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DOI:10.22600/1518-8795.

ienci2022v27n3p23

V27 (3) – Dez. 2022


pp. 23 - 43

OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS EM ATIVIDADES EXPERIMENTAIS RELACIONADAS A


CONCEITOS DE FÍSICA DA REVISTA CIÊNCIA HOJE DAS CRIANÇAS

Epistemological obstacles in experimental activities related to physics concepts of the Ciência Hoje das
Crianças magazine
Jéssica Taynara Martins [[email protected]]
Secretária Municipal de Educação de Humaitá (SEMED)
Rua 5 de setembro, s/n., Humaitá, Amazonas, AM, Brasil

Viviane Florentino de Melo [[email protected]]


Faculdade de Educação, Departamento de Educação II
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Avenida Reitor Miguel Calmon, s/n, Canela, Salvador, Bahia, Brasil

Elrismar Auxiliadora Gomes Oliveira [[email protected]]


Instituto de Educação, Agricultura e Ambiente (IEAA)
Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
Rua 29 de Agosto, 786, Humaitá, Amazonas, Brasil

Resumo
Neste artigo, apresentamos os resultados de uma pesquisa que se propôs a identificar atividades
experimentais relacionadas a conceitos de Física da revista Ciência Hoje das Crianças (CHC), que podem
suscitar obstáculos epistemológicos. O aporte teórico bachelardiano foi adotado por seu potencial para
provocar reflexões críticas para a análise de materiais que publicam informações sobre Ciência. Assim,
com base na metodologia da análise de conteúdo, analisamos atividades experimentais da CHC das
edições do período de 2009 a 2020. Os resultados mostram que, de 66 propostas experimentais de Física
da revista, 20 podem suscitar obstáculos epistemológicos. O obstáculo epistemológico mais identificado foi
o obstáculo verbal e o de menor frequência foi o realista. Os obstáculos quantitativo e pragmático não
foram encontrados nas atividades experimentais analisadas. Compreendemos, a partir dos resultados, que
essas atividades necessitam da intervenção do professor na identificação e na superação dos obstáculos
epistemológicos, para que a sua realização possa ser potencializada.
Palavras-chave: Ensino de Ciências; Divulgação científica; Conceitos de Física.

Abstract
In the present paper, we present the results of a research that aimed to identify experimental activities,
related to the concepts of Physics from the Science Today for Children magazine (Ciência Hoje das
Crianças (CHC), in Portuguese), which can raise epistemological obstacles. The Bachelardian theoretical
contribution was adopted due to its potential to raise critical reflections for analyzing materials that publish
information about Science. Thus, based on the content analysis methodology, the experimental activities of
CHC from 2009 to 2020 were analyzed. The results show that 20 can raise epistemological obstacles from
66 experimental proposals of Physics from CHC magazine. The most identified epistemological obstacle
was the verbal obstacle, and the one with the lowest frequency was realistic. The quantitative and pragmatic
obstacles were not found in the experimental activities analyzed. The results show that such activities need
the teacher’s intervention to both identify and overcome the epistemological obstacles, so its realization can
be enhanced.
Keywords: Science education; Scientific divulgation; Physics concepts.
Investigações em Ensino de Ciências – V27 (3), pp. 23-43, 2022

INTRODUÇÃO

A revista Ciência Hoje das Crianças (CHC), distribuída às escolas públicas brasileiras pelo
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)/Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD)
desde o ano de 1991, é um dos principais veículos de Divulgação científica para o público infantil no Brasil.
A incorporação de textos de DC no ensino é importante porque produz um contexto capaz de favorecer a
compreensão da ciência e de estimular a curiosidade e a participação dos alunos nas atividades realizadas.
Pesquisadores da área de ensino de Ciências têm afirmado que textos de DC são potenciais recursos para
contribuir com o processo de ensino-aprendizagem nas salas de aula, uma vez que complementam os
recursos tradicionais (Ferreira & Queiroz, 2012).

Autores salientam também que a utilização da DC pode ser uma importante estratégia, desde que
seu uso seja mediado por professores que proporcionem discussões consistentes a partir de leituras
críticas realizadas em sala de aula (Rocha, 2012; Souza & Rocha, 2018), visto que os textos de DC não
foram escritos com a pretensão de serem utilizados nesse espaço, ou seja, não têm objetivos didático-
pedagógicos (Nascimento, 2005; Rocha, 2012). Essa característica dos textos de DC torna necessário que
os professores reflitam criticamente sobre esses materiais antes de utilizá-los, para que estes não se
tornem obstáculos à cultura científica.

Alves-Brito, Massoni e Guimarães (2020) discutem a influência da pós-verdade na educação e na


DC. Os autores consideram que, devido a um sistema de educação e de divulgação da ciência frágeis,
ainda temos muitos desafios relacionados a essas questões e que a educação científica deve propiciar o
pensamento crítico, principalmente porque convivemos com “meios de comunicação de massa e fake news
em uma estrutura de pós-verdade que confunde, ilude e persuade as pessoas” (Alves-Brito, Massoni, &
Guimarães, 2020, p. 1615).

Ferreira e Queiroz (2012) explicam que, em termos de gênero, o discurso da DC caracteriza-se


essencialmente por: i) ser composto de temática que fala sobre conteúdos próprios da ciência além de
abarcar o escopo da ciência e da tecnologia; ii) ter um estilo que permite o emprego de simplificações, visto
que se destina ao público leigo; e iii) ser composto de formas de estruturação que permitem o uso em
conjunto de vários procedimentos discursivos, dentre eles a interlocução direta com o leitor.

Algumas dessas características devem ser motivo de atenção por parte de professores que
pretendem se valer desse material em suas aulas, por exemplo, a questão das simplificações. Não raras
vezes, esse procedimento apresenta o conhecimento científico como uma continuação do conhecimento
de senso comum, descaracterizando, assim, a natureza do conhecimento científico, que é a noção de
ruptura com esse conhecimento (Bachelard, 1996). Como nos alerta Valério (2005, p. 8), “na ânsia de
tornar a ciência fácil e acessível, abusa-se de metáforas e banalizam-se os conceitos. Acaba-se por afastar
o aprendiz do racional, tornando todo e qualquer conceito visível e palpável”. Nesse sentido, concordamos
com Bachelard (1996) no que se refere às adequações que devem ser feitas de modo a permitir que as
crianças se aproximem dos conceitos científicos, entretanto, como bem alerta o autor, essa não é uma
tarefa simples.

A apropriação de conceitos científicos por parte das crianças é importante por permitir que elas
adquiram maior consciência e domínio sobre seus processos mentais (Marranghello, Lucchese, &
Hartmann, 2020). De acordo com a psicologia histórico-cultural (Vigotski, 2009), os conceitos se formam e
se desenvolvem na criança a depender de sua origem. Com isso, conceitos cotidianos que são aprendidos
de forma não sistematizada são chamados conceitos espontâneos e aqueles advindos da cultura escolar
e ensinados de forma sistematizada, os científicos. O aprendizado desses últimos, devido ao seu sistema
hierárquico de inter-relações, possibilita a transferência e a generalização para outras áreas, culminando
em raciocínios científicos, algo cada vez mais demandado na sociedade atual.

Magalhães, Villagrá e Greca (2022) realizam uma ampla revisão de literatura procurando
compreender o ensino de Ciências desenvolvido com crianças dos anos iniciais do ensino fundamental. A
partir da análise dos trabalhos, os autores evidenciam que a realização de atividades experimentais, de
caráter investigativo, favorece o interesse para a participação ativa dos estudantes dessa faixa etária,

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contribuindo com a interação social e a dialogicidade nas aulas, mas que seria necessária a realização de
pesquisas que não se limitassem a curtos prazos, como uma ou duas aulas. Para pesquisas futuras, os
autores indicam que sejam consideradas “as variáveis a serem observadas em cada área de
aprendizagem, a fim de melhor compreensão de como elas se desenvolvem ou podem ser favorecidas nos
anos iniciais. Em relação aos aspectos conceituais, considerar quais as relações conceituais devem ser
aprendidas em cada faixa etária [...]” (Magalhães, Villagrá, & Greca, 2022, p. 101).

Devido à sua importância no contexto brasileiro, a revista CHC foi objeto de estudo em diversas
pesquisas, a maioria delas analisa a natureza do discurso científico, presumindo o potencial da CHC no
ensino de conteúdos específicos. Em alguns desses estudos, pesquisadores relatam fragilidades da
revista, tais como: a utilização o de analogias que não fazem correspondências entre o análogo e o conceito
(Silva, Pimentel, & Terrazzan, 2011), a imagem estereotipada do cientista como alguém que já se manifesta
como tal desde a infância (Almeida & Lima, 2016) e as características empírico-indutivistas das propostas
experimentais da CHC, marcadas por uma visão rígida da ciência (Martins & Oliveira, 2020).

Diante da importância da revista CHC para a divulgação da ciência para as crianças no nosso país
e dos resultados das pesquisas que se debruçaram sobre esse material, consideramos que este é um
potencial objeto de estudo. A fim de trazer um novo olhar para o periódico, utilizamos como lente teórica a
epistemologia de Bachelard, mais especificamente a noção de obstáculos epistemológicos, para investigar
as atividades experimentais da CHC.

Nesse contexto, temos como objetivo deste trabalho identificar atividades experimentais,
relacionadas a conceitos de Física da revista Ciência Hoje das Crianças (CHC) das edições do período de
2009 a 2020, que podem suscitar obstáculos epistemológicos. Consideramos que esse recorte temporal
nos permitirá observar limites e possibilidades das propostas da revista para a construção de conceitos
científicos.

REFERENCIAL TEÓRICO

Gaston Bachelard foi um dos principais epistemólogos da ciência, dedicou-se ao estudo da Física,
da Química e da Filosofia da Ciência, publicando livros sobre poesia e epistemologia da ciência. Dentre
suas obras, podemos destacar o livro A formação do espírito científico: contribuição para uma Psicanálise
do conhecimento, publicado em 1938. Nessa obra, o autor realiza a psicanálise do conhecimento científico
e, a partir das suas reflexões, descreve os percalços que impedem um espírito pré-científico de se tornar
um espírito científico. É a partir da análise da ciência do século XVI ao XX que ele expõe como o
conhecimento científico e o próprio ato de conhecer podem ser limitantes para o desenvolvimento e para a
compreensão da ciência.

Junto a outros pesquisadores (Martins & Pacca, 2005; Carvalho Filho, 2006; Buscatti Junior, 2020;
Melo & Amantes, 2021), corroboramos a importância da interpretação de Bachelard sobre o processo de
construção do conhecimento científico, porque se dedica a analisar, de forma crítica, os mecanismos pelos
quais esse conhecimento foi sendo historicamente construído. Nesse sentido, destacamos os trabalhos de
Buscatti Junior (2020), em que o autor investigou como docentes de Física deveriam lidar com o crescente
número de alunos adeptos do chamado modelo da “Terra Plana”, e o estudo desenvolvido por Melo e
Amantes (2021), no qual as autoras se valeram da noção de perfil epistemológico para mapear o
entendimento de estudantes de nível médio e superior sobre densidade. Ademais, a característica versátil
e contemporânea do pensamento bachelardiano permite também que ele fundamente pesquisas diversas
na área da educação. Como exemplo, podemos citar: o trabalho de Pessanha (2018) que discute
contribuições da epistemologia de Bachelard para pesquisas na área da educação matemática e o estudo
de Oliveira, Fireman, & Bastos Filho (2017), no qual os autores abordam a construção do conhecimento
científico no ensino de Ciências, trazendo para o debate a epistemologia de Gaston Bachelard e a teoria
sociointeracionista de Vigotski.

No que se refere à experimentação, cabe ressaltar que Bachelard não elimina as possibilidades da
utilização de atividades de natureza empírica, assim como de analogias e metáforas, porém ele fala

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diretamente ao professor sobre o seu papel, intervindo para que as atividades não permaneçam na
fantasia, no pitoresco:

“no ensino elementar, as experiências muito marcantes, cheias de imagens, são


falsos centros de interesse. É indispensável que o professor passe
continuamente da mesa de experiências para a lousa, a fim de extrair o mais
depressa possível o abstrato do concreto. Quando voltar à experiência, estará
mais preparado para distinguir os aspectos orgânicos do fenômeno” (Bachelard,
1996, p. 50).
No célebre livro A formação do espírito científico, Bachelard (1996) disserta sobre os obstáculos
epistemológicos que impedem a formação do espírito científico, como as primeiras ideias e os preconceitos
que dificultam a compreensão dos fenômenos.

“E não se trata de considerar os obstáculos externos, como a complexidade e a


fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do
espírito humano: é no âmago do próprio ato de conhecer, que aparecem, por uma
espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos. É aí que mostraremos
causas de estagnação e até de regressão, detectaremos causas de inércia às
quais daremos o nome de obstáculos epistemológicos” (Bachelard, 1996, p. 17).

De acordo com o autor, os obstáculos epistemológicos que impedem a formação do espírito


científico são: 1) obstáculos do conhecimento geral; 2) obstáculo substancialista; 3) obstáculo verbal; 4)
obstáculos do conhecimento unitário e pragmático; 5) obstáculo realista; 6) obstáculo animista; e 7)
obstáculo quantitativo. Salientamos que os obstáculos epistemológicos foram elencados por Bachelard
(1996) a partir de casos históricos da construção do conhecimento científico, de modo que o autor não
exclui a possibilidade da existência de outros obstáculos. Para esse trabalho, foram considerados os sete
obstáculos originalmente propostos pelo autor. Discorremos a seguir sobre cada um deles de modo sucinto.

Obstáculo do conhecimento geral

Para Bachelard (1996, p. 71), as generalizações feitas apressadamente podem ser mal-
empregadas, sem estabelecimento das abstrações fundamentais para explicação do fenômeno, e
paralisam o pensamento, “bloqueiam atualmente as idéias. Respondem de modo global, ou melhor,
respondem sem que haja pergunta”. As generalizações apressadas sobre os fenômenos são, para o autor,
características do espírito pré-científico, que, como consequência, “definem palavras e não as coisas” (op.
cit.). Assim, para o epistemólogo, o obstáculo epistemológico do conhecimento geral está relacionado às
generalizações realizadas sem reflexão, que ocorrem precipitadamente a partir da experiência
imediatamente concluída. Bachelard (1996, p. 69) afirma que “[n]ada prejudicou tanto o progresso do
conhecimento científico quanto a falsa doutrina do geral, que dominou de Aristóteles a Bacon, inclusive, e
que continua sendo, para muitos, uma doutrina fundamental do saber”. Nesse aspecto, quando, com a
experiência primeira, fazem-se generalizações, temos um ensino com características empírico-indutivistas.

O autor admite que, em certos casos, as leis gerais foram eficazes em relação às teorias que lhes
precederam; contudo, a doutrina do geral, instituída pelo positivismo lógico, é criticada em sua obra. Ele
reconhece as contribuições da atividade empírica, mas condena o indutivismo ingênuo da mesma forma
que o racionalismo ingênuo. Assim, o autor valoriza as contribuições tanto do empirismo quanto do
racionalismo, reconhecendo as contribuições e os limites das duas vertentes.

Obstáculo verbal

O obstáculo verbal ocorre quando os fenômenos são explicados a partir de uma única imagem ou
palavra. “Tratar-se-á de uma explicação verbal com referência a um substantivo carregado de adjetivos,
substituto de uma substância com ricos poderes” (Bachelard, 1996, p. 91). Esse impedimento à formação
do pensamento científico é uma marca do empirismo ingênuo, pois gera ideias que substituem os conceitos
e se tornam suficientes para explicar o fenômeno.

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Bachelard (1996, p. 101) cita que “[o] perigo das metáforas imediatas para a formação do espírito
científico é que nem sempre são imagens passageiras; levam a um pensamento autônomo; tendem a
completar-se, a concluir-se no reino da imagem”. Entretanto, a utilização de metáforas, imagens e
analogias no ensino de Ciências não é condenada pelo autor. Ele ressalta que, quando utilizadas, devem
ser capazes de contribuir para alcançar a racionalização e a abstração dos conceitos estudados, de forma
que o pensamento científico possa afastar-se das imagens ingênuas dos fenômenos. Bachelard destaca:
caso “essa metáfora não fosse interiorizada, o mal não seria tão grande; sempre é possível afirmar que ela
não passa de um meio de traduzir, de expressar o fenômeno. Mas, no fundo, não se limita a descrever com
uma palavra; quer explicar por meio de um pensamento” (Bachelard, 1996, pp. 128-129).

Obstáculo substancialista

O obstáculo substancialista procura explicar um fenômeno a partir de suas características


evidentes, ocultas e manifestas, que simplificam e minimizam a sua carga abstrata. Bachelard (1996)
explica que a substancialização é para o pensamento científico um entrave, já que sua explicação é
dogmática, na qual se atribuem às substâncias poderes e virtudes que impedem o questionamento. O autor
cita, como exemplos, a crença do senso comum de que o remédio eficaz é sempre amargo e que os “corpos
leves se prendem num corpo eletrizado” (Bachelard, 1996, p. 128). Esses dois exemplos são formados
pela imagem imediata, que generaliza e explica o fenômeno de forma incompleta.

O obstáculo verbal está intimamente relacionado com o obstáculo substancialista, já que a ideia
formada pela imagem simplista pode ser utilizada para agregar qualidades substantivas a um objeto
“quanto menos precisa for uma idéia, mais palavras existem para expressá-la” (Bachelard, 1996, p. 140).
O autor cita que esse obstáculo confere “à substância qualidades diversas, tanto a qualidade superficial
como a qualidade profunda, tanto a qualidade manifesta como a qualidade oculta. Seria possível falar de
um substancialismo do oculto, de um substancialismo do íntimo, de um substancialismo da qualidade
evidente” (Bachelard, 1996, p. 121).

Obstáculo do conhecimento unitário e pragmático

O obstáculo do conhecimento unitário e pragmático surge das generalidades do pensamento, que


eliminam o erro e não permitem pensamentos contraditórios em busca da homogeneidade e de uma
unidade criadora. O autor explica que é uma tendência do espírito pré-científico atribuir ao conhecimento
uma utilidade, um “princípio geral da natureza”, que busca a perfeição dos fenômenos, relacionando-os
com a unidade criadora.

Segundo Bachelard: “[é] fácil encontrar exemplos em que a crença nessa unidade harmônica do
mundo leva a estabelecer uma sobredeterminação bem característica da mentalidade pré-científica”
(Bachelard, 1996, p. 110). Bachelard é enfático ao se referir à sedução do pensamento pré-científico à
generalidade, à unidade e à utilidade da ciência, “uma utilidade não caracteriza um traço particular, parece
que este aspecto não fica explicado. Para o racionalismo pragmático, um aspecto sem utilidade é um
irracional” (Bachelard, 1996, p. 115). São aspectos sedutores, pois se buscam vantagens que podem
oferecer à realidade, como uma espécie de justificação, uma razão explicativa e útil para a realidade.

Obstáculo realista

Podemos observar a estreita relação entre o obstáculo utilitário e o realista quando Bachelard cita
que “o verdadeiro deve ser acompanhado do útil. O verdadeiro sem função é um verdadeiro mutilado. E,
quando se descobre a utilidade, encontra-se a função real do verdadeiro. Esse modo de ver utilitário é,
porém, uma aberração” (Bachelard, 1996, p. 117).

Bachelard explica que o obstáculo realista é característico de um pensamento preso à observação


primeira. E esta, por si só, é suficiente para explicar os fenômenos, visto que o pensamento realista não
permite a construção de um pensamento científico abstrato, mantendo-se no plano macroscópico. O autor
explica que o realista está tão convicto do que vê e sente, que não critica suas observações.

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O realismo caracteriza-se pela procura da homogeneidade, da pureza oculta no núcleo das


substâncias. A realidade de suas observações é, para o aprendizado, um obstáculo difícil de ser superado,
pois o fato observado pode ser experimentado por ele diversas vezes. “As imagens virtuais que o realista
forma, desse modo, admirando as mil variações de suas impressões pessoais, são as mais difíceis de
afugentar” (Bachelard, 1996, p. 184).

Obstáculo animista

Outro obstáculo referenciado por Bachelard é o animista, que se refere à interpretação ingênua de
objetos e fenômenos da natureza, na qual são atribuídas a eles características de seres vivos. O animismo
é um obstáculo à construção de conceitos científicos por acarretar interpretações equivocadas e excessos
interpretativos. Nesse obstáculo, a característica vital de uma substância é supervalorizada. “A vida marca
as substâncias que anima com um valor indiscutível. Quando uma substância deixa de ser animada, perde
algo de essencial” (Bachelard, 1996, p. 192), o autor afirma que essa propriedade é dotada de força
generalizada e convence facilmente o espírito pré-científico.

Quando se caracteriza um fenômeno físico a partir das questões biológicas, observa-se uma
tendência em individualizar o fenômeno, não considerando os diversos fatores que influenciam a explicação
de uma teoria científica. O pensamento pré-científico busca minimizar a abstração/explicação dos conceitos
estudados de uma teoria. “Como se vê, longe de dirigir-se para o estudo objetivo dos fenômenos, a tentação
maior é de — pelas intuições animistas — individualizar os fenômenos e acentuar o caráter individual das
substâncias marcadas pela vida” (Bachelard, 1996, p. 206).

Obstáculo quantitativo

O último obstáculo citado pelo autor é o quantitativo. Bachelard (1996, p. 261) caracteriza esse
obstáculo pela supervalorização de uma abordagem quantitativa, em que há precisão em excesso, “no
reino da quantidade, corresponde exatamente ao excesso de pitoresco, no reino da qualidade”. Bachelard
tece suas críticas ao conhecimento quantitativo ao referir-se a ele como um conhecimento imediato, e todo
conhecimento imediato é marcado por impressões subjetivas que entravam o conhecimento objetivo e
dificultam o aprendizado.

As explicações matemáticas imediatas sobre um fenômeno são para o conhecimento um


obstáculo, por dificultar o aprendizado. A crítica de Bachelard está em aparentar-se um conhecimento
objetivo, real, excepcionalmente medido, testado, verificado em que não existe espaço para o erro. Ainda
convém ressaltar outro equívoco cometido pelo espírito pré-científico, as generalizações em que se aplicam
ao microscópico e ao macroscópico as mesmas condições experimentais.

METODOLOGIA

Esta pesquisa tem abordagem qualitativa e consta de análise documental do periódico Ciência
Hoje das Crianças (CHC). Nosso material de análise é composto de atividades experimentais das edições
da CHC do período de 2009 a 2020, que tratam de conceitos relacionados à Física. Utilizamos os
procedimentos metodológicos da análise de conteúdo de Bardin (2011) para a análise do material. Essa
metodologia sistematiza o conteúdo das mensagens através de cinco fases: preparação; unitarização;
categorização; descrição e interpretação. A preparação é uma fase de organização. Essa fase se
caracteriza por análise flutuante, estabelecida por um contato inicial com os textos que serão analisados.
Para análise das revistas, a preparação foi o primeiro contato com os exemplares analisados, buscando
identificar os conteúdos da área da Física nas atividades experimentais. A unitarização é o momento da
desmontagem do texto no qual identificamos e destacamos as unidades de análise. Nossas unidades de
análise são recortes dos textos da revista que representam a temática desta pesquisa: as atividades
experimentais de Física. Nessa etapa, além de destacar as atividades que tratam de temas da Física,
procuramos reconhecer elementos que possam suscitar obstáculos epistemológicos nessas propostas. No
processo de categorização, organizamos os dados coletados e classificamo-los por seus aspectos de
semelhança, observados no decorrer da análise. Nossas categorias referem-se aos obstáculos
epistemológicos de Bachelard; nesse sentido, foi feita uma interpretação do texto das atividades

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experimentais analisadas para evidenciar trechos que pudessem suscitar tais obstáculos nos leitores. A
última fase da análise de conteúdo é a interpretação, momento da exegese dessas informações. A partir
da fundamentação teórica, apresentamos nossa interpretação sobre os obstáculos reconhecidos nas
atividades analisadas.

A análise da revista CHC foi feita em dois estágios. O primeiro está apresentado na seção
“Atividades experimentais por componente curricular/área na CHC”, na qual descrevemos os critérios
utilizados para identificar os temas dos diferentes componentes curriculares/áreas do conhecimento. No
segundo estágio, a partir da epistemologia de Gaston Bachelard, apresentada na seção do referencial
teórico, procuramos identificar os obstáculos epistemológicos que essas atividades experimentais de
Física, propostas pela CHC, podem suscitar em seus leitores.

No tópico a seguir, descrevemos como foi realizada a identificação das áreas de conhecimento de
cada atividade experimental.

Atividades experimentais por componente curricular/área na CHC

Foram analisadas 196 atividades experimentais da revista CHC e para identificação das atividades
relacionadas à temas relacionados à Física, dentre as diferentes áreas de conhecimento, em nosso
primeiro estágio de análise, utilizamos dois critérios: i) autointitulação e ii) conceitos ou expressões
específicas das áreas. Consideramos a autointitulação quando o texto da atividade experimental explicita
a área de conhecimento a que se refere. Quando não havia explicitação da área, recorremos à análise do
encaminhamento escolhido pela atividade, e à identificação de conceitos ou expressões específicas que
apareciam no texto. Esses critérios nos permitiram identificar atividades que tratam temas relacionados aos
seguintes campos do conhecimento: Matemática, Física, Química, Biologia, Astronomia, Educação Física,
Português e Geografia.

Identificamos como atividades de Biologia, por exemplo, propostas que trazem conceitos
relacionados à reciclagem, aos seres vivos e DNA. Na Química, ácidos e bases, reações. Na Educação
Física, atividades de movimentos corporais. Em Português, propostas que incentivam a escrita (construção
de revistas, jogos com palavras). Em Matemática, propostas que abordam operações fundamentais, formas
geométricas. As atividades que tratam de Astronomia trazem conceitos relacionados aos astros e aos
fenômenos celestes. As atividades de Geografia abordam a construção de mapas. Na Física, atividades
com ímãs, processos de eletrização, propagação de calor, energia.

Vale ressaltar que a separação não foi rígida e excludente, de modo que uma mesma atividade
pode integrar assuntos de vários componentes curriculares/áreas, por isso o total geral no Quadro 1, a
seguir, é de 205 propostas experimentais. Esse quadro mostra, de forma geral, as atividades experimentais
propostas nas diversas áreas do conhecimento.

Observamos que as atividades experimentais da revista CHC tratam de diversos temas das
Ciências Naturais e Humanas. Porém, os temas da área de Ciências Naturais (Física, Biologia, Química)
são os mais abordados. Podemos observar, no Quadro 1, que a Biologia (69) e a Física (66) apresentam
o maior número de atividades, seguidas da Química (47) e da Matemática (10). A menor quantidade de
atividades propostas está nos componentes Português (3) e Geografia (2). Vale ressaltar que a análise de
obstáculos epistemológicos foi realizada, para esse trabalho, somente nas atividades que abordam
conteúdos da área da Física.

No segundo estágio, identificamos e contabilizamos os obstáculos nas atividades experimentais


relacionadas à Física. As atividades experimentais da CHC abordam diversos conteúdos, mas cada uma
delas se dedica somente a um assunto. Em algumas atividades, um mesmo obstáculo foi identificado em
mais de um momento na abordagem do conteúdo, porém eles foram contabilizados uma única vez. Por
exemplo, na Figura 1, foram identificadas características que podem provocar no leitor o obstáculo animista
e o verbal, contabilizando, assim, dois obstáculos diferentes na mesma atividade. O obstáculo animista foi
identificado mais de uma vez nessa proposta; nas repetidas vezes em que o texto menciona que o “pão
pula”, ele foi, todavia, contado uma única vez.

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Investigações em Ensino de Ciências – V27 (3), pp. 23-43, 2022

Quadro 1 – Atividades experimentais por componente curricular/área na CHC (2009-2020)

Seções
Componente curricular/área
Total
Experimento Atividade Mão na massa Outras seções

Biologia 19 26 14 10 69

Física 43 9 8 6 66

Química 31 4 8 4 47

Matemática ---------- 6 2 2 10

Astronomia 2 1 ---------- 1 4

Educação física ---------- 4 ---------- ---------- 4

Português ---------- ---------- 1 2 3

Geografia ---------- 2 ---------- ---------- 2

Total 95 52 33 25 205

Fonte: Martins (2021)

Figura 1 – Exemplo de contagem dos obstáculos epistemológicos (extraído de CHC, 2016, ed. 275, p.
18, grifo nosso).

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RESULTADOS DAS ANÁLISES

No componente curricular Física, área que nos propomos a analisar, identificamos 66 atividades
experimentais que tratam de todas as áreas tradicionais dessa ciência. Nesta seção, apresentamos nossa
interpretação dos obstáculos epistemológicos encontrados a partir do referencial bachelardiano,
apresentando, também, um exemplo (ilustração e texto) dessas atividades na CHC. Outros exemplos são
mostrados a partir de excertos das atividades.

Obstáculo geral

Consideramos que as atividades experimentais da CHC que fazem generalizações mal colocadas
(ou generalizações duvidosas) que culminam em um conhecimento vago (confuso/inexato) podem
provocar em seus leitores o obstáculo geral. Evidencia-se esse obstáculo em situações em que a
generalização foi realizada a partir de uma explicação equivocada.

Assim, quando a revista CHC atribui explicações particulares de um fenômeno a outro, de forma
universal, ela pode se tornar um obstáculo geral, porque a explicação que originou a generalização partiu
de uma ideia de senso comum e/ou a partir de uma relação de causa e consequência.

Embora a generalização seja comum na atividade científica, ela pode se tornar um obstáculo se
for realizada a partir de uma compreensão equivocada dos fenômenos. Identificamos que o obstáculo do
conhecimento geral pode ser suscitado em 4 das 66 propostas experimentais de Física. As atividades
referem-se aos assuntos: densidade, refração da luz, efeito estufa e empuxo.

A seguir, apresentamos e comentamos a atividade sobre densidade na Figura 2, e discorremos


sucintamente sobre a atividade referente ao conteúdo de refração da luz.

Figura 2 – Exemplo de obstáculo geral nas atividades experimentais da revista CHC (extraído de
CHC, 2010, ed. 211, p. 17, grifo nosso).

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Como podemos observar, na Figura 2, a atividade experimental intitulada “Viajando em um


submarino de plástico” apresenta o funcionamento de um submarino a partir da observação particular da
experimentação. O trecho grifado pode acarretar o obstáculo de conhecimento geral, pois a generalização
é realizada a partir de uma ideia de senso comum, a de que o pesado afunda e o leve flutua, podendo
ocasionar um entrave à compreensão do conhecimento científico sobre densidade. Reforçar essas ideias
desencadeia no estudante o entendimento inadequado do conceito de densidade, fomentando uma
barreira à compreensão do conhecimento científico, uma vez que aprender Ciências pressupõe romper
com o conhecimento de senso comum.

Embora os estudantes possam apresentar a concepção de que “leve flutua” e “pesado afunda”, o
professor deve questioná-las durante a realização do experimento para que os discentes compreendam
que essa forma de explicação não é razoável do ponto de vista científico.

Assim, o uso de termos dessa seara para explicar fenômenos sob a ótica científica pode impedir
que o estudante se aproprie corretamente dos conceitos científicos.

Já o conteúdo de refração da luz, abordado na atividade “Arco-íris dentro de casa!”, apresenta o


obstáculo do conhecimento geral, uma vez que faz uma generalização partindo de uma afirmação de causa
e consequência. O texto da atividade dá a entender que, todas as vezes que chove em dias ensolarados,
há a formação de um arco-íris. Além disso, na atividade, a explicação foi simplificada, levando a uma
compreensão incompleta e inadequada do fenômeno, já que o fenômeno do arco-íris envolve os conceitos
de refração e reflexão da luz, os quais não foram considerados. Como pode ser visto no trecho da atividade:
“Isso é o que acontece na natureza: quando chove, em dias ensolarados, os raios luminosos que vêm do
Sol passam através das gotas de água e formam um lindo arco-íris!” (CHC, 2012, ed. 234, p. 20).

Segundo Bachelard (1996, p. 71), o conhecimento geral é, para muitos, a doutrina basilar do saber,
que prevaleceu de Aristóteles a Francis Bacon e constitui um obstáculo à construção dos conceitos
científicos. Esse obstáculo leva a explicações gerais nas quais “tudo fica claro; tudo fica identificado. Mas,
a nosso ver, quanto mais breve for o processo de identificação, mais fraco será o pensamento
experimental”.

Para o epistemólogo, o obstáculo do conhecimento geral é para a construção dos conceitos


científicos um fracasso da experiência científica por responder, de modo geral, questionamentos não
realizados na experimentação.

Obstáculo verbal
Nas atividades experimentais da CHC, encontramos esse obstáculo em explicações que geram
ideias que substituem os conceitos e se tornam suficientes para explicar o fenômeno. Essas explicações
fazem uso inadequado de metáforas e analogias e/ou utilizam termos que trazem explicações do senso
comum que tendem a reforçar as observações primeiras e/ou construir novas concepções inadequadas no
imaginário do estudante. Visto que é imediatamente compreendido pelo leitor, devido à significação
cotidiana da palavra, impede a compreensão correta do conceito científico.

Nas nossas análises, identificamos a possibilidade de suscitar o obstáculo verbal em 9 das 66


atividades experimentais, que se referem aos seguintes conteúdos: eletrização, densidade, empuxo,
propriedades da matéria, refração da luz e campo magnético. A seguir, mostramos e comentamos a
atividade sobre eletrização por atrito na Figura 3, e discorremos resumidamente sobre a atividade referente
ao conteúdo de densidade.

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Figura 3 – Exemplo de obstáculo verbal nas atividades experimentais da revista CHC (extraído
de CHC, 2020, ed. 307, p. 16, grifo nosso).

Na abordagem do conteúdo eletrização, as atividades utilizam analogias inadequadas e termos da


linguagem cotidiana na explicação dos conceitos científicos em vez de familiarizar os estudantes com os
novos conhecimentos. Termos cotidianos, como grudar e pular, foram utilizados para abordar o fenômeno.
Como podemos observar na Figura 3, a atividade experimental utiliza o termo “grudar” no título e na
explicação dos resultados.

Embora a atividade explique o processo de eletrização, esse termo é retomado, tornando-se uma
palavra explicativa que constitui toda a interpretação do fenômeno. Essa expressão permanece no
imaginário do estudante e dificilmente será superada. Assim, futuramente, ao ser questionado sobre o
fenômeno, provavelmente o aluno usará a explicação simplificada sobre o que foi observado a partir desses
termos: “o orégano grudou no balão”.

Ademais, a atividade exemplificada na Figura 3 também apresenta problemas conceituais. Ao


apresentar o balão e o orégano carregados positivamente, o texto se contradiz, uma vez que a explicação
dada na atividade é a de que eles seriam atraídos.

De modo análogo à ocorrência do obstáculo geral, apresentado anteriormente, a explicação


inadequada do conceito de densidade na CHC incorre também no obstáculo verbal. Utilizando o termo
“leve” e “pesado” (CHC, 2010, ed. 211, p. 17; CHC, 2011, ed. 225, p. 16; CHC, 2016, ed. 275, p. 18; CHC,
2010, ed. 214, p. 19) em detrimento dos termos científicos “mais denso” e “menos denso”, as explicações
reforçam a ideia de senso comum: objetos leves flutuam e pesados afundam. Vale ressaltar que esse
obstáculo não foi predominante nas atividades experimentais da CHC, uma vez que a maioria delas utiliza
adequadamente o conceito de densidade dos fluidos (CHC, 2011, ed. 223, p. 19; CHC, 2012, ed. 239, p.
18; CHC, 2016, ed. 283, p. 17; CHC, 2013, ed. 244, p. 8; CHC, 2013, ed. 246, p. 18; CHC, 2014, ed. 257,
p. 18; CHC, 2014, ed. 262, p. 18; CHC, 2016, ed. 276, p. 17; CHC, 2012 ed. 241, p. 18). A utilização dessas

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expressões reforça impressões imediatas oriundas da experiência primeira. Essas expressões possuem
várias interpretações, o que ocasiona um obstáculo verbal por afastar o leitor do conhecimento científico
relacionado ao fenômeno estudado.

Na tentativa de facilitar a linguagem das atividades experimentais e apresentá-las de forma


contextualizada, algumas atividades acabam por afastar os estudantes do pensamento abstrato quando
utilizam analogias incoerentes, ocasionando um conhecimento distorcido. Segundo Bachelard, “numa
experiência mais abafada, mais subjetiva, mais íntima, que reside a verdadeira inércia espiritual. É aí que
encontraremos as verdadeiras palavras-obstáculo” (BACHELARD, 1996, p. 102). As palavras-obstáculo
são termos utilizados nas explicações que induzem uma compreensão equivocada do fenômeno.

Compreendemos que a linguagem científica possui um formalismo e significados próprios que


diferem dos utilizados no cotidiano dos estudantes, porém Bachelard (1996) enfatiza que deve haver
ruptura entre esses conhecimentos. Embora algumas analogias nos permitam partir desses referenciais
concretos, outras podem dificultar a construção dos conceitos científicos.

Obstáculo substancialista

Nas atividades da CHC, encontramos esse obstáculo em explicações que atribuem adjetivos e
poderes especiais a objetos e substâncias, “tanto a qualidade manifesta como a qualidade oculta”
(Bachelard, 1996, p. 121). Busca-se explicar o interior oculto para chegar ao íntimo/interior das substâncias.

Em nossas análises, identificamos que o obstáculo substancialista pode ser suscitado em 8 das 66
atividades experimentais. As atividades referem-se aos seguintes conteúdos: tensão superficial da água,
calor específico, refração da luz, efeito estufa e energia. Cabe ressaltar que todas as atividades da CHC
que abordam os conteúdos de tensão superficial da água, calor específico, efeito estufa e energia têm
potencial para suscitar o obstáculo substancialista.

A seguir, apresentamos e comentamos a atividade sobre tensão superficial na Figura 4, e


discorremos brevemente sobre as atividades referentes aos conteúdos de efeito estufa e refração da luz.

A atividade experimental da Figura 4 aborda o conceito de tensão superficial. Apresenta, no título


e nos resultados, trechos que podem suscitar nos estudantes o obstáculo substancialista, por atribuir ao
sabão uma qualidade oculta, um superpoder que lhe permitiria diminuir a tensão superficial. Assim, o sabão
teria “propriedades especiais” com as quais “quebraria” a tensão superficial da água, constituindo-se em
um obstáculo substancialista do oculto.

O fenômeno da tensão superficial da água é observado em situações cotidianas, o que faz com
que os estudantes possam apresentar explicações a partir do senso comum. Na atividade, a explicação de
que as interações de atração entre as moléculas de água foram enfraquecidas (diminuídas) porque o sabão
tem essa “capacidade” não caracteriza adequadamente as propriedades do sabão e pode fomentar no
leitor o obstáculo susbtancialista ao substituir a explicação científica pela atribuição de poderes ao sabão.

Embora os conteúdos tenham passado por rupturas e retificações ao longo do processo de


construção do conhecimento científico, essa abordagem ainda está presente nos materiais que chegam às
escolas. Obstáculos epistemológicos em materiais didáticos são objetos de estudo da Química, uma
ciência que historicamente apresenta o traço do obstáculo substancialista (Lopes, 1993). Bachelard (1978,
p. 31) cita que “[s]ob a sua forma elementar, nas suas experiências primeiras, no enunciado das suas
descobertas, a Química é evidentemente substancialista”.

No que se refere ao conteúdo efeito estufa, a atividade (CHC, 2010, ed. 214, p. 20) traz a ideia de
calor como substância que pode ser aprisionada, que não conseguiria sair dos arredores do planeta Terra.
Como pode ser observado no trecho seguinte:

“A água do copo da caixa esquentou mais! Isso porque o ar do interior da caixa


foi aquecido pela luz que passou pelo filme plástico e o calor não conseguiu
sair, ficou preso lá dentro. A mesma coisa acontece com o nosso planeta! É o

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que chamamos de efeito estufa: a luz do Sol atravessa a atmosfera e aquece a


superfície do planeta, mas o calor não consegue sair para o espaço porque
os gases de efeito estufa que envolvem a Terra não deixam” (CHC, 2010, ed.
214, p. 20, grifo nosso).

Figura 4 – Exemplo de obstáculo substancialista nas atividades experimentais da revista CHC


(extraído de CHC, 2010, ed. 216, p. 20, grifo nosso).

Consideramos que essa explicação pode levar à compreensão inadequada do conceito, pois parte
de uma explicação equivocada do conceito de calor, reforçando a ideia de calor como substância que pode
estar contida em um corpo.

Essa forma de abordagem constitui-se em um obstáculo substancialista do íntimo, pois, segundo


Bachelard (1996, p. 123), “[a] idéia substancialista quase sempre é ilustrada por uma simples continência.
É preciso que algo contenha, que a qualidade profunda esteja contida”. Explicações com base na teoria do
calórico, que consideram o calor uma substância fluida, encontradas nas atividades experimentais da CHC,
mostram que essa ideia continua presente em textos atuais de DC. Esse conteúdo possui historicamente
a marca desse obstáculo, as primeiras explicações sobre fenômenos relacionados às ideias de calor
apresentavam explicações substancialistas. Segundo Amaral e Mortimer (2011, p. 6), “isso pode ser
comprovado historicamente quando se verifica a resistência que a ideia de calor como substância
apresentou às diversas contestações feitas por estudiosos em vários momentos”. Esses autores citam
também, a partir de revisão de literatura realizada por Chi (1992), que os estudantes tratam os conceitos
de luz e calor como entidades características das substâncias.

Já no conteúdo de refração da luz (CHC, 2014, ed. 260, p. 18), a revista CHC explica que “tanto a
água quanto o vidro têm a capacidade de desviar os raios de luz, se atingidos no ângulo certo”, essa forma
de explicação pode suscitar um obstáculo substancialista da qualidade evidente por explicar os desvios da

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trajetória da luz pela simples menção de que a água e o copo possuem essa capacidade. Essa forma de
explicação entrava a construção dos conceitos científicos ao abordar os fenômenos de forma breve e
peremptória, por “satisfazer-se apenas com ligar os elementos descritivos de um fenômeno à respectiva
substância, sem nenhum esforço de hierarquia, sem determinação precisa e detalhada das relações com
outros objetos” (Bachelard, 1996, p. 127).

Nesse obstáculo, as qualidades são tidas como virtudes das substâncias, deixando de se
considerar que são as interações, por exemplo, entre a luz e o meio material que produzem os fenômenos
observados. Sabe-se que tanto o ar quanto a água e o vidro são meios transparentes à propagação da luz,
e, quando a luz incidente atravessa a interface existente entre esses materiais, sua velocidade de
propagação e trajetória inicial modificam-se devido à sua interação com as diferentes estruturas das
substâncias que possuem índices de refração distintos. Assim, são as interações entre a luz, o ar, a água
e o vidro que produzem o fenômeno observado.

Com efeito, para a construção dos conceitos científicos, o obstáculo substancialista é um dos mais
difíceis de serem retificados pelos estudantes (Bachelard, 1996). “Referimo-nos ao substancialismo, à
explicação monótona das propriedades pela substância” (Bachelard, 1996, p. 27), e posteriormente o autor
argumenta que “[a] origem substancial é sempre muito difícil de exorcizar” (Bachelard, 1996, p. 132).

Obstáculo realista

Consideramos como obstáculo realista, nas atividades experimentais da revista CHC, explicações
de fenômenos científicos abstratos realizadas a partir de interpretações subjetivas que os relacionam a
algo concreto utilizando comparações. O obstáculo realista pode ser suscitado em 2 das 66 atividades
experimentais da CHC, de acordo com nossas análises. As atividades referem-se aos conteúdos:
processos de eletrização e deformação do espaço-tempo.

A seguir, mostramos e comentamos a atividade sobre deformação do espaço-tempo na Figura 5,


e tratamos concisamente sobre a atividade referente ao conteúdo de eletrização.

Na atividade experimental apresentada na Figura 5, o fenômeno da deformação de espaço-tempo


é abordado por meio de uma situação concreta. Para tanto, é utilizado um lençol para representar o “tecido”
espaço-tempo, uma bola de bilhar para fazer referência ao planeta Terra e uma bola de gude para
simbolizar objeto que cai nas proximidades do planeta. Essa forma de explicação pode fomentar um
obstáculo realista, dificultando a abstração desse conceito pelos estudantes, pois eles podem entender que
o tecido espaço-tempo é algo palpável, assim como o tecido do lençol.

Essa explicação já recebe crítica de pesquisadores da área há bastante tempo, entre eles, Martins
(1998) aponta dificuldades de discutir corretamente conceitos científicos nas obras de DC. Sobre os
conceitos de deformação do espaço-tempo abordados nessa atividade, o autor afirma que esse tipo de
analogia, com a superfície elástica, passa uma ideia muito incorreta. Quando, a esse sistema, é
acrescentado outro corpo para explicar o seu movimento para perto da bola mais pesada, a analogia “fica
pior ainda”. O autor explica que, nesse exemplo da superfície elástica, a força gravitacional, objeto do
estudo, é a própria causa da deformação da superfície e da movimentação das esferas.

“No entanto, já que se quer explicar exatamente a força gravitacional, é inválido


utilizar como modelo um fenômeno que só ocorre por causa da própria gravidade.
[...] A analogia da deformação causada na cama elástica com aquela que ocorre
na geometria do espaço não capta nenhum desses aspectos desvia apenas a
atenção do leitor, que pensa ter entendido alguma coisa, mas que não pode
assimilar nada de correto sobre a relatividade geral” (Martins, 1998, pp. 287-288).

Em relação ao conteúdo de eletrização, são propostas seis atividades experimentais, uma delas
encaminha o obstáculo realista ao utilizar a expressão “E você sabe o que são átomos? São como tijolinhos
que, unidos, formam todo tipo de matéria [...]” (CHC, 2009, ed. 205, p. 18). Essa forma de explicação
apresenta característica que constitui o obstáculo realista ao descrever o átomo como algo concreto, até

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possível de ser manuseado, e não abstrato. Ademais, os estudantes associam ao átomo forma e dimensão
que são inadequadas a essa partícula.

Figura 5 – Exemplo de obstáculo realista nas atividades experimentais da revista CHC (extraído
de CHC, 2015, ed. 273, p. 16).

Referimo-nos ao átomo como uma teoria abstrata, pois o real para o átomo deve ser entendido na
perspectiva microscópica: “esse real não é no sentido concreto, mas fruto da fenomenotécnica, ou seja,
um real construído a partir de observações indiretas dos fenômenos por meio de instrumentos que operam
com base no conhecimento científico” (Reis, Kiouranis, & Silveira, 2015, p. 4).

O conhecimento refletido é fruto da razão polêmica e de retificações. Lopes (1997) critica uma
didatização que parte de modelos concretos para chegar à compreensão de conceitos abstratos, uma vez
que esses modelos, de base realista e empirista, reforçam a continuidade com o senso comum. “Como a
Ciência se constrói em rompimento com o senso comum cotidiano, fatalmente incorremos em distorções
do conhecimento científico. Tais distorções, de uma maneira geral, estão associadas à utilização de um
sem-número de metáforas e analogias” (Lopes, 1997, p. 564).

O realismo é para a compreensão do conhecimento científico um obstáculo, pois “[a]s imagens


virtuais que o realista forma desse modo, admirando as mil variações de suas impressões pessoais, são
as mais difíceis de afugentar” (Bachelard, 1996, p. 184). Quando a explicação se prende ao conhecimento
real, tem-se a certeza da realidade observada na base da percepção dos nossos sentidos, o que mascara
o processo de ruptura entre o senso comum e o conhecimento científico.

Obstáculo animista

Consideramos o obstáculo animista em atividades da revista CHC que atribuem características de


seres vivos a objetos e a fenômenos da natureza. Identificamos que esse obstáculo pode ser suscitado em

37
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5 das 66 atividades experimentais da revista CHC. As atividades referem-se aos conteúdos: eletrização
por atrito, densidade e persistência retiniana.

A seguir, mostramos e comentamos a atividade sobre eletrização, na Figura 5, e discorremos


brevemente sobre as atividades referentes aos conteúdos de densidade e persistência retiniana.

Figura 6 – Exemplo de obstáculo animista nas atividades experimentais da revista CHC (extraído
de CHC, 2009, ed. 205, p. 18, grifo nosso).

A atividade experimental da Figura 6, que aborda os processos de eletrização, pode suscitar o


obstáculo animista ao explicar o fenômeno de atração e repulsão das cargas elétricas. No título, na
contextualização e no texto que explica “O que aconteceu?”, na tentativa de explicar a interação entre os
materiais utilizados (papel alumínio, lata de goiabada e o plástico), o texto atribui vida ao papel alumínio,
nomeando-o de pulga e dando a ele a capacidade de pular.

O ato de descrever os fenômenos da eletricidade de forma animista já era questionado por


Bachelard em 1938. O autor cita exemplos de explicações que atribuem vida ao movimento de corpos
eletrizados. Bachelard (1996, pp. 46-47) cita que se define um fenômeno “por meio de imagens tão
simplistas [...] Figurinhas de papel que ‘dançam’ num campo elétrico pareciam, pelo movimento sem causa
mecânica evidente, muito próximas da vida”. Na CHC, a atividade que aborda o conteúdo de eletrização
por atrito potencializa esse obstáculo, trazendo expressões que afirmam que “os elétrons dos fios de cabelo
‘pulam’” (CHC, 2014, ed. 263, p. 18).

Já nas atividades que se referem ao conteúdo de densidade (CHC, 2016, ed. 275, p. 18),
encontramos expressões como o pão “pula” e “mergulha”. No assunto de persistência retiniana (CHC,
2010, ed. 213, p. 12), o texto utiliza a frase “um brinquedo incrível que vai enganar a sua visão!”, atribuindo
ao brinquedo a habilidade de “enganar”.

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Segundo Bachelard (1996, p. 27), o obstáculo animista é uma marca do espírito pré-científico dos
séculos XVII e XVIII e “foi quase totalmente superado pela Física do século XIX”. O fato de os materiais de
DC do século XXI ainda encaminharem propostas com aspectos animistas evidencia um descompasso
entre a DC e a natureza da ciência.

Embora esteja documentada na literatura a presença do obstáculo animista no conteúdo de calor


(Amaral & Mortimer, 2011; Araújo, 2014), em nossas análises, não identificamos esse obstáculo nas
atividades experimentais analisadas que tratam desse conteúdo.

Obstáculo pragmático

O obstáculo pragmático não foi identificado em nenhuma das 66 atividades experimentais de Física
da revista CHC analisada. Esse resultado demonstra que os fenômenos da Física abordados nas propostas
de atividades experimentais na revista não são apresentados com aspectos utilitários para a manutenção
da vida no planeta Terra.

Obstáculo quantitativo

O obstáculo quantitativo também não foi identificado em nenhuma das 66 atividades experimentais
de Física da revista CHC. Esse resultado era esperado, já que o público infantojuvenil ao qual a revista se
destina está iniciando o contato com ferramentas matemáticas como um recurso para compreensão das
explicações científicas.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Como foi ressaltado na contagem, uma mesma atividade experimental pode suscitar mais de um
obstáculo epistemológico. Ao todo, foram identificados 28 obstáculos em 20 atividades experimentais
diferentes. Assim, das 66 propostas experimentais de Física da revista CHC, 45 não suscitam obstáculos
epistemológicos em seus leitores.

Porém, mesmo que o número de atividades que potencializem obstáculos epistemológicos seja
inferior a 50% (vinte atividades) do total, esse resultado é preocupante, uma vez que a CHC é uma revista
reconhecida e passa por processo de seleção para distribuição pelo PNLD às escolas públicas brasileiras.
Além disso, Martins e Oliveira (2020) já destacaram o caráter empírico-indutivista das atividades
experimentais da CHC. Nesse sentido, é preciso cautela para que a responsabilidade de superação dos
limites do material não fique somente a cargo do professor.

Sem uma constante intervenção do professor, atividades experimentais que ocasionam obstáculos
epistemológicos pouco contribuem para a construção dos conceitos científicos, por não possibilitarem a
interpretação adequada dos fenômenos observados. Nesse sentido, Bachelard (1996) ressalta a
importância do professor na realização das atividades experimentais. O autor salienta que o docente deve
continuamente extrair o mais rápido possível a abstração da atividade concreta realizada, procurando
estabelecer um equilíbrio entre a reflexão e a experiência, a fim de retificar os obstáculos epistemológicos
e (re)construir o conhecimento científico.

Conforme Bachelard (1996), a iniciação à cultura científica é sempre delicada, porém esse
epistemólogo acredita que, ao iniciar uma criança na educação científica, as primeiras lições não podem
ser um obstáculo à compreensão da ciência. “Sem dúvida que, para todo o conhecimento, as primeiras
lições exigem proezas pedagógicas. Têm o direito de ser incompletas, esquemáticas. Contudo, não devem
ser falsas” (Bachelard, 1996 p. 41).

Outro resultado importante que deve ser enfatizado é o fato de termos identificado o mesmo
conteúdo sendo tratado adequadamente em algumas atividades experimentais da revista e com potencial
para suscitar obstáculos epistemológicos em outras. Consideramos que essa seja uma evidência de que o
problema não seja o conteúdo em si, mas a forma de sua apresentação na atividade.

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No que se refere à autoria das atividades experimentais da CHC, a maioria é creditada à redação
da revista. Das 66 atividades analisadas, somente 6 têm autoria de pesquisadores, em 6 delas não há
dados de autoria e todas as outras são assinadas pela redação da revista. Das 6 propostas creditadas a
pesquisadores, 4 referem-se a profissionais que atuam em instituições públicas 1, um atua em instituição
privada2 e outro não foi identificado. Vale destacar que as atividades assinadas por pesquisadores de
instituições públicas não apresentaram explicações que, segundo a análise, podem potencializar
obstáculos epistemológicos.

Nesse sentido, consideramos que falta à CHC um apoio de pesquisadores com conhecimentos
específicos da área de educação e ensino de Ciências, o que ajudaria a evitar inadequações. Cabe
ressaltar que a revista não identifica a equipe de redação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Ciência Hoje das Crianças (CHC) é uma revista de DC que propõe variadas estratégias para
apresentar o conteúdo abordado aos seus leitores, tais como: jogos, desafios, textos, curiosidades,
histórias em quadrinhos e atividades experimentais. Neste artigo, propusemos a identificação de atividades
experimentais de Física da revista CHC das edições do período de 2009 a 2020, que podem suscitar
obstáculos epistemológicos nos leitores.

Em nossa análise, identificamos os obstáculos epistemológicos em 20 das 66 atividades


experimentais de Física da revista CHC. O obstáculo verbal foi identificado em 9 atividades; o
substancialista, em 8; o animista, em 5; o de conhecimento geral, em 4; e o realista, em 2. Os obstáculos
do conhecimento pragmático e quantitativo não foram identificados em nenhum dos experimentos. Esses
obstáculos epistemológicos apresentam-se na forma de analogias, generalizações e explicações ingênuas
que prejudicam a construção dos conceitos científicos.

É preciso destacar que Bachelard não se opõe, necessariamente, a todo uso de analogias,
metáforas, formas de pensamento e generalizações que podem suscitar obstáculos epistemológicos.
Bachelard sinaliza que esses obstáculos são parte da construção científica, e o alerta que o epistemólogo
faz é sobre ter cautela no uso das formas de construção de conhecimento e que elas não permaneçam
nos falsos centros de interesse, uma vez que de nada vale a experiência empírica se ela não se constituir
como base das abstrações dos conhecimentos.

Compreendemos, a partir dos resultados, que essas atividades necessitam da intervenção do


professor na identificação e na superação dos obstáculos epistemológicos, para que a sua realização possa
ser potencializada. Sabemos da importância do professor, como ressaltam diversas pesquisas na área,
porém enfatizamos que não se pode atribuir toda a responsabilidade a esses profissionais.

Como foi dito anteriormente, a revista CHC apresenta várias estratégias para abordar os conteúdos
das diversas áreas das Ciências; neste trabalho, foram analisadas as atividades que abordam temáticas
relacionadas à Física. Acreditamos que os obstáculos epistemológicos podem ser investigados em outras
abordagens, nas atividades experimentais de outros assuntos e nos outros conteúdos das outras áreas
que a revista se propõe a divulgar. Entendemos também que um ponto essencial a ser investigado em
pesquisas futuras refere-se ao uso da revista na escola e, em decorrência do seu uso, quais são os
impactos que ela traz para o processo de ensino-aprendizagem.

Conforme apresentado na introdução, autores que tratam da DC relatam que ela pode ser uma
estratégia para uso em sala de aula, porém sempre mediada pelos professores (Rocha, 2012; Souza &
Rocha, 2018). Uma mediação adequada para uso da revista nas escolas pode possibilitar a construção do
pensamento crítico sobre a realidade, principalmente, considerando os dias atuais, em que o fenômeno da

1
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Instituto Federal da Bahia (IFBA).
2
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

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pós-verdade fomenta a divulgação de fake news fragilizando a construção do conhecimento científico e


sua divulgação (Alves-Brito, Massoni, & Guimarães, 2020).

Por fim, outro desafio, também destacado por Magalhães, Villagrá e Greca (2022), é a importância
de pesquisas que possibilitem o diálogo entre teorias do conhecimento científico e teorias de ensino-
aprendizagem para que possamos compreender quais estratégias e conceitos são apropriados para o
ensino de Ciências nas diversas faixas etárias.

Agradecimentos

À Universidade Federal do Amazonas, à Universidade Federal da Bahia, à Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do
Amazonas pelo apoio à realização dessa pesquisa. Agradecemos também ao corpo editorial da revista
IENCI e aos revisores pelas críticas e sugestões que muito contribuíram para essa publicação.

REFERÊNCIAS

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doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
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Referência do material analisado

CHC. Revista Ciência Hoje das Crianças. Instituto Ciência Hoje. SBPC, São Paulo, edições: 198 de 2009
a 317 de 2020.

Recebido em: 01.12.2021

Aceito em: 17.10.2022

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