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CAPA
Rubanne Damas
Createdby Pikisuperstar - Freepik.com
FICHA CATALOGRÁFICA
DAMAS, RUBANNE
Confie em Mim/ Damas, Rubanne – Jacarezinho/PR
2020 16 x 23cm
236 p.
ASIN:
1. Literatura brasileira. 2. LGBT
Produzido no Brasil
“Não desista, vá em frente, sempre há uma chance de você tropeçar em algo
maravilhoso.”
– Charles F. Kettering
P
— orra!
Xingo quando meu pé cai dentro de um bueiro entupido assim que
saio do táxi. Chacoalho meu pé, tentando fazer a água escorrer mais rápido,
porém é fato de que estou encharcado até minha canela. Levanto o olhar do
meu sapato estragado e praguejo mais uma vez ao perceber que o filho da
puta do motorista se foi.
Não tinha como não ver que havia uma maldita poça de esgoto aqui.
Balanço meu pé mais uma vez e bufo, sabendo que nada vai adiantar a não
ser retirar tudo e jogar no lixo mais próximo. Resignado, sigo pela calçada
apinhada de pessoas e desvio de alguns guarda-chuvas errantes. A época fria
do outono está no auge, o que promete um inverno frio e seco. E eu odeio
inverno. Todos os ventos e a água nunca é suficientemente quente no
chuveiro, deixando sua bunda fria enquanto você esquenta a frente.
Estremeço com o pensamento enquanto meu pé faz um estranho
barulho de meia molhada dentro de sapato de couro. Como uma galinha de
borracha estragada.
Aceno para o homem na portaria e entro no hall do prédio já quase
vazio. A secretária ergue os olhos quando me aproximo do balcão e abre um
sorriso pequeno, mas com olhos tristes. Eu nunca entendi o porquê ela
sempre me olha assim quando eu chego. Como se tivesse pena da minha
pessoa.
Pigarreio, ajeitando meu terno.
— Oi, Estefânia. Por acaso Maria Cecília já saiu? Eu ligo no celular
dela e só dá caixa postal.
Seus dentes mordiscam o lábio inferior e dá uma rápida olhada para o
elevador. Balança a cabeça de leve e suspira.
— Não, ela ainda não saiu, Pablo. Acho que deve estar na sala dela.
Quer que eu avise que está aqui?
— Não. Quero fazer uma surpresa.
Seus lábios comprimem e encolhe levemente os ombros.
— Boa sorte.
Ela se vira antes que eu possa perguntar o que quis dizer com isso.
Ajusto minha gravata e vou para o elevador, me sentindo estranhamente
incomodado com a atitude de Estefânia. As portas se fecham e aperto o botão
do quinto andar. Inclino-me contra a parede e olho para o visor, pensando em
tudo que aconteceu em minha vida desde que me casei com Maria Cecília.
Eu a conheci na faculdade e ela era tão doce e adorável. Me
apaixonei-me imediatamente pela forma como era atenciosa comigo e como
nossos gostos eram parecidos. Foram meses de sexo selvagem e eu coloquei
uma aliança em seu dedo quando completamos um ano de namoro. Eu estava
crescendo rápido na empresa onde ainda trabalho, conquistando um cargo
melhor que o outro e meu salário subindo.
Para um garoto de vinte anos isso é mais que perfeito.
Uma garota sexy no braço e uma promoção de salário alto no outro.
Eu não queria mais nada além de me casar com aquela mulher. Minha mãe
disse que isso era loucura, que eu estava cometendo o maior erro da minha
vida. Que Maria Cecília não era meu destino.
Entretanto, eu nunca acreditei nessa porcaria que minha mãe e irmãos
vivem dizendo. Nós fazemos nosso próprio destino. Não há um fio invisível
idiota que nos liga a alguém especial. Essa merda não existe.
Então eu me casei, comprei um apartamento gigante e um carro de
luxo. Depois de um ano casado, eu comecei a perceber que algo estava
definitivamente errado. Eu achei que Maria Cecília era tímida ao redor da
minha família, porque Deus sabe como eles são loucos. Pensei que se a
levasse com mais frequência até eles, iriam acabar gostando uns dos outros e
tudo seguiria em paz, mas percebi que os olhares da minha esposa para meus
irmãos não era timidez.
Era asco.
Meus irmãos me diziam as palavras duras com que ela se dirigia a
eles quando não estava por perto, mas eu pensei que eles estavam mentindo
para mim porque não aceitavam meu casamento com ela. Entretanto, suas
palavras duras começaram a vir mesmo quando eu estava presente. Cada vez
que ela agia daquela forma, tão preconceituosa e homofóbica, eu tentava
contornar a situação e manter ambos os lados separados. E quando
chegávamos em casa, havia discussões infinitas comigo me sentindo culpado
no final sem mesmo saber o motivo e indo dormir no quarto de hóspedes.
Quarto que nunca foi usado por ninguém porque ela não permitia visitas em
casa.
Tudo estava se tornando impossível. E esses dias em que fiquei fora
visitando a nova filial da empresa que está expandindo, eu percebi que tudo
se tornou intragável. O casamento está fadado a acabar mais cedo ou mais
tarde e eu não sei se eu sinto alívio ou fico arrasado por fracassar.
Esfrego meu rosto quando as portas se abrem e me empurro para
longe. Estou exausto pela viagem de avião cheia de turbulências e não durmo
há mais de trinta horas. Eu preciso de um banho e tirar esse maldito sapato
encharcado. Porém, eu quero ter uma conversa com Maria Cecília primeiro e
quando não a encontrei em casa, eu deixei minha mala no apartamento e vim
direto para seu trabalho.
As luzes do corredor estão apagadas, apenas alguns abajures nas salas
estão acesos. Caminho devagar até a sala de Maria Cecília e suspiro, não
sabendo por que eu estou temeroso em abrir sem chamar. Talvez Estefânia
tenha deixado minha mente perturbada com sua atitude estranha.
Balançando a cabeça, pego a maçaneta da porta e a empurro, meu
sorriso no rosto morrendo quando a porta se abre e me deparo com uma cena
que nunca pensei ver na minha vida. Maria Cecília de joelhos, chupando o
pau de um cara que eu não faço a menor idéia de quem seja.
Maria Cecília nunca chupou meu pau.
Em mais de quatro anos que a conheço, a vadia nunca me chupou.
E agora está de joelhos, engolindo o pau de um cara qualquer.
Seus olhos viram para os meus, sua boca ainda envolvendo o idiota
que sorri para mim, passando a mão entre os cabelos soltos dela.
— Que droga é essa?
Suas mãos apertam as coxas do idiota, que envolve o punho em seu
cabelo. Jogo as mãos para cima quando seus olhos debochados me dizem
claramente: “estou chupando um pau que não é o seu, otário”. Sua cabeça se
afasta, sua língua lambendo os lábios inchados quando um sorriso aparece em
seu rosto.
— O que parece para você?
Esfrego minha têmpora, grunhindo na sua direção.
— Por que está fazendo isso?
— Porque ele fode melhor que você — diz, encolhendo os ombros.
Inacreditável.
A sorte dela é que eu sou muito controlado e me limito a apenas
amaldiçoar ao invés de quebrar seu pescoço magro contra a mesa.
— Foda-se! Espere a maldita carta de divórcio em sua mesa, vadia!
Bato a porta atrás de mim e sigo com passos apressados para a
escada. Não há como eu descer de elevador. Eu poderia socar tudo dentro
daquela maldita caixa e acabar preso entre os andares. Mais humilhação para
minha conta.
Passo pela porta como um furacão e Estefânia se ergue lentamente da
cadeira, os dentes mordendo os lábios mais uma vez. Bato a mão sobre o
balcão, fazendo-a saltar.
— Você sabia?
Seus olhos se arregalam quando assente devagar.
— Há quanto tempo? — rosno.
Estefânia passa a mão por sua nuca, seus olhos presos em algo sobre
sua mesa. Torno a bater a mão sobre o balcão, chamando sua maldita atenção
para mim.
— Há quanto tempo, porra?!
— Há seis meses, Pablo. Me desculpe.
Solto um grunhido frustrado e me viro para sair do prédio. Passo pela
porta cegamente, minha raiva fluindo pelas minhas veias e misturada com a
dor da traição. Tudo estava indo de mal a pior no casamento, mas me trair?
Caminho pela calçada, minha mão coçando meu peito dolorido e eu sinto que
posso bater no primeiro imbecil que cruzar meu caminho. Ando sem rumo
por horas até parar na frente de um bar. Empurro a porta e caminho pelo
interior levemente escuro e sento em uma das mesas vazias.
Apoio minha cabeça sobre minha mão, fechando os olhos apertados
enquanto a voz da minha mãe soa na minha cabeça sobre o quão errado me
envolver com Maria Cecília seria. Um copo é depositado na minha frente e
ergo a cabeça para dizer que ainda não havia pedido nada quando vejo os
olhos conhecedores de uma mulher alta.
— Eu vi que você precisava de uma dose.
Assinto, envolvendo o copo com ambas as mãos.
— Obrigado. Mas, talvez, eu precise de mais algumas além desta.
Ela assente, sorrindo.
— Se precisar de qualquer coisa, me chame. Sou Dandara.
Torno a assentir enquanto a observo se afastar. Alta demais e com
ombros largos demais. Definitivamente é trans. Com o cabelo loiro cortado
na altura dos ombros, grandes olhos castanhos e boca vermelha, Ivete poderia
gostar muito dela.
Viro o copo sem olhar e faço uma careta quando o líquido desce
queimando minha garganta. Chacoalho a cabeça para tirar a sensação
esquisita e suspiro ao perceber que estou de estômago vazio e logo essa
bebida vai subir fazendo estragos. Gesticulo com a mão e Dandara se
aproxima novamente com um largo sorriso e mais uma dose de tequila pura.
Três doses depois eu estou vendo o triplo. Já tentei tirar minha
camisa, o que me foi impedido e resmunguei. Está calor como o inferno o
lugar. Dandara está sentada na minha frente com sobrancelhas unidas.
— Você me parece terrível.
Sorrio, levantando o copo.
— Obrigado.
— Não foi um elogio. — Balança a cabeça. — O que está fazendo
você beber tanto assim?
— Uma vadia — falo, franzindo o cenho. — Não gosto de me referir
a mulheres dessa forma, mas essa merece.
Dandara sorri, puxando o copo vazio da minha mão.
— Você me parece um cara bastante respeitável e certinho. O que
essa mulher fez para você?
— Ela é minha esposa — falo com amargura a palavra. — Era. Vou
pedir o divórcio.
— Por quê?
— Porque ela estava chupando o pau de outro cara, a cadela.
Nunca fez tanto sentido o apelido que meus irmãos deram para essa
mulher. Dandara bufa, me entregando um copo com água.
— Definitivamente, ela merece ser chamada de cadela e vadia.
Assinto, tentando focar em apenas uma das três mulheres na minha
frente.
— Cristo, precisa de tantas garçonetes assim para me ver beber?
Dandara revira os olhos e gesticula com a mão.
— Certo, cara engomado. Sua hora já deu. Vou chamar um táxi para
você.
Franzo as sobrancelhas ao me levantar e o bar gira, pendendo para o
lado. Apoio a mão sobre a mesa e aponto para uma das três garçonetes me
olhando.
— Não quero ir para minha casa. Não quero ver aquela cadela lá. —
Apalpo minha calça em busca da minha carteira e derramo as notas sobre a
mesa. — Meu irmão. Eu vou até Vicenzo.
Passo o endereço da casa dele enquanto Dandara me ajuda ir até a
saída e fica comigo esperando pelo táxi. Eu me apoio contra ela quando o
carro surge pela esquina e sua mão bate suavemente em meu ombro.
— Eu não te conheço muito, mas eu sinto que você é uma boa
pessoa. E azar o da sua esposa em perdê-lo.
Sorrio, apertando sua bochecha.
— Você é uma mulher espetacular. Minha irmã ia adorar você.
— Me sinto lisonjeada, mas eu prefiro homens. — Pisca para mim e
puxa a porta aberta. — Vá curar essa dor em casa. Volte quando não estiver
bebendo por um chifre, mas por uma promoção.
Aceno quando a porta é fechada e deito minha cabeça contra o
encosto, as ruas passando como um borrão na minha janela. Eu estou ferido e
uma garçonete foi gentil comigo. Esfrego meu peito mais uma vez, a dor se
irradiando e me fazendo encolher levemente. O carro para e eu saio aos
tropeços, acenando para o porteiro ao passar. Ele me conhece, então não há
porque me barrar na entrada. Subo até o andar de Vicenzo me sentindo zonzo
e meu estômago embrulhando com os movimentos estranhos da minha
cabeça.
Bato a mão na campainha e olho duas vezes para ter certeza de que
estou no lugar certo e não perturbando alguém que não seja meu irmão. Passo
a mão pela minha camisa sem realmente tomar nota do gesto quando a porta
se abre e meu irmão me observa com sobrancelhas arqueadas.
— Vicenzo!
Envolvo meus braços ao seu redor em um abraço de urso, mas meu
corpo acaba pendendo e ambos caímos em um emaranhado confuso. Vicenzo
me empurra para o lado e se senta enquanto eu rio baixinho. Eu não sei o que
é engraçado. Nosso tombo ou meu casamento indo ladeira a baixo. Vejo
Leon surgir e aceno para ele.
— Leônidas! Como vai? Eu me chamo Pablo, lembra? Eu tenho água
nos ouvidos. Vocês também estão com água nos ouvidos?
Chacoalho a cabeça, o que parece só piorar meu estado. Merda, estou
bêbado demais. Nunca deveria beber sem comer algo antes.
— Hum... Posso perguntar o que houve? — Leon questiona.
— Acho melhor carregarmos o peso morto para o sofá e fechar a
porta. Meus vizinhos não precisam de um show.
Meu irmão me puxa do chão e me carrega até o sofá, largando meu
corpo mole entre as almofadas.
— O que fazemos com ele?
— Um balde de água fria, talvez?
As vozes parecem distantes enquanto tento me manter acordado.
— Molharia toda sua sala.
— Isso é o de menos. Eu não posso bater nele, mesmo que eu esteja
com muita vontade. Atirar um balde de água com gelo sobre sua cabeça
grande iria me deixar um pouco mais satisfeito.
Vicenzo é uma dor na bunda. E eu quero muito erguer o dedo do
meio para ele, mas minha coordenação está uma merda.
— Você é estranho quando se trata dos seus irmãos — Leon
comenta.
Ergo-me no sofá e fito Vicenzo com atenção. É um momento lúcido
no meio de tanta embriaguez.
— Vicenzo... Droga, Vicenzo...
— Hey, o que houve? — pergunta, apertando meu ombro.
— Aquela vadia...
Não me contenho e começo a choramingar. Uma vergonha.
Choramingando pela vadia da minha esposa sem alma e moral.
— Acho que ele precisa de um banho frio. Muito. Urgente.
Vicenzo agarra meu braço e me puxa para cima, o que resulta em
tudo girando descontroladamente.
— Ajude um pouco aqui, Leon.
— Eu não sabia que vir morar junto implicava em carregar seu irmão
bêbado para o banheiro.
— Morar junto comigo implica ter minha família na sua vida. Queira
você ou não. Somos loucos, acostume-se com isso.
Eu sorrio com suas palavras, porque essa é a mais pura verdade.
Então faço uma carranca quando penso que Maria Cecília não soube dar o
devido valor a minha família. Algo frio atinge meu rosto e eu grito, mãos
forçando meus ombros a ficar debaixo da maldita água fria.
— Limpe sua cabeça. Se seque e venha para a sala. Eu devo ter
alguma roupa para você.
Resmungo, minha cabeça encostada no azulejo. Tiro minhas roupas
quando meu irmão sai do banheiro e deixo a água fria esfriar minha cabeça e
limpar meus pensamentos, expulsando o álcool. Desligo o chuveiro e me
seco, colocando as roupas de Vicenzo que ficam folgadas. Vicenzo e Rhuan
não são mais altos do que eu, mas são mais largos.
Saio do banheiro e desabo no sofá, minha cabeça começando a gritar
uma enxaqueca.
— Então, quem é a vadia?
— Quem você acha? Maria Cecília, óbvio — resmungo.
Vicenzo senta ao meu lado quando Leon se aproxima com uma
grande xícara cheia de café. Eu aceito e tomo um gole, quase cuspindo
quando queima minha língua.
— Merda, está quente.
— E então? O que sua maravilhosa esposa fez para você chamá-la de
vadia? Mesmo que meu apelido preferido seja cadela. — Vicenzo acusa.
Eu bufo, batendo a xícara no chão.
— Eu pensei em surpreendê-la e cheguei mais cedo em seu escritório,
mas quem ficou surpreso fui eu. A peguei com outro em sua sala e a boca
dela estava muito ocupada para sequer demonstrar surpresa.
E só de me lembrar disso me faz querer bater em algo forte. Sinto
Vicenzo apertar meu ombro e me viro para vê-lo me olhar com piedade.
Merda, odeio isso.
— Sinto muito. Você os pegou no ato?
— Se pegar no ato significa a boca dela envolvendo o pau dele em
um boquete... Sim, peguei no ato — digo secamente e passo as mãos no
rosto.
— Isso deve ter sido péssimo. — Leon comenta do outro lado, seus
braços cruzados contra o peito.
Vicenzo olha seu namorado com uma carranca e então se vira para
mim.
— O que você fez, Pablo?
— O que mais eu poderia ter feito? A vadia sequer tentou se explicar.
Ela simplesmente deu de ombros e ainda teve o disparate de me dizer que o
filho da puta fodia melhor que eu. Então eu fiz o óbvio. Virei as costas e bebi
como um gambá até ver três garçonetes na minha frente ao invés de uma.
Bendita seja Dandara. Preciso encontrar esse bar e ir até lá com um
pedido de desculpas por ser um idiota bêbado dando trabalho.
— Como você veio parar no meu apartamento? Deus, diga que não
dirigiu bêbado até aqui.
Balanço a cabeça, recolhendo a xícara e tomando mais um gole de
café. Precavido desta vez.
— Dandara me enfiou em um táxi. Eu não queria ir para casa já que
Maria Cecília deveria estar lá, então eu dei seu endereço. Pelo menos eu
conseguia me lembrar disso. — Envolvo meu estômago com os braços, a
xícara pendendo em meus dedos trêmulos quando tombo a cabeça entre os
joelhos. — Jesus, eu preciso de um vaso.
Levanto e saio tropeçando pelo apartamento em busca do banheiro.
Eu mal chego quando esvazio meu estômago na privada. Deprimente. Eu
engasgo, meu estômago forçando mesmo quando não há mais nada para
jorrar.
Levanto-me fraco e trêmulo, e limpo minha boca na pia. Talvez vir
até Vicenzo não fosse uma boa idéia. Ou mesmo beber como um gambá. Eu
deveria ir até minha casa, recolher as coisas de Maria Cecília e atirar janela a
baixo. Ela que se virasse. Agora eu ficaria fora de casa sendo que ela foi a
vadia? Não. Ela tinha de sair. E então eu pediria o divórcio e colocaria o
apartamento à venda. Separação igual entre nós e cada um seguiria sua vida.
Ela chupando quem quisesse e eu...
Balanço a cabeça, saindo do banheiro e sem saber quanto tempo eu
fiquei lá. Paro no corredor e escoro na parede quando engasgo ao olhar a
mulher parada perto da porta. Talvez eu estivesse meio bêbado quando
sentencio em voz alta:
— Você é um anjo?
Vicenzo bufa com meu comentário. Então talvez eu esteja realmente
bêbado, mas a garota parece muito com um anjo com todo seu cabelo de ouro
e olhos grandes. Vicenzo atinge a orelha da garota com um peteleco e eu me
encolho com o gesto.
— Ei!
— Está mais para um demônio com dentes de vampiro sugador de
almas e sentimentos felizes.
— Isso me pareceu um dementador[1] — Leon comenta, os dedos
massageando a têmpora. — Sem os dentes de vampiro. Mas combina com
ela.
— E você é um idiota trasgo.
Vicenzo grunhe e gesticula para a porta.
— Acho que está na hora de você ir. Não bata a porta quando passar.
— Você está me expulsando? — A garota praticamente grita. E sua
voz estridente dói em meus ouvidos.
Talvez ela não fosse um anjo realmente. Talvez uma Banshee[2].
— Sim. Vai pela sombra. Oh, aproveite e coloque meu irmão em um
táxi e certifique-se que ele chegue em casa.
Arqueio as sobrancelhas na sua direção ao me aproximar. Onde está
se preocupar com a família? Proteger? Cuidar?
— Eu não sou uma babá de bêbado e eu sequer o conheço! E ainda
não terminei minha conversa com Leon.
— Terminou sim — Leon resmunga de frente ao fogão.
— Mas...
— Laisha, aceite um não como resposta. Quando seu irmão quiser
conversar, ele irá até você. — Vicenzo gesticula para mim. — Você, pare de
babar e vá para casa. Chute a cadela porta a fora, durma e amanhã peça o
divórcio.
Balanço minha cabeça para parar de olhar para a garota. Parecia que
havia uma aura ao redor de seu corpo. Ou talvez eu definitivamente não
deveria beber nunca mais na minha fodida vida. A porta bate quando sou
empurrado para fora, ainda vestindo as roupas de Vicenzo. Seguro a calça
para não cair por meus quadris estreitos e olho para a garota emburrada.
— Você consegue pelo menos andar?
Suspiro, assentindo. Descemos em silêncio até o térreo e quando
saímos para a noite fria, apalpo meus bolsos e grunho ao perceber que deixei
tudo na casa do meu irmão.
— Você, uh... Se importa de pagar a corrida? Eu reembolso quando
tiver minha carteira de volta — falo rapidamente quando ela me joga um
olhar duvidoso.
Suspirando, assente e puxa sua carteira fora.
— Dê o valor da corrida ao Leon. Ele me dará depois.
Pego as notas de sua mão e abro um sorriso quando o táxi para na
nossa frente. Estico minha mão para um cumprimento e sua mão pequena
envolve a minha.
— Pablo.
— Laisha.
Aceno e entro no carro, caindo contra o encosto e me sentindo mais
cansado do que deveria. Sua cabeça loira aparece na janela e eu abaixo o
vidro.
— Seja o que for que o fez beber assim, não vale a pena.
— Provavelmente — comento amargo.
— Fique seguro.
Bate no capô e o carro se afasta. Esfrego meu rosto enquanto o taxista
segue para o meu apartamento e tomo coragem para enfrentar minha futura
ex esposa. Talvez eu não me lembre de tudo quando acordar no dia seguinte,
mas de uma coisa eu tenho absoluta certeza: Maria Cecília vai se arrepender
do que fez comigo.
Coisas na vida que não se devem quebrar, principalmente comigo:
confiança, promessa e meu coração. E essa vadia fez todas essas três coisas
da pior forma possível. Nada mais justo que fazê-la pagar na mesma moeda.
7 meses depois.
Observo o jardim da nossa casa e vejo que ficou pequeno com toda
a minha família e amigos. As crianças correm pelo gramado e dentro de casa,
desviando dos adultos como se fossem apenas postes no meio do caminho de
sua brincadeira. Uma bexiga estoura acima do ruído de conversa alta e o som
ligado.
E eu nunca me senti tão feliz como agora.
Braços envolvem minha cintura e um queixo é depositado em meu
ombro enquanto entrelaço meus dedos nos de Nico e me recosto em seu
peito.
— Fico incrível. Você já pensou em trocar de profissão?
Solto uma risada baixa e balanço a cabeça.
— Ser organizador de festas não é para mim. Eu quase entrei em
pane quando descobri que há todos os tipos de tamanhos para bexigas, assim
como para docinhos e formas de bolo. Estou muito bem onde estou obrigado.
Nico ri, beijando a curva do meu pescoço.
— Devemos dizer a Vicenzo que seu bebê está babando em sua
manga?
Desvio os olhos para onde meu irmão está de pé, sorrindo como um
bobo para Leon balançando um brinquedo colorido para a pequena bebê de
grandes olhos escuros e cabelos cheios de cachinhos pretos. Ana é realmente
adorável e parece um pãozinho com suas dobrinhas fofas. Meu irmão e Leon
haviam entrado na lista de adoção quando se casaram, mas só mês passado
conseguiram levar Ana para casa.
Com apenas sete meses, Ana é esperta e tão doce. Vicenzo e Leon se
apaixonaram. A trouxeram para casa e simplesmente não conseguem se
separar da pequena arrebatadora de corações. Nem mesmo eu consigo ficar
longe por muito tempo. Ana seria mimada pela família inteira e ninguém se
importaria com mangas ou camisas babadas.
— Nah, deixe-o. Eles estão dentro de sua pequena bolha e não
devemos estourar — digo, balançando a cabeça.
Eles sentam à mesa onde os melhores amigos de Vicenzo estão
sentados e vejo Tuco envolvendo o braço no pescoço de Carlos e deixando
um beijo suave na bochecha. Ficou bem claro o motivo do desconforto entre
eles no aniversário da minha mãe e nos eventos que se seguiram depois disso,
mas essa não é uma história minha para contar.
Ouço o grito entusiasmado de Lucas na mesa de presentes ao erguer
uma caixa grande sobre sua cabeça enquanto Rhuan olha para com um
sorriso. A língua de sogra pende na sua boca e há dois chapéus do Avengers
sobre sua cabeça, formando chifres que eu diria serem demoníacos. Combina
com ele. Muito.
Lucas dispara pelo gramado com ajuda de uma de suas muletas e eu
me agacho para ficar na altura de seus olhos quando se aproxima mancando.
A prótese do seu braço parece funcionar bem e há pouca vermelhidão na pele
onde ela encaixa.
Quando cheguei em casa com isso, Nico ficou horrorizado porque
custa um rim e um pedaço do fígado, palavras dele. Lucas ficou preocupado
que eu tivesse vendido partes do meu corpo para dar um braço a ele.
— Pai! Pai! Olha o que tio Rhuan me deu! Uma pista de corrida
gigante!
Passo a mão por seu cabelo e sorrio.
— Oh, ele deu?
— Sim! Monta comigo? Eu deixo você ser o vermelho.
— Ei! Eu pensei que eu seria o vermelho — Rhuan reclama.
— Eu deixo na próxima vez. Meu pai Pablo precisa ser o primeiro.
— Lucas se vira para Nico com olhos brilhantes. — E eu te dou o primeiro
pedaço de bolo, pode ser?
— Com quem você aprendeu a barganhar assim? — Nico pergunta,
cruzando os braços.
— Tia Olívia — responde, pousando a caixa no chão e a abrindo.
Claro que tinha de ser a Olívia Palito. Rolo meus olhos e coloco a
mão sobre a caixa que Lucas está depenando sobre a grama.
— O que acha de deixar guardado até quando a festa acabar? Então
nós montamos e jogamos uma rodada.
— Mesmo se for muito tarde para dormir?
— Mesmo se for — Assinto. — Agora, eu e seu pai temos nosso
presente. Você quer vê-lo?
— É uma bicicleta de rodinhas? Ou o boneco do Transformes em
tamanho real? O novo jogo de videogame?
Sorrio, sabendo que essa ansiedade toda era vinte e quatro horas por
dia. Me levanto e nós três entramos em casa. Nico guia Lucas para nosso
quarto e o senta na cama quando eu pego a caixa com furos nas laterais. Me
ajoelho na sua frente e apoio a caixa entre suas pernas balançando sem parar
na borda do colchão.
Nico apoia a mão sobre seu joelho e isso o para instantaneamente.
— Aqui está. Abra-o.
Mordo meu lábio, subitamente ansioso. Olho para Nico sorrindo para
mim e pisca quando Lucas começa a puxar o laço vermelho. Havíamos
conversado sobre isso no mês passado e como Lucas havia pedido tanto
depois de irmos até uma loja e viu através da vitrine. Então quando eu e Nico
voltamos um dia sozinhos e batemos os olhos no canto, nós clicamos.
Sabíamos que era nosso.
Então eu não sei porque estou nervoso.
A tampa da caixa é jogada de lado quando Lucas enfia a cara dentro e
solta um grito abafado quando puxa a pequena bolinha chocolate de olhos
caramelos para fora. Lucas aconchega o filhote nos braços e seus olhos vão
de mim para Nico.
— É meu? De verdade?
— Sim, e é ela. Escolha um nome — Nico diz, passando a mão pelo
corpinho redondo.
Lucas a observa no colo, sua mão balançando a orelha molinha e
sorri.
— Que tal Bombom?
— Bombom parece combinar com ela — falo, me levantando. —
Mas você sabe que terá que cuidar dela, não é?
— Sim! Ela é minha responsabilidade. — Lucas beija o topo da
cabeça do filhote e murmura. — Para sempre e sempre.
— Sim, e saiba que ela não é um brinquedo, okay? Bombom vai
crescer e envelhecer nessa casa, então cuide bem dela. Limpe sua sujeira, dê
comida e brinque com ela — Nico diz, passando o braço por meus ombros.
Lucas assente e ergue os olhos brilhantes para nós.
— Vocês são os melhores pais do mundo. Nós vamos ficar juntos
para sempre, não é?
Sorri, passando a mão por seus cabelos e assentindo.
— Por quanto a vida durar.
O vejo assentir satisfeito e se levanta desajeitado com o filhote no
colo.
— Posso levá-la para brincar lá fora?
— Sim, mas cuidado. Ela ainda é pequena — digo, entregando a
muleta para ele.
Mordo meu lábio mais uma vez ao vê-lo enrolar Bombom na curva
de seu braço fino e curto, tentando mantê-la contra o corpo enquanto seu
outro braço segura a muleta para sair do quarto. Bombom escorrega um
pouco, mas Lucas a mantém de volta no lugar antes de desaparecer pela
porta.
Me recosto contra a lateral de Nico e solto um suspiro.
— Como você consegue?
— O quê? — pergunta com os lábios contra minha bochecha.
— Essa autonomia. Às vezes é tão difícil deixa-lo ir...
— Mas você precisa. Se trata de fazê-lo perceber que pedir ajuda não
é ruim, mas ele não é inválido. Um braço pela metade e pernas um pouco
ruins, mas ainda funcional. — Nico me vira de frente para ele e beija minha
boca suavemente. — E você faz isso muito bem. Só continue assim e tudo
dará certo.
Envolvo meus braços ao seu redor e busco por sua boca em um beijo
solto e lento. Solto um gemido quando suas mãos vão das minhas costas para
minha bunda e enfio meus dedos por seus cabelos para puxá-lo para mim.
Antes que as coisas pudessem esquentar um pouco mais, há um
pigarro na porta e nos soltamos com respirações rápidas para olhar quem
atrapalha.
— Hora do parabéns. — Vicenzo arqueia uma sobrancelha, uma mão
cobrindo os olhos de Ana. — Nós cantamos ou esperamos vocês dois
acabarem o que começaram? Vocês sabem que tem crianças no jardim, certo?
Rolo meus olhos e me solto de um Nico de bochechas rosadas,
puxando-o pela mão para fora. Vicenzo sorri para minha carranca e resmungo
quando passo ao seu lado.
— Sorte a sua que Ana está com você, ou eu ia atirar a caixa de
presente sobre sua cabeça grande.
— Bem, sorte a minha — Vicenzo ri e caminha na nossa frente.
Saímos para o jardim mais uma vez e vejo Lucas atrás do bolo,
Bombom enrolada em seu braço e parecendo muito curiosa sobre os docinhos
sobre a mesa. Ângelo envolve o pescoço de Lucas com um braço quando
minha mãe bate uma foto e Luna pergunta onde está o isqueiro para acender a
vela.
É uma bagunça e eu só consigo sorrir para a grande família na minha
casa. A vela de número oito é acesa e começamos a cantar de forma
descoordenada, Bombom latindo e tentando roubar um pedaço do bolo.
— Faça um pedido! — minha mãe grita enquanto continua gravando
com seu celular.
Lucas olha ao redor com um largo sorriso e se inclina sobre a vela,
assoprando-a. Bombom consegue lamber o chantilly do canto, o que faz
todos exclamarem e rirem. O primeiro pedaço é entregue para Nico e eu me
vejo perguntando quando Lucas me dá o segundo.
— O que você pediu, Ligeirinho?
Lucas lambe o polegar e balança a cabeça.
— Nada.
— Nada? — Nico franze o cenho, lambendo seu garfo.
— Eu não preciso de nada. Eu tenho tudo o que eu preciso bem aqui.
Nico e eu envolvemos nossos braços ao redor de Lucas, beijando
cada um uma bochecha. Eu havia recebido tudo o que mais sonhei na vida:
minha própria família para cuidar. Um filho. Um amor que me amasse da
forma como eu sou.
E eu consegui, principalmente, confiar em mim mesmo.
Mais uma história chega ao fim. Foi tão difícil escrever essa, me
peguei muitas vezes me perguntando se deveria. Então, conforme ela foi
indo, percebi que mais do que deveria contar sobre como Pablo se sentia no
meio de toda a bagunçada família Alencar. Ele precisava ter voz. E,
principalmente, de alguém que o amasse.
Obrigada por todos que acompanharam essa família, mas esse é o
fim. Apenas mais um conto nos espera, mas os Alencar estão se despedindo
definitivamente. Vou sentir saudades dessa grande família tão amorosa.
Obrigada ao Igor por toda a paciência em me ajudar com dúvidas e
trechos na história. Sobre o ponto de vista de um leitor e amigo.
Obrigada Paula por sempre ser uma grande amiga, uma irmã de
coração. Por palpitar e ser sempre tão presente. Eu amo você!
Em breve retornarei com mais histórias e espero que vocês
acompanhem e amem cada capítulo.
Não é um adeus.
É apenas um até breve.
PRÓXIMO LANÇAMENTO!
“Química e Física”
(Spin-Off da Trilogia Destinos, livro 3,5)
Sinopse:
Era para ser apenas uma despedida de solteiro entre amigos. Um
pouco de bebida de qualidade, música e alguns jogos estúpidos. Nada
prejudicial. Porém, Carlos e Tuco não podiam prever que ficariam sozinhos
no apartamento super chique de Carlos, bêbados demais e tendo péssimas
ideias sobre strip poker.
Um jogo de carta sobre a mesa, uma roupa a menos.
Um beijo explosivo demais para se esquecer com a enxaqueca no dia
seguinte. E uma atração irresistível demais para ser deixada de lado quando
os olhos de ambos se encontram.
Um conto irresistível onde Carlos e Arthur percebem como a química
é explosiva ao se tornar tão física.
[1]
O dementador (dementor) é uma das criaturas criadas por J. K. Rowling.
[2]
É um ente fantástico da mitologia celta (Irlanda) que é conhecida como Bean Nighe na mitologia.
[3]
Nerf é uma marca de brinquedos criada pela Parker Brothers e atualmente de propriedade da Hasbro.
[4]
Tranças de origem africana.
[5]
É um personagem fictício da série animada Steven Universe, criada por Rebecca Sugar.
[6]
Max é um personagem fictício, jovem filho do popular personagem da Disney Pateta. Nico faz
referência já que ela o chamou de Pateta.
[7]
É um personagem fictício criado pelos estúdios da Warner Brothers.
[8]
Modelo de capa de revista masculina.
[9]
Café com licor de amêndoa, creme de leite e canela.
[10]
Ou cavalo com arções é um aparelho utilizado na ginástica artística apenas por atletas masculino,
composto de um corpo prisma mais estreito na parte inferior, montado horizontalmente sobre uma base,
com duas alças sobrepostas ao corpo.