Relatóriofinal v.2 (Ingrid Farias)
Relatóriofinal v.2 (Ingrid Farias)
Relatóriofinal v.2 (Ingrid Farias)
e-mail do aluno:[email protected]
Assinatura do Aluno
Assinatura do Orientador
DIRETORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
A partir das discussões de poder e suas funções dentro do Estado Democrático de Direito,
pretende-se compreender como o Movimento Feminino pela Anistia figura um símbolo de
resistência contra um sistema autoritário e qual a relação dessa representação com a política do
esquecimento. Para isso, utilizar-se-á o aporte das teorias decoloniais, entrelaçando-o as formas
de governança da época. O objetivo é entender como durante o desenvolvimento da nova
democracia foram criadas políticas de esquecimento, tanto com as práticas autorizadas pelo
Estado quanto pelos movimentos de resistência, com um objetivo específico. Para tanto, a
análise recairá sobre a Lei da Anistia (Lei nº 6.683/1979) a fim de esclarecer a partir da norma,
ou seja, no contexto fático jurídico, como os mecanismos mencionados se firmaram. A
colonialidade forma o novo Estado democrático de Direito e durante a construção e lutas do
MFPA é possível observar os efeitos dos mecanismos de poder que foram mantidos e
continuaram inabaláveis sendo responsáveis, dentre outros fatores, para que a transição não seja
de fato uma redemocratização do sistema, mas sim uma nova roupagem democrática que
mascara instituições de poder coloniais e por sequência, autoritárias. Dentre os achados da
pesquisa, pretende-se questionar a formação do modelo jurídico-político desse Estado
instaurado e observar como as decisões e memórias daquela época se perpetuam e promovem
consequências até hoje nas instituições democráticas, reprimindo sempre aqueles intitulados
como marginalizados que não fazem parte da cultura do homem branco, é o maior objetivo da
discussão.
Introdução/justificativa
“Imagine um país que ganhou o seu nome de uma árvore, Pau- Brasil. Sua tinta
vermelha a levou a beira da extinção, só ficou o nome. Onde mais escravos morriam
do que nasciam, era mais barato importar outro da África. Onde todas as rebeliões
foram brutalmente esmagadas e a República veio através de um Golpe Militar. Um
país que depois de 21 anos de Ditadura reestabeleceu sua Democracia e se tornou uma
inspiração para muitas partes do Mundo. Parecia que o Brasil tinha quebrado a sua
maldição, mas aqui estamos, com uma presidente destituída, um presidente preso e o
país avançando rapidamente rumo ao seu passado autoritário. Hoje enquanto sinto o
chão se abrir embaixo dos meus pés, temo que a nossa democracia tenha sido apenas
um sonho efêmero”
Muitas coisas se alteraram desde 2019, quando esse texto foi publicado. A lembrança de uma
presidenta destituída se tornou temporária. O presidente preso foi solto e já não mais nos
encontramos rumo a um caminho autoritário. Agora estamos na linha de chegada. Texto que
introduz o filme “Democracia em Vertigem” de Petra Costa (2019) elucida de forma muito
clara o que pretendo trazer no presente trabalho de pesquisa: o nosso passado manchado de
vermelho sangue que não gosta de ser rememorado, mas que independente disso continua a
ecoar a cada dia de forma mais expressiva. É nesse sentido que o presente trabalho tem a
expectativa de recontar uma história. O Brasil não ficou famoso por ser um bom contador de
suas próprias histórias. Desde pequenos, logo no primeiro ano do ensino fundamental
aprendemos que existem alguns tipos de narrador. O primeiro é o que se propõe ser o
personagem, que participa ativamente da história como integrante dela. O segundo narrador é
observador, que apenas pretende narrar os fatos sem nenhuma interferência a partir de uma
perspectiva neutra. O terceiro e último tipo de narrador é onisciente que pretende ser Deus da
história, ele conhece todos os elementos internos e externos da narrativa propondo-se a contá-
los ao leitor de forma fiel. Dado ao que se propões discutir, o Brasil foi capaz de criar um novo
tipo de narrativa, com todos os elementos em jogo ele preferiu contar uma única versão, a sua
versão, a versão deles, a versão do Estado Soberano. Toda e qualquer narração que se difere é
a desviante. Quero nesse trabalho então ser digressiva caros leitores. A versão feminina em sua
essência é a subversiva.
A memória de poder no Brasil é antiga, e ela se inicia em 1500 com a invasão às terras de
Abya Yala (ALMEIDA; MANTELLI, 2021). Tem seu turno marcado pela invasão as terras
latino-americanas empunhando a ferro a centralidade do saber. “A América constitui-se como
o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso,
como a primeira id-entidade da modernidade”(QUIJANO, 2000, p.117). Esse poder tem cor,
tem raça, tem forma, nacionalidade e endereço. Aqueles que o detinham o impuseram, se
disseminando de forma que a modernidade e por tanto a colonialidade (MIGNOLO, 2017)
trouxe para os países colonizados pela Europa uma hegemonia, um padrão, o eurocêntrico. Essa
autoridade, tão pouco questionada, presumida pré-existente foi titulada pelos próprios
detentores como a mais avançada, aquele que possui o “saber”, firmando dessa maneira além
de um padrão uma superioridade cultural. Conforme Quijano (2013, p. 69):
O conceito de poder não é teorizado sozinho, com ele outros termos pela sua própria
natureza o acompanham, como o de padrão. Alguém que detém o poder retém consigo uma
série de características que os qualificam para ser detentor desse predicado. Não
necessariamente esses adjetivos se formam com espontaneidade. No caso de um mundo
globalizado essa característica é marcada por aquele que detém capital.
Essa identidade nacional construída por eles e mantida por nós é um elemento que serve
ao controle de grupos sociais que representam uma ameaça à estrutura hegemônica de poder e
que, para se manter, produz silenciamentos e massacres de qualquer identidade considerada
“diversa” da propagada como a única possível. (SOUSA JUNIOR; FONSECA, 2017, p.2884
apud LACERDA, 2014, p. 57). Essa afirmação exemplifica claramente como decorreu as
relações de poder no período da Ditadura Militar, mostrando como a figura do pensamento
contrário a hegemonia ideológica, política e social foi procurada, torturada e linchada com o
objetivo de ser exterminada. Dia 1º de abril de 1964, o dia que durou 21 anos, tendo seu fim
no ano de 1985. Período marcado pelo autoritarismo, centralização do poder, hierarquização,
repressão e violação dos direitos humanos, civis, políticos e constitucionais. Quando recortamos
essa análise para a figura da mulher nesse período percebemos que as violações ultrapassam
suas intenções para uma questão de gênero, de forma que subversivos já eram penalizados se
fossem mulheres subversivas a repressão e violação atingia um novo patamar, de penalização
por ser mulher e por não seguir as ordens do Estado autoritário. (COLLING; JUNIOR, 2019).
Para que todas essas colisões de narrativas sejam elucidas, permita-me voltar anos antes
desse período histórico para explicar como a figura feminina era vista e representada durante
os anos dourados (década de 50 e 60) para que possamos entender de que local, sociedade e
época estamos tratando. Tal regressão é de fato importante para que possa se chegar à conclusão
final de que o ato da mulher se emancipar é um ato democrático e que foi de extrema
importância para instaurar um Estado Democrático de Direito.
Os anos dourados no Brasil, mostram como o ideário do que era ser uma mulher
brasileira carrega uma herança do Brasil Colônia. Apesar das grandes modernizações ao mundo
industrial e operário, trazendo avanços nas conquistas das mulheres, o embate ainda se via
nitidamente claro, afirmando que esse não era o lugar da mulher, mas sim o do homem. Nesse
sentido, esclarece Carla Pinsky (2015):
Como hoje, naquela época os veículos midiáticos tiveram uma atuação grandiosa na
legitimação desse papel e permanência dos status quo trazendo em suas colunas e jornais as
formas de promoção “dos valores de classe, raça e gênero dominantes de sua época”
(BASSANEZI, 2004, p.509). Entende-se que esse imaginário não é uma marca dos anos 50 ou
60, mas sim iniciados em 1500, quando começa o projeto da colonização brasileira e
posteriormente da modernização.
Para compreendermos essas relações de dominação e submissão em que o corpo da
mulher foi alocado, é necessário entender que a colonialidade do poder teorizada por Quijano
(2000) trata sobre relações conflituosas em que há uma hierarquização dos papéis pautados na
ideia de raça e gênero. O poder está estruturado em formas de dominação, exploração e conflitos
entre figuras sociais, que exercem controle sobre 4 eixos essenciais para a vida humana, que
são “sexo, trabalho, autoridade coletiva e subjetividade/intersubjetividade, e recursos e
produtos” (apud LUGONS,2008). O poder, ainda, está inserido dentro de um sistema capitalista
e portando um poder capitalista, que faz ligação com outras duas esferas: a colonialidade do
poder e a modernidade. Essas por sua vez, são responsáveis pelas disputas de controle de cada
segmento da vida humana. Dessa forma, as lutas que marcam o controle do “acesso sexual, seus
recursos e produtos” (QUIJANO 2001 apud LUGONS,2008) irão definir a esfera de
sexo/gênero e, portanto, estabelecer os padrões e regras que favorecem o controle das vidas e
dos corpos. Quem detém esse controle em uma sociedade marcada pelos ensinamentos da
colônia é o homem branco, que na sua figura centraliza as narrativas e poder. Na mesma linha,
ressalta Teles (1993) que:
Em contrapartida a autora Ana Rita Fonteles Duarte (2005) explica que outros 3 fatores
são importantes para entendermos a conquista de espaço dessas mulheres, sendo eles: (i) O
plano de fundo: O cenário da construção de gênero relevante do período; (ii) A ideia de que a
luta da mulher passa ser uma luta geral; (iii) resposta teórica de mecanismos criados por regimes
autoritários. Analisando o último ponto levantado, podemos dizer que de acordo com Capdevila
(2001), as ditaduras pela sua natureza autoritária em que ocorre a quebra dos instrumentos de
interlocução entre o Estado e a sociedade, faz com que surjam novos protagonistas,
responsáveis por restabelecer essas ferramentas. Essa nova forma, instaurada pelo regime não
se valem mais as hierarquias institucionais, sexo, idade e títulos, por mais que eles ainda
existam, ocorre uma ruptura no foco das lutas que antes eram difusas, agora são concentradas
na figura do Estado.
Dentro desse processo, da construção do novo imaginário das mulheres brasileiras,
percebe-se que as violações a elas se dão por um fator comum, propiciando a fomentação da
consciência do coletivo e do seu estado perante a sociedade, ou seja, levando em conta as diárias
opressões impostas ao corpo da mulher, entendeu-se que, para além das repressões individuais
a sua existência, havia as mesmas violações com todas as mulheres, em níveis diferentes de
reprimenda, mas ocorriam. Dessa forma, a resistência deveria surgir de um espaço coletivo.
Ultrapassando essa ideia, a importância se revela ao entender que o surgimento de um
movimento de mulheres que se unem pelo coletivo e posteriormente pela consolidação de um
lugar democrático, criando a autonomia de corpo e mente da mulher está diretamente ligado em
viver e em existir um regime democrático. Nesse sentido:
Esse novo coletivo elucida um símbolo de resistência protagonizado por mulheres que
meio a repressão faz surgir a revolução. A visão de um corpo não político, incapaz de lutar e
reivindicar, mas sim, passível de obedecer, se altera, e por essa concepção a mulher foi
considerada uma figura duplamente subversiva, primeiro por ser quem ela é e segundo pelo que
ela faz. (COLLING; JUNIOR, 2019). Essa ruptura do imaginário criado pela estrutura colonial
começa a surgir dentro das casas, dos bairros, das reuniões, dentro das reivindicações dessas
mulheres que percebem que sua dor não é individual, mas sim compartilhada e mecanicamente
repetida entre elas. Durante a luta feminina, foi perceptível a criação de uma identidade oposta
à ideologia autoritária. Se formou dois polos, criou-se aquilo que não se queria ser, uma
identidade em repulsa a aquela que se implantou. Nesse sentido, Paula (2016, p. 70) afirma
que:
Ao tratar de identidade nos movimentos sociais, estamos nos referindo a um processo
que envolve tanto à identificação de seus participantes a mesma causa como ao fato
dessa causa representar resistência a uma lógica de dominação. ( PAULA, 2016, p.70)
Com a mobilização de mães esposas, amigas, parentes que possuíam laços próximos
aos mortos e exilados pela Ditadura o processo emancipatório se inicia. Assim identifica
Goldberg (1989) que a reunião de mulheres, identificadas enquanto um grupo consciente que
lutaria contra as consequências feitas pelo regime ditatorial em um momento de grande
acirramento jurídico político criado pelo AI-5 em 1968 “fizeram-no num empreendimento de
tipo salvador, fazendo valer justamente suas identidades legitimadas e reconhecidas
socialmente de mães, para protestar contra a violência das ações policiais dirigidas contra
estudantes e operários”. Posteriormente, para a organização dessa nova movimentação ocorre
a criação de comissões, reuniões e assembleias que fortaleceram a resistência e a comunicação
entre as integrantes. Com a sua expansão, novas mulheres que não faziam parte do núcleo
familiar ou que era marcado por relações afetivas começam a surgir. Em um primeiro momento
portanto, o que se revelou não foi uma luta a favor da democracia, mas sim uma reivindicação
que transparecia a relação afetiva com os afetados do regime (DUARTE,2007). A participação,
ou seja, a ocupação do espaço das mulheres na política institucional no país foi e ainda é
marcada pelas oligarquias familiares, que se perpetuam no poder (AVELAR, 2001; BLAY,
1981), mas o que não significa sua deslegitimidade. Entende-se que adentrar esses novos
lugares que lhe foram negados (pelo único e exclusivo feito de ser mulher) é um ato
revolucionário, justamente por ser conquistado pelo mesmo fato que fez com que ela se
afastasse desse local, ou seja, suas relações afetivas a nível privado e familiar, elucidando ainda
mais a razão de ser um ato emancipatório. Sobre isso que se trata os jogos dos gêneros entendida
por Butler (2003) como performance de gênero, em que a mulher, entendendo o espaço
designado a ela por terceiros, instrumentaliza-o para ser utilizado ao seu favor, para conquistar
espaço, fala, respeito e protagonizar a luta que até então tinha a figura masculina como centro
de poder. Na mesma linha Ana Rita Fonteles Duarte explica que:
As mulheres, pouco presentes no espaço político, fazem a interface entre o
privado e o público, em contato direto com o agressor. Acabam saindo da defesa
exclusiva do lar e passam a liderar
movimentos de defesa coletiva,o que demanda ação política maior: a metamorfose
de uma reivindicação arcaica em movimento de protesto moderno. (DUARTE,2009,
p.23)
Esse trecho faz parte do Manifesto da Mulher Brasileira, escrito por Therezinha Zerbini,
que transcorreu todo o território brasileiro, “de norte a sul, com adesão de estudantes,
advogados e outros profissionais liberais, mães de família e trabalhadoras” (TELES,1993, p.
82) inaugurando o Movimento Feminino pela Anistia. O Ano Internacional da Mulher,
promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU), marca o início formal do Movimento.
É notório a importância da organização dentro do reconhecimento do Movimento das mulheres,
tanto com a visibilidade quanto com a legitimidade da ação. Como explica Sarti (1998):
De acordo com Maria Almeida Teles (1993) Como a repressão política ocorria nas
fábricas e sindicatos, onde a vigilância do Estado era mais ativa, as periferias se mostram
espaços de resistência, essa estimulada pelas próprias mulheres que viviam nesses bairros. Essa
perspectiva desmistifica o fato de que só mulheres intelectuais, formadas, acadêmicas e
profissionais se integraram na luta contra o regime. A resistência operou em diversos locais e
momentos, sendo suscitada não só pela classe média, mas pelas classes inferiores também.
Essas mulheres, mencionavam o “governo distante do povo” durante suas reuniões de tricô,
onde conseguiam debater sobre os assuntos políticos, sanitários, econômicos e políticas de
educação, mesmo que de forma incipiente, concluindo que o Estado não era capaz de atender
suas necessidades, sendo então reivindicadoras ativas dentro dos bairros e reuniões,
aumentando o ingresso de mulheres no MFPA. No mesmo sentido ressalta Sarti (1998) que:
A ONU na visão da autora, foi um “excelente instrumento legal para fazer algo público,
fora dos pequenos círculos das ações clandestinas”. Para Moraes (1985) o Ano internacional da
Mulher foi:
Um ponto de referência fundamental para a compreensão do movimento de mulheres
brasileiras por ter propiciado um espaço de discussão e organização numa conjuntura
política marcada pelo cerceamento das liberdades democráticas. (MORAES, 1985, p.
71)
Em meio a essas constatações por mim feitas até agora, chego à pergunta tema do
presente trabalho, que é entender qual é a relação da representação feminina exercida pelo
MFPA com a política do esquecimento? Bom, a resposta será desmembrada em alguns tópicos,
mas já antecipo que o Movimento Feminino pela Anistia, entendido aqui por um movimento
em sua essência democrático não é rememorado, assim como como os episódios que passam
na ditadura também não o são e o nosso exemplo mais cabal é a própria lei de anistia (nº
6.683/1979) que até hoje não faz questão de ser ressignificada e repensada. Isto significa que ,
nós não rememoramos nossos episódios sombrios que constituem a Ditadura Militar Brasileira,
quase admitindo que ele nem existiu, e não rememoramos a história de mulheres que em meio
a repressão criam o próprio conceito de democracia dentro de um Movimento, porque ele
simboliza o caminho subversivo . O que estamos deixando passar? Acredito que a resposta seja
a política do esquecimento. Que para além de não lembrar implica nessa ação de forma repetida
e sistematizada. Implica em negar as mortes, não se responsabilizar por elas e fingir que elas
nunca ocorreram. Implicam em nunca saber qual foi de fato a verdade por mais que já tenhamos
instaurado uma comissão para que ela viesse à tona. Implicam, na saudação ao torturador Carlos
Alberto Brilhante Ustra, pelo atual Presidente da República. Temos deixados passar nossas
heranças coloniais.
Para que todas essas questões sejam identificadas, primeiro é importante compreender
o que entendemos como memória e quais são as acepções cientificas que circundam esse termo.
Os estudos sobre a Memória foram iniciados por volta do século XIX, e nesse primeiro
momento, eram preocupações da Filosofia e Psicologia. Lembrar, aqui, era entendido e
estudado de forma individualizada, isto é, o ato e capacidade de um ser humano lembrar e criar
memórias. Com os estudos de Maurice Halbwachs, a memória começa a ser entendida como
um elemento coletivo que transpassa a vivência de apenas um ser para ocupar e influenciar
ambientes maiores e mais amplos. Nas palavras de Enzo Bello e Eric Conceição (2017)
“Halbwachs (1991) identifica na memória um processo social de reconstrução do passado
vivido e experimentado por determinado grupo, comunidade ou sociedade.” (p.82). Na busca
de expandir esses entendimentos, criou-se as “teorias Políticas da memória” contendo uma
linguagem marxista em que a ideia principal, assim como de Marx, eram que as memórias
estavam sujeitas as relações de dominação imperantes na sociedade de classes, surge então
como uma “ delimitação da memória como instrumento de dominação pelos regimes políticos”
(BELLO; CONCEIÇÃO, 2017, p.83). O autor mais conhecido dessa vertente é Eric Hobsbawm
(2012), entende em sua concepção de memória que essa é fruto de uma narrativa divulgada pela
esfera política que vende a memória oficial, entendendo que toda e qualquer que destoe dessa
não é válida ou constituída como memória. As nossas memórias coletivas, ou seja, aqueles que
surgem a partir da interlocução com a sociedade e história, são memórias “inventadas”, isso
porque elas surgem de narrativas controladas e manipuladas que não correspondem com o que
ocorre no plano real. Continuando nossa trajetória para entender a que memória buscamos, a
abordagem da memória popular é essencial para compreenderemos que não podemos negar as
memórias não oficiais. E nesse sentido o conceito de contra memória (FOUCAULT,1966)
marca de forma clara as divergentes e múltiplas memórias que instauram novas narrativas as
hegemônicas. De acordo com Lizete Quelha de Souza (2012):
Portanto inexiste uma verdade única, o que torna a disputa pela memória “um cenário
típico e dicotômico da resistência e negociação de significados” (SOUZA, pag. 84). Desse
modo estimular a produção de contra memória é reconstruir as representações do pretérito que
foram sistematicamente silenciadas e marginalizadas por destoarem daquelas denominadas
como oficiais.
Ainda nessa ideia, a ONU declara que a memória coletiva está ligada ao Direito à
Verdade, o que permite que a sociedade tenha conhecimento da sua própria história. “[...] a
preservação de arquivos e de outra documentação alusiva às violações dos direitos humanos é
crucial para assegurar um registo histórico verdadeiro e a preserva o da
memória”(UNRIC,20217) .
A justiça de transição e os estudos delas decorrentes tem assumido um papel muito
importante nas discussões de retomada ao passado histórico brasileiro com o objetivo de
esclarecer as verdades de forma que elas se tornem universais e reconhecidas por toda a
sociedade. Esse, também é a finalidade da Comissão Nacional da Verdade criada no final de
2011 no governo da presidenta Dilma Rousseff. Diversos estudos sobre a Justiça de Transição
têm destacado o papel constitutivo e seletivo do direito e das instituições judiciais e quase
judiciais na construção da memória e no estabelecimento de medidas de justiça relativas às
atrocidades cometidas no passado (TEITEL, MARKOVITS, BOOTH, BILSKY, apud
MCDOWELL, 2010). De acordo com Zilda Lokoi, tratou-se de uma “transição metaforizada”,
indicativa de uma retórica de mudanças (BAUER, 2014, p.153).
É importante perceber os limites dessas comissões e como elas em parte não atingem
seu objetivo indireto de responsabilização dos crimes cometidos, pensando que seu
desenvolvimento ocorreu a partir da Lei da Anistia de 1979 promulgada aqui no Brasil. Não há
de fato um culpado, ou os culpados, não se fala em nomes, pelo contrário, surge a ideia de
perdão pelos crimes políticos, perdão concedido pelo Estado. Sabe-se que Direito não se
confunde com as inúmeras teorizações de justiça, mas, pergunta-se por que ter uma lei
simbólica, que teria um propósito justo se tornar apenas mais um aparato estatal para a exclusão
da sua responsabilidade.
A criação da Lei da Anistia que em sua essência continha outro propósito, promove um
silêncio sobre o período da Ditadura Militar, como já questionado aqui, como se esse episódio
fosse digno apenas de esquecimento. É nessa linha que Martinez (2014) assevera:
[...] considerar a violência ocorrida no período de ditadura militar como algo não dito,
subliminar, por meio de um silêncio oficial do Estado, configura-se como tentativa de
induzimento de um reconhecimento de inexistência de um período histórico,
desconsiderando todas as pessoas que se doaram e deram sua vida na formação da
identidade e da democracia de seu país (MARTINEZ,2014,pag.74 apud ALTMAYER
,2017, pag.5) .
A afirmação de que precisamos voltar ao passado para que possamos entender a situação
atual sociopolítica brasileira é uma necessidade urgente. O processo de anistia, de acordo com
Ricoeur (2010) “Trata-se mesmo de um esquecimento jurídico limitado, embora de vasto
alcance, na medida em que a cessação dos processos equivale a apagar a memória em sua
expressão de atestação e a dizer que nada ocorreu” (p.462). O resgate a memória e aqui no
presente trabalho o resgate a Lei de Anistia visa a recomposição do sentimento de justiça e a
busca pela construção de um Estado Democrático de Direito.
Pensando nessas estratégias é importante ainda tratar do papel que o judiciário teve para
a política do esquecimento dentro do Regime Militar. Durante todo o processo da ditadura e
posteriormente no período da redemocratização, o papel do Direito é de legitimação, tornar o
discurso válido e vigente, e claramente utilizado nesse período como uma forma de caução. Os
atos institucionais constituíram a forma legal, a prática, escrita e imposta na lei de como esse
poder poderia ter algum tipo de segurança jurídica.
Essas relações são importantes para entender como se faz a memória dessas mulheres
e porque isso se torna um problema quando pensamos na construção de um Estado democrático
de Direito. O Movimento feminino pela anistia, dentre inúmeras formas de resistência que se
criaram durante período, é um exemplo que elucida como a política do esquecimento pode ser
1
De acordo com Hall (2000), esse fenômeno marca o ponto de encontro entre discursos e práticas que tentam nos
interpelar, falar ou convocar para assumir lugares como sujeitos sociais, em discursos determinados, e processos
que produzem subjetividades que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar. Ou seja, o momento em
que os caminhos da vida privada e da vida pública se cruzam registram essa mutação indenitária que cede espaço
para novos lugares de fala e construção
eficaz em não alterar as estruturas autoritárias, deixadas pela colônia, criando consequências
nos frutos democráticos de hoje e na fácil criação de instrumentos que altere essa ordem como
o autoritarismo furtivo. A presente análise, apesar de se restringir ao Movimento feminino pode
ser utilizada/replicada em outros movimentos que lutam contra a herança colonial porque ela
não se foi, o período da redemocratização e a formação do novo Estado de Direito não foi capaz
de promover quebras a essas heranças. O direito, por integrar o campo social da história se vê
responsabilizado em todas as partes desse processo.
Diante do exposto, entende-se que é importante tomar conhecimento das relações de poder
de uma época, e isso significa aspirar suas origens e suas consequências, porque elas tendem a
se reproduzir e de forma direta produzem consequências na atualidade. Se indagar sobre a
estrutura de poder, como ela se mantém, porque a partir dela há a exclusão de determinados
grupos sociais, como esse confronto pode afetar o mundo jurídico, como essas relações se
desenvolveram em um regime autoritário governado por militares e como a sociedade e as
instituições mostrou um resultado alternativo é de extrema importância para a construção de
uma sociedade consciente que repugna esses atos e não pretende reproduzi-los. É preciso
entender problemas, para que se possa resolvê-los.
Objetivos
Por meio da análise da relação jurídica entre a aplicação da norma vigente e a estruturação
histórica do direito, em termos decoloniais, o projeto visa pesquisar e entender a relação entre
as a políticas do esquecimento, a redemocratização brasileira e o Movimento feminino pela
Anistia elucidando em que momento elas se convergem como uma resposta para as falhas no
regime democrático. Em termos específicos, pretende-se:
e. Entender por que a memória da ditadura se manter ativa é tão importante para a
construção de uma sociedade atual;
g. Identificar como a Lei de Anistia pode ser uma isenção da responsabilidade do Estado
através da política do esquecimento
h. Entender em que medida as memórias de resistência das mulheres se contrapõem as
memórias oficiais.
Metodologia/Método
O método utilizado pela pesquisa será o do caso alargado (Santos, 1983). É um método
de pesquisa que consegue investigar os pontos mais importantes para que o resultado do estudo
seja atingido. Ele possibilita ter uma maior profundidade de pesquisa e compreensão para além
do caso investigado, já que pode ser observado uma repetição de estruturas de pensamento. De
acordo com Boaventura de Sousa Santos (1983), este método consiste em alargar a
compreensão da realidade através de um caso particular estudado e estendendo as conclusões
desse estudo a casos mais amplos. Desta forma, o método se diferencia do estudo de caso
convencional quando amplia as conclusões da pesquisa alargando os fatos, ao possibilitar
comparar a realidade local com uma outra, em outro lugar, mas com as mesmas condições
sociais, propiciando conclusões mais profundas do caso estudado. É importante ressaltar que a
metodologia não se trata de uma generalização, mas sim de encontrar padrões e elementos
estruturais que se repetem podendo localizar casos não estudados que são semelhantes aos já
estudados. O tipo de abordagem será qualitativa pós-positivista (Prasad) no qual o colonialismo
enquanto estudo faz parte, que questiona as formas padronizadas e tradicionais de estrutura,
resistindo a forma como a modernidade perpetua modelos antigos de ideias principalmente em
relação a colonização dos arranjos sociais e dessa forma consegue trazer vozes que foram
silenciadas durante o processo.
Me parece que o Brasil tem caminhado, cantado e seguindo a canção. Não sei ao certo
dizer se nossa democracia tenha sido um sonho efêmero, também não sei se ainda é possível
falar em democracia dentro do contexto brasileiro atual. O que posso com certeza afirmar são
os insurgentes, assim como o Movimento Feminino pela Anistia, surgem em meio ao caos das
violações do direito a vida, a dignidade da pessoa humana, dos direitos civis e políticos, para
ascender em espaços que não lhe foram designados e creio ser esse o verdadeiro entendimento
sobre Democracia.
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, Mary del (org.). História das
Mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004. p. 508-535.
BAUER, Caroline Silveira. Quanta verdade o Brasil suportará? Uma análise das políticas de
memória e de reparação implementadas no Brasil em relação a ditadura civil-militar.
Dimensões - Revista de História da Ufes, Espírito Santo, v. 32, p. 148-169, 2014.
CAPDEVILA, Luc. Résistance civile et jeux de genre. Annales de Bretagne et des Pays de
L´Ouest.Rennes: Presses Universitaires de Rennes, tome 108, número 2, 2001, p.105-106
CUNHA, Marcelo Perini Peralta. O PIXO COMO ATO POLÍTICO. 2019. 142 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de Arquitetura, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019. Cap. 3.
Citação com autor incluído no texto: Cunha (2019)
DELLA COLLETA, Ricardo. U fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições',.
2021. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/ou-
fazemos-eleicoes-limpas-no-brasil-ou-nao-temos-eleicoes-diz-bolsonaro-em-nova-
ameaca.shtml. Acesso em: 25 jul. 2021.
DUARTE, Ana Rita Fonteles. Em guarda contra a repressão: as mulheres e os movimentos de
resistência à ditadura na América Latina. Anais do XXIV Simpósio Nacional de História,
2007.
FARIA, Tales; LIMA, Wilson. Ditadura promoveu queima de arquivo em série, diz
Guerra. Fórum Verdade. Disponível em:
http://www.forumverdade.ufpr.br/blog/2012/05/10/ditadura-promoveu-queima-de-arquivo-
em-serie-diz-guerra/. Acesso em: 17 jan. 2021.
GABRECHT, Ana; PEREIRA, Valter Pires; OLIVEIRA, Ueber José de. A ditadura militar
(1964-
1985): os “anos de chumbo”. In: PEREIRA, Valter Pires; MARVILLA, Miguel (org.).
Ditaduras não são eternas: memórias da resistência ao golpe de 1964, no espírito santo.
MEMÓRIAS DA
RESISTÊNCIA AO GOLPE DE 1964, NO ESPÍRITO SANTO. Espírito Santo: Flor e Cultura,
2005. Cap. 1. p. 54-59
GOLDBERG, Anette. Tudo começou antes de 1975:: ideias inspiradas pelo estudo da gestação
e um feminismo ⠼ bom para o brasil⠽. In: Relações Sociais de Gênero vs. Relações de Sexo.
São Paulo: Departamento de Sociologia- Área de Pós- Graduação, 1989. Cap. 1. p. 1-38.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Identidade e
diferença – a perspectiva dos estudos culturais.8 ed. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 2000.
LEÃO, Alice da Silva; ALMEIDA, Fabiane Katarina Fartolino de; SOUZA, Maria Clara Silva
de; LIMA, Rayra Torquato de. Mulheres, homossexuais, indígenas e negros na ditadura civil
militar: uma análise sobre as minorias no regime político. Das Amazônias, Rio Branco, v. 2,
n. 2, p. 46-58, dez. 2019.
LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula rasa, n. 09, p. 73-101, 2008.
MONTARDO, Ana Maria Portella. A política do esquecimento nas crônicas de Luís Fernando
Veríssimo. Ao pé da letra, v. 3, n. 1, p. 7-13, 2001.
MORAES, Maria Lygia Quartim de. Mulheres em movimento: o balanço da década da mulher
do ponto de vista do feminismo, das religiões e da política. In: Mulheres em movimento: o
balanço da década da mulher do ponto de vista do feminismo, das religiões e da política.
1985. p. 71-71.
MORAES, Maria Lygia Quartim de. A experiência feminista dos anos 70. Textos. Araraquara:
Faculdade de Ciências e Letras – Departamento de Sociologia, 1990,
O DIA que durou 21 anos. Direção de Camilo Tavares. Realização de João e Maria.doc. [s.i]:
Pequi Filmes, 2012. Son., color.
OLIVEIRA, Caroline. Participação em ato pró AI-5 isola Bolsonaro ainda mais e cresce
oposição ao governo. 2020. Brasil de Fato. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2020/04/20/repudio-a-participacao-de-bolsonaro-em-ato-pro-
ai-5-deixa-presidente-mais-isolado. Acesso em: 20 jul. 2021.
PAULA, Adriana das Graças de. Os Movimentos de Mulheres na Ditadura: uma análise sobre
as Mães da Praça de Maio (Argentina) e o Movimento Feminino pela Anistia (Brasil). In:
SIMPÓSIO INTERNACIONAL PENSAR E REPENSAR A AMÉRICA LATINA ANO:
2016, 2., 2016, São
Paulo. Anais [...] São Paulo: Prolam, 2016. p. 1-11.
PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos Dourados. In.: DEL PRIORE, Mary. História
das mulheres no Brasil. 10ª ed. São Paulo: Contexto, 2015.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003
POZZEBON, Marlei; PETRINI, Maira de Cassia (2013). Critérios para Condução e Avaliação
de Pesquisas Qualitativas de Natureza Crítico-Interpretativa. In: TAKAHASHI, Adiana Roseli
Wünsch. Pesquisa Qualitativa em Administração: fundamentos, métodos e usos no Brasil.
São Paulo: Atlas, 2013. p.51-72. ISBN é 978-85-224-7712-8. Abril 2013.
PRASAD, Pushkala. Crafting qualitative research: Beyond positivist traditions. Taylor &
Francis, 2005.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade del poder, eurocentrismo y América Latina. 2000, p. 117-
142.
RIO, Bom Dia. Deputado que fez vídeo com apologia ao AI-5 e defendeu destituição de
ministros do STF passa a noite detido na PF no Rio. 2021. G1 Notícias. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/02/17/deputado-que-fez-video-com-apologia-ao-ai-
5-e-defendeu-fechar-o-stf-passa-a-noite-detido-na-pf-no-rio.ghtml. Acesso em: 20 jul. 2021.
SARTI, Cynthia A. O Início do Feminismo sob a Ditadura no Brasil: O que ficou escondido.
XXI Congresso Internacional da LASA (Latin American Studies Association), The Palmer
House Hilton Hotel. Chicago, Illinois. Set. 1998. p. 1-12.
SCAVONE, Lucila. Democracia e feminismo no brasil. Estudos de Sociologia, v. 25, n. 48,
2020.
SCHMINK, Marianne, Women in the Brazilian “abertura” politics. Signs, 7 (1): 115-33, 1981.
SILVA, Teresa Cristina; DA MATA, Luana; SILVA, Vânia Nascimento. Movimento feminista
e violência contra mulher: conjunturas históricas e sociais. In: IV CONGRESSO NACIONAL
DA EDUCAÇÃO CONEDU. 2017.
SOUZA, Lizete Quelha de. Pensamento de Foucault e memória social: entre diferentes modos
de subjetivação e possíveis resistências. 2012.
TELES, Maria Amélia DE ALMEIDA. Breve história do feminismo no Brasil e outros
ensaios. Alameda Casa Editorial, 2018.