo
capaz de proporcionar a ela experiências e vivências sonoras que embasarão, também,
seu comportamento futuro quanto ao universo sonoro.
Nesta vivência, Paula esteve amparada pelo fazer da educadora que, a partir da
Teoria Histórico-Cultural, conseguiu organizar processos educativos permeados pela
percepção de ser musical que somos e de possibilidades, para o desenvolvimento da

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Me ensina a assoviar? A musicalidade da criança surda

musicalidade de Paula, uma criança surda que se percebe musical e tem, a partir deste
olhar, uma ampliação de suas vivências sonoras.
Assim, pensar novas e outras práticas educativas a partir das experiências e vivências
sonoras que as pessoas surdas nos apresentam demonstra a possibilidade de organizar esses
processos em muitos ambientes educativos, não somente no âmbito educacional.

REFERÊNCIAS

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professor de música e preconceito em sala de aula. In: ENCONTRO REGIONAL SUDESTE
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