Damo - Ah Eu Sou Gaucho
Damo - Ah Eu Sou Gaucho
Damo - Ah Eu Sou Gaucho
Armando Nogueira1
brasileiro, não é nova, e talvez tenha sido DaMatta (1982) o primeiro a lhe dar contornos
*
Nota: Este artigo é uma versão de um dos capítulos de minha dissertação de mestrado, defendida em abril de
1998 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, intitulada “Para o que der e vier: o
pertencimento clubístico no futebol brasileiro a partir do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e seus torcedores”.
1
“Silêncio no Maracanã”, O Estado de São Paulo, 25/5/97.
1
antropológicos. Segundo esse autor, o futebol promoveria a coesão nacional na medida em
detrimento dos outros, os ingleses — e por extensão os europeus —, de cujo esporte nos
diferenças étnicas e raciais. De acordo com essa segunda perspectiva, já não se poderia
“estilos de futebol”.
muitos outros, mais ou menos delimitados a partir de recortes étnicos e regionais, busco
neste ensaio identificar os elementos norteadores dos pontos de vista ético e estético
subjacentes aos referidos estilos. Não me interessa apresentar aqui qualquer espécie de
contestação ao que é dito pelos informantes, e sim confrontar e enunciar as conexões entre
no período de 1995 a 1997, quando o clube conquistou vários títulos nacionais e até
2
O Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense foi fundado em 1903 por jovens pertencentes às camadas média e alta, em
sua esmagadora maioria germanos ou descendentes, e desde os anos 10 rivaliza localmente com o Sport Club
Internacional, fundado por imigrantes paulistas e jovens de menor prestígio na sociedade porto-alegrense. Embora
o Inter só tenha admitido negros no time muitos anos depois de sua fundação, o fez cerca de duas décadas antes
do Grêmio. Essa diferença acentuou ainda mais a identificação já existente dos colorados como pertencentes ao
clube “do povo” e dos gremistas como sendo “de elite”. Ainda hoje essas diferenças são evocadas em cânticos e
xingamentos, embora pesquisas de opinião indiquem não existir qualquer diferença nesse sentido.
2
continentais.3 Exaltado por uns mas tripudiado por outros, o “estilo” do Grêmio tornou-se
até ministro de Estado se envolveram no debate. Afinal, era o Grêmio um time violento?
Por trás dessa pergunta simples, num primeiro momento circunscrita ao contexto do
do Brasil”.
Subjacente ao estilo, qualquer que seja, está a noção de ruptura. Ele serve para
demarcar, e não raro opor, determinadas visões de mundo, períodos históricos e posições
sociais. Logo que o futebol foi trazido da Europa, como símbolo da modernidade, os
a ela associados. O importante não era apenas jogar, mas jogar de uma determinada
forma, como os ingleses; vestir, torcer, falar, tudo como os ingleses; via de regra, a
foram sendo produzidas diferenças não apenas na forma de jogar mas também de torcer.
relato de Mário Filho (Rodrigues Filho, 1964), vê-se que as diferenças foram percebidas
3
A saber: Campeão da Copa do Brasil, 1994 e 1997; Campeão Brasileiro, 1996; Campeão da Libertadores da
América, 1995; Campeão da Recopa Sul-Americana, 1996; além de Campeão Gaúcho, 1995 e 1996, e ganhador de
vice-campeonatos e outros torneios de menor expressão.
3
tendo o “estilo inglês” como referência. Se era impossível caracterizar o novo a partir dele
ainda mais essa diferença. Em 1938, na França, o Brasil sequer chegou às finais, mas
duas medalhas olímpicas no futebol e a Copa de 30 —, mas nunca tinham visto nada
parecido. O Brasil de Leônidas constituíra-se numa novidade: era peculiar, tinha uma
seu estilo peculiar, Gilberto Freyre (Rodrigues Filho, 1964, prefácio da 1ª edição)
contrasta Domingos da Guia e Leônidas da Silva; o primeiro seria mais clássico, apolíneo e
Mário Filho pôde dizer que ele está para o nosso futebol como
4
brasileira, um pouco de samba, um pouco de molecagem baiana e até
50 anos, antes, portanto, de o Brasil ter conquistado as quatro Copas do Mundo e outros
tantos torneios que o colocaram numa posição singular em relação aos demais países em
representada a partir de uma série de oposições tendo como pano de fundo os europeus;
nem poderia ser diferente. Entretanto, ao buscar a autenticidade brasileira, Freyre evoca a
demais “tipos regionais” que contribuíram para dar ao futebol os contornos de brasilidade.
Esse recorte é significativo não apenas em razão dos “tipos” que elege/exclui, mas porque
4
Se meus informantes, especialmente aqueles que advogam a marginalização dos gaúchos (cf. o restante do texto),
soubessem da importância de Gilberto Freyre na formação da intelligentsia brasileira e de sua contribuição para a
compreensão do nosso futebol, certamente não hesitariam: “Tá vendo, ele nos deixou de fora!”
5
aprofundado; algo despropositado para um prefácio de livro. Seja como for, há que se
par das discussões atuais, por que é que eles ainda não foram lembrados?
ou então admitir que certos “tipos regionais” são mais originais que outros.5 Essa hipótese
preponderante, ela é também muito contestada. Trata-se, antes de mais nada, de um ponto
Em segundo lugar, e não por acaso, os residuais ao quais Freyre se refere como
Guia — estão ligados à irracionalidade e às influências ameríndias. Ele toma esses traços
regionalismos — nem todos, é verdade —, bem como os negros e os índios, são trazidos
5
Ao abordar a questão da formação do Estado nacional e das diversidades regionais, em “Unidade e diversidade,
nação e região”, Freyre (1971) deixa transparecer alguns pontos conformes à noção de brasilidade expressa no
prefácio de O negro no futebol brasileiro. Em determinado momento, afirma que os estados de São Paulo, Minas
Gerais e Rio Grande do Sul “desenvolveram-se em alguma coisa semelhante a partidos políticos, com prejuízos
para a unidade e para o desenvolvimento harmônico do Brasil” (p. 89). Logo abaixo, critica a demasiada autonomia
política dessas unidades federativas, em virtude da qual, por ocasião de uma viagem a Minas Gerais — o mesmo
valendo para São Paulo e para o Rio Grande do Sul —, havia ficado com a “impressão de ter estado numa Prússia
brasileira” (p. 89). Para Freyre, portanto, “os brasileiros do Nordeste — das zonas áridas e semi-áridas dessa
região ou sub-região — são como os primeiros paulistas, tipicamente caboclos, ou indígenas, e mais teluricamente
e tradicionalmente brasileiros pelo espírito e pela conduta do que qualquer outro tipo regional” (p. 94). Cf.
também Marcos Alves de Souza (1996).
6
da periferia para o centro. Eles se tornam os portadores daquilo que há de mais genuíno e
puro no Brasil, são os símbolos do que mais tarde se convencionou chamar “futebol-arte”.
futebol futebol
brasileiro europeu
artístico competitivo
espetáculo eficiência
dionisíaco apolíneo
barroco clássico
intuitivo racional
natureza cultura
dom aprendizado
rua clube/escola
jogo esporte
individual coletivo
agilidade rigidez
habilidade força
malandro caxias
candomblé/umb catolicismo/prot
andismo estantismo
futebol-arte futebol-força
7
O quadro poderia ser mais extenso, na medida em que o futebol se vincula às
questões estéticas, às idéias de valor, à subjetividade, e, portanto, por mais discutido que
seja, dificilmente alcançará o consenso. Tanto isso é verdade que de tempos em tempos o
estereótipos.
brasileiros, como nos meses que antecederam a Copa da Suécia, em 1958. As qualidades
prejudicando. Era senso comum afirmar que tínhamos arte demais e objetividade de
menos, o oposto dos europeus e principalmente dos soviéticos, que, pensava-se, haviam
Nelson Rodrigues, por exemplo, afirmou, numa crônica publicada dias antes da
ao resto do mundo.
6
Sobre os preparativos do Brasil para aquela Copa — “até as superstições eram cumpridas com rigor científico”
— e a temeridade diante do cientificismo soviético, cf. Ruy Castro (1995), especialmente “O Sputnik fulminado”.
8
da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: - porque Obdulio
em si mesmo. (...) Insisto: para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a
Contudo, bastou a conquista para que, da noite para o dia, se passasse a elogiar
aqueles mesmos atributos que na véspera despertavam desconfiança e temor. O êxito bem
brasileiros — Didi, Pelé, Garrincha, Nilton Santos, entre outros. Salvo raras exceções, o
qualidades técnicas de Garrincha, por exemplo, foram descritas como instintivas: “todos
nós dependemos do raciocínio (...) ao passo que Garrincha nunca precisou pensar, (...)
tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro e irresistível do instinto” (Rodrigues,
1993b: 62-4).
chegaria ao ponto mais elevado de sua escalada. E não apenas em razão do ufanismo
propagandista da ditadura militar. João Saldanha, o técnico que classificou o Brasil para a
Copa, afirmou — depois de ter sido preterido, é verdade — que os jogadores brasileiros
7
É interessante notar como a metáfora dos vira-latas — segundo o Aurélio, “cão de rua, sem raça determinada” —
lembra as teses evolucionistas da virada do século. Ao contrário de Gilberto Freyre, que vê na miscigenação um
dos aspectos positivos da formação do “caráter brasileiro”, Nelson Rodrigues, no fundo, culpabiliza-a pela nossa
suposta frouxidão. “Complexo de vira-latas” foi publicada na Manchete Esportiva em 31/5/58 e posteriormente
reeditada em Rodrigues (1993a). Sobre a derrota em 1950 e a estigmatização dos jogadores negros, cf. entre outros
Leite Lopes (1992).
9
eram tão habilidosos que dispensavam a presença de um comandante (Máximo, 1996: 85-
113). Bastava escolher os melhores e dar-lhes liberdade para o Brasil se tornar imbatível.
Enquanto para os demais selecionados o técnico exercia uma função primordial, fosse ele
bem-sucedido slogan de quatro anos antes, “Pra frente Brasil/ Salve a nossa seleção”, e
outros tantos que faziam crer ser este um país jovem, moderno e vencedor foram sugados
10
Aquele “mulatismo” passou a ser visto como um obstáculo para nossa
por Cláudio Coutinho; tinha força e disciplina tática, mas faltava-lhe qualidade. Com Telê
Em 1986, fomos abatidos pelo “destino”, pela imponderabilidade dos penais. Já em 1990,
na Itália, o vilão foi o técnico Sebastião Lazaroni e sua fracassada tentativa de introduzir o
identidade” do selecionado de Carlos Alberto Parreira. Diz-se que ele venceu mas não
convenceu. Dunga, o capitão do tetra, tornou-se um dos símbolos do futebol brasileiro nos
anos 90. Cultuado no Sul mas criticado pela maioria dos cronistas do centro do país, ele
orientações táticas — foi visto como uma afronta ao futebol-arte. Poucos imaginavam que
primeiro caso as atualizações ocorrem, em geral, de quatro em quatro anos, por ocasião
das Copas do Mundo, no segundo elas são permanentes, desde que se confrontem clubes
11
de regiões distintas. Num e noutro caso, o futebol-arte serve de parâmetro encompassador
das diferenças regionais, evocando juízos acerca das formações étnicas, políticas,
discursos que transcendem o futebol, mas que só ele permite expressar de forma
Gustavo, dominou, fora da área, passou pelo marcador, ajeitou, vai pra
alma, o Inter era o Inter da sua história e da sua tradição e foi buscar o
— Como diz uma das letras, uma das músicas mais bonitas do
12
começaram os gols, aí começou a pressão, aí vieram os golaços e a
vinte e um minutos Leandro está fazendo dois a um. Dois para o Inter,
um para a Portuguesa!
Pelo que se pode aferir da locução dos gols colorados — lamentando o tanto que
haja vista que, “quando apareceu a garra, a força, o sangue colorado, aí começaram os
domínio popular, não apenas reforça a constatação precedente, mas denota que tipo de
Não por acaso, três das cinco torcidas organizadas do Grêmio fazem, no próprio
nome, referência a esses atributos. A Super Raça, a Garra Tricolor e a Força Azul
tendem a ser sublimados na medida em que, por serem partilhados, perdem seu valor de
distinção. Entretanto, nas disputas envolvendo clubes de outros estados, tais atributos são
freqüentemente evocados, por ambas as torcidas. Dizem elas que eles fazem parte da
tradição do futebol gaúcho e, portanto, são exclusividade dos times “daqui” Se “outros”
também os reivindicam, nada mais fazem do que reconhecer o valor do “nosso” estilo de
13
Em termos genéricos, o estilo do futebol gaúcho resulta da apropriação, por parte
Grande do Sul numa posição diferenciada em relação às demais unidades federativas e, até
social dos rio-grandenses do sul, “esquecendo-se” de outros tantos a partir dos quais a
“essência” do gaúcho, tida como libertina e altiva, tal qual a dos remotos tropeiros
forjados na lida com o gado xucro. De todos esses e outros tantos traços formadores da
após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, passando pela Revolução Federalista (1893-
fronteiriços em nome dos quais se afirma ser o gaúcho um “produto das guerras”.8
Embora tais singularidades tenham sido evidenciadas desde longa data, a partir dos
8
Cf. Francisco José Oliveira Vianna, in Rubem Oliven (1992: 51).
14
Tradicionalista Gaúcho (MTG), elas passaram por um processo de ressemantização
através do qual o gaúcho adquiriu uma valorização sem precedentes, algo comparável à
Tradições Gaúchas (CTGs) espalhados por todo o estado, pelo Brasil e até no exterior.10
rural que haviam deixado para trás. Apesar do fascínio urbano, das ofertas da indústria
ideologização também.
enquanto tipo representativo de todo o estado, exclui mais do que inclui, na medida em
identidade regional.
9
Cf. Renato Ortiz (1994: 36-44): “Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional”.
10
De acordo com dados recentes, existem mais de 1.800 Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) espalhados pelo
Rio Grande do Sul (1.350), Paraná (231), Santa Catarina (120) e Região Centro-Oeste (68) — estados com
presença marcante de imigrantes gaúchos —, por outros estados (47) e até no exterior (2). Cf. Zero Hora,
15/9/1997.
15
Seja como for, o MTG conseguiu impor no imaginário dos gaúchos sua própria
visão do gauchismo. Como isso se tornou possível? As razões são muitas, mas a principal
Sul como um estado diferenciado dos demais, idéias estas anteriores ao MTG, e os
símbolos e ideologias veiculados por ele. De acordo com Oliven (1992: 65),
16
Disseminado em quase todas as instituições gaúchas e perpetuado desde os
gaúcho altivo, valente e destemido, o centauro dos pampas cujo mito se tornou ideologia
pôde ser apresentado como verossímil — e sempre que não os encontra, os cria —, o
constitui-se, mais uma vez, no eixo central a partir do qual o futebol gaúcho estaria em
de São Paulo. Para sustentar essa tese, são evocadas as grandes distâncias, as longas
viagens e o desgaste físico aos quais os clubes daqui estariam submetidos quando
necessitam jogar no Norte e Nordeste brasileiros. Outros fatores como o clima hostil —
ação dos lobistas, parcialidade dos dirigentes da CBF e até mesmo o fato de esta estar
sediada no Rio de Janeiro — a partir das quais os clubes, jogadores e dirigentes gaúchos
17
No entanto, os próprios gaúchos esquecem-se, com freqüência, de que
realizado no México. A base dessa representação era colorada, tal qual aquela que foi à
Márcio Santos, com passagem pelo Internacional; em 70, no México, Everaldo, lateral-
esquerdo do Grêmio, foi titular de Zagallo; e Luiz Carvalho, centroavante gremista, só não
profissionais”.11
Os mesmos gaúchos lembram-se, porém, que Falcão foi preterido por Cláudio
Coutinho em 1978; que Leão, na época goleiro do Grêmio, não foi convocado por Telê
Santana em 82 e, como se isso não bastasse, Paulo Isidoro, também gremista, ficou no
banco de reservas. Pior ainda foi em 86, quando o mesmo Telê, pouco antes do embarque
exceção de uns três ou quatro. (...) A maioria das vezes, quando vai
11
Cf. História Ilustrada do Grêmio, nº 3, p. 11.
18
isso é! (...) Sempre, sempre, vai ter algum problema com a
Porém, acredita que a margem de interpretação que excede as regras é administrada pelos
influente.
Rio de Janeiro tem mais influência que Porto Alegre. É como nós
12
Sempre que houver itálico, trata-se de depoimentos obtidos em entrevistas gravadas, com exceção de cânticos e
xingamentos coletivos, reproduzidos do diário de campo.
19
Gre-Nal compensa, de certa forma, possíveis equívocos em relação
que assistiu inteira ontem, juntamente com todo o Brasil, a uma verdade
13
Ao comentar a instalação da Ford no Rio Grande do Sul, anunciada recentemente, Lasier Martins, âncora da
Rádio Gaúcha, lembrou a “tradição” competitiva desse estado. Segundo ele, a chegada da Ford era salutar na
medida em que criaria uma rivalidade com a General Motors, anunciada no início de 1997, e, assim sendo,
consolidaria uma tradição de bipolaridade que viria desde chimangos e maragatos, passando por PTB e UDN até o
Gre-Nal. Para ele, essa bipolaridade seria um dos elementos que explicariam a lisura e a pujança dos gaúchos, na
política, no futebol e agora também na economia (Programa Gaúcha Repórter, 1/10/97).
20
Brasil, para orgulho de nós gaúchos, que temos assistido nos últimos
que, nas entrelinhas, faz crer que a propalada co-gestão, segundo o seu ponto de vista,
não passa de uma apropriação do clube pela multinacional. De outra parte, como se já não
Mas o que ocorre quando se dá o inverso? Dir-se-á que existe uma conspiração,
1996, depois da desclassificação do Grêmio pela Copa do Brasil. Se, de um lado, tais
TV Cultura:
14
Cf. Zero Hora, 2/12/96.
21
dá ao Palmeiras títulos que normalmente ele não conseguiria. (...) Não
título. Não sou escoteiro, não sou ingênuo para achar que não existe
Quem assistiu ao jogo viu que deveriam ter sido expulsos três gremistas.
(...) Não viu quem não quis. Mas, depois que o tira-teima da Globo
mostrou que o terceiro gol do Grêmio foi bom, pronto! Foi o esquema
(...).15
mas, em última instância, ela estaria para o fair-play tal qual a vulgaridade, a grosseria e a
que adjetivos dessa natureza provocaram a ira dos gremistas e até dos colorados, na
medida em que, mais dia menos dia, serão eles que estarão evocando as diferenças
15
Cf. Folha de São Paulo, 21/6/96.
22
O culto às tradições transforma cada conquista numa verdadeira epopéia
emprestando ao futebol uma gama variada de elementos com forte apelo emocional. Nesse
jogadas sem sentido em sua totalidade”, como afirma Gumbrecht,17 então é preciso dotá-
jogo e, como tal, prestam-se apenas para tornar claro quem perde ou ganha e o quê. Se o
16
Cf. Paulo Sant’Ana in Zero Hora, 23/5/97.
17
Cf. Folha de São Paulo, 24/9/97.
23
tradicionalismo empresta subsídios aos discursos enunciados no futebol, este último
mostra-se generoso pela forma com que opera tal discursividade. Através do
possibilitam mostrar aos “outros” não apenas quem ou o que “somos”, mas quão
enquadrar o estilo adotado pelo Grêmio, já que esse clube, sendo gaúcho, era brasileiro
de brasilidade. Já os defensores do estilo gremista tinham a difícil tarefa de fazer crer aos
primeiros que o Grêmio, apesar das diferenças, ainda era um time brasileiro. Mas, como
reivindicar essa inclusão se eles próprios sugeriam a incompatibilidade das diferenças? Eis
24
a razão das disputas, e a seguir se verá como esse jogo se processou nas arquibancadas e
na mídia.18
um fato que pode ser tomado como paradigmático. Era um jogo entre Grêmio e São
pequeno grupo iniciou o coro: “Uh, uh, uh, paulista pau no cu!” Antes que o coro se
tornasse uníssono, um torcedor tentou corrigir o que, segundo ele, constituía um equívoco:
“É são-paulino, não paulista!” Os demais, porém, simplesmente não lhe deram ouvidos.
críticas que o Grêmio vinha sofrendo no centro do país, especialmente na mídia paulista.
Era em razão dessas opiniões adversas que os torcedores se insurgiam, e não apenas
contra o time do São Paulo. O Grêmio já tinha eliminado o Palmeiras num jogo tumultuado
18
Quando me refiro às arquibancadas, tenho em mente a torcida gremista, especialmente suas manifestações
coletivas, sejam elas advindas das ruas, das excursões ou mesmo do Estádio Olímpico. Já em relação à “mídia”,
gostaria de fazer algumas considerações. Em primeiro lugar, devo deixar claro que parto do princípio de que os
discursos no futebol se caracterizam por uma espécie de circularidade, de tal forma que dirigentes, cronistas e
torcedores se comunicam entre si e, portanto, a atuação de uns e outros não pode ser dissociada. Em segundo
lugar, devo advertir o leitor de que tentarei evitar ao máximo o uso de termos genéricos como “imprensa gaúcha”,
“paulista”, “opiniões do centro do país” e assim por diante. Quando isso não for possível, entenda-se por
“imprensa/mídia gaúcha” os jornais Zero Hora e Correio do Povo, as rádios e Tvs Gaúcha, Guaíba e
Bandeirantes. E, por “imprensa/mídia paulista”, os jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e Gazeta
Esportiva; os programas “Apito Final”, da Rede Bandeirantes, e “Cartão Verde”, da TV Cultura.
25
Flamengo, de Wanderley Luxemburgo, em jogos marcados por expulsões e incidentes
uma opinião nada favorável, como fica evidente neste comentário de Telê Santana:
bem jogado, não posso concordar com um clima assim. (...) O Grêmio
expulso.19
Luiz Felipe, seu colega de profissão, pelo comportamento do time. Depois da decisão,
campo. (...) Eles têm uma boa equipe, mas ela poderia ser melhor
19
Cf. Folha de São Paulo, 18/6/95.
26
época em que ele era jogador, sempre foi considerado um atleta
Para legitimar sua posição, àquela altura muito contestada pela mídia porto-
alegrense, Telê evocou sua experiência e englobou, no rol dos violentos, o futebol gaúcho
como um todo.
contesta os jogadores, mais tarde o técnico e os dirigentes e, por extensão o clube, até
chegar ao futebol gaúcho. Ao evocar sua experiência como técnico do Grêmio em 1977,
ele está, simultaneamente, sugerindo que os gaúchos sempre estiveram às voltas com o
20
Cf. Folha de São Paulo, 25/6/95.
21
Cf. Folha de São Paulo, 30/7/95.
27
antijogo e colocando-se na posição de um moralizador exógeno, como se os gaúchos, por
Na verdade, Telê não era o único a tripudiar o estilo gremista. Marcos Augusto
futebolístico.
militarmente cumprido (...). Que ganhe meu país e meu time, não o
o Grêmio (time que se não vence por pontos vence por nocaute) dizer
revoltados e sem identidade social dessa legião (...) que cresce nas
22
Programa exibido pela TV Cultura em 27/8/95.
23
Cf. Folha de São Paulo, 31/8/95.
28
A condenação do “futebol atual” não constitui novidade, tampouco a contundência
seriam responsáveis pela onda de violência entre as torcidas organizadas em São Paulo.24
Mesmo que sua apropriação seja legítima, é importante destacar o fato de a crônica ter
Libertadores”, parece não ter tido boa receptividade, pelo menos para aqueles que, como
Marcos Augusto, prefeririam ver outra “cabeça vitoriosa”. E, diga-se de passagem, eram
de um ex-presidente do Grêmio.
nacional deixou escapar um “nossa sorte é que fulano (do time do Rio,
claro) está bem na cobertura”. Nossa sorte, ora vejam! Agora, a mídia
no Sul.25
24
Sobre a questão da violência entre as torcidas organizadas em São Paulo, cf. Luiz Henrique Toledo (1996).
25
Cf. Folha de São Paulo, 21/6/95.
29
Paulo Renato evoca pelo menos dois aspectos importantes presentes nos debates
Nem todos, no centro do país, contestavam o Grêmio. Matinas Suzuki Jr., por
exemplo, percebia certos méritos no estilo gremista. Depois da decisão em Tóquio entre
que “se ficar o mito de um time violento, será injusto. Ele deveria ser lembrado por ter sido
demonstrada pelo Grêmio. Aqui, prefiro ser cego com Ray Charles ou
Danrlei?27
26
Cf. Folha de São Paulo, 30/11/95.
27
Cf. Folha de São Paulo, 4/1/96.
30
O ano de 1996 parecia iniciar nada favorável à imagem do clube gaúcho; pelo tom
da crítica era custoso acreditar que 95 tivesse acabado. A acusação de violento, que havia
todo, voltaria à tona. O estilo gremista, para muitos um antiestilo — já que falar em estilo
“mau gosto”.
boleadeiras, tchê.28
Mais adiante, Aldir Blanc afirmava ser também vascaíno, clube carioca fundado
por portugueses, e preferir “a eliminação com Carlos Germano e Edmundo a ser campeão
com dois paraguaios na zaga”; caso do Grêmio, que mantinha entre seus quadros Arce e
Rivarola.
28
Cf. Aldir Blanc, in O Estado de São Paulo, 15/12/96.
31
Pra encerrar, parodio canhestramente o estilo inimitável de
A Portuguesa foi derrotada, mas isso não impediu que Aldir Blanc voltasse, no
duas patas levantadas a 1 metro do chão (...) que acertou pra valer
29
Idem, ibidem.
32
calor do embate” ou outra desculpa esfarrapada qualquer. Foram
omitem a paixão clubística pois se pretendem imparciais, Blanc manifesta claramente sua
inclinação pelos clubes lusitanos — Portuguesa e Vasco. Talvez por essa razão — ele se
posiciona como torcedor — suas crônicas não contenham meias-palavras e por isso
mesmo são reveladoras. Os termos utilizados para se referir aos “atretas” gremistas —
suscitar uma comparação entre o estilo gremista e a figura do ditador Médici, ele
grosseiro.
Apesar da acidez dos críticos, pouco a pouco o Grêmio foi sendo reconhecido
como algo mais que “um time violento” e, portanto, essa acusação perderia legitimidade.
30
Cf. O Estado de São Paulo, 22/12/96.
33
contragolpes que culminam invariavelmente no cruzamento para o
Esta crônica traduz o que se poderia considerar uma opinião generalizada sobre o
estilo gremista. Ele era eficiente e, portanto, era bom. Mas era também a antítese de
nas em segundo plano.33 “As estrelas não brilham”, o Grêmio não tem “garrinchas”,
31
Cf. Folha de São Paulo, 15/5/96.
32
Cf. Alberto Helena Jr., in Folha de São Paulo, 18/12/96.
33
Matinas Suzuki sugeriu, inclusive, “um paralelismo” entre esse “espírito de solidariedade” e “o comportamento
político-social do gaúcho, único na vida brasileira” (cf. Folha de São Paulo, 3/8/95). Para alguns o “espírito de
solidariedade”, a partir do qual os talentos individuais eram negligenciados em função da coletividade, explicaria o
34
“leônidas” e “deners” ou, se os tem, trata de convencê-los a pôr seus talentos à
expressa, mais tarde, por Ruy Carlos Ostermann — comentarista esportivo da Rádio
jogar basicamente o futebol, tem boa técnica, mas que só se vale disso
pródiga do jogo.34
fato de o Grêmio, apesar de campeão brasileiro, não ter nenhum atleta convocado para a seleção; ao contrário do
Palmeiras que, mesmo eliminado, teve seis de seus jogadores solicitados por Zagallo. Para outros, como Juca
Kfouri, estava-se cometendo injustiça com o Grêmio; chegou até a ironizar: “o Grêmio deveria pedir inscrição no
Campeonato Alemão, porque parece que não é considerado um time brasileiro” (cf. Folha de São Paulo,
13/12/97).
34
Cf. Zero Hora, 24/5/97.
35
empregados situavam-no do lado direito do quadro “futebol europeu vs futebol brasileiro”
brasileiros. Isso não significa que o futebol dos vizinhos uruguaios e argentinos, com os
que sempre se diz é que eles são competitivos a ponto de usar dispositivos contrários ao
enfrentamento do que poderia ser denominado status quo do nosso futebol. Se existia
algum tipo de reivindicação nessa atitude, e isso me parece evidente, ela tinha por base a
afirmação das diferenças, e, considerando-se que o Grêmio foi exitoso dentro de campo,
tal reivindicação, ouvida de muitos torcedores, poderia ser resumida da seguinte forma:
nós, gremistas, representantes dos gaúchos, somos diferentes porque temos uma
que nosso estilo atesta sua eficácia na razão direta das conquistas do Grêmio.
Nos últimos anos o Grêmio foi o representante do Rio Grande do Sul, mas esse
36
desencantada, vertida pelas emissoras de rádio do Rio de Janeiro sobre
“pobre, mas café bem doce”, o que equivale a “perder, mas jogando
E de onde provém esse pragmatismo tão ao gosto dos gaúchos, que lhes
veiculadas pelo futebol e aquelas dissemidas pelo tradicionalismo são notórias. Basta
primeiro pode ser observado nos automóveis de muitos dos freqüentadores de CTGs, ao
passo que o último ouvia-se da boca daqueles que contestavam as acusações dirigidas ao
Grêmio. Segundo estes últimos, o Grêmio não era violento: era viril, raçudo, pegador....
Estava, portanto, no limiar tênue que separa a busca da vitória da busca a qualquer preço.
35
Cf. Wianey Carlet, comentarista esportivo da Rádio Gaúcha e colunista de Zero Hora, in Zero Hora, 8/9/97.
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cotidiano e, no futebol, o treinamento intensivo traduzido nos resultados e na eficácia. Em
gaúchos não tão colorados — admitiam que seu time não era lá essas coisas, não tinha
um toque de bola refinado, bom de se ver, mas cumpria o seu objetivo, que era vencer, e
quando não o fazia, muitas vezes por deficiência técnica, ainda assim era aclamado pelo
empenho, pela dedicação, pela bravura, enfim, por elementos quaisquer, desde que
argumentos veiculados pela mídia; ou, quem sabe, a mídia é que se apropriava da fala
torcedora. Se os pontos de vista tomados individualmente são importantes, mais ainda são
mesmo, mas existe uma distância muito grande entre, por exemplo, um xingamento
evocado por este ou aquele indivíduo e o mesmo insulto dito pelo estádio todo.
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do time.36 Findo o jogo decisivo, pôde-se ouvir os gritos da torcida corinthiana presente
isso foi apenas um instante, uma fração de tempo imediatamente após o apito do final. Em
nós iremos/ Para o que der e vier/ Mas o certo é que nós estaremos/ Com o Grêmio
manifestação dos gremistas merece destaque. Não é sempre que a frustração da derrota
possibilita a coesão, e mais raro ainda é ver o coro do perdedor, dos “sofredores”, calar o
ufanismo dos vitoriosos. É bem verdade que quase todos os hinos dos clubes trazem uma
mensagem de fidelidade, e até se diz que o bom torcedor se conhece na derrota. Porém, o
mais comum é que esse sofrimento se expresse pelo silêncio. Mas, parafraseando Helena
Jr., citado anteriormente, o Grêmio não tinha apenas “um time unido até a morte”, tinha
uma torcida que estava com o time “para o que desse e viesse”. Ambos estavam unidos
pela reciprocidade própria dos atletas e torcedores, mediados pelo clube, mas também
publicamente, era no mínimo bizarro. Afinal, quem aplaudiria Dinho saindo expulso de
campo senão a torcida gremista? Como poderia alguém projetar sua identidade tendo
nunca seria belo, e naquela decisão da Copa do Brasil nem bom havia sido. Ainda assim, o
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O volante Dinho, um dos símbolos daquele time, afirmou que, de todos as manifestações dos torcedores,
incluindo aquelas por ocasião das conquistas, esta teria sido a que tocou mais fundo nos jogadores. Cf. Grêmio:
coração e raça, vídeo produzido pelo cineasta Carlos Gerbase a pedido do próprio Grêmio.
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pacto foi firmado e, quer queiram quer não, todos os clubes que passaram pelo Olímpico
Um segundo episódio que merece ser destacado ocorreu no primeiro jogo pelas
Lusa tem apanhado muito e agora vai pegar Dinho & Cia.”.37
informados de que nenhum atleta do Grêmio, nem mesmo Paulo Nunes, havia sido
convocado por Zagallo para o último amistoso da seleção. Depois do jogo, enquanto
senhor de cabelos brancos que os gremistas supuseram ser Zagallo. A reação foi imediata:
“Ão, ão, ão, Paulo Nunes seleção!” Seria apenas uma justa reivindicação, na medida em
que Paulo Nunes era um dos artilheiros da competição. Em seguida porém, passaram aos
xingamentos: “Recordar é viver, a Nigéria acabou com vocês!” Pois bem, a Nigéria
desclassificou o Brasil nas Olimpíadas em 1996 e muitos foram os que consideraram justa
a derrota. Até aí nada de mais. Mas por que “vocês”? Por acaso os gremistas não são
brasileiros e como tal não haviam, também eles, sido derrotados? Em termos; o coro
ainda mais contundente: “Ís, ís, ís, o Rio Grande é meu país! Ís, ís, ís o Rio Grande é
latentes na cultura gaúcha de tal forma que na primeira oportunidade seriam manifestos? A
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Cf. Gazeta Esportiva, 10/12/96.
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resposta seria dada pelos próprios torcedores alguns meses depois, mas, posso adiantar
desde logo, não se trata propriamente de uma reivindicação separatista, mesmo que muitos
afirmem já terem sonhado com a República do Pampa ou, quem sabe, com uma fusão
vitorioso depois do qual o clube mergulharia numa crise técnica e administrativa, foi
linhas gerais, o mesmo de quando o Grêmio foi campeão da Libertadores, em 95. Só que
dessa vez os aspectos regionais eram mais evidentes, em parte porque o derrotado havia
as finais, pôde-se ouvir, como em outras tantas oportunidades, o coro: “Uh, uh, uh,
paulista é pau no cu!” Não era corinthiano, e dessa vez ninguém contestou. O
Palmeiras-Parmalat nos anos anteriores. Vencê-los sempre foi uma façanha, e o Grêmio o
fizera novamente.
clube após os jogos, dessa vez reproduziram “Querência Amada”, uma música gravada na
última estrofes, a letra merece ser reproduzida na íntegra, pela peculiaridade com que
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I VII
II VIII
III IX
IV X
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Bondade nunca é demais
V XI
VI XII
Na bandeira do Brasil
Grêmio (“céu azul”/ “céu de anil”; estrofes I, VI e XII), certamente não era esse o motivo
pelo qual a música era tão apreciada naquele contexto. Era o auge, pode-se dizer, da
muito se parece com o “amor ao Rio Grande” (estrofes II, VI,VII e IX), e desse “amor”
resulta a evocação das “belezas do Rio Grande” (estrofes II, III, IV e VIII) que, a rigor,
contraditórios que também estavam muito presentes entre os gremistas. O “amor ao Rio
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governantes autoritários, líderes que dominaram a política local nas primeiras décadas
maragatos (republicanos) (estrofe XI). A estrofe VII sugere que o amor pelo Rio Grande
(“Te quero tanto/ Torrão gaúcho”) vale a própria vida (“Morrer por ti/ Me dou o luxo”).
Também faz crer que é pelo Brasil que essa entrega se justifica, como na estrofe II (“Oh
meu Rio Grande/ De encantos mil/ Disposto a tudo/ Pelo Brasil”). A auto-exclusão, tão
Da província de São Pedro”). Por isso se exaltou tanto a vitória do Grêmio pois, no fundo,
reconhecimento frente aos demais torcedores, à mídia do centro do país, enfim, ao Brasil
como um todo. O culto à “pegada”, à “raça” e às “tradições”, que por vezes tornou o
estilo do Grêmio um antiestilo, mas que, tempos depois, foi exaltado, talvez tenha a ver
“Este Rio Grande gigante” tornara-se “Mais uma estrela brilhante/ Na bandeira do Brasil”.
Hobsbawm (1990: 171) estava absolutamente correto quando afirmou que “a imaginária
comunidade de milhões parece mais real na forma de um time de onze pessoas com
nomes. O indivíduo, aquele que apenas torce, torna-se o próprio símbolo de sua nação
pulmão, uma música inicialmente gravada há mais de duas décadas, e por Teixeirinha, um
cantor/compositor tido como “brega” por jovens urbanos de qualquer época. Talvez o
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slogan dos bailes funks cariocas combinasse melhor com o público preponderantemente
maluco!” havia-se tornado mania nacional, inclusive nos estádios de futebol. Era
imperioso que os gremistas também o adotassem, mas não haveria aí uma espécie de
imitação?
apropriação, mas nesse caso, porque a decisão da Copa do Brasil/97 era contra o
Flamengo — segundo os gremistas e colorados, nenhum outro clube representa tão bem o
partiu a idéia, mas o certo é que naquele jogo do Olímpico o “Ah! Eu tô maluco!” já se
no Maracanã.
dois títulos nacionais conquistados num período de seis meses. A festa era dos gremistas,
caminho mais árduo, qual seja, contestando o “futebol-arte”. Agora ninguém ousaria
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Cf. Correio do Povo, 24/5/97.
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evocar as máximas do separatismo, pois, em se tratando de futebol, tripudiar o “outro” é
tão importante quanto cultuar a própria identidade. E para tripudiar é preciso, antes de
assim sendo, nada impede que o Inter, em breve, passe a desempenhar esse papel.
por Marshall Sahlins (1990). Por hora, é preciso deixar claro, ao menos, que a noção de
deve ser entendida como acabada, enrijecida ou próxima de qualquer perspectiva que
ufanismo desses residuais. Talvez se pudesse, num momento de crise do futebol gaúcho,
dizem respeito à esfera mais ampla da sociedade. O futebol não cria fatos novos, a não ser
para si próprio. O que faz, enquanto um fórum polêmico e absorvente, habitado pelo
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determinados sentimentos acerca do “eu” e do “outro”. Talvez porque não existam outros
fóruns apropriados. Ou porque tais sentimentos devam ser expressos de uma maneira que
futebol”. A reivindicação regionalista, especialmente no caso dos gaúchos, não é alheia aos
esporádicos movimentos separatistas que pipocam aqui e acolá. O fato de estes últimos
terem sido reprimidos pelos próprios gaúchos, de uns tempos para cá com maior
veemência do que outrora, não significa que as diferenças regionais tenham perdido sua
força, seu valor identitário. “Pegar em armas” é coisa do passado. Agora, dificilmente se
verá o Grêmio, o Inter ou o Juventude vencerem os “outros” sem que seja evocada,
“estilo gaúcho”. E desgraçado será aquele jogador ou time que não satisfizer essa
condição de verossimilhança.
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Associados/ Anpocs.
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(Recebido para publicação em outubro de 1998)
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