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A TÉCNICA NA FICÇÃO – Entender Ficção

A TÉCNICA NA FICÇÃO

Por Paulo Cantarelli / 11 de junho de 2018 / 6 minutos de leitura

Após várias postagens em nosso grupo do Facebook, não pude deixar


de notar que muita gente não vem lendo as recomendações
bibliográficas indicadas, que são bastante necessárias para que
saibamos o que estamos falando. É primordial estudarmos para
sabermos falar, isto é, utilizar os termos corretos para nos
expressarmos. Do contrário podemos falar algo que pode significar o
oposto do que realmente queremos dizer. Também é preciso entender
o que é dito aqui, internalizar esse conhecimento, estudando e
escrevendo, não apenas concordando ou discordando, mas testando
na prática. Na criação literária é preciso experimentar.
Nosso primeiro postulado é que não analisamos um livro pela
história. A função das técnicas (não da Técnica, com T maiúsculo, o
ofício do escritor) é a de ferramenta, o uso da linguagem para um fim.
Não é mais que um meio, sendo o fim a melhor forma de se
desenvolver o estilo do texto; em outras palavras, a melhor forma de
se contar uma história. Também em outra postagem falei que a
história não nos interessa, é verdade. Porém a história​é um dos cinco
pilares da narrativa, de acordo com o formalismo russo, sem os quais
não há literatura. São estes:

Personagem, História (antiga Estória ou Fábula), Narrador, Tempo e


Espaço (Para fins didáticos, lembrar PENTE). Então, por que devemos
esquecer a história? Ou melhor, o que é história? É o mesmo que
enredo?

História é uma série de eventos cronológicos puros, diz Forster.


Enredo é uma série de eventos cronológicos mais a causalidade. Por
exemplo: o rei morreu. Eis uma história. O rei morreu assassinado e a
rainha de suicidou de tristeza. Este é um enredo, uma história com
causa e efeito. Uma história é movida pela pergunta: e então?; o
enredo por: e por quê?; numa história queremos saber o que vem
depois, num enredo é preciso inteligência para se perguntar a causa
de algo. Histórias de Conan Doyle, Agatha Christie ou qualquer mero
escritor policial nos move pela curiosidade pura e simples sobre o que
vem a seguir. Os motivos do assassino são menos relevantes que o
assassinato. Já quando lemos “Angústia”, de Graciliano Ramos, ou
“Crime e Castigo”, de Dostoiévski, o menos importante é o
assassinato; nos é relevante a condição humana que fez culminar no
crime. O assassinato do pai, o velho Fíodor Pávlovich Karamazov, em
“Irmãos Karamazov” é uma metáfora para a morte de Deus, para a
discórdia entre os homens, não uma mera trama policial. Cito
Graciliano e Dostoiévski por pegarem um elemento de romance
policial, o crime, para fazerem uma metáfora do humano.
É nisto que consiste parte de nossas inquietações. Para Foster, o
enredo é como você apresenta a história, transformando-a em arte (o
que difere do conceito de trama). Já Raimundo Carrero usa a
nomenclatura “montagem”. Enredo ou montagem, no que proponho
aqui, é como nós transformamos a mais simples das histórias em
algo belo. Não se mede uma narrativa pela quantidade de peripécias
(vulgo plot-twist) ou pela grandiosidade da história, mas pela maneira
como autor a escreveu. Em suma: o que nos importa é como a
história é contada, não o quê ela conta. O tema e história são
conteúdos materiais, não literários, e por isso aspectos impróprios de
nossos estudos. Qualquer tema é interessante, basta se dedicar a ele
por tempo o suficiente.

Tirando a história, o que temos de belo para admirar na escrita? Qual


emoção estética resta? A história nos distrai de partes mais
profundas do processo criador. Já falei que dizer que um escritor é
um contador de histórias é uma regressão; somos isso e ao mesmo
tempo não somos mais: evoluímos. Um diretor de cinema, um
roteirista, quadrinista, compositor de óperas, todos eles contam
histórias, mas o que os diferencia? Não só a mídia, o meio em que
cada um trabalha, mas também a poética, as técnicas de criação. Um
escritor não vai contar uma história da mesma maneira que um
cineasta ou dramaturgo pelo simples motivo de que o meio é
diferente. Cada mídia tem sua poética. E quando tocamos em poética,
tocamos em Arte.

Mais do que o meio, a Técnica (Ofício) é o domínio da arte. Os


medievais tinham menos problemas em ver a relação entre técnica e
arte, já que para eles “arte é a reta razão do fazer” (definição que tem
um dedinho, ou todos os cinco, em Aristóteles). Nesse sentido, a
própria palavra Arte vem do latim, Ars, técnica. Ou seja, embora o
objeto da arte não seja a técnica em si, é impossível realizá-lo​sem
alguma técnica. É preciso ter muita intimidade com as técnicas,
conhecê-las bem. Não basta, para o escritor, saber um ou outro nome
de técnica, sem ter domínio sobre ela; do contrário estamos falando
de tecnicismos bestas, malabarismos verbais e exibicionismos.
Tomemos o exemplo dos artesãos: não basta conhecer os nomes a
as funções dos instrumentos do carpinteiro, para fazer um móvel tem
de se saber como utilizá-los. Em arte, não se cria sem domínio
técnico, poético, sem o ofício.

Com isso, as técnicas não significam um entendimento ou


interpretação dos críticos sobre o texto. Elas são os próprios meios
pelos quais o autor se utilizou para escrever. O uso delas é, na maior
parte das vezes, consciente, busca uma função e um efeito, mesmo
que haja algumas interpretações divergentes do sentido original ou
que o escritor não tenha total noção do alcance delas. Não é porque
nós não conseguimos identificar a técnica de um autor (ou até ele
mesmo) que ele não utilize nenhuma; e o uso de técnicas significa a
escolha e operação de muitas regras. É o que nos lembra Adler, em
“Como ler livros”:

“A propósito, nem todos entendem que ser uma artista consiste em


executar operações de acordo com regras. As pessoas apontam
para o pintor ou escultor altamente criativo e dizem: ‘ele não segue
regras. Está fazendo uma obra de arte totalmente original, algo que
nunca foi feito antes, algo para o qual não há regras’. Mas elas
falham ao não perceberem as regras que o artista está seguindo.
Não há regras finais, inquebráveis, estritamente falando, para se
fazer uma pintura ou escultura. Mas há regras que o pintor e
escultor precisam seguir, sob pena de não conseguirem fazer
aquilo que planejaram. Não importa a originalidade da obra de arte,
não importa se poucas ‘regras’ parecem ser obedecidas na
execução da obra — o que importa é que o artista tem que estar
apto a reproduzi-la. Essa é a arte — habilidade técnica — da qual
nos falando.”
Crítica não é o mesmo que criação. A criação literária é um processo
consciente de saber (ou procurar saber) a razão de ser em cada
palavra no texto, cada elemento da narrativa, enquanto se escreve. É
uma habilidade que demora tempo e experiência para se desenvolver,
junto à criação de parâmetros.

Portanto, chegamos a um segundo postulado: não avaliamos um livro


pelo sucesso comercial, mas pelo êxito; o quão bem o escritor
conseguiu atingir seu propósito. Isto ainda será tema de outras
discussões, mas por ora, tomemos o exemplo de Kafka: era um autor
anônimo quando morreu, vindo à posteridade como um grande gênio
pelo êxito que obteve. Ou Flaubert que era um escritor massacrado
pela crítica e quase caiu esquecimento após a morte, não fosse
Proust. Por outro lado, temos inúmeros best-sellers esquecidos por
não terem obtido êxito e, por isso, não são admirados por gerações
posteriores; não possuem a beleza necessária para perdurarem por si.

Podemos concluir que, para o escritor, dominar a técnica é dominar a


escrita.

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