O Processo de Reconhecimento Do Quilombo
O Processo de Reconhecimento Do Quilombo
O Processo de Reconhecimento Do Quilombo
Jean Baptista20
Maria da Graça Amaral21
Treyce Ellen Goulart22
Tony Boita23
O Programa de Extensão Comunidades FURG (Comuf) foi executado ao longo dos anos
de 2010 a 2013. Em seu conjunto, abarcou projetos que abordaram o patrimônio comunitário
de grupos indígenas, quilombolas, LGBT e produtores rurais, alcançando resultados que
culminaram em amplas conquistas comunitárias. O Comuf assegurou o reconhecimento da
Jurupiga como patrimônio imaterial municipal, fundou o coletivo de diversidade sexual
Camaleão, promoveu inúmeros eventos (entre eles o XII Acampamento Afro) e fundou o
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da FURG. No que diz respeito à temática
quilombola, o Comuf idealizou o programa de acesso quilombola por meio do Relatório
Furg+Quilombola, desenvolveu a pesquisa necessária para o reconhecimento do primeiro
quilombo de Rio Grande, o Quilombo Macanudos, e, de quebra, foi fundamental na articulação
estudantil que formou o coletivo de estudantes negras e negros da FURG.
Ao mover a estrutura universitária em favor das comunidades envolvidas, despertou
oposições de uma comunidade universitária que, até então, não havia tido a oportunidade de
debater, promover e reconhecer a existência de outras identidades que não a portuguesa, cenário
que estava profundamente alterado após três anos de ações.24
O projeto “Quilombolas Somos Nós!”, integrante do Programa Comuf, iniciou as
atividades em abril de 2011 a partir da reivindicação da senhora Maria da Graça Amaral, cuja
20
Professor Adjunto do Bacharelado em Museologia da Universidade Federal de Goiás (UFG) e Coordenador de
Inclusão e Permanência-Prograd-UFG. Possui graduação em História (Licenciatura e Bacharelado) pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), mestrado (2004) e doutorado (2007) pelo PPGH da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Possui experiência na área de História e Museologia Social, atuando
a partir de temas como Ações Afirmativas, Patrimônio e Extensão Universitária, com ênfase em cultura e
desenvolvimento local de grupos vulneráveis brasileiros.
21
Presidente da Associação da Comunidade Quilombola Macanudos.
22
Pesquisadora, acadêmica do Mestrado em Educação (Programa de Pós Graduação PPGEDU) e do curso de
História Licenciatura, na Universidade Federal do Rio Grande 2010-2011, formada pela mesma Universidade
Federal do Rio Grande em História Bacharelado, no ano de 2010.
23
Museólogo e professor substituto do Curso de Museologia da UFG. É graduado pela Universidade Federal de
Goiás (2015).
24
Para conhecer de modo mais amplo as ações do Comuf, confira: BAPTISTA, Jean; FEIJÓ, Claudia (orgs).
Práticas comunitárias e educativas em Memória e Museologia Social. Rio Grande, Editora da FURG, 2013.
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autodeclaração enquanto quilombola suscitou o início das visitas à comunidade negra composta
por sua família socialmente conhecida como “macanudos” na localidade da Quintinha, na Vila
da Quinta. De imediato, Maria da Graça configurou-se como Orientadora Comunitária do
projeto, passando a articular as demandas de boa parte das ações. Com o constante contato
foram desdobrando-se novas descobertas e apontaram-se outros caminhos para a pesquisa e
ação empreendidas pelo projeto. Dessa forma, conhecemos a família do senhor Darci Cardoso
Amaral, seu Cizico, habitantes da região do Arraial, em Povo Novo, e a família Macanudo,
residentes no distrito da Quinta. Por meio de entrevistas, realizadas nas casas dos membros
comunitários acessou-se memórias dos indivíduos que são compostas e atravessadas de
histórias que foram passadas entre as gerações e que se perpetuaram nas falas dos/as
descendentes. Pontualmente, foram realizadas diversas rodas de memórias que possibilitaram
o encontro das duas famílias quilombolas da região e o compartilhamento de histórias de vida
marcantes para os indivíduos presentes. Sobre essas famílias falaremos a seguir, entretanto, faz-
se necessária a breve exposição de pontos que elucidam a questão quilombola no Brasil.
O que é um quilombo?
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Para senhores e governo, o problema maior estava em que, na sua maioria, os
quilombos não existiam isolados, perdidos no alto das serras, distantes da sociedade
escravista. Embora em lugares protegidos, os quilombolas, amiúde, viviam próximos
a engenhos, lavras, vilas e cidades. Mantinham redes de apoio e de interesses que
envolviam escravos, negros livres fugidos e mesmo brancos, de quem recebiam
informações sobre movimentos de tropas e outros assuntos estratégicos. Com essa
gente, eles trabalhavam, se acoitavam, negociavam alimentos, armas, munições e
outros produtos, com escravos e libertos, podiam manter laços afetivos, de parentesco
e de amizade (REIS, 2009, p. 22).
Sob esses termos é criado o Decreto Lei 3.912 do ano de 2001, que regulamentava as
questões agrárias das comunidades quilombolas de acordo com critérios específicos – tais como
a exigência de apresentação de provas de ocupação das terras desde 1888 e a interferência de
intelectuais que atuariam na confecção dos laudos antropológicos. Esse momento ainda nos
apresentava a perspectiva do pesquisador/a protagonista: caberia a esse a palavra final, atuar no
processo de titulação das terras e reconhecer/legitimar a identidade dos remanescentes de
quilombo. Ressaltamos que o Decreto citado é considerado como um entrave, um retrocesso
por parte do Movimento Quilombola, pois este impossibilitou o avanço da regulamentação das
terras assim como o reconhecimento desta comunidade enquanto grupo étnico diferenciado. Ao
mesmo tempo, avança-se na discussão uma vez que os quilombos não são retratados de forma
estagnada, atrelados a outro período histórico. Por meio das leis citadas são trazidos à
contemporaneidade e inseridos nas pautas de ação do Estado.
Atentamos, ainda, para o papel primordial atribuído pelas comunidades à sua identidade
própria, sua diferença, segundo Poutignat e Streiff-Fenart:
A identidade étnica tem sido diferenciada de ‘outras formas de identidade
coletiva pelo fato de ela ser orientada para o passado’. Esta referência a uma
origem comum presumida parece recuperar, de certo modo, a própria noção de
quilombo definida pela historiografia. Vale assinalar, contudo, que o passado a
que se referem os membros desses grupos ‘não é o da ciência histórica, mas
aquele em que se representa a memória coletiva’ - portanto, uma história que
pode ser igualmente lendária e mítica (1998 apud O’DWYER, 2007, p. 46).
Os quilombos históricos têm origens diversas: suas terras podem ter sido doadas,
ocupadas, compradas pelos próprios indivíduos ou conquistadas mediante a prestação de
serviços, por exemplo. É esse passado histórico comum e a noção de “destinos compartilhados”
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(Decreto 4887/2003) que tem influenciado nas legislações posteriores ao decreto de 2001
citado. Considera-se aqui a retomada dos pressupostos da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho - que considera a consciência da identidade como critério de
identificação – a qual será base da promulgação do Decreto 4887 de 20 de novembro de 2003
cujo artigo 2º afirma que:
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste
Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória
histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida
(DECRETO 4887/03, art. 2º).
Partindo desses pressupostos o que define as comunidades enquanto remanescentes de
quilombos são os critérios atribuídos pelos próprios membros comunitários. O passado
retomado é aquele significativo para os/as componentes do grupo familiar parental e não mais
o estipulado por historiadores/as, antropólogos/as, sociólogos/as e pesquisadores/as em geral.
Como aponta O’Dwyer (2007), para se auto definir o grupo étnico leva em consideração não
mais a observação de agentes externos, mas sim “sinais diacríticos” considerados importantes
pelos/as agentes sociais. É essa perspectiva local que separa as dimensões "nós" e "eles".
Entretanto, é impossível alienar tais grupos das sociedades nas quais estão inseridos.
Ocorre aqui um duplo movimento que atenta de um lado para a diferença auto-atribuída
e de outro para a distinção demarcado por outrem. As comunidades quilombolas
contemporâneas aproximam-se do conceito histórico de quilombo apontado por Reis. Estão
imersas em um jogo de relações, lutas e interesses diversos.
Ocorre aqui um duplo movimento que atenta de um lado para a diferença auto atribuída
e de outro para a distinção considerada por outros. As comunidades quilombolas
contemporâneas aproximam-se do conceito histórico de quilombo apontado por Reis. Estão
imersas em um jogo de relações, lutas e interesses diversos.
Os dados apontados pelo Balanço Quilombola de 2011 comprovam que no Brasil
existem 110 terras quilombolas tituladas, nas quais vivem 193 comunidades (aproximadamente
11.930 famílias). Ainda é um quadro bastante desfavorável que aponta para a titulação de 6%
do total estimado de 3.000 comunidades quilombolas existentes no Brasil. Os entraves são
muitos: comunidades quilombolas habitam fronteiras marcadas por disputas. As pressões têm
diversas origens: Estado, sociedade civil, órgãos representativos de outros grupos sociais, etc.
Nesse panorama de tensões históricas também se inserem as famílias Macanudo e Amaral,
comunidades quilombolas presentes nos distritos de Rio Grande.
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O processo de reconhecimento da comunidade quilombola dos Macanudos
Que tinha uma rodinha de mate que era no tempo da vó. Aí elas chegavam 9 horas da
manhã mais ou menos daí se juntavam com a família, as tias a tomar mate e a gente
ia todo mundo pra volta os pequenos. Umas 4 horas da tarde mais ou menos eu acho,
tinha de novo. Os brinquedos da gente que a gente se juntava a criançada toda pra
brincar lá. Era essas coisas assim. Tinha um carro de boi que a gente brincava muito
também que a gente gostava de andar na estrada correndo de atrás. Era bom morar
lá.
25
Trecho da entrevista individual realizada com Maria da Graça Amaral, em 17 de maio de 2012
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Claudiamara e seus/suas filhos/as são herdeiros/as dessas histórias, dos valores
aprendidos “lá”, nas terras na Quitéria. Em sua fala apreende-se o carinho por aqueles
momentos interrompidos pela mudança para a zona periférica da Quintinha, hoje urbanizada.
A família atualmente ocupa toda a face de uma quadra. Mantiveram-se unidos/as, próximos/as.
Preservaram o caráter distinto de suas práticas, enquanto grupo étnico constituído, construídas
sobre novo território. Ali erigiram suas habitações e têm criado seus/suas descendentes,
entretanto ainda permeia a esperança do retorno às suas terras.
As ações efetuadas junto à família Macanudo – encontros, conversas, entrevistas,
almoços e outras práticas de sociabilidade focaram-se nas memórias preservadas por cada
membro comunitário, enquanto significativas e componentes das identidades individuais
ligadas a uma identidade comum, a “macanuda”. Dessa forma, temos presenciado a maneira
como o conhecimento dessas histórias tem fortalecido as noções de pertença, de negritude e de
reivindicação de direitos. Na assembleia geral ocorrida em 22 de julho de 2012, na Escola Olavo
Bilac, parceira das atividades do Programa Comuf, os membros reunidos da comunidade
familiar dos Amaral conversaram sobre sua história. Valendo-se de uma metodologia
colaborativa, o professor coordenador do projeto construiu a árvore genealógica com a
participação de todos os presentes, conforme segue:
Árvore Genealógica da Família Amaral Macanudo, elaborada mediante metodologia colaborativa com a
comunidade.
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Neste encontro foi realizado o autorreconhecimento da comunidade quilombola dos
Macanudos, cujo registro foi efetuado em Ata e encaminhado à Fundação Cultural Palmares
para que fosse iniciado o processo de reconhecimento por parte do citado órgão.
Para finalizar a ata, debateu-se, ainda, como se chamaria o novo quilombo. A proposta
partiu da juventude da família, que assegurou que o quilombo deveria se chamar Quilombo dos
Macanudos, o que foi aclamado pela assembleia.
Cabe, ainda, lembrar que o coletivo de estudantes negras e negros da FURG, presente
na ocasião da assembleia, solicitou à comunidade a autorização para utilizarem o nome dos
Macanudos no coletivo, o que a comunidade concedeu. Nascia, assim, esta organização
estudantil que marcaria o movimento estudantil da instituição por anos posteriores, o Coletivo
Macanudo de Estudantes Negras e Negros da FURG.
Após esta reunião, as mulheres da comunidade iniciaram esforços para a criação de uma
associação que possibilitará não somente solidificação do processo iniciado com as ações
conjuntas entre acadêmicos/as e membros comunitários, mas também propiciará a geração de
renda e sustentabilidade para as famílias.
A reunião entre saberes acadêmicos e comunitários tornou realidade uma conquista há
muito reivindicada na figura da senhora Maria da Graça Amaral, representante e griô da família
Amaral. Em maio de 2013, a Fundação Cultural Palmares emitiu a certificação para a
Comunidade. Este certificado vem para coroar a prática universitária guiada por valores éticos
e profissionais, assim como reconhece/legitima/fortalece as trajetórias coletivas dos membros
desta família até então invisibilizada na história de Rio Grande. Ao mesmo tempo, chega o
momento de chamar à responsabilidade gestores/as e órgãos municipais e estaduais que
subsidiarão o acesso aos recursos e direitos legais da Família Macanudo Amaral. O município
de Rio Grande tem sua primeira comunidade quilombola oficializada e a história da cidade é
enegrecida e, por esta razão, enriquecida.
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criadoras do Programa de Ações Inclusivas (Proai), em que vagas indígenas já haviam sido geradas,
sinalizou-se necessário um estudo de demanda, bem como um maior aprofundamento sobre a questão
quilombola, para que se pudesse levar adiante o debate sobre as vagas quilombolas. Vale lembrar que
até o momento na FURG não havia sido desenvolvida qualquer ação sobre esta comunidade, carecendo,
portando, a comunidade universitária de maiores subsídios para poder levar em frente à proposta.
Naquele momento, quem buscasse no site da FURG a palavra quilombola não encontraria qualquer
resultado. Ciente de se estar partindo do zero, o Comuf passou a empenhar esforços para poder construir
o relatório “FURG+Quilombola”. Eventos acadêmicos, consultas públicas às comunidades, mobilização
do movimento negro e quilombola, entre outras estratégias, foram intensas durante o tempo de trabalho.
Sabíamos que o levantamento dos dados necessários, caso não fossem empreendidos com intensidade
técnico-científica, levariam anos para concretizar a geração das vagas.
Durante o período de redação do Relatório FURG+Quilombola, o estudo foi submetido às
comunidades quilombolas, movimento negro, pesquisadores e militantes que se interessaram pelo tema
e que, cada qual ao seu modo, contribuíram para o enriquecimento do material. De forma anterior e
subsequente, o Comuf realizou, entre o período de 2010-2 a 2012-1, uma série de consultas livres e
informadas às comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul, bem como consultou o movimento
negro para averiguar o interesse para a geração das vagas para estudantes quilombolas na FURG.
Em agosto de 2010, consultou-se a comunidade de Vila Nova, em São José do Norte. Na
ocasião, reuniram-se oito jovens da comunidade em conjunto com a liderança local, Flávio Machado.
Esta reunião demonstrou o interesse dos/as jovens em ingressar na universidade, bem como apresentou
as principais dificuldades que observavam na possibilidade de ingresso.
Entre os meses de setembro de 2011 e abril de 2012, consultaramos as comunidades quilombolas
de Rio Grande sobre o interesse e demanda em ingressar na universidade, certificando-se o amplo
interesse de jovens e adultos a ingressar na universidade, ao mesmo tempo em que apontavam a
impossibilidade de custear os estudos ou disputar vagas mediante o sistema de ampla concorrência.
Em ocasião do XI Acampamento Afro, realizado em São Lourenço do Sul, o programa
consultou distintas lideranças do movimento negro e quilombola sobre o interesse das vagas
quilombolas. Com estes contatos, obtivemos apoio de diversos grupos que sinalizaram as dificuldades
de acesso e permanência desta parcela da população em âmbito universitário, sobretudo devido à
ausência de políticas públicas afirmativas específicas com esse viés de intervenção.
No Geribanda-FURG de 2011, realizou-se uma ampla consulta ao movimento negro sobre as
demandas que apresentavam à universidade, de onde se gerou um documento construído pelos/as
integrantes do evento. O documento deixa claro em sua versão final a solicitação para que fossem criadas
vagas específicas para estudantes quilombolas, atestando o apoio do movimento negro.
No Fórum Internacional da Temática Indígena, ocorrido em 2012 na Universidade Federal de
Pelotas (UFPEL), e no Fórum Nacional de Ensino Superior Indígena, ocorrido na FURG também em
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2012, produziram-se documentos em favor da ampliação dos programas de ações afirmativas nas
universidades, documentos, estes, assinados por docentes, técnicos/as administrativos/as, estudantes,
membros de associações e de comunidades, onde mais uma vez se pode atestar o desejo social em
ampliar o processo de democratização da universidade.
Por fim, o Relatório Furg+Quilombola somou o debate sobre a escola quilombola, conforme as
deliberações finais da Conferência Nacional de Educação (CONAE, 2010), que aponta que a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão “instituir um programa específico de licenciatura
para quilombolas, para garantir a valorização e a preservação cultural dessas comunidades étnicas”.
Além disso, devem “Assegurar que a atividade docente nas escolas quilombolas seja exercida
preferencialmente por professores/as oriundos/as das comunidades quilombolas” (C0NAE, 2010, p.
131-132). Somado à Convenção 169, a criação de uma ou mais graduações, interessadas no
etnodesenvolvimento das comunidades, construída a partir da consulta popular, torna-se uma potencial
alternativa para superar as condições de vulnerabilidade contemporâneas.
Contudo, ao longo do processo, vozes levantaram-se contra a proposta. Houve até mesmo quem
dissesse: “Alguém tem que fazer faxina no Brasil”, entre outras demonstrações de racismo socialmente
institucionalizado. Um dos argumentos recorrentes para combater a geração de vagas para estudantes
quilombolas em universidades públicas que adotaram o ENEM e SISU como sistema de ingresso é que
estas já previam bonificações para candidatos/as negros/as. Contudo, esta concepção desrespeita os
princípios de igualdade na disputa por vagas, pois a formação de estudantes negros/as urbanos/as é
distinta da formação de estudantes provenientes quilombos. O que o Relatório sublinha, ecoando os
depoimentos de lideranças e representantes de comunidades quilombolas, é que a população quilombola,
com menor acesso à informação, deve ser avaliada de forma diferenciada dos/as demais candidatos/as
negros/as, competindo entre os pares de forma a assegurar a distribuição democrática das vagas
universitárias e os princípios mais caros das ações afirmativas. No que diz respeito à formação escolar,
as dificuldades enfrentadas pela escola pública contemporânea, em tons intensificados na zona rural,
contribuem no desfavorecimento dos/as candidatos/as quilombolas.
Tal constatação foi averiguada pelo Comuf. Nas duas últimas seleções para o ENEM, o Comuf
acompanhou e procurou auxiliar os/as candidatos/as das comunidades quilombolas de Rio Grande e São
José do Norte. Apesar de obterem pontuações que passaram longe de reprovação e ainda que se
autorreconhecendo como afrodescendentes, não conseguiram obter médias que lhes possibilitassem o
ingresso na FURG. Em outras palavras, entre a população negra, os/as quilombolas estão em aguda
desvantagem social.
Outro ponto identificado ao longo dos estudos que dificulta o ingresso dos/as candidatos/as
quilombolas é o calendário tradicional da universidade. Uma vez que os/as integrantes dos quilombos
rurais trabalham no campo, o calendário agrícola e suas peculiaridades inviabiliza sua presença na
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universidade. Vale apontar que as condições rurais de difícil acesso tornam impossível o
deslocamento diário dos candidatos à universidade.
De todo modo, assegurar o acesso ao ensino superior de comunidades tradicionais exigiria um
programa sólido de permanência que assegurasse moradia, auxílio alimentação e bolsas voltadas à
aquisição de material didático. Tais aspectos já estavam solidificados no programa de acesso aos
indígenas, o que mais uma vez demonstrava a necessidade deste programa ser ampliado aos
quilombolas.
Tão logo o estudo foi concluído, o Relatório FURG+Quilombola foi entregue para a Pró-Reitora
de Graduação e equipe em reunião que contou com integrantes do Comuf (Jean Baptista e Treyce
Goulart), Flávio Machado do Quilombo de Vila Nova, Graça Amaral do Quilombo dos Macanudos,
Ubirajara Toledo e Maria do Carmo Aguilar na qualidade de representantes do Instituto de Assessoria
às Comunidades Remanescentes de Quilombos (Iacoreq) e Sérgio Dornelles, do Codene. Além
destes/as, Cassiane Paixão e Anderson Lobato, docentes da FURG, integrando a primeira ação conjunta
do que viria a se tornar o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neabi-FURG), também estiveram
presentes. A reunião foi proveitosa, sinalizando-se disposição da administração da universidade em
levar adiante a proposta e demonstrando comprometimento e sensibilidade da gestão com a questão
quilombola.
Quando dada a reunião do Conselho Universitário em 14 de agosto de 2012, o coordenador do
Comuf teve direito a fala durante cinco minutos para convencer os conselheiros da necessidade de
adoção da política, mais uma vez amparando-se nos resultados da pesquisa e do relatório que foi
distribuído ao Conselho. Somado às falas de apoio de outros membros do Consun, em especial a dos
professores Vilmar Alves e Cleuza Sobral Dias, a proposta foi aprovada.
Tal qual recomendava o Relatório, os/as quilombolas passaram a ser inseridos/as no programa
de acesso e permanência para indígenas, fortalecendo uma dupla identidade de comunidades tradicionais
no interior do Programa. Seguindo o mesmo formato da primeira seleção indígena, destinaram-se cinco
vagas para quilombolas, as quais a juventude e as lideranças quilombolas deveriam indicar para quais
cursos seriam destinadas. A primeira assembleia para decisão das vagas ocorreu nas dependências da
FURG, sinalizando um conjunto de cursos que abriram o caminho para a próxima seleção.
Na seleção para 2013, os primeiros quilombolas a ingressar na FURG ocuparam as cinco vagas
oferecidas inicialmente. No mesmo ano, a família Macanudo foi reconhecida pela Fundação Cultural
Palmares na qualidade de remanescentes de quilombo. O ano de 2013, com certeza, foi o ano quilombola
em Rio Grande. Deste ponto em diante, gestores/as do município e da universidade passariam a ter a
questão quilombola como parte integrante de suas preocupações.
Vale ressaltar que o Relatório FURG+Quilombola também recomendava a criação da
Licenciatura Quilombola, tendo em vista os resultados apontados pelas pesquisas sobre a escolarização
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desta população. Contudo, esta ideia foi diluída em um edital aberto posteriormente pelo MEC, voltado
para a Licenciatura do Campo. Aguarda-se, ainda, que se possa pensar em uma licenciatura específica
para esta população.
Embora tenha enfrentado dificuldades para compreensão de suas ideias em meio a mentalidade
conservadora de parcelas da comunidade universitária, e ainda que tal mentalidade não tenha encontrado
forças para barrá-lo mediante uma gestão comprometida, o Relatório FURG+Quilombola cumpriu seu
objetivo: inserir a questão quilombola na FURG, assegurando, com isso, seu compromisso de se
conectar com "as comunidades do ecossistema costeiro", conforme missão da instituição, desde então a
incluir as múltiplas comunidades negras daquela espacialidade.
O Relatório Furg+Quilombola subsidiou, ainda, a geração de vagas para quilombolas em
outras instituições, tal qual a UFFS e a UFPEL. O que se deseja de fato, é que o Relatório siga
subsidiando novas conquistas e que a FURG possa ser uma universidade onde a diversidade jamais seja
ameaçada ao contar com uma política sólida de promoção da diversidade.
Considerações
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extensão universitária é construída por interesses comunitários, os resultados são amplas
conquistas dessas sociedades.
Hoje podemos afirmar: Rio Grande é uma cidade que possui múltiplas raízes culturais,
sendo a participação quilombola fundamental para a compreensão de sua identidade.
REFERÊNCIAS:
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GRUPO DE PESQUISA SEXUALIDADE E ESCOLA – GESE: construindo ações para
a equidade
A Universidade Federal do Rio Grande – FURG, é uma das cinco universidades federais
do estado do Rio Grande do Sul. Desde o ano de 1969, vem realizando atividades de ensino,
pesquisa e extensaõ , visando buscar a educaçaõ em sua plenitude, despertando a criatividade e
o espírito crítico e propiciando os conhecimentos necessários à transformaçaõ social; formar
mulheres e homens cultural, social e tecnicamente capazes; promover a integraçaõ harmônica
entre o ser humano e o meio ambiente.
O Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola (GESE), imbuído destes pressupostos tem
buscado, ao longo dos seus quatorze anos de atuação, nas diversas atividades que promove,
problematizar as desigualdades de gênero e sexuais, estimular o espírito crítico, a curiosidade,
a criatividade, valorizar o conviv́ io social e o pluralismo contribuindo para a inserçaõ no mundo
social de mulheres e homens. Ao longo de seu percurso, buscou através de suas ações investigar
e questionar as assimetrias sociais em decorrência das configurações assumidas pelos gêneros,
pelas classes, pelas raças/etnias e pelas identidades sexuais.
O GESE, baseado na indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão, tem
buscado abordar os gêneros, as sexualidades e os corpos como ferramentas conceituais,
políticas e pedagógicas, colocando em xeque, através da elaboração e implementação de
projetos, pesquisas, publicações, entre outras ações, algumas formas de organização social,
hierarquias e desigualdades.
Assim, este texto tem como objetivo apresentar a trajetória percorrida pelo GESE, na
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Doutora em Educação em Ciências, pelo PPG Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde - Associação
Ampla FURG, UFRGS E UFSM. Mestre em em Educação em Ciências pela UFRGS e graduada em Ciências
Biológicas- Licenciatura e Bacharelado na FURG. Atualmente é Professora Adjunta do Instituto de Educação, da
Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Professora do PPG Educação em Ciências: química da vida e da
saúde (FURG) e do PPG Educação (FURG). Pesquisadora do grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola-FURG.
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Possui graduação em Ciências Licenciatura Plena em Biologia pela Universidade Federal do Rio Grande (1985),
mestrado em Biociências (Zoologia) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1991) e
doutorado em Ciências Biológicas (Bioquimica) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2002).
Atualmente é professora Associada IV do Instituto de Educação, professora do Programa de Pós-Graduação em
Educação Ambiental, do Pós-Graduação Educação em Ciências (Associação Ampla FURG/UFRGS/UFSM) e do
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande. Tem experiência na área de Ensino de
Ciências e Biologia. Coordena o Centro de Educação Ambiental, Ciências e Matemática - Ceamecim que tem suas
ações de ensino, pesquisa e extensão direcionadas as áreas de ciências, biologia, matemática, química, física.
Coordena o Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola, atuando principalmente nos seguintes temas: corpos, gêneros
e sexualidades. Boslsista produtividade 1D do CNPq.
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