Paula Pederiva 2023 Meensinaassoviar
Paula Pederiva 2023 Meensinaassoviar
Paula Pederiva 2023 Meensinaassoviar
Me ensina a assoviar?
A musicalidade da criança surda
RESUMO
ABSTRACT
This article is part of the thesis entitled "The musicality of the deaf child:
education and development" and aims to bring reflections on the organization
of educational processes oriented to the development of musicality of the deaf
child. Understanding that this development is constituted by their
experiences and educational experiences in culture, it is possible to organize
educational processes oriented to the development of musicality of the deaf
child, called by Vigotski. In the sovietic Russia. The theoretical assumption
that guides the investigation is the cultural-historical theory that understands
the human development in culture goes beyond the existing organic
impediments. This development encompasses the dialectic of organic
(biological) and cultural impediments, and therefore is linked to experiences
and relationships with the other in the culture. The method used was
pedology, the science of child development. From this point of view, realize
1 INTRODUÇÃO
Musicalidade e música podem caminhar juntas, mas são elementos distintos neste
processo de desenvolvimento. Nem sempre preciso de uma música para desenvolver a
musicalidade da pessoa, pois a música pode ser uma atividade que emerge da relação com
os sons e silêncios organizados que proporcionam o desenvolvimento da musicalidade, e
como diz Pederiva (2009, p. 26) “[...] música é o que os homens fazem e ela age como
ferramenta de organização do trabalho humano”. Dessa maneira, sempre que falarmos
sobre musicalidade, nosso ponto de partida é pensar sobre o comportamento humano
relativo ao universo sonoro. Por universo sonoro entendemos todos os fenômenos
sonoros e que se ligam ao campo de possibilidades que acontecem em nosso organismo e
que está para além das experiências exclusivas da audição. As próprias características
presentes no som como altura, intensidade, timbre e duração, perpassam e adentram todo
o corpo humano, todo o organismo, engendrando e oportunizando vivências sonoras que
não têm a ver especificamente com a especificidade da percepção auditiva. Portanto, a
vivência com o universo/fenômeno sonoro perpassa todo nosso corpo.
À vista disso, as pessoas deveriam gozar do direito de terem consideradas todas as
suas experiências e vivências com o universo sonoro, sejam essas relativas à audição ou
não, visto que, geralmente, quando não estão vinculadas ao campo auditivo elas são
negligenciadas por propostas de educação musical excludentes, como bem mencionado
por Pederiva (2009):
Essa exclusão é vista também quando estudantes surdos não são convidados a
participar das aulas de artes em momentos em que a atividade educativa proposta em sala
de aula diz respeito à dança que, além do uso da música, que também envolve a criação de
movimentos, pressupondo a necessidade da audição para que seja possível a realização
da tarefa proposta. Há, de maneira categórica, este imaginário social relativo do vínculo
estrito da audição ao som.
1 Ao longo do texto optamos pela grafia única do nome Vigotski, porém, nas referências será
escrito conforme a literatura regente.
2 DESENVOLVIMENTO HUMANO
2 “[...] Lo que decide el destino de la persona, en última instancia, no es el defecto en sí mismo, sino
sus consecuencias sociales, su realización psicosocial” (VIGOTSKI, 2012b, p. 19).
3 A palavra “predicado” é utilizada aqui no sentido poético, como fez o poeta Chico Buarque na
canção Choro Bandido: “Mesmo que você feche os ouvidos/ E as janelas do vestido/ Minha
musa vai cair em tentação/ Mesmo porque estou falando grego/ Com sua imaginação/ Mesmo
que você fuja de mim por labirintos e alçapões/ Saiba que os poetas como os cegos/ Podem ver
na escuridão” (nota da citação).
4 “[...] Adler denomina sentimiento de inferioridad (Mindenwentigkeitsgefuhl) al complejo
psicológico que surge sobre la base de la degradación de la posición social a causa del defecto”
(VIGOTSKI, 2012b. p. 18).
5 “[...] Ambos planos del desarrollo – el natural y el cultural - coinciden y se fusionan uno con el
otro”. (VIGOTSKI, 2012b, p. 26).
6 “[...] unas funciones se sustituyen por otras, se trazan vías colaterales y ello, en su conjunto, ofrece
posibilidades completamente nuevas para el desarrollo del niño anormal” (VIGOTSKI, 2012a, p.
152-153).
7 THC diz respeito a Teoria Histórico-Cultural de Vigotski.
8 “[...] Si a causa de una minusvalía morfológica o funcional algún órganono puede cumplir
plenamente sus tareas, el sistema nervioso central y el aparato psíquico del hombre asumen la tarea
de compensar el funcionamiento difi cultado de ése órgano. Crean sobre el órganoo la función
insufi ciente una sobreestrutura psicológica que tiende a proteger al organismo en el puntodébil,
en el punto amenazado. […] El defecto se convierte, por consiguiente, en punto de partida y
principal fuerza motriz del desarrollo psíquico de la personalidad” (VIGOTSKI, 2012b, p. 15).
Dessa forma fica evidenciado também o papel que as experiências trazem nas
novas organizações do nosso organismo, em seus processos compensatórios estruturados
e possibilitados pelo desenvolvimento cultural.
3 O MÉTODO
borboleta não é melhor que o casulo, que não é melhor que a lagarta, ambos fazem parte de um
todo, e possuem características distintas em determinados momentos de seu desenvolvimento.
Ainda pensando o método pedológico, ou seja, a maneira de se investigar o
desenvolvimento da criança, temos outra característica presente: o caráter genético
comparativo. Devemos enfatizar este ponto pois, significa comparar a criança a ela
mesma, diferentemente de um método puramente comparativo que realiza a comparação
entre várias crianças.
4 VIVÊNCIA SONORA
diz respeito à criação, exploração e interpretação dos sons, seja a partir do próprio corpo
ou de outros instrumentos/ferramentas culturais.
A vivência a seguir, pode exemplificar um pouco mais sobre a constituição de seres
musicais e a organização de processos educativos para o desenvolvimento da musicali-
dade da criança surda no que diz respeito à exploração dos sons a partir do próprio corpo.
Lembrar de uma música e desejarmos assovia-la, batucá-la, estalar os dedos em
seu acompanhamento ou, e ainda, realizar tudo isso na presença da música, expressam
comportamentos musicais que conseguimos perceber no processo investigativo. Porém,
algumas vezes ele não se exterioriza efetivamente, visto que “[...] a música nos motiva para
alguma coisa, age sobre nós de modo excitante porém mais indefinido, ou seja, de um
modo que não está diretamente vinculado a nenhuma reação concreta, a nenhum
movimento ou atitude” (VIGOTSKI, 1999, p. 319).
A relação fenômeno sonoro e audição, som e ouvido é tão forte, enraizada na cultura,
que muitas vezes não abre espaço para outros olhares. O que demonstramos aqui é
exatamente o oposto, as pessoas surdas podem assoviar, batucar e cantarolar uma música.
E da mesma maneira que imitamos outros processos, este também pode ser imitado.
Paula me viu assoviando e perguntou:
O educador, com suas palavras, seus gestos, e até mesmo com seu olhar,
pode estar, de alguma forma, comunicando algo à criança. Quem nunca se
sentiu contente ou motivado ao ver que o professor sorriu alegremente
após uma resposta correta? Um simples “parabéns!” ou mesmo um
“muito bem, continue assim” são capazes de influenciar fortemente a
Dessa forma, quando Paula pediu para ensiná-la a assoviar, a única resposta
plausível foi a que executamos. Não houve objeção em momento algum. Paula demonstrou
interesse em explorar os sons de outras formas, de descobrir possibilidades a partir do
próprio corpo, evidenciando o quanto ela se percebia musical e neste pequeno diálogo,
organizamos o processo educativo para o desenvolvimento de sua musicalidade, ou seja,
a instrução do assovio, visto que “[...] a instrução deve ajustar-se não ao nível do desenvol-
vimento atual, mas à zona de desenvolvimento iminente” (VIGOTSKI, 2021, p. 150).
Paula se percebe musical e sabemos disso por causa do seu comportamento. Ela
poderia ter ignorado o fato de ter me visto assoviando, o que não seria de se estranhar,
visto que ao longo da constituição da pessoa surda há, diversas vezes, um distanciamento
em relação ao fenômeno sonoro/musical. Essa atitude é rotineiramente imposta pelas
pessoas não surdas a partir da ideia equivocada de que é necessário a audição para se ter
qualquer experiência com os sons.
Ela poderia também dizer que não sabia, que não era capaz porque, sendo uma
pessoa surda, seria mais difícil fazê-lo, e isso não ocorreu. Sucedeu exatamente o oposto,
ela optou pela oportunidade da experiência sonora e, quanto mais ela deseja criar,
explorar, experimentar os sons, seu conhecimento se expande ampliando também sua
vivência, desenvolvendo sua musicalidade, selando cada vez mais a tomada de
consciência de ser musical que é.
A pele é o maior órgão do sentido, portanto seria mais que natural usufruir dessa
descoberta para fazer som, para desenvolver música, para oportunizar o desenvolvi-
mento da musicalidade. Montagu (1988), em seu estudo sobre a pele nos diz:
não surdas acabam usando a audição em contrapartida ao uso direto da pele, ou da visão,
pelas pessoas surdas.
Imaginemos então, a quantidade de estímulos que a pessoa surda sente em sua
pele. Por não ser regida por experiências sonoras a partir do órgão da audição, ela pode
captar, por sua pele, inúmeras sensações que, por vezes, nós, pessoas não surdas, não
captamos, ou demoramos a captar. E aqui vale ressaltar que não é uma questão de que
sejam mais sensíveis às vibrações, por exemplo, mas pelo fato de ter sua percepção sonora
aguçada pela, e a partir da pele que “[...] pertence à classe dos órgãos denominados
exteroceptores porque recolhe sensações de fora do corpo” (MONTAGU, 1988, p. 113).
Sendo assim, sabemos que para todo o desenvolvimento humano é de extrema
importância ofertar o máximo de possibilidades pois, “[...] Quanto mais a criança viu,
ouviu e vivenciou, mais ela sabe e assimilou; maior é a quantidade de elementos da
realidade de que ela dispõe em sua experiência” (VIGOTSKI, 2018b, p. 25), inclusive para
se perceber musical. Portanto, a intenção sempre foi ofertar à Paula todas as experiências
sonoras possíveis para potencializar o desenvolvimento de sua musicalidade.
O desenvolvimento humano é um processo cíclico e acontece em unidade
(VIGOTSKI, 2018a), portanto, Paula desenvolve sua musicalidade à medida que está se
desenvolvendo como ser humano. Embora nossa ênfase seja sobre o aspecto de sua
musicalidade, é impossível fragmentar este processo. Nada nele é isolado, há uma unidade
ímpar no funcionamento do corpo.
Se falamos do uso do corpo como possibilidade para desenvolver a musicalidade,
seja por meio do assovio, do estalar dos dedos, dos sons elaborados pela voz, podemos
dizer então que nosso corpo é um instrumento musical? Concordamos com a reflexão que
Consorte (2013) traz, de maneira muito interessante e importante, acerca do corpo
enquanto “recurso musical” em contraponto a “instrumento musical”, vejamos:
partir dos sons do corpo, prática que sempre nos acompanhou, desde
nossas origens (CONSORTE, 2013).
musicalidade de Paula, uma criança surda que se percebe musical e tem, a partir deste
olhar, uma ampliação de suas vivências sonoras.
Assim, pensar novas e outras práticas educativas a partir das experiências e vivências
sonoras que as pessoas surdas nos apresentam demonstra a possibilidade de organizar esses
processos em muitos ambientes educativos, não somente no âmbito educacional.
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