APOROFOBIA - Relatório Final - Censo Pop Rua, 2023
APOROFOBIA - Relatório Final - Censo Pop Rua, 2023
APOROFOBIA - Relatório Final - Censo Pop Rua, 2023
CDD 305.5692098134
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................ 1
INTRODUÇÃO: UM CENSO PARA TODOS E TODAS NÓS .............................................................. 2
TECENDO UM CENSO ATRAVÉS DO “AQUILOMBAMENTO” ........................................................ 9
CONSIDERAÇÕES SOBRE A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO EM RUA ............................................. 22
CONDIÇÕES DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA DO RECIFE .................................................. 30
SITUAÇÃO DE RUA E RELAÇÕES FAMILIARES ................................................................... 31
CIDADANIA ....................................................................................................................... 43
CONDIÇÃO DE SAÚDE ....................................................................................................... 52
SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ...................................................................... 62
SATISFAÇÃO DE NECESSIDADES BÁSICAS E LAZER ........................................................... 69
EDUCAÇÃO E TRABALHO .................................................................................................. 75
A RUA E O TRABALHO ...................................................................................................... 76
O TRABALHO E A RUA ...................................................................................................... 77
CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA ................................................................. 90
CENSO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA DO RECIFE ................. 91
AS DIFERENTES CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA ........................... 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 113
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 121
ANEXOS ..................................................................................................................................... 125
APRESENTAÇÃO
1
INTRODUÇÃO: UM CENSO PARA TODOS E TODAS NÓS
2
muitas mãos e que se adequa às expectativas científicas e sociais, tal como o sapato deve caber
nos pés do seu dono.
O Brasil não conta com dados que resultem de pesquisas sistemáticas sobre a população
em situação de rua. O censo demográfico ainda não inclui entre seus objetivos a averiguação do
número total da população não domiciliada, porque os dados censitários são coletados a partir
da base familiar. A ausência de dados sistemáticos sobre essas pessoas justifica a realização de
pesquisas censitárias municipalizadas, com vistas à implementação de políticas públicas voltadas
para diminuir sua “invisibilidade” social.
A produção de um censo para uma população não-domiciliada é um processo desafiador,
pois, só recentemente, o Brasil passou a contar a população que vive sob os efeitos e
determinações da ausência de moradia. Somente nos últimos anos, foram produzidos dados
oficiais resultantes de pesquisas sistemáticas, e, destacamos, ainda se aprende a lidar com os
desafios postos para a contagem e a produção de indicadores em relação a uma população não
referenciada pela habitação. A importância de dar visibilidade a esse segmento tão diverso segue
em debate e disputa na sociedade, no campo das gestões públicas, movimentos sociais e dos
órgãos /institutos de pesquisa.
Como é sobre a gestão municipal que recai a responsabilidade de implementação de
políticas públicas voltadas para essa população, há a necessidade de estimativas mais precisas
para que cada município possa planejar suas ações. Essa necessidade fundamentou a
recomendação para que a contagem da população em situação de rua fosse incorporada ao Censo
demográfico nacional de 2020 para suprir a demanda por dados populacionais, o que, até esta
data, ocorreu de forma limitada.
Neste material, as/os leitoras/es terão acesso ao relatório final do Censo Pop Rua Recife.
Retomamos, neste documento conclusivo, a apresentação e a reflexão sobre as diferentes etapas
que compuseram este processo de investigação, a partir do que chamamos de aquilombamento.
Neste censo, apresentaremos dados relacionados às características sociais, culturais, econômicas
e educacionais da população em situação de rua.
A apresentação desses dados virá associada a algumas reflexões teóricas e políticas que
consideramos importantes, mas destacamos que, em nenhum dos pontos, o debate tem a
pretensão de apontar todos os aspectos possíveis, há muitos outros. Priorizamos alguns e
esperamos que, após a publicização dos dados, muitos outros aspectos sejam levantados e
refletidos por todos e todas nós: Estado, sociedade civil, movimentos sociais, Universidades,
pessoas em situação de rua.
Para a feitura deste censo, utilizamos o mesmo conceito operacional de “população em
situação de rua”, utilizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome/MDS,
3
no contexto da pesquisa censitária feita em 2008/2009, com o qual foi estabelecida a própria
definição depois constante na Política Nacional para População em Situação de Rua (PNPSR)
(Decreto Nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009), qual seja a de um...
A opção pelo conceito refere-se à perspectiva de repercussão e diálogo nas instâncias das
políticas públicas, da academia e da sociedade civil. Essa definição nos projeta para a possibilidade
de diálogo, no cenário nacional, principalmente nos campos da produção de dados,
planejamento, implementação e avaliação de políticas públicas. Estabelecido o conceito
orientador, compreendemos coletivamente que, a partir dele, havia espaço para adequar o que
foi demandado, não nos restringindo apenas aos dados da população total, mas incluindo o perfil
sociodemográfico desse grupo na cidade.
Conforme já mencionamos, o primeiro investimento em levantamento de dados com
base censitária em relação a esse público aconteceu no período de 2007 a 2008, durante o
governo Lula, por meio do MDS, ocasião em que essa problemática passou a fazer parte da agenda
do Governo Federal. Antes, porém, ainda em 2006, a Presidência da República havia criado um
Grupo de Trabalho Interministerial, expandindo o debate para as áreas da saúde, educação,
direitos humanos, habitação e cultura. Foi a partir desse amplo processo de escuta e construção
coletiva que o MDS realizou o primeiro levantamento nacional. A pesquisa foi realizada em 71
municípios brasileiros, incluindo capitais e cidades com mais de 300 mil habitantes.
Vieram dessa pesquisa as informações com base nas quais foi construída a PNPSR, que
passou a reconhecer a população em situação de rua, a partir do conceito anteriormente citado,
como um grupo populacional marcado pela heterogeneidade, que possui como aspectos em
comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência
de moradia regular. A definição ainda assevera que tal população habita os espaços públicos e
dele retira renda de forma provisória ou permanente. Além disso, um grande segmento dessa
população faz uso das unidades de acolhimento institucionais, tais como os albergues noturnos e
as pousadas sociais.
As ações para que o único Censo nacional realizado até o momento acontecesse estavam
articuladas com a atuação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da
Política Nacional para a População em Situação de Rua (CIAMP-RUA), instituído em conjunto com
a Política Nacional para a População em Situação de Rua.
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Desde 2009, o Comitê solicitou ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que
incluísse o segmento da população em situação de rua no Censo demográfico nacional. No
entanto, o IBGE destacou a dificuldade de realizar pesquisas com populações sem domicílio fixo,
uma vez que exigiria metodologias de amostragem, logística de campo e abordagem do
entrevistado bastante distintas do padrão usualmente utilizado. Logo, a possibilidade de um
Censo nacional da população em situação de rua ainda está sendo debatido. No presente
momento, temos algumas capitais com censos já produzidos ou em processo de realização.
Tivemos acesso e dialogamos com essas experiências e com seus dados.
O Censo Pop Rua Recife foi realizado como parte do esforço de materializar as ações
previstas na Política Nacional da População em Situação de Rua (Decreto Federal Nº 7053/2009),
que institui, no art. 7, inciso III: “a contagem oficial da população em situação de rua”. Desde a
publicação do decreto em 2009, há um esforço de diferentes segmentos para que seja realizada
uma ação nacional no sentido de conhecer, em número, a população em situação de rua, tendo
havido experiências em alguns estados e municípios.
Diante da ausência de informações que demonstrem as características dos diferentes
sujeitos em situação de rua num cenário mais amplo (nacional), as instituições governamentais e
não-governamentais vêm optando por usar os dados coletados pelo Sistema Único de Assistência
Social (SUAS), baseados no Cadastro Único para Programas Sociais, e com os quais são elaborados
os Censos do SUAS (Censo SUAS).
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) estimou, a partir de dados do Censo
Suas, que havia cerca de 221.869 pessoas em situação de rua no Brasil, em março de 2020. O
valor é 140% maior que aquele estimado em 2012, que foi 101.854. Tais números são, por si sós,
preocupantes, embora sejam bastante subestimados, uma vez que os dados se referem a apenas
35% dos municípios brasileiros e não levam em consideração o grande contingente de pessoas
que não estão cadastradas no CadÚnico.
Hungaro et. al. (2020) afirmava, com base em pesquisa feita a partir de dados coletados
em 2015, que, do total de pessoas em situação de rua (um pouco mais de 100 mil naquele
momento), dois quintos (40,1%) habitavam em municípios com mais de 900 mil habitantes e mais
de três quartos (77,02%) habitavam em municípios de grande porte, com mais de 100 mil
habitantes. Estimava-se também que, nos 3.919 municípios com até 10 mil habitantes, viviam
6.757 pessoas em situação de rua (6,63% do total), ou seja, o problema concentra-se fortemente
em municípios maiores.
Trata-se, porém, de um levantamento insuficiente para dimensionar a população em
situação de rua, uma vez que muitas dessas pessoas não estão cadastradas, e outras sequer têm
documentos pessoais. Pensando nessa fragmentação dos dados e na dificuldade de acesso às
5
informações sobre essa população, o Censo Pop Rua Recife visa sistematizar e tornar públicos os
dados sobre as características sociodemográficas desse grupo na capital pernambucana.
Acreditamos que o fato de não termos dados generalizáveis para a população em situação
de rua não representa a razão exclusiva para a sua “invisibilidade”, uma vez que a presença desse
grupo dá âncora e estabelece paisagens e sociabilidades hostis nas cidades. A aversão à população
pobre é estruturante em nossa história e na sociedade. Adela Cortina denomina esse movimento
como Aporofobia: aversão/ hostilidade a corpos considerados dissidentes ou desviantes, aqueles
e aquelas que aparentemente não têm algo a contribuir, dentro de uma perspectiva
utilitarista/produtivista da sociedade (Cortina, 2020, p. 16)1.
De acordo com Souza (2020), sobre esses corpos presentes historicamente no cotidiano
das cidades pesa estigmas e tabus relacionados à impureza e à destituição de sua condição de
humanidade. Eles são considerados os “não assimiláveis”, “aqueles que não têm nada a oferecer
na sociedade de troca que vivemos [...] tornados invisíveis e estigmatizados pelos outros” (Souza,
2020, p. 45). Essa realidade histórica vivenciada pela sociedade brasileira apresenta-se
fortemente imbricada na gênese da formação social, política e econômica do país, e nos convida
a refletir sobre a atual organização da dinâmica social manifestada, também, nas diferentes
expressões da questão social, a exemplo do acesso irregular/precário à moradia e do acesso à
renda de modo informal ou ilegal.
Considerados os aspectos mais gerais de uma sociedade como a brasileira, em que a
desigualdade e a iniquidade são extremas, destacamos que, desde a década de 1980,
representantes de entidades de defesa de direitos humanos, da Igreja Católica e dos movimentos
sociais realizam ações de organização política dos interesses das pessoas em situação de rua.
Reivindica-se a condição de sujeito de direito e da atenção governamental para a criação de
políticas públicas voltadas às suas necessidades. A partir da segunda metade dos anos 2000,
importantes garantias legais e políticas são observadas no ordenamento jurídico.
Nessa direção, destaca-se a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em
1993; a Política Nacional da Assistência Social (PNAS), em 2004; e a Tipificação Nacional dos
Serviços Socioassistenciais, em 2009, que apresentou os serviços especializados da Assistência
Social para a população em situação de rua. Entretanto, apesar da inegável importância, a política
de assistência social ainda apresenta relevantes dificuldades na execução de serviços para esse
segmento, em todo o Brasil. A ausência de informações prejudica a implementação de políticas
1 No processo de escrita deste documento final, tivemos acesso à releitura do termo proposta pelo Padre
Júlio Lancelotti e pelo ativista Paulo Escobar, Pobrefobia, no sentido de torná-lo mais acessível à sociedade
brasileira, falante da língua portuguesa. Em vez de Aporofobia, oriundo do grego “poros” (pobre), propõe-
se o termo, Pobrefobia, que tem o mesmo significado: “medo ou aversão aos pobres”
6
públicas voltadas para este contingente e reproduz a (in)visibilidade perversa que caracteriza o
cotidiano de homens, mulheres, crianças, adolescentes e famílias que estão em situação de rua,
principalmente quando se consideram as barreiras de acesso às políticas sociais e ao direito de
viver com dignidade nas cidades.
O modelo teórico-metodológico considerado para a realização desta pesquisa censitária
fundamentou-se na perspectiva da pesquisa-ação, onde o Censo resulta de estratégias de
pesquisa e de intervenção, produzidas em diferentes etapas, promovendo o levantamento do
quantitativo e do perfil das pessoas. Esse modelo incluiu a feitura coletiva da cartografia da
presença de pessoas em situação de rua e seu fluxo na cidade, da contagem, da aplicação de
formulário censitário sobre características demográficas, socioeconômicas e inserções nas
políticas públicas municipais. No intuito de criar arenas de diálogo para refletir sobre a população
em situação de rua da cidade do Recife, grupos focais foram realizados, com meninos e meninas
com trajetória de rua, para abordar suas histórias de vida.
Atuamos, portanto, a partir da perspectiva do engajamento, onde o desenvolvimento das
ações de pesquisa se deu em meio à busca de maior acessibilidade desse segmento ao campo
dos direitos humanos, das políticas públicas e da politização de sua presença na sociedade e na
cidade. Nesse processo, objetivamos realizar a pesquisa-ação, por meio do levantamento
quantitativo e do perfil das pessoas em situação de rua no Recife, considerando principalmente o
fato de que, nos últimos anos, com os efeitos da pandemia, os serviços especializados para a
população em situação de rua sofreram importante impacto. O crescimento no quantitativo dos
atendimentos e a visualização de novas pessoas nas ruas em busca de sobrevivência revelaram o
aumento da extrema pobreza e da insegurança alimentar nos vários territórios da cidade.
No contexto dos fenômenos sociais, a situação de rua está entre aqueles que mais
expõem a pessoa ao que poderia ser nominado de “exclusão social”, isso porque as formas de
inserção e os vínculos estabelecidos, principalmente com a sociedade de um modo geral e com
as instituições em particular, são bem frágeis e pouco estabelecidos, dando a impressão inicial de
que homens, mulheres e famílias estão excluídos.
Sobre esse contexto, Robert Castel (2011) apresenta uma outra perspectiva. Para o autor,
a exclusão vem se impondo contemporaneamente como um conceito de amplo espectro, capaz
de “dar nome” a todas as formas de miséria do mundo, entre elas, as que citamos aqui: o não
acesso ou acesso irregular à habitação e, em decorrência disso, o não alcance a uma série de
outros direitos que poderiam garantir o desenvolvimento como expressão da liberdade. Para o
autor, a exclusão vincula-se à “questão social”, e seu uso indiscriminado está associado ao pouco
empenho reflexivo sobre o que caracteriza atualmente a “questão social”. Assim, deve ser
7
substituída, em cada caso, “por uma noção mais apropriada para nomear e analisar os riscos e
fraturas sociais atuais”.
Falar sobre esses processos é mais que urgente e necessário no Brasil, pois as ações e
movimentos da história recente revelam um contexto de Necropolítica em curso, ou, como alerta
Márcia Leite (2020), o aprofundamento e a crescente legitimação do que a autora denomina de
“biopolítica da precariedade”. Esse conceito diz respeito aos segmentos populacionais vistos,
senão como “inimigos”, como “quase inimigos”, sem direito à vida, sem direito à proteção, sem
direito a dizer e a ser ouvidos.
Muitos dos fatos recentes têm relação direta com a história social do Brasil, uma das
últimas nações a deixar o sistema escravocrata como mediador das relações socioeconômicas. O
passado é orientador das relações, no tempo presente, e tem impacto significativo no modo como
olhamos e percebemos, no cotidiano, as experiências da população em situação de rua,
sobretudo, quando colocamos em destaque intersecções nos demarcadores de identidade, como
classe, raça e gênero.
A população em situação de rua, sem moradia e sem arranjo familiar referenciado em
unidade domiciliar, requer maior e melhor atuação por parte do Estado, para além dos campos
da assistência social e da saúde. É preciso que consigam caminhar nas veredas da incorporação e
da implementação de políticas públicas. A compreensão da população em situação de rua como
demanda “exclusiva” dessas políticas é um processo estabelecido e pouco refletido, permeado de
inferências do senso comum.
As pessoas em situação de rua, segundo Hungaro et. al. (2020), comumente chamadas
de mendigos, andarilhos, vadios e drogados, compõem um grupo caracterizado pela invisibilidade
social, remetendo à marginalidade, ao crime e ao uso de drogas. Não há identificação ou empatia,
e o estigmatizado é silenciado em seu direito de fala. A sociedade e a justiça são isentadas de
qualquer responsabilidade em relação as trajetórias desses indivíduos. Com isso, Souza (2016)
explana que essa população só é tolerada para exercer os serviços mais penosos, sujos e
perigosos, a baixo preço, para o conforto dos extratos de renda mais altos, e isso se deu através
do tempo poupado em atividades produtivas pela classe média alta.
Ao escrever o relatório final do censo realizado em outubro de 2022, na cidade do Recife,
lidamos, portanto, com um processo recente, que ainda provoca muitas tensões e inquietações
em nós, nos atravessando de forma bastante orgânica. Apresentamos dados de uma história do
tempo presente. Temos a certeza de que este produto se torna público com capacidade de diálogo
e projeção para o campo das demandas da gestão pública e, também, para o atendimento das
demandas apresentadas pela e para a população em situação de rua do Recife e do Brasil.
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A construção do Censo foi um processo que revelou a nossa capacidade de produzir
espaços de discussão e produzir processos efetivos de escuta. Temos a convicção de que nos
aproximamos, o máximo possível, da construção do “Censo mais bonito do Brasil”, isso porque,
em tempos tão hostis, construir um processo pautado na escuta, no respeito às experiências e às
trajetórias, talvez, seja uma das coisas mais bonitas que se pode fazer.
Este relatório está organizado de modo a apresentar as análises realizadas a partir dos
dados obtidos na pesquisa sociodemográfica. Antes, porém, revisaremos os procedimentos
metodológicos e os dados da primeira etapa do censo, ambos já apresentados em Miranda et al
(2023). Os dados da segunda etapa serão apresentados na forma de gráficos e tabelas, todos
comentados e seguidos de reflexões sobre a realidade social das ruas. Devido à abrangência das
informações, os dados serão apresentados de acordo com a seguinte subdivisão: educação e
trabalho; situação de rua e relações familiares; cidadania; condições de saúde; segurança
alimentar e nutricional; satisfação de necessidade básicas e lazer; crianças e adolescentes.
Ao final, desenvolvemos uma reflexão sobre todo o processo, no sentido da defesa da
realização do censo como instrumento não apenas voltado ao aprimoramento das políticas
públicas, mas para o letramento político e cidadão da sociedade e, de maneira especial, das
pessoas em situação de rua.
Agradecemos, logo de início, a todos e todas que participaram deste processo, de
diferentes formas, nas diferentes etapas. Agradecemos à gestão pública municipal, aos/as
trabalhadores e trabalhadoras dos serviços públicos municipais, das diferentes políticas.
Agradecemos à sociedade civil, estudantes, integrantes de coletivos, organizações, docentes.
Agradecemos, de forma prioritária, ao MNPR do estado e do município e às pessoas que vivem
ou viveram em situação de rua. Este processo foi muito intenso, por vezes nos cortou na carne.
Pulsamos juntos, juntas e juntes por mudança e pelo compromisso coletivo e partilhado de uma
sociedade digna e promotora do cuidado, a fim de que todos e todas vivam melhor.
9
O contexto social marcado pelo crescimento da pobreza urbana e por ataques
sistemáticos à democracia fez com que a equipe de pesquisadores buscasse desenvolver um
trabalho mais circular e horizontal, uma vez que o fazer científico é também um fazer político.
Portanto, a pesquisa foi desenvolvida por muitas mãos, olhares e corpos, em processos de
“aquilombamento” (parafraseando Conceição Evaristo), porque se buscava assumir uma posição
contra-hegemônica em relação às práticas mais tradicionais de se fazer ciência e produzir dados
sociais.
A cidade de Recife, que pulsa com o desejo de contar e ouvir a população em situação de
rua, para dimensionar melhor o campo da gestão das políticas públicas, é a mesma cidade que se
abate sob os impulsos aporofóbicos de uma cidade e sociabilidades hostis. Não lugares é o termo
que Marc Augé (2012) emprega para designar um espaço de passagem incapaz de dar forma a
qualquer identidade. Os indivíduos são lançados “à própria sorte” em uma sociedade de
consumo, ou caracterizada pela supermodernidade. Tempo que, para o autor, se distingue por
meio de “figuras de excesso”. No entanto, paradoxalmente, o excesso de espaço remete ao
encolhimento do mundo, exemplo das grandes concentrações urbanas, migrações populacionais,
contribuindo para a produção de não lugares, do esvaziamento das referências que tornam
aqueles indivíduos uma pessoa, utilizando a reflexão de Roberto DaMatta (1997).
Esses não lugares se materializam, nas dinâmicas urbanas, “lugares” por onde circulam
muitas pessoas e bens, cujas relações são incapazes de criarem por si sós acessibilidade para os
diferentes grupos. Por isso, acreditamos que, para contar a população de rua, seria preciso
conhecer esta cidade, a cidade real, para além da cidade formal. Por isso, para refletir acerca da
situação de rua, foi essencial cartografar/ inventariar esta cidade, e esse movimento foi feito a
muitas mãos, olhares, experiências.
Ciente das dificuldades de se obter informações relativas a um grupo populacional cujos
direitos são tão violados e para os quais o cotidiano é sempre atravessado por dificuldades e
aflições, a equipe de pesquisadores buscou fazer com que a coleta de dados fosse objetiva e que
não tomasse tanto tempo das pessoas durante a aplicação. A brevidade do processo também se
justificou diante das diferentes condições dos territórios da cidade, que, como já mencionamos,
é lugar de pertencimento, de vulnerabilidades e nem sempre oferecem segurança e conforto para
os/as recenseadores/as. Por isso, a pesquisa foi dividida em duas grandes etapas: uma primeira,
em que se buscou realizar a contagem total (recenseamento) das pessoas em situação de rua; e
uma segunda, em que foi desenvolvida uma pesquisa amostral, cujo escopo foi o de revelar o
perfil sociodemográfico dessa população.
10
A experiência do Recife e de outras capitais mostra que o processo de recenseamento da
população em situação de rua deve ser feito em poucos dias, no turno da noite, que é quando a
maior parte dessas pessoas se recolhe em certas localidades da cidade para descansar e dormir.
Por isso, a primeira etapa do censo consistiu na construção solidária de uma cartografia, com a
qual foi possível identificar os chamados pontos de concentração desse grupo populacional na
cidade.
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Figura 1: Escuta pública para construção da metodologia do Censo Pop Rua Recife, ocorrida no dia 15 de
setembro de 2022, no Abrigo noturno Irmã Dulce, Recife/PE; Fonte: Censo da População em Situação de
Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022
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Figura 2: Escuta pública para a construção da metodologia de abordagem com as crianças, ocorrida no
dia 11 de outubro de 2022, na sede do Ruas & Praças, Recife/PE; Fonte: Censo da População em Situação
de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022
Dias antes do período de contagem, em 21 de outubro, foi realizada uma formação para
os/as recenseadores/as, em que foi apresentada a versão final do formulário (Anexo 2). Na
ocasião, também foram dadas todas as instruções para o preenchimento integral dos formulários
e apresentadas as orientações gerais da dinâmica do trabalho de campo. Os/as recenseadores/as
e pesquisadores/as presentes puderam dirimir todas as suas dúvidas ao final do encontro.
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Figura 3: Formação das equipes de recenseadores, ocorrida no dia 21 de outubro de 2022; Fonte: Censo
População de Rua do Recife. Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia:
IMM, 2022
Nas ocasiões, foi feita a divisão das equipes, foram entregues os instrumentais e
repassadas as instruções para o processo de contagem. Depois de dirimidas todas as dúvidas, as
equipes partiam para a pesquisa de campo. Os territórios percorridos seguiram o planejamento
previamente estabelecido, que levou em consideração a regionalização político-administrativa do
município, sobre a qual se desenvolve o próprio trabalho da assistência social. Portanto, foram
levadas em conta as chamadas Regiões Político-Administrativas (RPAs) e a quantidade de pontos
de concentração identificada em cada uma delas.
As equipes eram formadas por um/a profissional do SEAS, um/a do CnaR, um integrante
do MNPR ou da sociedade civil e um/a estudante universitário. A diversidade na composição de
cada equipe visava à integração de diferentes visões sobre o fenômeno das ruas e à avaliação
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sobre a possibilidade de abordar ou simplesmente observar as pessoas no âmbito de cada cena
identificada.
Figura 4: Equipe de recenseadores na saída para a pesquisa de campo, no dia 25 de outubro de 2022;
Fonte: Censo População de Rua do Recife. Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife
2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022
A contagem foi feita a partir de duas estratégias, dependendo das condições sociais e de
segurança de cada cena. Quando as pessoas em situação de rua estavam acordadas e
apresentavam abertura para o contato direto com os/as recenseadores/as, as equipes as
abordavam, possibilitando o preenchimento completo do formulário de recenseamento. Porém,
quando as equipes se deparavam com cenas de uso de drogas, ou simplesmente quando não
havia segurança e era evidente o risco de violência, as equipes realizavam a contagem através de
observação. A orientação geral era a de que fosse evitada a contagem através dessa segunda
estratégia, mas a decisão sobre abordar ou observar era facultada às equipes nos territórios,
depois de definidas e avaliadas as condições de cada cena.
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Figura 5: Recenseadora em abordagem durante o censo, no dia 27 de outubro de 2022; Fonte: Censo da
População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022
Quando os formulários eram preenchidos apenas mediante observação, questões como
cor/raça e gênero não eram assinaladas, uma vez que tais informações dependem do contato
direto entre recenseador/a e recenseado/a. Seguimos o que prescreve a lei e a prática das
pesquisas do IBGE, que é considerar a cor/raça como um item autodeclaratório. Partimos também
do entendimento de que o esforço em discernir o gênero de alguém, através do olhar, configuraria
preconceito. Por isso, quando do preenchimento através de observação, preferimos não assinalar
os dois itens.
16
No retorno ao Centro Pop Glória, depois de percorridos os trajetos, as equipes
entregavam os formulários preenchidos para que fosse feita a “verificação pós-campo”. Nesse
momento, um dos coordenadores do projeto analisava todos os formulários, no intuito de
averiguar se foi integralmente preenchido e se havia inconsistências. Depois disso, o formulário
era reservado para o posterior processo de “tabulação”, que correspondeu à digitalização dos
dados coletados.
Cabe ressaltar que, nas noites de contagem, um instrumental adaptado foi enviado para
as equipes gestoras das unidades de acolhimento da prefeitura, de modo a coletar informações
sobre os acolhidos no dia em que ocorreu o recenseamento nas respectivas RPAs. Nesse sentido,
o número total contabilizado levou em conta não só aqueles que estavam efetivamente nas ruas,
mas também os não-domiciliados em condição de acolhimento.
Figura 7: Equipe de recenseadores na saída para a pesquisa de campo, no dia 14 de dezembro de 2022;
Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022
17
referida estratificação não foi seguida com todo o rigor durante a aplicação dos formulários,
servindo muito mais para nortear o trabalho de campo e para evitar que algum segmento fosse
sobrerepresentado na amostra, o que poderia impactar negativamente na qualidade das
informações finais. Assim, foi definida uma quantidade mínima de homens e mulheres, idosos e
adultos que deveriam ser entrevistados em cada RPA.
A seguir será apresentada, de forma sucinta e objetiva, a maior parte dos dados obtidos
através do recenseamento. Mais adiante, analisaremos de forma mais pormenorizada os dados
da pesquisa sociodemográfica. Os resultados do recenseamento já foram apresentados em
Miranda et al (2023), mas reproduzimos aqui, mais uma vez, compreendendo que este
documento final tem a função de apresentar uma reflexão geral sobre o processo.
Conforme já mencionamos, a população total recenseada foi de 1806 pessoas. Desse total, 1443
estavam nas ruas no momento da contagem, e 363 estavam acolhidas em algum equipamento da
prefeitura; 627 pessoas foram abordadas no processo de contagem e 816 foram contadas
mediante observação.
Abordados
43%
Observados
57%
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Os dados do recenseamento nos mostram um fato já conhecido, o de que a realidade das
ruas é majoritariamente masculina. Essa realidade foi também retratada em todas as demais
experiências censitárias e no censo nacional. Os levantamentos realizados pela SDSDHJPD, nos
anos anteriores, também indicavam a predominância masculina.
N.I
5%
Feminino
19%
Masculino
76%
Mulher Cis
22,24%
Homem Cis
75,83%
19
Configurando-se como mais uma expressão do racismo estrutural a que já fizemos
menção, a maior parte da população em situação de rua do Recife é composta por pretos e
pardos. Destaque-se a presença de indígenas que, apesar de pequena, merece atenção especial
dos serviços da assistência por, muitas vezes, serem migrantes e imigrantes.
Indígena Amarelo
0,5% 1,2 %
Branco
18,12 %
Pardo
Preto 56,56%
23,62%
Adolescentes Crianças
2,6% 2,5%
Idosos
11,81%
Adultos
83,08%
20
Conforme destacamos, no processo de recenseamento, foram estabelecidas as cenas e
coletados pontos de localização (latitude-longitude), com os quais foram construídos mapas que
constituem a cartografia da ocupação da cidade pela população em situação de rua do Recife
(Anexo 4). Depois de conhecida a localização e o perfil das pessoas em situação de rua no mapa
da cidade, foi delimitada a regionalização do trabalho de campo da pesquisa amostral
sociodemográfica. Os dados dessa segunda etapa serão apresentados e analisados mais adiante.
Antes, porém, convém realizar mais algumas reflexões sobre a população em situação de rua,
consoantes ao processo de aproximação dessa realidade, processo marcado não apenas pela
razão, mas também pela emoção.
21
CONSIDERAÇÕES SOBRE A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO EM RUA
Quando chega ao mundo, assustado, admirado, abusado, com fome, com sede, com frio
Espera dos homens a possibilidade de comer, de amar, de aprender, de viver
Não quer ser abreviado, quer ser grande, quer ser gente, quer ser humano.
Mas, a vida herdada de sua mãe negra vai lhe marcando a carne, o estômago que lhe dói de fome, a
carcaça que não cresce, a esperança que some e miúda vai se tornando, até ser abreviada em um suspiro.
Na aridez do trabalho me pergunto se vale a pena continuar lutando contra essa abreviatura de vidas,
Se melhor não seria abraçar causas maiores, mudar o mundo para deixá-lo sem abreviaturas.
Mas, são vidas, mesmo abreviada, são meninos e meninas, são filhos, são irmãos, primos, sobrinhos,
netos que sobreviveram a abreviação de sua infância.
Mais que tudo, são seres de humanidade, uma humanidade torta, uma humanidade pequena, uma
humanidade abreviada em sua capacidade e que precisa ser transformada.
Por isso, porque são pessoas, porque são vidas que não quero, e mais que isso, me nego a abreviar. Ao
contrário, quero lutar com eles para alcançar grandezas, para dividir a nossa humanidade.
Mergulho no escuro poço da vida de cada um, como se em cada um reconhecesse todos eles.
Amplio minha visão sobre eles, abro perspectivas gigantescas para suas vidas, como gigantesco é o avanço
da humanidade.
Não abreviarei nenhuma palavra, nenhuma vida, nenhuma luta.
Nessa luta não tenho preguiça, não tenho fraquezas, não tenho tempo para abreviar.
Eles não têm tempo porque o tempo deles já está abreviado.
O que eles esperam de nós não são palavras abreviadas, o que eles esperam de nós está, inclusive, para
além do escrito, está no ato concreto da luta, está no carinho do olhar, está até na dureza do afeto, está
na compreensão da necessidade de não abreviar.
E por cada um e cada uma, e por todos eles, esta é a minha resistência. Não me peçam para abreviar!!!
Iniciamos a reflexão sobre o Censo Pop Rua Recife, com o poema Vidas abreviadas, de
Brígida Taffarel. O poema foi escrito por uma trabalhadora do Sistema Único da Assistência Social
(SUAS), em meio a um momento de indignação, ocasião, em que um menino, ao qual, não
aleatoriamente, chamaremos Severino, preto, pobre, periférico e em cumprimento de medida
socioeducativa, ao retornar de uma audiência no judiciário, dá o recado mandado, pelo Juiz, para
esta trabalhadora: “ele disse que leu seu relatório, e que não é para ficar explicando tanto, a
história da vida da gente pode ser abreviada”.
22
A resposta desta trabalhadora veio em forma de poema, a nossa veio na forma de um
censo que procura dar corpo e história aos números. Há muito para ser dito e, não, não nos peça
para abreviar nada. O censo é um documento quantitativo, e nós estamos aqui para “qualificar”
os números, darmos a eles “carne e sangue”, transformar fotografia em vida, em movimento.
Trabalhamos no sentido inverso da abreviatura, estamos buscando compreender as questões em
seu sentido alargado, abarcando os bastidores, os silêncios, os suspiros, as lágrimas do momento
da enunciação.
Sobre esse ponto, abriremos, logo no início deste tópico, um parêntese, o do debate sobre
o uso dos termos população em situação de rua e pessoa em situação de rua. O debate que versa
sobre a utilização dos termos é muito importante, pois partilhamos a compreensão de que dar
nome às coisas deve ser sempre percebido enquanto ato político. O ponto colocado para reflexão
nos interessa, de modo geral, para analisar o censo como um todo, mas, de forma bastante
particular, quando nos reportamos às trajetórias, porque estas, de forma muito demarcada, são
tecidas na experiência vivida, nas relações cotidianas.
Teóricos/as e profissionais vêm chamando a atenção para o fato de que, se, por um lado,
não é correto falar em morador/a de rua, por razões óbvias, também teríamos riscos ao falar em
população em situação de rua, isso porque a ideia de população reforçaria a tentativa,
historicamente consolidada, de um suposto perfil, em alguma medida, generalizável desse grupo.
O correto, neste sentido, seria falar em pessoas em situação de rua. A partir do reconhecimento
de sua dimensão de humanidade, de singularidade em relação ao grupo.
23
nos aproximar de pessoas, com trajetórias e demandas distintas, para quem há risco de ampliação
de barreiras de acesso através de processos de generalização.
Ainda que a rua represente um local privilegiado para as experiências sociais, para as
expressões da identidade/identificação, para a vivência da cidadania, no caso do grupo aqui em
tela, via de regra, a ida e a permanência nas ruas está relacionada a uma série de desproteções
sociais, forjadas por experiências vivenciadas a partir das expressões de subcidadania, irmã da
pobrefobia, da apartação social, do desalento e de inúmeras barreiras para a aquisição de
capacidades que oportunizem a possibilidade de existir enquanto membros plenos de uma
coletividade. Nesse sentido, a rua, enquanto espaço de vivência da cidadania, tem este status
corrompido quando pessoas passam a viver nela, isto é, quando a ausência das dimensões de
exercício pleno da cidadania faz com que as pessoas ocupem as ruas em uma espécie de
desamparo, ou desalento, vivido no espaço público.
Portanto, o território precisou ser compreendido “como território usado, não como
território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de
pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho; o lugar de residência,
das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida” (SANTOS apud Brasil, 2013). Ou seja, o
território tem de ser o local de pertencimento do indivíduo, não apenas de forma física, mas
política, social e cultural, de modo que o mesmo se reconheça enquanto parte integrante do
território e possa nele se reconhecer e atuar como cidadão.
24
No entanto, é necessário ressaltar que o território evidenciado nas contradições
encontradas se caracteriza como local imediato do risco, da manifestação das inseguranças, das
limitações do acesso, da experiência do desalento. Portanto, é o chão onde se materializam suas
vulnerabilidades, onde não surgem possibilidades, onde o reconhecimento se dá apenas no plano
concreto da dificuldade de acesso a ações e serviços.
O território, enquanto chão mais a identidade, por vezes, aparece contraditório, como
lugar onde se produzem e reproduzem “fraturas sociais” e violências diversas, físicas, psicológicas
(vinculadas aos estigmas vivenciados) e institucionais; manifestação da incapacidade
intergeracional de exercício da autonomia.
Por outro lado, enquanto chão mais imediato, o território precisa ser o lócus imediato da
ação, uma vez que ele, sobretudo, viabiliza oportunidades, faz com que as famílias e comunidade
aglutinem força e sinergia para o exercício da cidadania, na busca da efetivação dos seus direitos
políticos e sociais. Em outras palavras, é possível entender o território como um espaço dinâmico
onde ocorrem relações interpessoais que caracterizam a capacidade de acolhimento deste em
detrimento de outro; onde as relações subjetivas se fazem presentes no cotidiano e na construção
da afetividade e são capazes de gerar forças sinérgicas de ação. Desse modo, esse território pode
vir a ser o território da construção e exercício da cidadania e da efetivação dos direitos humanos,
sociais e políticos.
Permanece o fato, já citado, de que a população em geral tem pouca empatia pelas
pessoas que estão em situação de rua, chamadas de mendigos, andarilhos, vadios e drogados
(HUNGARO, 2020). Fato é que, em uma sociedade como a brasileira, desigual, racista e machista,
25
de ponta a ponta de sua história, a manutenção do discurso do caso a caso, da ausência do
esforço, do mérito é algo que cai muito bem e produz uma série de estigmas sobre esse grupo
social
[...] como todo conflito social é dramatizado nessa falsa oposição entre
mercado divinizado e Estado demonizado, os reais conflitos sociais que causam
dor, sofrimento e humilhação cotidiana para dezenas de milhões de brasileiros
são tornados literalmente invisíveis (SOUZA, 2016, p.21).
É o caso também do conceito de exclusão, apresentado por Robert Castel (2011), que
deve imperiosamente ser substituído, em cada caso, “por uma noção mais apropriada para
nomear e analisar os riscos e fraturas sociais atuais”. Para Castel (2011), a heterogeneidade de
usos é o primeiro motivo para se desconfiar de que o termo exclusão, ao “dar nome”, não permite
revelar os elementos constitutivos do número imenso de situações diferentes que precisam ser
apreendidas de forma analítica.
Rotular como exclusão os diferentes riscos e fraturas sociais atuais é uma forma de lhes
atribuir qualificação puramente negativa, relativa à falta, sem dizer no que ela consiste nem de
onde provém. Para Castel (2011), os traços constitutivos essenciais das situações de "exclusão"
não se encontram nas situações em si mesmas, as situações-limite que caracterizam e, muitas
vezes, determinam o cotidiano dos indivíduos só têm sentido quando colocadas num processo,
resultado de trajetórias diferentes.
O principal argumento defendido por Castel (2011) é que não é possível revelar as
contradições do cotidiano, através do relato sobre os estados de despossuir, isso porque os in e
os out não estão em universos separados. “Não se pode falar numa sociedade de situações fora
do social. O que está em questão é reconstruir o continuum de posições que ligam os in e os out,
e compreender a lógica a partir da qual os in produzem os out” (Castel, 2011, p.29).
26
movimentos sociais e dos órgãos /institutos de pesquisa. Esse olhar que tende ao
enquadramento, à utilização de supostas supercategorias também prejudica a implementação de
políticas públicas voltadas para segmentos populacionais específicos e reproduz a (in)visibilidade
perversa que caracteriza o cotidiano de homens, mulheres e famílias, que têm elementos de
trajetória e de identificação que precisam ser visibilizados.
O termo proposto pelo professor Henrique diz respeito à experiência das pessoas em
situação de rua enquanto um processo sucessivo de degradação das condições de se viver em
sociedade. O Ruariato ocupa o lugar mais baixo, oprimido pela dura desigualdade social e tratado
de forma desumana pela sociedade de modo geral e, em particular, pelas autoridades que
deveriam zelar pelo seu bem-estar. Nesse sentido, é no reconhecimento dessas relações
2
“Lexema que se refere ao conjunto de rualizantes (PSR). Rualizante designa um constructo de poder, da
indiferença inviabilizadora ou consolidada em relação àquele(a) que sobrevive na exclusão social
(descartável social) e convive na apartação social (cidadão de papel). Na pirâmide social brasileira, ocupa o
subsolo, aquele que sequer subjaz na subcidadania preconizada por Jessé Souza e muito menos subjaz na
terceira escravidão. Visualizando temos o RUARIATO” (Texto transcrito papel timbrado, 2023).
27
degradadas, tomando a situação de rua enquanto condição e processo, que precisamos buscar
formas de superá-las.
Portanto, podemos dizer que, nas relações sociais em que se materializam ameaças de
exclusão, esses processos de marginalização podem resultar em exclusão propriamente dita, ou
seja, em um tratamento discriminatório de segregação e afastamento dessas populações, é o caso
de políticas/práticas higienistas (Castel, 2011, p. 47-48). No cotidiano, são os marcadores de
diferença que operam as pequenas cisões, não acessos, acessos precários e irregulares.
Uma abordagem interseccional também pode ser um argumento que pode ser utilizado
para a defesa de para o campo e o cotidiano das diferentes políticas para a população em situação
de rua, transformando indivíduos genéricos em pessoas com trajetórias particulares. Mulheres
em situação de rua, mulheres negras em situação de rua, mulheres e homens com deficiência em
situação de rua, homens trans em situação de rua, pessoas idosas em situação de rua e tantos
outros demarcadores de identidade e diferença que precisam ser considerados.
Afirmar a necessidade de realizar tal distinção não implica que as situações de exclusão
em relação ao grupo não sejam graves por si mesmas, nem que a exclusão não represente hoje
uma ameaça para essa população. As situações de exclusão são graves nelas mesmas, porque
alimentam uma desestabilização geral na sociedade e produzem efeitos distintos, sobre grupos
particulares, em relação às barreiras de acesso e déficit de integração com relação ao trabalho, à
moradia, à educação, à cultura etc.
28
Retomando nossa referência a Conceição Evaristo, ao nos propormos a analisar a
dimensão coletiva e política em relação aos acessos e pontos aqui destacados, voltamo-nos para
o desejo mais profundo de incomodar a “casa grande” em seus sonhos, projetos e desejos mais
injustos. Reconhecemos que as trajetórias e vivências do Ruariato diz tanto sobre eles como grupo
quanto sobre nós como sociedade.
O país tem dificuldades de compreender quem são as pessoas que vivem nas ruas, mas
são os brasileiros e brasileiras que integram, de maneira precária, o conjunto da sua população.
Foram por muito tempo invisibilizados no campo acadêmico e da produção de dados, mas, mais
recentemente, esse é um fato que começa a se transformar. Permanece a constatação de que a
população em geral tem pouca empatia pelas pessoas que estão em situação de rua, o que acaba
atuando na manutenção, via “naturalização”, de status de cidadania tão degradados.
29
CONDIÇÕES DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA DO RECIFE
30
SITUAÇÃO DE RUA E RELAÇÕES FAMILIARES
Para a apresentação e análise das trajetórias que levam homens, mulheres, crianças,
adolescentes e famílias para a situação de rua na cidade do Recife e para a existência e/ou
manutenção de vínculos familiares na experiência cotidiana, retomaremos a apresentação dos
dados obtidos a partir da pesquisa censitária e as inferências produzidas no primeiro momento
de análise sobre os indicadores relacionado e apresentados no relatório parcial.
Acima de 5 anos
35,50%
Entre 1 e 3 anos
19,80%
Entre 3 e 5 anos
13,90%
31
A pesquisa mostra que 26,5% das pessoas estavam nas ruas há menos de 1 ano, indício
de que esta é uma condição adquirida, o que pode estar relacionado a uma “mudança” nas ruas,
devido aos efeitos do período recente de pandemia, aumento da pobreza, desemprego, fome e
redução do Estado no país. Aproximadamente 19,8% viviam entre 1 e 3 anos nas ruas; 13,9%
vivem entre 3 e 5 anos; e 35,5% há mais de 5 anos na mesma situação, mostrando também que
estar nas ruas pode não ser uma condição breve ou passageira para essas pessoas.
O percentual de pessoas que estão há mais de 5 anos nas ruas pode ser o indicativo de
uma cristalização dessa situação. Depois de uma longa permanência, é muito difícil reverter essa
condição sem uma presença efetiva e complexa por parte do Estado. É o que vem sendo
considerado por programas como o Moradia Primeiro, iniciativa que preconiza a conquista da
moradia como ponto inicial para o trabalho junto a esta população, com prioridade para as
pessoas em condição mais vulnerável e que estão há mais tempo nas ruas.
Não respondeu
Sim
43,30%
Não
54,90%
32
Destacamos o fato de que 47% da população em situação de rua do Recife é resultante
de fluxo migratório, em algum momento de suas vidas, o que justifica a necessidade de análises
ampliadas sobre fluxo e mobilidade na região metropolitana do Recife, assim como em todo o
estado e estados circunvizinhos.
Não respondeu
Não
47,10% Sim
52,40%
A questão sobre a migração, se a pessoa sempre morou em Recife, vinha seguida de outra
questão referente ao local onde a pessoa morava antes de vir para a cidade. A partir dos dados
apresentados, percebemos uma movimentação predominante das cidades do interior do estado
para a capital, bem como de estados circunvizinhos para a capital de Pernambuco, apontando
para uma migração de caráter regional.
33
das antigas práticas de remoção de pessoas em situação de rua de cidades do interior para a
capital do estado. Práticas aporofóbicas, ilegais e imorais cometidas por agentes públicos e com
funções públicas, que precisam ser conhecidas, denunciadas, investigadas e punidas.
A busca por trabalho figura entre as razões principais de deslocamento para a cidade do
Recife. Cynthia Sarti (1994), em A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres, vai
tratar dos dramas das famílias pobres na busca por dar materialidade aos projetos de melhorar
de vida e aos sonhos que não se realizam. São, então, os projetos não concretizados na chegada
à cidade, a ausência de redes de apoio estabelecida e os trabalhos que não dão certo que fazem
com que as trajetórias das pessoas encontrem as ruas. Esses fatores abrem espaço para uma
série de conflitos e rupturas.
34
Entre as razões que levam as pessoas a começarem a dormir nas ruas (Figura 18)
permanecem os conflitos familiares como a principal causa apontada, bem como o uso prejudicial
de drogas lícitas e ilícitas. Cabe destacar que esses dados não podem ser analisados em separado,
uma vez que acabam compondo um conjunto de não acessos ou incapacidades que se
manifestam a partir da perspectiva do conflito.
As trajetórias que conduzem às ruas, geralmente, são apontadas sob uma nuvem muito
espessa denominada conflitos familiares, como apontam 50% dos casos. Isso é o que dizem os
dados sobre a população, mas as razões dos conflitos, as que se tornam, para algumas pessoas,
insustentáveis, precisam ser explicadas. De um modo geral, os conflitos fazem parte da vida
humana, mas a perspectiva de ocasionarem desfiliações, apartações, exclusões sucessivas, entre
outros aspectos que levem até as ruas, acreditamos que se vinculem diretamente com a pobreza,
escassez, ausência de ativos de poder e, o mais importante, a não presença do Estado ou a
presença de forma subsidiária na sociedade e na vida das pessoas, famílias e territórios. Nas
histórias que ouvimos, o Estado não era “algo” com que se pudesse contar.
Nesse sentido, as vidas vividas nas ruas são determinadas por muitas barreiras de acesso,
pode ser a cidade e seus diferentes espaços, podem ser as políticas públicas e as instituições. De
um lado, se este é um dado esperado e, em alguma medida, conhecido, lançamos luz para o fato
de que as barreiras de acesso estão postas também na possibilidade de vivenciar dimensões
essenciais à humanização das pessoas, como vínculos familiares, afetivos e de saúde
socioemocional.
35
Em relação aos vínculos estabelecidos com familiares, é importante destacar que
aproximadamente 70% das pessoas em situação de rua possuem vínculos familiares mantidos de
forma mais ou menos constante (Figura 19). Em 35% dos casos, a frequência de contato é semanal
(Figura 20). Destacamos também o fato de que 78% afirmam não ter outro parente em situação
de rua (Figura 21). É importante explicar que, nos casos em que a pessoa vivencia uma relação
afetiva estável nas ruas e responde que não têm parentes nas ruas, isso aponta para uma
compreensão da família enquanto parentesco biológico e vinculada à origem.
Não
29,20%
Sim
69,60%
Quase Nunca
10,80%
Figura 20: Questão – Com que frequência tem contato com os parentes domiciliados?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
36
Não Respondeu
Não Sabe 1,40% Sim
1,40% 19,20%
Não
78%
Essa referência à “ajuda” para a manutenção da família de origem foi algo recorrente:
“mando o dinheiro dos meninos”; “ajudo na feira da minha mãe”. Nessa mesma linha, foi
apontado, como parte dos projetos e sonhos dessas pessoas, ter trabalho e renda para ajudar
mais e com mais regularidade e deixar de fazer “uso” de álcool e/ou outras substâncias para dar
orgulho para mães e filhos. Essas respostas remetem para diversas questões, destacaremos duas:
1) o fato de que a família, ainda que esteja fora da rua, está em condição demandante de suporte,
provavelmente em situação também de extrema vulnerabilidade, ainda que sob um teto; 2) no
caso de pessoas em situação de rua com uso abusivo e/ou prejudicial de álcool e outras drogas,
os episódios de “desorganização” levam ao consumo ampliado, ocasiões em que o recurso da
“ajuda” é direcionado para o uso, atuando também como aprofundamento de conflitos e
37
acentuando a vivencia de culpa e de sofrimento emocional. Houve várias referências a esses dois
aspectos, mas há outros, e a publicização dos dados do censo pode servir de chave de leitura para
outras reflexões.
Cabe destacar que estamos projetando para a situação de rua a perspectiva de trajetórias
que conduziram as pessoas até essa condição. As razões para isso já foram anteriormente
apresentadas neste texto, mas destacamos, mais uma vez, que compreendemos a situação de rua
como um evento mais ou menos permanente, relacionado a muitos outros, que guardam como
característica comum a desproteção e incapacidade de lidar com determinadas circunstâncias,
riscos, violações e/ou vulnerabilidades. São situações que acabam por promover sucessivas
desfiliações sociais. Nesse sentido, a partir da perspectiva da trajetória, é preciso retomarmos
uma leitura sobre o fato de que os conflitos familiares são apontados, por quase 50% dessas
pessoas, como o motivo principal que as leva a dormir nas ruas. Consideramos importante
destacar que os conflitos familiares provavelmente acabam assumindo uma dimensão guarda-
chuva, espécie de “meta motivo” para abrigar uma série de outros conflitos vivenciados, que, por
vezes, compõem uma trama tão complexa que é difícil analisá-los em separado.
O caso dos “conflitos familiares”, tal qual acontece com o conceito de exclusão social, na
perspectiva apresentada por Robert Castel, precisa ser qualificado para produzir efetivamente
uma narrativa, um discurso. Não há indícios aparentes sobre quais são os motivos ou as razões a
se enfrentar. Surge, então, uma questão central: quais são as dimensões da vida que precisam ser
compreendidas dentro do campo da política para minimizar a capacidades de os conflitos
familiares operarem por rupturas, desfiliações e/ou apartamentos tão significativos?
As questões acima apresentadas podem e devem ter outros aprofundamentos. Há, nos
dados, muitos aspectos relacionados às trajetórias das pessoas em situação de rua em Recife que
38
precisam ser aprofundados e relacionados. Nesse sentido, é necessário cada vez mais
compreender as dinâmicas familiares, as experiências conjuntivas vivenciadas por indivíduos que
resguardam diferentes tipos de vínculos e que, via de regra, fazem com que tenham uma história
comum. As políticas públicas precisam compreender essas dinâmicas, não no sentido de
culpabilização, mas no sentido de obter um diagnóstico dos conflitos e dar capacidade de reação
a essas pessoas. É preciso também considerar que a dinâmicas da vida cotidiana sempre é
resultante das relações sociais e acontecem em territórios particulares, em diferentes formas de
apropriação e uso dos espaços que precisam também ser considerados.
39
principalmente devido ao seu protagonismo entre as razões e motivos apontados para as
vivências nas ruas. O que inferimos é que a utilização deste termo está associada a uma espécie
de anúncio de vários outros conflitos, sofrimentos, negligências e dores. Nesse sentido, os
conflitos familiares são desencadeados ou agravados a partir de outros fatores também
elencados, como o uso prejudicial de drogas ilícitas, álcool, a perda do trabalho, e,
consequentemente, de renda e a perda de moradia.
A essa altura, para não restar dúvida, afirmamos que a “culpa” não é da família pela
reprodução de desigualdades, injustiças e privilégios. Para Jessé, o olhar ingênuo e não treinado
do senso comum só consegue perceber a “família” como último elo da cadeia de causas que
levam às desigualdades.
Nesse sentido, a permanência dos conflitos familiares entre as principais razões que
levam as pessoas a começarem a dormir nas ruas nos leva a afirmar que esses dados não podem
ser analisados em separado, a partir da responsabilidade exclusiva das famílias que supostamente
“fracassaram”, uma vez que reportam para uma trama, que atua pela composição nas trajetórias,
de um conjunto de não acessos ou incapacidades que se manifestam a partir da perspectiva do
conflito. Para estabelecer um movimento que acabe por implodir a perspectiva de que “conflitos
familiares” seja o ponto final de uma compreensão sobre as trajetórias que convergem para as
ruas, é preciso atuar, de acordo com Teixeira (2010), na superação dessa tradição histórica das
40
concepções de família-padrão, família regular X família irregular, e na utilização de metodologias
de trabalho que, de fato, abordem, de forma dialética e articulada, assuntos internos e externos
à família (Teixeira, 2010).
Nesse sentido, a pandemia de Covid-19 não só expôs o mundo a um novo vírus como
escancarou outras faces das desigualdades em um contexto de capitalismo global. A sensação de
que a “normalidade” estava se desmanchando veio seguida da confirmação de que o normal em
curso já era organicamente patológico e que a vulnerabilidade não chegou com o vírus, mas como
a efetivação de um processo de desmonte do Estado em curso (rosa, 2020). A pandemia, ainda
que tenha sido uma condição excepcional, revelou algo que é uma característica do próprio
neoliberalismo, a responsabilização das pessoas em relação às dimensões da vida, do cuidado, da
geração dos elementos para tornar a vida em sociedade possível.
Retomando a reflexão proposta por Gracielle Loiola (2020), a produção sociojurídica das
famílias incapazes de aderência às políticas públicas, aponta para a projeção que se faz a respeito
da capacidade das famílias, muitas vezes mulheres mães, com rede de apoio inexistente ou
extremamente fragilizadas, de, ao menor toque da presença do Estado, responder ao desenho de
“organização” progressiva de suas vidas, dores e histórias. O mito das famílias incapazes, colocado
pelas políticas públicas, é respaldado por uma sociedade que grita aos quatro ventos que “não se
deve dar o peixe, é preciso ensinar a pescar”, que antes da entrada se deve pensar nas portas para
a saída, que a solução para a pobreza é o controle da natalidade e dos corpos das mulheres
pobres, etc.
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É para compreender essas famílias, que chegam até os serviços e às ruas e tem respostas
tão diferentes ao trabalho desenvolvido, que lançamos mão da perspectiva das capacidades e
funcionamentos de Amartya Sen (2010). Viver em situações de privação resulta, para o autor, em
redução da liberdade.
Esta liberdade está relacionada a condições que são necessárias para os sujeitos
definirem, por si mesmos, um ideal de vida boa, como por exemplo: ir ou não à escola, isso pode
ser considerado uma escolha, desde que exista no território a oferta desse serviço. No entanto, a
liberdade de permanecer na escola não está relacionada só ao direito da matrícula, mas em ter
condições de permanecer nela, sem, por exemplo, ter, a todo o momento, o risco abandoná-la
para contribuir na renda familiar. Se, por exemplo, as famílias com crianças pequenas têm acesso
à creche (capacidade), isso permite que as mulheres possam sair para trabalhar (funcionamento).
Se a escola trabalha de forma próxima, buscando envolver as famílias, as crianças, os adolescentes
e o território (capacidade), a possibilidade de perceber a educação como algo importante no
projeto de vida tende a aumentar (funcionamento).
42
CIDADANIA
“Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas
as margens que o comprimem” (Bertolt Brecht)
Neste item do Censo, refletiremos acerca dos dados relacionados à posse de documentos,
acesso a benefícios governamentais, à moradia e passagem pelo sistema prisional. Assumimos e
partilhamos a compreensão de que para o acesso à cidadania não são suficientes a existência de
leis ou de espaços de representação. É preciso mais para que vivamos em uma sociedade
democrática. Essa experiência não pode ser percebida fora do “rio” de nossa história, para se “ler”
o rio, há que se perceber as “margens”, ou limites, ao mesmo tempo concretos e simbólicos para
que a democracia se transforme em exercício cotidiano.
Na exposição dos resultados do nosso trabalho, tentamos construir uma narrativa que
revele a articulação entre dados empíricos e pressupostos teóricos referentes à cidadania, ou dito
de forma mais precisa, para a vivência de uma espécie de subcidadania pelas pessoas em situação
de rua, por isso o recurso ao Bertold Brecht.
Perdeu/roubado
14%
Não possuo
documentos Sim, estão todos
6% comigo
35,30%
Sim, e estão com
amigos/conhecido
s
9%
Sim, mas apenas
um
9%
Sim, e estão em
equipamento da Sim, e estão guardados
prefeitura com a família
15,10% 10,60%
43
Figura 23: Questão – Quais documentos possui?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
A grande maioria das pessoas em situação de rua possui documentos processuais, o que
remete a uma ação para que este acesso tenha sido garantido e materializado, considerando que
o contrário poderia ter imperado, a manutenção das barreiras de acesso para obtenção dos
mesmos, principalmente considerando as “perdas” sucessivas e a necessidade recorrente de
emissão de novas vias.
Faz-se necessário apontar, por razões e motivos óbvios, que o poder público é figura
central para o problema e para sua solução. Para o problema, dado o número de violações de
direitos por parte de agentes públicos. Há a demanda e necessidade de novas emissões a partir,
principalmente, das ações da “zeladoria urbana”, somadas à ação da polícia e da ausência (ou
44
presença insuficiente) de locais permanentes e disponíveis para guarda de documentos, ainda
que os Centros Pops cumpram este papel para o grupo referenciado no equipamento. É
importante estabelecer ações integradas e de diálogo permanente, para que as ações confluam
ao invés de existirem de forma antagônica.
Em relação aos benefícios, 50,2% afirmaram que recebem. Sobre esse número, é preciso
ser destacado e posteriormente analisado o fato de que muitas pessoas em situação de rua,
principalmente no contexto da pandemia da Covid 19, passaram a receber o Auxílio Emergencial
e depois o Auxílio Brasil, 48,4%. O acesso ao Benefício de Prestação Continuada- BPC, corresponde
a 5,3% dos casos e, em proporções significativamente menores, 1,8% acessam a aposentadoria.
45
Sim, Bolsa
Família/Auxílio
Brasil
43,10%
Não
48,40%
Sim, Benefício de
Sim,
Prestação
Aposentadoria/Pensão
Continuada
1,80%
5%
Estes dados apontam para um esforço significativo de ampliar a inserção desse segmento
no CadÚnico, como forma de buscar reduzir as barreiras para o acesso aos direitos de cidadania.
Como cidadãos integrais, as pessoas nessa situação devem ser atendidas pelas
diversas políticas públicas. É o que afirma o Decreto Federal nº 7.053, de 23 de
dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em
Situação de Rua, um passo fundamental nessa trajetória de conquista de
direitos. Essa Política apresenta ações transversais e diretrizes para políticas
específicas voltadas a essa população. Uma construção coletiva com a
participação de diversos ministérios e setores da sociedade, incluindo
movimentos sociais representativos da população em situação de rua. A
Política Nacional é estruturada pelo princípio da igualdade, expresso na
Constituição brasileira, e define a necessidade de ações articuladas entre todas
as áreas do governo, para que sejam implementadas ações efetivas que
possibilitem a construção da autonomia das pessoas em situação de rua. Entre
as definições da Política Nacional está a inclusão das pessoas em situação de
rua no Cadastro Único para Programas Sociais, para viabilizar a implementação
de políticas sociais voltadas ao atendimento dessa população (MDS, 2011).
Apontamos também que, sendo a pobreza um problema complexo, como tal, não admite
uma solução fácil, serão necessários estudos sobre o impacto, principalmente do Auxilio Brasil,
na vida das pessoas em situação de rua, principalmente considerando seu cotidiano e trajetórias
multifacetados, em que o acesso à renda, se não combinado com uma rede efetiva e de tramas
densas de proteção e garantia de direitos, pode não ser suficiente para atuar de modo mais efetivo
no enfrentamento à degradação das condições de existência e, por conseguinte, de acesso e
exercício da cidadania. Destacamos ser imprescindível o esforço em curso pela inserção dessa
população no CadÚnico.
46
Em relação à passagem pelo sistema carcerário, 59% das pessoas em situação de rua na
cidade do Recife não tiveram passagem pelo sistema, o que é um número bastante significativo e
precisará ser analisado, inclusive para romper mitos relacionados ao perfil da população em
situação de rua (Figura 25).
Sim
39,20%
Não
59,4%
No entanto, o fato de que 39% dessa população teve passagem pelo sistema prisional,
nos aponta o peso dos estigmas e ausência de políticas efetivas que antecedem o cárcere, se
materializam no cárcere e ultrapassam o encarceramento. Nesse sentido, o cárcere e o
encarceramento atuam como uma espécie de aprofundamento das condições de desfiliação, não
acesso e subcidadania. Importante considerar que, a intercessão entre a saída do cárcere e a
situação de rua relaciona-se com o fato de que a remissão da pena, do regime fechado para o
meio aberto, pode não implicar em um retorno para a vida familiar e comunitária.
Muitas vezes, não há para onde voltar, há casos em que as pessoas admitem ser
ameaçadas de morte ao saírem do cárcere, o que acontece em ocorrências muito frequentes,
impedindo o retorno para os territórios de origem, há também relações familiares e comunitárias
que foram demasiadamente degradadas durante o tempo do cárcere. Cabe destacar que essa é
uma situação que precisa ser discutida e analisada à luz do papel do Estado durante o tempo do
cárcere e no pós-cárcere, em termos de provisão de meios.
47
novamente, apartada e punida pela sociedade e pelas instituições. A passagem pela prisão, em
muito pouco, favorece a abertura de possibilidades e ampliação de capacidades, uma vez que o
peso do encarceramento agrava ainda mais as vulnerabilidades físicas, psicológicas e sociais
presentes enquanto experiência em suas trajetórias, elementos coercitivos para a/o
egressa/egresso se filiar de forma mais equitativa às demandas sociais.
Como afirmou Zaluar (1985), na introdução antropológica e afetiva, escrita para narrar os
bastidores da sua chegada na Cidade de Deus, o que orienta as ações em relação ao contato com
esses corpos, diferente de um tabu com proibições especificas, decorrente do contato com o
impuro, é um medo construído pela leitura diária de jornais, com recepção favorável em uma
sociabilidade fundamentada na interseccionalidade das desigualdades sociais e na opressão das
relações de poder, de raça, gênero e classe.
48
por tráfico de drogas e com menos chances de conseguir ser solta em audiência de custódia
(DINIZ, 2016).
A apartação social designa um processo pelo qual se denomina o outro como um ser “a
parte”, (apartar é um termo utilizado para separar o gado), ou seja, o fenômeno de separar o
outro, não apenas como desigual, mas como um “não semelhante”, um ser expulso não somente
dos meios de consumo, dos bens, serviços etc., mas do gênero humano. É uma forma
contundente de intolerância social.
Sobre a moradia para as pessoas em situação de rua, se elas têm casa para morar e o tipo
de acesso, essa questão remete para a necessidade percebida de, muitas vezes, mesmo tendo
49
moradia, terem de buscar a sobrevivência nas ruas, seja devido às condições de pobreza e
apartação vivenciadas, seja pela impossibilidade de permanecer em casa, atravessada pelas
condições de violência e de degradação de seus territórios e relações.
Não
82%
Não Sabe
Ocupação, invasão,
2%
assentamento
Própria em 3%
aquisição
2% Cedida
4,70%
Própria e quitada
Alugada 42,50%
14,20%
Não Respondeu
32,3
Figura 27: Questão – A residência é...? (para quem afirmou possuir residência)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
50
poder judiciário a apontar a necessidade de se criar política pública judicial para atender a
população em situação de rua de forma digna e decente.
No caso da mídia, imagens amplamente divulgadas com pessoas dormindo à luz do dia
nas praças apontam para suposta ociosidade, situação de mendicância ou “cenas” de uso de
drogas, por exemplo na “Cracolândia” em São Paulo. Essas imagens reportam para a criação de
um perfil que, supostamente, retrata a totalidade das pessoas que estão nas ruas, associando a
pobreza à preguiça, à criminalidade e à sujeira. Trata-se de uma concepção ideológica, na qual a
população pobre é vista como degradada, perigosa e responsável pelos atos de transgressão.
Neste ponto, retomamos a perspectiva de uma sociedade decente, que “deveria garantir
a dignidade dos seus membros [...] omitindo ações diretamente humilhantes”. O fenômeno da
humilhação está intimamente ligado aos sentimentos de vergonha e de perda do autorrespeito
experimentados pela pessoa humilhada.
51
apenas acesso às demandas relacionadas à sobrevivência mais imediata, como: distribuição de
alimentos, cobertores e roupas. É preciso, considerando a cidadania em sua condição subjetiva,
que o Estado garanta as condições necessárias para que as pessoas tenham condições de agir.
Nesse sentido, lembramos de Paulo Freire (2015, p. 108), para quem “existir,
humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta
problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que
os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.”
CONDIÇÃO DE SAÚDE
A literatura especializada demonstra que muitas são as barreiras de acesso aos serviços
de saúde impostas às pessoas em situação de rua. Maior parte delas têm a ver com a própria
organização desses serviços, ainda calcado no modelo biomédico e medicalizador. A despeito dos
esforços de universalização inerentes aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), outros
entraves ainda persistem, tais como a exigência de documentação, de endereço, limites quanto
ao atendimento de demandas espontâneas, pouca articulação intersetorial e os preconceitos que
reforçam os estigmas a que já nos referimos (Paiva et al, 2016).
Para conseguir atendimento, muitas vezes, é preciso chegar cedo nas unidades básicas de
saúde e ter de esperar durante um tempo que, com frequência, esses indivíduos não têm ou não
estão habituados depreender. O período de espera é muitas vezes visto como ‘tempo perdido’,
uma vez que poderia ter sido empreendido na busca por alimentos. Afinal, quando não se tem
segurança sobre o que comer durante o dia, outras necessidades são relegadas a segundo plano.
No fim das contas, muitos não se permitem esperar e acabam por recorrer aos serviços de saúde
apenas quando já não suportam mais os sintomas das enfermidades adquiridas ou decorrentes
de suas condições de saúde.
52
Os/as profissionais, por sua vez, poucas vezes são efetivamente capacitados/as para o
atendimento, uma vez que desconhecem as especificidades desse público, ao que, muitas vezes,
vem acompanhado de racismo e de preconceitos de todos os matizes. Em poucas palavras, ainda
não há garantia de acesso aos serviços de saúde para as pessoas em situação de rua (Paiva et al,
2016; Andrade et al, 2022). É preciso refletir, pelas razões acima apontadas, acerca do risco de
reprodução de desigualdades, mesmo no caso de implementação de políticas públicas.
Em que pese a existência das equipes do CnaR e os reconhecidos avanços obtidos através
de sua atuação, a situação ainda é precária, conforme demonstram os dados desta pesquisa. As
pessoas em situação de rua apenas procuram os serviços de saúde quando acometidas de
quaisquer problemas graves. Quando questionados sobre como resolviam esses problemas, mais
de 60% responderam que recorriam aos Hospitais e às Unidades de Pronto Atendimento (UPA), o
que nos leva a crer que só procuram o serviço de emergência quando já estão com sintomas
avançados.
53
Quando perguntados sobre a saúde, a maior parte dos/as entrevistados/as alegaram
alguma condição, embora também afirmaram que não são acompanhados por qualquer serviço
de atenção básica. Entre as condições mais citadas, figuram “dependência de álcool e outras
drogas”, “problemas psiquiátricos ou neurológicos”, “doenças bucais” e “dores crônicas”. A
dependência do álcool é um dos problemas mais recorrentes e atravessa a própria “situação de
rua”. Em um número significativo de casos, conforme vimos em relação às razões que levam as
pessoas a começarem a dormir nas ruas, o consumo excessivo e prejudicial de álcool e outras
substâncias é apontado como segunda e terceira maiores razões para a situação de rua.
54
Os dados dessa pesquisa nos mostram que não há aumento perceptível do uso de
qualquer droga depois que as pessoas passam a viver nas ruas. O uso abusivo e prejudicial,
portanto, está muito mais relacionado aos problemas e violências inerentes à trajetória de cada
indivíduo, podendo a rua funcionar ou não como um fator para potencialização do uso. Conforme
apontamos em relação às trajetórias que levam às ruas, o uso abusivo pode, até mesmo, ser uma
das razões para os conflitos familiares apontados como razão de ida para as ruas. Nesse sentido,
a relação seria anterior às ruas, podendo, em alguns casos, até mesmo, ser revertida no tempo
de permanência nelas, caso as pessoas tenham acesso a serviços e políticas públicas que auxiliem
da redução ou interrupção do uso.
Figura 30: Questão – Consumo de drogas autodeclarado antes de viver nas ruas (múltipla resposta) 3
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
Figura 31: Questão – Consumo de drogas autodeclarado depois de viver nas ruas (múltipla resposta)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
3
Em relação ao gráfico 30, que apresenta as drogas consumidas antes de viver nas ruas, não há diferenças
substanciais, exceto no consumo de Cocaína. Notamos também um curioso aumento entre aqueles que
declaram não usar mais drogas depois que foram viver nas ruas.
55
O uso abusivo de drogas por essa população é algo complexo e reforça a exclusão social
a que já está submetida. Os estigmas sociais são potencializados com o consumo do Crack, em
razão das próprias características dessa substância. Seu efeito imediato, baixo custo e grande
potencial de causar dependência têm levado uma grande PSR a consumi-lo. A dependência faz o
usuário centrar seus interesses e comportamentos no esforço de aquisição da substância,
levando-o a romper os vínculos sociais que restam ou expondo-o a uma situação de
vulnerabilidade ainda maior. O Crack provoca problemas pulmonares e cardiovasculares sérios,
além de lesões neurológicas. Seu uso constante pode resultar em síndrome respiratória aguda,
aumento da pressão arterial, infarto, oscilações de humor, deficiências de memória e de
concentração (CEBRID, 1987).
Os dados desta pesquisa demonstram que 31% daqueles que fazem uso de drogas ilícitas,
o fazem diariamente. A insistência no tratamento moralizante ou hostil, calcado na criminalização
individual, faz com que essas pessoas se sintam culpadas e ainda mais excluídas, o que não
contribuiu para resolução do problema. O caso é ainda mais preocupante se levarmos em conta
que boa parte desses usuários são pessoas com deficiência (30% das pessoas com deficiência são
usuárias de drogas), que se encontram em situação de hipervulnerabilidade, e, para os quais, a
presença do Estado e de qualquer instituição deveria sempre se dar no sentido de seu
acolhimento.
56
Não sabe Não respondeu
0,30% 4%
Não usa
20,70%
Todos os dias
37,10%
A propósito das pessoas com deficiência, uma das condições de saúde mais mencionadas
foi a dos “problemas psiquiátrico e neurológicos”. A maior parte desses casos são decorrentes de
problemas de ansiedade, depressão e distúrbios neurobiológicos adquiridos, como o Transtorno
de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Contudo, há os casos de pessoas com deficiências
intelectuais, que não possuem laudo e, muito menos, acompanhamento psiquiátrico. Não foi
possível obter números absolutos, uma vez que se trata de uma informação cuja produção requer
a busca de dados mais complexos junto aos sistemas de saúde, mas a quantidade de pessoas em
situação de rua com deficiência intelectual e que não são acompanhadas pelos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPs), nem pelas equipes do CnaR, é realmente alarmante.
Não por acaso, alguns dos estigmas socialmente atribuídos à PSR são o de “loucos” e
“noiados”, indivíduos que supostamente “perderam a razão” por conta da vida desregrada e do
uso abusivo de drogas. Trata-se, pois, de uma visão preconceituosa e que não leva em conta o
conjunto de pressões sociais e violações pelas quais essas pessoas passam diariamente. Pessoas
com deficiência são sujeitos de direito e contam com uma política específica para promoção de
sua saúde, mas poucos possuem tal conhecimento e, muito menos, acesso pleno aos serviços.
Alguns sequer conhecem as equipes do CnaR, conforme se verá mais adiante. Nesta pesquisa,
24,5% afirmaram ter algum tipo de deficiência. Desses, 40% têm deficiência física, pouco mais de
10% afirmam ter baixa visão e, aproximadamente, o mesmo percentual declara que tem
deficiência intelectual.
57
Não respondeu
Sim
Não sabe
19,20%
Não
78%
Figura 34: Questão – Qual deficiência? (para quem informou ter alguma)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
Problemas de acessibilidade aos serviços de saúde são uma das principais queixas das
pessoas com deficiência, o que, por si só, já contraria o princípio da equidade do SUS (Castro et
al, 2011). No caso da PSR, tem-se o problema adicional já mencionado das estruturas e dinâmicas
dos serviços, bem como os preconceitos e a falta de capacitação profissional (Paiva et al, 2016;
Andrade et al, 2022). Assim, se não há garantia de acesso aos serviços para a PSR, o problema é
ainda maior para as pessoas em situação de rua com deficiência.
58
Outro tema importante é o das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Embora os
dados desta pesquisa não as apontem como um dos principais problemas de saúde da PSR no
Recife, trata-se de um item que requer atenção e algumas considerações.
Um dado curioso sobre este tema é o fato de que, nesta pesquisa, 46% da PSR afirmou
usar preservativo durantes as relações sexuais. Para efeito de comparação, os dados recentes da
Pesquisa Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, relativos ao período de 2019, demonstram
que apenas 22,8% dos brasileiros usam preservativo (IBGE, 2020). É necessária alguma
ponderação em relação aos dados autodeclarados, especialmente diante de um tema sensível
que foi, e ainda é, objeto de muitas campanhas de conscientização. Contudo, a simples
preocupação em demonstrar que faz uso já evidencia certo avanço no que diz respeito às políticas
de prevenção das ISTs. Sobre essas questões, é inegável o papel atualmente exercido pelo CnaR e
a disponibilização gratuita de preservativos nos equipamentos de saúde.
Nunca
21% Sempre
46,90%
Raramente
3,50%
Às vezes
16,5%
59
Por fim, cabe ressaltar as condições de saúde da PSR no contexto de crise sanitária
desencadeada pela pandemia da COVID-19. O fato de não ter onde morar e ter de viver nas ruas
expôs, de forma ainda mais intensa, essa população ao vírus mortal, ocasionando a intensificação
do risco e da vulnerabilidade sociais. Ainda no auge da crise, quando as recomendações eram
ficar em estado isolamento, a maior parte das pessoas continuavam a circular pelas ruas, sem os
insumos necessários para fazer assepsia e manter a higiene, tais como máscaras e álcool em gel.
Sim, com
confirmação, mas
sem internação
35,30%
Não contraiu
COVID-19
84%
Nesta pesquisa, 86% da PSR afirmou não ter contraído a COVID-19, o que provavelmente
tem a ver com o baixo número de testagem no período mais crítico da pandemia. Por outro lado,
destacamos que a gestão da cobertura vacinal, quando finalmente havia vacina e depois de
vencidos os entraves postos pelo próprio governo federal, ainda não chegou a níveis satisfatórios.
De acordo com os dados desta pesquisa, 85% das pessoas em situação de rua tomaram a vacina.
60
Desse total, apenas 40% tomaram as três doses da vacina, valor abaixo da média nacional, que é
60%, e também abaixo da média estadual, que é 82%. Um quarto dos entrevistados chegou a
tomar 4 doses, mas 10% tomaram apenas uma única dose.
Não
12%
Sim
86,90%
1 dose
4 doses
10,90%
25,3%
2 doses
25,8%
3 doses
37,90%
Figura 38: Questão – Quantas doses da vacina? (para quem tomou vacina)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
61
SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL
O cotidiano das pessoas em situação de rua é atravessado por violações, maior parte das
quais relacionadas aos direitos humanos mais básicos, como o direito à alimentação. No Brasil, o
Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequada (DHAA) está preconizado na Lei
11.346/2006, conhecida por Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), lei essa
que também instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Depois,
o Decreto Nº 7.272/2010 instituiu a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(PNSAN) e, por meio da Emenda n. 64/2010, a alimentação passou a figurar entre os direitos
primordiais positivados na Constituição Federal. Desde então, os governos têm por obrigação
promover e garantir a SAN de toda população, inclusive a PSR.
Com a criação do Programa Fome Zero, em 2003, houve todo um estímulo, por parte do
Governo Federal na época, para a criação de Conselhos Estaduais e Municipais de Segurança
Alimentar e Nutricional. O Recife foi um dos municípios que instituíram seu Conselho Municipal
de Segurança Alimentar e Nutricional (COMSEA), criado pela Lei Nº 17.019/2004, alterado pela
Lei Nº 18.354/2017, cujo regimento interno foi instituído pelo Decreto Nº 33.036/2019. O
COMSEA já chegou a realizar 3 conferências municipais, nas quais estabeleceu diretrizes e
propostas para o Plano Municipal de Segurança Alimentar (I PLANSAN/Recife), que ainda não foi
aprovado, exigindo, assim, do poder público municipal compromisso e maior atenção quanto a
sua aprovação e execução.
O plano segue o que prescreve a LOSAN e tem por objetivo instruir as ações institucionais
de modo a garantir o DHAA. Por fim, cabe registrar que, por meio do Decreto Nº 27.815/2014, foi
também criada a Câmara Intersecretaria da Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), que
compõe o Sistema Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (SMSAN), instituído pela Lei
Nº 18.213/2016. Segundo a LOSAN (Lei 11.346/2006), a segurança alimentar e nutricional...
62
os lugares do mundo. Segundo o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo
2022, publicado conjuntamente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura (FAO), Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), UNICEF, Programa
Mundial de Alimentos (WFP) e Organização Mundial da Saúde (OMS), subiu para 828 milhões o
número de pessoas afligidas pela fome no mundo. Além disso, 11,7% da população mundial vivem
sob insegurança alimentar em níveis graves (ONU, 2022).
Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas, um mapeamento que
engloba os países em que, ao menos, 2,5% da população total sofrem com falta crônica de
alimentos. No entanto, num curto intervalo de tempo, em 2018, a fome retornou ao país de forma
bastante acelerada. Em 2022, cerca de 4,1% da população brasileira já se encontrava em situação
de “fome crônica”, que é a forma mais grave de insegurança alimentar (ONU, 2022).
Embora não se tenha muitas informações a esse respeito, o quadro acima descrito afeta
especialmente a PSR, pois muito antes da pandemia, tal população já se deparava com grandes
obstáculos no acesso à alimentação. A bem da verdade, o acesso à alimentação saudável é uma
das principais violações pelas quais passa a PSR, juntamente com a falta de acesso à moradia
digna. A fome de quem vive nas ruas hoje é parcialmente remediada pelos restaurantes
populares. O “Recife Acolhe”, programa ligado ao atual governo e que visa organizar e expandir
as ações executadas por diferentes secretarias na promoção dos direitos primordiais da população
mais vulnerável da cidade, tem como um de seus eixos a garantia da SAN para a PSR.
63
gesto que atenua a insegurança alimentar e nutricional da PSR. Mas a oferta de alimentos não é
suficiente para o atual contingente, e ainda não se tem informações mais sistemáticas nem o
efetivo controle da sua qualidade nutricional.
Dos entrevistados/as, 65% afirmaram já ter passado um dia inteiro sem comer, desde que
passou a viver nas ruas. Verificamos também que, aproximadamente, 31% das pessoas em
situação de rua não realizam três refeições ao dia, e apenas 31% afirmaram fazer mais de quatro
refeições. Isso só comprova o fato de que a oferta de alimentos ainda não é satisfatória, o que
viola o direito humano à alimentação e fere o que preconiza a Losan, isto é, a garantia de alimento
de qualidade, de forma contínua, para toda população.
Não
34,2%
Sim
65%
64
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
Não respondeu
1
Não sabe
9,80%
4 ou mais
31% 2
21,8%
3
34,10%
Vale ponderar que o acesso ao alimento também depende do lugar da cidade e das
condições de mobilidade. A concentração de equipamentos e das ações sociais nas áreas centrais
faz com que boa parte dessa população tenha de se deslocar pelos bairros da cidade, muitas vezes
a pé, em busca de alimentos. Trata-se, portanto, de uma verdadeira “romaria de famintos”, que
recorrem aos equipamentos e serviços da assistência social todos os dias, atravessando a cidade
em busca de alimentos.
Sim, em outro
bairro
31,90%
Sim, no mesmo
bairro
33,6%
65
Figura 43: Questão – Como se desloca para obter alimentos? (para quem respondeu que precisa se
deslocar na cidade para obter alimentos)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
Entre as três principais refeições do dia, 65,4% (Figura 44) afirmaram que o almoço é o
mais essencial, talvez, porque, em nossa culinária regional, disponha de uma maior quantidade
de proteína, responsável por oferecer uma maior sensação de saciedade. De acordo com os dados
apresentados na Figura 45, a refeição apontada como mais difícil de se obter é o café da manhã
(35,5%), uma vez que não há muita oferta e doações no início do dia.
Destacamos também que essa mesma reflexão foi apontada ao falar sobre as refeições a
que têm acesso à noite, depois de um dia nas ruas. Para muitos/as, a sopa, alimento servido no
restaurante popular, não é comida de adulto, é de criança e de doente. O desejo reiteradamente
66
expresso é o de acesso a um alimento forte, ao final do dia, a referência aqui é a mesma
apresentada para o café da manhã ou ao que é servido no almoço.
Almoço
65,4%
Não respondeu
13,9%
Café da Manhã
Não sabe 35,50%
12,4%
Lanche
3,3%
Jantar
16,1%
Almoço
18,8%
Figura 45: Questão – Refeição mais difícil de se obter?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
Importante destacar que a disponibilidade e o acesso à água são essenciais para a garantia
da SAN. Há uma dificuldade crônica, por parte da PSR, de se obter água potável para beber e para
o asseio pessoal. Nesta pesquisa, a maior parte das pessoas entrevistadas responderam que
conseguem água através dos equipamentos da assistência social, de doações feitas por populares,
67
de estabelecimentos comerciais e de bicas, minas d’água ou chafarizes públicos (Figura 46).
Ressalte-se que a água obtida em algumas dessas fontes não tem o necessário tratamento e, em
muitos casos, não é apropriada para o consumo humano, colocando em risco a saúde dessa
população.
As referidas fontes de água potável estão intimamente relacionadas aos lugares onde a
PSR do Recife costuma realizar as atividades de higiene pessoal, tais como: o banho, a limpeza
bucal e a lavagem de roupas. A ampla maioria afirmou que se higieniza nos equipamentos públicos
da assistência, nos banheiros públicos e em bicas, minas d’água e chafarizes públicos (Figura 47).
Em outras palavras, a água com a qual realiza sua higienização é a mesma usada para o consumo.
68
É urgente que a legislação que trata da SAN seja cumprida pelos diferentes entes
federativos, especialmente pelo município, a fim de garantir a segurança alimentar e nutricional
da população em situação de rua, mediante a ampliação e diversificação da oferta de alimentos
de qualidade, ou seja, comida de verdade e água potável em diferentes lugares da cidade.
A vida nas ruas é marcada por privações e necessidades não atendidas. As inúmeras
desfiliações e violações de direitos põem essas pessoas em alto grau de isolamento e solidão. Os
vínculos inconstantes e frágeis estabelecidos na situação de rua não compensam as perdas, e o
desamparo vai diminuindo a autoestima, o autocuidado e o desejo de mudança. Além disso, as
diversas formas de violência se impõem de maneira implacável, uma vez que essas pessoas,
muitas vezes, são vistas como contraventoras e responsáveis por suas próprias condições
individuais de vida, processos aos quais viemos fazendo menção desde o início deste documento.
A maior parte dos/as entrevistados/as afirmou ter sido vítima de algum tipo de violência,
sendo a agressão física e as discriminações social e a racial as mais recorrentes. Boa parte dessas
ocorrências se dão no contexto de suas relações cotidianas, muitas vezes por conta de desavenças
com outras pessoas em situação de rua. Contudo, agressões realizadas por populares e
seguranças privados também são frequentes.
A violência sexual, por sua vez, atinge especialmente as mulheres, deixando as marcas em
seus corpos. A violência física e sexual, muitas vezes sofrida nos logradouros públicos, se repete
69
nos espaços institucionalizados, como nas unidades de acolhimento. A violência institucional, por
sua vez, se manifesta também pelas ações discricionárias e higienistas da polícia e da zeladoria
urbana, que os fazem perder os poucos pertences que lhes restam, conforme apontamos na seção
referente aos direitos de cidadania.
Soma-se a isso o grau de pobreza menstrual a que estão submetidas essas mulheres e
meninas. Segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações
Unidas para a Infância (UNICEF), a pobreza menstrual é um fenômeno complexo, que busca
designar a “falta de acesso a recursos, infraestrutura e conhecimento para a plena capacidade de
cuidar da própria menstruação”. Diversos fatores concorrem para isso, tais como: a falta de acesso
a produtos adequados para o cuidado da higiene menstrual; ausência de banheiros seguros e em
bom estado de conservação; falta de acesso a medicamentos para administrar problemas
menstruais; insuficiência de informações sobre a saúde menstrual e autoconhecimento; além de
tabus e preconceitos sobre a própria menstruação (UNFPA/UNICEF, 2021).
Nesta pesquisa, menos da metade das pessoas que menstruam responderam que usam
absorventes (Figura 49). Cerca de 20% responderam que nem sempre usam absorventes e, muitas
vezes, recorrem ao uso de tecido qualquer para a higiene menstrual. O baixo acesso aos produtos
necessários ao cuidado menstrual acomete boa parte das mulheres periféricas, o que ensejou
toda uma discussão durante o período pandêmico. Essa questão é agravada também em situação
de cárcere. Inúmeras foram as tentativas de reverter o quadro, mediante a criação de leis e
políticas voltadas não apenas à distribuição gratuita de absorventes descartáveis, mas na
realização de medidas de educação para o cuidado menstrual (Moreira, 2021).
70
Não menstrua mais
2,6%
Não respondeu
22,6%
Mais da metade das pessoas que menstruam responderam que têm acesso ao absorvente
descartável através de doações, especialmente do poder público. Porém, mais de 25% disseram
que necessitam comprar (Figura 50). Em se tratando de uma população empobrecida e sem renda
fixa, este último percentual revela que a cobertura realizada pelo poder público ainda é
insuficiente.
71
controle dos preços dos produtos de higiene e saúde menstrual. Essas ações são particularmente
importantes para as pessoas em situação de rua, que necessitam do Estado para ter garantido
mais esse direito.
A partir do momento em que são levadas a viver nas ruas, essas pessoas, muitas vezes,
tentam reproduzir uma vida domiciliada, definindo um lugar regular para pernoitar, construindo
um barraco e procurando estabelecer lugares específicos e sem circulação para o exercício da
intimidade, tais como: buracos, vielas, arbustos etc. Com o tempo, e diante das sucessivas
violações, especialmente aquelas relacionadas às perdas dos seus objetos pessoais diante das
ações higienistas da polícia e dos serviços de zeladoria urbana, a necessidade de manter a
distinção entre a vida pública e a privada vai se esvaindo. Assim, o sexo e as necessidades
fisiológicas (defecar e urinar) vão sendo realizados de forma cada vez mais aberta e à vista de
todos.
Nesta pesquisa, quando perguntados sobre onde defecavam e urinavam durante o dia,
mais de 35% responderam que faziam na própria rua. Pouco mais de 40% afirmaram que usavam
banheiros públicos, muito embora reconhecessem que não havia equipamentos desse tipo em
quantidade e qualidade necessária para a grande procura. Há ainda que se considerar que,
mesmo em locais públicos, a população em situação de rua encontra barreiras para o acesso.
72
Figura 51: Questão – Onde faz suas necessidades fisiológicas?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
Para onde ir e o que se pode fazer quando todo lugar parece inseguro e hostil? Nesta
pesquisa, quando perguntados sobre que lugar da cidade consideravam mais seguro, a maior
parte dos/as entrevistados/as indicaram as unidades de acolhimento ou os lugares mais vigiados
da cidade. Quando falamos em vigiados, nos referimos à presença de pessoas, muito mais do que
da segurança pública oficial. A vigilância social, inclusive feita por outras pessoas em situação de
rua, é vista como requisito para o recolhimento noturno e o descanso. Contudo, em que pese a
violência institucional ocasionada pelas forças policiais, muitos ainda reconhecem, na polícia, a
instituição encarregada de protegê-los. Importante destacar também as referências aos lugares
da cidade que têm câmeras de vigilância e monitoramento para garantir alguma segurança.
A vida nas ruas não permite muito sossego. O estado de vigília noturno é muito comum,
e os período de descanso são intermitentes e não permitem a plena recomposição da energia
73
física e mental. Exatamente por isso, recorrem às drogas. Em muitos casos, sem elas, não é
possível relaxar e descansar. Os corpos em situação de rua estão em constante estado de alerta,
expostos a toda sorte de adversidade e a todo tipo de risco. Diante de tanta violência e estresse,
sobra pouco espaço para a diversão. Nesta pesquisa, quando perguntados sobre como se
divertiam, quase 20% responderam que, simplesmente, não se divertem. Outros 20% afirmaram
que consumiam drogas ilícitas, e pouco mais de 20% disseram que consomem bebida alcoólica
para se divertir. A visitação à praia foi apontada por mais 30% dos entrevistados. Acreditamos que
a ida à praia e o consumo de drogas se deem de forma combinada.
As pessoas em situação de rua necessitam do Estado para suprir quase todas as suas
necessidades mais essenciais, e não encontram o amparo básico para depreender seu tempo e
energia em atividades que as auxiliem a vencer desafios e a construir um novo projeto de vida. A
vida na rua é degradante e exaustiva, e não deixa muito espaço para a superação. A percepção a
respeito das necessidades é algo que também precisa ser levado em conta, pois os saberes
daqueles que vivem as iniquidades são tão importantes quanto os nossos esforços científicos e
políticos.
74
Quando perguntamos sobre as principais necessidades das pessoas em situação de rua,
os entrevistados apontaram “moradia”, “trabalho e renda” e “saúde” como os principais (Figura
53).
Figura 53: Questão – Quais as principais necessidades da população em situação de rua? (múltiplas
respostas)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
EDUCAÇÃO E TRABALHO
75
tecendo, seja sobre os vínculos familiares e trajetórias, seja sobre cidadania, acesso à saúde, lazer,
segurança alimentar e nutricional.
A RUA E O TRABALHO
Quando chegou ao Recife, em 1910, Gregório Bezerra era uma das vítimas da seca e da
espoliação de terras no Agreste pernambucano, que dizimaram a plantação e os animais,
impuseram a fome e a desagregação familiar. Os irmãos e irmãs foram acolhidos em casas de
parentes, e coube ao menino Gregório acompanhar, como "ajudante", a família de um
latifundiário em mudança para a Capital. Após algum tempo como "faz tudo" da família, esfolado
no trabalho doméstico e abusado pelas agressões da matriarca, fugiu para as ruas da capital
pernambucana antes de completar 11 anos. Viveu dos trabalhos que fazia como transportador
de malas e maletas, alguns bicos de limpeza de casas e escritórios e, principalmente, vendedor
de jornais. Com os recursos que juntava, almoçava nas bodegas populares, tomava banho vez por
outra e dormia nas marquises e sob as pontes, "onde era vencido pelo sono". Dois dos seus
irmãos juntaram-se a ele nas ruas de Recife, trabalhando em serviços domésticos e como
vendedores de jornais.
76
Era dono das ruas, das calçadas e de todas as escadas que encontrava abertas
na cidade do Recife. Vez por outra, brigava com malandros que queriam
roubar meu rico dinheirinho e assim ia vegetando como "dono" da maior, mais
bela e mais miserável cidade do Nordeste, cheia de pontes, em cujas colunas
encontrei o abrigo mais seguro e mais tranquilo de todos (BEZERRA, 1979,
p.136-137)
Quatro anos depois, e muitas aventuras, começou a aprender o ofício de pedreiro, com
um mestre de obras, alcançando o grau de "meia-colher" (quase pedreiro). Com a ida do mestre
de obras para São Paulo, passou a ajudante de um carpinteiro que lhe ensinou a profissão e que
também seguiu para a capital paulista. Trabalhou como pedreiro, carpinteiro, pintor, carvoeiro,
arrumador de armazém de açúcar e como estivador, até fazer 17 anos, quando enfrentou a sua
primeira prisão como "perturbador da ordem".
Essa passagem das memórias de Gregório Bezerra nos informa sobre a dimensão
histórica do fenômeno da população que vive em situação de rua na cidade do Recife. O "sentido
da fuga" do campo e chegada à capital pernambucana retrata igualmente uma outra dimensão
importante da população em situação de rua, derivada desse processo migratório que se
acentuou ao longo do século XX, com a industrialização do país e a urbanização que lhe é
intrínseca.
Gregório Bezerra nos fornece ainda uma aproximação com o sentido e a forma que o
trabalho assume para os moradores de rua, um meio de gerar renda para fazer frente às
necessidades mais imediatas, como o alimento. Há mais de um século, a venda dos jornais diários
parecia constituir a ocupação predominante e de fácil ingresso, uma vez que não requeria
qualificação profissional e permitia o acesso de jovens e de crianças a alguma renda diária.
Atualmente, são os serviços de catação de materiais reciclados e o comércio ambulante que se
constituem como as principais atividades de geração de renda para a população em situação de
rua.
Nesta seção, vamos analisar os dados obtidos no presente censo quanto à trajetória
ocupacional, ao perfil profissional, ao acesso ao trabalho e apresentar algumas indicações sobre
as políticas públicas para a geração de trabalho e renda para a população em situação de rua.
O TRABALHO E A RUA
Uma questão preliminar que se impõe, a partir dos dados do censo, diz respeito aos
motivos que levam as pessoas que se encontram em situação de rua a buscarem, geralmente, os
77
lugares mais centrais dos agrupamentos urbanos como espaço de permanência, especialmente
os centros históricos. Dito de outra maneira, perguntamos: quais condições especiais a população
em situação de rua encontra, nos espaços mais centrais das cidades, que os tornam mais
favoráveis para a sobrevivência nas ruas? Podemos supor que essas escolhas são motivadas pela
proximidade aos serviços públicos, facilitando o acesso aos equipamentos e políticas sociais
disponibilizados pelos governos municipais e estadual. Outra condição favorável pode resultar
das oportunidades de trabalho que se oferecem nas regiões centrais das cidades, do
adensamento de empresas comerciais e de serviços, da circulação intensa de pessoas e recursos,
das possíveis (e sempre incertas) oportunidades de trabalho ou ocupação. Esse efeito ímã dos
centros urbanos também pode derivar da condição de maior segurança que oferecem, em função
do coletivo de pessoas que enfrenta semelhante situação, talvez a formação de uma comunidade
de destino, a criação de vínculos, as relações de cooperação e solidariedade, a troca de
experiências e informações sobre as alternativas de trabalho e acesso à renda. Por fim, pode ser
relevante sugerir que os centros urbanos sejam igualmente favoráveis ao deslocamento em busca
de trabalho, no âmbito das regiões metropolitanas, possibilitando a cobertura maior das áreas
que ofertam possíveis postos de trabalho.
Não queremos dizer que a ocupação ou a inserção laboral não represente uma condição
de significativa importância para a estruturação da trajetória e perspectiva de vida dos indivíduos
na sociedade capitalista. Pelo contrário, uma característica central do modo de produção
capitalista é a expropriação, permanentemente, dos/as trabalhadores/as em relação aos meios
de produção que poderiam garantir a reprodução autônoma das condições de existência,
obrigando a classe que vive do trabalho a ofertar sua força de trabalho em troca de um salário.
Mas não achamos que se possa explicar a problemática de "trabalho para a população em
situação de rua" a partir da chave única da "falta de trabalho". O fenômeno é mais complexo, e o
censo o está demonstrando.
78
Conforme já comentado neste relatório, em questão de múltipla escolha, as justificativas
apontadas para a atual situação vivida foram, primeiramente, os conflitos familiares (50%); em
seguida, a utilização de álcool e drogas (40%) aparece como fator determinante; em terceiro
lugar, está a perda da moradia (19%); apenas em quarto lugar surge a perda do trabalho como
causa principal (18%). Entendemos que essas motivações podem estar relacionadas entre si, e
geralmente estão. A perda do trabalho ou a falta de ocupação pode dar origem a conflitos
familiares, bem como ocasionar a perda da moradia. Do mesmo modo, o uso de estupefacientes
pode ter sido o causador da perda de trabalho, pelos possíveis efeitos na produtividade e na
disposição para o trabalho. Nesse caso, devemos sublinhar que a ausência ou perda do emprego
e a experiência do desemprego de longa duração costumam gerar tensões e sofrimentos,
conflitos e desestruturação familiares4.
Tendo essa imagem inicial como pano de fundo, chama a atenção o fato de 32% dos
entrevistados terem informado que a escolha da cidade Recife tenha sido motivada pela
necessidade de procurar trabalho, e 50% preservarem, dentre seus documentos de identificação,
a carteira de trabalho. Nessa medida, o trabalho parece constituir, ainda, no imaginário social da
população em situação de rua, a dimensão estruturadora da vida social, condição para o resgate
da dignidade e a construção da identidade social e profissional dos sujeitos. Talvez isso nos ajude
a entender as respostas à questão sobre suas principais necessidades (Figura 53).
Uma vez que 82% da população em situação de rua não possui qualquer alternativa de
moradia, é compreensível que esta seja a demanda principal (75%) auferida pelo censo (Figura
53). A moradia é condição primeira para garantir a segurança, o descanso digno, ou "recuperação
dos ossos", o início de um modo de vida minimamente "organizado", a condição para a
manutenção da saúde física e mental. Mais do que isso, a moradia é também indicadora de
cidadania, pois fornece o "endereço fixo", tanto para o cadastramento nos programas sociais
como para o registro nos serviços de intermediação de mão-de-obra ou, ainda, para as unidades
de recrutamento de pessoal pelas empresas.
4
Ver, a esse respeito: GUIMARÃES, Nadya Araújo. Desemprego, uma construção social: São Paulo, Paris e
Tóquio. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009.
79
imperativo para a reconstrução dos laços comunitários, de identidade e solidariedade, "porta de
entrada" para outros sentidos possíveis para a vida social5.
Vejamos essa questão iniciando pela ocupação atual das pessoas em situação de rua,
conforme os dados desta pesquisa.
5
Devemos considerar, entretanto, que podem ser encontrados indivíduos em situação de rua que não
demonstrem interessem em sair dela. A decisão por permanecer na rua, habitar e viver nela, ainda que
almejando o acesso aos programas e benefícios sociais, quando tomada por indivíduos que se encontram
nessa situação por muitos anos, nos parece que pode ser considerada uma decisão legítima, como
expressão de uma opção por outra forma de vida em sociedade, vinculada a alguma ideia de "liberdade",
embora fora dos padrões considerados "normais". A questão, nesses casos, seria: qual modelo de cidade
poderia acolher esse tipo de decisão, favorecer a permanência desses indivíduos nas ruas ou calçadas,
garantir tipos adequados de proteção, conforto e bem-estar?
6
Ver, a esse respeito, a obra de Adalberto Cardoso, A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil, já
mencionada neste relatório.
80
Não sabe Não respondeu
Empregado, sem registro
Empregado, com em carteira
registro em 3%
carteira
2% Trabalhando por
conta própria
8,40%
Não Trabalha
48,60%
Fazendo bicos
36,50%
Como vemos, quase a metade das pessoas em situação de rua na cidade de Recife não
trabalha, e os que o fazem realizam atividades intermitentes ("bicos") ou trabalham por conta
própria. Esses homens e mulheres que realizam atividades remuneradas pontuais, ou que se
ocupam de forma autônoma na produção de bens e serviços, somados aos que se manifestaram
como empregados sem registro em carteira, constituem uma parcela da chamada economia
informal, setor informal ou informalidade. Não trataremos aqui da discussão existente no campo
da sociologia do trabalho sobre a evolução desses conceitos7, bem como das relações entre o
setor informal e os setores formais da economia, da relativa autonomia ou subordinação às
dinâmicas mais gerais de acumulação do capital. De forma geral, trata-se de um segmento
constituído por trabalhadores/as em situação de pobreza ou extrema-pobreza que realizam
atividades sem registro formal e proteção social, e que geralmente conseguem inserção em
formas de trabalho precário, sem regularidade, de natureza diversa e heterogênea (os "bicos").
7
Sobre esse debate, ver a obra: Marchas e Contramarchas da Informalidade do Trabalho: das origens às
novas abordagens. / Roberto Véras de Oliveira; Darcilene Gomes; Ivan Targino. (orgs.). João Pessoa/PB:
Editora Universitária da UFPB, 2011.
81
situação de rua. Parece-nos que esses/as trabalhadores/as podem dispor de condições favoráveis
para a obtenção de moradia, consistindo o emprego regular (formal ou informal), bem como o
acesso e a permanência em programas e benefícios sociais, os pilares que conformariam certa
estabilidade e sustentabilidade da residência.
8
Em posteriores análises, a partir do cruzamento dos dados do censo, será possível identificar se há
sobreposição entre esses dois grupos. A hipótese, nesse caso, é a de que parte desse grupo que realiza
trabalhos regulares, formal ou informalmente, é formado por quem concluiu ou não o ensino superior.
82
Não Respondeu Há menos de 6
Não sabe 8,40% meses
3,6% De 6 meses a 1 ano
4%
6,2%
De 1 a 3 anos
10,50%
De 3 a 5 anos
13,50%
Há mais de 10 anos
37,1%
De 5 a 10 anos
16,70%
Figura 55: Questão – Quando foi a última vez que teve trabalho com registro em carteira?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
83
Atualmente, o campo da Economia Solidária9 pode representar uma alternativa
importante para a geração de trabalho e renda para os setores mais vulneráveis social e
economicamente, considerando também a diversidade e a especificidade da população em
situação de rua. Exemplos disso são as experiências, no Brasil, de organização produtiva de
usuários da rede de saúde mental a partir dos princípios da economia solidária10. O Brasil pode
ser considerado uma referência importante no campo da saúde mental e trabalho, inclusive com
uma legislação específica, que criou a possibilidade da formação de "cooperativas sociais" com
pessoas em "desvantagem social" (Lei n. 9.867/1999)11.
9
Ver, a esse respeito, SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora da Fundação Perseu
Abramo, 2002.
10
Ver, por exemplo, a pesquisa de MARTINS, Rita. Cooperativas Sociais no Brasil: debates e práticas na
tecitura de um campo em construção. Brasília: UNB, 2009. [Dissertação de Mestrado em Sociologia/UNB].
11
Embora importante por reconhecer e instituir a figura das pessoas em desvantagem social, a Lei não
confere quaisquer incentivos à criação e ao funcionamento das cooperativas sociais, de maneira que restou
pouco efetiva. Por pessoas em desvantagem social, a Lei considera: os deficientes físicos e sensoriais; os
deficientes psíquicos e mentais, as pessoas dependentes de acompanhamento psiquiátrico permanente, e
os egressos de hospitais psiquiátricos; os dependentes químicos; os egressos de prisões; os condenados a
penas alternativas à detenção; os adolescentes em idade adequada ao trabalho e situação familiar difícil do
ponto de vista econômico, social ou afetivo.
84
programa de revitalização urbana com a participação da população usuária dos serviços, com
programas destinados à varrição de ruas e manutenção dos jardins e praças.
Outra atividade igualmente com alta aderência é a catação de materiais recicláveis. Nesse
caso, especificamente, temos a sinalização de que uma parcela expressiva da população em
85
situação de rua já vinha se dedicando, há algum tempo, a atividades precárias, desenvolvidas em
função da necessidade imperativa da sobrevivência e que exigem baixa qualificação.
Figura 57: Questão – Em que área trabalha atualmente? (para quem trabalha)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
Percebemos que 1/4 da população em situação de rua, que realiza algum tipo de
trabalho, atua como catador/a de materiais recicláveis. Talvez a catação desses materiais
(principalmente latinhas de alumínio, papelão e pet) tenha substituído a antiga atividade de
vendedor de jornais diários, como vimos no caso que abriu essa seção. Os materiais recicláveis
apresentam grande liquidez, de maneira que qualquer quantidade coletada em um dia de
trabalho pode ser comercializada, no mesmo dia, garantindo a reprodução social pelo trabalho.
86
população em situação de rua que atua na catação. Já é de conhecimento de todos que a
atividade de catação de materiais recicláveis já se encontra reconhecida pelo Ministério do
Trabalho e Emprego como categoria profissional (inserida no Código Brasileiro de Ocupações -
CBO). As ações do poder público poderiam envolver: a qualificação social e profissional dos
catadores; a disponibilização de equipamentos de proteção individual; o fomento à coleta
seletiva; a disponibilização de carrinhos de transporte dos materiais; os fardamentos com
identificação; a construção de entreposto público, para a garantia de preço dos materiais e da
renda dos catadores; o fomento ao associativismo e cooperativismo, entre outras.
12
Importante a pesquisa sobre os vendedores ambulantes que atuam nos semáforos de Recife, realizada
pela Fundação Joaquim Nabuco e a UFPE: Trabalho Precário no Meio Urbano: semáforos do Recife. /
Tarcísio Patrício de Araújo (Coord.), Ana Elisa Medeiros de Vasconcelos Lima [et al.] - Recife: Fundação
Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2007.
87
rua nas obras de infraestrutura etc. Além disso, a articulação com o Instituto do Patrimônio
Histórico (IPHAN) poderia resultar na qualificação específica combinada com serviços de
recuperação de prédios tombados pelo patrimônio histórico. Nesse caso, o canteiro de obra se
transformaria em espaço de qualificação profissional e inclusão social.
Figura 58: Questão – Qual o curso profissionalizante? (para quem já fez algum curso profissionalizante)
(múltiplas respostas)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
Cabe o registro de que a grande maioria dos cursos (63,4%) não contou com qualquer
estratégia de encaminhamento nem orientação para o mercado de trabalho. Como
conhecimento não ocupa lugar, a realização de cursos de qualificação profissional é sempre
importante para ampliar as capacidades e conhecimentos dos/as trabalhadores/as, mas não se
deve esperar que resultem imediatamente em colocação no mercado de trabalho, ainda que sob
uma conjuntura favorável de crescimento econômico e geração de emprego.
13
- Ver, a esse respeito, a obra: Qualificar pra quê? Qualificação pra quem?: do global ao local: o que se
espera da qualificação profissional hoje. / Roberto Véras de Oliveira (organizador). - São Paulo: Fundação
Unitrabalho,; Campina Grande: EDUFCG, 2006.
88
consistentes da educação formal e um quadro geral de comportamento social genérico adequado
ao ritmo, à disciplina e à comunicação social. Para aqueles que se encontram em situação de
desemprego de longa duração, são esses aspectos gerais de disciplina e comunicação que
dificultam o reingresso ao mercado de trabalho, além do próprio atraso relativo às tecnologias e
às formas sociais de organização da produção14.
Do mesmo modo, 41% dos entrevistados informaram possuir algum tipo de deficiência,
que representa igualmente um entrave ao mercado de trabalho, na ausência de políticas ativas
de inclusão laboral desse segmento. 30% mantêm dependência de álcool e drogas, requerendo
acesso e acompanhamento dos serviços públicos de saúde e assistência. A passagem pelo sistema
prisional representa outra dimensão estigmatizadora que marca as trajetórias dos sujeitos. Alia-
se a isso o fato de que 67% tiveram acesso apenas ao ensino fundamental, e boa parte não
concluiu, sequer, essa etapa; 8% chegaram no ensino médio, sendo que 14% completaram,
configurando um quadro geral de baixa escolaridade, com 21,6% de analfabetos. 15
Dessa maneira, parece ser adequado afirmar que a população em situação de rua
encontrará imensos obstáculos para a sua reinserção no mercado formal de trabalho. Talvez uma
parcela consiga a ocupação em postos formais de trabalho, mas esses serão mais a exceção do
que a regra. Isso não quer dizer que não haja alternativas. As experiências de economia solidária,
cooperativismo social e a geração de trabalho e renda, a partir da organização pelo poder público,
podem fazer imensa diferença para a grande maioria da população em situação de rua. A política
pública é o que faz e fará, ao final, a grande diferença.
14
Na pesquisa realizada com os trabalhadores nos semáforos do Recife, os autores alertam: "A constatação
de que uma parcela considerável dos trabalhadores pesquisados havia frequentado cursos de formação
profissionalizante sugere o quanto é difícil aumentar a empregabilidade de pessoas com insuficiente nível
de escolaridade, em particular quando o ambiente geral da economia não é de crescimento sustentado."
Trabalho Precário no Meio Urbano: semáforos de Recife. Tarcísio Patrício de Araújo (coord.), Ana Elisa
Medeiros de Vasconcelos Lima [et al.] - Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2007. p.76.
15
Já fizemos a ressalva anteriormente ao caso dos que se encontram em situação de rua com nível superior
completo ou incompleto, que poderiam ensejar políticas específicas dada a maior possibilidade de
reinserção no mercado de trabalho, assim como parte dos trabalhadores com ensino médio completo.
89
CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA
90
CENSO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA DO
RECIFE
Figura 59: Trabalho de escuta e cartografia social com adolescentes em situação de rua realizado durante
o Censo Pop Rua Recife; Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM,
2022
91
Por que os Meninos e as Meninas?
Nesse processo histórico, ressaltamos que os debates relacionados ao que faz com que
uma criança ou adolescente se encontre em situação de rua não são recentes. Até a década de
1990, dominava, nas discussões sobre o tema, uma quase completa ausência de base empírica
para as investigações. Tal condição implicou em uma produção de dados exorbitantes e, muitas
vezes, descolada da realidade. Em uma perspectiva de constituição histórica, é possível localizar,
já na década de 1980, os primeiros esforços da Organizações das Nações Unidas - ONU, no sentido
de construir critérios adequados para uma conceituação. Para esta agência internacional, crianças
e adolescentes em situação de rua são aquelas que, ainda não tendo alcançado a adultez, vivem
92
em espaços de rua, aqui compreendidos como terrenos baldios, casas abandonadas ou outros
locais sem controle ou fiscalização pública ou privada.
De acordo com essa Resolução, crianças e adolescentes em situação de rua são pessoas
em desenvolvimento de suas características e potencialidades físicas, mentais e sociais, que, por
diversos motivos, tiveram seus direitos humanos negados ou violados e que, por isso, se
encontram na condição de depender dos espaços públicos e áreas abandonadas como lugar de
moradia e sobrevivência.
93
De acordo com essa Resolução, a situação de vulnerabilidade na qual essas crianças e
adolescentes se encontram pode ser tanto permanente quanto intermitente, não sendo
utilizados, como critério identificador, padrões absolutos e exclusivistas. A percepção de consenso
sobre os fatores que levam a essa situação de rua é de que ela está relacionada diretamente com
a fragilidade ou completo rompimento dos laços familiares e comunitários nos quais os meninos
e meninas se encontram inseridos.
A nosso ver, essa definição proposta pela Resolução Conjunta avança em aspectos
importantes para garantir um padrão mais adequado de investigação, especialmente porque
possui uma sofisticação teórica, com um viés inclusivo e abrangente. Não se limita a padrões
meramente quantitativos, sem esgarçar os limites conceituais a tal ponto que se torna impossível
distinguir entre um menino ou menina que vive em situação de rua e outro que se encontra
envolvido no apoio e sustentação de um contexto familiar /comunitário.
O primeiro destaque que merece ser visibilizado é o fato de que meninos e meninas são
identificados como sujeitos de direitos humanos, que, por questões sociais, econômicas e
políticas têm as garantias de gozar dos mesmos direitos rompidos e violados. As definições
anteriores não tornavam explícita essa condição de sujeitos de direitos, optando por deixar as
crianças e adolescentes como elementos passivos, que apenas sofriam com a ausência de ações
positivas que lhes garantissem a dignidade.
94
voltadas para os meninos e meninas já contam com a “conceituação Nacional Sobre Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua, acolhimento Especializado de Crianças e Adolescentes em
Situação de Rua, orientações Técnicas para Educadores Sociais de Rua em Programas, Projetos e
Serviços com crianças e adolescentes em situação de rua, centro de Referência Especializado para
População em Situação de Rua – Criança e Adolescente” (Brasil, 2015, p. 26)
Nós que estamos nas ruas, às vezes, somos criticados, julgados... Assim,
quando a gente passa, a população pensa que a gente vai mexer, vai roubar,
mas a gente não vai praticar isso. A gente não vai praticar o mal, né? (Relato de
um adolescente em escuta na sede do Ruas e Praças)
95
Para além do registro, o depoimento marca o sentimento desse adolescente sobre as
possíveis reações das pessoas, que, ao conviverem com eles nas ruas da cidade, produzem
estigmas e preconceitos que impactam diretamente nas relações sociais e na própria forma como
o adolescente se percebe nos espaços em que circula. São “vidas precárias”, “vidas perdidas na
guerra” que precisam ser encontradas e reconhecidas pelas “políticas sociais concretas, no que
diz respeito a questões de habitação, trabalho, alimentação, assistência médica e estatuto
jurídico” (Butler, 2017, p. 31)
O Censo do Recife, realizado entre setembro 2022 e fevereiro de 2023, produziu uma
metodologia específica para trabalhar a pesquisa com crianças e adolescentes. Nessa
metodologia, atuou um grupo interdisciplinar de profissionais, formado por pesquisadores e
auxiliares de pesquisa da Universidade Federal Rural de Pernambuco -UFRPE, servidores da
assistência social que atuam nas instituições de acolhimento da Prefeitura da Cidade do Recife -
PCR, profissionais do Grupo Ruas e Praças e do Pequeno Nazareno, e representantes do
Movimento Nacional da População de Rua. Esta articulação foi necessária dada a complexidade
para produzir um caminho metodológico que possibilitasse a escuta ativa das próprias crianças e
adolescentes, diferenciando-se, assim, da metodologia da pesquisa censitária realizada com
jovens, adultos e idosos.
96
Na primeira etapa, referente ao processo que chamamos de aquilombamento, ou seja,
de articulação com os movimentos sociais e organizações da sociedade civil, a equipe de
pesquisadores realizou reuniões com lideranças e gestores do Movimento Nacional de Meninos
e Meninas de Rua, com o Grupo Ruas e Praças e com o Pequeno Nazareno. Esse processo foi
marcado pela troca de conhecimentos sobre os problemas sociais que atingem diretamente as
crianças e adolescentes no cenário pandêmico, vivido a partir de 2020. A primeira dessas
reuniões, com o Movimento Nacional, buscou apresentar a proposta do censo e seus desafios
com o trabalho com as crianças e adolescentes e a necessidade de produzir uma metodologia
exclusiva para a pesquisa com as crianças e adolescentes.
Figura 60: Reunião com a gestão das instituições de acolhimento da Secretaria da Assistência Social , na
sede da Prefeitura do Recife. Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia:
IMM/UFRPE, 2022
97
Figura 61: Reunião com o Grupo Ruas e Praças e o Pequeno Nazareno, na sede do Grupo Ruas e Praças.
Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022
98
cotidiano, despertando-nos a atenção para as principais violações de direitos e também suas
diferentes formas de superação.
Figura 62: Grupo Focal realizado no Grupo Ruas e Praças. Fonte: Censo da População em Situação de Rua
do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2023
99
Figura 63: Grupo Focal realizado na instituição de acolhimento Raio de Luz. Fonte: Censo da População em
Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2023
A metodologia grupo focal consiste em uma metodologia que permitiu que as crianças e
adolescentes compartilhassem as diferentes vivências e saberes construídos em suas trajetórias
de vida. Desperta-nos para subjetividades humanas que produzem os mais diferentes
sentimentos, resiliências e formas práticas de sobrevivência concretas, individuais ou coletivas,
produzidas nas ruas da cidade do Recife. A metodologia permitiu que meninos e meninas
participassem deste processo de forma protagonista e cidadã.
Traçar o perfil das crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de Recife é uma
tarefa importante e que foi aceita pela equipe organizadora deste censo. Entretanto, tal
enumeração empírica necessita, inicialmente, de uma contextualização teórica. Em que pese o
termo perfil ser costumeiramente usado em fundamentações teóricas homogeneizadoras, que
estabelecem características padronizadas, que favoreçam a tomada de decisões, supondo
comportamentos semelhantes em pessoas diferentes, o termo é tomado aqui como uma
tentativa de dar rosto, cor, voz, gênero e identidade aos meninos e meninas que vivem em
situação de rua na cidade de Recife.
100
A nosso ver, qualquer discussão em torno de um perfil para esses sujeitos deve partir do
reconhecimento de suas próprias identidades e subjetividades. Crianças e adolescentes são
pessoas que, convivendo na contemporaneidade, vivenciam os dilemas e tensões específicos
desse período. Dessa forma, é conveniente destacar, junto com Hall (2014), que as identidades,
em tempos pós-modernos, se constituem de forma diferente, uma vez que os dispositivos
tradicionais de controle como escola, família, trabalho e ideologia se encontram tensionados por
vivências políticas e econômicas desestabilizadoras.
Supor que, pelo fato de viverem em situação de rua, as crianças e adolescentes teriam
suas identidades mais simplificadas é expressão de um preconceito e de desconhecimento de
como se dá a produção de identidades em meio a um contexto cultural diverso. Diante dessa
constatação, constitui-se em um evidente objetivo a busca por reconhecer que esses meninos e
meninas são portadores de subjetividades específicas, complexas e ligadas com o contexto
cultural no qual estão inseridos.
101
Para a contagem, foram intercruzados os números de crianças e adolescentes
encontrados nas ruas do Recife, nas instituições de acolhimento e os atendidos nas organizações
da sociedade civil. Produzir essa conexão entre esses números é fundamental para alcançar o
resultado seguro do processo censitário. Desse modo, afirmamos que 6,10% da população de rua
do Recife é formada por crianças e adolescentes.
102
sociedade civil. Salientamos que as pessoas com idade inferior a 18 anos estavam acompanhadas
por adultos.
No que se refere ao gênero, 75% das crianças e adolescentes são do sexo masculino.
Historicamente, as ruas do Recife são marcadas pelo maior número de meninos em situação de
rua. Mesmo representando o percentual de 25%, consideramos que o número de meninas é
expressivo e que merece atenção por parte das políticas públicas e pelos serviços de atendimento,
haja vista a trajetória de vida marcada por violência e vulnerabilidade, ainda mais acentuada pela
cultura machista e sexista presentes nas redes de sociabilidades produzidas nas ruas, conforme já
discutimos em relação às mulheres em situação de rua.
No aspecto das trajetórias educacionais, a pesquisa revelou que 90% não frequentam
instituições de ensino regular. Verificamos que esses meninos e meninas não concluíram o ensino
fundamental, o que torna ainda mais desafiadoras e necessárias políticas educacionais
reparadoras da defasagem educacional dessas crianças e adolescentes. É preciso que tais políticas
considerem a trajetória histórica desses meninos e meninas, produzindo possibilidades de
pedagogias que acolham as diferentes potencialidades, sem considerar as fragilidades.
Esses números visibilizam nossas crianças e adolescentes nas mais diferentes dimensões
socioculturais e econômicas. Ao analisarmos os números apresentados, salientamos a relevância
de perceber que os problemas relacionados à presença dos meninos e meninas em situação de
rua precisam pensar na dimensão etária, ressaltando que, mesmo que o número de adolescentes
tenha se apresentado mais expressivo, é necessário observa que a quantidade é bem próxima, o
que ressalta os impactos desse fato no cotidiano da cidade e da vida dessas pessoas que possuem
idade inferior de 12 anos. Inferimos que esse fenômeno pode ser explicado pelo aumento da
pobreza e da extrema pobreza, desdobramentos da Pandemia e da fragilidade das políticas
socioassistenciais de transferência de rede, a exemplo do extinto Auxílio Brasil, criado pelo
Governo Federal, em 2021.
103
para a extrema fragilidade educacional, apontam a desmotivação desses meninos e meninas
retornarem aos espaços escolares, o que sinaliza a produção de políticas, programas, que
considerem, de forma prioritária, a trajetória da situação de abandono e desproteção extrema
desses meninos e meninas.
Rapaz, para mim que passei mais de um ano e pouco na rua, a rua não é nada
bom. Só tem tráfico. Só tem morte. A pessoa não pode estar deitado no canto
que a outra pessoa chega para mexer com o cara. Isso daí eu tiro por mim...
(Resultado do Grupo Focal 1 - Adolescente, menino, Raio de Luz)
Para tanto, a técnica desenvolvida nos dois equipamentos sociais foi a mesma, apesar
disso, cabe ressaltar que, diante da especificidade estrutural e organizacional desses espaços, pois
há de se levar em conta as atribuições e as práticas governamentais e não governamentais, foi
preciso ajustar a metodologia em função do tempo das entidades, do material didático a ser
disponibilizado e produzido e das intervenções pedagógicas frente contribuições dadas. Tudo isso
para que esse processo fosse consolidado de modo a atingir o objetivo proposto. Vale frisar que
nenhum dos ajustes citado interferiu no produto desta etapa.
104
Sendo assim, o debate gerado entre participantes dos grupos focais possibilitou, perante
a dinâmica aplicada, a exposição das experiências dos mesmos na rua, haja vista serem situações
corriqueiras vividas pela população que se encontra nesse contexto de vulnerabilidade. Porém,
considerando a naturalidade das falas, foram destacadas as dificuldades, as limitações e os
impedimentos encontrados, em se tratando de criança e adolescente nesse espaço (rua), uma
vez que são pessoas em desenvolvimento e que todas as oportunidades e facilidades a elas/as
postas precisam facultar seu desenvolvimento físico, mental, moral, social, em condições de
liberdade e de dignidade, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente e os marcos
normativos correlatos.
Muita gente dormia na rua e acordava com pé queimado. Quem vive na rua
não é porque quer, é por necessidade. A condição que a mãe não tinha para
criar. (Resultado do Grupo Focal – Adolescente 2, menino, Raio de Luz)
105
A ruptura dos vínculos familiares
- Eu fui desprezado pela minha família. Fui abandonado. Fui colocado para fora
de casa. (Adolescente 1, menino, Ruas e Praças)
- Só tu? [risos] (Adolescente 2, menino, Ruas e Praças)
- A mesma coisa eu... (Adolescente 3, menino, Ruas e Praças)
- O meu contato com a família é na rua mesmo. (Adolescente 4, menino, Ruas
e Praças)
- O meu é de boa... (Resultado do Grupo Focal – Adolescente 1, menina, Ruas
e Praças)
Depois que minha mãe sumiu, tio, eu meio que baratinei. Não quis ficar com
minha avó porque ela é usuária desses negócios e é metida em tráfico e aí não
quis ficar na rua mesmo. Ficar por aí andando (Resultado do Grupo Focal 1 -
Adolescente, menino, Raio de Luz).
106
Quando eu era pequena, eu saía muito e passei por uma situação que quase
que morria. Mas, graças a Deus, Deus me deixou, né. Pegavam mulher grávida
e estupravam. Já mataram um monte de gente. Abusaram do meu irmão de
nove anos. Degolaram o pescoço dele, mas Graças a Deus ele está vivo. Fui
para rua, passava necessidade, tenho meu filho de dois anos e dois meses,
porque o pai dele não queria dar a pensão (...) Essa situação de rua é
complicado. Para a pessoa sair é preciso pedir a Deus para voltar com vida...
Tem que sair com uma faca ou com qualquer coisa. (Resultado do Grupo Focal
1 - Adolescente, menina, Raio de Luz)
A condição das meninas em situação de rua apresentou-se como uma questão que
merece destaque em nosso censo. Mesmo sendo um número inferior ao dos meninos, é
importante ressaltar que, a partir dos relatos, foi constato que as políticas e programas de
atendimento devem se diferenciar em relação aos meninos, uma vez que a condição das meninas
está diretamente relacionada à violência de gênero, à gravidez na adolescência e a outras formas
de violências, como ficou destacado na fala acima. Destacamos que Recife, por meio da gestão
municipal, possui uma estrutura de acolhimento exclusivo para as meninas, com profissionais que
buscam fazer um atendimento interdisciplinar para as meninas, respeitando a orientação sexual
e a orientação de gênero. Ressaltamos que, no decorrer da pesquisa, não encontramos meninos
ou meninas trans, mas, chamamos atenção para a relevância do respeito ao público LGBTQIAP+.
Muitos dos meninos que vivenciam a situação de rua possuem passagem pelo sistema
socioeducativo. Conforme o relato acima, o adolescente passou por diferentes unidades da
Fundação Socioeducativa de Pernambuco, a FUNASE, localizadas no Recife e no interior do Estado.
107
A fala do adolescente traz luz acerca da pertinência de se pensar políticas e programas integrados
com o sistema socioeducativo, nos meios aberto (Prestação de Serviço à Comunidade e Liberdade
Assistida) e fechado (Semiliberdade e Internação). É importante ressaltar que a equipe de
pesquisadores buscou intercruzar os dados com os meninos e as meninas em situação de
cumprimento de medida socioeducativa em meio fechado, mas não conseguimos retorno da
instituição em tempo hábil. Ressaltamos a pertinência da produção de um diagnóstico mais
exclusivo sobre a relação Rua-Socioeducação, para que políticas públicas de atendimento e
proteção a esses adolescentes sejam efetivadas.
Por fim, este momento aponta para possibilidades de redefinição e/ou reordenamento
das políticas voltadas à população em situação de rua, cujos objetivos, entre outros, sejam:
desburocratizar os atendimentos das demandas apresentadas, visibilizá-los sob a era dos direitos
assegurados, inseri-los nos processos de elaboração de políticas públicas e contribuir com o
empoderamento e a emancipação dos meninos e das meninas, não perdendo de vista a realidade
vivida, bem como o acúmulo de experiências dessas pessoas.
As brincadeiras e os sonhos
O meu sonho é sair da rua. Vim aqui para os Ruas e Praças para treinar, para
ser jogador de futebol e ajudar uns aos outros. Somente isto. (Adolescente 2,
menino, Ruas e Praças)
108
Análise da rede proteção das crianças e adolescentes em situação de rua no Recife
O conceito de rede de proteção é uma ideia atualmente bem estabelecida no meio das
demandas sociais e que filosoficamente se sustenta na compreensão de que o ser humano se
funda enquanto indivíduo através de um princípio ético determinante. É no reconhecimento do
outro que construímos nossa identidade a partir de uma alteridade (LEVINAS, 2005). O cuidado
com as pessoas atravessa a consciência social e individual da humanidade, que se entende como
participante de um conjunto de relações extremamente mutáveis e líquidas (BAUMAN, 2001).
Proteger e garantir direitos é um conjunto de ações que não pode ser concebido à luz de
compromissos individuas e atitudes isoladas, por isso que a realização desse censo parte da
compreensão de que a garantia dos direitos humanos das crianças e adolescentes é um trabalho
realizável apenas em um horizonte de compromissos coletivos ou, como define o intelectual
francês Bruno Latour (2012), em rede.
Do ponto de vista histórico, a noção de constituir uma rede de proteção é uma das
conquistas sociais originadas na Constituição Federal de 1988, mais especificamente através dos
artigos 227, 228 e 229. Tal legislação não é fruto da benevolência das elites políticas econômicas,
mas sim resultado de um processo histórico específico marcado pela luta em torno da
redemocratização e pela mobilização da sociedade civil em favor dos seus direitos. Nesse
contexto, merece destaque a organização dos meninos e meninas que viviam em situação de rua,
através do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), que exerceu
significativa pressão nas esferas políticas para a aprovação dos artigos constitucionais acima
citados e para a elaboração e consequente promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), em 1990.
A ideia de uma rede de proteção integral dos direitos das crianças e adolescentes parte
de uma superação histórica, que culminou com a crítica e o abandono do paradigma, até então
dominante na área, conhecido como “a doutrina da situação irregular”, o qual orientou as ações
até a promulgação da Constituição de 1988. A mudança mais significativa que ocorreu nesse
contexto foi a ampliação do direito às ações de proteção e garantia, que deixou de ser algo
reservado aos meninos e meninas considerados “irregulares”, “perigosos” ou infratores para ser
estendido a todos.
109
para distribuir responsabilidades e garantir direitos. Em Recife, a estrutura da rede de proteção
aos direitos das crianças e adolescentes comporta várias dimensões previstas no ECA,
materializadas no Sistema de Garantias de Direitos. O município possui uma Secretaria de
desenvolvimento social, juventude, políticas sobre drogas e direitos humanos, que mantém, em
seu organograma, uma secretaria executiva da juventude. Merece destaque aqui uma crítica ao
fato de que não existe uma secretaria executiva específica para o atendimento às crianças e
adolescentes.
O poder judiciário localizado em Recife, que também compõem, por determinação legal
(CF 1988, ECA), a rede de proteção, possui um Centro Integrado da Criança e do Adolescente
(CICA), que organiza, no mesmo espaço físico, as Varas da Infância e Juventude da capital. De
forma mais específica, estão localizados nesse centro a 1ª, 2ª e 3ª Varas da Infância e Juventude.
As Varas de Crimes contra Criança e Adolescente também se situam no CICA. Ainda no âmbito da
justiça, no mesmo espaço físico, encontra-se estabelecido o Ministério Público Federal e a
Defensoria Pública, com suas respectivas especialidades voltadas exclusivamente para a atenção
e proteção aos direitos das crianças e adolescentes.
110
ligadas à Igreja Católica. Paralelamente a esse esforço “curativo”, com manifesto viés de suprir
supostas carências de crianças e adolescentes entendidas como desajustadas e perigosas, havia
um movimento fiscalizador e punitivo. Meninos e meninas que viviam nas ruas eram encarados
como problemas para a polícia resolver.
Entretanto, no final da década de 1990 e início dos anos 2000, houve o crescimento da
ideia de privilegiar o terceiro setor (aqui compreendido como organizações não governamentais-
ongs e outras organizações particulares) na execução de ações de proteção voltadas
especificamente para a população de meninos e meninas que vivem em situação de rua. Algumas
dessas organizações não governamentais realizam um trabalho eficiente, entre as quais
destacamos, na região metropolitana de Recife, a atuação dos grupos: Ruas e praças e o Pequeno
Nazareno, ambas voltadas para o trabalho com a população infanto-adolescente de rua.
Pesquisadores e agentes políticos ligados aos movimentos sociais pontuaram os riscos de se
transferir para iniciativas particulares a responsabilidade de garantir um direito constitucional.
Essas críticas expressavam o desejo por uma ação mais direta e intensa do Estado.
111
em situação de rua é, sem dúvidas, um avanço considerável. A elaboração e concretização de um
plano como esse é representativo da maneira como o poder público, após décadas de
mobilizações sociais e pesquisas acadêmicas na área, foi motivado a agir. Baseado em eixos, o
plano municipal pretende garantir ações públicas que promovam o atendimento integral às
crianças e adolescentes em situação de rua, promovendo um processo dinâmico, no qual os
meninos e meninas tenham sua agência cidadã garantida e vivenciada.
De forma prática, uma das ações mais destacadas desse compromisso público foi a criação
de mecanismos para permitir o alcance dessas populações em situação de rua, bem como o seu
acolhimento. Com relação ao contato nas ruas, o plano prevê a existência dos serviços sociais de
abordagem social, que, apesar de não serem exclusivos para o público infanto-adolescente,
também atuam direcionados para atendê-lo. Esses serviços são estruturados em equipes
formadas por especialistas e demais profissionais preparados para exercer funções como:
pedagogos/as, educadores/as sociais, supervisores/as, entre outras.
Entretanto, uma análise crítica das propostas de ação demonstra que, apesar de serem
bem elaboradas e dotadas de um intenso grau de pertinência, não possuem, na estrutura do
próprio plano, parâmetros adequados para a avaliação do cumprimento dos indicadores. Não
obstante à suposta eficácia das ações pretendidas, o consenso é de que se torna muito difícil
acompanhar externamente se as mesmas foram ou não executadas a contento, diante da
ausência de pontos efetivos de controle. Outro problema verificado é o que explicita a carência
de marcadores temporais distintos e específicos para o período de cumprimento das propostas.
O fato de algumas ações serem legitimamente entendidas como permanentes não justifica a
ausência de datas limites para etapas de implementação ou momentos periódicos de verificação
do cumprimento de suas funções.
112
para a elaboração de documentos oficiais, conforme o artigo 53 do ECA, é representativo de que
já ingressamos definitivamente em outro momento. Esses resultados implicam que o esforço de
acompanhamento e fiscalização, no melhor espírito de respeito à democracia e à coisa pública,
devem ser constantes, especialmente em momentos cruciais vivenciados na contemporaneidade,
respeitando a participação de meninos e meninas nos processos de pesquisa e produção de
projetos e políticas. Nada sobre os meninos e meninas, sem os meninos e meninas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
113
para a compreensão do macro, das dinâmicas populacionais. Normalmente é utilizado pelos/as
ocupados/as pela administração/gestão, que, via de regra, padecem do risco de perder de vista
as pessoas de carne e osso que aparecem como estatísticas e metas, bem como os processos que
estão atrás dos resultados, a multiplicidade de agentes, de práticas e de redes. Já o microscópio
é mais utilizado por aqueles/as que localmente estão envolvidos/as na ação e são essenciais para
olhar de perto, apontam para o risco da prisão no casuísmo, para a mensuração das relações a
partir do caso a caso, do “evento”, e para a limitação da leitura do contexto através do manejo
exclusivo de situações particulares.
Na feitura do Censo Pop Rua Recife, apostamos na composição das duas formas de olhar.
O uso da “simbologia” dos aparelhos para a visão, telescópio e microscópio, aponta para a
necessidade de uma composição, porque não há gestão efetiva e humanizada distanciada do
cotidiano e não há exercício efetivo da política apenas tomando a referência da ponta, junto às
famílias e territórios, tomando cada caso como um caso. Para a perspectiva de proteção e de
cuidado que buscamos, que seja capaz de instituir uma política da vida cotidiana, que aponte para
uma sociedade do cuidado, é preciso estabelecer uma composição das formas de se perceber e
analisar a realidade. As violações que acometem uma pessoa em particular devem ser
compreendidas como parte das relações sociais, bem como as demandas dessa pessoa devem
ser inscritas no campo das políticas públicas, das barreiras para os acessos destas, incidindo e
refinando o universo da implementação. Um censo que diz sobre população e pessoas ao mesmo
tempo.
A situação de rua, os relatos e análises aqui apresentados reportam para uma infinidade
de questões. Sobre as trajetórias e vivências nas ruas é importante o fato de que a rua é
predominantemente masculina, as pessoas em situação de rua atualmente estão dentro da faixa
etária economicamente ativa e apresentam como principal sonho o trabalho, meio e fator para a
organização de suas trajetórias pessoais e vinculações sociais. A análise deste ponto nos conduziu
para uma série de questões sobre as possibilidades das pessoas, mas, principalmente, sobre o
trabalho em sua dimensão estruturante de nossas relações sociais. Conforme afirmamos em
algum ponto deste documento: não há soluções simples para questões cuja complexidade foi
tramada ao longo da história.
Exatamente por isso, o tema trabalho e educação, que compôs a primeira seção do
formulário censitário, neste documento foi apresentado como último item, após a discussão de
todos os outros. Isso porque a reflexão sobre trabalho e educação, como possibilidade de saída
das ruas, precisa levar em consideração todos os fatores que dão materialidade para os cotidianos
e experiências das pessoas em uma sociedade como a brasileira. Não há como abreviar a análise
114
tomando qualificação profissional, encaminhamento para as vagas de trabalho e ampliação da
escolaridade como solução para o problema das vidas vividas nas ruas, é parte, não a solução. A
reflexão até aqui proposta aponta para uma população atravessada pelas dimensões da
subcidadania, por barreiras de acesso, que alcançam os indivíduos e são partilhadas por suas
famílias e territórios, por efeitos da apartação social, de desfiliações sucessivas de sociabilidades
extremamente impactadas pelos efeitos de se viver em uma sociedade de espaços e relações
hostis, com forte sentimento de aversão às pessoas pobres.
Conforme apontamos em relação aos dados de acesso à saúde, de modo mais específico
dentro do campo da “pobreza menstrual”, as mulheres, apesar de representarem a menor
proporção desta população, estão entre os grupos mais vulneráveis, consideradas a partir da
perspectiva da hipervulnerabilidade. Ser mulher e estar em situação de rua, em uma sociedade
heteronormativa, machista e patriarcal como a nossa, representa ter agravada sua condição de
vulnerabilidade ex-ante, reduzindo ainda mais as suas possibilidades de acesso. Essa realidade
remete para as dimensões da economia do cuidado ou da necessidade do estabelecimento de
políticas do cuidado.
115
“O cuidado é um direito da pessoa humana. Sendo assim, tanto quem cuida quanto quem
recebe o cuidado necessita ter as condições adequadas para a sua concretude” (Muller e Mose,
2022). Compreendemos que a materialização do cuidado enquanto direito depende,
necessariamente, da oferta de um conjunto articulado de políticas públicas, sociais e econômicas
por parte do Estado, bem como da positivação do direito ao cuidado nas legislações brasileiras,
estabelecendo o que chamamos de sistemas públicos de cuidado (Fernandes, Regino, Villar,
Santos, 2023).
No caso específico das trajetórias apontadas pelas pessoas em situação de rua, seja em
Recife, seja em outras cidades brasileiras, é o inverso do cuidado que as leva às ruas, a
incapacidade das famílias e dos territórios promoverem cuidado, sem ter o suporte do Estado. É
impossível cuidar sem sucumbir em um contexto de desproteção. As políticas de cuidado são o
mecanismo por meio do qual o Estado assume sua responsabilidade enquanto provedor de
cuidado, a partir das políticas públicas, reduzindo a pressão sobre as famílias e, especialmente,
sobre as mulheres. No Brasil da desigualdade e do crescimento da miséria e da pobreza, são as
mulheres, especialmente as negras, periféricas, mães e pobres as mais afetadas.
A ausência de políticas que ampliem as capacidades dessas mulheres faz com que elas
carreguem a fome e a necessidade como destino, destino reproduzido e partilhado
intergeracionalmente, vidas abreviadas, apartadas dos acessos aos direitos de cidadania
(Fernandes, Regino, Villar, Santos, 2023). Para demonstração dessa equação, valemo-nos da
potência da poesia de Conceição Evaristo.
Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó ecoou criança, nos porões do navio [...] ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de
minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das
trouxas
roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. A
minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de
minha filha recolhe todas as nossas vozes, recolhe em si as vozes mudas
caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o
ato.
O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade
(Conceição Evaristo, 2017)
A bisavó simboliza, assim, aquelas que foram sequestradas e trazidas para o Brasil em
navios. A avó teria vivido no período da escravidão e da obediência forçada. A geração da mãe,
que trabalha como empregada doméstica, leva uma existência dura e marginalizada, mas começa
a ecoar alguma revolta. Esse sentimento de resistência se exprime através do eu-lírico que
escreve, mas ainda conta relatos de privação e violência. Contudo, o futuro reserva mudanças, e
116
a voz de sua filha, que carrega toda essa herança, escreverá uma nova história de liberdade
(Marcello, s/d).
117
mesmo da “’violência simbólica’” — aquele tipo de violência que não “aparece” como violência,
e que torna possível a naturalização de uma desigualdade social abissal como a brasileira.
Refletindo sobre essas questões, reconhecemos, como fato, que podemos reproduzir
desigualdades, ainda que implementando políticas públicas. Caso refletido a partir do estudo do
Instituto de Pesquisa Econômica aplicada / IPEA, organizado por Roberto Pires e publicado em
2019. A presença do Estado, através das políticas públicas, principalmente considerando uma
sociedade hostil e violenta como a brasileira, potencializa a construção de vínculos, permite
identificar problemas e priorizar intervenções, individualiza as necessidades e promove cuidados
equitativos. Entretanto, destacamos que a presença efetiva do Estado, através das políticas
públicas, é campo de muitos desafios, que vão desde a dificuldade do trabalho em rede, da
garantia do cuidado na rede especializada, até a persistência de estigmas entre os/as próprios
agentes públicos.
Nesse sentido, faremos referência a uma das reflexões propostas por Aldaíza Sposati, no
livro Concepção e Gestão da Proteção Social não contributiva no Brasil, publicado pelo Ministério
do Desenvolvimento, em 2009, mesmo ano em que se publicou a Política Nacional para a
População em Situação de Rua, o Decreto nº 7.053, que cria e apresenta as diretrizes para o
Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) e a
Tipificação dos Serviços Socioassistenciais. Sposati parte da perspectiva de que proteção social
(protectione, do latim) supõe, antes de tudo, tomar a defesa de algo, impedir sua destruição. A
ideia de proteção contém um caráter preservacionista – não da precariedade, mas da vida –,
supõe apoio, guarda, socorro e amparo. Esse sentido preservacionista é que exige tanto a noção
de segurança social quanto a de direitos sociais. Aqui estaria colocada a diferença entre amparo
e proteção. Destacamos que a CF/88 usa as duas expressões. Amparo (anteparare, do latim)
também significa proteção, como escora, arrimo, auxílio ou ajuda para impedir a queda de algo.
Supõe abrigo, refúgio, resguardo. A noção de amparo indica um estancamento da condição de
deterioração, e a noção de proteção indica, por sua vez, o impedimento de que ocorra a
destruição.
Esses movimentos e movimentações dizem respeito aos efeitos provocados pelo não
acesso, que, se de um lado, causam risco de apartação social, por outro lado, geram resistência,
mobilização, tomada da voz pelo grito. Conforme afirma Galeano, em As Veias Abertas da América
Latina, “teimosamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, reivindicando seu
direito natural de ter um lugar ao sol nessas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que
a quase todos negam (Galeano, 2012, p. 9).
118
É preciso avançar no reconhecimento do status de cidadania dessa população para que
então tenham seus direitos garantidos. É necessário atuar cada vez mais na organicidade para a
estruturação de um arranjo institucional intersetorial, que articule a política de saúde, a
seguridade social, o trabalho, a moradia, a educação e demais campos políticos. Essa é a
perspectiva defendida pela organização política da população em situação de rua, a fim de que,
instituída uma sociedade decente, fundamentada na perspectiva do cuidado como forma de
alcançar mais equidade, tenhamos maiores e melhores condições de atuar de forma preventiva,
para a conservação, e não para o reparo.
Destacamos ainda, como parte desse processo de humanização, a organização, por meio
de pessoas em situação (ou trajetória de rua), a partir da coleta de materiais recicláveis, no ano
de 2005, em Belo Horizonte/MG, do Festival Lixo e Cidadania e do 1º Congresso Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis. Faz parte dessa história, no ano de 2003, início do governo
Lula, ocasião em que foram realizadas as primeiras discussões entre os catadores de materiais
recicláveis acerca do Programa Fome Zero, ligado ao Ministério Extraordinário de Segurança
Alimentar (MESA). É a partir desse ano também que o presidente Lula começa a se encontrar com
a população em situação de rua e catadores de material reciclável, por ocasião do Natal Solidário
em São Paulo.
119
Faz parte dessa história, setembro de 2004, ocasião em que foi realizado o “III Festival
Lixo e Cidadania”, em Belo Horizonte, e foi entregue uma Carta da população em situação de rua,
pedindo políticas públicas, para o então ministro Patrus Ananias, do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).
Faz parte dessa história, no ano de 2018, quando surge, no estado de Pernambuco, um
grupo formado por pessoas em situação de rua, trabalhadores/as do SUAS e representantes da
pastoral do povo de rua, que inicia um processo de construção e fortalecimento de caminhos de
luta pela garantia dos direitos dos rualizantes, denominado coletivo Maria Lúcia Santos Pereira da
Silva. Assim como também, o ano de 2019 marca de vez a luta pelas pessoas com a instituição do
Comitê Intersetorial de Políticas Públicas para a população em situação de rua em Pernambuco e
Recife. Faz parte dessa história o Censo Pop rua Recife, realizado em 2022, com divulgação em
2023.
Apontamos para este censo a dimensão da proteção e do cuidado. Para Sposati, a “ideia
de proteção social exige forte mudança na organização das atenções, pois implica superar a
concepção de que se atua nas situações só depois de instaladas, isto é, depois que ocorre uma
desproteção”. No campo das políticas públicas, precisamos cada vez mais nos alinhar com a
política de defesa de direitos humanos, uma política de cuidado; defender a vida,
independentemente de quaisquer características do sujeito, mas considerando cada uma dessas
características, no sentido de reconhecimento de como as diferenças operam desigualdades;
evitar as formas de agressão à vida, em sentido social e ético; e compreender, portanto, que a
assistência social se coloca no campo da defesa da vida relacional.
É essencial, necessária e urgente a produção de dados com regularidade para que seja
possível propor oportunidades efetivas de melhores condições de vida e acesso para esse grupo
populacional. O “apagão estatístico” sobre este segmento é uma das formas de perpetuação
desse lugar de subalternidade. É importante considerar que a feitura deste e de outros censos,
na história recente do Brasil, é a evidência irrefutável de que é possível recensear a população em
situação de rua, que existe, cotidianamente resiste e é deliberadamente “invisibilizada” em sua
condição de cidadãos/ãs brasileiros/as.
120
aproximar as pessoas do tema da vida nas ruas, de suas variáveis e de suas dimensões. Quase
todas elas estão relacionadas às expressões de uma sociedade desigual, que faz com que algumas
pessoas sejam levadas a viver nas ruas. É importante considerar que não se trata de um grupo
homogêneo, ainda que guarde aproximações bastante significativas, mas a conjuntura dos
tempos históricos também impacta sobre o perfil das pessoas em situação de rua.
REFERÊNCIAS
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Criança e do Adolescente e dá outras providências, 1990
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ANEXOS
ANEXO 1
125
ANEXO 2
Formulário de recenseamento
126
ANEXO 3
127
128
129
130
131
132
133
134
135
ANEXO 4
136
137