Artigo Jurema
Artigo Jurema
Artigo Jurema
Jurema Werneck
Janeiro de 2013
Ensaio elaborado para o Prêmio Mulheres Negras contam sua História, promovido pela
Secretaria de Políticas para as Mulheres
Ao criar o termo para definir as participantes dos auditórios dos programas de rádio nas
décadas e 40 e 50, Nestor de Holanda talvez não estivesse consciente da amplitude discursiva
de sua criação. Macaca, macaco, têm sido ao longo dos anos do racismo entre nós, termos
pejorativos para definir de modo ofensivo e inferiorizante a pessoa negra. Animalização,
desumanização e discriminação se associam a este recurso, que habita o cotidiano e o senso
comum da sociedade brasileira. Assim, macaca de auditório é denominação que implica a
aceitação das regras do racismo para definir as mulheres negras e seus modos de participação
como consumidoras de produtos culturais, em especial aquelas atuantes nos programas
musicais do rádio brasileiro na primeira metade do século XX. Destacam-se os excessos - de
gesticulação, de ruídos, de expressão - buscando destacar o seu oposto, a falta: de modos, de
recato, de elegância, de contenção, prescritos às “boas” mulheres da época. E, principalmente,
a falta de pertencimento.
Nos dias atuais, quando já se consegue ver a inspiração racista na origem do termo, é cada vez
mais difícil seu uso na esfera pública, especialmente nos discursos midiáticos. Afinal, foi um
longo percurso até aqui, marcado por fortes disputas - nunca definitivas - acerca dos processos
que explicam a sociedade brasileira e suas incongruências. A longa hegemonia do mito da
democracia racial foi lentamente deslocada em favor do reconhecimento da força com que o
racismo estrutura relações sociais, econômicas, culturais. Deslocamento que permite
visualizarmos sua abrangência e os impactos produzidos ao longo dos anos – séculos! –, apesar
de haver um igualmente longo caminho para a sua superação e a destruição de seus efeitos.
A crescente produção de dados numéricos e qualitativos acerca das iniquidades raciais, ao lado
de elaborações conceituais recentes, expõe as piores condições de vida enfrentadas por
mulheres e homens negros nas diferentes regiões do país. Permitindo a demonstração das
diferentes formas com que a desigualdade racial incide sobre indivíduos e grupos não
homogêneos. Da mesma forma, o conceito de interseccionalidade apresentado na década de
90 por Kimberlé Crenshaw1 tem sido fundamental para a explicitação das diferenças e
desigualdades entre sujeitos subordinados. Possibilitando o (re)conhecimento das várias
formas como o racismo interage com diferentes eixos de subordinação, aprofundando ou
atenuando iniquidades. Indo além, permite a constituição de mecanismos capazes de
confrontar seus impactos.
No Brasil ainda fortemente marcado pela iniquidade produzida pelo racismo e suas
interseccionalidades2, a metáfora criada por Gilberto Freyre no início do século XX permanece
atual: o esquema Casa Grande-Senzala ainda funciona como chave de leitura para as formas
de hierarquização racial entre nós, com forte marca patriarcal e patrimonialista. Ele expõe
modos de controle do acesso aos valores e riquezas econômicos e simbólicos da nação, ainda
ancorados nos interesses dos homens brancos, sendo distribuídos com parcimônia para
mulheres deste grupo racial, após o que poderão ser alcançados por homens negros e
mulheres negras, nesta ordem. Assim, continua atuante a chamada “linha de cor”3, onde os
mais escuros enfrentam uma carga maior de expropriações e injustiças. Neste cenário, o
racismo se apropria de mecanismos patriarcais, relegando ao polo feminino4 as piores posições
abaixo e acima da linha de cor. Dessa perspectiva, é capaz de plasticidade suficiente para
adequar-se a diferentes contextos e condições, requerendo respostas dotadas de igual
maleabilidade, para produzir alterações consistentes no quadro de desvantagens
experimentadas.
1
Em Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6 (Jul., 1991), pp. 1241-1299
2
Gênero, identidade de gênero, geração, condição física e/ou mental, região ou local de moradia, entre
outras.
3
Definido por W. E. B. Dubois, em The Souls of Black Folks, publicado em 1903.
4
Inserem- se neste grupo não apenas as mulheres, mas também todos e todas que se distanciam da
norma vigente que privilegia a masculinidade heterossexual e, nela, os homens. Assim, mulheres
heterossexuais, bissexuais e homossexuais, ao lado de transexuais e travestis ocupam posições de
inferioridade, agravadas ou atenuadas por seu pertencimento racial e outras identidades ou
características individuais ou grupais.
Apesar dos passos dados até aqui, a força e persistência da hierarquização racial e de gênero
permanecem desafiando a inteligência da nação a elaborar respostas adequadas capazes de
reposicionar e equiparar os diferentes grupos sociais em patamares de justiça e igualdade.
Importante reconhecer desde já que as mulheres negras são uma coletividade heterogênea,
que têm em comum a vivência do racismo patriarcal heteronormativo em seus extremos.
Resulta daí piores condições de trabalho, renda, educação e saúde; maior vulnerabilidade a
diferentes violências (física, psicológica, simbólica), num quadro de desproteção social cada
vez mais visível nos dados oficiais disponíveis5. No entanto, em meio à visibilidade crescente
dos impactos do racismo, persiste a lacuna quanto aos modos deste coletivo amplo lidar com
as diferentes realidades, suas estratégias de confronto e de produção de espaços de liberdade.
De fato, um dos “efeitos colaterais” do reconhecimento do racismo entre nós tem sido a
leitura da realidade das mulheres negras (mas não apenas delas) apoiando-se em excessiva
vitimização, negligenciando e invisibilizando confrontos, conflitos, resistências e resiliências. O
que tem impedido que se reconheça, no grupo, sujeitos sociais e políticos não apenas
despossuídos ou derrotados, mas capazes de agenciamentos e reconfiguração das relações
sociais e dos territórios em que vivem.
Este é um dos pressupostos deste estudo6, as capacidades das mulheres negras de resistir e
superar os quadros desfavoráveis. Capacidades que podem estar por trás das mudanças
experimentadas ao longo dos anos no plano individual e coletivo.
A análise destes processos encontra, aqui, foco específico: a participação das mulheres negras
na cultura brasileira, particularmente na cultura popular, uma vez que esta tem sido uma
importante arena de disputas entre modelos e projetos de nacionalidade e brasilidade, e de
seus critérios de pertencimento. Na cultura popular, mulheres e homens negros têm, a
exemplo do que aconteceu em diferentes países da diáspora africana, produzido hegemonias
que não se traduziram - ou se traduziram de forma instável, imprecisa e insuficiente - em
melhorias nas condições de vida. Ainda assim, tais hegemonias expõem protagonismos e
protagonistas que nem sempre recebem o destaque necessário.
Assume importância uma breve análise da presença das mulheres negras na música popular
brasileira e no rádio. Nela, analisarei a participação de algumas mulheres negras emblemáticas
para a discussão que desenvolvo acerca dos discursos sobre raça presentes no contexto da
5
Ver IPEA; SPM; IBGE; LAESER; entre outros.
6
Estudo que se apoia não apenas em estudos empreendidos por G. Spivak, S. Hall, E. Said, b. hooks, P.
H. Collins, N. Canclini, P. Gilroy, M. Sodré, S. Carneiro, H. Theodoro, L. González, B. Nascimento, C. Pons
Cardoso, J. Werneck e vários outros; mas também e fundamentalmente, na experiência cotidiana da
ausculta das diferentes histórias de vida e ação das mulheres negras na diáspora africana. Como
exemplo, ver Werneck, J., Iraci, N., Cruz, S., Mulheres Negras na Primeira Pessoa (2012).
música popular e sua indústria, visibilizado algumas formas como o racismo se coloca e
enfrentado. É no rádio que surgiram as chamadas “macacas de auditório”, que terão sua
participação na indústria cultural na primeira metade do século XX vista através de aspectos de
raça, racismo, capacidade de agenciamento no fenômeno dos programas de auditório.
Ao longo dos tempos e territórios da diáspora africana, cultura tem sido um importante espaço
de disputas para a afirmação de novos discursos sobre a negritude e seus sujeitos, mais além
do longo percurso de disputas e exclusões envolvidas na constituição daquilo que o conceito
traduz (Sodré, 1996). O mesmo acontece na chamada cultura popular: trata-se de um terreno
povoado de contradições, disputas e esgarçamentos. Ela foi - e continua sendo - um
importante território de produção identitária individual e grupal, especialmente para o
contingente de africanos escravizados e seus descendentes diaspóricos. Ou seja:
Cultura não é uma viagem de descobrimento e certamente não é uma jornada de retorno. Não
é uma arqueologia. É uma produção. (...) Cultura não é uma questão de ontologia, do ser, mas
de tornar-se. (Hall, 2000, p. 7)
A mulher negra foi, na escravidão e nos primeiros tempos de liberdade, a viga mestra da
família e da comunidade negras. Neste período inicial de liberdade, as mulheres foram
forçadas a arcar com o sustento moral e com a subsistência dos demais. (Theodoro, 1996, p.
34)
A mesma centralidade era vivida nos diferentes contextos da diáspora (Reagon, 1996) e
guardava relação com experiências vividas no continente africano:
Situações também encontradas durante sua permanência no Brasil dos anos 30 do século XX
em Salvador, para estudos que resultaram na publicação sintomaticamente denominada
Cidade das Mulheres.
Esta perspectiva torna interessante analisar a participação das mulheres negras na música
popular, reconhecida sua abrangência como produto dotado de valor de mercado, mas não
somente.
Desde o Brasil colônia, a música foi vivida e produzida pelo contingente populacional negro
não apenas como objeto de deleite, mas principalmente como veículo discursivo, como algo
que fala, para além dos prazeres de ritmo e melodia. A música foi – e ainda é - um meio de
produção e expressão de singularidades discursivas e/ou interpretativas à disposição de
produtores e consumidores. Nela, se delinearam (delineiam) as afirmações identitárias
necessárias para a constituição e positivação de mulheres e homens negros como indivíduos e
grupos, em contextos extremamente desfavoráveis da escravidão e seus períodos
subsequentes de exclusão racista. A música permitiu a circulação de informações acerca do
regime e suas brechas, propiciando o confronto a outros discursos e práticas de subordinação,
bem como a elaboração e disseminação de estratégias de liberdade.
O topos de indizibilidade produzido a partir das experiências dos escravos com o terror racial e
reiteradamente representado em avaliações feitas no século XIX sobre a música escrava tem
outras importantes implicações. Ele pode ser utilizado para contestar as concepções
privilegiadas tanto da língua como da literatura enquanto formas dominantes de consciência
humana. O poder e significado da música no âmbito do Atlântico negro têm crescido em
proporção inversa ao limitado poder expressivo da língua. (Gilroy, 2001. p. 160).
Transpondo estas visões para as condições de existência dos descendentes destes escravos e
suas necessidades de sobrevivência e afirmação local e diaspórica no pós- escravidão, pode-se
acreditar que a música manteve sua capacidade comunicativa, organizativa, de afirmação
identitária e de aglutinação em torno dos mesmos pressupostos e práticas culturais.
Especialmente se considerarmos a menor influência que as culturas letradas tiveram entre
estes grupos, junto ao compartilhamento de heranças culturais que valorizavam e valorizam
formas de comunicação baseados na oralidade e corporeidade. Nas palavras de Muniz Sodré,
“música não se separa de dança, corpo não está longe da alma, a boca não está suprimida do
espaço onde se acha o ouvido.” (Sodré, 1998, p. 61). Pois trata-se de:
Por diferentes caminhos e processos, o produto negro apresentado à indústria cultural passou
a veicular conteúdos e formas que tornaram-se hegemônicos:
Afirmativa que expõe, no caso brasileiro, a proporção que o samba assumiu, a partir de seu
primeiro registro oficial ainda na segunda década do século XX, mas que estende-se a outras
formas musicais.
De todo modo, o predomínio da música negra, ou mesmo da cultura negra, na cultura popular
não foi um fenômeno exclusivamente brasileiro, sendo verificado em outros espaços da
diáspora africana, a exemplo do jazz (Griffiths, apud Fenelick, 2005).
7
Assim, torna-se inócua a pergunta acerca do “mistério” da ascensão do samba, produto negro, à
condição de símbolo da nacionalidade brasileira marcada pela hegemonia racial branca. Bem como dá-
se outro significado ao mito fundacional mais aceito, que endereça a um grupo de homens negros (e
brancos) atuantes na primeira metade do século XX a autoria do produto. A este respeito ver Vianna,
H.1996.
ao largo dos interesses divergentes e das diferenças político-ideológicas presentes na cultura e
na música brasileira:
Chiquinha Gonzaga era a primeira filha de um total de quatro filhos9 de uma mulher negra
chamada Rosa Maria de Lima. Como mulher afrodescendente, é possível supor que cresceu e
foi educada na convivência com as formas culturais dos negros da época, não apenas por sua
origem, mas também por habitar uma cidade em que o contingente negro era considerável
(Karasch,2000). De sua convivência com as formas culturais negras surgiram muitas de suas
8
Tia Ciata nasceu em Salvador, tendo emigrado para o Rio de Janeiro aos 22 anos. Ver Moura, 1983.
9
Reconhecidos oficialmente pelo pai branco somente quando Chiquinha estava com 13 anos.
características comportamentais e também as manifestações culturais e musicais que utilizou
como substrato para suas criações inovadoras. Tia Ciata tornou-se parte do contingente negro
do Rio de Janeiro em 1876, quando chegou à cidade. Nela, trabalhou nas ruas centrais e na
famosa Festa da Penha como vendedora de quitutes, da mesma forma que muitas mulheres
negras antes dela. Exerceu sua autoridade religiosa na comunidade negra a que Heitor dos
Prazeres denominou de “África em miniatura”10, localizada entre os bairros da Saúde e a Praça
Onze cariocas. Foi figura essencial na disseminação dos costumes afro- brasileiros para a
sociedade não negra. Disseminação também protagonizada por Chiquinha, que trouxe o lundu
e o maxixe populares nas ruas e territórios negros da cidade para os pianos das salas dos
brancos da época. Além de seu grande sucesso popular com a marcha-rancho “Ô Abre Alas”,
composta para a apresentação carnavalesca do Cordão Rosa de Ouro em 1899. E Ciata foi
presença importante nas associações culturais e festeiras como os ranchos, por exemplo, um
dos embriões das atuais Escolas de Samba11. O primeiro samba a ser registrado oficialmente,
“Pelo Telefone”, teria a própria Ciata entre seus autores. Ainda hoje, grande parte de sua
trajetória pessoal e das demais mulheres negras de sua comunidade, como Perpétua,
Veridiana, Calú Boneca, Maria Amélia, Rosa Olé, Sadata, Mônica e sua filha Carmem do Xibuca,
Gracinda, Perciliana, Lili Jumbeba, Josefa, Davina, permanece desconhecida. Já Chiquinha
Gonzaga teve sua figura disseminada pela mídia moderna, tornando-se personagem principal
de uma série televisiva, onde foi representada por uma atriz símbolo da branquitude
conservadora brasileira. Mas resta ainda um percurso relevante de pesquisas que permitam
recolocar seu pertencimento à comunidade negra e visibilizar as demais mulheres negras de
sua convivência, sua comunidade, suas atuações e costumes à época.
O produto negro foi fundamental para a consolidação da indústria cultural carioca e brasileira.
Seus agentes foram homens e mulheres de diferentes origens sociais e raciais, com grande
destaque para a população negra e seu envolvimento nos diferentes momentos da produção e
do consumo cultural.
Como vimos, a modernização tecnológica vivida no Brasil, especialmente no final do século XIX
e início do século XX, teve papel importante para a ampla disseminação destes produtos, em
contraponto à mobilidade limitada que o racismo impunha a seus formuladores e agentes
negros. Note-se que a indústria cultural instalada obedecia aos preceitos do tipo de
capitalismo que interessava à sociedade racista e patriarcal da época: uma empresa masculina
voltada para a apropriação, pela minoria branca, dos valores materiais e simbólicos gerados.
Ainda assim, havia algum espaço de lucratividade e prestígio para negros, em especial, os
homens:
10
Rebatizada de Pequena África pelo jornalista Roberto Moura (2000).
11
O jornalista e pesquisador Jota Efegê assim escreve a dedicatória de seu livro Ameno Resedá – o
rancho que foi escola. Documentário do carnaval carioca. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1965: “A
Tia Bebiana, Tia Aciata, Hilário Jovino Pereira, e aos que com eles colaboraram no lançamento do rancho
no Carnaval carioca, homenagem.”
Um mundo de trabalho eventual, solto, anárquico, que
permitia a transcendência dos limites impostos pela
sociedade, garante para alguns um sucesso pessoal sem
precedentes, e eventualmente o triunfo da cultura
popular negra veiculada pelas empresas de
entretenimento. (Moura, 2000, p. 143).
Grande parte das narrativas sobre a implantação e consolidação da indústria cultural no Brasil
da época não explicita os locais e os modos de participação feminina, especialmente no que se
refere a seu protagonismo. Mas permite a aproximação com os determinantes do
silenciamento acerca da presença das mulheres negras: ganhos financeiros e simbólicos foram
e continuam sendo intensamente disputados na indústria cultural e na música popular, sendo
o racismo patriarcal uma ferramenta potente para justificar sua apropriação por uns, em
detrimento de outras. Não foi coincidência, portanto, o fato de boa parte da música popular
veiculada nas primeiras décadas do século XX buscar produzir e afirmar a inferiorização e
subordinação das mulheres, em especial das negras, através do policiamento e/ou interdição
de sua presença em ambientes e empreendimentos públicos. O que incluía a ampla
disseminação de músicas que prescreviam e legitimavam a violência como modo de contenção
das mulheres12. Em escala industrial, propagou-as “virtudes” de restringir-se a presença das
mulheres negras ao espaço privado negro, ao lado de discursos condenatórios e
estigmatizantes à sua presença nas ruas, de forma a aprisioná-las em mecanismos patriarcais
antes restritos às brancas.
A presença de mulheres negras em espaços públicos foi um fato constante em toda a história
colonial e republicana, o que é atestado por diferentes relatos da época e por pesquisas mais
recentes. Por um lado, esta presença guardava continuidade com costumes dos diferentes
povos africanos aqui aportados, onde as trocas culturais e materiais aconteciam em ambientes
públicos com forte participação das mulheres. E, por outro, respondia às necessidades da
empresa colonial escravagista, de promover todo tipo de possibilidades de ganhos com a
exploração da mão-de-obra escrava, obrigando as mulheres escravizadas a diferentes
trabalhos nas ruas e em outros ambientes públicos nas cidades. Ainda assim, apesar de
amplamente difundida, esta participação foi intensamente policiada e estigmatizada.
Assim, a opção por disseminar discursos restritivos e condenatórios expõe disputas acerca da
abrangência do patriarcado nas estruturas de segregação racial da época, tendo a música e sua
indústria como veículos fundamentais de ampla penetração. Ou seja: a partir da propagação e
legitimação do modelo de homem negro ou não como ser misógino, estes produtos culturais e
seus autores, em associação com a indústria e com os interesses hegemônicos na sociedade
12
Muitos destes produtos contaram com registro fonográfico nos anos recentes, no Projeto O Samba é
Minha Nobreza, desenvolvido por Hermínio Bello de Carvalho em 2002. Para outros exemplos, ver
Mattos, 1982.
patriarcal e racista, concorreram para a exclusão e/ou invisibilização da participação das
mulheres negras em diferentes espaços13.
Araci Cortes foi, possivelmente, a primeira estrela da música brasileira, mas raros são os
registros sobre sua trajetória que recuperam seu pertencimento racial negro, sendo descrita
como “morena”. Iniciou carreira no teatro amador, dentro das fronteiras da Pequena África,
no bairro da Saúde, na mesma rua que viu circular a comunidade de Tia Ciata e veria o
nascimento de Dolores Duran. Profissionalizou-se ainda na adolescência, aos 16 anos, no circo,
ao lado do então famoso palhaço negro Benjamim de Oliveira, passando ao teatro e ao disco
em 74 anos de atuação descontínua. Destacou-se no momento em que a indústria cultural
incipiente, especialmente a música e o teatro de revista, incorporou de modo mais profundo
os elementos negros. Foi responsável pelo abrasileiramento brejeiro da performance musical,
antes influenciada pelas formas europeias de canto lírico. Suas músicas faziam referência
direta à linguagem e ao modo de vida da população negra, o que resultou num estrondoso
sucesso, tendo entre seus grandes sucessos a composição Jura (em 1928), de Sinhô, integrante
da comunidade de Tia Ciata e famoso compositor de sambas. Foi uma das participantes, em
1965, do espetáculo histórico dedicado à cultura negra e ao samba, “Rosa de Ouro”, ao lado de
Clementina de Jesus e do jovem Paulinho da Viola. Ao manejar as possibilidades e
13
bel hooks faz interessantes considerações acerca desta aliança patriarcal em torno da música negra,
ao analisar o exemplo do rap estadunidense (hooks, 1994).
ambiguidades da indústria em relação à raça14, Araci Cortes dialogou com as aspirações negras
e populares por maior expressão cultural, logrando deslocar as formas europeias e consagrar
as formas negras na indústria cultural.
Aracy de Almeida nasceu pobre no bairro do Encantado, na zona norte da cidade do Rio de
Janeiro:
Começou a cantar na igreja evangélica onde seu irmão era pastor, mas foi no estúdio PRB-7 da
Sociedade Rádio Educadora do Brasil em 1934, ocasião em que conheceu Noel Rosa, que sua
carreira se iniciou. Foi considerada, por Noel e outros críticos da época, sua melhor intérprete:
"Aracy de Almeida é, na minha opinião, a pessoa que interpreta com exatidão o que eu
produzo” (Noel Rosa apud Máximo e Didier, 1990, p. 323). Gravou outros compositores
reconhecidos em 181 discos de diferentes tecnologias de gravação. Seu sucesso a levou ao
cinema, onde protagonizou um confronto ao racismo que ficou registrado: recusou- se a
gravar uma cena sugerida pelo próprio Noel Rosa que a traria, de pano na cabeça e trajes
pobres, estendendo roupa num varal, vivendo um estereótipo de mulher negra, isto ainda no
ano de 1936! O que não impediu a continuidade de seu sucesso em diferentes meios: rádio,
discos, boates, cinema e televisão em diferentes programas, como apresentadora e jurada. Na
sua participação em TV encarnou, já na parte final da carreira, o papel da jurada irritadiça e
exigente que, segundo consta, era um personagem criado por ela própria, atuação que fez
com que recuperasse a popularidade, até sua morte em 1988. Os diferentes momentos de
participações na indústria audiovisual, no cinema e na televisão, retratam sua busca em
confrontar ou tirar partido dos usos que se fazia de sua identidade racial (ou mesmo de sua
orientação sexual). Ao recusar-se a aparecer representando um papel que via como
depreciativo no cinema, recusou não apenas seu próprio “rebaixamento”, como também a
vinculação à estereotipia do lugar da mulher negra. Já ao atuar na televisão no papel de uma
jurada irascível, acreditava lucrar com as possibilidades jocosas que os estereótipos ofereciam
a uma mulher negra idosa e masculinizada. Sem, porém, abrir mão da qualidade imposta por
seu talento e cultura musicais:
14
Várias de suas canções faziam referências à raça, mesmo que indiretamente: as letras, os modos de
cantar, os ritmos, as expressões e modos de pronunciar as palavras em português.
comediante. Aí ele me esculhamba dizendo que eu faço
humor negro. (apud Carvalho, 2004, p. 9, grifo meu)
Em ambas as situações amparou-se numa leitura crítica da realidade em que se inseriu, bem
como nas suas possibilidades de agenciamento e confronto.
Carmen Costa nasceu no interior do Rio de Janeiro em 1920, negra de pele bem escura.
Trabalhando como empregada doméstica desde a infância, aos 15 anos foi incentivada por seu
patrão, o cantor Francisco Alves no auge do sucesso, a iniciar carreira musical. Cumpriu a
trajetória comum aos talentos da época, participando e vencendo o programa de calouros de
Ary Barroso. Gravou em 1963 a, talvez, primeira música que fazia referência direta às relações
extraconjugais na perspectiva da mulher que não seguia os padrões prescritos: no samba-
canção “Eu sou a outra”, apresenta a mulher “que o mundo difama”, mas que tem a potência
de se colocar na esfera pública em primeira pessoa, de forte cunho autobiográfico. Gravou
cerca de 76 discos e foi uma das primeiras a apresentar canções de Luiz Gonzaga, tendo
atuado também no cinema. Desenvolveu, em 2003, campanha para seu “tombamento” como
patrimônio cultural do Brasil, para solucionar a desproteção social que uma artista com sua
trajetória vivia. Compôs e cantou para o Ministro da Cultura da época uma canção para
verbalizar seu pedido:
Tal desproteção social aproxima a história de Carmen Costa à experiência das mulheres negras
comuns nas diferentes épocas, expondo também sua busca de reparação e reconhecimento.
Situação que, no caso da cantora, não teve resposta adequada até a sua morte no ano de
2007.
A curta vida e carreira de Dolores Duran também tiveram momentos marcantes. Nasceu na
mesma região que serviu de base para a comunidade de Tia Ciata, no bairro da Saúde, vivendo
grande parte de sua infância e adolescência nos subúrbios. Desde menina participou de
atividades artísticas, como atriz e cantora de teatro e rádio em programas infantis. Percorreu,
como as demais, os programas de calouros, tendo acumulado prêmios: ganhou o primeiro
deles aos seis anos de idade. Gravou vários discos, participou de programas de rádio e
televisão, tendo liderado um programa na extinta TV Rio chamado “Visitando Dolores”. Na
infância pobre adquiriu uma lesão cardíaca que provocaria sua morte aos 29 anos de idade,
após dois infartos anos antes. Foi cantora e compositora de talento reconhecido, tendo
composto algumas das principais músicas da fase de modernização da canção brasileira, que
acabaram desembocando, inclusive, na chamada bossa-nova. Iniciou e não concluiu estudos
de canto lírico na adolescência. O racismo seria a causa da desistência15: “Não vou mais nessa
aula de canto não. Já viu Desdêmona preta? A gente não vê preto em Ópera. Acho que isso é
bobagem, meu negócio é música popular”. Análise feita e decisão tomada por volta de seus 16
anos, segundo depoimento de sua irmã caçula (apud Faour, 2012).
15
Da mesma forma, rompeu o noivado com o compositor João Donato, considerando que a família
deste (família branca e burguesa da época) não aceitaria seu casamento com uma jovem negra. Estas e
outras informações sobre sua autodeclaração como negra estão presentes na bibliografia recém lançada
(Faour, 2012)
Eu sou a raça/Sou mistura/Sou aquela criatura/Que o
tempo vai tombar/sei que não serei a derradeira/Mas
quero ser a primeira/para a história conservar/Senhor
Ministro da Cultura/por que não se tomba/Uma
criatura/Quando é patrimônio nacional? (Costa, 2003)
Este episódio nos permite desnudar mais uma vez as disputas que envolviam a participação de
mulheres negras na cultura popular através do apagamento de seu pertencimento racial. Tal
apagamento não envolveu “escolhas” pessoais da artista, mas sim a ação dos narradores da
sua história. Não por outra razão, seu biógrafo registra: “Sábia decisão para uma branca com
traços de mulata que sabia que era preciso ousar, mas não a ponto de dar um passo maior que
as pernas no Brasil dos anos 40.” (grifo meu). Interessante notar que este seu biógrafo
recolheu em seu trabalho diferentes depoimentos e testemunhos que a denominavam de
mulata à negrinha, de modo carinhoso ou ofensivo, passando pelo recurso à clássica expressão
de “ter um pé na África”, em vários momentos de sua carreira artística. O silenciamento sobre
a raça/cor de Dolores ou seu branqueamento parece indicar que até os dias de hoje
permanece difícil para alguns associar talento, cultura, ações inovadoras e modernizantes
dentro e fora da música popular brasileira à figura de uma mulher negra!
Elza Soares é outro exemplo singular. Nascida numa favela, com pele escura e traços bem
marcados, sua primeira participação nos programas de calouros tem a marca das tragédias que
muitas mulheres negras enfrentaram e enfrentam: movida pelo talento e pela necessidade
urgente de ganhar dinheiro para salvar a vida do filho doente em consequência da miséria,
participa, aos 13 anos, do programa de calouros de Ary Barroso. Sua figura raquítica, vestindo
roupa e sapatos emprestados maiores que o seu tamanho, provocou estranhamento e violenta
reação do apresentador: “Minha filha, de que planeta você veio?”. A resposta, rápida e
certeira, foi transmitida pelas ondas do rádio: “Do planeta fome!”. Ao cantar, a qualidade de
sua interpretação fez com que ganhasse o primeiro lugar. Enfrentou a perda de três filhos, de
dois maridos, além de estigmas e violências por ser negra, pobre e por sua relação extraoficial
com o jogador de futebol Garrincha. Gravou vários discos, desenvolveu carreira fora do país,
ganhou prêmios. Foi a primeira mulher “puxadora” de samba-enredo em desfile de Escola de
Samba, tendo trabalhado também como compositora, dançarina, atriz e modelo. Cantou com
Louis Armstrong, foi a substituta escolhida para cantar no lugar de Ella Fitzgerald na doença
desta e foi eleita a cantora do milênio no ano 2000 pela empresa de mídia inglesa BBC. No
entanto, Elza Soares tem sido representada reiteradamente com certo estranhamento e
singularização de sua condição social: as tragédias e as ações de superação que viveu são
individualizadas, como se não fossem tragicamente comuns ao cotidiano das vítimas das
iniquidades raciais. São noticiadas e comentadas com certo espanto, cuja principal utilidade
parece ser resguardar o “desconhecimento” com que brancos lidam como os impactos
cotidianos do racismo na vida de negras e negros. Suas escolhas estéticas e seu talento não
encontram, para muitos de seus analistas, explicação, referências ou parâmetros que os
justifiquem. Para estes, trata-se de um talento “instintivo” que “milagrosamente” (sic),
superou as vicissitudes16. Até hoje permanece aprisionada ao enredo de ter que narrar
repetidas vezes, ainda que com variações irônicas, sua trajetória de vitimização. Narrativas
editadas de modo a garantir o apagamento das causas e a magnitude da resistência individual
e coletiva que as acompanham.
Por outro lado, ao apoiarem-se nas marcas culturais negras, estas mulheres negras puderam
fazer com que seus produtos tivessem ampla circulação nos diferentes meios, indo ao
encontro das aspirações populares. Por certo, esta circulação esteve associada não apenas às
conquistas que o coletivo negro angariou em diferentes momentos, mas também a suas
habilidades individuais de jogar com as ambiguidades, os limites e as possibilidades colocadas,
indo além do que muitos talentos de igual monta conseguiram. A partir do que puderam
penetrar também os espaços das elites, mas sempre de modo limitado pelas condições que o
racismo impunha e ainda impõe.
Macacas de auditório?
16
Para um exemplo da linguagem utilizada para definir seu talento e carreira, ver a matéria de capa e a
crítica ao seu disco Do Coccix até o pescoço, em PORTO, Regina e FRENETTE, Marco. Flor de Lótus.
Revista Bravo! No 59, agosto de 2002. p. 60 - 67
Capaz de falar direto com as massas, o rádio foi fundamental para a delimitação e expansão
daquilo que veio a se constituir como música popular brasileira e seus estilos canônicos.
Através das ondas curtas, os sinais de rádio gerados no Rio de Janeiro passaram a chegar a
todo o território nacional, agregando e unificando audiências. Mudanças que desagradaram
diferentes segmentos da elite: “A audiência mudou. Era uma classe diferente de pessoas. O
auditório perdeu sua elegância”, registrou o depoimento de uma ex-frequentadora citada por
MCann (2004, p. 182). A senhora foi substituída por uma audiência inculta, o povo brasileiro:
Está mais do que provado que nosso povo, mesmo com seu raquitismo exaustivo de bagre,
gosta de música. O que ele não tem é educação musical. Nem musical nem nenhuma outra,
diga-se de passagem. (Holanda, 1955, p. 28)
Assim, ao longo de várias décadas, a indústria cultural no Brasil passou a ser movimentada
pela pujança das audiências populares e do marketing dos programas de rádio, especialmente
nos programas produzidos no Rio de Janeiro, na Rádio Nacional e outras. Nunca antes um
veículo de comunicação chegara tão longe, cobrindo vastas distâncias do território nacional; e
tão perto, entrando nas casas, falando direto aos ouvidos das pessoas, em grande escala. Tal
poderio foi logo apropriado, não apenas pelo Governo e seu projeto nacionalista, como
também pelo capitalismo, como forma de vender produtos e costumes.
Para dar concretude a aspirações e interesses tão ambiciosos, a audiência deveria ser chamada
a participar. E a população respondeu intensamente ao chamado, ocupando os auditórios. Sua
movimentação ruidosa ganhou destaque, reprovando ou consagrando aspirantes a artistas nos
programas de calouros ou engrandecendo seus ídolos; aprovando e disseminando estratégias
de propaganda e venda de produtos; consumindo a vida dos artistas em jornais e revistas
dirigidas especialmente a este público. E disseminando seus costumes, comprando discos e
produtos cinematográficos, assistindo a shows em cassinos, teatros, circos e clubes pelo país
afora. Foi época de demonstrações de força e penetração de fã- clubes, cujos integrantes eram
acusados pelos opositores de serem profissionais de audiência, pondo em dúvida a sinceridade
e legitimidade de seus gostos. Some-se a isto a fantasia e os projetos individuais e coletivos
das margens lutando por inserir-se de modo positivo e propositivo na sociedade que se
transformava. E havia a música, a dança, com forte marca afro-brasileira, seus produtores e
produtoras.
Nos auditórios das rádios, a presença feminina negra era predominante:
Para além das possibilidades de acesso a entretenimento gratuito e de influência direta sobre
os produtos culturais veiculados, a presença destas mulheres negras nos programas,
trabalhadoras domésticas em sua maioria, significava também, segundo o pesquisador, a
busca por oportunidades de socialização sem os riscos representados pelas ruas e suas
polícias. Além de possibilidades de intercâmbio com outras e outros integrantes do mesmo
segmento racial e social em ambientes protegidos.
Apesar dos relatos depreciativos, a participação destas “mocinhas pardas dos auditórios”
(Holanda, 1954, p. 29) nos programas era antecedida por uma série de ações preparatórias
que envolviam articulação grupal, investimentos na produção de indumentárias com os luxos
possíveis às representantes das classes mais baixas, cuidados com cabelos e maquiagem,
estratégias para o afastamento do trabalho numa época em que a carga de horária de
empregadas domésticas era extenuante, entre outras. Tive oportunidade de conhecer e
dialogar com mulheres negras que frequentaram os auditórios das rádios nos tempos mais
intensos e que discorreram sobre os detalhes desta participação: era necessário grande
investimento financeiro, de trabalho e tempo, uma vez que produziam as próprias roupas e
cuidavam dos próprios cabelos em horários alternativos aos dedicados ao trabalho nas
residências da elite. E havia também as múltiplas emoções envolvidas em sua frequência aos
auditórios para prestigiar seus ídolos: orgulho, realização, esperteza ao driblar as patroas,
energia física para retornar à intensa carga de trabalho após a agitação do rádio e dos bailes
subsequentes. Contentamento ao escapar, ainda que momentaneamente, às agruras do
cotidiano que o racismo patriarcal lhes impunha. E alegria. Essa participação me pareceu
requisitar, ao contrário do espontaneísmo histérico descrito por alguns autores, organização,
agência, protagonismo, projeto.
Mesmo assim, ao lado das aspirações de aceitação e ascensão social, estas mulheres negras
encontraram principalmente estigmas e rejeições. Nestor de Holanda, o jornalista que cunhou
o termo “macacas de auditório”, junto com outras expressões estigmatizantes citadas aqui,
não estava sozinho. Não é outra a razão que impeliu a cantora Marlene, uma das artistas mais
prestigiadas pelo seu público, a tentar retribuir a dedicação, afirmado numa entrevista em
1973: “Nós não tínhamos apenas empregadinhas. Tínhamos colegiais, universitários, gays, nós
tínhamos de tudo.” (apud McCann, p. 210, tradução minha). Ao tentar prestigiar o seu público,
a cantora reiterou exclusões e estigmas em voga, buscando invisibilizar o predomínio das
negras trabalhadoras domésticas entre suas fãs nos auditórios. Ainda que a cantora, e muitas e
muitos artistas junto com ela, devessem a estes auditórios e seus fã-clubes, momentos
marcantes de sua carreira, como, no caso de Marlene, a eleição de Rainha do Rádio em 1949 e
1950 e os ganhos financeiros e de prestígio associados ao título e a longa trajetória de
sucessos:
O resultado deixou surpreendido o mais ortodoxo
ouvinte, pois o fã-clube de Marlene foi mais eficiente e
elegeu a paulista, a Rainha do Rádio de 1949 e 1950. O
título possibilitou que a estrela ganhasse um programa
próprio na Rádio Nacional.
(Moraes e Siqueira, 2008, p.6)
O apagamento e/ou a estigmatização da participação das mulheres negras era – ainda é - uma
estratégia importante ao privilégio racista sobre os valores gerados na sociedade brasileira,
mesmo antes do advento da indústria cultural e do rádio. Tal privilégio, como vimos nas
narrativas acerca da trajetória exemplar de algumas cantoras de maior sucesso da indústria
musical brasileira acima, recorria a diferentes mecanismos, que envolviam estigmatização,
negação de pertencimento racial, ou uma combinação de ambos. Tais estratégias não
impediram a circulação das vozes e imagens de mulheres e homens negros na indústria, mas
possivelmente buscaram restringir os graus de identificação das audiências e, também, seu
acesso aos resultados positivos destas produções culturais.
Não se buscou produzir aqui nenhuma grande narrativa da vitória das margens a partir do
barulho produzido pelas mulheres negras nos auditórios dos programas de rádio nas décadas
de 40 e 50. Tampouco quis afirmar o triunfo negro na sociedade marcada pelo racismo
patriarcal a partir da ação daquelas mulheres negras. Reconheço e concordo com S. Hall ao
apontar que:
Ao indagar as estratégias empreendidas pelo segmento negro e, nele, pelas mulheres negras,
busquei verificar, ainda de modo inicial, a amplitude dos espaços de expressão conquistados e
os elementos que estiveram em jogo nestas disputas em ambientes tão adversos como a mídia
radiofônica e seu projeto nacionalizante da primeira metade do século XX. Reconhecendo,
ainda a partir de Stuart Hall, que:
os espaços ‘conquistados’ para a diferença são poucos e
dispersos, e cuidadosamente policiados e regulados. (...)
[E] o que substitui a invisibilidade é uma espécie de
visibilidade cuidadosamente regulada e segregada.
(Idem).
Busquei, aqui, recolocar as macacas de auditório do lado de fora do círculo de estigmas, para
podermos ver um pouco mais o que eram: mulheres negras empreendendo coletivamente
táticas de participação e expressão na música popular brasileira, inserindo-se de forma ativa e
ativista nas disputas em torno da identidade cultural válida para o Brasil imaginado.
As táticas empreendidas pelas mulheres negras nos auditórios remetem a outras experiências
dentro da cultura negra e seus modos musicais que exigem a presença dos coletivos, como as
formas de canto-e-resposta; a atuação das pastoras dos terreiros de samba que, com seu
canto em coro, tinham o poder de terminar o sucesso ou a rejeição das canções; as rodas
rituais religiosas e as rodas de samba. Em todas elas, a participação das mulheres assume
relevância e protagonismo.
Diante dos limites da participação coletiva negra na sociedade da época e ainda nos produtos
radiofônicos, aquelas mulheres negras encontraram brechas para exercer protagonismo nos
programas de auditório, possibilitando novas modalidades de inserção coletiva, em alto e bom
som, abrindo espaços de atuação na indústria cultural para a comunidade negra e,
principalmente, para as mulheres negras.
Da mesma forma que encontrava um lugar para as tradições negras, a ação das macacas de
auditório expunha o conflito embutido no mito da democracia racial recém- instalado,
contestando a precedência e protagonismo que este conferia ao segmento branco no projeto
de nação moderna e na indústria cultural em desenvolvimento. Nos auditórios, as mulheres
negras reivindicaram e exerceram um protagonismo inesperado e, para muitos, inaceitável.
Mas fundamentalmente, um protagonismo que as posicionava no centro de algumas das
decisões no momento da virada industrial da cultura e da música popular no Brasil. No
momento de construção e afirmação de uma nova nacionalidade, um novo regime, uma nova
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