Aula 2. BOAKARI
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Sobre o afrodescendente, o cotidiano brasileiro ensina duas lições: há conquistas em números crescentes deste
grupo, e vai haver continuidade das situações discriminatórias e experiências excludentes que a maioria
enfrenta. A mais importante destas lições é a presença de mulheres afrodescendentes entre brasileiros de elite.
Esta é a lição que precisa ser disseminada com mais vigor!
Introdução
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A inserção das mulheres negras no mercado de trabalho brasileiro é nitidamente desvantajosa, ainda que sua
participação na força de trabalho seja mais intensa que a de mulheres não-negras. A presença da discriminação
racial se acumula à ausência de eqüidade entre os sexos, aprofundando desigualdades e colocando as
afrodescendentes na pior situação quando comparada aos demais grupos populacionais – homens negros e não-
negros e mulheres não-negras. Elas são a síntese da dupla discriminação de sexo e cor na sociedade brasileira:
mais pobres, em situações de trabalho mais precárias, com menores rendimentos e as mais altas taxas de
desemprego (DIESSE, 2005, p.2).
De acordo com análises desenvolvidas por técnicos do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD, 2010) com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio (PNAD), um homem de origem europeia, eurodescendente, ganha pelo menos tres vezes
mais que uma mulher trabalhadora de descendência africana. Este mesmo homem eurodescendente,
ganha mais de duas vezes que outro trabalhador brasileiro considerado negro, de origem africana.
Uma mulher eurodescendente ganha quase duas vezes que a trabalhadora afrodescendente, e mais
que um homem deste mesmo grupo étnico-racial. Os dados mostram com consistência, que a
situação histórica do afrodescendente, poderia estar mudando, mas que na essência, as suas
condições de desigualdade efetivamente continuam.
As discriminações-exclusões contra os afrodescendentes ainda fazem parte do cotidiano
deste país. Eles formam mais de 47% da população brasileira. Entretanto, este mesmo segmento da
população constitui quase 63% dos pobres.
Como grupo social, os afrodescendentes ganham mal e vivem em condições precárias
porque um grande número está geralmente desempregado; a maioria só consegue sub-empregos ou
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trabalhos mal-remunerados. Esta situação é influenciada também, pelo nível educacional deste
grupo de brasileiros. Em média eles têm 1,6 anos menos de educação escolar que brasileiros de
descendência européia. A mulher afrodescendente tem 1,8 anos menos de estudo que a mulher
eurodescendente. Enquanto entre brasileiros com mais de 15 anos, 7,5% dos eurodescendentes é de
analfabetos, 17,2% dos afrodescendentes (17,6% homens e 16,7% mulheres) encontram-se nesta
mesma condição. A mulher afrodescendente recebe a pior remuneração, mas tem mais estudo que o
homem afrodescendente. Uma das explicações é que este último, em muitos casos, entra no
mercado de trabalho mais cedo (com menos escolaridade).
Dados da PNAD de 2002 indicaram que 51,9% de homens afrodescendentes e 49,6% de
mulheres afrodescendentes tinham entrado no mercado de trabalho com 14 anos ou menos. Dos
eurodescendentes, as proporções eram de 47,7% e 34,3% respectivamente. Muitas afrodescendentes
também, só conseguem empregos vulneráveis, principalmente como domésticas, um setor onde elas
ainda predominam, ganhando mal e sem segurança.
A conclusão geral é que apesar dos ganhos sociais em tempos recentes, as desigualdades
entre os sexos (VAZ, 2008), acirradas pela raça, têm mudado muito pouco. A situação mais
desigual ainda é a da afrodescendente (PNUD, 2010). Neste sentido, entre outros pesquisadores,
Christofoletti & Watzko (2009) falando dessas mulheres em jornais locais, observam que
A discriminação racial no Brasil não se dá apenas por atitudes que possam ser percebidas, mas principalmente
pela ausência, pela exclusão dessas negras ..., pela indiferença que são tratadas e pelo reforço de estereótipos
sempre atribuídos a elas de maneira equivocada e preconceituosa. (CHRISTOFOLETTI & WATZKO,
2009, p. 104)
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mesma tem a tendêndia de ser fortalecida e reproduzida entre as gerações. Como vimos, é o caso
brasileiro.
Esta realidade da afrodescendente brasileira é de dados negativos, experiências de
sofrimento, e perspectivas não estimuladoras (HALBWACHS, 1990; MUNANGA, 2005). Muitas
destas mulheres terminam introjetando as inferiorizações que sofrem do cotidiano e desenvolvem
práticas diversas de sobrevivência; navegação social da sobrevivente. O que mais determina a
mudança social necessária neste caso é a educação escolar. E como argumentam Pastore & Silva
(2000) no tocante ao papel central duma escolaridade de bom nível,
A educação é o mais importante determinante das trajetórias sociais futuras dos brasileiros, importância que
vem crescendo ao longo do tempo. Não é exagero dizer que a educação constitui hoje o determinante central e
decisivo do posicionamento socioeconômico das pessoas na hierarquia social. Por sua vez, um dos principais
problemas estruturais da sociedade brasileira é o baixo nível educacional da população. (PASTORE &
SILVA, 2000, p. 40)
Sendo uma investigação exploratória, entrevistas foram conduzidas com cinco (5) mulheres
afrodescendentes, todas profissionais, com diplomas universitárias. Nas entrevistas, foram
enfatizadas as experiências quando as participantes eram estudantes. Baseado num design
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qualitativo onde o estudo “responde à questões muito particulares” (MINAYO, 1994, p.21), as duas
indagações básicas foram: Quais fatores foram determinantes para o seu bom desempenho escolar?
Porquê você obteve êxito, e muitas outras em situações semelhantes à sua, não? Estas questões
garantiram a natureza semi-estruturada das entrevistas, e possibilitaram que as entrevistadas
falassem das suas experiências desinibidas e de seu modo.
Todas as entrevistadas eram da área de educação, trabalhando como professoras ou
profissionais educacionais. Nas suas falas, foi possível perceber as suas atitudes, características
pessoais, estratégias utilizadas nas suas interações com outros para se proteger e esquivar das
discriminações e dos sexismos que confrontavam e tinham que superar. Estas respostas foram
marcadas pela objetividade, criatividade, inteligência, perspicácia, resiliência, pensamentos
positivos, e uma determinação calculada. Evidenciados, também, foram o apoio de outras pessoas e
suporte de entidades.
Das falas, reproduzo trechos integrados que melhor objetivam respostas aos
questionamentos e relatam as experiências mais didáticas para fins desta pesquisa. Os trechos
considerados mais relevantes de cada entrevista foram inter-ligados para possibilitar uma leitura
contínua de cada entrevista. A reprodução de ‘trechos soltos’ corre o risco de descontextualizar as
falas e retirar de uma pesquisa qualitativa a sua maior vantagem; i.e., oportunizar aos leitores a
possibilidade de relacionarem-se com as agentes da pesquisa através das falas destes e as
interpretações dos leitores. Quando são reproduzidos somente trechos de cada entrevista, é o(a)
pesquisador(a) que desempenha os pápeis de interlocutor com a realidade (coleta de dados) e com o
leitor (interpretação dos dados). Esta decisão de apresentar cada entrevista como um relatório
integrado está de acordo com a abordagem qualitativa que “trabalha com o universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de
variáveis” (MINAYO, 1994, p. 21), ou ‘seleções arbitrárias do(a) investigador(a)’ das entrevistas
conduzidas (CRESWELL, 2008). A leitura múltipla, diversificada e subjetiva em que o paradigma
qualitativa está enraizada, precisa ser respeitada. Este chamamento se torna mais importante no
tratamento das questões sociais.
Foi bem difícil para mim e minhas irmãs. O meu pai foi embora quando ainda bem pequena ... A minha mãe
tinha que fazer tudo para todo mundo o tempo todo... Passamos fome quando não conseguiamos algo para
comer. Tinha uma vizinha ... ela tentava ajudar. Parece que tinha um filho que trabalhava...Com barriga vazia
ou um pouco cheia, a mão não cansava de dizer – “Vocês têm que estudar ... e bem muito para subir na vida.
Não gostaria de ver vocês sofrendo deste jeito quando crescer. O estudo é a porta para tudo.” Na escola, as
professoras não me dava atenção ... era somente mais uma criança pretinha da periferia. Mas gostava de ler ...
pelos livros, viajava o mundo ... lia para minhas irmãs, e contava as histórinhas para minha mãe ... Para todo
mundo, eu ia ser uma professorinha ... (Professora Maria)
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Ainda hoje, não sei como consegui chegar ao ensino médio. Eu só lembro do ensino fundamental por causa de
um professor...ele não gostava de mim. Tudo que fazia, ele implicava comigo... mas com uma amiga minha
menos pretinha, não fazia assim. Gostava dela ... emprestava livros para ela. No segundo ano de segundo grau,
tinha uma professora que gostava de mim..., sem dúvida ela tinha carinho por mim. Ela erá negra; e os pais
dela moravam na minha rua. Conhecia a minha família, e falava sobre mim para o meu pai. Quando visitava a
família, conversava comigo, também. Falavamos sobre os meus estudos ... sempre queria saber o que estava
pensando fazer quando terminar os estudos. (Ana Maria, Orientadora educacional)
Desde bem pequena, quis sair da rua onde nós moravamos. Era bem feia; cheia de burracos. Quando tinha
chuva, estava coberta de lama...poços de água suja em todo lugar durante dias depois das chuvas. Não gostava
de falar sobre a minha casa, nem o meu bairro...Sabia que precisava fazer de tudo para melhorar a vida.
Comecei a trabalhar bem cedo ... trabalhava e estudava ... ajudava em casa. O que sobrava, usava para comprar
material escolar. Meus avôs tentavam ajudar. Não tinham muito. Ganhei uma bolsa num Curso Pré-Vestibular
de uma ONG. Me sai bem no segundo vestibular. Consegui terminar curso superior trabalhando. Sempre foi
com muito sacrifício que consegui as coisas. Fico muito grata pela atenção dos avós. Ainda somos muito
próximos; gostam muito dos meus filhos. (Sra. Joana, Psicologa escolar)
Não gostava de estudar, não! Ia para escola porque os meus pais me obrigavam. De vez em quando, não ia
...Um dia, o diretor da minha escola mandou me chamar. Queria falar comigo sem falta. Na sala dele, pediu
para explicar porque faltava tantas aula. A minha explicação não foi aceita. Me fez comprometer de nunca
mais faltar das aulas. E todo dia, tinha que me apresentar antes e depois das aulas. Quando me esquecia, ele
fazia questão de me procurar ... depois de uns meses, eu procurava ele para conversar ... ir para escola, não
tanto para estudar, mas para estar perto do diretor. Por causa das nossas conversas, eu sou profissional escolar.
(Srta. Regina, Técnica – Assuntos educacionais)
Sou uma pessoa de muita sorte. Devo tudo à minha mãe ... e sim, à minha professora da primeira série. Ela
ainda me ajuda; agora como amiga; melhor ainda, como conselheira particular. Quando preciso, ela está
sempre disponível. Com este apoio e o colo da minha mãe me esperando, não tinha medo de tentar coisas
novas. Sempre responsável, mas também, nunca tive medo de fracassar ... quando quero, sei que tenho que
tentar, me envolver com toda força de vontade para ver o que aconteceria. Daqui um ano ou dois, pretendo
fazer seleção para cursar um mestrado ... em Políticas Públicas. (Profa. Josefina, Ensino médio)
Das particularidades destas falas, o que poderia ser entendido? Quais as possíveis
interpretações das especificidades das experiências de cada uma das mulheres afrodescendentes
entrevistadas? Da minha perspectiva de pesquisador, algumas das possíveis categorias apontadas
pelas afrodescendentes entrevistadas são as seguintes:
1. Orígem pobre e desafiadora;
2. Relações delicadas com a escola;
3. Consiciência sobre as suas condições sociais, étnico-racial e de gênero;
4. Determinação, perspicácia e objetividade; competentes como navegadoras sociais;
5. Capacidade em conseguir resultados positivos em situações inicialmente adversas;
6. Apoio objetivado de membros da família, especialmente o suporte materno;
7. Importância da família - a família como merecedora de atenção especial;
8. Acompanhamento por profissionais da educação;
9. Assistência de membros da comunidade; e
10. Aproveitamento de oportunidades disponibilizadas.
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Bibliografia
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