APOROFOBIA - Relatório Final - Censo Pop Rua, 2023

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FICHA TÉCNICA

Prefeitura do Recife /Gestão Executiva


Pesquisadores(as) colaboradores(as)
João Henrique de A. Lima Campos
Prefeito do Recife
Ada Maria da Rocha B. Lins
Adriana Maria dos Santos
Isabella de Roldão Ana Alice de Queiroz Ribeiro Barbosa
Vice-prefeita do Recife
Ana Lúcia Oliveira
Ana Rita Suassuna Anderson Rafael Lima da Silva
Secretária de Desenvolvimento Social, Direitos André Sousa Barbosa
Humanos, Juventude e Políticas sobre Drogas Andrea Raquel Gomes de S. Pedrosa
Antônio Rodrigues
Geruza Felizardo Bárbara Letícia de Castro Silva
Secretária Executiva de Assistência Social
Bismarck Lira dos Santos
Marcella Glasner Cardoso Dias Camila Oliveira Dias da Silva
Gerente Geral do SUAS Camila Roberta Moraes da Silva
Camila Borges da Silva Clarice Maria B. Cavalcante
Gerência de Proteção Social Especial de Média Complexidade Danielle Mayara Gomes da Silva
Deyse Lucia Nascimento da Silva Costa
Bartyson D’Carlos Bartolomeu Sousa Diogo Stanley Vasconcelos de Farias
Chefe de Divisão dos Centros de Referência Especializado Domingos Sávio da Silva Júnior
para a População em Situação de Rua
Edna Ferreira de Carvalho
Fabio Goncalves dos Santos Lins
Movimento Nacional da População de Rua
Gerlane Simões Bezerra
(MNPR)
Halina Cavalcanti Gouveia
André Sousa Barbosa Heitor Viana de Melo Moraes
Jaílson José dos Santos Hélio José Torres Filho
Jeferson A. Ferreira (Cara de Gato) Herllen Felipe Cavalcanti Lira
Robson da Silva Pessoa Ingrid Klebyane Farias de Luna Barbosa
Iris Rodrigues de Sales
Universidade Federal Rural de Pernambuco Isaias José Vila Nova da Silva
(UFRPE) Jaqueline Martins da Silva
Jedivam Maria da Conceição Silva
Marcelo Brito Carneiro Leão
Reitor
Késsia Juliana Siqueira Barros
Leandro da Silva Tavares
Gabriel Rivas de Melo Leandro Ferreira Aguiar
Vice-reitor
Ludmila Menezes de Oliveira
Fernando José Freire Maria das Graças C. de Oliveira
Secretário Executivo – FADURPE Maria Gourete Alves da Silva
Mário Emmanuel de Oliveira Ramos
Antão Marcelo Athayde Cavalcanti Michelle Rodrigues da Silva
Diretor - Editora Universitária –EDU UFRPE
Milena Camila Macedo
Humberto da Silva Miranda Mônica Machado Mendes
Professor do Dep. de Educação (Coordenador do Censo Pop Mônica Virginia Monteiro Pereira
Rua)
Priscila Ribeiro Guimarães Barbosa
Raquel de Aragão Uchôa Fernandes Rafaela Santos da Silva
Professora do Dep. de Ciências do Consumo (Coordenadora Rayane Maria da Silva Oliveira
do Censo Pop Rua) Renata Katarina Cavalcanti de Oliveira
Renata Shirley de Santana Barbosa
Otávio Augusto Alves dos Santos Rita de Cássia Guedes
Professor do Dep. de História
Robson da Silva Pessoa
Juliana Alves de Andrade Tatiana Correa da Cruz
Professora do Dep. de Educação Valquíria dos Santos Xavier
Josimar Mendes de Vasconcelos Vinicius Catunda de Oliveira Santos
Professor do Dep. de Estatística e Informática
Produção de Conteúdo (Autores/as) Equipe do Transporte
Emanuel Bernardo Tenório Cavalcanti Anderson José Batista de Andrade
Humberto da Silva Miranda Cicero Messias da Silva
Juliana Alves de Andrade Desuito José de Lemos
Leandro da Silva Tavares Erisson Dias de Barros
Maurício Sardá de Faria Grecio Xavier da Silva
Maria Zênia Tavares da Silva Hugo de Siqueira Campos Teixeira
Otávio Augusto Alves dos Santos Luzinaldo Cabral de Melo
Raquel de Aragão Uchôa Fernandes Marcondes Alves de Melo
Patricia de Farias Silva
Revisão Pedro Pereira da Silva
Valéria Severina Gomes Roberto José do Nascimento

Projeto Editorial Equipe de Pesquisa de Campo com crianças e


Humberto da Silva Miranda adolescentes
Mário Emmanuel de Oliveira Ramos Camila Borges da Silva
Otávio Augusto Alves dos Santos Humberto da Silva Miranda
Jedivam Maria da Conceição Silva
Leandro da Silva Tavares
Gestão Administrativa e Financeira do Projeto Otávio Augusto Alves dos Santos
Edleuza Rodrigues Pena
Lucas Paes do Amaral Agradecimentos pela colaboração
Casa de Acolhida Novos Rumos
Casa de Acolhida Raio de Luz
Grupo Ruas e Praças
Associação Beneficente O Pequeno Nazareno
Tonho das Olinda
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Sistema Integrado de Bibliotecas da UFRPE
Biblioteca Central, Recife-PE, Brasil

R382 Relatório final - censo da população em situação de rua da cidade


do Recife / Humberto da Silva Miranda ... [et. al]. – 1. ed. –
Recife: EDUFRPE, 2023.
250 p.: il.
ISBN: 978-65-85711-23-4
Inclui bibliografia, anexo(s) e apêndice(s).

1. Recife (PE) – População - Estatística 2. Recife (PE) - Censo


3. Pessoas desabrigadas – Censo 4. Pessoas desabrigadas –
Estatística I. Miranda, Humberto da Silva

CDD 305.5692098134
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................ 1
INTRODUÇÃO: UM CENSO PARA TODOS E TODAS NÓS .............................................................. 2
TECENDO UM CENSO ATRAVÉS DO “AQUILOMBAMENTO” ........................................................ 9
CONSIDERAÇÕES SOBRE A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO EM RUA ............................................. 22
CONDIÇÕES DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA DO RECIFE .................................................. 30
SITUAÇÃO DE RUA E RELAÇÕES FAMILIARES ................................................................... 31
CIDADANIA ....................................................................................................................... 43
CONDIÇÃO DE SAÚDE ....................................................................................................... 52
SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ...................................................................... 62
SATISFAÇÃO DE NECESSIDADES BÁSICAS E LAZER ........................................................... 69
EDUCAÇÃO E TRABALHO .................................................................................................. 75
A RUA E O TRABALHO ...................................................................................................... 76
O TRABALHO E A RUA ...................................................................................................... 77
CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA ................................................................. 90
CENSO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA DO RECIFE ................. 91
AS DIFERENTES CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA ........................... 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 113
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 121
ANEXOS ..................................................................................................................................... 125
APRESENTAÇÃO

Censo da População de Rua do Recife, uma cidade que acolhe

Como Secretária de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e Políticas


sobre Drogas, tenho a honra de apresentar o Censo da População de Rua do Recife, uma conquista
para a cidade e para as pessoas que nela habitam. O Censo parte do compromisso da nossa gestão
com a efetivação da política pública voltada para homens e mulheres, crianças e jovens, adultos
e idosos que vivenciam as mais diferentes formas de sobrevivência nas ruas da nossa cidade.
Importante ressaltar que todo trabalho de pesquisa vai se reverter no fortalecimento das
políticas públicas, que vem se construindo pela Secretaria de Desenvolvimento Social, Direitos
humanos, Juventude e Políticas sobre Drogas, em diálogo permanente com o Comitê Pop Rua,
que representa um fórum de diálogo permanente entre o nosso governo com a sociedade civil
organizada. O Censo representa mais uma ação do Programa Recife Acolhe e uma parceria com
pesquisadoras e pesquisadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Quero agradecer à equipe técnica que trabalhou na construção deste Censo. Cada pessoa
contada é importante para a nossa gestão. Agradeço ao Movimento Nacional da População de
Rua do Recife, à UFRPE e aos servidores e servidoras da Gerência da Média
Complexidade/Secretaria Executiva da Assistência Social, que acreditaram na realização deste
importante projeto de pesquisa censitária para o nosso Recife, uma cidade que acolhe.

Ana Rita Suassuna


Secretária de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos,
Juventude e Políticas sobre Drogas

1
INTRODUÇÃO: UM CENSO PARA TODOS E TODAS NÓS

Falar sobre a construção do Censo da População em Situação de Rua da cidade do Recife


(Censo Pop Rua Recife) é dizer sobre um processo tecido a muitas mãos. Ao construirmos essa
investigação científica-social, acreditamos que cabe aqui a referência ao conceito de artesanato
intelectual, cunhado por C. Wright-Mills (1980), por compreendermos que essa pesquisa
censitária representou mais do que a seleção e organização de métodos e técnicas para obtenção
de dados, mas se constituiu num processo de aprendizagem compartilhada, que só se validou na
troca entre as diferentes pessoas e instituições.
O Censo Pop Rua Recife é resultado de uma construção coletiva, que demandou uma
articulação entre a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), por meio do Instituto
Menino Miguel – IMM, a Secretaria de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e
Políticas sobre drogas (SDSDHJPD) e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e
Monitoramento da Política Municipal para População em Situação de Rua (Comitê Pop Rua
Recife), a fim de que um antigo projeto ganhasse forma e pudesse ser praticado nas ruas da
cidade. Essa parceria estabelecida entre UFRPE e os diferentes setores, para realização do censo,
exigiu a disposição para escuta e aprendizagem de todos e todas nós.
Aprender com as pessoas em situação de rua é construir saberes em comunidade, é
buscar compreender como este grupo se estabelece em lugares sociais, o que ele incorpora na
perspectiva de corpos normais e o que ele aponta e, sumariamente, afasta na condição de
desviante. Nesse sentido, a parceria estabelecida representou um chamamento para a
Universidade, a partir do campo da obtenção de dados e indicadores para a gestão pública, e seria
preciso despir-se de seu posto tradicional, colocando-se em um lugar de aprendizado, uma vez
que, só assim, seria possível fazer um mergulho na realidade das ruas, em um contexto que fugia
das normas e critérios de estabilidade sob os quais está “acostumada” a lidar. Foi essencial para
nós Aprender a Contar.
O Censo Pop Rua Recife tem uma metodologia própria. Inicialmente tomamos como
referência a construção do percurso metodológico do ofício do “sapateiro”, cuja origem do termo
provém da etimologia da palavra francesa “cordonnier”, que remetia aos artesãos que
dominavam o trabalho com couro. A Universidade conhece o ofício ou a arte de fazer pesquisa,
mas precisa cotidianamente aprender como fazê-la de modo socialmente referenciado. Desde o
início, o nosso desejo foi um censo com todo o rigor e confiabilidade metodológica, viabilizado
pela dimensão acadêmica e científica, mas principalmente validado e referenciado socialmente.
Esperamos ser este o Censo que apresentaremos neste documento, uma investigação feita a

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muitas mãos e que se adequa às expectativas científicas e sociais, tal como o sapato deve caber
nos pés do seu dono.
O Brasil não conta com dados que resultem de pesquisas sistemáticas sobre a população
em situação de rua. O censo demográfico ainda não inclui entre seus objetivos a averiguação do
número total da população não domiciliada, porque os dados censitários são coletados a partir
da base familiar. A ausência de dados sistemáticos sobre essas pessoas justifica a realização de
pesquisas censitárias municipalizadas, com vistas à implementação de políticas públicas voltadas
para diminuir sua “invisibilidade” social.
A produção de um censo para uma população não-domiciliada é um processo desafiador,
pois, só recentemente, o Brasil passou a contar a população que vive sob os efeitos e
determinações da ausência de moradia. Somente nos últimos anos, foram produzidos dados
oficiais resultantes de pesquisas sistemáticas, e, destacamos, ainda se aprende a lidar com os
desafios postos para a contagem e a produção de indicadores em relação a uma população não
referenciada pela habitação. A importância de dar visibilidade a esse segmento tão diverso segue
em debate e disputa na sociedade, no campo das gestões públicas, movimentos sociais e dos
órgãos /institutos de pesquisa.
Como é sobre a gestão municipal que recai a responsabilidade de implementação de
políticas públicas voltadas para essa população, há a necessidade de estimativas mais precisas
para que cada município possa planejar suas ações. Essa necessidade fundamentou a
recomendação para que a contagem da população em situação de rua fosse incorporada ao Censo
demográfico nacional de 2020 para suprir a demanda por dados populacionais, o que, até esta
data, ocorreu de forma limitada.
Neste material, as/os leitoras/es terão acesso ao relatório final do Censo Pop Rua Recife.
Retomamos, neste documento conclusivo, a apresentação e a reflexão sobre as diferentes etapas
que compuseram este processo de investigação, a partir do que chamamos de aquilombamento.
Neste censo, apresentaremos dados relacionados às características sociais, culturais, econômicas
e educacionais da população em situação de rua.
A apresentação desses dados virá associada a algumas reflexões teóricas e políticas que
consideramos importantes, mas destacamos que, em nenhum dos pontos, o debate tem a
pretensão de apontar todos os aspectos possíveis, há muitos outros. Priorizamos alguns e
esperamos que, após a publicização dos dados, muitos outros aspectos sejam levantados e
refletidos por todos e todas nós: Estado, sociedade civil, movimentos sociais, Universidades,
pessoas em situação de rua.
Para a feitura deste censo, utilizamos o mesmo conceito operacional de “população em
situação de rua”, utilizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome/MDS,

3
no contexto da pesquisa censitária feita em 2008/2009, com o qual foi estabelecida a própria
definição depois constante na Política Nacional para População em Situação de Rua (PNPSR)
(Decreto Nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009), qual seja a de um...

[...] grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza


extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência
de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as
áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária
ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite
temporário ou como moradia provisória (Brasil, 2009).

A opção pelo conceito refere-se à perspectiva de repercussão e diálogo nas instâncias das
políticas públicas, da academia e da sociedade civil. Essa definição nos projeta para a possibilidade
de diálogo, no cenário nacional, principalmente nos campos da produção de dados,
planejamento, implementação e avaliação de políticas públicas. Estabelecido o conceito
orientador, compreendemos coletivamente que, a partir dele, havia espaço para adequar o que
foi demandado, não nos restringindo apenas aos dados da população total, mas incluindo o perfil
sociodemográfico desse grupo na cidade.
Conforme já mencionamos, o primeiro investimento em levantamento de dados com
base censitária em relação a esse público aconteceu no período de 2007 a 2008, durante o
governo Lula, por meio do MDS, ocasião em que essa problemática passou a fazer parte da agenda
do Governo Federal. Antes, porém, ainda em 2006, a Presidência da República havia criado um
Grupo de Trabalho Interministerial, expandindo o debate para as áreas da saúde, educação,
direitos humanos, habitação e cultura. Foi a partir desse amplo processo de escuta e construção
coletiva que o MDS realizou o primeiro levantamento nacional. A pesquisa foi realizada em 71
municípios brasileiros, incluindo capitais e cidades com mais de 300 mil habitantes.
Vieram dessa pesquisa as informações com base nas quais foi construída a PNPSR, que
passou a reconhecer a população em situação de rua, a partir do conceito anteriormente citado,
como um grupo populacional marcado pela heterogeneidade, que possui como aspectos em
comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência
de moradia regular. A definição ainda assevera que tal população habita os espaços públicos e
dele retira renda de forma provisória ou permanente. Além disso, um grande segmento dessa
população faz uso das unidades de acolhimento institucionais, tais como os albergues noturnos e
as pousadas sociais.
As ações para que o único Censo nacional realizado até o momento acontecesse estavam
articuladas com a atuação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da
Política Nacional para a População em Situação de Rua (CIAMP-RUA), instituído em conjunto com
a Política Nacional para a População em Situação de Rua.

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Desde 2009, o Comitê solicitou ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que
incluísse o segmento da população em situação de rua no Censo demográfico nacional. No
entanto, o IBGE destacou a dificuldade de realizar pesquisas com populações sem domicílio fixo,
uma vez que exigiria metodologias de amostragem, logística de campo e abordagem do
entrevistado bastante distintas do padrão usualmente utilizado. Logo, a possibilidade de um
Censo nacional da população em situação de rua ainda está sendo debatido. No presente
momento, temos algumas capitais com censos já produzidos ou em processo de realização.
Tivemos acesso e dialogamos com essas experiências e com seus dados.
O Censo Pop Rua Recife foi realizado como parte do esforço de materializar as ações
previstas na Política Nacional da População em Situação de Rua (Decreto Federal Nº 7053/2009),
que institui, no art. 7, inciso III: “a contagem oficial da população em situação de rua”. Desde a
publicação do decreto em 2009, há um esforço de diferentes segmentos para que seja realizada
uma ação nacional no sentido de conhecer, em número, a população em situação de rua, tendo
havido experiências em alguns estados e municípios.
Diante da ausência de informações que demonstrem as características dos diferentes
sujeitos em situação de rua num cenário mais amplo (nacional), as instituições governamentais e
não-governamentais vêm optando por usar os dados coletados pelo Sistema Único de Assistência
Social (SUAS), baseados no Cadastro Único para Programas Sociais, e com os quais são elaborados
os Censos do SUAS (Censo SUAS).
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) estimou, a partir de dados do Censo
Suas, que havia cerca de 221.869 pessoas em situação de rua no Brasil, em março de 2020. O
valor é 140% maior que aquele estimado em 2012, que foi 101.854. Tais números são, por si sós,
preocupantes, embora sejam bastante subestimados, uma vez que os dados se referem a apenas
35% dos municípios brasileiros e não levam em consideração o grande contingente de pessoas
que não estão cadastradas no CadÚnico.
Hungaro et. al. (2020) afirmava, com base em pesquisa feita a partir de dados coletados
em 2015, que, do total de pessoas em situação de rua (um pouco mais de 100 mil naquele
momento), dois quintos (40,1%) habitavam em municípios com mais de 900 mil habitantes e mais
de três quartos (77,02%) habitavam em municípios de grande porte, com mais de 100 mil
habitantes. Estimava-se também que, nos 3.919 municípios com até 10 mil habitantes, viviam
6.757 pessoas em situação de rua (6,63% do total), ou seja, o problema concentra-se fortemente
em municípios maiores.
Trata-se, porém, de um levantamento insuficiente para dimensionar a população em
situação de rua, uma vez que muitas dessas pessoas não estão cadastradas, e outras sequer têm
documentos pessoais. Pensando nessa fragmentação dos dados e na dificuldade de acesso às

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informações sobre essa população, o Censo Pop Rua Recife visa sistematizar e tornar públicos os
dados sobre as características sociodemográficas desse grupo na capital pernambucana.
Acreditamos que o fato de não termos dados generalizáveis para a população em situação
de rua não representa a razão exclusiva para a sua “invisibilidade”, uma vez que a presença desse
grupo dá âncora e estabelece paisagens e sociabilidades hostis nas cidades. A aversão à população
pobre é estruturante em nossa história e na sociedade. Adela Cortina denomina esse movimento
como Aporofobia: aversão/ hostilidade a corpos considerados dissidentes ou desviantes, aqueles
e aquelas que aparentemente não têm algo a contribuir, dentro de uma perspectiva
utilitarista/produtivista da sociedade (Cortina, 2020, p. 16)1.
De acordo com Souza (2020), sobre esses corpos presentes historicamente no cotidiano
das cidades pesa estigmas e tabus relacionados à impureza e à destituição de sua condição de
humanidade. Eles são considerados os “não assimiláveis”, “aqueles que não têm nada a oferecer
na sociedade de troca que vivemos [...] tornados invisíveis e estigmatizados pelos outros” (Souza,
2020, p. 45). Essa realidade histórica vivenciada pela sociedade brasileira apresenta-se
fortemente imbricada na gênese da formação social, política e econômica do país, e nos convida
a refletir sobre a atual organização da dinâmica social manifestada, também, nas diferentes
expressões da questão social, a exemplo do acesso irregular/precário à moradia e do acesso à
renda de modo informal ou ilegal.
Considerados os aspectos mais gerais de uma sociedade como a brasileira, em que a
desigualdade e a iniquidade são extremas, destacamos que, desde a década de 1980,
representantes de entidades de defesa de direitos humanos, da Igreja Católica e dos movimentos
sociais realizam ações de organização política dos interesses das pessoas em situação de rua.
Reivindica-se a condição de sujeito de direito e da atenção governamental para a criação de
políticas públicas voltadas às suas necessidades. A partir da segunda metade dos anos 2000,
importantes garantias legais e políticas são observadas no ordenamento jurídico.
Nessa direção, destaca-se a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em
1993; a Política Nacional da Assistência Social (PNAS), em 2004; e a Tipificação Nacional dos
Serviços Socioassistenciais, em 2009, que apresentou os serviços especializados da Assistência
Social para a população em situação de rua. Entretanto, apesar da inegável importância, a política
de assistência social ainda apresenta relevantes dificuldades na execução de serviços para esse
segmento, em todo o Brasil. A ausência de informações prejudica a implementação de políticas

1 No processo de escrita deste documento final, tivemos acesso à releitura do termo proposta pelo Padre
Júlio Lancelotti e pelo ativista Paulo Escobar, Pobrefobia, no sentido de torná-lo mais acessível à sociedade
brasileira, falante da língua portuguesa. Em vez de Aporofobia, oriundo do grego “poros” (pobre), propõe-
se o termo, Pobrefobia, que tem o mesmo significado: “medo ou aversão aos pobres”

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públicas voltadas para este contingente e reproduz a (in)visibilidade perversa que caracteriza o
cotidiano de homens, mulheres, crianças, adolescentes e famílias que estão em situação de rua,
principalmente quando se consideram as barreiras de acesso às políticas sociais e ao direito de
viver com dignidade nas cidades.
O modelo teórico-metodológico considerado para a realização desta pesquisa censitária
fundamentou-se na perspectiva da pesquisa-ação, onde o Censo resulta de estratégias de
pesquisa e de intervenção, produzidas em diferentes etapas, promovendo o levantamento do
quantitativo e do perfil das pessoas. Esse modelo incluiu a feitura coletiva da cartografia da
presença de pessoas em situação de rua e seu fluxo na cidade, da contagem, da aplicação de
formulário censitário sobre características demográficas, socioeconômicas e inserções nas
políticas públicas municipais. No intuito de criar arenas de diálogo para refletir sobre a população
em situação de rua da cidade do Recife, grupos focais foram realizados, com meninos e meninas
com trajetória de rua, para abordar suas histórias de vida.
Atuamos, portanto, a partir da perspectiva do engajamento, onde o desenvolvimento das
ações de pesquisa se deu em meio à busca de maior acessibilidade desse segmento ao campo
dos direitos humanos, das políticas públicas e da politização de sua presença na sociedade e na
cidade. Nesse processo, objetivamos realizar a pesquisa-ação, por meio do levantamento
quantitativo e do perfil das pessoas em situação de rua no Recife, considerando principalmente o
fato de que, nos últimos anos, com os efeitos da pandemia, os serviços especializados para a
população em situação de rua sofreram importante impacto. O crescimento no quantitativo dos
atendimentos e a visualização de novas pessoas nas ruas em busca de sobrevivência revelaram o
aumento da extrema pobreza e da insegurança alimentar nos vários territórios da cidade.
No contexto dos fenômenos sociais, a situação de rua está entre aqueles que mais
expõem a pessoa ao que poderia ser nominado de “exclusão social”, isso porque as formas de
inserção e os vínculos estabelecidos, principalmente com a sociedade de um modo geral e com
as instituições em particular, são bem frágeis e pouco estabelecidos, dando a impressão inicial de
que homens, mulheres e famílias estão excluídos.
Sobre esse contexto, Robert Castel (2011) apresenta uma outra perspectiva. Para o autor,
a exclusão vem se impondo contemporaneamente como um conceito de amplo espectro, capaz
de “dar nome” a todas as formas de miséria do mundo, entre elas, as que citamos aqui: o não
acesso ou acesso irregular à habitação e, em decorrência disso, o não alcance a uma série de
outros direitos que poderiam garantir o desenvolvimento como expressão da liberdade. Para o
autor, a exclusão vincula-se à “questão social”, e seu uso indiscriminado está associado ao pouco
empenho reflexivo sobre o que caracteriza atualmente a “questão social”. Assim, deve ser

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substituída, em cada caso, “por uma noção mais apropriada para nomear e analisar os riscos e
fraturas sociais atuais”.
Falar sobre esses processos é mais que urgente e necessário no Brasil, pois as ações e
movimentos da história recente revelam um contexto de Necropolítica em curso, ou, como alerta
Márcia Leite (2020), o aprofundamento e a crescente legitimação do que a autora denomina de
“biopolítica da precariedade”. Esse conceito diz respeito aos segmentos populacionais vistos,
senão como “inimigos”, como “quase inimigos”, sem direito à vida, sem direito à proteção, sem
direito a dizer e a ser ouvidos.
Muitos dos fatos recentes têm relação direta com a história social do Brasil, uma das
últimas nações a deixar o sistema escravocrata como mediador das relações socioeconômicas. O
passado é orientador das relações, no tempo presente, e tem impacto significativo no modo como
olhamos e percebemos, no cotidiano, as experiências da população em situação de rua,
sobretudo, quando colocamos em destaque intersecções nos demarcadores de identidade, como
classe, raça e gênero.
A população em situação de rua, sem moradia e sem arranjo familiar referenciado em
unidade domiciliar, requer maior e melhor atuação por parte do Estado, para além dos campos
da assistência social e da saúde. É preciso que consigam caminhar nas veredas da incorporação e
da implementação de políticas públicas. A compreensão da população em situação de rua como
demanda “exclusiva” dessas políticas é um processo estabelecido e pouco refletido, permeado de
inferências do senso comum.
As pessoas em situação de rua, segundo Hungaro et. al. (2020), comumente chamadas
de mendigos, andarilhos, vadios e drogados, compõem um grupo caracterizado pela invisibilidade
social, remetendo à marginalidade, ao crime e ao uso de drogas. Não há identificação ou empatia,
e o estigmatizado é silenciado em seu direito de fala. A sociedade e a justiça são isentadas de
qualquer responsabilidade em relação as trajetórias desses indivíduos. Com isso, Souza (2016)
explana que essa população só é tolerada para exercer os serviços mais penosos, sujos e
perigosos, a baixo preço, para o conforto dos extratos de renda mais altos, e isso se deu através
do tempo poupado em atividades produtivas pela classe média alta.
Ao escrever o relatório final do censo realizado em outubro de 2022, na cidade do Recife,
lidamos, portanto, com um processo recente, que ainda provoca muitas tensões e inquietações
em nós, nos atravessando de forma bastante orgânica. Apresentamos dados de uma história do
tempo presente. Temos a certeza de que este produto se torna público com capacidade de diálogo
e projeção para o campo das demandas da gestão pública e, também, para o atendimento das
demandas apresentadas pela e para a população em situação de rua do Recife e do Brasil.

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A construção do Censo foi um processo que revelou a nossa capacidade de produzir
espaços de discussão e produzir processos efetivos de escuta. Temos a convicção de que nos
aproximamos, o máximo possível, da construção do “Censo mais bonito do Brasil”, isso porque,
em tempos tão hostis, construir um processo pautado na escuta, no respeito às experiências e às
trajetórias, talvez, seja uma das coisas mais bonitas que se pode fazer.
Este relatório está organizado de modo a apresentar as análises realizadas a partir dos
dados obtidos na pesquisa sociodemográfica. Antes, porém, revisaremos os procedimentos
metodológicos e os dados da primeira etapa do censo, ambos já apresentados em Miranda et al
(2023). Os dados da segunda etapa serão apresentados na forma de gráficos e tabelas, todos
comentados e seguidos de reflexões sobre a realidade social das ruas. Devido à abrangência das
informações, os dados serão apresentados de acordo com a seguinte subdivisão: educação e
trabalho; situação de rua e relações familiares; cidadania; condições de saúde; segurança
alimentar e nutricional; satisfação de necessidade básicas e lazer; crianças e adolescentes.
Ao final, desenvolvemos uma reflexão sobre todo o processo, no sentido da defesa da
realização do censo como instrumento não apenas voltado ao aprimoramento das políticas
públicas, mas para o letramento político e cidadão da sociedade e, de maneira especial, das
pessoas em situação de rua.
Agradecemos, logo de início, a todos e todas que participaram deste processo, de
diferentes formas, nas diferentes etapas. Agradecemos à gestão pública municipal, aos/as
trabalhadores e trabalhadoras dos serviços públicos municipais, das diferentes políticas.
Agradecemos à sociedade civil, estudantes, integrantes de coletivos, organizações, docentes.
Agradecemos, de forma prioritária, ao MNPR do estado e do município e às pessoas que vivem
ou viveram em situação de rua. Este processo foi muito intenso, por vezes nos cortou na carne.
Pulsamos juntos, juntas e juntes por mudança e pelo compromisso coletivo e partilhado de uma
sociedade digna e promotora do cuidado, a fim de que todos e todas vivam melhor.

TECENDO UM CENSO ATRAVÉS DO “AQUILOMBAMENTO”

9
O contexto social marcado pelo crescimento da pobreza urbana e por ataques
sistemáticos à democracia fez com que a equipe de pesquisadores buscasse desenvolver um
trabalho mais circular e horizontal, uma vez que o fazer científico é também um fazer político.
Portanto, a pesquisa foi desenvolvida por muitas mãos, olhares e corpos, em processos de
“aquilombamento” (parafraseando Conceição Evaristo), porque se buscava assumir uma posição
contra-hegemônica em relação às práticas mais tradicionais de se fazer ciência e produzir dados
sociais.

A cidade de Recife, que pulsa com o desejo de contar e ouvir a população em situação de
rua, para dimensionar melhor o campo da gestão das políticas públicas, é a mesma cidade que se
abate sob os impulsos aporofóbicos de uma cidade e sociabilidades hostis. Não lugares é o termo
que Marc Augé (2012) emprega para designar um espaço de passagem incapaz de dar forma a
qualquer identidade. Os indivíduos são lançados “à própria sorte” em uma sociedade de
consumo, ou caracterizada pela supermodernidade. Tempo que, para o autor, se distingue por
meio de “figuras de excesso”. No entanto, paradoxalmente, o excesso de espaço remete ao
encolhimento do mundo, exemplo das grandes concentrações urbanas, migrações populacionais,
contribuindo para a produção de não lugares, do esvaziamento das referências que tornam
aqueles indivíduos uma pessoa, utilizando a reflexão de Roberto DaMatta (1997).
Esses não lugares se materializam, nas dinâmicas urbanas, “lugares” por onde circulam
muitas pessoas e bens, cujas relações são incapazes de criarem por si sós acessibilidade para os
diferentes grupos. Por isso, acreditamos que, para contar a população de rua, seria preciso
conhecer esta cidade, a cidade real, para além da cidade formal. Por isso, para refletir acerca da
situação de rua, foi essencial cartografar/ inventariar esta cidade, e esse movimento foi feito a
muitas mãos, olhares, experiências.
Ciente das dificuldades de se obter informações relativas a um grupo populacional cujos
direitos são tão violados e para os quais o cotidiano é sempre atravessado por dificuldades e
aflições, a equipe de pesquisadores buscou fazer com que a coleta de dados fosse objetiva e que
não tomasse tanto tempo das pessoas durante a aplicação. A brevidade do processo também se
justificou diante das diferentes condições dos territórios da cidade, que, como já mencionamos,
é lugar de pertencimento, de vulnerabilidades e nem sempre oferecem segurança e conforto para
os/as recenseadores/as. Por isso, a pesquisa foi dividida em duas grandes etapas: uma primeira,
em que se buscou realizar a contagem total (recenseamento) das pessoas em situação de rua; e
uma segunda, em que foi desenvolvida uma pesquisa amostral, cujo escopo foi o de revelar o
perfil sociodemográfico dessa população.

10
A experiência do Recife e de outras capitais mostra que o processo de recenseamento da
população em situação de rua deve ser feito em poucos dias, no turno da noite, que é quando a
maior parte dessas pessoas se recolhe em certas localidades da cidade para descansar e dormir.
Por isso, a primeira etapa do censo consistiu na construção solidária de uma cartografia, com a
qual foi possível identificar os chamados pontos de concentração desse grupo populacional na
cidade.

Os pontos de concentração correspondem aos lugares da cidade (parques, praças,


calçadas, marquises de prédios, viadutos, pontes etc.) onde as pessoas em situação de rua
normalmente se aglomeram, seja para o recolhimento noturno, consumo de drogas, ou quaisquer
outras atividades. Podem ser ocasionais ou regulares. No caso do levantamento cartográfico feito
para este censo, buscamos privilegiar os pontos de concentração regulares, já conhecidos
pelos/as trabalhadores/as municipais da assistência social e da saúde, pela sociedade civil, bem
como pelos integrantes do MNPR.

A primeira etapa da construção coletiva da cartografia foi realizada pela equipe de


pesquisadores da Universidade a partir dos cadastros e da experiência dos/as trabalhadores/as
do Serviço Especial de Abordagem Social (SEAS) e do Consultório nas Ruas (CnaR). Tais cadastros
foram compatibilizados em um único levantamento, onde foram determinados os pontos de
concentração e sua localização na cidade (latitude e longitude). A compatibilização foi feita a partir
de Sistema de Informações Geográficas, com uso do software livre QGis, versão 3.26.2.

Essa primeira cartografia foi levada à validação pública em diferentes momentos. O


primeiro deles ocorreu no dia 15 de setembro de 2022, no Abrigo noturno Irmã Dulce. Na ocasião,
foi verificada a localização dos pontos e foram feitas alterações no levantamento e definidos
alguns padrões de deslocamento da população em situação de rua na cidade, de modo a
contribuir com a ulterior construção dos trajetos para o trabalho de campo.

11
Figura 1: Escuta pública para construção da metodologia do Censo Pop Rua Recife, ocorrida no dia 15 de
setembro de 2022, no Abrigo noturno Irmã Dulce, Recife/PE; Fonte: Censo da População em Situação de
Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022

Participaram desse momento os/as trabalhadores/as do SEAS, CnaR, MNPR, UFRPE e


organizações da sociedade civil, tais como “Unificados”. Depois, realizamos mais dois encontros
com as equipes noturnas do SEAS, nos dias 23 e 26 de setembro de 2022, de modo a validar o
levantamento até então feito. Em uma dessas ocasiões, a equipe de pesquisadores da UFRPE foi
a campo com a equipe noturna do SEAS, a fim de realizar mais uma aproximação da realidade
estudada. Por fim, no dia 11 de outubro, realizamos mais uma escuta, desta vez, com organizações
que atuam com crianças e adolescentes em situação de rua. No caso, participaram desta escuta
as ONGs “Ruas e Praças” e “Pequeno Nazareno”.

12
Figura 2: Escuta pública para a construção da metodologia de abordagem com as crianças, ocorrida no
dia 11 de outubro de 2022, na sede do Ruas & Praças, Recife/PE; Fonte: Censo da População em Situação
de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022

Depois dessas importantes contribuições, a primeira cartografia foi, então, finalizada.


Com ela foi possível construir os trajetos para o trabalho de campo. Esse trabalho foi realizado
pela equipe de pesquisadores, aproveitando-se dos recursos do Google Maps. No processo de
contagem, os trajetos foram disponibilizados para as equipes por meio remoto e através de
itinerários impressos, que compunham o “instrumental do recenseamento”. Cada equipe,
portanto, tinha um território de atuação, e foi a campo com a tarefa de percorrer os pontos de
concentração predeterminados (Anexo 1).

Após o mapeamento, o formulário de contagem, segundo item do instrumental, foi então


produzido, sendo também resultado de construção coletiva. Sua versão final foi definida em
reunião coletiva entre a equipe de pesquisadores, o MNPR, SEAS e Consultório nas Ruas, na
UFRPE, no dia 07 de outubro de 2022. Esse formulário ainda foi aprimorado depois de sua
apresentação junto ao Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política
Municipal para População em Situação de Rua do Recife, no dia 14 de outubro.

Dias antes do período de contagem, em 21 de outubro, foi realizada uma formação para
os/as recenseadores/as, em que foi apresentada a versão final do formulário (Anexo 2). Na
ocasião, também foram dadas todas as instruções para o preenchimento integral dos formulários
e apresentadas as orientações gerais da dinâmica do trabalho de campo. Os/as recenseadores/as
e pesquisadores/as presentes puderam dirimir todas as suas dúvidas ao final do encontro.

13
Figura 3: Formação das equipes de recenseadores, ocorrida no dia 21 de outubro de 2022; Fonte: Censo
População de Rua do Recife. Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia:
IMM, 2022

O processo de contagem consistiu em uma operação complexa, envolvendo a mobilização


de diferentes profissionais, ativistas e estudantes, que compunham o pessoal do recenseamento
e das atividades de apoio. Conforme mencionado, a contagem ocorreu em poucos dias, sempre
à noite, dentro do esforço de não incorrer no erro da sub ou sobre-enumeração. Entre os dias 25
e 28 de outubro, os/as recenseadores/as se encontraram, todas as noites, no Centro Pop Glória,
no centro do Recife, para a concentração das equipes de campo.

Nas ocasiões, foi feita a divisão das equipes, foram entregues os instrumentais e
repassadas as instruções para o processo de contagem. Depois de dirimidas todas as dúvidas, as
equipes partiam para a pesquisa de campo. Os territórios percorridos seguiram o planejamento
previamente estabelecido, que levou em consideração a regionalização político-administrativa do
município, sobre a qual se desenvolve o próprio trabalho da assistência social. Portanto, foram
levadas em conta as chamadas Regiões Político-Administrativas (RPAs) e a quantidade de pontos
de concentração identificada em cada uma delas.

Na primeira noite, dia 25 de outubro, foram percorridos os pontos de concentração das


RPAs 4 e 5. Na segunda noite, dia 26, foi a vez da RPA 6. No terceiro dia, 27 de outubro, foram
percorridos os pontos de concentração da RPA 1. E, por fim, no quarto e último dia, foi a vez das
RPAs 2 e 3. Em cada noite, foram enviados aos territórios, aos menos, 6 equipes, maior parte delas
composta por 4 recenseadores/as e um/a motorista.

As equipes eram formadas por um/a profissional do SEAS, um/a do CnaR, um integrante
do MNPR ou da sociedade civil e um/a estudante universitário. A diversidade na composição de
cada equipe visava à integração de diferentes visões sobre o fenômeno das ruas e à avaliação

14
sobre a possibilidade de abordar ou simplesmente observar as pessoas no âmbito de cada cena
identificada.

Figura 4: Equipe de recenseadores na saída para a pesquisa de campo, no dia 25 de outubro de 2022;
Fonte: Censo População de Rua do Recife. Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife
2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022

As “cenas” correspondiam aos lugares em que as equipes se deparavam com a população


em situação de rua nos diferentes territórios da cidade. Cada cena era estabelecida pelas equipes
no momento em que realizavam os trajetos, podendo coincidir ou não com os pontos de
concentração mapeados. As cenas poderiam ter de 1 a 25 ou 30 pessoas em situação de rua.
Depois de definida conjuntamente pela equipe, um dos integrantes realizava a coleta do ponto de
localização (latitude e longitude).

A contagem foi feita a partir de duas estratégias, dependendo das condições sociais e de
segurança de cada cena. Quando as pessoas em situação de rua estavam acordadas e
apresentavam abertura para o contato direto com os/as recenseadores/as, as equipes as
abordavam, possibilitando o preenchimento completo do formulário de recenseamento. Porém,
quando as equipes se deparavam com cenas de uso de drogas, ou simplesmente quando não
havia segurança e era evidente o risco de violência, as equipes realizavam a contagem através de
observação. A orientação geral era a de que fosse evitada a contagem através dessa segunda
estratégia, mas a decisão sobre abordar ou observar era facultada às equipes nos territórios,
depois de definidas e avaliadas as condições de cada cena.

15
Figura 5: Recenseadora em abordagem durante o censo, no dia 27 de outubro de 2022; Fonte: Censo da
População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022
Quando os formulários eram preenchidos apenas mediante observação, questões como
cor/raça e gênero não eram assinaladas, uma vez que tais informações dependem do contato
direto entre recenseador/a e recenseado/a. Seguimos o que prescreve a lei e a prática das
pesquisas do IBGE, que é considerar a cor/raça como um item autodeclaratório. Partimos também
do entendimento de que o esforço em discernir o gênero de alguém, através do olhar, configuraria
preconceito. Por isso, quando do preenchimento através de observação, preferimos não assinalar
os dois itens.

Figura 6: Recenseadora em abordagem, no dia 27 de outubro de 2022; Fonte: Censo da População em


Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022

16
No retorno ao Centro Pop Glória, depois de percorridos os trajetos, as equipes
entregavam os formulários preenchidos para que fosse feita a “verificação pós-campo”. Nesse
momento, um dos coordenadores do projeto analisava todos os formulários, no intuito de
averiguar se foi integralmente preenchido e se havia inconsistências. Depois disso, o formulário
era reservado para o posterior processo de “tabulação”, que correspondeu à digitalização dos
dados coletados.

Cabe ressaltar que, nas noites de contagem, um instrumental adaptado foi enviado para
as equipes gestoras das unidades de acolhimento da prefeitura, de modo a coletar informações
sobre os acolhidos no dia em que ocorreu o recenseamento nas respectivas RPAs. Nesse sentido,
o número total contabilizado levou em conta não só aqueles que estavam efetivamente nas ruas,
mas também os não-domiciliados em condição de acolhimento.

Depois do recenseamento, passamos à construção metodológica da pesquisa amostral.


O desenho da amostra teve por base o valor da população total de 1.806 pessoas, obtido no
recenseamento. Desse número, 1.442 estavam efetivamente nas ruas e somente 363 estavam
acolhidos em algum equipamento da prefeitura. Utilizamos o modelo de amostragem aleatória
simples do qual foi estimada uma amostra de 490 pessoas. O grau de confiança estabelecido foi
de 90%, com erro amostral de 3% para mais ou para menos.

Figura 7: Equipe de recenseadores na saída para a pesquisa de campo, no dia 14 de dezembro de 2022;
Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022

Com base nestes critérios técnicos, a amostra foi estratificada proporcionalmente em


relação a sua distribuição territorial na cidade, ao sexo e à idade das pessoas recenseadas. A

17
referida estratificação não foi seguida com todo o rigor durante a aplicação dos formulários,
servindo muito mais para nortear o trabalho de campo e para evitar que algum segmento fosse
sobrerepresentado na amostra, o que poderia impactar negativamente na qualidade das
informações finais. Assim, foi definida uma quantidade mínima de homens e mulheres, idosos e
adultos que deveriam ser entrevistados em cada RPA.

O formulário de pesquisa amostral sociodemográfica (Anexo 3) também foi resultado de


construção coletiva, tendo sido finalizado no dia 21 de novembro de 2022. As equipes de
recenseadores/as foram mobilizadas para a pesquisa e receberam formação no dia 12 de
dezembro de 2022. A aplicação dos formulários ocorreu entre os dias 14 e 16 de dezembro,
durante a noite, nas ruas e nas unidades de acolhimento. Esse trabalho se estendeu até o dia 15
de janeiro de 2023, mas de forma pontual, priorizando as pessoas que se dirigiam aos Centros
Pop. Por fim, a tabulação foi feita entre os dias 09 e 16 de fevereiro de 2023.

A seguir será apresentada, de forma sucinta e objetiva, a maior parte dos dados obtidos
através do recenseamento. Mais adiante, analisaremos de forma mais pormenorizada os dados
da pesquisa sociodemográfica. Os resultados do recenseamento já foram apresentados em
Miranda et al (2023), mas reproduzimos aqui, mais uma vez, compreendendo que este
documento final tem a função de apresentar uma reflexão geral sobre o processo.

Conforme já mencionamos, a população total recenseada foi de 1806 pessoas. Desse total, 1443
estavam nas ruas no momento da contagem, e 363 estavam acolhidas em algum equipamento da
prefeitura; 627 pessoas foram abordadas no processo de contagem e 816 foram contadas
mediante observação.

Abordados
43%

Observados
57%

Figura 8: Percentual de observados e abordados durante o recenseamento


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

18
Os dados do recenseamento nos mostram um fato já conhecido, o de que a realidade das
ruas é majoritariamente masculina. Essa realidade foi também retratada em todas as demais
experiências censitárias e no censo nacional. Os levantamentos realizados pela SDSDHJPD, nos
anos anteriores, também indicavam a predominância masculina.

N.I
5%

Feminino
19%

Masculino
76%

Figura 9: Distribuição da população por sexo.


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
A maior parte da população é formada por homens cisgêneros. Mas os números de
mulheres cisgêneros e de mulheres trans são grandes e têm crescido. Mulheres cis, trans, travestis
e não-binários correspondem a 25% da população em situação de rua e compõem um grupo cujas
violências sofridas e condições de vulnerabilidade são ainda mais intensas.

Travesti Não Binário


0,20%
Mulher Trans 0,71%
1,01%

Mulher Cis
22,24%

Homem Cis
75,83%

Figura 10: Distribuição da população por gênero


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

19
Configurando-se como mais uma expressão do racismo estrutural a que já fizemos
menção, a maior parte da população em situação de rua do Recife é composta por pretos e
pardos. Destaque-se a presença de indígenas que, apesar de pequena, merece atenção especial
dos serviços da assistência por, muitas vezes, serem migrantes e imigrantes.
Indígena Amarelo
0,5% 1,2 %
Branco
18,12 %

Pardo
Preto 56,56%
23,62%

Figura 11: Distribuição da população por cor/raça


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
A maior parte da população em situação de rua é composta por adultos em idade
economicamente ativa. Mas há um percentual representativo de idosos, crianças e adolescentes
que também merecem atenção especial por parte dos serviços da assistência social, posto tratar-
se de grupos que vivenciam uma maior vulnerabilidade e serem sujeitos de proteção integral.

Adolescentes Crianças
2,6% 2,5%

Idosos
11,81%

Adultos
83,08%

Figura 12: Distribuição da população por faixa etária


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

20
Conforme destacamos, no processo de recenseamento, foram estabelecidas as cenas e
coletados pontos de localização (latitude-longitude), com os quais foram construídos mapas que
constituem a cartografia da ocupação da cidade pela população em situação de rua do Recife
(Anexo 4). Depois de conhecida a localização e o perfil das pessoas em situação de rua no mapa
da cidade, foi delimitada a regionalização do trabalho de campo da pesquisa amostral
sociodemográfica. Os dados dessa segunda etapa serão apresentados e analisados mais adiante.
Antes, porém, convém realizar mais algumas reflexões sobre a população em situação de rua,
consoantes ao processo de aproximação dessa realidade, processo marcado não apenas pela
razão, mas também pela emoção.

21
CONSIDERAÇÕES SOBRE A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO EM RUA

VIDAS ABREVIADAS (resposta a um Juiz)

O destino se traça no ventre de uma mãe preta


Uma mãe pobre, uma mãe nordestina, uma mãe muitas vezes solitária.
Sem pátria, sem terra, sem chão, sem posses, sem companheiro,
Cede de herança ao filho sua vida abreviada.

Quando chega ao mundo, assustado, admirado, abusado, com fome, com sede, com frio
Espera dos homens a possibilidade de comer, de amar, de aprender, de viver
Não quer ser abreviado, quer ser grande, quer ser gente, quer ser humano.
Mas, a vida herdada de sua mãe negra vai lhe marcando a carne, o estômago que lhe dói de fome, a
carcaça que não cresce, a esperança que some e miúda vai se tornando, até ser abreviada em um suspiro.

Na aridez do trabalho me pergunto se vale a pena continuar lutando contra essa abreviatura de vidas,
Se melhor não seria abraçar causas maiores, mudar o mundo para deixá-lo sem abreviaturas.
Mas, são vidas, mesmo abreviada, são meninos e meninas, são filhos, são irmãos, primos, sobrinhos,
netos que sobreviveram a abreviação de sua infância.
Mais que tudo, são seres de humanidade, uma humanidade torta, uma humanidade pequena, uma
humanidade abreviada em sua capacidade e que precisa ser transformada.

Por isso, porque são pessoas, porque são vidas que não quero, e mais que isso, me nego a abreviar. Ao
contrário, quero lutar com eles para alcançar grandezas, para dividir a nossa humanidade.

Mergulho no escuro poço da vida de cada um, como se em cada um reconhecesse todos eles.
Amplio minha visão sobre eles, abro perspectivas gigantescas para suas vidas, como gigantesco é o avanço
da humanidade.
Não abreviarei nenhuma palavra, nenhuma vida, nenhuma luta.
Nessa luta não tenho preguiça, não tenho fraquezas, não tenho tempo para abreviar.
Eles não têm tempo porque o tempo deles já está abreviado.

O que eles esperam de nós não são palavras abreviadas, o que eles esperam de nós está, inclusive, para
além do escrito, está no ato concreto da luta, está no carinho do olhar, está até na dureza do afeto, está
na compreensão da necessidade de não abreviar.
E por cada um e cada uma, e por todos eles, esta é a minha resistência. Não me peçam para abreviar!!!

Brígida Taffarel (2023)

Iniciamos a reflexão sobre o Censo Pop Rua Recife, com o poema Vidas abreviadas, de
Brígida Taffarel. O poema foi escrito por uma trabalhadora do Sistema Único da Assistência Social
(SUAS), em meio a um momento de indignação, ocasião, em que um menino, ao qual, não
aleatoriamente, chamaremos Severino, preto, pobre, periférico e em cumprimento de medida
socioeducativa, ao retornar de uma audiência no judiciário, dá o recado mandado, pelo Juiz, para
esta trabalhadora: “ele disse que leu seu relatório, e que não é para ficar explicando tanto, a
história da vida da gente pode ser abreviada”.

22
A resposta desta trabalhadora veio em forma de poema, a nossa veio na forma de um
censo que procura dar corpo e história aos números. Há muito para ser dito e, não, não nos peça
para abreviar nada. O censo é um documento quantitativo, e nós estamos aqui para “qualificar”
os números, darmos a eles “carne e sangue”, transformar fotografia em vida, em movimento.
Trabalhamos no sentido inverso da abreviatura, estamos buscando compreender as questões em
seu sentido alargado, abarcando os bastidores, os silêncios, os suspiros, as lágrimas do momento
da enunciação.

Como fomos às ruas aplicar os formulários, junto com o MNPR, trabalhadores/as e


gestores/as das políticas da assistência social e saúde, estudantes e sociedade civil, ouvimos
muitas histórias. Talvez seja essa a diferença de se tomar um grupo do território, no caso da
Universidade para o recenciamento; ao invés da contratação de uma consultoria externa, priorizar
“gente” que fica, que permanece junto para fazer dos números oportunidade de melhores
condições de vida, de vidas mais cuidadas, de cidades menos hostis. O grupo se reuniu junto a
uma Universidade socialmente comprometida e referenciada por uma gestão que estava disposta
a “lidar” com os dados. Interessa-nos muito compreender os números a partir das narrativas em
primeira pessoa.

Sobre esse ponto, abriremos, logo no início deste tópico, um parêntese, o do debate sobre
o uso dos termos população em situação de rua e pessoa em situação de rua. O debate que versa
sobre a utilização dos termos é muito importante, pois partilhamos a compreensão de que dar
nome às coisas deve ser sempre percebido enquanto ato político. O ponto colocado para reflexão
nos interessa, de modo geral, para analisar o censo como um todo, mas, de forma bastante
particular, quando nos reportamos às trajetórias, porque estas, de forma muito demarcada, são
tecidas na experiência vivida, nas relações cotidianas.

Teóricos/as e profissionais vêm chamando a atenção para o fato de que, se, por um lado,
não é correto falar em morador/a de rua, por razões óbvias, também teríamos riscos ao falar em
população em situação de rua, isso porque a ideia de população reforçaria a tentativa,
historicamente consolidada, de um suposto perfil, em alguma medida, generalizável desse grupo.
O correto, neste sentido, seria falar em pessoas em situação de rua. A partir do reconhecimento
de sua dimensão de humanidade, de singularidade em relação ao grupo.

Esse tensionamento é importante, ainda que pareça um pouco desencaixado de uma


perspectiva de produção de dados censitários. No entanto, viemos, a todo tempo, nos reportando
aos movimentos de escuta, filiação e aliança que antecederam o censo e que pretendemos que
o ultrapassem. Nesse sentido, ao produzir dados sobre a população, tivemos a oportunidade de

23
nos aproximar de pessoas, com trajetórias e demandas distintas, para quem há risco de ampliação
de barreiras de acesso através de processos de generalização.

Compreendemos a essencialidade de dados populacionais para o campo do


planejamento e da implementação de políticas públicas, para a produção de possibilidades
efetivas de estabelecer características, em alguma medida, gerais para o grupo, a fim de traçar
um perfil e lançar luz sobre os aspectos generalizáveis. Mas, por outro lado, precisamos também
compreender a existência de particularidades, singularidades que levam as pessoas para a vida
nas calçadas, marquises, pontes e viadutos.

No campo das políticas públicas, isso aponta para a necessidade de se estabelecerem


tipologias dentro de um perfil mais geral da população, forma de customizar a partir das
necessidades específicas, o que é necessário para a produção de equidade. Foi por isso que, neste
censo, estabelecemos outros momentos de escuta e de coleta de informações para além do
levantamento de dados censitários, como, por exemplo, a produção das cartografias, os grupos
focais com meninos e meninas, as histórias de vida, a produção dos “retratos na rua”. Nesse
sentido, evidenciamos, para além dos dados populacionais, as trajetórias individuais que levam
homens, mulheres, crianças, adolescentes e famílias para a situação de rua.

Ainda que a rua represente um local privilegiado para as experiências sociais, para as
expressões da identidade/identificação, para a vivência da cidadania, no caso do grupo aqui em
tela, via de regra, a ida e a permanência nas ruas está relacionada a uma série de desproteções
sociais, forjadas por experiências vivenciadas a partir das expressões de subcidadania, irmã da
pobrefobia, da apartação social, do desalento e de inúmeras barreiras para a aquisição de
capacidades que oportunizem a possibilidade de existir enquanto membros plenos de uma
coletividade. Nesse sentido, a rua, enquanto espaço de vivência da cidadania, tem este status
corrompido quando pessoas passam a viver nela, isto é, quando a ausência das dimensões de
exercício pleno da cidadania faz com que as pessoas ocupem as ruas em uma espécie de
desamparo, ou desalento, vivido no espaço público.

Portanto, o território precisou ser compreendido “como território usado, não como
território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de
pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho; o lugar de residência,
das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida” (SANTOS apud Brasil, 2013). Ou seja, o
território tem de ser o local de pertencimento do indivíduo, não apenas de forma física, mas
política, social e cultural, de modo que o mesmo se reconheça enquanto parte integrante do
território e possa nele se reconhecer e atuar como cidadão.

24
No entanto, é necessário ressaltar que o território evidenciado nas contradições
encontradas se caracteriza como local imediato do risco, da manifestação das inseguranças, das
limitações do acesso, da experiência do desalento. Portanto, é o chão onde se materializam suas
vulnerabilidades, onde não surgem possibilidades, onde o reconhecimento se dá apenas no plano
concreto da dificuldade de acesso a ações e serviços.

O território, enquanto chão mais a identidade, por vezes, aparece contraditório, como
lugar onde se produzem e reproduzem “fraturas sociais” e violências diversas, físicas, psicológicas
(vinculadas aos estigmas vivenciados) e institucionais; manifestação da incapacidade
intergeracional de exercício da autonomia.

Por outro lado, enquanto chão mais imediato, o território precisa ser o lócus imediato da
ação, uma vez que ele, sobretudo, viabiliza oportunidades, faz com que as famílias e comunidade
aglutinem força e sinergia para o exercício da cidadania, na busca da efetivação dos seus direitos
políticos e sociais. Em outras palavras, é possível entender o território como um espaço dinâmico
onde ocorrem relações interpessoais que caracterizam a capacidade de acolhimento deste em
detrimento de outro; onde as relações subjetivas se fazem presentes no cotidiano e na construção
da afetividade e são capazes de gerar forças sinérgicas de ação. Desse modo, esse território pode
vir a ser o território da construção e exercício da cidadania e da efetivação dos direitos humanos,
sociais e políticos.

Assim, a visão dinâmica de território o compreende enquanto espaço que contém


vulnerabilidade e riscos, aos quais os indivíduos, assim como a comunidade, estão expostos. No
entanto, compreende também as potencialidades envolvidas na cultura e nos valores da
comunidade. Configurando-se, assim, por um lado, por exclusão, perdas e isolamentos e, por
outro, por oportunidades, redes de solidariedade, movimentos sociais e organizações em defesa
da cidadania oriundas das iniciativas populares.

Já a territorialização, presente nas vertentes que compõem as políticas públicas sociais,


atrela-se à descentralização implementada, em que se compreende o espaço urbano enquanto
espaço vivo, produzido pelos diversos e numerosos agentes que o consomem e o vivenciam.
Sendo assim, é necessário ter a visão ampliada da participação do todo, envolvendo também a
vertente da intersetorialidade, ou seja, a integração às demais ações no campo da educação,
habitação, saúde, lazer, transporte, entre outros.

Permanece o fato, já citado, de que a população em geral tem pouca empatia pelas
pessoas que estão em situação de rua, chamadas de mendigos, andarilhos, vadios e drogados
(HUNGARO, 2020). Fato é que, em uma sociedade como a brasileira, desigual, racista e machista,

25
de ponta a ponta de sua história, a manutenção do discurso do caso a caso, da ausência do
esforço, do mérito é algo que cai muito bem e produz uma série de estigmas sobre esse grupo
social

Jessé Souza, em a Ralé Brasileira, reflete que,

[...] como todo conflito social é dramatizado nessa falsa oposição entre
mercado divinizado e Estado demonizado, os reais conflitos sociais que causam
dor, sofrimento e humilhação cotidiana para dezenas de milhões de brasileiros
são tornados literalmente invisíveis (SOUZA, 2016, p.21).

Exemplo disso é que, ao longo da história, utilizamos espécies de supercategorias que


supostamente dariam conta de tratar de todas as desproteções e vulnerabilidades vivenciadas no
cotidiano. Pobreza, exclusão, vulnerabilidade social, todas são categorias que, sendo importantes,
não são capazes de dar conta de tudo e, principalmente, não são capazes de nos dar efetivo
suporte para projetar o trabalho no campo das políticas públicas, conforme deve ser o Estado em
ação, do tipo de trabalho/entrega que deve ser feito para cada família, indivíduo, território.

É o caso também do conceito de exclusão, apresentado por Robert Castel (2011), que
deve imperiosamente ser substituído, em cada caso, “por uma noção mais apropriada para
nomear e analisar os riscos e fraturas sociais atuais”. Para Castel (2011), a heterogeneidade de
usos é o primeiro motivo para se desconfiar de que o termo exclusão, ao “dar nome”, não permite
revelar os elementos constitutivos do número imenso de situações diferentes que precisam ser
apreendidas de forma analítica.

Rotular como exclusão os diferentes riscos e fraturas sociais atuais é uma forma de lhes
atribuir qualificação puramente negativa, relativa à falta, sem dizer no que ela consiste nem de
onde provém. Para Castel (2011), os traços constitutivos essenciais das situações de "exclusão"
não se encontram nas situações em si mesmas, as situações-limite que caracterizam e, muitas
vezes, determinam o cotidiano dos indivíduos só têm sentido quando colocadas num processo,
resultado de trajetórias diferentes.

O principal argumento defendido por Castel (2011) é que não é possível revelar as
contradições do cotidiano, através do relato sobre os estados de despossuir, isso porque os in e
os out não estão em universos separados. “Não se pode falar numa sociedade de situações fora
do social. O que está em questão é reconstruir o continuum de posições que ligam os in e os out,
e compreender a lógica a partir da qual os in produzem os out” (Castel, 2011, p.29).

A tentativa de enquadramento ou de separação entre incluídos e excluídos é um debate


que, estando presente, segue em disputa ao longo da história, no campo das gestões públicas,

26
movimentos sociais e dos órgãos /institutos de pesquisa. Esse olhar que tende ao
enquadramento, à utilização de supostas supercategorias também prejudica a implementação de
políticas públicas voltadas para segmentos populacionais específicos e reproduz a (in)visibilidade
perversa que caracteriza o cotidiano de homens, mulheres e famílias, que têm elementos de
trajetória e de identificação que precisam ser visibilizados.

Segundo José Henrique da Conceição, conhecido como professor Henrique, intelectual


com trajetória de rua em Recife, atualmente residente do estado de Sergipe, a experiência da
população em situação de rua a partir dos elementos até aqui destacados daria os contornos do
que ele chamou de Ruariato.

Figura 13: Definição de “Ruariato”; Elaboração Prof. Henrique, em 05 de maio de 2023

O termo proposto pelo professor Henrique diz respeito à experiência das pessoas em
situação de rua enquanto um processo sucessivo de degradação das condições de se viver em
sociedade. O Ruariato ocupa o lugar mais baixo, oprimido pela dura desigualdade social e tratado
de forma desumana pela sociedade de modo geral e, em particular, pelas autoridades que
deveriam zelar pelo seu bem-estar. Nesse sentido, é no reconhecimento dessas relações

2
“Lexema que se refere ao conjunto de rualizantes (PSR). Rualizante designa um constructo de poder, da
indiferença inviabilizadora ou consolidada em relação àquele(a) que sobrevive na exclusão social
(descartável social) e convive na apartação social (cidadão de papel). Na pirâmide social brasileira, ocupa o
subsolo, aquele que sequer subjaz na subcidadania preconizada por Jessé Souza e muito menos subjaz na
terceira escravidão. Visualizando temos o RUARIATO” (Texto transcrito papel timbrado, 2023).

27
degradadas, tomando a situação de rua enquanto condição e processo, que precisamos buscar
formas de superá-las.

Portanto, podemos dizer que, nas relações sociais em que se materializam ameaças de
exclusão, esses processos de marginalização podem resultar em exclusão propriamente dita, ou
seja, em um tratamento discriminatório de segregação e afastamento dessas populações, é o caso
de políticas/práticas higienistas (Castel, 2011, p. 47-48). No cotidiano, são os marcadores de
diferença que operam as pequenas cisões, não acessos, acessos precários e irregulares.

Uma abordagem interseccional também pode ser um argumento que pode ser utilizado
para a defesa de para o campo e o cotidiano das diferentes políticas para a população em situação
de rua, transformando indivíduos genéricos em pessoas com trajetórias particulares. Mulheres
em situação de rua, mulheres negras em situação de rua, mulheres e homens com deficiência em
situação de rua, homens trans em situação de rua, pessoas idosas em situação de rua e tantos
outros demarcadores de identidade e diferença que precisam ser considerados.

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos
da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como
ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos,
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento. (Crenshaw,
2002, p.177).

Afirmar a necessidade de realizar tal distinção não implica que as situações de exclusão
em relação ao grupo não sejam graves por si mesmas, nem que a exclusão não represente hoje
uma ameaça para essa população. As situações de exclusão são graves nelas mesmas, porque
alimentam uma desestabilização geral na sociedade e produzem efeitos distintos, sobre grupos
particulares, em relação às barreiras de acesso e déficit de integração com relação ao trabalho, à
moradia, à educação, à cultura etc.

O desejo de trazer o tema da interseccionalidade para o centro do nosso debate se volta


para a anunciação de duas razões principais: primeira, o reconhecimento de que, nos processos
necessários para a efetivação dos direitos humanos, os riscos, as vulnerabilidades, as violações e
as desproteções sociais nunca são vivenciadas de forma genérica. Cada corpo, a partir das
interseções destes marcadores de diferença/desigualdade, origina uma experiência vivenciada, e
é sobre ela que se precisa atuar; segunda, desejamos apontar que outros estudos e pesquisas,
derivados dos dados deste censo, atentem para o fato de que marcadores de diferença operam
como marcadores de desigualdades, com efeitos distintos sobre grupos particulares.

28
Retomando nossa referência a Conceição Evaristo, ao nos propormos a analisar a
dimensão coletiva e política em relação aos acessos e pontos aqui destacados, voltamo-nos para
o desejo mais profundo de incomodar a “casa grande” em seus sonhos, projetos e desejos mais
injustos. Reconhecemos que as trajetórias e vivências do Ruariato diz tanto sobre eles como grupo
quanto sobre nós como sociedade.

O país tem dificuldades de compreender quem são as pessoas que vivem nas ruas, mas
são os brasileiros e brasileiras que integram, de maneira precária, o conjunto da sua população.
Foram por muito tempo invisibilizados no campo acadêmico e da produção de dados, mas, mais
recentemente, esse é um fato que começa a se transformar. Permanece a constatação de que a
população em geral tem pouca empatia pelas pessoas que estão em situação de rua, o que acaba
atuando na manutenção, via “naturalização”, de status de cidadania tão degradados.

Este censo inscreve-se em um cenário de ampliação das capacidades, de humanização


dessa população. Reafirmamos que estamos falando de forma mais abrangente de uma
população masculina, preta e parda, com trajetórias muito demarcadas pelo não acesso à
proteção social, ao cuidado e à fruição de direitos. Esse fato relaciona-se com o grande período
de escravidão, com a forma como aconteceu a abolição e a forma como o Estado deixou de
assumir a responsabilidade de prover cuidados.

29
CONDIÇÕES DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA DO RECIFE

30
SITUAÇÃO DE RUA E RELAÇÕES FAMILIARES

Considerações gerais sobre as pessoas em situação de rua na cidade do Recife

As pessoas em situação de rua estão e são provenientes de contextos periféricos e de


trajetórias intergeracionais de violação de direitos. Nesse sentido, é sempre importante reafirmar
que sociedades extremamente desiguais não são capazes de produzir condições de vida digna e
partilhadas. Não há como analisar o fenômeno das pessoas em situação de rua como fenômeno
recente, efeito de um “evento” pandêmico, ele é fruto e expressão de vivências em contextos
periféricos, em uma sociedade que atua sob a égide conservadora e ultraneoliberal e, portanto,
deve ser analisado em uma perspectiva histórica e interseccional.

Para a apresentação e análise das trajetórias que levam homens, mulheres, crianças,
adolescentes e famílias para a situação de rua na cidade do Recife e para a existência e/ou
manutenção de vínculos familiares na experiência cotidiana, retomaremos a apresentação dos
dados obtidos a partir da pesquisa censitária e as inferências produzidas no primeiro momento
de análise sobre os indicadores relacionado e apresentados no relatório parcial.

Para a compreensão dos aspectos das trajetórias de vida, partimos do tempo de


permanência nas ruas para entender melhor o perfil dessas pessoas. Destacamos que lidamos
com construções de narrativas a partir da memória, da anunciação de tempos/eventos vividos,
no passado e no presente (Figura 14).

Não sabe Não respondeu


Entre 3 dias e 1
ano
26,50%

Acima de 5 anos
35,50%

Entre 1 e 3 anos
19,80%
Entre 3 e 5 anos
13,90%

Figura 14: Questão – Quanto tempo em situação de rua?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

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A pesquisa mostra que 26,5% das pessoas estavam nas ruas há menos de 1 ano, indício
de que esta é uma condição adquirida, o que pode estar relacionado a uma “mudança” nas ruas,
devido aos efeitos do período recente de pandemia, aumento da pobreza, desemprego, fome e
redução do Estado no país. Aproximadamente 19,8% viviam entre 1 e 3 anos nas ruas; 13,9%
vivem entre 3 e 5 anos; e 35,5% há mais de 5 anos na mesma situação, mostrando também que
estar nas ruas pode não ser uma condição breve ou passageira para essas pessoas.

O percentual de pessoas que estão há mais de 5 anos nas ruas pode ser o indicativo de
uma cristalização dessa situação. Depois de uma longa permanência, é muito difícil reverter essa
condição sem uma presença efetiva e complexa por parte do Estado. É o que vem sendo
considerado por programas como o Moradia Primeiro, iniciativa que preconiza a conquista da
moradia como ponto inicial para o trabalho junto a esta população, com prioridade para as
pessoas em condição mais vulnerável e que estão há mais tempo nas ruas.

Nessa perspectiva, o acesso à moradia, ao invés de representar o ponto de chegada, é


compreendido como ponto de partida para o cumprimento de outros direitos básicos, pois
representa meio e forma de ampliação das capacidades para aderir às políticas públicas. Estudos
apontam que a permanência em situação de rua é bastante difícil de ser revertida, como
demonstra o fato de, aproximadamente, 55% dos/as entrevistados/as não saírem da rua, desde
que passaram a utilizá-la como espaço de moradia (Figura 15). Do mesmo modo, ocorre o fato de
retorno temporário para a família ou domicílio, sem ampliação das capacidades de responder às
demandas cotidianas, como revelam os casos de 43,3% dos/as entrevistados/as. Em síntese, seja
para barrar o fluxo até as ruas, seja para conter o fluxo de retorno às ruas, o Estado é essencial e
precisa ser “algo” com que se possa efetivamente contar.

Não respondeu

Sim
43,30%

Não
54,90%

Figura 15: Questão – Já deixou de viver nas ruas e depois retornou?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

32
Destacamos o fato de que 47% da população em situação de rua do Recife é resultante
de fluxo migratório, em algum momento de suas vidas, o que justifica a necessidade de análises
ampliadas sobre fluxo e mobilidade na região metropolitana do Recife, assim como em todo o
estado e estados circunvizinhos.

Não respondeu

Não
47,10% Sim
52,40%

Figura 16: Questão – Sempre morou em Recife?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

A questão sobre a migração, se a pessoa sempre morou em Recife, vinha seguida de outra
questão referente ao local onde a pessoa morava antes de vir para a cidade. A partir dos dados
apresentados, percebemos uma movimentação predominante das cidades do interior do estado
para a capital, bem como de estados circunvizinhos para a capital de Pernambuco, apontando
para uma migração de caráter regional.

Os dados sobre migração da população em situação de rua do Recife dialogam com os


achados de outros censos. É importante considerar, também, que há muitos relatos de pessoas
que, em situação de rua, rodam diferentes municípios, fazendo inclusive uma série de
considerações sobre as diferenças em termos de serviços, acompanhamento e estrutura nas
diferentes cidades, principalmente entre as capitais da região nordeste. Isso demonstra que,
mesmo para políticas e serviços referenciados, vários aspectos interferem na implementação, a
exemplo dos/as trabalhadores/as da ponta e da burocracia de médio escalão. Cabe também
registrar que tivemos, durante o tempo do censo, denúncias de condutas higienistas, como o uso

33
das antigas práticas de remoção de pessoas em situação de rua de cidades do interior para a
capital do estado. Práticas aporofóbicas, ilegais e imorais cometidas por agentes públicos e com
funções públicas, que precisam ser conhecidas, denunciadas, investigadas e punidas.

Consideradas estas questões, é importante compreender que a migração (quando


voluntária) via de regra pressupõe para as famílias e para os indivíduos um “projeto de melhorar
de vida”, de sair de uma situação de opressão e violência para outra, que, ao menos a princípio,
represente alguma possibilidade de ter uma vida melhor. Há casos de exceção relacionados com
“fuga”, necessidade de migração devido a ameaças de morte ou de atentado contra a integridade
física. Na literatura e na história brasileira, o evento migratório é bastante significativo, expressões
como “sul maravilha” e “fazer a vida em São Paulo” fazem parte da história de um país que é
desigual desde o mito da fundação. Há uma desigualdade de amplo espectro, que atravessa as
trajetórias de indivíduos e de regiões. Entre as principais razões para a migração, foram apontadas
a necessidade/expectativa de:

Figura 17: Questão – Por que veio para o Recife?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

A busca por trabalho figura entre as razões principais de deslocamento para a cidade do
Recife. Cynthia Sarti (1994), em A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres, vai
tratar dos dramas das famílias pobres na busca por dar materialidade aos projetos de melhorar
de vida e aos sonhos que não se realizam. São, então, os projetos não concretizados na chegada
à cidade, a ausência de redes de apoio estabelecida e os trabalhos que não dão certo que fazem
com que as trajetórias das pessoas encontrem as ruas. Esses fatores abrem espaço para uma
série de conflitos e rupturas.

34
Entre as razões que levam as pessoas a começarem a dormir nas ruas (Figura 18)
permanecem os conflitos familiares como a principal causa apontada, bem como o uso prejudicial
de drogas lícitas e ilícitas. Cabe destacar que esses dados não podem ser analisados em separado,
uma vez que acabam compondo um conjunto de não acessos ou incapacidades que se
manifestam a partir da perspectiva do conflito.

Figura 18: Questão – Por que começou a dormir na rua?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

As trajetórias que conduzem às ruas, geralmente, são apontadas sob uma nuvem muito
espessa denominada conflitos familiares, como apontam 50% dos casos. Isso é o que dizem os
dados sobre a população, mas as razões dos conflitos, as que se tornam, para algumas pessoas,
insustentáveis, precisam ser explicadas. De um modo geral, os conflitos fazem parte da vida
humana, mas a perspectiva de ocasionarem desfiliações, apartações, exclusões sucessivas, entre
outros aspectos que levem até as ruas, acreditamos que se vinculem diretamente com a pobreza,
escassez, ausência de ativos de poder e, o mais importante, a não presença do Estado ou a
presença de forma subsidiária na sociedade e na vida das pessoas, famílias e territórios. Nas
histórias que ouvimos, o Estado não era “algo” com que se pudesse contar.

Nesse sentido, as vidas vividas nas ruas são determinadas por muitas barreiras de acesso,
pode ser a cidade e seus diferentes espaços, podem ser as políticas públicas e as instituições. De
um lado, se este é um dado esperado e, em alguma medida, conhecido, lançamos luz para o fato
de que as barreiras de acesso estão postas também na possibilidade de vivenciar dimensões
essenciais à humanização das pessoas, como vínculos familiares, afetivos e de saúde
socioemocional.

35
Em relação aos vínculos estabelecidos com familiares, é importante destacar que
aproximadamente 70% das pessoas em situação de rua possuem vínculos familiares mantidos de
forma mais ou menos constante (Figura 19). Em 35% dos casos, a frequência de contato é semanal
(Figura 20). Destacamos também o fato de que 78% afirmam não ter outro parente em situação
de rua (Figura 21). É importante explicar que, nos casos em que a pessoa vivencia uma relação
afetiva estável nas ruas e responde que não têm parentes nas ruas, isso aponta para uma
compreensão da família enquanto parentesco biológico e vinculada à origem.

Não tem família Não Sabe

Não
29,20%

Sim
69,60%

Figura 19: Questão – Possui vínculo familiar?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Não Respondeu Não sabe

Não tem mais


contato
23,30%
Toda Semana
35,50%

Quase Nunca
10,80%

Ao menos uma vez Todo Mês


por ano 17,30%
11,50%

Figura 20: Questão – Com que frequência tem contato com os parentes domiciliados?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

36
Não Respondeu
Não Sabe 1,40% Sim
1,40% 19,20%

Não
78%

Figura 21: Questão – Tem parente em situação de rua?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Abriremos aqui um parêntese sobre o momento de aplicação dos formulários censitários.


Apesar das perguntas solicitarem respostas diretas sobre as opções apontadas, o que é uma
característica de formulários fechados, as respostas vieram em meio a muitas explicações e
justificativas, fragmentos de histórias, apresentação de documentos, fotografias, exames
médicos, cicatrizes no corpo e na alma. Nos momentos de interação, vimos algumas fotos de
família e, além disso, ouvimos relatos, a exemplo do fato de que, mesmo estando nas ruas, as
pessoas têm, por vezes, a demanda de contribuírem em suas casas, seja através de parte do
benefício recebido, seja através de renda obtida com o trabalho, seja socializando alguma doação
a que tiveram acesso.

Essa referência à “ajuda” para a manutenção da família de origem foi algo recorrente:
“mando o dinheiro dos meninos”; “ajudo na feira da minha mãe”. Nessa mesma linha, foi
apontado, como parte dos projetos e sonhos dessas pessoas, ter trabalho e renda para ajudar
mais e com mais regularidade e deixar de fazer “uso” de álcool e/ou outras substâncias para dar
orgulho para mães e filhos. Essas respostas remetem para diversas questões, destacaremos duas:
1) o fato de que a família, ainda que esteja fora da rua, está em condição demandante de suporte,
provavelmente em situação também de extrema vulnerabilidade, ainda que sob um teto; 2) no
caso de pessoas em situação de rua com uso abusivo e/ou prejudicial de álcool e outras drogas,
os episódios de “desorganização” levam ao consumo ampliado, ocasiões em que o recurso da
“ajuda” é direcionado para o uso, atuando também como aprofundamento de conflitos e

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acentuando a vivencia de culpa e de sofrimento emocional. Houve várias referências a esses dois
aspectos, mas há outros, e a publicização dos dados do censo pode servir de chave de leitura para
outras reflexões.

Cabe destacar que estamos projetando para a situação de rua a perspectiva de trajetórias
que conduziram as pessoas até essa condição. As razões para isso já foram anteriormente
apresentadas neste texto, mas destacamos, mais uma vez, que compreendemos a situação de rua
como um evento mais ou menos permanente, relacionado a muitos outros, que guardam como
característica comum a desproteção e incapacidade de lidar com determinadas circunstâncias,
riscos, violações e/ou vulnerabilidades. São situações que acabam por promover sucessivas
desfiliações sociais. Nesse sentido, a partir da perspectiva da trajetória, é preciso retomarmos
uma leitura sobre o fato de que os conflitos familiares são apontados, por quase 50% dessas
pessoas, como o motivo principal que as leva a dormir nas ruas. Consideramos importante
destacar que os conflitos familiares provavelmente acabam assumindo uma dimensão guarda-
chuva, espécie de “meta motivo” para abrigar uma série de outros conflitos vivenciados, que, por
vezes, compõem uma trama tão complexa que é difícil analisá-los em separado.

O caso dos “conflitos familiares”, tal qual acontece com o conceito de exclusão social, na
perspectiva apresentada por Robert Castel, precisa ser qualificado para produzir efetivamente
uma narrativa, um discurso. Não há indícios aparentes sobre quais são os motivos ou as razões a
se enfrentar. Surge, então, uma questão central: quais são as dimensões da vida que precisam ser
compreendidas dentro do campo da política para minimizar a capacidades de os conflitos
familiares operarem por rupturas, desfiliações e/ou apartamentos tão significativos?

A questão da manutenção dos vínculos é extremamente relevante, e quando conhecida,


deve balizar a construção de projetos de vida que passem pela saída das ruas com condições
dignas e suficientes para uma organização progressiva fora dela. Não há um “manual” sobre como
trabalhar a questão dos vínculos familiares, não devemos partir de uma perspectiva de que
precisam sempre ser reconstituídos e/ou mantidos, há vínculos de origem que são nocivos e
outros criados em condições degradantes, a exemplo da vida nas ruas, que podem ser positivos e
incorporados em novos projetos de vida. Mas é fato que, sendo uma dimensão importante da
humanização dos sujeitos, as histórias e trajetórias familiares precisam ser conhecidas,
significadas, para que efetivamente se possa atuar em uma perspectiva de proximidade, de
trajetória, de customização no campo das políticas públicas.

As questões acima apresentadas podem e devem ter outros aprofundamentos. Há, nos
dados, muitos aspectos relacionados às trajetórias das pessoas em situação de rua em Recife que

38
precisam ser aprofundados e relacionados. Nesse sentido, é necessário cada vez mais
compreender as dinâmicas familiares, as experiências conjuntivas vivenciadas por indivíduos que
resguardam diferentes tipos de vínculos e que, via de regra, fazem com que tenham uma história
comum. As políticas públicas precisam compreender essas dinâmicas, não no sentido de
culpabilização, mas no sentido de obter um diagnóstico dos conflitos e dar capacidade de reação
a essas pessoas. É preciso também considerar que a dinâmicas da vida cotidiana sempre é
resultante das relações sociais e acontecem em territórios particulares, em diferentes formas de
apropriação e uso dos espaços que precisam também ser considerados.

Em “A Família na Historiografia Brasileira: bases e perspectivas teóricas”, Marisa Tayra


Teruya (2000) afirma que as famílias, no início da década de 1970, se apresentavam com
contornos mal definidos e frequentemente confundidas com o que poderia ser considerado
alguma de suas partes, mas chegou renovada aos anos 1990, movimentando-se de uma visão
limitada e estática no tempo, para ser examinada como um processo ao longo da vida inteira de
seus membros. Isto é, passaram de estruturas domésticas e nucleadas para grupos de parentesco
mais vasto.

Em Produção sociojurídica de famílias “incapazes”: do discurso da “não aderência” ao


direito à proteção social, Gracielle Feitosa de Loiola (2020) afirma que é no encobrimento da
nossa incapacidade de efetivamente trabalhar com as famílias e territórios, de lidar com a
complexidade das expressões da questão social na sociedade de modo geral, e, na vida das
famílias e indivíduos em particular que se produz o mito da incapacidade das famílias. Esse mito
se reproduz a partir do discurso, inúmeras vezes repetido, sobre a incapacidade de famílias, via
de regra, pobres, pretas, de maternidade solo e periféricas, protegerem os seus membros.

Sem sacralizar as famílias, Gracielle revela “histórias permeadas por violências e


abandonos”, denunciando “a desigualdade social por trás da incapacidade de cuidado”, que
permeia o discurso do “outro”, opina, culpabiliza e decide sobre a (in)capacidade protetiva das
famílias em relação aos seus filhos, no interior da indiferença e da ausência do Estado em
assegurar proteção social. Cabe destacar que esse movimento não se relaciona especificamente
ao SUAS, mas às diferentes maneiras de encobrimento das formas de ver e perceber a realidade.

Apresentados os dados desta seção, ressaltamos que o movimento de abreviar as vidas


em uma sociedade como a nossa, via de regra, está associado a um processo de estigmatização
dos sujeitos, de culpabilização destes/as por sua própria sorte. A análise dos conflitos familiares
como a principal razão para que haja a intercessão entre as trajetórias de homens, mulheres,
crianças e famílias com as ruas como espaço para morada é refletida em vários outros estudos,

39
principalmente devido ao seu protagonismo entre as razões e motivos apontados para as
vivências nas ruas. O que inferimos é que a utilização deste termo está associada a uma espécie
de anúncio de vários outros conflitos, sofrimentos, negligências e dores. Nesse sentido, os
conflitos familiares são desencadeados ou agravados a partir de outros fatores também
elencados, como o uso prejudicial de drogas ilícitas, álcool, a perda do trabalho, e,
consequentemente, de renda e a perda de moradia.

São inúmeros os casos de depressão e transtornos psíquicos vivenciados pelas famílias e


indivíduos, diretamente relacionados a um cotidiano marcado pelo sofrimento, pela ausência de
capacidades de estabelecer um projeto de vida para além da sobrevivência, vidas marcadas por
extrema privação material e afetiva. O que nos parece importante considerar nessa questão é o
fato de que a vida das pessoas se dá a partir de movimentos, eventos que podem ter repercussão
muito significativa, principalmente se não se dispuser de poder suficiente para enfrentá-los.
Nesse sentido, é na incapacidade para lidar com movimentos da vida, como a morte de uma
pessoa de referência, uma situação ou contexto de violência, ausência de renda suficiente, que
faz com que seja impossível permanecer em casa. É importante também considerar que a família
existe nas relações com quem não mora na casa, mas no “bairro”, considerando-o enquanto
espaço ou paisagem resultante das relações sociais.

A essa altura, para não restar dúvida, afirmamos que a “culpa” não é da família pela
reprodução de desigualdades, injustiças e privilégios. Para Jessé, o olhar ingênuo e não treinado
do senso comum só consegue perceber a “família” como último elo da cadeia de causas que
levam às desigualdades.

O fato de o senso comum nunca perceber a presença das classes e da


economia moral que vai determinar o comportamento peculiar de cada classe
é o que explica precisamente que a ‘determinação social’ dos comportamentos
individuais seja sistematicamente escondida e ‘esquecida’. Como esse aspecto
central é deixado às sombras, pode-se culpar ‘indivíduos’ por destinos que
eles, na verdade, não escolheram (Souza, 2016, p.51-53)

Nesse sentido, a permanência dos conflitos familiares entre as principais razões que
levam as pessoas a começarem a dormir nas ruas nos leva a afirmar que esses dados não podem
ser analisados em separado, a partir da responsabilidade exclusiva das famílias que supostamente
“fracassaram”, uma vez que reportam para uma trama, que atua pela composição nas trajetórias,
de um conjunto de não acessos ou incapacidades que se manifestam a partir da perspectiva do
conflito. Para estabelecer um movimento que acabe por implodir a perspectiva de que “conflitos
familiares” seja o ponto final de uma compreensão sobre as trajetórias que convergem para as
ruas, é preciso atuar, de acordo com Teixeira (2010), na superação dessa tradição histórica das

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concepções de família-padrão, família regular X família irregular, e na utilização de metodologias
de trabalho que, de fato, abordem, de forma dialética e articulada, assuntos internos e externos
à família (Teixeira, 2010).

Está posta a necessidade de romper com a perspectiva historicamente marcada por


análises segmentadas por categorias dispostas “a partir de ‘indivíduos-problemas’ e ‘situações
específicas’, como, por exemplo, trabalho infantil, abandono, exploração sexual, delinquência,
dentre outras, não contemplando a família como uma totalidade” (Teixeira, 2010). Apesar dos
avanços no campo normativo das políticas sociais brasileiras, incluindo a Assistência Social,
Solange Texeira (2015, p. 216) aponta que diversos estudiosos têm registrado “um descompasso
entre a importância atribuída ao papel da família e a falta de condições mínimas de vida digna e
de suporte e serviços familiares ofertados pelo poder público, o que mostra que, na prática,
ocorre mesmo uma responsabilização da família pela proteção social de seus membros” (Texeira,
2015, p. 216). A autora ressalta ainda que tem predominado, nos sistemas de proteção social, a
adoção do princípio da subsidiariedade da intervenção do Estado, o qual só deve atuar quando a
família falha na sua responsabilidade de proteção e cuidados (Texeira, 2015, p. 217).

Nesse sentido, a pandemia de Covid-19 não só expôs o mundo a um novo vírus como
escancarou outras faces das desigualdades em um contexto de capitalismo global. A sensação de
que a “normalidade” estava se desmanchando veio seguida da confirmação de que o normal em
curso já era organicamente patológico e que a vulnerabilidade não chegou com o vírus, mas como
a efetivação de um processo de desmonte do Estado em curso (rosa, 2020). A pandemia, ainda
que tenha sido uma condição excepcional, revelou algo que é uma característica do próprio
neoliberalismo, a responsabilização das pessoas em relação às dimensões da vida, do cuidado, da
geração dos elementos para tornar a vida em sociedade possível.

Retomando a reflexão proposta por Gracielle Loiola (2020), a produção sociojurídica das
famílias incapazes de aderência às políticas públicas, aponta para a projeção que se faz a respeito
da capacidade das famílias, muitas vezes mulheres mães, com rede de apoio inexistente ou
extremamente fragilizadas, de, ao menor toque da presença do Estado, responder ao desenho de
“organização” progressiva de suas vidas, dores e histórias. O mito das famílias incapazes, colocado
pelas políticas públicas, é respaldado por uma sociedade que grita aos quatro ventos que “não se
deve dar o peixe, é preciso ensinar a pescar”, que antes da entrada se deve pensar nas portas para
a saída, que a solução para a pobreza é o controle da natalidade e dos corpos das mulheres
pobres, etc.

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É para compreender essas famílias, que chegam até os serviços e às ruas e tem respostas
tão diferentes ao trabalho desenvolvido, que lançamos mão da perspectiva das capacidades e
funcionamentos de Amartya Sen (2010). Viver em situações de privação resulta, para o autor, em
redução da liberdade.

Esta liberdade está relacionada a condições que são necessárias para os sujeitos
definirem, por si mesmos, um ideal de vida boa, como por exemplo: ir ou não à escola, isso pode
ser considerado uma escolha, desde que exista no território a oferta desse serviço. No entanto, a
liberdade de permanecer na escola não está relacionada só ao direito da matrícula, mas em ter
condições de permanecer nela, sem, por exemplo, ter, a todo o momento, o risco abandoná-la
para contribuir na renda familiar. Se, por exemplo, as famílias com crianças pequenas têm acesso
à creche (capacidade), isso permite que as mulheres possam sair para trabalhar (funcionamento).
Se a escola trabalha de forma próxima, buscando envolver as famílias, as crianças, os adolescentes
e o território (capacidade), a possibilidade de perceber a educação como algo importante no
projeto de vida tende a aumentar (funcionamento).

Cabe ressaltar que, na perspectiva de Sen (2010), as capacidades de funcionamento de


que dispõem os sujeitos não são simplesmente autogeradas, o que reforçaria a perspectiva da
meritocracia, para a qual basta as pessoas se esforçarem para terem acesso ao que quiserem.
Para o autor, os efeitos das condições externas são determinantes. Walquiria Rego e Alessandro
Pinzani (2013) ressaltam a importância de as famílias perceberem que o Estado reconhece sua
existência, e que suas necessidades não podem ser supridas por elas mesmas, ou com ações
setoriais e sem acompanhamento.

Nesse caso, a existência de famílias pobres demanda a existência de capacidades para


funcionamentos, e o Estado precisa assumir o seu papel de provimento de condições para a
materialização da cidadania, através de suas diferentes políticas. O fato de que dentre as razões
de se ter começado a dormir nas ruas, em 50% dos casos, estejam as dimensões dos conflitos
familiares, relaciona a todos os aspectos acima elencados e abre possibilidades para a análise de
muitos outros.

42
CIDADANIA

“Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas
as margens que o comprimem” (Bertolt Brecht)

Neste item do Censo, refletiremos acerca dos dados relacionados à posse de documentos,
acesso a benefícios governamentais, à moradia e passagem pelo sistema prisional. Assumimos e
partilhamos a compreensão de que para o acesso à cidadania não são suficientes a existência de
leis ou de espaços de representação. É preciso mais para que vivamos em uma sociedade
democrática. Essa experiência não pode ser percebida fora do “rio” de nossa história, para se “ler”
o rio, há que se perceber as “margens”, ou limites, ao mesmo tempo concretos e simbólicos para
que a democracia se transforme em exercício cotidiano.

Na exposição dos resultados do nosso trabalho, tentamos construir uma narrativa que
revele a articulação entre dados empíricos e pressupostos teóricos referentes à cidadania, ou dito
de forma mais precisa, para a vivência de uma espécie de subcidadania pelas pessoas em situação
de rua, por isso o recurso ao Bertold Brecht.

Sobre os dados levantados acerca da posse de documentos, as respostas foram:

Perdeu/roubado
14%
Não possuo
documentos Sim, estão todos
6% comigo
35,30%
Sim, e estão com
amigos/conhecido
s
9%
Sim, mas apenas
um
9%
Sim, e estão em
equipamento da Sim, e estão guardados
prefeitura com a família
15,10% 10,60%

Figura 22: Questão – Possui os documentos pessoais?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

43
Figura 23: Questão – Quais documentos possui?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

A grande maioria das pessoas em situação de rua possui documentos processuais, o que
remete a uma ação para que este acesso tenha sido garantido e materializado, considerando que
o contrário poderia ter imperado, a manutenção das barreiras de acesso para obtenção dos
mesmos, principalmente considerando as “perdas” sucessivas e a necessidade recorrente de
emissão de novas vias.

Na relação entre acesso para a documentação e direito, destacamos que a Declaração


Universal dos Direitos Humanos (1948) estabelece que toda pessoa tem direito à identidade.
Nesse sentido, toda pessoa em situação de rua tem direito a tirar sua documentação, tais como:
RG, CPF, Certidão de Nascimento e carteira de trabalho. Neste campo, predominam os debates
sobre fluxos e exigência menores para o acesso, mesmo sem comprovante de residência,
considerando que a pessoa pode utilizar o endereço do equipamento da assistência social ao qual
está referenciado para garantia do acesso.

Nessa perspectiva, o Registro Civil de Nascimento é um direito humano em si, primeiro


instrumento de exercício da cidadania e de garantia dos direitos fundamentais, remete para o
direito da pessoa a ter reconhecido o seu nome, sua genealogia, sua data e local de nascimento,
sua identidade enquanto indivíduo e coletividade, cabendo ao Estado atuar na erradicação do
sub-registro civil de nascimento.

Faz-se necessário apontar, por razões e motivos óbvios, que o poder público é figura
central para o problema e para sua solução. Para o problema, dado o número de violações de
direitos por parte de agentes públicos. Há a demanda e necessidade de novas emissões a partir,
principalmente, das ações da “zeladoria urbana”, somadas à ação da polícia e da ausência (ou

44
presença insuficiente) de locais permanentes e disponíveis para guarda de documentos, ainda
que os Centros Pops cumpram este papel para o grupo referenciado no equipamento. É
importante estabelecer ações integradas e de diálogo permanente, para que as ações confluam
ao invés de existirem de forma antagônica.

Cabe aqui o registro de que, nos momentos de aplicação do formulário de recenciamento,


a questão de ter espaços permanentes para a guarda de pertences veio à tona muitas vezes e por
muitas pessoas, não só em relação à guarda de documentos, mas dos pertences de modo geral.
O fato de terem suas “coisas”, durante todo o tempo, junto ao corpo faz deles espécies de
“homens caracóis”, “homens tartarugas”, expressões que foram utilizadas para representar esta
situação. O deslocamento constante com mochilas ou bolsas, além de favorecer as perdas, amplia
o estigma: “As pessoas já sabem que a gente é da rua e daí não tem oportunidade”. Essa
colocação, amplamente conhecida por quem trabalha com esse grupo, atua na ampliação e
criação de barreiras para o acesso.

As sucessivas “perdas” de documentos por parte dessa população implicam em custos


relacionados às novas emissões, com destaque para o tempo gasto pelas pessoas em situação de
rua, bem como das equipes responsáveis pelos encaminhamentos. A questão da documentação
constitui importante barreira colocada para o acesso às políticas públicas, uma vez que ainda é
bastante recente o debate sobre grau mínimo de exigência para acesso aos direitos por parte
dessa população.

Ter documentação relaciona-se de modo concreto e simbólico para o campo da


dignidade. Ter documentos, representa, em alguma medida, um primeiro passo de
reconhecimento como membro de uma comunidade, a possibilidade de estabelecer projetos, de
viabilizar fluxos e processos, a exemplo de tirar a carteira de trabalho para buscar emprego, casar-
se, entre outros. Neste ponto, afirmamos ser bastante importante a movimentação relacionada
ao aprimoramento dos fluxos para a emissão e para a celeridade no e para o acesso.

Em relação aos benefícios, 50,2% afirmaram que recebem. Sobre esse número, é preciso
ser destacado e posteriormente analisado o fato de que muitas pessoas em situação de rua,
principalmente no contexto da pandemia da Covid 19, passaram a receber o Auxílio Emergencial
e depois o Auxílio Brasil, 48,4%. O acesso ao Benefício de Prestação Continuada- BPC, corresponde
a 5,3% dos casos e, em proporções significativamente menores, 1,8% acessam a aposentadoria.

45
Sim, Bolsa
Família/Auxílio
Brasil
43,10%

Não
48,40%

Sim, Benefício de
Sim,
Prestação
Aposentadoria/Pensão
Continuada
1,80%
5%

Figura 24: Questão – Recebe algum benefício?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Estes dados apontam para um esforço significativo de ampliar a inserção desse segmento
no CadÚnico, como forma de buscar reduzir as barreiras para o acesso aos direitos de cidadania.

Como cidadãos integrais, as pessoas nessa situação devem ser atendidas pelas
diversas políticas públicas. É o que afirma o Decreto Federal nº 7.053, de 23 de
dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em
Situação de Rua, um passo fundamental nessa trajetória de conquista de
direitos. Essa Política apresenta ações transversais e diretrizes para políticas
específicas voltadas a essa população. Uma construção coletiva com a
participação de diversos ministérios e setores da sociedade, incluindo
movimentos sociais representativos da população em situação de rua. A
Política Nacional é estruturada pelo princípio da igualdade, expresso na
Constituição brasileira, e define a necessidade de ações articuladas entre todas
as áreas do governo, para que sejam implementadas ações efetivas que
possibilitem a construção da autonomia das pessoas em situação de rua. Entre
as definições da Política Nacional está a inclusão das pessoas em situação de
rua no Cadastro Único para Programas Sociais, para viabilizar a implementação
de políticas sociais voltadas ao atendimento dessa população (MDS, 2011).

Apontamos também que, sendo a pobreza um problema complexo, como tal, não admite
uma solução fácil, serão necessários estudos sobre o impacto, principalmente do Auxilio Brasil,
na vida das pessoas em situação de rua, principalmente considerando seu cotidiano e trajetórias
multifacetados, em que o acesso à renda, se não combinado com uma rede efetiva e de tramas
densas de proteção e garantia de direitos, pode não ser suficiente para atuar de modo mais efetivo
no enfrentamento à degradação das condições de existência e, por conseguinte, de acesso e
exercício da cidadania. Destacamos ser imprescindível o esforço em curso pela inserção dessa
população no CadÚnico.

46
Em relação à passagem pelo sistema carcerário, 59% das pessoas em situação de rua na
cidade do Recife não tiveram passagem pelo sistema, o que é um número bastante significativo e
precisará ser analisado, inclusive para romper mitos relacionados ao perfil da população em
situação de rua (Figura 25).

Não Sabe Não respondeu


0,70% 0,70%

Sim
39,20%

Não
59,4%

Figura 25: Questão – Tem passagem pelo sistema carcerário?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

No entanto, o fato de que 39% dessa população teve passagem pelo sistema prisional,
nos aponta o peso dos estigmas e ausência de políticas efetivas que antecedem o cárcere, se
materializam no cárcere e ultrapassam o encarceramento. Nesse sentido, o cárcere e o
encarceramento atuam como uma espécie de aprofundamento das condições de desfiliação, não
acesso e subcidadania. Importante considerar que, a intercessão entre a saída do cárcere e a
situação de rua relaciona-se com o fato de que a remissão da pena, do regime fechado para o
meio aberto, pode não implicar em um retorno para a vida familiar e comunitária.

Muitas vezes, não há para onde voltar, há casos em que as pessoas admitem ser
ameaçadas de morte ao saírem do cárcere, o que acontece em ocorrências muito frequentes,
impedindo o retorno para os territórios de origem, há também relações familiares e comunitárias
que foram demasiadamente degradadas durante o tempo do cárcere. Cabe destacar que essa é
uma situação que precisa ser discutida e analisada à luz do papel do Estado durante o tempo do
cárcere e no pós-cárcere, em termos de provisão de meios.

O cárcere e o encarceramento constituem um fenômeno essencialmente vinculado aos


elementos constitutivos da subalternidade. As trajetórias pós-cárcere configuram realidades
marcadas pela negação e violação de direitos fundamentais e básicos para garantia de uma vida
digna, pelo alijamento de fala, pela desigual distribuição de poder. Ao sair da prisão, o cárcere
permanece como marca e estigma, e a pessoa com trajetória de encarceramento é muitas vezes,

47
novamente, apartada e punida pela sociedade e pelas instituições. A passagem pela prisão, em
muito pouco, favorece a abertura de possibilidades e ampliação de capacidades, uma vez que o
peso do encarceramento agrava ainda mais as vulnerabilidades físicas, psicológicas e sociais
presentes enquanto experiência em suas trajetórias, elementos coercitivos para a/o
egressa/egresso se filiar de forma mais equitativa às demandas sociais.

Quando em liberdade, são vítimas de imensas dificuldades sociais e psicológicas. Amplia-


se uma espécie de não autoridade para o discurso, somada às condições econômicas degradadas,
redução das oportunidades (o que antes da passagem pelo cárcere era mínimo, passa a ser quase
inexistentes). Nesse sentido, as dificuldades de inserção no mercado formal de trabalho propiciam
a reincidência delitiva, gerando ciclos viciosos de vitimização, violência, criminalidade,
estigmatização e segregação social” (Instituto Elo, 2013, p. 18).

De acordo Rocha e Ercket (2013), as sociabilidades públicas e a vida privada conhecem


sistematicamente novos constrangimentos pela forma como se constrói a narrativa do aumento
da criminalidade, divulgada predominantemente pela mídia, alterando nossas concepções
culturais sobre a confiança. O discurso generalizante sobre a insegurança e os riscos de se viver
nas cidades desvela a necessidade da desconfiança do “outro”, do afastamento do “estranho”.
Todavia, esse medo não é generalizado a todos os corpos e territórios, a sensação de insegurança
e de risco ocorre em relação a determinados corpos e se materializa em determinados espaços.
Os corpos com vivência do e no cárcere, somada a situação de rua, representam, via de regra, o
“outro”, o “estranho” a ser afastado, combatido, controlado e, considerando a letalidade da
polícia brasileira, por vezes, aniquilado. O Brasil é um dos países que mais encarceram no mundo,
o faz sob as piores condições e não há comoção ou empatia da sociedade em geral com relação
a essa condição.

Como afirmou Zaluar (1985), na introdução antropológica e afetiva, escrita para narrar os
bastidores da sua chegada na Cidade de Deus, o que orienta as ações em relação ao contato com
esses corpos, diferente de um tabu com proibições especificas, decorrente do contato com o
impuro, é um medo construído pela leitura diária de jornais, com recepção favorável em uma
sociabilidade fundamentada na interseccionalidade das desigualdades sociais e na opressão das
relações de poder, de raça, gênero e classe.

A população penitenciária brasileira é composta majoritariamente por homens, negros,


jovens e pobres. A taxa de negros aprisionados é consideravelmente maior quando comparada
ao de brancos, segundo estudos, essa é a parcela da população com maiores chances de ser presa

48
por tráfico de drogas e com menos chances de conseguir ser solta em audiência de custódia
(DINIZ, 2016).

O sistema penitenciário brasileiro representa a materialização, principalmente se


considerado o fenômeno do encarceramento em massa, da política da inimizade, do afastamento
e do controle de corpos dessa sociedade desigual e racializada. Soma-se a isso a invisibilidade das
diferentes trajetórias desses sujeitos em meio a condições, muitas vezes, insalubres e instalações
físicas inadequadas para a garantia de qualquer tipo de dignidade. Ao Estado, cabe função inversa,
a de propiciar a reinserção social das/os egressas/os, possibilitando aos sujeitos subalternos, com
passagem pelo cárcere, condições mais favoráveis à sua ressocialização e agenciamento.

As condições limitadoras permearam a vida de muitos desses sujeitos, resultado de


“exclusões” múltiplas e históricas, falta de acesso à educação, ao trabalho, à habitação, à
igualdade (respeitadas às diferenças), ao direito à cidade, entre outros. Como parte desse
fenômeno, ressaltamos que pobreza e justiça, mesmo que de forma avessa, sempre caminharam
juntas. O Brasil tem um legado histórico de tratar a situação de pobreza e rua, que são problemas
sociais, como casos de polícia.

A Constituição Federal brasileira de 1988, ao afiançar os direitos humanos e sociais como


responsabilidade pública e estatal, operou, ainda que conceitualmente, fundamentais mudanças,
pois acrescentou, na agenda dos entes públicos, um conjunto de necessidades até então
consideradas de âmbito pessoal ou individual. No entanto, mesmo após a Constituição de 88,
ainda imperam, muitas vezes e em muitos lugares, práticas higienistas ou de afastamento,
utilizando-se de mecanismos diversos, a exemplo da polícia, zeladoria urbana e arquitetura hostil.
Como exemplo, podemos lembrar que:

[...] a detenção do vadio – uma instituição que vinha da Idade Média –


projetou-se no Brasil até a Constituição de 1988, quando foi derrubada a
contravenção definida como ‘vadiagem’, e que dava à polícia o direito de
detenção de qualquer pessoa ao menos por 24 horas (Lessa, 2000, p. 13).

A apartação social designa um processo pelo qual se denomina o outro como um ser “a
parte”, (apartar é um termo utilizado para separar o gado), ou seja, o fenômeno de separar o
outro, não apenas como desigual, mas como um “não semelhante”, um ser expulso não somente
dos meios de consumo, dos bens, serviços etc., mas do gênero humano. É uma forma
contundente de intolerância social.

Sobre a moradia para as pessoas em situação de rua, se elas têm casa para morar e o tipo
de acesso, essa questão remete para a necessidade percebida de, muitas vezes, mesmo tendo

49
moradia, terem de buscar a sobrevivência nas ruas, seja devido às condições de pobreza e
apartação vivenciadas, seja pela impossibilidade de permanecer em casa, atravessada pelas
condições de violência e de degradação de seus territórios e relações.

Não Sabe Sim, em outra


Sim, em Recife
Não Respondeu cidade
11,20%
5,3%

Sim, em outro país

Não
82%

Figura 26: Questão – Possui residência?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Não Sabe
Ocupação, invasão,
2%
assentamento
Própria em 3%
aquisição
2% Cedida
4,70%
Própria e quitada
Alugada 42,50%
14,20%

Não Respondeu
32,3

Figura 27: Questão – A residência é...? (para quem afirmou possuir residência)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Os déficits em termos de acesso a direitos que viemos refletindo são agravados, de


acordo com Caniato e Toninato, (2011), pela reprodução de estigmas em relação a esse grupo
populacional, seja por parte da sociedade, seja por parte da mídia e do próprio poder público. É
importante destacar que a reprodução de estigmas e humilhação não remete apenas às formas
de abordagem das polícias e da zeladoria urbana, mas das instituições. Essa constatação levou o

50
poder judiciário a apontar a necessidade de se criar política pública judicial para atender a
população em situação de rua de forma digna e decente.

No caso da mídia, imagens amplamente divulgadas com pessoas dormindo à luz do dia
nas praças apontam para suposta ociosidade, situação de mendicância ou “cenas” de uso de
drogas, por exemplo na “Cracolândia” em São Paulo. Essas imagens reportam para a criação de
um perfil que, supostamente, retrata a totalidade das pessoas que estão nas ruas, associando a
pobreza à preguiça, à criminalidade e à sujeira. Trata-se de uma concepção ideológica, na qual a
população pobre é vista como degradada, perigosa e responsável pelos atos de transgressão.

Neste ponto, retomamos a perspectiva de uma sociedade decente, que “deveria garantir
a dignidade dos seus membros [...] omitindo ações diretamente humilhantes”. O fenômeno da
humilhação está intimamente ligado aos sentimentos de vergonha e de perda do autorrespeito
experimentados pela pessoa humilhada.

A humilhação é dupla: por um lado, o indivíduo silenciado, por outro, vê


imposta uma descrição que não corresponde à visão que possui de si mesmo
e que representa um desrespeito à sua. Isso pode ser constatado
cotidianamente no Brasil pela maneira na qual os pobres são descritos pelos
membros da classe média e pela própria mídia (por exemplo, quando o
indivíduo pobre é chamado de ‘marginal’, de ‘preguiçoso’, de ‘vagabundo’ ou é
acusado de ser culpado pela sua situação, sem poder em momento nenhum
oferecer sua visão da pobreza). Ao receber esse rótulo de membros perigosos,
inúteis e associais da comunidade, os pobres são de fato os excluídos
expressamente dela; porém, espera-se deles, ao mesmo tempo, que se
comportem como membros comprometidos com ela (Rego e Pinzani, 2013, p.
31-32).

Em síntese, a situação de rua relaciona-se com a radicalidade do desamparo diante da


carência física, econômica e psíquica, e coloca, a céu aberto, aquilo que é negado por grande
parte da sociedade. As sucessivas crises vivenciadas em nossa sociedade, associadas a inúmeras
permanências de nosso passado colonial e escravocrata, são corresponsáveis pelas constantes
“desfiliações” que operam ao longo da vida das pessoas em situação de rua. O que é revelado
pela expressividade de indicadores de acesso a direitos anteriores à situação de rua, como
moradia, trabalho formal, educação, que, em algum momento e por razões diversas, foram
rompidos.

Associado a isso, destacamos que a situação de rua opera a partir da degradação


progressiva das possibilidades de acesso, por essa razão, é essencial que o Estado e a Justiça ajam,
ainda que seja reconhecida a importância de ações da sociedade civil junto à população em
situação de rua, principalmente as associadas à dimensão política do fenômeno. No entanto, a
complexidade do fenômeno demanda ações que atuem de forma mais ampla do que garantindo

51
apenas acesso às demandas relacionadas à sobrevivência mais imediata, como: distribuição de
alimentos, cobertores e roupas. É preciso, considerando a cidadania em sua condição subjetiva,
que o Estado garanta as condições necessárias para que as pessoas tenham condições de agir.

Nesse sentido, lembramos de Paulo Freire (2015, p. 108), para quem “existir,
humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta
problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que
os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.”

CONDIÇÃO DE SAÚDE

A literatura especializada demonstra que muitas são as barreiras de acesso aos serviços
de saúde impostas às pessoas em situação de rua. Maior parte delas têm a ver com a própria
organização desses serviços, ainda calcado no modelo biomédico e medicalizador. A despeito dos
esforços de universalização inerentes aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), outros
entraves ainda persistem, tais como a exigência de documentação, de endereço, limites quanto
ao atendimento de demandas espontâneas, pouca articulação intersetorial e os preconceitos que
reforçam os estigmas a que já nos referimos (Paiva et al, 2016).

Para conseguir atendimento, muitas vezes, é preciso chegar cedo nas unidades básicas de
saúde e ter de esperar durante um tempo que, com frequência, esses indivíduos não têm ou não
estão habituados depreender. O período de espera é muitas vezes visto como ‘tempo perdido’,
uma vez que poderia ter sido empreendido na busca por alimentos. Afinal, quando não se tem
segurança sobre o que comer durante o dia, outras necessidades são relegadas a segundo plano.
No fim das contas, muitos não se permitem esperar e acabam por recorrer aos serviços de saúde
apenas quando já não suportam mais os sintomas das enfermidades adquiridas ou decorrentes
de suas condições de saúde.

A estrutura e a dinâmica da maior parte dos serviços de saúde, de fato, desencorajam a


procura por parte das pessoas em situação de rua, que, muitas vezes, preferem recorrer apenas
ao atendimento emergencial, quando já estão com sintomas avançados. Ao final e ao cabo, há um
reforço de uma concepção de saúde enquanto ausência de doença, o que vai na contravia do que
define a Organização Mundial de Saúde e o próprio SUS. Além disso, a aparência e os trajes
geralmente sujos fazem com que essa população seja mal acolhida nos equipamentos.

52
Os/as profissionais, por sua vez, poucas vezes são efetivamente capacitados/as para o
atendimento, uma vez que desconhecem as especificidades desse público, ao que, muitas vezes,
vem acompanhado de racismo e de preconceitos de todos os matizes. Em poucas palavras, ainda
não há garantia de acesso aos serviços de saúde para as pessoas em situação de rua (Paiva et al,
2016; Andrade et al, 2022). É preciso refletir, pelas razões acima apontadas, acerca do risco de
reprodução de desigualdades, mesmo no caso de implementação de políticas públicas.

Para oferecer um pleno acesso, capaz de contemplar todas as necessidades de uma


população tão vulnerável, é necessário incorporar de vez um conceito de saúde mais amplo, que
consiga ir além da dimensão biológica, intervindo também nos problemas sociais e nos
determinantes dos processos saúde-doença, conforme apontamos na compreensão das
trajetórias familiares e das experiências vividas nos territórios. Isso tem sido construído, nos
últimos anos, com as ações de promoção de saúde das equipes do CnaR, serviço instituído pelas
Portarias 122, de 25 de janeiro de 2011, e 123, de 25 de janeiro de 2012, do Ministério da Saúde,
que hoje integra a Política Nacional de Atenção Básica, além do componente atenção básica da
Rede de Atenção Psicossocial. No Recife, o Consultório nas Ruas surgiu em 2011, atuando
principalmente nas questões de saúde mental e redução de danos.

Em que pese a existência das equipes do CnaR e os reconhecidos avanços obtidos através
de sua atuação, a situação ainda é precária, conforme demonstram os dados desta pesquisa. As
pessoas em situação de rua apenas procuram os serviços de saúde quando acometidas de
quaisquer problemas graves. Quando questionados sobre como resolviam esses problemas, mais
de 60% responderam que recorriam aos Hospitais e às Unidades de Pronto Atendimento (UPA), o
que nos leva a crer que só procuram o serviço de emergência quando já estão com sintomas
avançados.

Figura 28: Questão – Como resolvem seus problemas de saúde?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

53
Quando perguntados sobre a saúde, a maior parte dos/as entrevistados/as alegaram
alguma condição, embora também afirmaram que não são acompanhados por qualquer serviço
de atenção básica. Entre as condições mais citadas, figuram “dependência de álcool e outras
drogas”, “problemas psiquiátricos ou neurológicos”, “doenças bucais” e “dores crônicas”. A
dependência do álcool é um dos problemas mais recorrentes e atravessa a própria “situação de
rua”. Em um número significativo de casos, conforme vimos em relação às razões que levam as
pessoas a começarem a dormir nas ruas, o consumo excessivo e prejudicial de álcool e outras
substâncias é apontado como segunda e terceira maiores razões para a situação de rua.

Figura 29: Questão – Possui alguma condição de saúde?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Há uma crença, fundamentada e constantemente reatualizada nos estigmas em relação


a essa população, de que a própria rua é fator para o uso prejudicial de drogas, funcionando como
porta de entrada para o consumo de substâncias psicoativas cada vez mais prejudiciais (como o
Crack). Segundo esse viés de entendimento, diante dos problemas econômicos e familiares,
muitas vezes acompanhados de diferentes tipos de violências, inúmeras pessoas saem às ruas e
encontram nas drogas um alívio para as tensões financeiras e familiares. Contudo, pessoas em
situação de rua relatam que o uso dessas substâncias, em alguns casos, figura como estratégia de
sobrevivência, pois ajuda a vencer o frio e a fome. Em muitos casos, o uso de substâncias
psicoativas é justificado como estratégia para manter a vigília durante a noite, uma vez que a rua
é também lugar de violência.

54
Os dados dessa pesquisa nos mostram que não há aumento perceptível do uso de
qualquer droga depois que as pessoas passam a viver nas ruas. O uso abusivo e prejudicial,
portanto, está muito mais relacionado aos problemas e violências inerentes à trajetória de cada
indivíduo, podendo a rua funcionar ou não como um fator para potencialização do uso. Conforme
apontamos em relação às trajetórias que levam às ruas, o uso abusivo pode, até mesmo, ser uma
das razões para os conflitos familiares apontados como razão de ida para as ruas. Nesse sentido,
a relação seria anterior às ruas, podendo, em alguns casos, até mesmo, ser revertida no tempo
de permanência nelas, caso as pessoas tenham acesso a serviços e políticas públicas que auxiliem
da redução ou interrupção do uso.

Figura 30: Questão – Consumo de drogas autodeclarado antes de viver nas ruas (múltipla resposta) 3
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Figura 31: Questão – Consumo de drogas autodeclarado depois de viver nas ruas (múltipla resposta)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

3
Em relação ao gráfico 30, que apresenta as drogas consumidas antes de viver nas ruas, não há diferenças
substanciais, exceto no consumo de Cocaína. Notamos também um curioso aumento entre aqueles que
declaram não usar mais drogas depois que foram viver nas ruas.

55
O uso abusivo de drogas por essa população é algo complexo e reforça a exclusão social
a que já está submetida. Os estigmas sociais são potencializados com o consumo do Crack, em
razão das próprias características dessa substância. Seu efeito imediato, baixo custo e grande
potencial de causar dependência têm levado uma grande PSR a consumi-lo. A dependência faz o
usuário centrar seus interesses e comportamentos no esforço de aquisição da substância,
levando-o a romper os vínculos sociais que restam ou expondo-o a uma situação de
vulnerabilidade ainda maior. O Crack provoca problemas pulmonares e cardiovasculares sérios,
além de lesões neurológicas. Seu uso constante pode resultar em síndrome respiratória aguda,
aumento da pressão arterial, infarto, oscilações de humor, deficiências de memória e de
concentração (CEBRID, 1987).

As estratégias de cuidado e superação do consumo abusivo do Crack e de outras drogas


não podem, contudo, estar calcadas na simples e pura proibição moral, na abstinência e na guerra
às drogas. Em vez disso, devem-se adotar estratégias de redução de danos, sendo elas um
conjunto de ações de acolhimento e prevenção para essas pessoas, dentro de arranjos de
cogestão do cuidado, tendo como objetivo primordial a promoção da saúde (Passos; Souza, 2011).
A simples criminalização do uso tende a provocar violência e intensificar exclusões. Em se tratando
de uma população cujos direitos são tão violados, é preciso acolhê-la e promover o cuidado de
maneira corresponsável. Neste sentido, é preciso envolver os usuários no seu próprio tratamento,
e acompanhá-los na elaboração de suas próprias estratégias de superação da dependência. Em
muitos casos, algumas pessoas em situação de rua e dependentes do uso de drogas lícitas e ilícitas
procuram o trabalho das chamadas “comunidades terapêuticas”, muitas das quais de base
religiosa. O trabalho elaborado por essas instituições, em sua grande maioria, não segue aquilo
que determinam as políticas públicas e estão baseadas em um viés moralizante, que vai na
contravia do que preconizou a Reforma Psiquiátrica (Perrone, 2014).

Os dados desta pesquisa demonstram que 31% daqueles que fazem uso de drogas ilícitas,
o fazem diariamente. A insistência no tratamento moralizante ou hostil, calcado na criminalização
individual, faz com que essas pessoas se sintam culpadas e ainda mais excluídas, o que não
contribuiu para resolução do problema. O caso é ainda mais preocupante se levarmos em conta
que boa parte desses usuários são pessoas com deficiência (30% das pessoas com deficiência são
usuárias de drogas), que se encontram em situação de hipervulnerabilidade, e, para os quais, a
presença do Estado e de qualquer instituição deveria sempre se dar no sentido de seu
acolhimento.

56
Não sabe Não respondeu
0,30% 4%
Não usa
20,70%

Todos os dias
37,10%

Menos de uma vez por


semana
10,90%

Alguns dias por semana


27,3%

Figura 32: Questão – Com que frequência usa drogas ilícitas?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

A propósito das pessoas com deficiência, uma das condições de saúde mais mencionadas
foi a dos “problemas psiquiátrico e neurológicos”. A maior parte desses casos são decorrentes de
problemas de ansiedade, depressão e distúrbios neurobiológicos adquiridos, como o Transtorno
de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Contudo, há os casos de pessoas com deficiências
intelectuais, que não possuem laudo e, muito menos, acompanhamento psiquiátrico. Não foi
possível obter números absolutos, uma vez que se trata de uma informação cuja produção requer
a busca de dados mais complexos junto aos sistemas de saúde, mas a quantidade de pessoas em
situação de rua com deficiência intelectual e que não são acompanhadas pelos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPs), nem pelas equipes do CnaR, é realmente alarmante.

Não por acaso, alguns dos estigmas socialmente atribuídos à PSR são o de “loucos” e
“noiados”, indivíduos que supostamente “perderam a razão” por conta da vida desregrada e do
uso abusivo de drogas. Trata-se, pois, de uma visão preconceituosa e que não leva em conta o
conjunto de pressões sociais e violações pelas quais essas pessoas passam diariamente. Pessoas
com deficiência são sujeitos de direito e contam com uma política específica para promoção de
sua saúde, mas poucos possuem tal conhecimento e, muito menos, acesso pleno aos serviços.
Alguns sequer conhecem as equipes do CnaR, conforme se verá mais adiante. Nesta pesquisa,
24,5% afirmaram ter algum tipo de deficiência. Desses, 40% têm deficiência física, pouco mais de
10% afirmam ter baixa visão e, aproximadamente, o mesmo percentual declara que tem
deficiência intelectual.

57
Não respondeu
Sim
Não sabe
19,20%

Não
78%

Figura 33: Questão – Possui alguma deficiência?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Figura 34: Questão – Qual deficiência? (para quem informou ter alguma)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Problemas de acessibilidade aos serviços de saúde são uma das principais queixas das
pessoas com deficiência, o que, por si só, já contraria o princípio da equidade do SUS (Castro et
al, 2011). No caso da PSR, tem-se o problema adicional já mencionado das estruturas e dinâmicas
dos serviços, bem como os preconceitos e a falta de capacitação profissional (Paiva et al, 2016;
Andrade et al, 2022). Assim, se não há garantia de acesso aos serviços para a PSR, o problema é
ainda maior para as pessoas em situação de rua com deficiência.

58
Outro tema importante é o das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Embora os
dados desta pesquisa não as apontem como um dos principais problemas de saúde da PSR no
Recife, trata-se de um item que requer atenção e algumas considerações.

O levantamento realizado pela SDSDHJPD, em 2019, já indicava que aproximadamente


5% da PSR afirmava ter HIV/AIDS e mais 5% afirmavam ter Sífilis. Os dados se mantêm, nesta
pesquisa, muito embora possam estar subestimados, uma vez que o reconhecimento e a
revelação de que possui alguma IST é algo sensível e que nem sempre acontece de forma aberta,
especialmente com a PSR, tendo em vista se tratar de uma população que já sofre com baixa
autoestima. Conforme Francês (2016), o preconceito ainda é muito forte em relação as ISTs,
especialmente HIV/AIDS, o que muitas vezes tende a se manifestar através do sentimento de culpa
ou vergonha por parte dos portadores.

Um dado curioso sobre este tema é o fato de que, nesta pesquisa, 46% da PSR afirmou
usar preservativo durantes as relações sexuais. Para efeito de comparação, os dados recentes da
Pesquisa Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, relativos ao período de 2019, demonstram
que apenas 22,8% dos brasileiros usam preservativo (IBGE, 2020). É necessária alguma
ponderação em relação aos dados autodeclarados, especialmente diante de um tema sensível
que foi, e ainda é, objeto de muitas campanhas de conscientização. Contudo, a simples
preocupação em demonstrar que faz uso já evidencia certo avanço no que diz respeito às políticas
de prevenção das ISTs. Sobre essas questões, é inegável o papel atualmente exercido pelo CnaR e
a disponibilização gratuita de preservativos nos equipamentos de saúde.

Não sabe Não respondeu


Não faz sexo
9,80%

Nunca
21% Sempre
46,90%

Raramente
3,50%
Às vezes
16,5%

Figura 35: Questão – Usa preservativo quando faz sexo?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

59
Por fim, cabe ressaltar as condições de saúde da PSR no contexto de crise sanitária
desencadeada pela pandemia da COVID-19. O fato de não ter onde morar e ter de viver nas ruas
expôs, de forma ainda mais intensa, essa população ao vírus mortal, ocasionando a intensificação
do risco e da vulnerabilidade sociais. Ainda no auge da crise, quando as recomendações eram
ficar em estado isolamento, a maior parte das pessoas continuavam a circular pelas ruas, sem os
insumos necessários para fazer assepsia e manter a higiene, tais como máscaras e álcool em gel.

A descoordenação do governo federal, na implementação de medidas para mitigar o


impacto da pandemia, tornou as coisas ainda mais difíceis. Mesmo diante do evidente estado de
vulnerabilidade, a PSR sequer foi priorizada na campanha vacinal, e sua imunização deveu-se
muito mais aos esforços das secretarias estaduais e municipais de saúde. Adicionalmente, o
acesso dessa população aos serviços de saúde ficou ainda mais dificultado, com a enorme
sobrecarga que os equipamentos tiveram de lidar diante do aumento da procura pelo serviço de
emergência.

Sim, com
confirmação, mas
sem internação
35,30%

Não contraiu
COVID-19
84%

Figura 36: Questão – Contraiu COVID-19?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Nesta pesquisa, 86% da PSR afirmou não ter contraído a COVID-19, o que provavelmente
tem a ver com o baixo número de testagem no período mais crítico da pandemia. Por outro lado,
destacamos que a gestão da cobertura vacinal, quando finalmente havia vacina e depois de
vencidos os entraves postos pelo próprio governo federal, ainda não chegou a níveis satisfatórios.
De acordo com os dados desta pesquisa, 85% das pessoas em situação de rua tomaram a vacina.

60
Desse total, apenas 40% tomaram as três doses da vacina, valor abaixo da média nacional, que é
60%, e também abaixo da média estadual, que é 82%. Um quarto dos entrevistados chegou a
tomar 4 doses, mas 10% tomaram apenas uma única dose.

Não Sabe Não respondeu

Não
12%

Sim
86,90%

Figura 37: Questão – Tomou vacina contra COVID-19?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

1 dose
4 doses
10,90%
25,3%

2 doses
25,8%

3 doses
37,90%

Figura 38: Questão – Quantas doses da vacina? (para quem tomou vacina)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

É importante garantir a ampla cobertura vacinal dessa população e vencer as barreiras


institucionais e sociais que impedem seu pleno acesso aos serviços de saúde, especialmente na
atenção básica.

61
SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL

O cotidiano das pessoas em situação de rua é atravessado por violações, maior parte das
quais relacionadas aos direitos humanos mais básicos, como o direito à alimentação. No Brasil, o
Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequada (DHAA) está preconizado na Lei
11.346/2006, conhecida por Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), lei essa
que também instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Depois,
o Decreto Nº 7.272/2010 instituiu a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(PNSAN) e, por meio da Emenda n. 64/2010, a alimentação passou a figurar entre os direitos
primordiais positivados na Constituição Federal. Desde então, os governos têm por obrigação
promover e garantir a SAN de toda população, inclusive a PSR.

Com a criação do Programa Fome Zero, em 2003, houve todo um estímulo, por parte do
Governo Federal na época, para a criação de Conselhos Estaduais e Municipais de Segurança
Alimentar e Nutricional. O Recife foi um dos municípios que instituíram seu Conselho Municipal
de Segurança Alimentar e Nutricional (COMSEA), criado pela Lei Nº 17.019/2004, alterado pela
Lei Nº 18.354/2017, cujo regimento interno foi instituído pelo Decreto Nº 33.036/2019. O
COMSEA já chegou a realizar 3 conferências municipais, nas quais estabeleceu diretrizes e
propostas para o Plano Municipal de Segurança Alimentar (I PLANSAN/Recife), que ainda não foi
aprovado, exigindo, assim, do poder público municipal compromisso e maior atenção quanto a
sua aprovação e execução.

O plano segue o que prescreve a LOSAN e tem por objetivo instruir as ações institucionais
de modo a garantir o DHAA. Por fim, cabe registrar que, por meio do Decreto Nº 27.815/2014, foi
também criada a Câmara Intersecretaria da Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), que
compõe o Sistema Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (SMSAN), instituído pela Lei
Nº 18.213/2016. Segundo a LOSAN (Lei 11.346/2006), a segurança alimentar e nutricional...

[...] consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente


a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o
acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares
promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam
ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (Brasil, 2006).

A garantia desse direito, conforme destacamos, é obrigação do Estado. Mas a crise


financeira que assola o mundo desde 2008 e, sobretudo, o colapso econômico decorrente da
pandemia da COVID-19 têm dificultado avanços no que diz respeito ao enfretamento, à
erradicação da fome e à garantia da SAN, pois fizeram crescer as desigualdades em quase todos

62
os lugares do mundo. Segundo o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo
2022, publicado conjuntamente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura (FAO), Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), UNICEF, Programa
Mundial de Alimentos (WFP) e Organização Mundial da Saúde (OMS), subiu para 828 milhões o
número de pessoas afligidas pela fome no mundo. Além disso, 11,7% da população mundial vivem
sob insegurança alimentar em níveis graves (ONU, 2022).

Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas, um mapeamento que
engloba os países em que, ao menos, 2,5% da população total sofrem com falta crônica de
alimentos. No entanto, num curto intervalo de tempo, em 2018, a fome retornou ao país de forma
bastante acelerada. Em 2022, cerca de 4,1% da população brasileira já se encontrava em situação
de “fome crônica”, que é a forma mais grave de insegurança alimentar (ONU, 2022).

De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da


Pandemia da Covid-19 (II VIGISAN), realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e
Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), a fome aflige hoje cerca de 33,1 milhões de
brasileiros. Além disso, esse mesmo documento divulgou que, até o mês de setembro de 2022,
somente 40,9% da população pernambucana teve acesso regular à alimentação, estando quase
22,8% das famílias pernambucanas com a qualidade da alimentação comprometida (insegurança
alimentar leve); 14,1% com redução da quantidade de alimentação (insegurança alimentar
moderada); e 22,2% em situação de fome (insegurança alimentar grave), o equivalente a 2,1
milhões de pernambucanos/as.

Embora não se tenha muitas informações a esse respeito, o quadro acima descrito afeta
especialmente a PSR, pois muito antes da pandemia, tal população já se deparava com grandes
obstáculos no acesso à alimentação. A bem da verdade, o acesso à alimentação saudável é uma
das principais violações pelas quais passa a PSR, juntamente com a falta de acesso à moradia
digna. A fome de quem vive nas ruas hoje é parcialmente remediada pelos restaurantes
populares. O “Recife Acolhe”, programa ligado ao atual governo e que visa organizar e expandir
as ações executadas por diferentes secretarias na promoção dos direitos primordiais da população
mais vulnerável da cidade, tem como um de seus eixos a garantia da SAN para a PSR.

Atualmente, a cidade possui dois restaurantes em funcionamento, o Josué de Castro e o


Naíde Teodósio, ambos localizados na região central da cidade. Há ainda a Cozinha Comunitária
de Gurupé, que tem apoio da prefeitura e que produz alimentos a baixo custo. Além disso,
inúmeras organizações, como o Unificados e a Cozinha Solidária do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra, realizam a distribuição de alimentos em diversas localidades da cidade, um

63
gesto que atenua a insegurança alimentar e nutricional da PSR. Mas a oferta de alimentos não é
suficiente para o atual contingente, e ainda não se tem informações mais sistemáticas nem o
efetivo controle da sua qualidade nutricional.

Figura 39: Questão – Onde costuma obter alimentos?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Dos entrevistados/as, 65% afirmaram já ter passado um dia inteiro sem comer, desde que
passou a viver nas ruas. Verificamos também que, aproximadamente, 31% das pessoas em
situação de rua não realizam três refeições ao dia, e apenas 31% afirmaram fazer mais de quatro
refeições. Isso só comprova o fato de que a oferta de alimentos ainda não é satisfatória, o que
viola o direito humano à alimentação e fere o que preconiza a Losan, isto é, a garantia de alimento
de qualidade, de forma contínua, para toda população.

Não respondeu Não sabe

Não
34,2%

Sim
65%

Figura 40: Questão – Já passou o dia inteiro sem comer?

64
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Não respondeu
1
Não sabe
9,80%

4 ou mais
31% 2
21,8%

3
34,10%

Figura 41: Questão – Quantas refeições faz por dia?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Vale ponderar que o acesso ao alimento também depende do lugar da cidade e das
condições de mobilidade. A concentração de equipamentos e das ações sociais nas áreas centrais
faz com que boa parte dessa população tenha de se deslocar pelos bairros da cidade, muitas vezes
a pé, em busca de alimentos. Trata-se, portanto, de uma verdadeira “romaria de famintos”, que
recorrem aos equipamentos e serviços da assistência social todos os dias, atravessando a cidade
em busca de alimentos.

Não Sabe Não Respondeu


Sim, em outra
cidade
Não
30,70%

Sim, em outro
bairro
31,90%

Sim, no mesmo
bairro
33,6%

Figura 42: Questão – Desloca-se para obter alimentos?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

65
Figura 43: Questão – Como se desloca para obter alimentos? (para quem respondeu que precisa se
deslocar na cidade para obter alimentos)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Entre as três principais refeições do dia, 65,4% (Figura 44) afirmaram que o almoço é o
mais essencial, talvez, porque, em nossa culinária regional, disponha de uma maior quantidade
de proteína, responsável por oferecer uma maior sensação de saciedade. De acordo com os dados
apresentados na Figura 45, a refeição apontada como mais difícil de se obter é o café da manhã
(35,5%), uma vez que não há muita oferta e doações no início do dia.

Cabe ressaltar que nem todas as unidades de acolhimento e equipamentos da assistência


social proporcionam a primeira refeição para a PSR. Para atenuar a falta do café da manhã,
oferecem algum produto industrializado, geralmente ultraprocessados, como biscoito recheado
e suco, ou seja, produtos não saudáveis. A oferta desses produtos não atende às necessidades
alimentares da PSR, o que a obriga a lançar mão de outras estratégias para o necessário desjejum.
A ausência dessa refeição, que corresponde ao primeiro e mais importante aporte de nutrientes
e de energia do dia, acaba por impactar o trabalho que eventualmente executam e estimular o
uso de substâncias psicoativas, como estratégia para superar a fome, intensificando sua exclusão.
Em vários momentos, essa questão veio à tona a partir da referência ao desejo e à necessidade
de se ter acesso à comida de verdade. Comida de verdade e socialmente referenciada. A
referência é a de “comida forte”, comida que dá forças e habilita para um dia de trabalho ou de
busca dele. Cuscuz, macaxeira, inhame, carne, fruta, suco são as referências utilizadas para dar
sentido ao conceito e criar uma representação do prato.

Destacamos também que essa mesma reflexão foi apontada ao falar sobre as refeições a
que têm acesso à noite, depois de um dia nas ruas. Para muitos/as, a sopa, alimento servido no
restaurante popular, não é comida de adulto, é de criança e de doente. O desejo reiteradamente

66
expresso é o de acesso a um alimento forte, ao final do dia, a referência aqui é a mesma
apresentada para o café da manhã ou ao que é servido no almoço.

Não sabe Não respondeu

Jantar Café da Manhã


8,20% 19,20%

Almoço
65,4%

Figura 44: Questão – Refeição mais importante do dia?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Não respondeu
13,9%

Café da Manhã
Não sabe 35,50%
12,4%

Lanche
3,3%

Jantar
16,1%
Almoço
18,8%
Figura 45: Questão – Refeição mais difícil de se obter?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Importante destacar que a disponibilidade e o acesso à água são essenciais para a garantia
da SAN. Há uma dificuldade crônica, por parte da PSR, de se obter água potável para beber e para
o asseio pessoal. Nesta pesquisa, a maior parte das pessoas entrevistadas responderam que
conseguem água através dos equipamentos da assistência social, de doações feitas por populares,

67
de estabelecimentos comerciais e de bicas, minas d’água ou chafarizes públicos (Figura 46).
Ressalte-se que a água obtida em algumas dessas fontes não tem o necessário tratamento e, em
muitos casos, não é apropriada para o consumo humano, colocando em risco a saúde dessa
população.

Figura 46: Questão – Onde obtém água?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

As referidas fontes de água potável estão intimamente relacionadas aos lugares onde a
PSR do Recife costuma realizar as atividades de higiene pessoal, tais como: o banho, a limpeza
bucal e a lavagem de roupas. A ampla maioria afirmou que se higieniza nos equipamentos públicos
da assistência, nos banheiros públicos e em bicas, minas d’água e chafarizes públicos (Figura 47).
Em outras palavras, a água com a qual realiza sua higienização é a mesma usada para o consumo.

Figura 47: Questão – Onde se higieniza?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

68
É urgente que a legislação que trata da SAN seja cumprida pelos diferentes entes
federativos, especialmente pelo município, a fim de garantir a segurança alimentar e nutricional
da população em situação de rua, mediante a ampliação e diversificação da oferta de alimentos
de qualidade, ou seja, comida de verdade e água potável em diferentes lugares da cidade.

SATISFAÇÃO DE NECESSIDADES BÁSICAS E LAZER

A vida nas ruas é marcada por privações e necessidades não atendidas. As inúmeras
desfiliações e violações de direitos põem essas pessoas em alto grau de isolamento e solidão. Os
vínculos inconstantes e frágeis estabelecidos na situação de rua não compensam as perdas, e o
desamparo vai diminuindo a autoestima, o autocuidado e o desejo de mudança. Além disso, as
diversas formas de violência se impõem de maneira implacável, uma vez que essas pessoas,
muitas vezes, são vistas como contraventoras e responsáveis por suas próprias condições
individuais de vida, processos aos quais viemos fazendo menção desde o início deste documento.

Figura 48: Questão – Já sofreu algum tipo de violência? (múltipla resposta)


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

A maior parte dos/as entrevistados/as afirmou ter sido vítima de algum tipo de violência,
sendo a agressão física e as discriminações social e a racial as mais recorrentes. Boa parte dessas
ocorrências se dão no contexto de suas relações cotidianas, muitas vezes por conta de desavenças
com outras pessoas em situação de rua. Contudo, agressões realizadas por populares e
seguranças privados também são frequentes.

A violência sexual, por sua vez, atinge especialmente as mulheres, deixando as marcas em
seus corpos. A violência física e sexual, muitas vezes sofrida nos logradouros públicos, se repete

69
nos espaços institucionalizados, como nas unidades de acolhimento. A violência institucional, por
sua vez, se manifesta também pelas ações discricionárias e higienistas da polícia e da zeladoria
urbana, que os fazem perder os poucos pertences que lhes restam, conforme apontamos na seção
referente aos direitos de cidadania.

As mulheres em situação de rua vivem uma série de violências acumuladas em seus


corpos e mentes, que as põe em mais alto grau de vulnerabilidade, por isso apontamos para a
necessidade de uma abordagem interseccional sobre essa população. O componente gênero
quase sempre corresponde, de fato, a um agravante no que tange aos níveis de precariedade
vividos nas ruas. Além das agressões físicas, verbais e sexuais, muitas vezes advindas de seus
próprios companheiros, frequentemente essas mulheres são obrigadas a se afastar de seus filhos
e filhas em razão de não terem as condições necessárias para garantir o cuidado preconizado pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (Sanchonete; Antoni; Munhós, 2019).

Soma-se a isso o grau de pobreza menstrual a que estão submetidas essas mulheres e
meninas. Segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações
Unidas para a Infância (UNICEF), a pobreza menstrual é um fenômeno complexo, que busca
designar a “falta de acesso a recursos, infraestrutura e conhecimento para a plena capacidade de
cuidar da própria menstruação”. Diversos fatores concorrem para isso, tais como: a falta de acesso
a produtos adequados para o cuidado da higiene menstrual; ausência de banheiros seguros e em
bom estado de conservação; falta de acesso a medicamentos para administrar problemas
menstruais; insuficiência de informações sobre a saúde menstrual e autoconhecimento; além de
tabus e preconceitos sobre a própria menstruação (UNFPA/UNICEF, 2021).

Nesta pesquisa, menos da metade das pessoas que menstruam responderam que usam
absorventes (Figura 49). Cerca de 20% responderam que nem sempre usam absorventes e, muitas
vezes, recorrem ao uso de tecido qualquer para a higiene menstrual. O baixo acesso aos produtos
necessários ao cuidado menstrual acomete boa parte das mulheres periféricas, o que ensejou
toda uma discussão durante o período pandêmico. Essa questão é agravada também em situação
de cárcere. Inúmeras foram as tentativas de reverter o quadro, mediante a criação de leis e
políticas voltadas não apenas à distribuição gratuita de absorventes descartáveis, mas na
realização de medidas de educação para o cuidado menstrual (Moreira, 2021).

70
Não menstrua mais
2,6%

Não respondeu
22,6%

Sim, sempre uso


absorvente
Não, uso nada 46,10%
2,60%

Não, uso apenas


pano/tecido
1,70%
Sim, mas as vezes
uso pano/tecido
18,3%
Figura 49: Questão – Usa absorvente no período menstrual?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Mais da metade das pessoas que menstruam responderam que têm acesso ao absorvente
descartável através de doações, especialmente do poder público. Porém, mais de 25% disseram
que necessitam comprar (Figura 50). Em se tratando de uma população empobrecida e sem renda
fixa, este último percentual revela que a cobertura realizada pelo poder público ainda é
insuficiente.

Figura 50: Questão – Como consegue absorventes?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Segundo a UNFPA/UNICEF (2021), o combate à pobreza menstrual deve se dar através:


do amplo acesso a produtos de higiene menstrual; da garantia da infraestrutura de banheiro
públicos adequados; do acesso a medicamentos; da educação e difusão de informação sobre a
menstruação; do combate à estigmatização e ao preconceito relacionado à menstruação; e do

71
controle dos preços dos produtos de higiene e saúde menstrual. Essas ações são particularmente
importantes para as pessoas em situação de rua, que necessitam do Estado para ter garantido
mais esse direito.

A propósito da necessidade de banheiros públicos, a inexistência de lugares reservados


para a intimidade e o autocuidado é uma outra problemática para quem vive nas ruas. Não contar
com tais infraestruturas faz com que essas pessoas percam gradativamente a noção da diferença
entre a esfera privada e a pública. Não é raro, portanto, vê-los fazendo nas ruas aquilo que, na
vida domiciliada, apenas conseguimos fazer quando estamos sós, em lugar confortável e longe
dos olhos da maioria.

A partir do momento em que são levadas a viver nas ruas, essas pessoas, muitas vezes,
tentam reproduzir uma vida domiciliada, definindo um lugar regular para pernoitar, construindo
um barraco e procurando estabelecer lugares específicos e sem circulação para o exercício da
intimidade, tais como: buracos, vielas, arbustos etc. Com o tempo, e diante das sucessivas
violações, especialmente aquelas relacionadas às perdas dos seus objetos pessoais diante das
ações higienistas da polícia e dos serviços de zeladoria urbana, a necessidade de manter a
distinção entre a vida pública e a privada vai se esvaindo. Assim, o sexo e as necessidades
fisiológicas (defecar e urinar) vão sendo realizados de forma cada vez mais aberta e à vista de
todos.

Nesta pesquisa, quando perguntados sobre onde defecavam e urinavam durante o dia,
mais de 35% responderam que faziam na própria rua. Pouco mais de 40% afirmaram que usavam
banheiros públicos, muito embora reconhecessem que não havia equipamentos desse tipo em
quantidade e qualidade necessária para a grande procura. Há ainda que se considerar que,
mesmo em locais públicos, a população em situação de rua encontra barreiras para o acesso.

72
Figura 51: Questão – Onde faz suas necessidades fisiológicas?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Às necessidades básicas mal atendidas, juntam-se os problemas decorrentes da


estigmatização e da hostilidade no espaço urbano. A crise social decorrente da pandemia, que fez
aumentar o número de pessoas nas ruas, reacendeu o debate sobre o lugar dos mais pobres na
cidade em relação à chamada “arquitetura hostil”. O termo foi empregado pela primeira vez em
uma matéria do jornal britânico The Guardian, escrita pelo jornalista Ben Quinn, e que abordava
os artefatos e dispositivos urbanísticos anti-sem-teto que estavam se difundindo nos espaços
públicos da cidade de Londres.

Desde então, o termo se popularizou e passou a designar o conjunto de elementos


arquitetônicos existentes em espaços públicos e privados, que visam constranger ou afastar
pessoas em situação de rua. Trata-se de pedras, pregos, ofendículos, espetos, divisórias, grades e
todas as formas de objetos cortantes, pontiagudos ou com potencial para causar ferimento em
um indivíduo, e que são instalados em calçadas, vias públicas, parques, praças e viadutos, com o
objetivo de repelir pessoas em situação de rua.

A Arquitetura hostil é a expressão mais-que-perfeita da falta de cuidado e da


“necropolítica” urbana vivida pelas pessoas em situação de rua. Quando o filósofo camaronês,
Achille Mbembe (2018), se referia à necropolítica, falava do poder de decidir sobre quem pode
viver e quem deve morrer. No caso das cidades, a arquitetura hostil funciona como mecanismo
para decidir quem pode ou não usufruir dos espaços livres públicos. A impossibilidade do usufruto
dos espaços da cidade é não só uma negação do Direito à Cidade, mas do direito à liberdade e à
dignidade.

Para onde ir e o que se pode fazer quando todo lugar parece inseguro e hostil? Nesta
pesquisa, quando perguntados sobre que lugar da cidade consideravam mais seguro, a maior
parte dos/as entrevistados/as indicaram as unidades de acolhimento ou os lugares mais vigiados
da cidade. Quando falamos em vigiados, nos referimos à presença de pessoas, muito mais do que
da segurança pública oficial. A vigilância social, inclusive feita por outras pessoas em situação de
rua, é vista como requisito para o recolhimento noturno e o descanso. Contudo, em que pese a
violência institucional ocasionada pelas forças policiais, muitos ainda reconhecem, na polícia, a
instituição encarregada de protegê-los. Importante destacar também as referências aos lugares
da cidade que têm câmeras de vigilância e monitoramento para garantir alguma segurança.

A vida nas ruas não permite muito sossego. O estado de vigília noturno é muito comum,
e os período de descanso são intermitentes e não permitem a plena recomposição da energia

73
física e mental. Exatamente por isso, recorrem às drogas. Em muitos casos, sem elas, não é
possível relaxar e descansar. Os corpos em situação de rua estão em constante estado de alerta,
expostos a toda sorte de adversidade e a todo tipo de risco. Diante de tanta violência e estresse,
sobra pouco espaço para a diversão. Nesta pesquisa, quando perguntados sobre como se
divertiam, quase 20% responderam que, simplesmente, não se divertem. Outros 20% afirmaram
que consumiam drogas ilícitas, e pouco mais de 20% disseram que consomem bebida alcoólica
para se divertir. A visitação à praia foi apontada por mais 30% dos entrevistados. Acreditamos que
a ida à praia e o consumo de drogas se deem de forma combinada.

Figura 52: Questão – O que faz para se divertir? (múltiplas respostas)


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.
Para todos os efeitos, as opções de diversão das pessoas em situação de rua não
contrastam com aquelas realizadas pelas pessoas domiciliadas. Ir à praia, consumir bebidas
alcoólicas e outras drogas correspondem a opções de divertimento realizadas por diferentes
classes sociais, inclusive pelos mais ricos. Importante ponderar, contudo, é a forma precária com
que isso é feito por quem vive nas ruas, uma vez que o acesso a recursos é sempre mais difícil.
Para os que afirmaram não se divertir, a justificativa era sempre a de não ter tempo, uma vez que
todo o dia era depreendido na busca por comida e recursos para suprir suas necessidades mais
básicas.

As pessoas em situação de rua necessitam do Estado para suprir quase todas as suas
necessidades mais essenciais, e não encontram o amparo básico para depreender seu tempo e
energia em atividades que as auxiliem a vencer desafios e a construir um novo projeto de vida. A
vida na rua é degradante e exaustiva, e não deixa muito espaço para a superação. A percepção a
respeito das necessidades é algo que também precisa ser levado em conta, pois os saberes
daqueles que vivem as iniquidades são tão importantes quanto os nossos esforços científicos e
políticos.

74
Quando perguntamos sobre as principais necessidades das pessoas em situação de rua,
os entrevistados apontaram “moradia”, “trabalho e renda” e “saúde” como os principais (Figura
53).

Figura 53: Questão – Quais as principais necessidades da população em situação de rua? (múltiplas
respostas)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

A ideia quase unânime de que a moradia corresponde à principal necessidade apenas


comprova que a situação de rua é algo que tende a ser permanente e de difícil reversão, sendo
necessária a ação do Estado no sentido de fornecer as condições iniciais para um processo de
superação. Na visão de quem vive nas ruas, essas condições estão calcadas na vida domiciliada.
Isso é o que preconizam vários programas, entre os quais o Moradia Primeiro, ao qual fizemos
referência anteriormente. Esse programa tem o objetivo de garantir a conquista da moradia como
primeiro e não último acesso, compreendendo-a como o item mais básico para a organização
desta população, requisito para que consigam obter o cumprimento de todos os demais direitos.

EDUCAÇÃO E TRABALHO

Este item consta no formulário censitário como Educação, profissionalização e estratégias


de sobrevivência e vem como primeiro campo para o levantamento de dados, logo após o campo
referente à identificação do/a entrevistado/a, conforme é possível identificar no formulário em
anexo. No processo de reflexão e análise, pareceu-nos impor um outro lugar na construção da
narrativa e resolvemos acatar esta evocação. Percebemos que, ao refletir sobre desfiliações aos
mundos do trabalho e da educação, atravessamos os elementos de todas as reflexões que viemos

75
tecendo, seja sobre os vínculos familiares e trajetórias, seja sobre cidadania, acesso à saúde, lazer,
segurança alimentar e nutricional.

O trabalho e a educação, principalmente o trabalho, resguardam, na história e no


imaginário social, papel significativo como estruturador de identidades, pertencimentos e
filiações, o que parece se reproduzir no campo das políticas públicas. Mas, como viemos
afirmando até aqui, não nos peçam para abreviar nada, assumimos que questões complexas não
são respondidas de forma "fácil”. Neste sentido, educação e trabalho, ao serem apresentados
como último campo do relatório, reforçam o argumento de que há elementos referentes aos não
acessos a direitos de cidadania, ao necessário enfrentamento e à superação de uma cultura de
indiferença e aversão aos pobres que precisam ser refletidos, para que educação e o trabalho
sejam possíveis e se apresentem como parte do caminho que leve às “portas de saída” da situação
de rua.

Não há como abreviar a análise tomando qualificação profissional, encaminhamento para


as vagas de trabalho e ampliação da escolaridade como solução para o problema das vidas vividas
nas ruas, é parte, não é a solução. As políticas públicas, enquanto presença do Estado em
diferentes frentes de ação para a produção de uma sociedade decente e para o cuidado, é que
farão, ao final, a grande diferença.

A RUA E O TRABALHO

Quando chegou ao Recife, em 1910, Gregório Bezerra era uma das vítimas da seca e da
espoliação de terras no Agreste pernambucano, que dizimaram a plantação e os animais,
impuseram a fome e a desagregação familiar. Os irmãos e irmãs foram acolhidos em casas de
parentes, e coube ao menino Gregório acompanhar, como "ajudante", a família de um
latifundiário em mudança para a Capital. Após algum tempo como "faz tudo" da família, esfolado
no trabalho doméstico e abusado pelas agressões da matriarca, fugiu para as ruas da capital
pernambucana antes de completar 11 anos. Viveu dos trabalhos que fazia como transportador
de malas e maletas, alguns bicos de limpeza de casas e escritórios e, principalmente, vendedor
de jornais. Com os recursos que juntava, almoçava nas bodegas populares, tomava banho vez por
outra e dormia nas marquises e sob as pontes, "onde era vencido pelo sono". Dois dos seus
irmãos juntaram-se a ele nas ruas de Recife, trabalhando em serviços domésticos e como
vendedores de jornais.

76
Era dono das ruas, das calçadas e de todas as escadas que encontrava abertas
na cidade do Recife. Vez por outra, brigava com malandros que queriam
roubar meu rico dinheirinho e assim ia vegetando como "dono" da maior, mais
bela e mais miserável cidade do Nordeste, cheia de pontes, em cujas colunas
encontrei o abrigo mais seguro e mais tranquilo de todos (BEZERRA, 1979,
p.136-137)

Quatro anos depois, e muitas aventuras, começou a aprender o ofício de pedreiro, com
um mestre de obras, alcançando o grau de "meia-colher" (quase pedreiro). Com a ida do mestre
de obras para São Paulo, passou a ajudante de um carpinteiro que lhe ensinou a profissão e que
também seguiu para a capital paulista. Trabalhou como pedreiro, carpinteiro, pintor, carvoeiro,
arrumador de armazém de açúcar e como estivador, até fazer 17 anos, quando enfrentou a sua
primeira prisão como "perturbador da ordem".

Essa passagem das memórias de Gregório Bezerra nos informa sobre a dimensão
histórica do fenômeno da população que vive em situação de rua na cidade do Recife. O "sentido
da fuga" do campo e chegada à capital pernambucana retrata igualmente uma outra dimensão
importante da população em situação de rua, derivada desse processo migratório que se
acentuou ao longo do século XX, com a industrialização do país e a urbanização que lhe é
intrínseca.

Gregório Bezerra nos fornece ainda uma aproximação com o sentido e a forma que o
trabalho assume para os moradores de rua, um meio de gerar renda para fazer frente às
necessidades mais imediatas, como o alimento. Há mais de um século, a venda dos jornais diários
parecia constituir a ocupação predominante e de fácil ingresso, uma vez que não requeria
qualificação profissional e permitia o acesso de jovens e de crianças a alguma renda diária.
Atualmente, são os serviços de catação de materiais reciclados e o comércio ambulante que se
constituem como as principais atividades de geração de renda para a população em situação de
rua.

Nesta seção, vamos analisar os dados obtidos no presente censo quanto à trajetória
ocupacional, ao perfil profissional, ao acesso ao trabalho e apresentar algumas indicações sobre
as políticas públicas para a geração de trabalho e renda para a população em situação de rua.

O TRABALHO E A RUA

Uma questão preliminar que se impõe, a partir dos dados do censo, diz respeito aos
motivos que levam as pessoas que se encontram em situação de rua a buscarem, geralmente, os

77
lugares mais centrais dos agrupamentos urbanos como espaço de permanência, especialmente
os centros históricos. Dito de outra maneira, perguntamos: quais condições especiais a população
em situação de rua encontra, nos espaços mais centrais das cidades, que os tornam mais
favoráveis para a sobrevivência nas ruas? Podemos supor que essas escolhas são motivadas pela
proximidade aos serviços públicos, facilitando o acesso aos equipamentos e políticas sociais
disponibilizados pelos governos municipais e estadual. Outra condição favorável pode resultar
das oportunidades de trabalho que se oferecem nas regiões centrais das cidades, do
adensamento de empresas comerciais e de serviços, da circulação intensa de pessoas e recursos,
das possíveis (e sempre incertas) oportunidades de trabalho ou ocupação. Esse efeito ímã dos
centros urbanos também pode derivar da condição de maior segurança que oferecem, em função
do coletivo de pessoas que enfrenta semelhante situação, talvez a formação de uma comunidade
de destino, a criação de vínculos, as relações de cooperação e solidariedade, a troca de
experiências e informações sobre as alternativas de trabalho e acesso à renda. Por fim, pode ser
relevante sugerir que os centros urbanos sejam igualmente favoráveis ao deslocamento em busca
de trabalho, no âmbito das regiões metropolitanas, possibilitando a cobertura maior das áreas
que ofertam possíveis postos de trabalho.

De todo modo, a abordagem da questão do trabalho para a população em situação de


rua deve ser realizada com certo cuidado, para que se evite identificar, na ausência de trabalho,
a condição determinante que engendrou o fenômeno da população da rua. A redução do
problema referente à "falta de trabalho" pode levar a soluções tão simples como equivocadas,
nas quais bastaria "encontrar trabalho" para que se percebesse uma redução significativa da
população em situação de rua, como se essa fosse majoritariamente formada por
"trabalhadoras/es em situação de rua".

Não queremos dizer que a ocupação ou a inserção laboral não represente uma condição
de significativa importância para a estruturação da trajetória e perspectiva de vida dos indivíduos
na sociedade capitalista. Pelo contrário, uma característica central do modo de produção
capitalista é a expropriação, permanentemente, dos/as trabalhadores/as em relação aos meios
de produção que poderiam garantir a reprodução autônoma das condições de existência,
obrigando a classe que vive do trabalho a ofertar sua força de trabalho em troca de um salário.
Mas não achamos que se possa explicar a problemática de "trabalho para a população em
situação de rua" a partir da chave única da "falta de trabalho". O fenômeno é mais complexo, e o
censo o está demonstrando.

Uma primeira aproximação com a questão do trabalho para a população em situação de


rua, a partir do censo, pode ser encontrada nas motivações que levaram essas pessoas às ruas.

78
Conforme já comentado neste relatório, em questão de múltipla escolha, as justificativas
apontadas para a atual situação vivida foram, primeiramente, os conflitos familiares (50%); em
seguida, a utilização de álcool e drogas (40%) aparece como fator determinante; em terceiro
lugar, está a perda da moradia (19%); apenas em quarto lugar surge a perda do trabalho como
causa principal (18%). Entendemos que essas motivações podem estar relacionadas entre si, e
geralmente estão. A perda do trabalho ou a falta de ocupação pode dar origem a conflitos
familiares, bem como ocasionar a perda da moradia. Do mesmo modo, o uso de estupefacientes
pode ter sido o causador da perda de trabalho, pelos possíveis efeitos na produtividade e na
disposição para o trabalho. Nesse caso, devemos sublinhar que a ausência ou perda do emprego
e a experiência do desemprego de longa duração costumam gerar tensões e sofrimentos,
conflitos e desestruturação familiares4.

Tendo essa imagem inicial como pano de fundo, chama a atenção o fato de 32% dos
entrevistados terem informado que a escolha da cidade Recife tenha sido motivada pela
necessidade de procurar trabalho, e 50% preservarem, dentre seus documentos de identificação,
a carteira de trabalho. Nessa medida, o trabalho parece constituir, ainda, no imaginário social da
população em situação de rua, a dimensão estruturadora da vida social, condição para o resgate
da dignidade e a construção da identidade social e profissional dos sujeitos. Talvez isso nos ajude
a entender as respostas à questão sobre suas principais necessidades (Figura 53).

Uma vez que 82% da população em situação de rua não possui qualquer alternativa de
moradia, é compreensível que esta seja a demanda principal (75%) auferida pelo censo (Figura
53). A moradia é condição primeira para garantir a segurança, o descanso digno, ou "recuperação
dos ossos", o início de um modo de vida minimamente "organizado", a condição para a
manutenção da saúde física e mental. Mais do que isso, a moradia é também indicadora de
cidadania, pois fornece o "endereço fixo", tanto para o cadastramento nos programas sociais
como para o registro nos serviços de intermediação de mão-de-obra ou, ainda, para as unidades
de recrutamento de pessoal pelas empresas.

Atualmente, a posse de um telefone celular pode contribuir para a localização e


comunicação com as pessoas em situação de rua, inclusive para os órgãos e serviços públicos ou
empresas. Mas não é suficiente, e o valor subjetivo e simbólico da moradia conformam um

4
Ver, a esse respeito: GUIMARÃES, Nadya Araújo. Desemprego, uma construção social: São Paulo, Paris e
Tóquio. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009.

79
imperativo para a reconstrução dos laços comunitários, de identidade e solidariedade, "porta de
entrada" para outros sentidos possíveis para a vida social5.

A segunda necessidade principal da população em situação de rua, conforme o gráfico


53, precisamente o acesso ao trabalho e à renda. Para além da condição material e subjetiva
imediatamente provida pelo trabalho regular, como garantia da reprodução social e estruturador
da rotina cotidiana, a ocupação proporciona também, e especialmente, a possibilidade de
projeção, do reatar o presente e o futuro. No Brasil, a partir da regulação do trabalho varguista
dos anos 1930, o acesso ao trabalho passou a significar o ingresso ao mundo com direitos,
condição primeira da cidadania. A Carteira de Trabalho assinada representava o pertencimento a
uma categoria profissional, com direito à representação sindical, contrato coletivo de trabalho,
jornada regulamentada, férias etc., inclusive acesso à saúde e à aposentadoria6. Talvez seja essa
condição do trabalho regular, assalariado e estável, que esteja presente no imaginário da
população em situação de rua, quando priorizam o acesso ao trabalho e à renda como uma das
suas principais necessidades.

Será essa, ainda, a característica do mercado de trabalho na fase atual, no modo de


produção capitalista, quando o capital vem implementando formas flexíveis de trabalho, com
subtração de direitos, terceirização e precarização das condições de trabalho? As novas
tecnologias (informática, telemática, robótica, inteligência artificial etc.), inseridas nos processos
de produção de bens e serviços, criando formas novas de trabalho, designadas, por exemplo, por
uberização, trabalhador de plataforma, "pjotização" (referência ao trabalhador "pessoa jurídica")
etc., já não modificaram os dados do problema?

Vejamos essa questão iniciando pela ocupação atual das pessoas em situação de rua,
conforme os dados desta pesquisa.

5
Devemos considerar, entretanto, que podem ser encontrados indivíduos em situação de rua que não
demonstrem interessem em sair dela. A decisão por permanecer na rua, habitar e viver nela, ainda que
almejando o acesso aos programas e benefícios sociais, quando tomada por indivíduos que se encontram
nessa situação por muitos anos, nos parece que pode ser considerada uma decisão legítima, como
expressão de uma opção por outra forma de vida em sociedade, vinculada a alguma ideia de "liberdade",
embora fora dos padrões considerados "normais". A questão, nesses casos, seria: qual modelo de cidade
poderia acolher esse tipo de decisão, favorecer a permanência desses indivíduos nas ruas ou calçadas,
garantir tipos adequados de proteção, conforto e bem-estar?
6
Ver, a esse respeito, a obra de Adalberto Cardoso, A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil, já
mencionada neste relatório.

80
Não sabe Não respondeu
Empregado, sem registro
Empregado, com em carteira
registro em 3%
carteira
2% Trabalhando por
conta própria
8,40%

Não Trabalha
48,60%
Fazendo bicos
36,50%

Figura 54: Questão – Trabalha?


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Como vemos, quase a metade das pessoas em situação de rua na cidade de Recife não
trabalha, e os que o fazem realizam atividades intermitentes ("bicos") ou trabalham por conta
própria. Esses homens e mulheres que realizam atividades remuneradas pontuais, ou que se
ocupam de forma autônoma na produção de bens e serviços, somados aos que se manifestaram
como empregados sem registro em carteira, constituem uma parcela da chamada economia
informal, setor informal ou informalidade. Não trataremos aqui da discussão existente no campo
da sociologia do trabalho sobre a evolução desses conceitos7, bem como das relações entre o
setor informal e os setores formais da economia, da relativa autonomia ou subordinação às
dinâmicas mais gerais de acumulação do capital. De forma geral, trata-se de um segmento
constituído por trabalhadores/as em situação de pobreza ou extrema-pobreza que realizam
atividades sem registro formal e proteção social, e que geralmente conseguem inserção em
formas de trabalho precário, sem regularidade, de natureza diversa e heterogênea (os "bicos").

Essa heterogeneidade do trabalho da população em situação de rua pode ser percebida


na identificação de 04 (quatro) trabalhadores/as que se encontram empregados com registro em
carteira, mas que continuam habitando as ruas. Esses casos, juntamente com os 13 (treze)
trabalhadores/as que estão empregados sem registro formal em carteira, poderiam ser objeto de
estudo específico das suas trajetórias individuais e das questões atuais que impedem a saída da

7
Sobre esse debate, ver a obra: Marchas e Contramarchas da Informalidade do Trabalho: das origens às
novas abordagens. / Roberto Véras de Oliveira; Darcilene Gomes; Ivan Targino. (orgs.). João Pessoa/PB:
Editora Universitária da UFPB, 2011.

81
situação de rua. Parece-nos que esses/as trabalhadores/as podem dispor de condições favoráveis
para a obtenção de moradia, consistindo o emprego regular (formal ou informal), bem como o
acesso e a permanência em programas e benefícios sociais, os pilares que conformariam certa
estabilidade e sustentabilidade da residência.

Podemos agregar a esse grupo de pessoas em situação de rua já inseridos em relações


de trabalho regulares, formais ou não, o grupo que possui curso superior completo (1% de acordo
com o censo) ou incompleto (2%), cujos números absolutos alcançam 5 e 8 indivíduos,
respectivamente8. De todo modo, o que estamos sinalizando é o fato de que o censo permite a
formulação de diferentes estratégias para fazer frente a essa necessidade de trabalho e renda da
população em situação de rua, a partir das suas especificidades e características diferenciais.

De todo modo, a característica mais expressiva da população em situação de rua é ainda


a não ocupação e o desemprego, problema aliás que atinge um segmento importante dos/as
trabalhadores/as das grandes cidades brasileira e do conjunto dos países periféricos,
relativamente aos centros econômicos mundiais, considerados dependentes ou
subdesenvolvidos. Já a parcela dessa população que busca a geração de renda através de
trabalhos intermitentes e eventuais enfrenta formas e condições de trabalho precárias, baixa
remuneração, especialmente por se tratar de ocupações que requerem baixa qualificação e
quase que exclusivamente o uso intensivo da força física.

É importante registrar que o desemprego de longa duração ou o distanciamento dos/as


trabalhadores/as em relação ao mercado de trabalho amplifica a dificuldade para a reinserção
laboral. Os dados do censo apontam que 48% da população em situação de rua nunca vivenciou
relações de trabalho formal, com carteira assinada. Embora 50,8% já tenha vivenciado relações
de assalariamento formais, quando se observa o tempo de afastamento do mercado de trabalho,
podemos sugerir que a maioria dessa população já pode ser considerada em situação de
desalento, quando os/as trabalhadores/as deixam de procurar trabalho por acharem que não
mais conseguirão colocação no mercado. Podemos inferir desse quadro que não apenas o
desalento constitui impeditivo à reinserção no mercado de trabalho, mas a própria condição de
morador em situação de rua, além do estigma derivado dessa trajetória. Tudo isso representa
obstáculos de difícil superação. Assim, parece plausível a afirmação de que quanto maior o tempo
vivenciado em situação de rua mais difícil se torna o retorno ao mercado de trabalho.

8
Em posteriores análises, a partir do cruzamento dos dados do censo, será possível identificar se há
sobreposição entre esses dois grupos. A hipótese, nesse caso, é a de que parte desse grupo que realiza
trabalhos regulares, formal ou informalmente, é formado por quem concluiu ou não o ensino superior.

82
Não Respondeu Há menos de 6
Não sabe 8,40% meses
3,6% De 6 meses a 1 ano
4%
6,2%

De 1 a 3 anos
10,50%
De 3 a 5 anos
13,50%

Há mais de 10 anos
37,1%

De 5 a 10 anos
16,70%
Figura 55: Questão – Quando foi a última vez que teve trabalho com registro em carteira?
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Vale destacar a informação de que, em um primeiro nível, 10,2% da população em


situação de rua encontra-se desempregada ou afastada do emprego formal há menos de um ano,
indicando a existência de situações que podem ensejar a reinserção laboral, a depender do
aquecimento das atividades econômicas ou da retomada de um novo ciclo de desenvolvimento
do país. Nesse caso, o acompanhamento e a inclusão desses/as trabalhadores/as em políticas de
intermediação de mão-de-obra seriam importantes, especialmente o Sistema Nacional de
Emprego (SINE/MTE), com ações realizadas de forma intersetorial, em conjunto com as políticas
de assistência social e de saúde.

No nível intermediário, temos 24% da população em situação de rua afastada há mais de


um ano e menos de cinco anos do mercado formal, esse dado, em si, já representa alguma
dificuldade para a reinserção, por motivos diversos. Os resultados poderão ser mais bem
discutidos quando da realização de análises específicas com cruzamentos de dados, por exemplo,
do tempo de desemprego com a idade, escolaridade, uso de álcool e drogas etc. De todo modo,
esse nível intermediário já requer esforços adicionais das políticas ativas de emprego, que devem
ir, além da qualificação profissional, em direção à formação de um quadro geral de
comportamentos e atitudes que facultem maior aderência aos processos atuais de gestão da
mão-de-obra e ao estágio tecnológico dos setores específicos. Além disso, pode-se buscar, para
esse segmento, o apoio e o fomento de formas alternativas de trabalho e renda que sejam mais
adequadas às expectativas dos sujeitos em situação de rua, como o trabalho coletivo, associativo
e cooperativo.

83
Atualmente, o campo da Economia Solidária9 pode representar uma alternativa
importante para a geração de trabalho e renda para os setores mais vulneráveis social e
economicamente, considerando também a diversidade e a especificidade da população em
situação de rua. Exemplos disso são as experiências, no Brasil, de organização produtiva de
usuários da rede de saúde mental a partir dos princípios da economia solidária10. O Brasil pode
ser considerado uma referência importante no campo da saúde mental e trabalho, inclusive com
uma legislação específica, que criou a possibilidade da formação de "cooperativas sociais" com
pessoas em "desvantagem social" (Lei n. 9.867/1999)11.

O terceiro nível abrange mais da metade da população em situação de rua e é formado


pelos indivíduos que estão há mais de 5 anos afastados do mercado formal, cuja maior parcela
(37%) já ultrapassou uma década sem vivenciar relações de assalariamento. Nesse nível, apenas
estudos individualizados poderão indicar com maior precisão a parcela que poderia ser objeto de
ações visando à reinserção laboral. O desemprego de longa duração, ao levar à condição de
desalento, exige novas abordagens e metodologias para a reinserção produtiva desse segmento,
envolvendo tanto a perspectiva da economia solidária e do cooperativismo social, como a criação
de ações de inserção pelo próprio poder público, considerando, evidentemente, as
especificidades e necessidades da população em situação de rua.

Nesse caso, experiências importantes vêm sendo realizadas no Brasil, como as


desenvolvidas pela prefeitura de São Paulo, no âmbito do Programa "Braços Abertos" (2014-
2016), estruturado a partir do tripé "Alimentação, Moradia e Trabalho". O Programa adotou
como conceitos o "Moradia Primeiro " (Housing First), o princípio da "Baixa Exigência" (Low
Threshold) e a estruturação de serviços, cujo acesso era garantido por um "contrato" assinado
pelos usuários, baseado na palavra e na vontade manifesta. No campo da geração de trabalho e
renda, o programa paulistano de redução de danos, no território da "cracolândia", ofertou
capacitações e assessorias técnicas para o desenvolvimento de ações no campo do
associativismo, cooperativismo e economia solidária. Ao mesmo tempo, desenvolveu um

9
Ver, a esse respeito, SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora da Fundação Perseu
Abramo, 2002.
10
Ver, por exemplo, a pesquisa de MARTINS, Rita. Cooperativas Sociais no Brasil: debates e práticas na
tecitura de um campo em construção. Brasília: UNB, 2009. [Dissertação de Mestrado em Sociologia/UNB].
11
Embora importante por reconhecer e instituir a figura das pessoas em desvantagem social, a Lei não
confere quaisquer incentivos à criação e ao funcionamento das cooperativas sociais, de maneira que restou
pouco efetiva. Por pessoas em desvantagem social, a Lei considera: os deficientes físicos e sensoriais; os
deficientes psíquicos e mentais, as pessoas dependentes de acompanhamento psiquiátrico permanente, e
os egressos de hospitais psiquiátricos; os dependentes químicos; os egressos de prisões; os condenados a
penas alternativas à detenção; os adolescentes em idade adequada ao trabalho e situação familiar difícil do
ponto de vista econômico, social ou afetivo.

84
programa de revitalização urbana com a participação da população usuária dos serviços, com
programas destinados à varrição de ruas e manutenção dos jardins e praças.

Em relação às trajetórias laborais pretéritas da população em situação de rua, o quadro


a seguir apresenta uma variedade de experiências vivenciadas:

Figura 56: Questão – Em que área já trabalhou? (múltiplas respostas)


Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Podemos perceber, primeiramente, o percentual da população em situação de rua cuja


origem remonta ao meio rural, cerca de 6% realizavam trabalho rural. Isso sugere que a
participação da migração campo-cidade talvez seja atualmente residual ou decorrente da
conjuntura específica das políticas agrárias e agrícolas dos governos federal e estaduais. A grande
marcha migratória do campo para a cidade ganhou intensidade no segundo pós-guerra,
estabilizando-se no final do Século XX.

Os setores que podem estar atravessando períodos de eliminação estrutural de postos


de trabalho, como atividades industriais, comércio formal e serviços de transporte, por exemplo,
possuem participação moderada nas trajetórias profissionais da população em situação de rua.
Já os setores que apresentam maior parcela de ocupação anterior dos sujeitos em situação de
rua são os serviços de limpeza/cozinha as atividades de construção civil, possivelmente em função
das políticas neoliberais de baixo investimento público e ausência de políticas de
desenvolvimento para o país.

Outra atividade igualmente com alta aderência é a catação de materiais recicláveis. Nesse
caso, especificamente, temos a sinalização de que uma parcela expressiva da população em

85
situação de rua já vinha se dedicando, há algum tempo, a atividades precárias, desenvolvidas em
função da necessidade imperativa da sobrevivência e que exigem baixa qualificação.

Atualmente, de acordo com o presente Censo da População em Situação de Rua da


cidade do Recife, aqueles que realizavam algum tipo de trabalho com geração de renda estavam
distribuídos nos seguintes setores:

Figura 57: Questão – Em que área trabalha atualmente? (para quem trabalha)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Percebemos que 1/4 da população em situação de rua, que realiza algum tipo de
trabalho, atua como catador/a de materiais recicláveis. Talvez a catação desses materiais
(principalmente latinhas de alumínio, papelão e pet) tenha substituído a antiga atividade de
vendedor de jornais diários, como vimos no caso que abriu essa seção. Os materiais recicláveis
apresentam grande liquidez, de maneira que qualquer quantidade coletada em um dia de
trabalho pode ser comercializada, no mesmo dia, garantindo a reprodução social pelo trabalho.

Seria de grande importância a estruturação, pelo poder público, de ações de


reconhecimento e de valorização do trabalho desenvolvido pela atividade de catação, em
conjunto com os movimentos dos catadores. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n.
12.305/2010) já prevê a participação dos municípios em apoio ao segmento dos catadores,
inclusive com a destinação dos resíduos dos órgãos públicos para as cooperativas de catadores.

Na medida em que o material coletado pelos catadores reduzisse o volume transportado


pelas empresas contratadas pelas prefeituras para o serviço de coleta e destinação do lixo
urbano, haveria a redução do repasse realizado pela prefeitura às empresas. Esses recursos
"economizados" pelo poder público poderiam compor um fundo destinado à estruturação de
ações de fomento ao trabalho dos catadores e catadoras, inclusive para a organização da

86
população em situação de rua que atua na catação. Já é de conhecimento de todos que a
atividade de catação de materiais recicláveis já se encontra reconhecida pelo Ministério do
Trabalho e Emprego como categoria profissional (inserida no Código Brasileiro de Ocupações -
CBO). As ações do poder público poderiam envolver: a qualificação social e profissional dos
catadores; a disponibilização de equipamentos de proteção individual; o fomento à coleta
seletiva; a disponibilização de carrinhos de transporte dos materiais; os fardamentos com
identificação; a construção de entreposto público, para a garantia de preço dos materiais e da
renda dos catadores; o fomento ao associativismo e cooperativismo, entre outras.

Ações igualmente importantes e estruturantes podem ser realizadas com os vendedores


ambulantes e flanelinhas. Ambas as situações carecem de apoio efetivo do poder público, com o
reconhecimento do labor do vendedor ambulante como atividade de comércio de mercadorias
inseridas em cadeias produtivas, por exemplo a água mineral e os alimentos industrializados
(pipocas etc.)12. No caso da água mineral, talvez se possa invocar o princípio da logística reversa
para a efetivação de parcerias entre as empresas e os catadores, visando à destinação adequada
das garrafas pet utilizadas na comercialização do produto. Aliás, em alguns países, as prefeituras
vêm instalando bebedouros e fontes públicas, nas maiores cidades, para reduzir ou eliminar o
comércio de água, tanto por ser considerada "bem comum", condição essencial à vida humana,
quanto pela externalidade negativa que as embalagens geram aos municípios. Por seu turno, a
atividade de flanelinha consiste, ao fim e ao cabo, na oferta de serviço de limpeza e proteção
patrimonial, podendo, por isso, ser acolhida nas políticas de segurança pública em interface com
a política social. O cadastramento, a regulação das áreas de atuação e a identificação dos
flanelinhas e guardadores, por exemplo, poderia melhorar as condições de trabalho, a relação
com "clientes" e o reconhecimento da importância social desses/as trabalhadores/as.

Em menor proporção, mas não menos importante, estão aqueles/as trabalhadores/as


com experiência e conhecimento no setor da construção civil. Dada a capacidade de gerar
rapidamente números significativos de postos de trabalho, a construção civil configura-se como
um setor de elevada capacidade de geração de trabalho e renda. Nesse caso, além da qualificação
profissional e a intermediação da mão-de-obra via sistema público, o poder público poderia
investir no aproveitamento da população em situação de rua para a realização remunerada de
serviços de recuperação de calçadas, parques, habitação de interesse social, manutenção e
construção das lixeiras da cidade, estímulo à criação de cotas para a população em situação de

12
Importante a pesquisa sobre os vendedores ambulantes que atuam nos semáforos de Recife, realizada
pela Fundação Joaquim Nabuco e a UFPE: Trabalho Precário no Meio Urbano: semáforos do Recife. /
Tarcísio Patrício de Araújo (Coord.), Ana Elisa Medeiros de Vasconcelos Lima [et al.] - Recife: Fundação
Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2007.

87
rua nas obras de infraestrutura etc. Além disso, a articulação com o Instituto do Patrimônio
Histórico (IPHAN) poderia resultar na qualificação específica combinada com serviços de
recuperação de prédios tombados pelo patrimônio histórico. Nesse caso, o canteiro de obra se
transformaria em espaço de qualificação profissional e inclusão social.

Com relação à qualificação social e profissional, é importante assinalar que, realizada de


forma desvinculada dos serviços de intermediação de mão-de-obra ou sem a perspectiva de
inserção em setor demandante, os cursos de formação profissional são insuficientes e
demonstram resultados pouco satisfatórios para a reinserção dos/as trabalhadores/as
desempregados/as13. As instituições públicas foram as responsáveis pelo maior percentual de
qualificação profissional para a população em situação de rua do Recife, que realizaram
especialmente os seguintes cursos:

Figura 58: Questão – Qual o curso profissionalizante? (para quem já fez algum curso profissionalizante)
(múltiplas respostas)
Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Cabe o registro de que a grande maioria dos cursos (63,4%) não contou com qualquer
estratégia de encaminhamento nem orientação para o mercado de trabalho. Como
conhecimento não ocupa lugar, a realização de cursos de qualificação profissional é sempre
importante para ampliar as capacidades e conhecimentos dos/as trabalhadores/as, mas não se
deve esperar que resultem imediatamente em colocação no mercado de trabalho, ainda que sob
uma conjuntura favorável de crescimento econômico e geração de emprego.

Na fase atual do processo global de acumulação do capital, como já registramos, o


ingresso no mundo das empresas requer certas habilidades técnico-profissionais, fundamentos

13
- Ver, a esse respeito, a obra: Qualificar pra quê? Qualificação pra quem?: do global ao local: o que se
espera da qualificação profissional hoje. / Roberto Véras de Oliveira (organizador). - São Paulo: Fundação
Unitrabalho,; Campina Grande: EDUFCG, 2006.

88
consistentes da educação formal e um quadro geral de comportamento social genérico adequado
ao ritmo, à disciplina e à comunicação social. Para aqueles que se encontram em situação de
desemprego de longa duração, são esses aspectos gerais de disciplina e comunicação que
dificultam o reingresso ao mercado de trabalho, além do próprio atraso relativo às tecnologias e
às formas sociais de organização da produção14.

Levando em consideração o perfil mais geral da população em situação de rua do Recife,


percebemos um conjunto de características que amplificam a condição de desvantagem social,
que representam imensos obstáculos para a reinserção laboral desses sujeitos. Senão vejamos:
mais de 80% são formados por pessoas pretas ou pardas, de maneira que precisam superar o
racismo estrutural, que funciona como sistema de filtro invisível na seleção para a ocupação dos
postos de trabalho.

Do mesmo modo, 41% dos entrevistados informaram possuir algum tipo de deficiência,
que representa igualmente um entrave ao mercado de trabalho, na ausência de políticas ativas
de inclusão laboral desse segmento. 30% mantêm dependência de álcool e drogas, requerendo
acesso e acompanhamento dos serviços públicos de saúde e assistência. A passagem pelo sistema
prisional representa outra dimensão estigmatizadora que marca as trajetórias dos sujeitos. Alia-
se a isso o fato de que 67% tiveram acesso apenas ao ensino fundamental, e boa parte não
concluiu, sequer, essa etapa; 8% chegaram no ensino médio, sendo que 14% completaram,
configurando um quadro geral de baixa escolaridade, com 21,6% de analfabetos. 15

Dessa maneira, parece ser adequado afirmar que a população em situação de rua
encontrará imensos obstáculos para a sua reinserção no mercado formal de trabalho. Talvez uma
parcela consiga a ocupação em postos formais de trabalho, mas esses serão mais a exceção do
que a regra. Isso não quer dizer que não haja alternativas. As experiências de economia solidária,
cooperativismo social e a geração de trabalho e renda, a partir da organização pelo poder público,
podem fazer imensa diferença para a grande maioria da população em situação de rua. A política
pública é o que faz e fará, ao final, a grande diferença.

14
Na pesquisa realizada com os trabalhadores nos semáforos do Recife, os autores alertam: "A constatação
de que uma parcela considerável dos trabalhadores pesquisados havia frequentado cursos de formação
profissionalizante sugere o quanto é difícil aumentar a empregabilidade de pessoas com insuficiente nível
de escolaridade, em particular quando o ambiente geral da economia não é de crescimento sustentado."
Trabalho Precário no Meio Urbano: semáforos de Recife. Tarcísio Patrício de Araújo (coord.), Ana Elisa
Medeiros de Vasconcelos Lima [et al.] - Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2007. p.76.
15
Já fizemos a ressalva anteriormente ao caso dos que se encontram em situação de rua com nível superior
completo ou incompleto, que poderiam ensejar políticas específicas dada a maior possibilidade de
reinserção no mercado de trabalho, assim como parte dos trabalhadores com ensino médio completo.

89
CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA

90
CENSO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA DO
RECIFE

Figura 59: Trabalho de escuta e cartografia social com adolescentes em situação de rua realizado durante
o Censo Pop Rua Recife; Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM,
2022

91
Por que os Meninos e as Meninas?

O Censo da População de Rua do Recife adotou uma metodologia específica para a


pesquisa com e sobre as crianças e adolescentes em situação de rua. Este procedimento partiu
do compromisso ético e político com os meninos e meninas, aqui reconhecidos e reconhecidas
como sujeitos de direitos e de cidadania, como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei 8.069 /1990).

Destacamos que, neste processo, meninos e meninas participaram ativamente da


produção de uma cartografia social que compôs a pesquisa censitária, foram escutados em grupos
focais e produziram informações sobre as suas vivências no cotidiano das ruas. Ao se voltarem
sobre a cidade praticada, utilizando uma expressão de Michel de Certeau, elas e eles produziram
imagens e representações de suas “táticas”, das diversas formas de trampolinagem,
compartilhando o cotidiano inventado na capital pernambucana (Certeau, 1994).

A historicidade do problema das crianças e adolescentes em situação de rua precisa ser


ressaltada neste Relatório Final. Desde o período colonial, Recife se tornou cenário de abandono
de meninos e meninas, o que torna o problema de hoje um passado fortemente demarcado
presente. Os problemas relacionados às mais diferentes formas de abandono deste público foram
vivenciados de diferentes formas, e as ruas testemunharam as mais diversas formas de violações.

Ressaltamos também que as diferentes práticas de abandono de meninos e meninas se


desdobraram em diversas formas de políticas de assistência. Conforme apontam estudos que
fundamentam esta pesquisa censitária, as políticas praticadas já possuíram contornos caritativos,
filantrópicos e higienistas, quando o assistencialismo e a lógica do bem-estar balizaram formas de
pensar e praticar os serviços, programas e projetos, executados por organizações governamentais
e não governamentais (Miranda, 2021)

Nesse processo histórico, ressaltamos que os debates relacionados ao que faz com que
uma criança ou adolescente se encontre em situação de rua não são recentes. Até a década de
1990, dominava, nas discussões sobre o tema, uma quase completa ausência de base empírica
para as investigações. Tal condição implicou em uma produção de dados exorbitantes e, muitas
vezes, descolada da realidade. Em uma perspectiva de constituição histórica, é possível localizar,
já na década de 1980, os primeiros esforços da Organizações das Nações Unidas - ONU, no sentido
de construir critérios adequados para uma conceituação. Para esta agência internacional, crianças
e adolescentes em situação de rua são aquelas que, ainda não tendo alcançado a adultez, vivem

92
em espaços de rua, aqui compreendidos como terrenos baldios, casas abandonadas ou outros
locais sem controle ou fiscalização pública ou privada.

No Brasil, sublinham-se as contribuições do Movimento Nacional de Meninos e Meninas


de Rua, que teve uma forte atuação no Recife. Importante destacar que o Movimento fortaleceu
a luta anti-higienista e antipolicialesca, pautada no Código de Menores, legislação em vigor a
partir de 1927. É possível afirmar que o Movimento mobilizou instituições governamentais e não-
governamentais em torno da agência cidadã de meninos e meninas, reconhecendo-os/as como
sujeitos de direitos.

Atualmente, no plano municipal, destacamos que, no decorrer da realização deste censo,


o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Recife estava realizando, em
parceria com a Escola de Conselhos de Pernambuco – UFRPE, a revisão do Plano Municipal das
Criança e dos Adolescentes em Situação de Rua, em diálogo efetivo com os movimentos sociais.
Essa ação reforça ainda mais a relevância e a justificativa deste censo voltado, exclusivamente,
para os meninos e meninas da capital de Pernambuco.

A partir dessa historicidade, a relevância do Censo da População de Rua das Crianças e


Adolescentes é inconteste, uma vez que se apresenta como um instrumento político para romper
com as formas caritativas, filantrópicas e higienistas produzidas historicamente. É importante
registrar que a própria metodologia do censo já busca romper com tais perspectivas, uma vez que
se propôs construir o processo sobre elas/eles, para elas/eles e com elas/eles.

Fundamentos conceituais e legais

Este censo trabalha diretamente com uma proposta de definição de crianças e


adolescentes em situação de rua, que se origina das discussões feita pelo Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e pelo Conselho Nacional de Assistência Social
– CNAS e sistematizadas na Resolução Conjunta Nº 1, de 15 de dezembro de 2017, que dispõe
acerca das Diretrizes Políticas e Metodológicas para o atendimento de crianças e adolescentes em
situação de rua no âmbito da Política de Assistência Social (Brasil, 2017).

De acordo com essa Resolução, crianças e adolescentes em situação de rua são pessoas
em desenvolvimento de suas características e potencialidades físicas, mentais e sociais, que, por
diversos motivos, tiveram seus direitos humanos negados ou violados e que, por isso, se
encontram na condição de depender dos espaços públicos e áreas abandonadas como lugar de
moradia e sobrevivência.

93
De acordo com essa Resolução, a situação de vulnerabilidade na qual essas crianças e
adolescentes se encontram pode ser tanto permanente quanto intermitente, não sendo
utilizados, como critério identificador, padrões absolutos e exclusivistas. A percepção de consenso
sobre os fatores que levam a essa situação de rua é de que ela está relacionada diretamente com
a fragilidade ou completo rompimento dos laços familiares e comunitários nos quais os meninos
e meninas se encontram inseridos.

A nosso ver, essa definição proposta pela Resolução Conjunta avança em aspectos
importantes para garantir um padrão mais adequado de investigação, especialmente porque
possui uma sofisticação teórica, com um viés inclusivo e abrangente. Não se limita a padrões
meramente quantitativos, sem esgarçar os limites conceituais a tal ponto que se torna impossível
distinguir entre um menino ou menina que vive em situação de rua e outro que se encontra
envolvido no apoio e sustentação de um contexto familiar /comunitário.

O primeiro destaque que merece ser visibilizado é o fato de que meninos e meninas são
identificados como sujeitos de direitos humanos, que, por questões sociais, econômicas e
políticas têm as garantias de gozar dos mesmos direitos rompidos e violados. As definições
anteriores não tornavam explícita essa condição de sujeitos de direitos, optando por deixar as
crianças e adolescentes como elementos passivos, que apenas sofriam com a ausência de ações
positivas que lhes garantissem a dignidade.

A Resolução também estabelece que as crianças e os adolescentes não são indivíduos


isolados em seus núcleos familiares, mas destaca que, para ser considerado como alguém que
vive em situação de rua, é necessário que eles/elas estejam com os vínculos familiares e
comunitários rompidos ou seriamente prejudicados. A ênfase recai sobre o termo comunitário,
que avança pelo entendimento de que, muitas vezes, são os adultos do entorno comunitário que
assumem a responsabilidade de cuidar desses meninos e meninas.

Outro aspecto importante ao qual a definição da Resolução Conjunta, publicada pelos


Conselhos Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social, se refere é
a atenção para um olhar interseccional sobre o problema, procurando visibilizar a diversidade
presente nas identidades infanto-adolescentes. Segundo o documento, as crianças e adolescentes
precisam ser considerados e valorizados por sua: “heterogeneidade, como gênero, orientação
sexual, identidade de gênero, diversidade étnico-racial, religiosa, geracional, territorial, de
nacionalidade, de posição política, deficiência, entre outros” (Brasil, 2017, p.1).

É importante destacar que, no bojo das políticas socioassistenciais, a pesquisa se


fundamentou nos documentos produzidos pela campanha “Criança não é de rua”. As políticas

94
voltadas para os meninos e meninas já contam com a “conceituação Nacional Sobre Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua, acolhimento Especializado de Crianças e Adolescentes em
Situação de Rua, orientações Técnicas para Educadores Sociais de Rua em Programas, Projetos e
Serviços com crianças e adolescentes em situação de rua, centro de Referência Especializado para
População em Situação de Rua – Criança e Adolescente” (Brasil, 2015, p. 26)

De acordo com a publicação da campanha “Criança não é de Rua”, podemos considerar


que a situação de rua de crianças e adolescentes pode estar associada a: I – trabalho infantil; II –
mendicância; III – violência sexual; IV – consumo de álcool e outras drogas; V – violência
intrafamiliar, institucional ou urbana; VI – ameaça de morte, sofrimento ou transtorno mental; VII
– LGBTfobia, racismo, sexismo e misoginia; VIII – cumprimento de medidas socioeducativas ou
medidas de proteção de acolhimento; IX – encarceramento dos pais. (Brasil, 2017, p. 28)

A preocupação em dimensionar a pluralidade de formas de existência e de identidades é


um avanço inquestionável das ações públicas voltadas para os direitos humanos das crianças e
adolescentes em situação de rua, que dialoga com as conquistas históricas das décadas de 1980
e 1990. Reconhecemos a relevância do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente e a parceria com o Conselho Nacional de Assistência Social e das campanhas
promovidas pelos movimentos sociais e pelas organizações da sociedade civil, que mantêm uma
abertura para novos contextos culturais e políticos, como antiassistencialistas e anti-higienistas,
que são assumidos por este censo como basilares.

Nos caminhos da Pesquisa, o encontro com os meninos e as meninas em situação


de rua no Recife

Nós que estamos nas ruas, às vezes, somos criticados, julgados... Assim,
quando a gente passa, a população pensa que a gente vai mexer, vai roubar,
mas a gente não vai praticar isso. A gente não vai praticar o mal, né? (Relato de
um adolescente em escuta na sede do Ruas e Praças)

O relato do adolescente atendido pelo Grupo Ruas e Praças, organização da sociedade


civil que realiza ações socioeducativas no Recife voltadas para os meninos e meninas em situação
de rua, registra a fala de um adolescente sobre as diferentes imagens e representações que os
setores da sociedade produzem sobre eles. Conforme afirma Judith Butler, esses
“enquadramentos” produzem práticas sobre “sujeitos que não são exatamente reconhecíveis
como sujeitos”, e vidas que não são reconhecidas como vidas (Butler, 2017, p. 17).

95
Para além do registro, o depoimento marca o sentimento desse adolescente sobre as
possíveis reações das pessoas, que, ao conviverem com eles nas ruas da cidade, produzem
estigmas e preconceitos que impactam diretamente nas relações sociais e na própria forma como
o adolescente se percebe nos espaços em que circula. São “vidas precárias”, “vidas perdidas na
guerra” que precisam ser encontradas e reconhecidas pelas “políticas sociais concretas, no que
diz respeito a questões de habitação, trabalho, alimentação, assistência médica e estatuto
jurídico” (Butler, 2017, p. 31)

O Censo do Recife, realizado entre setembro 2022 e fevereiro de 2023, produziu uma
metodologia específica para trabalhar a pesquisa com crianças e adolescentes. Nessa
metodologia, atuou um grupo interdisciplinar de profissionais, formado por pesquisadores e
auxiliares de pesquisa da Universidade Federal Rural de Pernambuco -UFRPE, servidores da
assistência social que atuam nas instituições de acolhimento da Prefeitura da Cidade do Recife -
PCR, profissionais do Grupo Ruas e Praças e do Pequeno Nazareno, e representantes do
Movimento Nacional da População de Rua. Esta articulação foi necessária dada a complexidade
para produzir um caminho metodológico que possibilitasse a escuta ativa das próprias crianças e
adolescentes, diferenciando-se, assim, da metodologia da pesquisa censitária realizada com
jovens, adultos e idosos.

Nesse sentido, a metodologia da pesquisa buscou privilegiar a contagem do número de


crianças e adolescentes nas ruas, realizada, no período noturno, nas seis RPAs, nas instituições de
acolhimento oficiais da PCR (Casa-Lar e Abrigo Institucional) e nas organizações da sociedade civil,
regularmente registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do
Recife – COMDICA/Recife. Esses diferentes espaços se tornaram lócus da pesquisa censitária, que
buscou articular toda rede de proteção, para além da pesquisa realizada no próprio cenário das
ruas.

Para execução da pesquisa censitária sobre e com as crianças e adolescentes, registramos


que as seguintes etapas: 1) articulação com os movimentos sociais e organizações da sociedade
civil; 2) escuta ativa com as organizações da sociedade civil; 3) definição da metodologia,
organização do trabalho de campo e procedimentos de análises dos dados coletados. Essas três
etapas se articularam entre si, baseando o processo de pesquisa no princípio do diálogo com
agentes sociais que atuam nos diferentes espaços da rede de proteção, e foram acrescidas ao
momento 4, que consistiu na pesquisa censitária em si, levando em consideração a contagem
realizada nas ruas do Recife e os números de crianças e adolescentes atendidos nas instituições
governamentais e não governamentais.

96
Na primeira etapa, referente ao processo que chamamos de aquilombamento, ou seja,
de articulação com os movimentos sociais e organizações da sociedade civil, a equipe de
pesquisadores realizou reuniões com lideranças e gestores do Movimento Nacional de Meninos
e Meninas de Rua, com o Grupo Ruas e Praças e com o Pequeno Nazareno. Esse processo foi
marcado pela troca de conhecimentos sobre os problemas sociais que atingem diretamente as
crianças e adolescentes no cenário pandêmico, vivido a partir de 2020. A primeira dessas
reuniões, com o Movimento Nacional, buscou apresentar a proposta do censo e seus desafios
com o trabalho com as crianças e adolescentes e a necessidade de produzir uma metodologia
exclusiva para a pesquisa com as crianças e adolescentes.

A utilização dessa metodologia possibilitou o compartilhamento das diferentes visões e


versões sobre o cotidiano da sobrevivência, os sentimentos e as diferentes formas de os meninos
e meninas se apropriarem do espaço das ruas do Recife. O resultado dos grupos focais realizados
contribui para a produção do censo e, assim, para a produção de políticas públicas voltadas para
esse público. Como afirma Minayo, “embora seja uma prática teórica, a pesquisa vincula
pensamento e ação. Ou seja, nada pode ser intelectualmente um problema, se não tiver sido,
em primeiro lugar, um problema da vida prática” (Minayo, 2009, p. 17).

Figura 60: Reunião com a gestão das instituições de acolhimento da Secretaria da Assistência Social , na
sede da Prefeitura do Recife. Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia:
IMM/UFRPE, 2022

97
Figura 61: Reunião com o Grupo Ruas e Praças e o Pequeno Nazareno, na sede do Grupo Ruas e Praças.
Fonte: Censo da População em Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2022

Na segunda etapa, denominada fase da escuta ativa, o diálogo com as instituições e as


organizações que atendem diretamente as crianças e adolescentes foi realizado na sede do Grupo
Ruas e Praças, contando com a representação da organização Pequeno Nazareno. Os encontros
foram marcados pela troca de conhecimentos sobre a dinâmica de acolhimento produzida por
essas organizações e pela produção da cartografia social dos espaços onde as crianças e
adolescentes circulam na cidade do Recife. Ainda na segunda fase, também foram ouvidos/as
os/as servidores/as públicos/as que atuam nos espaços institucionais. Nas reuniões de escuta
ativa, foram pautadas as dinâmicas de acolhimento no contexto da Casa-Lar e Abrigo Institucional,
houve a apresentação da equipe interdisciplinar e exposto o perfil das meninas e meninos
atendidos. É importante sublinhar a relevância desses encontros para a troca de conhecimentos
sobre as políticas públicas realizadas no município do Recife e os desafios de sua implementação.

Os encontros realizados, na primeira e na segunda etapas, também possibilitaram o


debate sobre o próprio conceito de criança e de adolescente adotado pela pesquisa censitária,
seus aportes legais e documentos normativos referendados. O processo dialógico e colaborativo
e a participação efetiva das instituições e das organizações contribuíram para iluminar os
caminhos adotados para a execução do censo. Esse levantamento legitima-se pela participação
dos/as diferentes agentes sociais que conhecem os meninos e as meninas a partir do convívio

98
cotidiano, despertando-nos a atenção para as principais violações de direitos e também suas
diferentes formas de superação.

A terceira fase consistiu na definição metodológica do grupo focal, realizado nas


diferentes instituições, e na produção da cartografia social, produzida pelas próprias crianças e
adolescentes. Este processo também foi marcado pela definição da abordagem quanti-qualitativa
da pesquisa censitária e da análise crítica do discurso produzido no decorrer das técnicas de coleta
de dados.

Figura 62: Grupo Focal realizado no Grupo Ruas e Praças. Fonte: Censo da População em Situação de Rua
do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2023

99
Figura 63: Grupo Focal realizado na instituição de acolhimento Raio de Luz. Fonte: Censo da População em
Situação de Rua do Recife 2022; Fotografia: IMM/UFRPE, 2023

A metodologia grupo focal consiste em uma metodologia que permitiu que as crianças e
adolescentes compartilhassem as diferentes vivências e saberes construídos em suas trajetórias
de vida. Desperta-nos para subjetividades humanas que produzem os mais diferentes
sentimentos, resiliências e formas práticas de sobrevivência concretas, individuais ou coletivas,
produzidas nas ruas da cidade do Recife. A metodologia permitiu que meninos e meninas
participassem deste processo de forma protagonista e cidadã.

AS DIFERENTES CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA

Traçar o perfil das crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de Recife é uma
tarefa importante e que foi aceita pela equipe organizadora deste censo. Entretanto, tal
enumeração empírica necessita, inicialmente, de uma contextualização teórica. Em que pese o
termo perfil ser costumeiramente usado em fundamentações teóricas homogeneizadoras, que
estabelecem características padronizadas, que favoreçam a tomada de decisões, supondo
comportamentos semelhantes em pessoas diferentes, o termo é tomado aqui como uma
tentativa de dar rosto, cor, voz, gênero e identidade aos meninos e meninas que vivem em
situação de rua na cidade de Recife.

100
A nosso ver, qualquer discussão em torno de um perfil para esses sujeitos deve partir do
reconhecimento de suas próprias identidades e subjetividades. Crianças e adolescentes são
pessoas que, convivendo na contemporaneidade, vivenciam os dilemas e tensões específicos
desse período. Dessa forma, é conveniente destacar, junto com Hall (2014), que as identidades,
em tempos pós-modernos, se constituem de forma diferente, uma vez que os dispositivos
tradicionais de controle como escola, família, trabalho e ideologia se encontram tensionados por
vivências políticas e econômicas desestabilizadoras.

Supor que, pelo fato de viverem em situação de rua, as crianças e adolescentes teriam
suas identidades mais simplificadas é expressão de um preconceito e de desconhecimento de
como se dá a produção de identidades em meio a um contexto cultural diverso. Diante dessa
constatação, constitui-se em um evidente objetivo a busca por reconhecer que esses meninos e
meninas são portadores de subjetividades específicas, complexas e ligadas com o contexto
cultural no qual estão inseridos.

Crianças e adolescentes que se encontram em situação de rua têm suas identidades


atravessadas por várias camadas de percepção, negá-las ou dissolvê-las em uma suposta
homogeneidade é, além de um erro conceitual, uma violência com essas pessoas. Essa
amostragem revela um forte indicativo de um componente estrutural racial nas condições de
esgarçamento dos vínculos familiares e comunitários que não pode ser negado ou dissimulado.

A percepção fundamental que deve preceder qualquer tentativa de produzir um suposto


perfil da população de crianças e adolescentes que vive em situação de rua deve ser a de
reconhecer sua inquestionável heterogeneidade. Em alguns recortes, essa característica se torna
ainda mais sensível, como na percepção do gênero, na orientação sexual e nas vivências religiosas
e culturais.

As crianças e adolescentes em situação de rua em números

A população em situação de rua do Recife é majoritariamente formada por adultos, isto


é, pessoas que tem entre 18 e 60 anos de idade. Apesar disso, o quantitativo de idosos e de
crianças e adolescentes é representativo e motivo de preocupação, uma vez que se trata de
grupos etários mais vulneráveis. A pesquisa levou em consideração as crianças e adolescentes
que estavam nas ruas do Recife no decorrer do trabalho de contagem, as atendidas pelas
instituições governamentais e pelas organizações não governamentais, tendo o resultado de 86
pessoas contadas e identificadas, 42 crianças e 44 foram adolescentes. A figura 12 deste relatório
representa o percentual de crianças e adolescentes, comparado aos adultos e idosos.

101
Para a contagem, foram intercruzados os números de crianças e adolescentes
encontrados nas ruas do Recife, nas instituições de acolhimento e os atendidos nas organizações
da sociedade civil. Produzir essa conexão entre esses números é fundamental para alcançar o
resultado seguro do processo censitário. Desse modo, afirmamos que 6,10% da população de rua
do Recife é formada por crianças e adolescentes.

A pesquisa contemplou todas RPAs. Considerando a circulação dessas crianças e


adolescentes, constatamos que a maioria das crianças e adolescentes circula na RPA 1
(compreende o centro do Recife, contemplando o bairro da Boa Vista e adjacências) e na RPA 5
(compreende a Zona Sul, contemplando Boa Viagem e adjacências). Conforme a tabela abaixo,
referente à circulação das crianças e adolescentes nas RPAs do Recife, corresponde de forma
sincrônica com outras faixas etárias, uma vez que as regiões 1 e 5 também são as que apresentam
o maior número de adultos e idosos.

Tabela 01: Distribuição da população em situação de rua por faixa etária

RPA CRIANÇA ADOLESC. ADULTO IDOSO NI


1 2 15 500 36 70
2 1 3 94 8 3
3 0 2 137 10 13
4 0 0 119 12 9
5 0 2 100 9 2
5 5 5 246 15 25
Acolhimento 34 17 202 110 0
TOTAL 42 44 1398 200 122

Fonte: Censo População de Rua do Recife. IMM/UFRPE, 2022.

Registramos que o maior número de crianças e adolescentes se encontrava nas


organizações governamentais criadas e mantidas pela Prefeitura da Cidade do Recife e
organizações da sociedade civil, com foco no Grupo Ruas e Praças e Pequeno Nazareno. A
pesquisa censitária, realizada no período noturno, identificou o número reduzido de meninos e
meninas circulando nas ruas da cidade, representando o número de aproximado de 10%, ou seja,
a maioria se encontrava nos espaços de acolhimento ou de atendimento das organizações da

102
sociedade civil. Salientamos que as pessoas com idade inferior a 18 anos estavam acompanhadas
por adultos.

No que se refere ao gênero, 75% das crianças e adolescentes são do sexo masculino.
Historicamente, as ruas do Recife são marcadas pelo maior número de meninos em situação de
rua. Mesmo representando o percentual de 25%, consideramos que o número de meninas é
expressivo e que merece atenção por parte das políticas públicas e pelos serviços de atendimento,
haja vista a trajetória de vida marcada por violência e vulnerabilidade, ainda mais acentuada pela
cultura machista e sexista presentes nas redes de sociabilidades produzidas nas ruas, conforme já
discutimos em relação às mulheres em situação de rua.

Sobre a dimensão cor-raça, os meninos e meninas em situação de rua do Recife são


majoritariamente pretos e pardos. A sociedade marcada pelas desigualdades raciais está
fortemente evidenciada no perfil dos meninos e meninas que circulam pelas ruas da capital
pernambucana, o que dialoga com os dados da população geral. Registramos que, no decorrer da
pesquisa qualitativa, foi constatado que a maioria se reconhece como negros e negras.

No aspecto das trajetórias educacionais, a pesquisa revelou que 90% não frequentam
instituições de ensino regular. Verificamos que esses meninos e meninas não concluíram o ensino
fundamental, o que torna ainda mais desafiadoras e necessárias políticas educacionais
reparadoras da defasagem educacional dessas crianças e adolescentes. É preciso que tais políticas
considerem a trajetória histórica desses meninos e meninas, produzindo possibilidades de
pedagogias que acolham as diferentes potencialidades, sem considerar as fragilidades.

Esses números visibilizam nossas crianças e adolescentes nas mais diferentes dimensões
socioculturais e econômicas. Ao analisarmos os números apresentados, salientamos a relevância
de perceber que os problemas relacionados à presença dos meninos e meninas em situação de
rua precisam pensar na dimensão etária, ressaltando que, mesmo que o número de adolescentes
tenha se apresentado mais expressivo, é necessário observa que a quantidade é bem próxima, o
que ressalta os impactos desse fato no cotidiano da cidade e da vida dessas pessoas que possuem
idade inferior de 12 anos. Inferimos que esse fenômeno pode ser explicado pelo aumento da
pobreza e da extrema pobreza, desdobramentos da Pandemia e da fragilidade das políticas
socioassistenciais de transferência de rede, a exemplo do extinto Auxílio Brasil, criado pelo
Governo Federal, em 2021.

Consideramos que a crise econômica e social teve desdobramentos que impactaram, de


forma direta, a trajetória educacional dos meninos e meninas, que passaram a atenuar as
desigualdades educacionais. Os dados coletados, no decorrer da pesquisa, além de apontarem

103
para a extrema fragilidade educacional, apontam a desmotivação desses meninos e meninas
retornarem aos espaços escolares, o que sinaliza a produção de políticas, programas, que
considerem, de forma prioritária, a trajetória da situação de abandono e desproteção extrema
desses meninos e meninas.

O ‘bagui’ é louco, o ‘bagui’ é pesado: resultado do processo de escuta

Rapaz, para mim que passei mais de um ano e pouco na rua, a rua não é nada
bom. Só tem tráfico. Só tem morte. A pessoa não pode estar deitado no canto
que a outra pessoa chega para mexer com o cara. Isso daí eu tiro por mim...
(Resultado do Grupo Focal 1 - Adolescente, menino, Raio de Luz)

O processo de escuta das crianças e adolescentes foi construído a partir da articulação


com a Casa de Acolhimento Institucional Raio de Luz e com a Organização da Sociedade Civil
Grupo Ruas e Praças, contando com o apoio da Organização da Sociedade Civil Pequeno
Nazareno. Foram realizados os grupos focais com as meninas e meninos com vivências e/ou em
situação de rua na cidade do Recife. Essa etapa do censo, qualificada como estratégia para a
escuta desse segmento durante o período de levantamento de informações, configura-se como
uma fase importante deste trabalho, pois retratou os olhares e impressões das infâncias sobre a
realidade das ruas.

Assim, cientes da conversa a ser realizada, os meninos e meninas de ambas as instituições


ficaram surpresos com o conteúdo e o roteiro exposto pela equipe. Não poderia ser diferente,
pois se trata de uma pesquisa de grande envergadura política e social para a população em
situação de rua. Essa constatação deu-se pelo fato de que dar voz (ouvir) e vez a essas pessoas,
numa correlação de força injusta vivenciada cotidianamente, seria, para alguns, algo
desnecessário tanto pela especificidade da temática quanto do público, sobretudo pelos possíveis
desdobramentos que teriam de ser levados em consideração por certos componentes do sistema
de garantia de direitos.

Para tanto, a técnica desenvolvida nos dois equipamentos sociais foi a mesma, apesar
disso, cabe ressaltar que, diante da especificidade estrutural e organizacional desses espaços, pois
há de se levar em conta as atribuições e as práticas governamentais e não governamentais, foi
preciso ajustar a metodologia em função do tempo das entidades, do material didático a ser
disponibilizado e produzido e das intervenções pedagógicas frente contribuições dadas. Tudo isso
para que esse processo fosse consolidado de modo a atingir o objetivo proposto. Vale frisar que
nenhum dos ajustes citado interferiu no produto desta etapa.

104
Sendo assim, o debate gerado entre participantes dos grupos focais possibilitou, perante
a dinâmica aplicada, a exposição das experiências dos mesmos na rua, haja vista serem situações
corriqueiras vividas pela população que se encontra nesse contexto de vulnerabilidade. Porém,
considerando a naturalidade das falas, foram destacadas as dificuldades, as limitações e os
impedimentos encontrados, em se tratando de criança e adolescente nesse espaço (rua), uma
vez que são pessoas em desenvolvimento e que todas as oportunidades e facilidades a elas/as
postas precisam facultar seu desenvolvimento físico, mental, moral, social, em condições de
liberdade e de dignidade, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente e os marcos
normativos correlatos.

As ruas e as diferentes formas de violência

Muita gente dormia na rua e acordava com pé queimado. Quem vive na rua
não é porque quer, é por necessidade. A condição que a mãe não tinha para
criar. (Resultado do Grupo Focal – Adolescente 2, menino, Raio de Luz)

É importante dizer que, em ambos os espaços de realização do grupo focal, questões


como uso abusivo de drogas, violências vividas e/ou presenciadas, formas de lazer, níveis de
escolaridade, arranjos familiares, direitos assegurados e violados, maneiras de adquirir renda,
cuidados com a saúde, dentre outras, vieram à tona e foram trazidas para ao “centro da roda”
como elementos centrais para a compreensão da vida vivida na rua. Ressaltamos que esses temas
corroboram com aspectos fundamentais do questionário aplicado aos demais segmentos do
censo e serão sistematizados e socializados de modo a evidenciar, diante do apresentado pelas
crianças e adolescentes, a necessidade de pensar a política pública para as infâncias e
adolescências e, por consequência, sua efetivação, como mecanismo de busca permanente pela
garantia da proteção integral.

Há de se destacar, na execução das atividades do grupo focal, um fator diferencial na


concretização desta fase, pois os meninos e meninas fizeram a cartografia dos espaços da
população em situação de rua do Recife. Sob o olhar deles e delas, foi traçado o link entre as falas
(histórias vividas) com a identificação dos lugares e/ou ambientes que fazem (ou fizeram) parte
do seu dia a dia, puderam, assim, (re)desenhar e (re)escrever suas rotas e rotinas. É notória a
percepção das crianças e adolescentes, através dos olhares, dos posicionamentos e dos
questionamentos, tendo em vista o envolvimento de diversos atores na pesquisa, sobretudo o
poder público municipal, de que possam transformar as expectativas em realidade para a
melhoria da qualidade de vida das pessoas com vivências de rua.

105
A ruptura dos vínculos familiares

- Eu fui desprezado pela minha família. Fui abandonado. Fui colocado para fora
de casa. (Adolescente 1, menino, Ruas e Praças)
- Só tu? [risos] (Adolescente 2, menino, Ruas e Praças)
- A mesma coisa eu... (Adolescente 3, menino, Ruas e Praças)
- O meu contato com a família é na rua mesmo. (Adolescente 4, menino, Ruas
e Praças)
- O meu é de boa... (Resultado do Grupo Focal – Adolescente 1, menina, Ruas
e Praças)

O diálogo acima descortina como foram marcantes os relatos de meninos e


meninas em situação de rua com vínculos familiares comprometidos. De acordo com a campanha
Criança não é de Rua, essas crianças e adolescentes possuem trajetórias marcadas por “vínculos
familiares interrompidos ou fragilizados, em que a vulnerabilidade foi sendo progressivamente
ampliada antes de chegar a fixar a vida no espaço da rua. A vida dos indivíduos em situação de
rua se caracteriza pela inexistência de moradia convencional regular e a utilização de logradouros
públicos e áreas urbanas degradadas como espaço de moradia e de sustento” (Brasil, 2017 p. 27)

O Censo do Recife evidencia as diferentes experiências de crianças e adolescentes


marcadas pela negação do direito à convivência familiar e comunitária. Os relatos dos meninos e
meninas, produzidos no decorrer do grupo focal, sinaliza práticas de abandono, negligência e
outras formas de violência, conforme o relato abaixo:

Depois que minha mãe sumiu, tio, eu meio que baratinei. Não quis ficar com
minha avó porque ela é usuária desses negócios e é metida em tráfico e aí não
quis ficar na rua mesmo. Ficar por aí andando (Resultado do Grupo Focal 1 -
Adolescente, menino, Raio de Luz).

A pesquisa do Censo constatou que as crianças e adolescentes em situação de


rua são oriundas de famílias pobres ou que vivem a situação da extrema pobreza, que também
foram abandonadas e vitimadas pelas fragilidades das políticas sociais de transferência de renda,
marcadas pelo não acesso digno ao mundo do trabalho e que foram obrigadas a conviver com o
mundo da criminalidade. Muitos desses meninos e meninas tiveram que conviver, desde muito
cedo, com adultos que consumiam álcool e outras drogas, que passavam por mendicância,
sofrimento ou transtorno mental, e muitos vivenciaram formas de abuso e violência sexual nos
espaços intrafamiliares.

A condição das meninas em situação de rua

106
Quando eu era pequena, eu saía muito e passei por uma situação que quase
que morria. Mas, graças a Deus, Deus me deixou, né. Pegavam mulher grávida
e estupravam. Já mataram um monte de gente. Abusaram do meu irmão de
nove anos. Degolaram o pescoço dele, mas Graças a Deus ele está vivo. Fui
para rua, passava necessidade, tenho meu filho de dois anos e dois meses,
porque o pai dele não queria dar a pensão (...) Essa situação de rua é
complicado. Para a pessoa sair é preciso pedir a Deus para voltar com vida...
Tem que sair com uma faca ou com qualquer coisa. (Resultado do Grupo Focal
1 - Adolescente, menina, Raio de Luz)

A condição das meninas em situação de rua apresentou-se como uma questão que
merece destaque em nosso censo. Mesmo sendo um número inferior ao dos meninos, é
importante ressaltar que, a partir dos relatos, foi constato que as políticas e programas de
atendimento devem se diferenciar em relação aos meninos, uma vez que a condição das meninas
está diretamente relacionada à violência de gênero, à gravidez na adolescência e a outras formas
de violências, como ficou destacado na fala acima. Destacamos que Recife, por meio da gestão
municipal, possui uma estrutura de acolhimento exclusivo para as meninas, com profissionais que
buscam fazer um atendimento interdisciplinar para as meninas, respeitando a orientação sexual
e a orientação de gênero. Ressaltamos que, no decorrer da pesquisa, não encontramos meninos
ou meninas trans, mas, chamamos atenção para a relevância do respeito ao público LGBTQIAP+.

Historicamente, Recife tem uma efetiva contribuição com a política de


atendimento às meninas, a partir do trabalho pioneiro da extinta Casa de Passagem, fundada na
década de 1990, da Casa Menina Mulher e de outras instituições da sociedade civil. Os trabalhos
de abordagem social, de atendimento socioassistencial, educacional e de saúde, além de outras
dimensões da política, devem considerar a sociodiversidade e os casos de violência contra as
mulheres e, mais notadamente, contra as meninas, em uma sociedade marcada pela herança
patriarcal, pelo sexismo e pelo machismo.

Das ruas aos espaços da Socioeducação

Um bando de noiado fica fazendo um bocado de coisa com o cara. Estava


vivendo na rua até quando eu ‘rodei’. Depois eu ‘rodei’ de novo e fui para UNIAI
(Unidade de Atendimento Inicial), depois fui para o CENIP (Centro de
Internação Provisória). Depois fui para Caruaru porque não me aceitaram no
Recife. E de lá já tinha falado com minha equipe que estava procurando
melhorar. Eu estava procurando ficar com minha família. Não ia ficar fugindo
para dormir no meio da rua. (Resultado do Grupo Focal – Adolescente 3,
menino, Raio de Luz)

Muitos dos meninos que vivenciam a situação de rua possuem passagem pelo sistema
socioeducativo. Conforme o relato acima, o adolescente passou por diferentes unidades da
Fundação Socioeducativa de Pernambuco, a FUNASE, localizadas no Recife e no interior do Estado.

107
A fala do adolescente traz luz acerca da pertinência de se pensar políticas e programas integrados
com o sistema socioeducativo, nos meios aberto (Prestação de Serviço à Comunidade e Liberdade
Assistida) e fechado (Semiliberdade e Internação). É importante ressaltar que a equipe de
pesquisadores buscou intercruzar os dados com os meninos e as meninas em situação de
cumprimento de medida socioeducativa em meio fechado, mas não conseguimos retorno da
instituição em tempo hábil. Ressaltamos a pertinência da produção de um diagnóstico mais
exclusivo sobre a relação Rua-Socioeducação, para que políticas públicas de atendimento e
proteção a esses adolescentes sejam efetivadas.

Por fim, este momento aponta para possibilidades de redefinição e/ou reordenamento
das políticas voltadas à população em situação de rua, cujos objetivos, entre outros, sejam:
desburocratizar os atendimentos das demandas apresentadas, visibilizá-los sob a era dos direitos
assegurados, inseri-los nos processos de elaboração de políticas públicas e contribuir com o
empoderamento e a emancipação dos meninos e das meninas, não perdendo de vista a realidade
vivida, bem como o acúmulo de experiências dessas pessoas.

As brincadeiras e os sonhos

O meu sonho é sair da rua. Vim aqui para os Ruas e Praças para treinar, para
ser jogador de futebol e ajudar uns aos outros. Somente isto. (Adolescente 2,
menino, Ruas e Praças)

As crianças e adolescentes que protagonizam este censo mostraram-se como


sujeitos potentes, com efetiva capacidade de sobrevivência e resiliência e que, mesmo expostos
a diferentes formas de violência, buscam produzir redes de sociabilidades marcadas por
momentos de descontração, que se manifestam em brincadeiras e diversões construídas no
convívio social, como: jogar bola, queimado, esconde-esconde. No entanto, a pesquisa também
sinalizou que o uso da cola e de outras drogas representa, para alguns, modos de se divertir. Para
outros, o consumo da cola está diretamente relacionado à possibilidade de aliviar a dor ou até a
fome.
Neste censo, as brincadeiras e diferentes formas de trampolinagem foram
observadas como meios de sobrevivências, “artes de fazer” o cotidiano das ruas, táticas praticadas
na invenção do cotidiano (Certeau, 2005). Os meninos e meninas também falam em sonhos. É na
capacidade de sonhar que se manifesta o humano que projeta a esperança em dias melhores.
Entre os sonhos compartilhados com mais frequência no decorrer das rodas, escutamos: “sair da
rua”, “trabalhar” e “voltar para minha família”.

108
Análise da rede proteção das crianças e adolescentes em situação de rua no Recife

O conceito de rede de proteção é uma ideia atualmente bem estabelecida no meio das
demandas sociais e que filosoficamente se sustenta na compreensão de que o ser humano se
funda enquanto indivíduo através de um princípio ético determinante. É no reconhecimento do
outro que construímos nossa identidade a partir de uma alteridade (LEVINAS, 2005). O cuidado
com as pessoas atravessa a consciência social e individual da humanidade, que se entende como
participante de um conjunto de relações extremamente mutáveis e líquidas (BAUMAN, 2001).
Proteger e garantir direitos é um conjunto de ações que não pode ser concebido à luz de
compromissos individuas e atitudes isoladas, por isso que a realização desse censo parte da
compreensão de que a garantia dos direitos humanos das crianças e adolescentes é um trabalho
realizável apenas em um horizonte de compromissos coletivos ou, como define o intelectual
francês Bruno Latour (2012), em rede.

Do ponto de vista histórico, a noção de constituir uma rede de proteção é uma das
conquistas sociais originadas na Constituição Federal de 1988, mais especificamente através dos
artigos 227, 228 e 229. Tal legislação não é fruto da benevolência das elites políticas econômicas,
mas sim resultado de um processo histórico específico marcado pela luta em torno da
redemocratização e pela mobilização da sociedade civil em favor dos seus direitos. Nesse
contexto, merece destaque a organização dos meninos e meninas que viviam em situação de rua,
através do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), que exerceu
significativa pressão nas esferas políticas para a aprovação dos artigos constitucionais acima
citados e para a elaboração e consequente promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), em 1990.

A ideia de uma rede de proteção integral dos direitos das crianças e adolescentes parte
de uma superação histórica, que culminou com a crítica e o abandono do paradigma, até então
dominante na área, conhecido como “a doutrina da situação irregular”, o qual orientou as ações
até a promulgação da Constituição de 1988. A mudança mais significativa que ocorreu nesse
contexto foi a ampliação do direito às ações de proteção e garantia, que deixou de ser algo
reservado aos meninos e meninas considerados “irregulares”, “perigosos” ou infratores para ser
estendido a todos.

O ECA, em seu artigo quarto, orienta os princípios da prioridade absoluta e da


corresponsabilidade entre as esferas pública, familiar e comunitária (sociedade), com relação às
ações de proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. É baseado nesses princípios
que a rede de proteção e o Sistema de Garantia de Direitos foram formados, como estratégias

109
para distribuir responsabilidades e garantir direitos. Em Recife, a estrutura da rede de proteção
aos direitos das crianças e adolescentes comporta várias dimensões previstas no ECA,
materializadas no Sistema de Garantias de Direitos. O município possui uma Secretaria de
desenvolvimento social, juventude, políticas sobre drogas e direitos humanos, que mantém, em
seu organograma, uma secretaria executiva da juventude. Merece destaque aqui uma crítica ao
fato de que não existe uma secretaria executiva específica para o atendimento às crianças e
adolescentes.

O poder judiciário localizado em Recife, que também compõem, por determinação legal
(CF 1988, ECA), a rede de proteção, possui um Centro Integrado da Criança e do Adolescente
(CICA), que organiza, no mesmo espaço físico, as Varas da Infância e Juventude da capital. De
forma mais específica, estão localizados nesse centro a 1ª, 2ª e 3ª Varas da Infância e Juventude.
As Varas de Crimes contra Criança e Adolescente também se situam no CICA. Ainda no âmbito da
justiça, no mesmo espaço físico, encontra-se estabelecido o Ministério Público Federal e a
Defensoria Pública, com suas respectivas especialidades voltadas exclusivamente para a atenção
e proteção aos direitos das crianças e adolescentes.

O município conta também com órgãos responsáveis pela fiscalização do cumprimento


dos direitos humanos de crianças e adolescentes, como os Conselhos Tutelares, que, em Recife,
se dividem de acordo com regiões de abrangência. Em Recife o Conselho Tutelar atua em suas
devidas abrangências territoriais, de acordo com as determinações legais previstas, sendo
formado através de eleições públicas e com amplo espaço para a participação popular.

Algumas secretarias municipais e estaduais com sede em Recife também compartilham


da responsabilidade de proteger e garantir os direitos das crianças e adolescentes e atuam
diretamente nesse sentido. De modo mais específico e abrangente, embora não exclusivo, é essa
a situação das secretarias municipal e estadual de educação, voltadas principalmente para a
promoção e garantia dos direitos relacionados com as aprendizagens. É importante destacar,
entretanto, que o esforço de órgãos como as secretarias de educação só pode ser bem-sucedido
se houver a concepção de que direitos como a educação não são exclusivamente atribuições de
um único órgão ou departamento, mas que estão entrelaçados com outros direitos como a saúde,
o transporte e a segurança.

As políticas voltadas para as crianças em situação de rua no Recife

Historicamente as políticas públicas voltadas para as crianças e adolescentes que se


encontram em situação de rua no Brasil foram marcadas pela presença de ações caritativas e

110
ligadas à Igreja Católica. Paralelamente a esse esforço “curativo”, com manifesto viés de suprir
supostas carências de crianças e adolescentes entendidas como desajustadas e perigosas, havia
um movimento fiscalizador e punitivo. Meninos e meninas que viviam nas ruas eram encarados
como problemas para a polícia resolver.

O período de transição da ditadura civil e militar para a democracia (1978-1990) assistiu


a uma inflexão na trajetória das discussões acerca das políticas públicas voltadas para a garantia
dos direitos das crianças e adolescentes. Impulsionados por uma onda de contestação política,
movimentos sociais, políticos e setores específicos da igreja católica auxiliaram na confecção de
uma legislação avançada acerca dos direitos das crianças e adolescentes. É desse período, o
Estatuto da Criança e do Adolescente e a ideia de constituir uma estrutura ampla para garantir,
através da execução de políticas públicas, a prioridade absoluta na proteção dos meninos e
meninas.

Entretanto, no final da década de 1990 e início dos anos 2000, houve o crescimento da
ideia de privilegiar o terceiro setor (aqui compreendido como organizações não governamentais-
ongs e outras organizações particulares) na execução de ações de proteção voltadas
especificamente para a população de meninos e meninas que vivem em situação de rua. Algumas
dessas organizações não governamentais realizam um trabalho eficiente, entre as quais
destacamos, na região metropolitana de Recife, a atuação dos grupos: Ruas e praças e o Pequeno
Nazareno, ambas voltadas para o trabalho com a população infanto-adolescente de rua.
Pesquisadores e agentes políticos ligados aos movimentos sociais pontuaram os riscos de se
transferir para iniciativas particulares a responsabilidade de garantir um direito constitucional.
Essas críticas expressavam o desejo por uma ação mais direta e intensa do Estado.

A cidade de Recife, desde 2009, vem expressando o compromisso de assumir


protagonismo nas ações públicas voltada para as crianças e adolescentes em situação de rua. Tal
compromisso se materializou com a criação do Plano Municipal de Enfrentamento à Situação de
Rua de Crianças e Adolescentes, que vigorou para um lapso de tempo compreendido entre 2010
– 2020.

Em linhas gerais, esse projeto se insere em um constante diálogo com o SUAS, as


secretarias municipais de desenvolvimento social, juventude e políticas sobre drogas; saúde e
educação, além dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil, que vêm
contribuindo, de forma exitosa, com o atendimento dos meninos e meninas. Avaliamos que a
criação de um plano municipal amplo, intersetorial e precedido de um debate com os principais
setores diretamente envolvidos com a questão dos direitos humanos de crianças e adolescentes

111
em situação de rua é, sem dúvidas, um avanço considerável. A elaboração e concretização de um
plano como esse é representativo da maneira como o poder público, após décadas de
mobilizações sociais e pesquisas acadêmicas na área, foi motivado a agir. Baseado em eixos, o
plano municipal pretende garantir ações públicas que promovam o atendimento integral às
crianças e adolescentes em situação de rua, promovendo um processo dinâmico, no qual os
meninos e meninas tenham sua agência cidadã garantida e vivenciada.

De forma prática, uma das ações mais destacadas desse compromisso público foi a criação
de mecanismos para permitir o alcance dessas populações em situação de rua, bem como o seu
acolhimento. Com relação ao contato nas ruas, o plano prevê a existência dos serviços sociais de
abordagem social, que, apesar de não serem exclusivos para o público infanto-adolescente,
também atuam direcionados para atendê-lo. Esses serviços são estruturados em equipes
formadas por especialistas e demais profissionais preparados para exercer funções como:
pedagogos/as, educadores/as sociais, supervisores/as, entre outras.

O acolhimento dos meninos e meninas é promovido através de centros específicos para


esse trabalho, denominados unidades de acolhimento, entre elas destacamos, em Recife:
Acalanto, Casa Aconchego, Acolher, Novos Rumos, Raio de Luz, Doce Lar, Centro de Reintegração
Social-CRS, O recomeço, CAT Josué de Castro, Casa de Passagem Diagnóstica-CPD, Hotel Social,
Iêda Lucena, Porto Seguro, Abrigo Provisório Edusa Pereira, emergencial do Gusmão, Raio de Luz
e a Casa de Acolhida Paulo de Tarso.

Entretanto, uma análise crítica das propostas de ação demonstra que, apesar de serem
bem elaboradas e dotadas de um intenso grau de pertinência, não possuem, na estrutura do
próprio plano, parâmetros adequados para a avaliação do cumprimento dos indicadores. Não
obstante à suposta eficácia das ações pretendidas, o consenso é de que se torna muito difícil
acompanhar externamente se as mesmas foram ou não executadas a contento, diante da
ausência de pontos efetivos de controle. Outro problema verificado é o que explicita a carência
de marcadores temporais distintos e específicos para o período de cumprimento das propostas.
O fato de algumas ações serem legitimamente entendidas como permanentes não justifica a
ausência de datas limites para etapas de implementação ou momentos periódicos de verificação
do cumprimento de suas funções.

A despeito das críticas pontuadas acima, a convicção que possuímos é a de que, de um


modo geral, as políticas públicas voltadas para as crianças e adolescentes, no Recife, já
conseguiram romper o momento histórico mais preocupante, que era marcado pela invisibilidade
e pelo olhar punitivo/classificatório. O envolvimento dos setores evocados como responsáveis

112
para a elaboração de documentos oficiais, conforme o artigo 53 do ECA, é representativo de que
já ingressamos definitivamente em outro momento. Esses resultados implicam que o esforço de
acompanhamento e fiscalização, no melhor espírito de respeito à democracia e à coisa pública,
devem ser constantes, especialmente em momentos cruciais vivenciados na contemporaneidade,
respeitando a participação de meninos e meninas nos processos de pesquisa e produção de
projetos e políticas. Nada sobre os meninos e meninas, sem os meninos e meninas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Recife: cidade de pessoas e os sonhos nas ruas

Nosso objetivo neste censo foi o do mergulho, da produção do estranhamento, do


estabelecimento de vínculo com esses sujeitos. Então, em alguma medida, operamos com os dois
conceitos acima apresentados, o da população e o das pessoas em situação de rua, humanizadas
em suas trajetórias e experiências, gente com nome, cor, sexo, identidade/expressão de gênero,
que ocupa lugares específicos da cidade, por razões particulares. Na perspectiva que
perseguimos, a construção do conhecimento só pode ser realizada a partir da
complementaridade entre as formas de “olhar”. É preciso considerar as múltiplas e variadas lentes
de leitura sobre as vidas vividas nas ruas.

Rosa Maria Torres (2013), educadora equatoriana, referência importante, ao lado de


Milton Santos, para a orientação da Vigilância Socioassistencial no SUAS, fez um interessante
comparativo entre perspectivas de leitura da realidade, ela utilizou a analogia a duas figuras do
universo dos aparelhos de observação: o telescópio e o microscópio. O telescópio (aponta para
os indicadores, para as narrativas sobre o todo, olhar estruturante para um censo) é essencial

113
para a compreensão do macro, das dinâmicas populacionais. Normalmente é utilizado pelos/as
ocupados/as pela administração/gestão, que, via de regra, padecem do risco de perder de vista
as pessoas de carne e osso que aparecem como estatísticas e metas, bem como os processos que
estão atrás dos resultados, a multiplicidade de agentes, de práticas e de redes. Já o microscópio
é mais utilizado por aqueles/as que localmente estão envolvidos/as na ação e são essenciais para
olhar de perto, apontam para o risco da prisão no casuísmo, para a mensuração das relações a
partir do caso a caso, do “evento”, e para a limitação da leitura do contexto através do manejo
exclusivo de situações particulares.

Na feitura do Censo Pop Rua Recife, apostamos na composição das duas formas de olhar.
O uso da “simbologia” dos aparelhos para a visão, telescópio e microscópio, aponta para a
necessidade de uma composição, porque não há gestão efetiva e humanizada distanciada do
cotidiano e não há exercício efetivo da política apenas tomando a referência da ponta, junto às
famílias e territórios, tomando cada caso como um caso. Para a perspectiva de proteção e de
cuidado que buscamos, que seja capaz de instituir uma política da vida cotidiana, que aponte para
uma sociedade do cuidado, é preciso estabelecer uma composição das formas de se perceber e
analisar a realidade. As violações que acometem uma pessoa em particular devem ser
compreendidas como parte das relações sociais, bem como as demandas dessa pessoa devem
ser inscritas no campo das políticas públicas, das barreiras para os acessos destas, incidindo e
refinando o universo da implementação. Um censo que diz sobre população e pessoas ao mesmo
tempo.

A situação de rua, os relatos e análises aqui apresentados reportam para uma infinidade
de questões. Sobre as trajetórias e vivências nas ruas é importante o fato de que a rua é
predominantemente masculina, as pessoas em situação de rua atualmente estão dentro da faixa
etária economicamente ativa e apresentam como principal sonho o trabalho, meio e fator para a
organização de suas trajetórias pessoais e vinculações sociais. A análise deste ponto nos conduziu
para uma série de questões sobre as possibilidades das pessoas, mas, principalmente, sobre o
trabalho em sua dimensão estruturante de nossas relações sociais. Conforme afirmamos em
algum ponto deste documento: não há soluções simples para questões cuja complexidade foi
tramada ao longo da história.

Exatamente por isso, o tema trabalho e educação, que compôs a primeira seção do
formulário censitário, neste documento foi apresentado como último item, após a discussão de
todos os outros. Isso porque a reflexão sobre trabalho e educação, como possibilidade de saída
das ruas, precisa levar em consideração todos os fatores que dão materialidade para os cotidianos
e experiências das pessoas em uma sociedade como a brasileira. Não há como abreviar a análise

114
tomando qualificação profissional, encaminhamento para as vagas de trabalho e ampliação da
escolaridade como solução para o problema das vidas vividas nas ruas, é parte, não a solução. A
reflexão até aqui proposta aponta para uma população atravessada pelas dimensões da
subcidadania, por barreiras de acesso, que alcançam os indivíduos e são partilhadas por suas
famílias e territórios, por efeitos da apartação social, de desfiliações sucessivas de sociabilidades
extremamente impactadas pelos efeitos de se viver em uma sociedade de espaços e relações
hostis, com forte sentimento de aversão às pessoas pobres.

Nesse sentido, os dados referentes a situação de rua e relações familiares, cidadania,


condições de saúde, segurança alimentar e nutricional, satisfação de necessidades básicas e lazer,
crianças e adolescentes em situação de rua apontam os sonhos d ter direito a ter casa, trabalho,
viver em família. Entretanto, esses desejos não podem ser buscados apenas pela ampliação da
escolaridade e qualificação profissional, precisamos de um Estado com que, efetivamente, se
possa contar, é preciso reduzir as barreiras para acessos, é preciso atuar em um processo de
letramento social e político da sociedade e do Estado para instituir uma sociedade do cuidado.

Apresentamos também neste censo, com metodologia específica, os dados do


levantamento feito junto a crianças e adolescentes. No entanto, destacamos um fenômeno, uma
percepção compartilhada sobre o fato de a rua está vivenciando também um processo de
envelhecimento. Se, nas décadas de 1970 e 1980, um personagem bastante significativo eram os
os/as meninos e meninas, principalmente meninos, vivendo nas praças, calçadas, marquises, hoje
temos uma rua mais velha, com pessoas dentro do perfil da população economicamente ativa,
que vai para as ruas pelos efeitos da ausência de trabalho e renda, das possibilidades de conseguir
o mínimo necessário para sua sobrevivência, dos conflitos decorrentes desses não acessos, mas
que já é considerada “velha” para a inserção no mercado do trabalho. Foi muito comum ouvirmos:
“com essa minha idade eu não arranjo mais nada, quem vai dar trabalho para alguém que tá
ficando velho”.

Conforme apontamos em relação aos dados de acesso à saúde, de modo mais específico
dentro do campo da “pobreza menstrual”, as mulheres, apesar de representarem a menor
proporção desta população, estão entre os grupos mais vulneráveis, consideradas a partir da
perspectiva da hipervulnerabilidade. Ser mulher e estar em situação de rua, em uma sociedade
heteronormativa, machista e patriarcal como a nossa, representa ter agravada sua condição de
vulnerabilidade ex-ante, reduzindo ainda mais as suas possibilidades de acesso. Essa realidade
remete para as dimensões da economia do cuidado ou da necessidade do estabelecimento de
políticas do cuidado.

115
“O cuidado é um direito da pessoa humana. Sendo assim, tanto quem cuida quanto quem
recebe o cuidado necessita ter as condições adequadas para a sua concretude” (Muller e Mose,
2022). Compreendemos que a materialização do cuidado enquanto direito depende,
necessariamente, da oferta de um conjunto articulado de políticas públicas, sociais e econômicas
por parte do Estado, bem como da positivação do direito ao cuidado nas legislações brasileiras,
estabelecendo o que chamamos de sistemas públicos de cuidado (Fernandes, Regino, Villar,
Santos, 2023).

No caso específico das trajetórias apontadas pelas pessoas em situação de rua, seja em
Recife, seja em outras cidades brasileiras, é o inverso do cuidado que as leva às ruas, a
incapacidade das famílias e dos territórios promoverem cuidado, sem ter o suporte do Estado. É
impossível cuidar sem sucumbir em um contexto de desproteção. As políticas de cuidado são o
mecanismo por meio do qual o Estado assume sua responsabilidade enquanto provedor de
cuidado, a partir das políticas públicas, reduzindo a pressão sobre as famílias e, especialmente,
sobre as mulheres. No Brasil da desigualdade e do crescimento da miséria e da pobreza, são as
mulheres, especialmente as negras, periféricas, mães e pobres as mais afetadas.

A ausência de políticas que ampliem as capacidades dessas mulheres faz com que elas
carreguem a fome e a necessidade como destino, destino reproduzido e partilhado
intergeracionalmente, vidas abreviadas, apartadas dos acessos aos direitos de cidadania
(Fernandes, Regino, Villar, Santos, 2023). Para demonstração dessa equação, valemo-nos da
potência da poesia de Conceição Evaristo.

Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó ecoou criança, nos porões do navio [...] ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de
minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das
trouxas
roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. A
minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de
minha filha recolhe todas as nossas vozes, recolhe em si as vozes mudas
caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o
ato.
O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade
(Conceição Evaristo, 2017)

A bisavó simboliza, assim, aquelas que foram sequestradas e trazidas para o Brasil em
navios. A avó teria vivido no período da escravidão e da obediência forçada. A geração da mãe,
que trabalha como empregada doméstica, leva uma existência dura e marginalizada, mas começa
a ecoar alguma revolta. Esse sentimento de resistência se exprime através do eu-lírico que
escreve, mas ainda conta relatos de privação e violência. Contudo, o futuro reserva mudanças, e

116
a voz de sua filha, que carrega toda essa herança, escreverá uma nova história de liberdade
(Marcello, s/d).

Acreditamos ser esta a perspectiva de trabalho com a população e as pessoas em situação


de rua, a de acessos que permitam existir humanamente, pronunciando o mundo, para modificá-
lo. “O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a
exigir deles novo pronunciar. Não é no silencio que os homens se fazem, mas na palavra, no
trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 2015). O movimento que ganha força hoje, com o debate
sobre o cuidado, é a compreensão de que o cuidado deve ser considerado como um problema de
política pública, retirando-o do domínio privado e o desatualizando como responsabilidade das
famílias e principalmente das mulheres.

As famílias, sobretudo as de contextos subalternos, materializam-se como reflexos das


situações de risco social e de vulnerabilidades vivenciadas, situações que ultrapassam o indivíduo,
em particular, e envolvem sua vizinhança, sua família, as gerações passadas e futuras. A ausência
do Estado e a responsabilização de, em condições tão precárias, assumir todo o trabalho do
cuidado reduz sobremaneira a capacidade de as famílias e de os indivíduos estabelecerem
projetos de vida que se estruturem a partir da permanência na escola, das possibilidades de se
dedicar um tempo maior à qualificação profissional, da capacidade de aquisição de capitais sociais
e culturais, como nos diria Jessé Souza (2016) em diálogo com Bourdieu (2007). Essas famílias
estão diante do desafio de enfrentar tudo: déficit de “proteção social, carência material e
financeira, além de conviverem com graves conflitos relacionais” (Guimarães; Almeida, 2010, p.
130). Todas essas dificuldades apontadas fazem parte de uma dinâmica cotidiana de violência
urbana que, muitas vezes, se entrelaça à do “narcotráfico e do crime organizado, compondo um
quadro de acúmulo e potencialização da violência familiar”, principalmente para famílias de
contextos subalternos urbanos (Guimarães; Almeida, 2010, p. 130).

Compreendemos essa problemática a partir do campo das interseccionalidades, como


uma forma de efetivamente chegar bem perto das famílias, nas situações vivenciadas pelos
indivíduos no cotidiano em sociedade, homens, mulheres, crianças, jovens, idosos/as,
trabalhadores/as. Pessoas que têm uma história, tiveram um endereço, têm cor, orientação e
identidade de gênero, que vivenciam, em maior ou menor intensidade, riscos sociais. É
importante destacar que, mesmo em situação de rua, as pessoas estabelecem locais e grupos de
referência, estabelecem uma série de vinculações que precisam ser identificadas para a
compreensão do cotidiano destas pessoas. O encobrimento, o apagamento das dimensões de
identidade e identificação de indivíduos e famílias formam, para Jessé Souza (2016), o núcleo

117
mesmo da “’violência simbólica’” — aquele tipo de violência que não “aparece” como violência,
e que torna possível a naturalização de uma desigualdade social abissal como a brasileira.

Refletindo sobre essas questões, reconhecemos, como fato, que podemos reproduzir
desigualdades, ainda que implementando políticas públicas. Caso refletido a partir do estudo do
Instituto de Pesquisa Econômica aplicada / IPEA, organizado por Roberto Pires e publicado em
2019. A presença do Estado, através das políticas públicas, principalmente considerando uma
sociedade hostil e violenta como a brasileira, potencializa a construção de vínculos, permite
identificar problemas e priorizar intervenções, individualiza as necessidades e promove cuidados
equitativos. Entretanto, destacamos que a presença efetiva do Estado, através das políticas
públicas, é campo de muitos desafios, que vão desde a dificuldade do trabalho em rede, da
garantia do cuidado na rede especializada, até a persistência de estigmas entre os/as próprios
agentes públicos.

Nesse sentido, faremos referência a uma das reflexões propostas por Aldaíza Sposati, no
livro Concepção e Gestão da Proteção Social não contributiva no Brasil, publicado pelo Ministério
do Desenvolvimento, em 2009, mesmo ano em que se publicou a Política Nacional para a
População em Situação de Rua, o Decreto nº 7.053, que cria e apresenta as diretrizes para o
Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) e a
Tipificação dos Serviços Socioassistenciais. Sposati parte da perspectiva de que proteção social
(protectione, do latim) supõe, antes de tudo, tomar a defesa de algo, impedir sua destruição. A
ideia de proteção contém um caráter preservacionista – não da precariedade, mas da vida –,
supõe apoio, guarda, socorro e amparo. Esse sentido preservacionista é que exige tanto a noção
de segurança social quanto a de direitos sociais. Aqui estaria colocada a diferença entre amparo
e proteção. Destacamos que a CF/88 usa as duas expressões. Amparo (anteparare, do latim)
também significa proteção, como escora, arrimo, auxílio ou ajuda para impedir a queda de algo.
Supõe abrigo, refúgio, resguardo. A noção de amparo indica um estancamento da condição de
deterioração, e a noção de proteção indica, por sua vez, o impedimento de que ocorra a
destruição.

Esses movimentos e movimentações dizem respeito aos efeitos provocados pelo não
acesso, que, se de um lado, causam risco de apartação social, por outro lado, geram resistência,
mobilização, tomada da voz pelo grito. Conforme afirma Galeano, em As Veias Abertas da América
Latina, “teimosamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, reivindicando seu
direito natural de ter um lugar ao sol nessas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que
a quase todos negam (Galeano, 2012, p. 9).

118
É preciso avançar no reconhecimento do status de cidadania dessa população para que
então tenham seus direitos garantidos. É necessário atuar cada vez mais na organicidade para a
estruturação de um arranjo institucional intersetorial, que articule a política de saúde, a
seguridade social, o trabalho, a moradia, a educação e demais campos políticos. Essa é a
perspectiva defendida pela organização política da população em situação de rua, a fim de que,
instituída uma sociedade decente, fundamentada na perspectiva do cuidado como forma de
alcançar mais equidade, tenhamos maiores e melhores condições de atuar de forma preventiva,
para a conservação, e não para o reparo.

O olhar da vulnerabilidade não pode ser só da precariedade, mas também o da


resistência, organização, ampliação das capacidades. Em Pedagogia do Oprimido, Freire justifica
que todo processo de humanização exige o reconhecimento da desumanização. Ele afirma que a
vocação do homem é para a humanização, mas as injustiças, a exploração, a violência e a opressão
indicam o caminho da desumanização, tornando-os acríticos, conformados com a própria sorte,
com uma visão fatalista, como se tivessem suas identidades fixas, predeterminadas pela
sociedade e incapazes de atuarem como transformadores da mesma.

Principal exemplo do processo de humanização e de tomada da voz pelo grito é o MNPR,


criado, no ano de 2010, a partir de um projeto que visava o fortalecimento desse grupo
populacional. A perspectiva de organização já estava posta anos antes, a partir de eventos e
campos específicos, a exemplo do assassinato do índio Galdino, em 1997, em Brasília, com o corpo
queimado por jovens de classe média, que o “confundiram” com um “mendigo”. Faz parte dessa
história a luta, no ano de 2001, a mobilização “dos moradores de rua de São Paulo” quando
participaram, em Brasília, da “I Marcha Nacional da População de Rua”. A I Marcha tinha o objetivo
de apresentar a toda sociedade e às autoridades responsáveis pela implantação das políticas
públicas as reivindicações e propostas, dentre as quais se destacava um anteprojeto de lei, que
regulamenta a profissão dos catadores de materiais recicláveis.

Destacamos ainda, como parte desse processo de humanização, a organização, por meio
de pessoas em situação (ou trajetória de rua), a partir da coleta de materiais recicláveis, no ano
de 2005, em Belo Horizonte/MG, do Festival Lixo e Cidadania e do 1º Congresso Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis. Faz parte dessa história, no ano de 2003, início do governo
Lula, ocasião em que foram realizadas as primeiras discussões entre os catadores de materiais
recicláveis acerca do Programa Fome Zero, ligado ao Ministério Extraordinário de Segurança
Alimentar (MESA). É a partir desse ano também que o presidente Lula começa a se encontrar com
a população em situação de rua e catadores de material reciclável, por ocasião do Natal Solidário
em São Paulo.

119
Faz parte dessa história, setembro de 2004, ocasião em que foi realizado o “III Festival
Lixo e Cidadania”, em Belo Horizonte, e foi entregue uma Carta da população em situação de rua,
pedindo políticas públicas, para o então ministro Patrus Ananias, do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).

Faz parte dessa história, no ano de 2018, quando surge, no estado de Pernambuco, um
grupo formado por pessoas em situação de rua, trabalhadores/as do SUAS e representantes da
pastoral do povo de rua, que inicia um processo de construção e fortalecimento de caminhos de
luta pela garantia dos direitos dos rualizantes, denominado coletivo Maria Lúcia Santos Pereira da
Silva. Assim como também, o ano de 2019 marca de vez a luta pelas pessoas com a instituição do
Comitê Intersetorial de Políticas Públicas para a população em situação de rua em Pernambuco e
Recife. Faz parte dessa história o Censo Pop rua Recife, realizado em 2022, com divulgação em
2023.

Apontamos para este censo a dimensão da proteção e do cuidado. Para Sposati, a “ideia
de proteção social exige forte mudança na organização das atenções, pois implica superar a
concepção de que se atua nas situações só depois de instaladas, isto é, depois que ocorre uma
desproteção”. No campo das políticas públicas, precisamos cada vez mais nos alinhar com a
política de defesa de direitos humanos, uma política de cuidado; defender a vida,
independentemente de quaisquer características do sujeito, mas considerando cada uma dessas
características, no sentido de reconhecimento de como as diferenças operam desigualdades;
evitar as formas de agressão à vida, em sentido social e ético; e compreender, portanto, que a
assistência social se coloca no campo da defesa da vida relacional.

É essencial, necessária e urgente a produção de dados com regularidade para que seja
possível propor oportunidades efetivas de melhores condições de vida e acesso para esse grupo
populacional. O “apagão estatístico” sobre este segmento é uma das formas de perpetuação
desse lugar de subalternidade. É importante considerar que a feitura deste e de outros censos,
na história recente do Brasil, é a evidência irrefutável de que é possível recensear a população em
situação de rua, que existe, cotidianamente resiste e é deliberadamente “invisibilizada” em sua
condição de cidadãos/ãs brasileiros/as.

É preciso pensar os censos como instrumento para aprimoramento no campo da gestão


e implementação das políticas públicas, acesso a direitos, mas, também, como instrumento
pedagógico para letramento político e cidadão da sociedade e suas instituições, tensionando
preconceitos, estigmas, mitos e colocando à luz do dia aquilo que buscamos, a todo custo e por
tanto tempo na história, esconder. As pesquisas censitárias, por meio de dados, permitem

120
aproximar as pessoas do tema da vida nas ruas, de suas variáveis e de suas dimensões. Quase
todas elas estão relacionadas às expressões de uma sociedade desigual, que faz com que algumas
pessoas sejam levadas a viver nas ruas. É importante considerar que não se trata de um grupo
homogêneo, ainda que guarde aproximações bastante significativas, mas a conjuntura dos
tempos históricos também impacta sobre o perfil das pessoas em situação de rua.

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ANEXOS

ANEXO 1

Pontos de concentração da população em situação de rua previamente mapeados para o


trabalho de recenseamento

125
ANEXO 2

Formulário de recenseamento

126
ANEXO 3

Formulário da pesquisa amostral sociodemográfica

127
128
129
130
131
132
133
134
135
ANEXO 4

Concentração da população em situação de rua no Recife

136
137

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