Aula 2. BOAKARI

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 10

Fazendo Gênero 9

Diásporas, Diversidades, Deslocamentos


23 a 26 de agosto de 2010

MULHERES AFRODESCENDENTES DE SUCESSO: CONFRONTANDO AS


DISCRIMINAÇÕES BRASILEIRAS.

Francis Musa Boakari

Sobre o afrodescendente, o cotidiano brasileiro ensina duas lições: há conquistas em números crescentes deste
grupo, e vai haver continuidade das situações discriminatórias e experiências excludentes que a maioria
enfrenta. A mais importante destas lições é a presença de mulheres afrodescendentes entre brasileiros de elite.
Esta é a lição que precisa ser disseminada com mais vigor!

Introdução

O Brasil deve muito aos africanos escravizados e seus descendentes, os afrodescendentes. Se


os africanos fizeram e os afrodescendentes continuam fazendo muito para enriquecer o país, o
mesmo não pode ser dito no tocante às relações que a sociedade brasileira tem mantido com eles. A
maioria deste grupo de brasileiros sofre de explorações diversas e vive ainda em condições
precárias e de miséria. Ela enfrenta uma escravidão que consiste na desumanização apaziguada da
pessoa num mundo globalizado com um mercado sem fronteiras.
Neste mundo, as mulheres afrodescendentes constituem o grupo mais marginalizado e
explorado. Como no período da escravidão, elas ainda têm que enfrentar as consequências de sua
desumanização racial, discriminação social, exploração sexual e inferiorização por causa de
questões de gênero. Não se-pode negar que tem tido algumas mudanças nas condições de vida, para
melhor, para algumas dessas mulheres. Entretanto, para a grande maioria, as suas condições de
pobreza e miséria continuam em todas as regiões do país (IBGE, 2007). É comprovada a partir de
experiências vividas, levantamentos oficiais e pesquisas acadêmicas que as mulheres, descendentes
dos africanos trazidos para este país, continuam sendo as pessoas mais vitimizadas pelas
discriminações numa sociedade onde o racismo e o machismo, além das exclusões sociais, fazem
parte do cotidiano da população afrodescendente. Como observou Valente (1994), “mulheres negras
..., sofrem de tripla discriminação: sexual, social e racial” (p.56).
Apesar das marginalizações que a mulher afrodescendente enfrenta, cada vez mais, há um
grupo que está conseguindo superar os desafios das diferenciações triplicadas e atingir alguma
mobilidade de ascensão. Considero crucial as conquistas no campo da educação formal uma vez
que é esta que abre as portas para conseguir competir em outras áreas. Consideradas as baixas taxas
de desempenho escolar por parte da maioria das meninas afrodescendentes, a conclusão do ensino
fundamental ou um diploma de ensino médio significam muito na vida dessas mulheres. Com um

1
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

diploma universitário, aumentam as oportunidades para uma participação mais significativa no


mercado de trabalho e na sociedade como cidadã.
Neste estudo, o interesse fundamental era desvelar as explicações oferecidas por um grupo
de mulheres afrodescendentes sobre o seu bom desempenho escolar. A motivação maior da
pesquisa consistia em saber, de acordo com as suas opiniões, os fatores aos quais atribuem o seu
sucesso principalmente como estudantes. Elementos sociais, culturais e qualidades pessoais,
formaram o eixo das explicações apontadas. O período em que estudavam na universidade, até os
anos ´70 ou depois, também ajudaram melhor contextualizar as experiências historiadas. Fatos
marcantes, acontecimentos memoráveis, e pessoas significantes na vida das participantes do estudo,
constituiram os fios das teias experienciais relatadas. As explicações oferecidas pelas 05 (cinco)
mulheres afrodescendentes entrevistadas foram marcadas por elementos da memória coletiva dos
membros femininos deste grupo.
Estudos sobre as mulheres como sujeitos servem de perspectiva rica para analisar como uma
determinada sociedade trata da sua maioria silenciada e esquecida. Em sociedades multi-étnico-
raciais como a brasileira, estudar as afrodescendentes é a melhor maneira de avaliar os avanços em
conquistas de cidadania pelos integrantes do grupo historicamente mais explorado. Desvelar
experiências das mulheres afrodescendentes não somente indicam como o Brasil é país
participativo, mas também, como tem conseguido reduzir as suas desigualdades históricas. Saber
mais da mulher brasileira de origem africana, especialmente sobre o pequeno grupo que tem
conseguido terminar cursos universitários, poderá indicar os caminhos para um futuro menos
desigual e de oportunidades mais igualitárias para todos.
De muita importância é o fato de que estudos que revelam outras experiências das
populações afrodescendentes, em especial os que abordam suas conquistas e participações como
cidadãs, servem de espelhos positivos para o grupo. Disseminar imagens positivas de
afrodescendentes nos campos social e educacional ajuda reverter os processos de genocídio e
epistemicídio aos quais os descendentes dos africanos no Brasil têm continuamente sofrido.
Das experiências destas mulheres que têm conseguido “chegar lá”, conquistando algum
reconhecimento social, pode-se aprender as estratégias de resistência numa sociedade
contemporânea ainda marcadamente discriminatória. Tais lições serviriam à muitos membros de
outros grupos de marginalizados, especialmente em termos das características de sua resiliência.
Características familiares e comunitárias destas mulheres, também, poderiam ajudar enfatizar o
papel central da coletividade na vida dos membros de grupos vitimizados em sociedades de

2
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

histórias culturais diferentes. No contexto desta investigação, os indícios consistentes do elemento


familiar (parentesco ou laços étnico-raciais) como vestígio da cultura africana, servem de elemento
fundamental no desenvolvimento de políticas públicas mais exequíveis no Brasil.
Vale ressaltar que baseadas em experiências vividas como afrodescendente, nem um pós-
doutoramento anula a condição de ser considerado menos humano porque tem antepassados
africanos e deste modo, sofre os tratamentos diferenciados em todas as esferas da sociedade
brasileira. Precisa ser notado em especial, o fato de que há mulheres afrodescendentes de sucesso,
basicamente porque têm conquistado diplomas universitários. Esta realidade não menospreza a
vitalidade do racismo e machismo brasileiro; muito menos aponta para uma culpabilidade da
mulher afrodescendente. Os dados indicam a existência destas mulheres. Precisamos saber quais os
caminhos que percorreram. É isto o mais importante deste trabalho

Algumas leituras de apoio

A inserção das mulheres negras no mercado de trabalho brasileiro é nitidamente desvantajosa, ainda que sua
participação na força de trabalho seja mais intensa que a de mulheres não-negras. A presença da discriminação
racial se acumula à ausência de eqüidade entre os sexos, aprofundando desigualdades e colocando as
afrodescendentes na pior situação quando comparada aos demais grupos populacionais – homens negros e não-
negros e mulheres não-negras. Elas são a síntese da dupla discriminação de sexo e cor na sociedade brasileira:
mais pobres, em situações de trabalho mais precárias, com menores rendimentos e as mais altas taxas de
desemprego (DIESSE, 2005, p.2).

De acordo com análises desenvolvidas por técnicos do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD, 2010) com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio (PNAD), um homem de origem europeia, eurodescendente, ganha pelo menos tres vezes
mais que uma mulher trabalhadora de descendência africana. Este mesmo homem eurodescendente,
ganha mais de duas vezes que outro trabalhador brasileiro considerado negro, de origem africana.
Uma mulher eurodescendente ganha quase duas vezes que a trabalhadora afrodescendente, e mais
que um homem deste mesmo grupo étnico-racial. Os dados mostram com consistência, que a
situação histórica do afrodescendente, poderia estar mudando, mas que na essência, as suas
condições de desigualdade efetivamente continuam.
As discriminações-exclusões contra os afrodescendentes ainda fazem parte do cotidiano
deste país. Eles formam mais de 47% da população brasileira. Entretanto, este mesmo segmento da
população constitui quase 63% dos pobres.
Como grupo social, os afrodescendentes ganham mal e vivem em condições precárias
porque um grande número está geralmente desempregado; a maioria só consegue sub-empregos ou

3
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

trabalhos mal-remunerados. Esta situação é influenciada também, pelo nível educacional deste
grupo de brasileiros. Em média eles têm 1,6 anos menos de educação escolar que brasileiros de
descendência européia. A mulher afrodescendente tem 1,8 anos menos de estudo que a mulher
eurodescendente. Enquanto entre brasileiros com mais de 15 anos, 7,5% dos eurodescendentes é de
analfabetos, 17,2% dos afrodescendentes (17,6% homens e 16,7% mulheres) encontram-se nesta
mesma condição. A mulher afrodescendente recebe a pior remuneração, mas tem mais estudo que o
homem afrodescendente. Uma das explicações é que este último, em muitos casos, entra no
mercado de trabalho mais cedo (com menos escolaridade).
Dados da PNAD de 2002 indicaram que 51,9% de homens afrodescendentes e 49,6% de
mulheres afrodescendentes tinham entrado no mercado de trabalho com 14 anos ou menos. Dos
eurodescendentes, as proporções eram de 47,7% e 34,3% respectivamente. Muitas afrodescendentes
também, só conseguem empregos vulneráveis, principalmente como domésticas, um setor onde elas
ainda predominam, ganhando mal e sem segurança.
A conclusão geral é que apesar dos ganhos sociais em tempos recentes, as desigualdades
entre os sexos (VAZ, 2008), acirradas pela raça, têm mudado muito pouco. A situação mais
desigual ainda é a da afrodescendente (PNUD, 2010). Neste sentido, entre outros pesquisadores,
Christofoletti & Watzko (2009) falando dessas mulheres em jornais locais, observam que
A discriminação racial no Brasil não se dá apenas por atitudes que possam ser percebidas, mas principalmente
pela ausência, pela exclusão dessas negras ..., pela indiferença que são tratadas e pelo reforço de estereótipos
sempre atribuídos a elas de maneira equivocada e preconceituosa. (CHRISTOFOLETTI & WATZKO,
2009, p. 104)

As histórias dos africanos e seus descendentes brasileiros, em particular as afrodescendentes,


eram narrativas inviesadas e discriminatórias. Não somente foi negada a sua agência social, mas
também a sua humanidade. Com base nas idéias desumanizadoras, foram invisibilizados. E com
esta invisibilização, foram transformados em não-pessoas (ELLISON, 1952), cujo sofrimento das
diversas formas de marginalização e exploração ainda precisa ser explicitado e explicado. Existem
estereótipos negativos sobre membros deste grupo de brasileiros. E referente às afrodescendentes,
“tudo o que se coloca como problemática para a população negra atinge especialmente as mulheres”
(VALENTE, 1994, p.56). Adjetivos depreciantes, piadas humilhantes, humilhações raciais, assédios
sexuais, e tratamentos desumanos reforçam os estereótipos e ajudam firmar no imaginário, as
representações negativizadas deste grupo étnico-racial e de gênero (TURRA & VENTURI, 1995;
WERNECK, 2010). Larson e Ovando (2003) apontam para o perigo desta situação uma vez que a

4
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

mesma tem a tendêndia de ser fortalecida e reproduzida entre as gerações. Como vimos, é o caso
brasileiro.
Esta realidade da afrodescendente brasileira é de dados negativos, experiências de
sofrimento, e perspectivas não estimuladoras (HALBWACHS, 1990; MUNANGA, 2005). Muitas
destas mulheres terminam introjetando as inferiorizações que sofrem do cotidiano e desenvolvem
práticas diversas de sobrevivência; navegação social da sobrevivente. O que mais determina a
mudança social necessária neste caso é a educação escolar. E como argumentam Pastore & Silva
(2000) no tocante ao papel central duma escolaridade de bom nível,
A educação é o mais importante determinante das trajetórias sociais futuras dos brasileiros, importância que
vem crescendo ao longo do tempo. Não é exagero dizer que a educação constitui hoje o determinante central e
decisivo do posicionamento socioeconômico das pessoas na hierarquia social. Por sua vez, um dos principais
problemas estruturais da sociedade brasileira é o baixo nível educacional da população. (PASTORE &
SILVA, 2000, p. 40)

O cenário é de um cíclo vicioso que pesa negativamente do lado da afrodescendente. O que


mais precisa para mudar a sua condição de vida é a permanência e bom desempenho na escola. As
políticas sociais, em especial as da educação, permanecem excludentes. Deste modo,
Alguns fatores concorrem negativamente na performance da população negra no sistema educacional como a
pobreza material; diversidade cultural das famílias negras; os estereótipos negativos ligados ao negro no
imaginário social e presentes na escola, nos instrumentos didáticos, nas relações entre os alunos; o sentimento
de abandono que as crianças negras carregam pela omissão dos professores diante das situações de humilhação
racial de que elas são vítimas no cotidiano escolar, quando não são os próprios professores
os agentes da discriminação. Por fim, sobretudo tem sido determinante nesse processo a incapacidade e/ou
ausência de vontade política no sistema educacional para ofertar ensino público de qualidade às populações
negras e pobres. (HENRIQUES, 2002, p. 8)

Apesar da situação adversa, cada vez mais, algumas afrodescendentes conseguem


desenvolver respostas desafiadoras ao sistema, negando a sua condição de dominada (FORDHAM,
1993; GOMES, 2002) e conquistando alguma mobilidade social.
Sabemos que tem sido a partir de condições profundamente desvantajosas em diferentes esferas que nós
mulheres negras desenvolvemos nossas estratégias cotidianas de disputa com os diferentes segmentos sociais
em torno de possibilidades de (auto)definição. Ou seja, de representação a partir de nossos próprios termos, a
partir do que projetamos novos horizontes de luta. Estratégias que devem ser capazes de recolocar e valorizar
nosso papel de agentes importantes na constituição do tecido social e de projetos de transformação.
(WERNECK, 2010, p. 15)

Afrodescendentes falam: suas palavras, minhas aproximações interpretativas

Sendo uma investigação exploratória, entrevistas foram conduzidas com cinco (5) mulheres
afrodescendentes, todas profissionais, com diplomas universitárias. Nas entrevistas, foram
enfatizadas as experiências quando as participantes eram estudantes. Baseado num design

5
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

qualitativo onde o estudo “responde à questões muito particulares” (MINAYO, 1994, p.21), as duas
indagações básicas foram: Quais fatores foram determinantes para o seu bom desempenho escolar?
Porquê você obteve êxito, e muitas outras em situações semelhantes à sua, não? Estas questões
garantiram a natureza semi-estruturada das entrevistas, e possibilitaram que as entrevistadas
falassem das suas experiências desinibidas e de seu modo.
Todas as entrevistadas eram da área de educação, trabalhando como professoras ou
profissionais educacionais. Nas suas falas, foi possível perceber as suas atitudes, características
pessoais, estratégias utilizadas nas suas interações com outros para se proteger e esquivar das
discriminações e dos sexismos que confrontavam e tinham que superar. Estas respostas foram
marcadas pela objetividade, criatividade, inteligência, perspicácia, resiliência, pensamentos
positivos, e uma determinação calculada. Evidenciados, também, foram o apoio de outras pessoas e
suporte de entidades.
Das falas, reproduzo trechos integrados que melhor objetivam respostas aos
questionamentos e relatam as experiências mais didáticas para fins desta pesquisa. Os trechos
considerados mais relevantes de cada entrevista foram inter-ligados para possibilitar uma leitura
contínua de cada entrevista. A reprodução de ‘trechos soltos’ corre o risco de descontextualizar as
falas e retirar de uma pesquisa qualitativa a sua maior vantagem; i.e., oportunizar aos leitores a
possibilidade de relacionarem-se com as agentes da pesquisa através das falas destes e as
interpretações dos leitores. Quando são reproduzidos somente trechos de cada entrevista, é o(a)
pesquisador(a) que desempenha os pápeis de interlocutor com a realidade (coleta de dados) e com o
leitor (interpretação dos dados). Esta decisão de apresentar cada entrevista como um relatório
integrado está de acordo com a abordagem qualitativa que “trabalha com o universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de
variáveis” (MINAYO, 1994, p. 21), ou ‘seleções arbitrárias do(a) investigador(a)’ das entrevistas
conduzidas (CRESWELL, 2008). A leitura múltipla, diversificada e subjetiva em que o paradigma
qualitativa está enraizada, precisa ser respeitada. Este chamamento se torna mais importante no
tratamento das questões sociais.
Foi bem difícil para mim e minhas irmãs. O meu pai foi embora quando ainda bem pequena ... A minha mãe
tinha que fazer tudo para todo mundo o tempo todo... Passamos fome quando não conseguiamos algo para
comer. Tinha uma vizinha ... ela tentava ajudar. Parece que tinha um filho que trabalhava...Com barriga vazia
ou um pouco cheia, a mão não cansava de dizer – “Vocês têm que estudar ... e bem muito para subir na vida.
Não gostaria de ver vocês sofrendo deste jeito quando crescer. O estudo é a porta para tudo.” Na escola, as
professoras não me dava atenção ... era somente mais uma criança pretinha da periferia. Mas gostava de ler ...
pelos livros, viajava o mundo ... lia para minhas irmãs, e contava as histórinhas para minha mãe ... Para todo
mundo, eu ia ser uma professorinha ... (Professora Maria)

6
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

Ainda hoje, não sei como consegui chegar ao ensino médio. Eu só lembro do ensino fundamental por causa de
um professor...ele não gostava de mim. Tudo que fazia, ele implicava comigo... mas com uma amiga minha
menos pretinha, não fazia assim. Gostava dela ... emprestava livros para ela. No segundo ano de segundo grau,
tinha uma professora que gostava de mim..., sem dúvida ela tinha carinho por mim. Ela erá negra; e os pais
dela moravam na minha rua. Conhecia a minha família, e falava sobre mim para o meu pai. Quando visitava a
família, conversava comigo, também. Falavamos sobre os meus estudos ... sempre queria saber o que estava
pensando fazer quando terminar os estudos. (Ana Maria, Orientadora educacional)

Desde bem pequena, quis sair da rua onde nós moravamos. Era bem feia; cheia de burracos. Quando tinha
chuva, estava coberta de lama...poços de água suja em todo lugar durante dias depois das chuvas. Não gostava
de falar sobre a minha casa, nem o meu bairro...Sabia que precisava fazer de tudo para melhorar a vida.
Comecei a trabalhar bem cedo ... trabalhava e estudava ... ajudava em casa. O que sobrava, usava para comprar
material escolar. Meus avôs tentavam ajudar. Não tinham muito. Ganhei uma bolsa num Curso Pré-Vestibular
de uma ONG. Me sai bem no segundo vestibular. Consegui terminar curso superior trabalhando. Sempre foi
com muito sacrifício que consegui as coisas. Fico muito grata pela atenção dos avós. Ainda somos muito
próximos; gostam muito dos meus filhos. (Sra. Joana, Psicologa escolar)

Não gostava de estudar, não! Ia para escola porque os meus pais me obrigavam. De vez em quando, não ia
...Um dia, o diretor da minha escola mandou me chamar. Queria falar comigo sem falta. Na sala dele, pediu
para explicar porque faltava tantas aula. A minha explicação não foi aceita. Me fez comprometer de nunca
mais faltar das aulas. E todo dia, tinha que me apresentar antes e depois das aulas. Quando me esquecia, ele
fazia questão de me procurar ... depois de uns meses, eu procurava ele para conversar ... ir para escola, não
tanto para estudar, mas para estar perto do diretor. Por causa das nossas conversas, eu sou profissional escolar.
(Srta. Regina, Técnica – Assuntos educacionais)

Sou uma pessoa de muita sorte. Devo tudo à minha mãe ... e sim, à minha professora da primeira série. Ela
ainda me ajuda; agora como amiga; melhor ainda, como conselheira particular. Quando preciso, ela está
sempre disponível. Com este apoio e o colo da minha mãe me esperando, não tinha medo de tentar coisas
novas. Sempre responsável, mas também, nunca tive medo de fracassar ... quando quero, sei que tenho que
tentar, me envolver com toda força de vontade para ver o que aconteceria. Daqui um ano ou dois, pretendo
fazer seleção para cursar um mestrado ... em Políticas Públicas. (Profa. Josefina, Ensino médio)

Das particularidades destas falas, o que poderia ser entendido? Quais as possíveis
interpretações das especificidades das experiências de cada uma das mulheres afrodescendentes
entrevistadas? Da minha perspectiva de pesquisador, algumas das possíveis categorias apontadas
pelas afrodescendentes entrevistadas são as seguintes:
1. Orígem pobre e desafiadora;
2. Relações delicadas com a escola;
3. Consiciência sobre as suas condições sociais, étnico-racial e de gênero;
4. Determinação, perspicácia e objetividade; competentes como navegadoras sociais;
5. Capacidade em conseguir resultados positivos em situações inicialmente adversas;
6. Apoio objetivado de membros da família, especialmente o suporte materno;
7. Importância da família - a família como merecedora de atenção especial;
8. Acompanhamento por profissionais da educação;
9. Assistência de membros da comunidade; e
10. Aproveitamento de oportunidades disponibilizadas.

7
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

Conclusões como inconclusões

Tentar desvelar os significados das memórias coletivas individualizadas, experiências


vividas, e explicações de acontecimentos que marcaram a vida de um grupo de mulheres
afrodescendentes, consiste num desafio a mais. Pesquisar a vida destas mulheres é compartilhar de
suas privacidades que terminam ensinando de como é enorme, apesar de tudo e de todos, a sua força
de vontade, a sua perspicácia e resiliência para conseguir o sucesso social negado às
afrodescendentes, mas que muitas merecem. A investigação sobre as estratégias utilizadas para se
tornarem mulheres exitosas é basicamente uma tentativa de saber como conseguiram fazer valer a
sua agência social, e reconquistar a sua voz de cidadã (CALDWELL, 2007).
Tanto estas observações quanto as categorias interpretativas elencadas acima validam a
observação de que as afrodescendentes precisam continuar a luta. As barreiras históricas
permanecem; as marginalizações discriminatórias não estão vencidas; as inferiorizações estão vivas;
os desafios persistem. Entretanto, o fato de que algumas têm conseguido o êxito social merecido
mostra que este sistema, como qualquer outro, é histórico; é consequência de construções humanas.
Assim, pode e deve ser reconstruído para humanizar a sociedade.
As mulheres afrodescendentes entrevistadas mostram uma capacidade de criar
possibilidades e re-direcionar destinos num Brasil que ainda sofre de preconceitos, racismos e
sexismos que causam prejuizos sociais, culturais, políticos e econômicos. Estas considerações
deveriam fazer parte dos processos que reproduzem as características negativas de uma geração
para outra ... E o que fazer para interromper este processo reprodutivo é desafio para todos.
Neste sentido, uso as palavras de Werneck (2010) quando ela coloca,
De todo modo, ainda nos resta a tarefa inconclusa, ou pouco valorizada, de buscar a voz própria. Refiro-me à
busca de outras formas possíveis ou desejáveis de expressão e representação do que fomos, do que poderíamos
ter sido, do que desejamos ser, antes e além do eurocentrismo e suas pressões simbolizadas pelo racismo
heterossexista, sua dominação econômica e seus ataques no plano simbólico. Ainda que nos reconheçamos
múltiplas, mutantes, inconclusas. (p. 17)

Há implicações e lições neste estudo para outros membros sub-julgados e excluídos de


qualquer sociedade contemporânea. As discriminações e desigualdades são semelhantes e
igualmente desumanizantes qualquer que seja onde as encontramos.

Bibliografia

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.


BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: EDUSP, 1987.

8
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

CALDWELL, K. L. Racialized boundaries: Women’s Studies and the question of ‘difference’ in


Brazil. The Journal of Negro Education. vol. 70, no. 3, Summer 2001, p. 219-230.
CALDWELL, K. L. Negras in Brazil: re-envisioning Black Women, Citizenship, and the Politics of
Identity. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2007.
CHRISTOFOLETTI, R.; WATZKO, R.C. Mulheres negras nos jornais: exclusão, gênero e etnia.
Revista FAMECOS. Porto Alegre, No. 39, agosto de 2009, p. 98-104.
CRESWELL, J.W. Education research: planning, conducting, and evaluating quantitative and
qualitative research. Los Angeles, CA: Sage Publications, 2008.
DIESSE. A mulher negra no mercado de trabalho metropolitano: inserção marcada pela dupla
discriminação. Estudos e pesquisas. Ano 11, no. 14, novembro de 2005.
ELLISON, R. Invisible man. New York, NY: Random House, 1952.
FANON, F. Pele negra, mascara branca. Rio de Janeiro: Livraria Fator, 1983.
FORDHAM, P. E. Informal, non-formal and formal education programmes. ICE301- Lifelong
Learning Unit 2, London: YMCA George Williams College, 1993.
GOMES, A.B.S. O movimento negro e a educação escolar: estratégias de luta contra o racismo.
Relatório de Pesquisa do II Concurso Negro e Educação. Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação – ANPED, Ação Educativa e Fundação Ford, 2002.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
HENRIQUES, R. Raça e gênero no sistema de ensino: os limites das políticas universalistas na
educação. Brasília, UNESCO, novembro de 2002.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Brasília, 2002.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Brasília, 2006.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Brasília, 2009.
IBGE. Síntese dos Indicadores Sociais 2007. Rio de Janeiro, 2007.
LARSON, C.; OVANDO, C. The color of bureaucracy: the politics of equity in multicultural
school communities. Belmont, CA: Wadsworth, 2003.
MACEDO, A.; FAUSTINO, O. A cor do sucesso: sete razões de orgulho para a comunidade afro-
brasileira. São Paulo: Gente, 2000.
MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento. São Paulo: HUCITEC, 1994.
MUNANGA, K. História do negro no Brasil – O negro na sociedade brasileira: resistência,
participação, contribuição. Brasília: Fundação Cultural Palmares/MinC., 2005.
PASTORE, J.; SILVA, N. do V. Mobilidade social no Brasil. São Paulo: Makron Books, 2000.
PINHEIRO, L.; SOARES, V. Retrato das desigualdades - Raça e gênero. Programa Igualdade de
Gênero e Raça – UNIFEM – IPEA, 2004.

9
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

PINHEIRO, L.; FONTOURA, N.de O.; QUERINO, A.C.; BONETTI, A.; ROSA, W. Retrato das
desigualdades de gênero e raça. Brasília: UNIFEM/IPEA, 2008.
PNUD – Programa das Nações Unidos para o Desenvolvimento. Notícias da Prima Pagina: No
Brasil, homem branco ganha o triplo de mulher negra. Brasília, 2010. Disponível em: <
www.pnud.org.br > Acesso em: 10/06/2010.
TURRA, C.; VENTURI, G. (orgs.). Racismo cordial. São Paulo: Ática, 1995.
VALENTE, A.L.E.F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Moderna, 1994.
VAZ, F.M. Diferenciais de rendimentos por sexo e raça segundo PNAD de 2007. IPEA - Nota
Técnica: Mercado de Trabalho, 37, nov. 2008, p.1-4.
WERNECK, J. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas
contra o sexismo e o racismo. Revista ABPN, vol. 1, no. 1, mar-junho de 2010, p. 8-17.

10

Você também pode gostar