Bestiario Evolução PDF
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FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA
GOIÂNIA – GO
2009
Termo de Ciência e de Autorização para Disponibilizar as Teses e Dissertações Ele-
trônicas (TEDE) na Biblioteca Digital da UFG
1
Em caso de restrição, esta poderá ser mantida por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo
suscita justificativa junto à coordenação do curso. Todo resumo e metadados ficarão sempre disponibilizados.
DÁRIO TACIANO DE FREITAS JÚNIOR
GOIÂNIA – GO
2009
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
GPT/BC/UFG
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca - UFG
Presidente da Banca
__________________________________________________________________
Profª. Drª. Suzana Yolanda Lenhardt Machado Cánovas - UFG
__________________________________________________________________
Profª. Drª. Dulce Oliveira Amarante dos Santos - UFG
A Deus, por deixar ao meu alcance tudo o
que minha mente pode conceber.
AGRADECIMENTOS
Agradeço àqueles que colaboraram para a plena realização desta pesquisa, em especial:
À minha mãe, Dona Neusa, pela educação e pelo incansável incentivo à leitura; ao meu pai,
Dário, in memoriam, pelo exemplo de vida.
À minha irmã Daniane e aos meus irmãos Neilton e Wilton, simplesmente por existirem em
minha vida e pela torcida, mesmo sem entenderem a importância deste feito em minha
formação profissional.
Ao Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca, pela paciência, amizade e sabedoria na forma
como conduziu a orientação desta dissertação, mas, sobretudo, agradeço também por ser,
desde a graduação, o grande incentivador da minha carreira.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da UFG, por ter viabilizado meus
estudos.
Aos professores: Jorge Alves Santana, Marilúcia Mendes Ramos, Goiandira de Fátima Ortiz
de Camargo e Ofir Bergman de Aguiar, do Programa de Pós-Graduação em Letras e
Linguística, por me abrirem uma nova perspectiva frente ao entendimento da literatura.
Ao Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior, o qual, sem dúvida, contribuiu de forma
essencial para meu crescimento, auxiliando, significativamente, com suas observações
críticas.
Aos colegas do mestrado, que dividiram as angústias e alegrias do percurso, em especial: à
Ana Paula da Costa, companheira sempre presente; ao Renan Cornette Pires e à Nismária
Alves David, pelo convívio intelectual; à Marcela Italo, pelo exemplo de perseverança; e ao
Paulo Antônio Vieira Júnior, meu novo amigo.
À Vera Lúcia Alves Mendes Paganini, pelas palavras generosas e pela confiança nas horas
difíceis.
Ao meu primo Alessandro de Carvalho, pela inestimável amizade e pelo apoio durante todo o
curso.
Aos meus amigos André Yamada, Átila Teixeira e Elvis Cleiton, pelo constante incentivo, e,
acima de tudo, pela fineza.
Aos moradores da Casa do Estudante Universitário pela alegria, convivência e pelo enorme
respeito que sempre tiveram por mim.
Aos amigos do Ministério da Integração Nacional e da Defensoria Pública da União, pela
credibilidade.
Ao Weldon Carlos Elias Teixeira, pela contribuição imediata através de seu conhecimento da
língua inglesa.
Às professoras Dulce Oliveira Amarante dos Santos e Suzana Yolanda Lenhardt Machado
Cánovas, pela honra ao aceitarem a leitura e correção deste trabalho.
À minha querida Alessandra Batista de Campos, pelo afeto, compreensão, encorajamento e
pela paciência em suportar minhas ausências em função da pesquisa.
A todos os outros amigos que me acompanharam nessa árdua travessia, pelo aprendizado que
me proporcionaram, pelo apoio e pela torcida.
FREITAS JÚNIOR, Dário Taciano de. O simbolismo animal medieval: Um safári literário em
Moacyr Scliar e Manoel de Barros. 2009. Dissertação (Mestrado em Literatura). Faculdade de
Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2009.
RESUMO
Sabe-se que a criação estética de diversos autores da literatura brasileira tem sido alvo de
estudos de variados tratamentos, abordagens teóricas e crítico-analíticas, no que diz respeito
ao seu conteúdo imagético, simbólico e figurativo. Apesar de recorrentes, os trabalhos
teóricos que rastreiam a figura do animal, poucas são as obras dedicadas ao seu significado
literário, o que, de certa forma, mostra descaso sobre o assunto. Sem desfavorecer a
importância dos estudos tradicionais, que apenas apresentam a figura animal como forma
implícita do próprio homem, este estudo procura preencher essa lacuna na crítica, examinando
obras da literatura brasileira contemporânea que contemplam a figura do animal baseado em
seus aspectos simbólicos. Assim, como muito do imaginário e simbolismo, originado na
tradição bestiária medieval, encontra-se recorrente na literatura atual, foram eleitos os
seguintes autores contemporâneos de reconhecido destaque e importância no âmbito da
literatura nacional, nos quais será analisada a temática em questão: Moacyr Scliar e Manoel
de Barros. Haverá, portanto, a realização de um estudo descritivo, analítico e crítico-
interpretativo da presença simbólica e imaginária de animais, respectivamente, em contos de
O carnaval dos animais (1968) e no livro de poesia Arranjos para assobio (1982), a partir de
sua própria distinção, seu gênero e sua singularidade, já que cada uma dessas obras, além de
fazer parte de um contexto histórico particular, é marcada pelo traço distintivo de cada autor.
ABSTRACT
It‘s known that the esthetic creation of diverse brazilian literature authors, has been the aim of
study of several treatments, theoretic approach, critical and analytical, regarding its image
content, symbolic and figurative. Although recurrent, the theoretic works that scrutinizes the
animal figure, few productions are dedicated to its literary meaning, what, somehow, shows
the lack of attention related to this issue. Without decreasing the importance of the traditional
studies, that just presents the animal figure as own human‘s implicit form, this study tries to
fill the critical lack, analyzing literary contemporaneous brazilian productions that
contemplates the animal figure based in its symbolical aspects. Thus, as much of the
imaginary and symbolism, arose in the bestiary medieval tradition, its recurrent found in the
current literature, the following authors, of recognized prominence and importance in the
context of national literature, were chosen to be analyzed: Moacyr Scliar and Manoel de
Barros. So, there will be a descriptive, analytical, critical and interpretative study of the
symbolical and imaginary presence of animals, respectively, in tales of O carnaval dos
animais (1968) and in the poetry book Arranjos para assobio (1982), from its own
distinction, its gender and its singularity, since each of this works, in addition being part of a
particular historical context, it‘s marked by distinctive aspects of each author.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
INTRODUÇÃO
Dessa forma, para a fundamentação teórica do trabalho, não deve causar surpresa
o convívio de pensamentos de áreas do saber academicamente diversas, tal como literatura,
história e filosofia, contribuindo para a ampliação de horizontes do conhecimento.
Esta dissertação é resultado dos estudos iniciados no curso de Mestrado em
Estudos Literários, cuja área de interesse concentra-se na intersecção entre literatura e
imaginário. Nessa zona de aproximação, propõe-se uma leitura da literatura brasileira
contemporânea, pelo viés do pensamento medieval, contemplado na escrita de Moacyr Scliar
e Manoel de Barros. Será apresentado nesta pesquisa, um estudo sobre a presença do mundo
animal, cuja carga imaginária e simbólica pode dar vazas a leituras de fundo interpretativo,
ligado a concepções e valores não só literários, mas também culturais.
O produto do estudo terá como consequência uma pesquisa mais sólida e
delineada de motivos e funções do simbolismo animal que, reelaborado na literatura brasileira
contemporânea, trazendo como herança da tradição bestiária medieval e dos princípios dos
tempos modernos, atende às suas respectivas contextualizações culturais e ideológicas.
Por intermédio da elucidante questão dos elementos simbólicos e suas
recorrências que, no tocante aos animais, perpassam as obras dos autores mencionados, será
possível, consoante a orientação do trabalho, apresentar um estudo original que poderá
contribuir para outras áreas do conhecimento humano e artístico, estas ligadas ao universo
social, ideológico, cultural e antropológico.
Serão utilizados dois tipos de pesquisa, a saber: 1) a pesquisa bibliográfica,
constituída, principalmente, por artigos científicos e livros, visto que permite a cobertura de
uma gama de fenômenos maior, e, 2) a pesquisa documental, que permite o acesso a
documentos como: reportagens de jornal, relatórios de pesquisa, documentos oficiais, entre
outros.
A fonte utilizada para a pesquisa consiste em consulta à bibliografia teórica e
crítica básica, referindo-se a itens necessários ao estudo da tradição bestiária medieval, e, em
relação aos demais itens bibliográficos, a sua quase totalidade é encontrada, facilmente, em
bibliotecas especializadas.
É importante ressaltar a imprescindível obra que será usada como ponto de partida
para o desenvolvimento do estudo, The book of beasts (1984) [O livro das bestas]. De grande
riqueza por sua ilustração, constitui um dos bestiários mais ricos e importantes pelo elevado
número de animais que descreve, em média 150. Publicado pela primeira vez em 1928, é uma
tradução para o inglês de um bestiário latino do século XII, cujo manuscrito encontra-se na
Cambridge University Library [Biblioteca da Universidade de Cambridge], em uma edição
11
feita e comentada por T. H. White. Tal livro, além do embasamento teórico, fornece subsídios
para a análise e discussão acerca do tema estudado.
Desse modo, a fim de melhor aquilatar a peculiaridade e os propósitos dos
bestiários medievais, na literatura brasileira contemporânea, será enfocada uma abordagem
metodológica hermenêutica, a fim de se estudar a tradição bestiária medieval em sua origem,
fontes de influência e elaborações disseminativas.
Para atender aos objetivos do presente estudo, foi proposta uma leitura
hermenêutica, entendendo-a aqui, segundo aponta Palmer (1976), como o momento
culminante entre uma materialidade oferecida pela obra literária e a construção do locutor
para se alcançar, assim, a visão e o modo de estar no mundo do artista, como processo de
compreensão e interpretação dos textos.
A realização dessa leitura, no contexto da interpretação, permitirá uma maior
proximidade com as informações e a captação dos sentidos construídos pela linguagem.
Portanto, pelo estudo hermenêutico, a leitura de Moacyr Scliar e Manoel de Barros foi
necessária para atingir a subjetividade e a singularidade do material coletado em seus textos.
Ainda no âmbito da metodologia, haverá uma abordagem de natureza analítica e
crítico-interpretativa, preponderando com destaque os pressupostos buscados na teoria do
imaginário e do simbólico na configuração da literatura enquanto expressão cultural dos
autores.
Entretanto, antes de se entrar no exame, propriamente dito, do que compõe o
imaginário medieval na literatura brasileira contemporânea, vale ressaltar que essa carga
simbólica sobre os elementos da natureza, no conteúdo imagético da literatura brasileira, não
se restringe apenas ao reino animal. Outros elementos da natureza como pedras (reino
mineral) e plantas (reino vegetal), também mereceram, igualmente, a percepção e o interesse
desses autores da contemporaneidade. Haverá, por exemplo, poemas de Manoel de Barros que
ressaltam não só a importância e a sabedoria dos animais como também das plantas e das
pedras.
Tudo indica que foi na baliza dessa tradição bestiária, em que ciência e
imaginação se fundiam nas descrições de animais, que certos escritores brasileiros
contemporâneos serviram-se como tema e matéria para a construção de suas obras. Assim, é
de extrema importância verificar qual o tratamento dado pela modernidade a esse tema
tradicional e secular, uma vez que esta surge como uma ruptura do medievo.
Nesses ―bestiários modernos‖, será possível encontrar várias ressignificações e
abordagens convergentes e, às vezes, divergentes em relação aos bestiários medievais. Assim
12
Os teólogos judeus costumavam dizer que é mais fácil descrever Deus em termos do
que Ele não é. O mesmo processo pode ser útil para a compreensão do humor
judaico. Ele não é escapista, não é grosseiro, não é cruel; ao mesmo tempo, também
não é polido ou gentil.
O humor judaico geralmente versa sobre temas como: a comida, a família, negócios,
o antisemitismo, a riqueza e a pobreza, a saúde e a sobrevivência. Há nele uma
fascinação com a lógica; mais precisamente, pelo tênue limite que separa o racional
do absurdo (SCLIAR; FINZI; TOKER; 1990, p. 2).
Desse modo, o humor judaico costuma produzir não uma gargalhada, mas um
sorriso melancólico, um aceno de cabeça, um suspiro. Possui também um caráter
antiautoritário e democrático, por enfatizar a dignidade do cidadão comum.
O carnaval dos animais, publicado na década de 1960, além da presença do
humor judaico, tem como pano de fundo a atmosfera sociopolítica que imperava no Brasil
durante a ditadura militar, desta forma, o autor usa a palavra como instrumento para a
construção de seu texto.
que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto
(CORTÁZAR, 1995, p. 152).
oscilou desde criança entre a assimilação da cultura brasileira e a preservação dos seus hábitos
culturais judaicos.
Por meio dos contos de Moacyr Scliar, pretende-se explorar o simbolismo animal
para embasamento da análise teórica do trabalho. Nesse sentido, será possível evidenciar a
intertextualização dos contos com textos do período medieval e com a Bíblia. O objetivo do
estudo também consiste em perceber se nos contos que intertextualizam textos bíblicos, por
exemplo, existe a intenção de desvincular o sujeito de um mundo material para o espaço
surrealista onde é possível recorrer ao onírico, ao metafísico, ao fantástico e à alegoria, para
metaforizar situações reais e obscurecer a denúncia explícita. Nesta análise, dar-se-á ênfase ao
imaginário ligado aos animais e seus diversos enfoques.
No terceiro capítulo, intitulado ―O bestiário poético de Manoel de Barros‖,
pretende-se discutir, sobretudo, poemas de Arranjos para assobio (1982), observando
determinados recursos poéticos utilizados pelo autor, característicos da poesia contemporânea.
Será proposta uma visão do Pantanal, não na sua exuberância ecológica e turística,
mas sim trazendo seus pequenos seres. Nesse sentido, será visto, então, em que medida a
cultura do pantanal e os animais dessa região estão, pois, imbricados em sua obra. Seu
bestiário revela, a princípio, uma tendência simbólica dos animais, mas que vai partindo para
uma corrente de incorporação, em que o homem não ocupa um lugar privilegiado, mas sim
uma relação de comunhão e entendimento acerca do animal.
A intenção principal desta parte do estudo consiste em elucidar o bestiário de
Barros na obra supracitada, observando-se as influências motivacionais e simbólicas, que
fazem coro ressonante do imaginário medieval.
Para isso, foi proposta uma análise com dois tipos de leitura: uma horizontal –
abordando o conjunto de obras de Barros, a fim de capturar a cosmovisão de sua obra –, e
outra vertical – explorando, em profundidade, uma obra literária por acreditar que haja nela a
reunião de um projeto político e estético do autor.
Haverá, ainda, o interesse em perceber se o autor pode ser considerado um adepto
das tendências pós-modernas, pela sua forma inovadora de narrativa fragmentada. Deste
modo, as questões do simbolismo animal medieval serão trabalhadas, visando compreender
como meandros do texto promovem as especificidades da obra e as intenções do autor.
O direcionamento de Joyce E. Salisbury (1994), por intermédio do livro The Beast
Within: Animals in the Midle Ages, também foi uma leitura providencial para se propor a
discussão sobre o tema, tanto na análise de Manoel de Barros quanto de Moacyr Scliar, pois, a
17
partir desta leitura, nota-se muitas coincidências de textos desses autores com textos do
período medieval:
Uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para
plasmar elementos não literários: impressões, paixões, ideias, fatos, acontecimentos,
que são a matéria-prima do criador. A sua importância quase nunca é devida à
19
Os dois autores, com a palavra como ferramenta, iniciam uma viagem para o
encontro com o animal, com características literais utilizadas como exemplos e que assumem
uma significação simbólico-alegórica, que nem sempre se traduz de forma fixa e definida. São
dois autores que trabalham o animal como tema, mas a partir de uma particularidade literária
exclusiva de cada um deles. Moacyr Scliar destaca esse tema em seus contos, embora, como
já foi dito, também tenha escrito novelas, crônicas, dentre outros; e Manoel de Barros, com
sua poesia.
O recorte investigativo pelo viés do animal, nos diferentes contextos literários em
estudo, permite abrir janelas do conhecimento e, pela dinâmica do aproximar e do distanciar,
torna-se possível construir uma visão crítica contística e poética.
Essa diversidade subsidia também ao enriquecimento da literatura brasileira. O
aporte que estes dois autores fazem a ela ajuda a crítica literária da mesma forma, como uma
contribuição a partir de distintas tradições literárias dentro do contexto brasileiro sobre uma
abstração filosófica levada à literatura. Temporalmente, estes dois autores pertencem a uma
mesma época. Eles nasceram durante a primeira metade do século passado e, portanto, são
contemporâneos entre si. Cada um deles ocupa um lugar importante na tradição literária
brasileira contemporânea.
Finalmente, são com olhos críticos sobre a sociedade, com olhos ―de lince‖, que
esses autores dão uma visão geral sobre o que se poderia chamar de um bestiário brasileiro.
Desta forma, não se pode deixar de considerar, analisar e interpretar os textos em seus
contextos, ressaltando as semelhanças e diferenças, pois é por meio dessa transformação
cultural e por entrecruzamentos de discursos, de diálogos e de culturas, que se poderá
entender sobre a diversidade social e essa inquietude nos dois autores. Essa preocupação pelo
animal representado literariamente será o fio condutor deste estudo.
Como realidade própria, a obra de Manoel de Barros, bem como a de Moacyr
Scliar, exprime, cada qual, uma posição diante de certos temas por meio dos quais se entrevê
suas mais ultimadas explicações e finalidades acerca da vida humana. Desse modo, sabendo
que ambos compartilham de uma visão medieval da natureza, que a veem como
―essencialmente múltipla, isto é, formada por um agregado de seres individuais, cada um
20
período medieval. Tudo isso, com a finalidade de investigar sobre a gênese, evolução e
finalidade estético-ideológica do imaginário e do simbolismo animal na tradição bestiária
medieval e dos pontos da tradição do simbolismo animal ou bestiário medieval.
Durante a Idade Média, na Europa Ocidental, os cristãos acreditavam que as
formas de conhecimento e de verdade estavam patentes nos Testamentos e nos ensinamentos
dos Padres da Igreja. A relevância da obediência como um dever determinado por Deus pode
ser encontrada nos escritores do Novo Testamento. Neste pequeno trecho de São Paulo, ficam
evidentes os fundamentos para a filosofia política cristã (WOLKMER, 2001, p. 16):
Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que
não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. Assim, aquele que
resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se
opõem, atraem sobre si a condenação. Em verdade, as autoridades inspiram temor,
não, porém a quem pratica o bem, e sim a quem faz o mal! Queres não ter o que
temer a autoridade? Faze bem, e terás o seu louvor. Porque ela é instrumento de
Deus para o teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva a
espada: é o ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que
pratica o mal. Portanto, é necessário submeter-se não somente pelo castigo, mas
também por dever de consciência (ROMANOS, 13:1-5).
Desse modo, uma exegese crítica das influências desta tradição bestiária terá,
inicialmente, que começar pela Bíblia, atentando ao fato de que a leitura das Escrituras era
efetuada não só no seu sentido literal e histórico, como também na acepção moral e alegórica,
sendo estes dois aspectos de primordial importância na transmissão do bestiário bíblico.
O Antigo Testamento, o que mais trouxe informações sobre os animais,
influenciando direta e indiretamente os escritos medievos, era entendido como um anúncio do
Novo. Quer dizer, o Novo Testamento, que possuía vinte e sete livros escritos por diversos
autores em diferentes épocas e lugares, é um enorme espólio daquele. Ao contrário do Velho
Testamento, o Novo foi escrito num pequeno espaço de tempo, por volta de um século ou um
pouco mais.
As narrativas bíblicas foram percebidas, no período medieval, segundo um
procedimento interpretativo que valorizava a leitura simbólico-alegórica das revelações
divinas, como forma de entender seu conteúdo. Afinal, o livro, na Idade Média, possuía um
valor simbólico e sagrado inigualável, tendo na Igreja a principal responsável pela ascensão
do Cristianismo como a religião da Sagrada Escritura (VARANDAS, 2006b, p. 4).
Sem dúvida, a herança bíblica, a exemplo do pronunciamento bíblico conhecido
como ―Gênesis‖, que descreve as origens dos Céus e da Terra, a criação dos animais e da vida
24
humana em um mundo perfeito, assim como o início do pecado, ainda estava muito presente
nas formas de se entender a cultura daquele período.
Nesse livro, cuja autoria é tradicionalmente atribuída a Moisés, encontra-se uma
importante referência aos animais na narrativa em que Deus, no quinto dia, após a criação do
céu e da terra, criou as ―almas viventes segundo as suas espécies, animal doméstico, e animal
movente, e animal selvático da terra, segundo a sua espécie‖ (GÊNESIS, 1:24). Assim, no
quinto dia, surgiram os animais terrestres, caracterizados como selváticos e domésticos. Mas,
as obras divinas ainda não haviam terminado. Deveria surgir ainda uma última espécie
notável. Então, logo após, no sexto dia, Deus criou o homem, ―à nossa imagem e semelhança,
para que ele presida aos peixes do mar, às aves do céu, às bestas, e a todos os répteis que se
movem sobre a terra, e domine em toda a terra‖ (GÊNESIS, 1:26). Depois disse a esse
homem, chamando-o Adão: ―enchei a terra, e tende-a sujeita a vós, e dominai sobre os peixes
do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra‖
(GÊNESIS, 1:28). Antes de dar ao homem a mulher, após ter ―formado da terra todos os
animais terrestres, e todas as aves do céu, ele os levou até Adão, para ver como os havia de
chamar. E o nome que Adão pôs a cada animal é o seu verdadeiro nome‖ (GÊNESIS, 2:19).
mais contribuiu para o bestiário, o Novo Testamento também transmitiu fortes imagens
animais aos autores dos bestiários medievais. Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, a sua
presença nos milagres, nas parábolas e nas frases de Cristo e dos seus discípulos, como a
pomba que surge na hora do batismo de Jesus no Jordão, representando o Espírito de Deus.
Vale ressaltar também o milagre da expulsão dos demônios de dois possessos, efetuado por
Cristo, que os enviou para uma vara de porcos que depois se lançaram num precipício, e
morreram nas águas do mar. Dos seus ensinamentos, ressaltam-se as referências aos cães que
lambem as feridas de Lázaro ou os pardais de pouco valor. A respeito das frases atribuídas a
Jesus Cristo, destacam-se as pérolas que não devem ser jogadas aos porcos para que estes não
as pisem com os seus pés e a comparação do Rei Herodes a uma raposa, que nos bestiários é
mencionada como um animal manhoso e matreiro, sendo alegoria do demônio, que alicia,
engana e leva à danação do cristão incauto.
Quando o homem da Idade Média quer conhecer a natureza ou a razão duma coisa
não a observa para lhe analisar a estrutura íntima, nem para inquirir sobre as suas
origens; olha antes para o céu, onde ela brilha como ideia. Quer se trate duma
questão política, moral ou social, o primeiro passo a dar é reduzi-la sempre ao seu
princípio universal (s.d., p. 221).
Nesse sentido, os exemplos de Cristo, dos santos, dos papas e da própria natureza,
encontrados, sobretudo, nas enciclopédias e bestiários, serviam de guias práticos de moral.
Desse modo, pode-se conferir como os animais se tornaram um rico repositório da exegese
bíblica, motivando significações relativas ao contexto em que eram referidos. A respeito dessa
particularidade, qual seja, a de utilizar os animais para difundir lições de moral, na literatura
de cunho dogmático-doutrinário, era possível perceber, entre as diversas formas de expressão,
que muito da doutrina bestiária era utilizada em exercícios escolares, vários deles usados
como formadores do espírito e da inteligência.
Outras fontes para a criação do bestiário, além do legado bíblico, são as obras dos
autores da Antiguidade Clássica, pois, tanto a filosofia política quanto outras áreas da cultura
e do conhecimento científico estavam sob o controle e sob influência da teologia oficial e das
doutrinas da Igreja. Dessa forma, a herança da Antiguidade Clássica não foi totalmente
abandonada ou esquecida, pois se fez presente na interpretação e na obra dos grandes
pensadores cristãos que souberam adaptar para a teologia cristã a obra de Platão (427-347
a.C), Aristóteles (384-322 a.C.), Sêneca (4-65 d.C.), Cícero (106-43 a.C), Plotino (205-270
d.C) e outros (WOLKNER, 2001, p. 15).
Jacques le Goff corrobora esse fato afirmando que tanto os professores medievais,
quanto os clérigos, utilizavam não somente obras cristãs, mas valiam-se de estudos das
autoridades greco-latinas, por considerá-las trabalhos científicos:
Se estes mestres que são clérigos, que são bons cristãos, preferem como text-book
Virgílio ao Eclesiastes e Platão a Santo Agostinho, não o fazem apenas por estarem
persuadidos de que Virgílio e Platão contêm ensinamentos morais ricos e que, por
dentro da casca existe o miolo...; fazem-no porque, para eles, a Eneida e o Timeu são
antes de mais nada obras científicas – escritas por sábios e apropriadas para serem
objeto de ensino especializado, técnico-, enquanto as Escrituras e a Patrística, que
podem ser ricas em matéria científica ..., o são apenas secundariamente (s.d., p. 31).
tenham se mostrado marcantes para a concepção da natureza e de seus seres, com sua
presença atestada na Idade Média:
Tal influência estendeu-se por toda a Idade Média. É certo, porém, que muitas das
descrições de animais transmitidas pelos autores pagãos revelavam-se fantasistas e
fabulosas, assim como deles foi recebido um bestiário constituído por monstros e
animais prodigiosos. No entanto, nunca os autores da Alta Idade Média
questionaram as informações herdadas da Antiguidade, dados os seus autores serem
considerados como ―autoridades‖, no que respeitava ao conhecimento do mundo
animal (CHAMBEL, 2006, p. 6).
Figura 3: Mantícora.
(Bestiário de Oxford. Bodleian Library)
Os autores, todavia, não são somente fontes de saber; são um tesouro da ciência e
filosofia da vida. Encontravam-se nos poetas antigos centenas e milhares de versos,
que ofereciam, em forma condensada, experiências psicológicas e regras de vida
(1957, p. 60).
os dogmas da Igreja através dos animais, o Physiologus transmitia exemplos morais a serem
seguidos pelos fiéis.
As interpretações morais e alegóricas do Physiologus não eram fortuitas, mas
resultado de adaptações ou modificações anteriores, ou mesmo direta dos seres. Em certos
casos, tais interpretações eram totalmente arbitrárias, na medida em que manipulavam
significações anteriores, provindas de outras tradições, revelando, desse modo, a sua
intencionalidade catequética com um tempero posto por intermédio da imaginação do autor.
A zoologia do Physiologus servia, nesse nível simbólico, como ensinamento
doutrinário, empenhado no didatismo e na moralização do homem. Entretanto, apesar de
apresentar grande destaque ao lado didático e moral, os animais tornavam-se repositórios
simbólicos de vícios ou virtudes e fonte de ensinamentos religiosos e morais, não havendo
clara distinção entre as características e a sua explicação, aparecendo ambas, normalmente,
imbricadas. Na verdade, nas diferentes versões do Physiologus, privilegia-se a importância da
―natureza‖ simbólica, apesar de não se desprezar a sua realidade física responsável pelos
elementos de analogização e alegorização.
Acerca dos recursos de investigação e de documentação dos animais dos quais
dispunha o autor-compilador do Physiologus, o destaque e a exatidão de muitas das suas
descrições dos animais é surpreendente, principalmente no tocante às características, hábitos,
alimentação e à reprodução desses seres (WOENSEL, 2001, p. 23). As ilustrações, que estão
presentes em algumas versões do Physiologus, retratam de modo esquemático a figuração e a
situação dos animais, determinando-os, na medida necessária, para a individualização de
detalhes próprios e para explicitação do texto que os acompanha. Desse modo, a verdadeira
intenção não era proporcionar um real e detalhado conhecimento zoológico sobre tais animais,
o que importava, realmente, para o propósito da obra era o sentido alegórico e/ou simbólico
de características propiciadoras ao ensinamento moral e doutrinário.
Cita-se, como exemplo, a descrição do castor no Physiologus. Símbolo de um
bom cristão, disposto ao sacrifício de parte de seu corpo em troca da salvação de sua alma, a
descrição desse roedor é quase sempre a mesma. Seus testículos contêm um precioso remédio.
Quando é cercado pelos caçadores, corta com uma mordida seus próprios testículos, os joga
na frente dos caçadores e assim escapa fugindo. Porém, se acontecer de outro caçador o
perseguir, ele se levanta e mostra a virilha ao caçador, para ter sua vida salva novamente.
Este, vendo que lhe faltam os testículos, se afasta. Nesse sentido, é possível tirar da referida
descrição a devota lição: o cristão deve preferir o sacrifício da castidade ao castigo eterno por
causa do pecado mortal. Afinal, segundo o Physiologus, toda pessoa que anda conforme o
34
mandamento de Deus e quer viver castamente, corta de si mesmo todo vício e qualquer ato
impudico, e os joga na frente do diabo. Este, então, vendo que nada possui que é seu, se vai
confundido2.
Figura 4: O castor.
(Aberdeen Bestiary)
2
De castore
Est animal quod dicitur castor mansuetum nimis, cuius testiculi medecine sunt aptissimi de quo dicit
Physiologus, quia cum venatorem se insequentem cognovit, morsu testiculos sibi abscidit, et in faciem venatoris
eos proicit et sic fugiens evadit. Si vero rursus contigerit ut alter venator eum prosequatur, erigit se et ostendit
virilia sua venatori. Quem cum viderit testiculus carere, ab eo discedit.
Sic omnis qui iuxta mandatum dei versatur et caste vult vivere, secat a se omnia vicia, et omnes impudicitie
actus, et proicit eos a se in faciem diaboli. Tunc ille videns eum nichil suorum habentem, confusus ab eo
discedit. Ille vero vivit in Deo, et non capitur a diabolo, qui dicit: persequar, et comprehendam eos. Castor dicitur
a castrando (Aberdeen Bestiary).
35
obra intitulada Animal Lore in English Literature, de Ansell Robin, White corrobora a ideia
de o Bestiário ser herdeiro direto do Physiologus e das Etimologias de Isidoro de Sevilha,
conforme figura abaixo:
referentes aos animais possuíam natureza teológica, visto começarem a descrever o animal
com a imediata intenção de relacionamento com um dogma cristão. Já nos bestiários as suas
interpretações simbólicas e figurativas tornam-se mais distintas por seu aspecto ético e moral
(GAZDARU, 1971 p. 269 apud FONSECA, 2003, p. 168).
A designação ―bestiário‖, que viria a ser adotada para as obras com características
semelhantes que se seguiram, surge pela primeira vez na Inglaterra, no início do século XII,
com a obra de um clérigo, Philippe de Thaon. É tido como o mais antigo bestiário medieval
que se tem notícia, escrito em francês, dividido em 38 capítulos e constituído por 3194 versos.
É o que mais se aproxima do Physiologus, sendo dedicado à rainha Aelis de Louvain, segunda
esposa do rei Henrique I da Inglaterra. A literatura bestiária produzida por Philippe de Thaon,
nesse bestiário, versifica sobre três grupos de seres da natureza: animais, aves e pedras.
Nesse bestiário, os animais, sejam eles existentes ou não, transcendem o nível
puro e simples da existência, para ocuparem representatividade de virtudes e vícios, alguns se
aproximando da imagem de Cristo e outros do Diabo, carregando em si características
próprias destes. Essa representatividade é evidenciada, por exemplo, na descrição do leão nos
bestiários, em que ―depois do nascimento ele não acorda até que o sol passe por três vezes,
mas, seu pai o acorda dando um rugido, então, assim dizendo, ele vem à vida, logo depois,
toma o controle de seus cinco sentidos e nunca fecha seus olhos, entretanto, frequentemente
ele dorme3‖ (THAON, 1900, p. 39).
3
After birth he does not wake up until the sun circles for the third time, but his father rouses him by giving a
roar; then, so to speak, he comes alive, then he takes hold of his five senses and he never shuts his eyes however
often he sleeps.
38
4
Stone signifies, firm stability where God has placed us when we say his prayer, we say Pater noster; and so we
ought to pray, to adore Jesus Christ, since by his passion we have redemption.
39
Ainda no mesmo período, produzido entre 1210 e 1211, conhecido apenas como
Bestiaire ou como Le Bestiaire divin [O bestiário divino], de Guillaume Le Clerc, encontra-se
o mais extenso dos quatro bestiários franceses rimados, com 3426 versos. É o mais conhecido
de todos os bestiários franceses, devido à quantidade de manuscritos existentes. Pelo que se
sabe, são vinte e três manuscritos copiados na França e na Inglaterra, dedicados quase em sua
totalidade aos animais.
O clérigo Pierre de Beauvais, também conhecido como Pierre le Picard, por ter
seu mais antigo manuscrito bestiário escrito no dialecto picardo, entre 1210 e 1218, produziu
um bestiário com duas versões em prosa: uma versão curta, contendo apenas trinta e oito
capítulos, e outra versão longa, com cerca de setenta e um capítulos.
Durante a Idade Média, parece que a visão dos animais transmitida pelos autores
dos bestiários mostrou-se, de certo modo, estereotipada. Isso porque, apesar desses livros
passarem, continuadamente, por diversas modificações, na forma e na maneira de
apresentação de seu conteúdo, o que se pode observar é uma pouca evolução durante o
período medieval, daquele conteúdo propriamente dito, assim como o elenco de criaturas que
o compõem (FONSECA, 2003, p. 168).
40
Vale mencionar que, tal como outros manuscritos da Idade Média, os bestiários
eram copiados por monges e não resultavam de um único autor. À medida que eram escritos,
acrescentavam-se novos animais, funcionando como um livro de notas de um naturalista, em
permanente revisão.
Na Idade Média, os autores dos bestiários não se preocuparam em obter um
conhecimento mais objetivo do comportamento dos animais. Sobressaiu-se, então, uma visão
―finalista‖ sobre a natureza, uma vez que, os pensadores medievais tinham suas atenções
voltadas para o que lhes interessavam, em termos filosóficos e teóricos, de cunho abstrato e
generalizante, do que na observação imediata e na experiência empírica (FONSECA, 2003, p.
169).
Desse modo, o que se elencou foi uma inversão hermenêutica, pois as bestas reais
ou imaginárias foram revestidas pelos autores, a partir de meados do século XII, com alusão a
novos animais, mormente, através da apropriação de outros legados culturais, quer dizer,
novas leituras alegórico-simbólicas, atribuindo, assim, novidades nas funções atribuídas aos
animais. No geral, prevaleceu, nos escritos dos clérigos, uma propagação dos objetos e das
sugestões interpretativas na técnica de abordagem aos seres da natureza, ao mesmo tempo em
que os valores científicos dos animais eram colocados em segundo plano.
Quando os filósofos do século XII falam da necessidade de estudar a natureza,
aludem à obrigação de se conhecê-la para que, desse modo, o homem pudesse meditar e
desvendar a si próprio e, através desse conhecimento, progredir rumo à compreensão da
ordem divina e do próprio Deus. De fato, havia a prerrogativa bíblica que assegurava o
domínio dos homens sobre os animais e, assim, buscava-se colocar uma possibilidade de livre
consórcio entre homens e animais, sem, entretanto, comprometer o lugar privilegiado do
homem.
Interessante observar também que, juntamente com a grande influência que havia
de textos letrados de origem greco-romana e, em especial, das traduções e anotações árabes
dos tratados de Aristóteles, a partir século XII, assinalou-se, categoricamente, o eclodir de
uma nova cosmovisão. Testemunha-se, então, a propagação de um novo modo de pensar,
fundamentado na observação dos elementos naturais e prestes a realizar rompimentos na
prática simbólico-alegórica de entender os seres da natureza.
De fato, do século XII ao XIII, um verdadeiro renascimento científico ocorreu nos
quadros do ambiente medieval do ocidente, principalmente, entre a população urbana, em que
foi perceptível uma abertura de novos caminhos e perspectivas de análise dos fenômenos e
elementos naturais, advogando-se e praticando-se várias propostas baseadas na experiência
41
para descobrir as leis que regiam a natureza e o mundo, ou seja, houve um reconhecimento da
necessidade da utilização de métodos mais objetivos para a observação.
É neste ambiente que a sociedade, no século XIII, se depara com um dos maiores
catedráticos da faculdade de teologia de Paris, o primeiro entre os escolásticos que avaliou os
grandes trabalhos de Aristóteles, procurando interpretá-los em termos cristãos, o dominicano
Alberto Magno (1200-1280) com a obra, De animalibus. Muito possivelmente, o respeitável
trabalho desse autor, que junta, aos tratados de Aristóteles, variadas verificações pessoais, é
uma enorme contribuição da Idade Média à zoologia, pois, apesar de relutante, desmistificou
a veracidade de determinados animais e comportamentos dos mesmos. Isto porque procurava
um entendimento objetivo dos prodígios que cristianizaram os motivos que lhes foram
transmitidos, observando sobre a provável existência dos seres fantasiosos.
A despeito das limitações da obra do frade dominicano, este se tornou famoso por
seu vasto conhecimento e por sua defesa da coexistência pacífica entre ciência e religião,
colaborando incisivamente para um novo modo de pensar e enxergar a natureza e os seus
seres. Alberto Magno, debruçado sobre os conhecimentos provindos de Aristóteles, retirou o
seu melhor, adotando uma atitude crítica, chegando a ponto de afirmar que a ciência natural
não deveria aceitar as afirmações de outros, mas investigar as causas que operam na natureza.
Nesse sentido, dedica um capítulo inteiro, numa de suas obras, ao que ele chamou de ―erros
de Aristóteles‖.
Desse modo, é possível notar que se desenvolveu nesse período da Idade Média
um pensamento racionalista. Entretanto, os bestiários não deixaram de ser um fiel reflexo do
imaginário da época, como um tratado que retrata o universo medieval. Isso porque, para os
clérigos, tudo que Deus criou tinha um sentido profundo e eles se empenhavam na descoberta
de cada ser criado, entendendo na manifestação de Deus, um modo de atingir uma
aproximação de sua real finalidade, conclusão esta que corrobora a premissa de que os seres
naturais foram idealizados e assimilados pela cultura cristã da época, basicamente, em virtude
dos legados bíblicos e antigos.
Assim, apesar da influência da obra de Aristóteles nos letrados medievais, a
sociedade medieval continuou tributária afluente de uma compreensão simbólico-alegórica da
natureza, de modo dilatado como peça de grande valor para a construção dos bestiários, em
que se dava crédito aos relatos míticos e fabulosos acerca dos fenômenos naturais, dos seres
vivos.
A partir do século XV, no período conhecido como Renascença, inicia-se a
negação de que a natureza seja uma estrutura inteligente e viva em si. Nessa época, a tradição
42
dos bestiários teve uma sobrevida, mesmo em pleno período racional e antropocêntrico,
apesar das pessoas preferirem direcionarem seu conhecimento a partir de autores clássicos do
que do simbolismo religioso.
No século XVI surgiu, nos círculos humanistas, os chamados livros de emblemas,
período esse iniciado pelo italiano André Alciato (Andrea Alciati), um grande jurista da
época, que publicou em 1531, na cidade de Augsburgo, seu Emblematum liber, em versos
latinos. Observe a seguir como a tradição medieval dos bestiários teve continuação na época
renascentista através desses livros produzidos por autores humanistas:
André Alciato
Emblema XV
Vigia e Guardião
O galo canta anunciando a nova aurora
E chama os criados à nova latuba;
E o sino está no alto das sagradas torres
E lembra aos que acordam as coisas do alto.
E o leão vigia dormindo de olhos abertos,
Por isso é colocado na porta do templo5.
5
Vigilancia et custodia
Instantis quod signa canens dat gallus Eoi,
Et revocet famulas ad nova pensa manus;
Turribus in sacris effingitur aerea pelvis,
Ad superos mentem quod revocet vigilem.
Est leo: sed custos oculis quis dormit apertis,
Templorum idcirco ponitur ante fores.
43
2006, p. 60). Assim, a fauna era vista como ―a fauna que não tinha participado da Arca de
Noé, pois não se explicava a sua formação‖ (CHIAMPI, 1980, p. 99). Observem-se as
próprias palavras do padre jesuíta Joseph de Acosta:
Porque se temos de julgar as espécies dos animais por suas características, são tão
diversas que queiram reduzir a espécies conhecidas da Europa, será chamar ao ovo
castanha6 (ACOSTA, 1962, p. 203 apud CHIAMPI, 1980, p. 99).
Peixes-bois com seios de mulher, tubarões machos com membros viris duplicados,
tubarões fêmeas que parem uma vez em toda sua vida, peixes voadores, leviatãs
cobertos de conchas, tartarugas que desovam ninhadas de seiscentos ovos de
película fina, praias com pérolas imensas banhadas pelo orvalho, vacas marinhas,
unicórnios, sereias, amazonas7 (FUENTES, 1992, p. 60).
6
Porque si hemos de juzgar a las especies de los animales por sus propiedades, son tan diversas que quererlas
reducir a especies conocidas de Europa, será llamar al huevo castaña.
7
manatíes con tetas de mujer, tiburones machos con miembros viriles duplicados, tiburones hembras que paren
una vez en toda su vida, peces voladores, leviatanes cuajados de conchas, tortugas que desovan nidadas de
seiscientos huevos de tela delgada, playas de perlas inmensas bañadas por el rocío, vacas marinas, unicornios,
sirenas, amazonas.
45
somente um pé), cinocéfalos (criaturas com corpo humano e cabeça de cachorro que comiam
carne humana e se comunicavam latindo), Biemmyas (homens sem cabeça, com o rosto no
peito), Bicéfalos (homens com duas cabeças), e diversas outras criaturas monstruosas e
maravilhosas, quando viajaram por regiões desconhecidas.
Aquilo que já fazia parte do imaginário habitual dos europeus projetou-se sobre a
realidade que estava perante eles e, dessa forma, puderam compreendê-la. Situações como
esta fizeram com que os europeus vissem no Novo Mundo vários monstros e criaturas
fantásticas e maravilhosas.
como um grupo de seres vivos, que podem potencialmente cruzar uns com os outros tendo
filhotes fecundos. Buffon afirmou que as características das espécies não seriam imutáveis, e
que, através do tempo, elas teriam sofrido profundas transformações, pois a fauna atual teria
se originado de alguma outra já extinta. Ele visitou o Continente Americano durante o século
XVIII, verificando-se a posição eurocêntrica, posição essa presente desde o termo
―descoberta‖, que desconsidera os muitos povos indígenas que viviam no Brasil. O naturalista
avaliava, nesse sentido, o continente como ―imaturo, muitas espécies animais de sua parte
meridional imperfeitas por degeneradas, e o homem afeto a deficiências que, sem obstruir-lhe
a adaptação ao ambiente, tornam infinitamente difícil que ele adapte o ambiente a si, domine-
o e modifique-o‖ (GERBI, 1996, p.38).
O escritor Alejo Carpentier, tendo em vista essa perspectiva eurocêntrica acerca dos
animais e do homem americano, no conto ―Los Advertidos‖, abre um leque de possibilidades que
inclui outros bestiários e até outras ―arcas de Noé‖. Carpentier descreve a existência de quatro
arcas que se encontraram no mar durante o dilúvio:
Assim, foi através dessa cronística colonial que, a partir do seu período de
formação, a literatura brasileira abrigou e disseminou a influência de formas, motivos e
funções imaginativas, simbólicas e ideárias do bestiário medieval, submetendo-os a
diferenciados tratamentos estéticos, culturais ou mesmo ideologicamente marcados
(FONSECA, 2000, p. 79).
Dessa forma, traços característicos fundamentais identificam o substrato que
contribuiu, ideologicamente, para a composição deste imaginário bestiário, de modo que as
influências de ideias oriundas de outros continentes ao lado das diferentes realidades do
8
Abriendo la escotilla mostró a Amaliwak un mundo de animales desconocidos que, entre divisiones de madera
que limitaban sus pasos, pintaban estampas zoológicas por él nunca sospechadas. Se asustó al ver que hacia ellos
trepaba un oso negro de muy fea traza; abajo había como venados grandes, con gibas en los tomos. Y unos
felinos brincadores, nunca quietos, que llamaba ‗onzas‘. ‗¿Qué hace usted aquí‘?, preguntó el hombre [del reino]
de Sin a Amaliwak. ‗¿Y usted?‘, contestó el anciano. ‗Estoy salvando la especie humana y las especies
animales‘, dijo el hombre de Sin. ‗Estoy salvando la especie humana y las especies animales‘, dijo el anciano
Amaliwak.
48
continente americano serviram para a emergência da literatura brasileira, com seus bichos
enquanto figuras ou símbolos de sentimentos humanos, a ponto de remontarem aos bestiários
medievais, mas muito mais, a de criar um bestiário próprio.
Como se vê, com o desenvolvimento científico, esses tratados foram perdendo a
sua importância, passando a sociedade a dar uma maior relevância à observação e à
experiência, além de, atualmente, o animal não impressionar pessoas como em tempos
remotos quando certas feras eram tidas como agentes do Mal. Contudo, os bestiários tiveram
uma grande influência na Literatura (nomeadamente através das fábulas e das alegorias), na
Arte (pelo seu valor pictórico) e até na Biologia (na enumeração e estudo das espécies).
Hodiernamente, assiste-se a um resgate das tradições medievais em geral. A arte
popular e muitas práticas folclóricas quase extintas são pesquisadas, documentadas, e mesmo
reintroduzidas, a fim de se descobrir e conservar os valores culturais dos antepassados.
Paralelamente, preocupados com a conservação do patrimônio da natureza, os ecologistas e o
povo em geral voltaram sua atenção para os animais (WOENSEL, 2001, p. 187).
Torna-se possível, então, afirmar que todo o universo animal pode ter explicações
vazadas na história de ideias da cultura europeia, cuja literatura, desde as suas primeiras
manifestações enquanto gênero e forma, vê a realidade animal como a contraparte não-
humana, mas animada e, portanto, digna de uma maior consideração existencial e filosófica
(FONSECA, 2000, p. 80). Devendo-se, portanto, procurar identificar uma relação da literatura
com a sociedade e cultura, para, então, se obter o elo entre formas de conhecimento e de
pensar em épocas diversificadas ou coincidentes.
Assim, faz-se necessário considerar os bestiários como verdadeiros repositórios da
mentalidade religiosa medieval que, sobremaneira preocupada com a salvação humana,
dificilmente poderia olhar além do horizonte a não ser através da ótica do divino, a qual fazia
transparecer na natureza, assim metafisicamente considerada, os seus vivos exemplos de
ensinamento e de edificação, direcionada para o benefício e formação espiritual do homem.
Assim, nesta concisa explanação, apresentou-se um apanhado geral da evolução
do bestiário medieval ou Livro das Bestas, livro mais lido e copiado na Idade Média, após a
Bíblia, que se firmou como uma obra singular no âmbito da literatura medieval. Foi possível
notar que os seres naturais foram concebidos e assimilados pela tradição cristã da época,
essencialmente, em razão dos legados bíblicos e antigos. Procura-se, desta forma, demonstrar
as características mais acentuadas de cada era e elucidar as novidades que foram se revelando,
por meio de uma abreviada menção às conjunturas culturais e ideológicas que as tornaram
cabíveis.
49
Foi apresentada uma atenção especial à visão dos seres naturais na Idade Média,
com a finalidade de entender as importantes fases que se seguiram, e, de tal modo, cooperar
para uma aproximação ao estudo do bestiário dessa época até a contemporaneidade. Por fim,
foi oportuno mencionar, além disso, as condições que permitiram a manifestação de um novo
olhar acerca do mundo natural, a partir de finais do século XII, que se configura como origem
de uma visão mais lógica da natureza, que tenderia a crescer nos séculos subsequentes.
Sendo assim, a fim de se estudar a tradição bestiária medieval, bem como a
imagística dessa literatura, sobre a presença do mundo animal, sabendo que muito desse
imaginário e simbolismo, recorrentes das elucubrações mentais da cultura medieval,
encontram-se presentes em alguns autores da literatura contemporânea, foram eleitos os
seguintes autores contemporâneos de reconhecido destaque e importância no âmbito da
literatura nacional, nos quais será a analisada a temática em questão: Moacyr Scliar e Manoel
de Barros. Haverá a busca, portanto, de um estudo descritivo, analítico e crítico-interpretativo
da presença simbólica e imaginária de animais nestes autores da literatura brasileira
contemporânea.
É, justamente, acerca dessa presença do simbolismo animal medieval na literatura
brasileira contemporânea que trata o próximo capítulo.
50
9
People can see an animal acting as a human, the metaphoric can work both ways, revealing the animal within
each human.
51
Para isso, serão feitas algumas reflexões sobre o conto literário, percorrendo um
breve itinerário do conto no século XIX, em seu panorama mundial, com apontamentos,
sobretudo, de autores e tendências do gênero nos séculos XIX e XX no Brasil, para, então, se
traçar uma leitura dos animais, tendo como ponto de partida os contos elencados de Moacyr
Scliar.
Desse modo, vale mencionar, preliminarmente, um dos principais representantes
do conto, na primeira metade do século XIX, o norte-americano Edgar Allan Poe (1809-
1849), considerado, juntamente com Julio Verne (1828-1905), um dos precursores da
literatura de ficção científica e fantástica moderna. Segundo Poe, o autor tem de centrar-se nas
emoções que irá causar no leitor. Deve escolher o tom da escrita, o ambiente, a narração e o
fim da narrativa visando o desencadeamento dessas emoções no leitor. Este é o principal
objetivo a ser desenvolvido num processo de escrita de um conto. A isto Poe intitulou ―unity
of effect‖ [unidade de efeito].
Sendo contista e, ao mesmo tempo, teórico, Poe estabeleceu balizas que
continuam a ser referências para contistas e para a crítica literária, mesmo quando os
escritores negam o modelo iniciado por ele (HOHLFELDT, 1988).
Poe, diferentemente da maioria dos autores de contos de terror, usa uma espécie
de terror psicológico em suas obras, suas personagens oscilam entre a lucidez e a loucura,
quase sempre cometendo alguma insanidade, ato impensado ou sofrendo com alguma
moléstia. Uma característica marcante dá-se ao fato de seus contos serem sempre narrados em
primeira pessoa.
Nesse século, o conto foi utilizado por escritores de diversos países, de tal forma
que até autores que se inclinavam mais para o romance, como Honoré de Balzac (1799-1850)
e Charles Dickens (1812-1870) arriscaram-se nessa linha poética e produziram contos que são
verdadeiras obras-primas da literatura ocidental.
Na segunda metade do século XIX, surgem outros dois grandes contistas
europeus: o francês Guy de Maupassant (1850-1893) e o russo Anton Tchekhov (1860-1904).
Maupassant chama a atenção de muitos em sua obra pela notável variedade
temática. Afinal, poucos são os que conseguem dar esta impressão de registro de totalidade da
existência, de criação de um universo fecundo e múltiplo. Além disso, tem na maioria de seus
contos a temática que é uma denúncia realista e risível da sociedade burguesa, em que
mentiras, cobiças, crueldades e covardias não deixam entrever nenhuma esperança para o ser
humano. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai resumem a fórmula do conto de
Maupassant, definida pelo escritor francês Somerset Maugham:
52
Tchekhov, na segunda metade do século XIX, desfaz o modelo proposto por Poe,
e seguidamente praticado por Maupassant, que seria o de valorizar a sequência de
acontecimentos e, sobretudo, o desfecho. A matéria de seu conto, tanto quanto suas peças,
são, em geral, obras-primas que harmonizam, perfeitamente, a forma e a precisão vocabulares
a uma sedutora e correta fluência verbal, sem deixar de conter também um conteúdo lírico dos
mais densos, podendo seus contos serem construídos sobre a reflexão de uma personagem a
respeito de um fato que não se concretiza, mas que abre a possibilidade a um mundo interno
não perceptível até o presente momento por ter sido ofuscada pelo simples cotidiano.
Passando agora para um entendimento das origens e percursos do conto no Brasil,
tomando Lima Sobrinho (1960) e Herman Lima (1967) como base, percebe-se que tais
críticos fazem um balanço, em momentos diferentes, das origens do conto brasileiro, nas
quais citam autores nacionais da primeira metade do século XIX. Para Lima Sobrinho, o
marco decisivo da origem do conto é a fundação do semanário O Chronista, dirigido por
Justiniano da Rocha, que durou de 1836 a 1839. No entanto, Herman Lima acolhe a opinião
de Silvio Romero ao considerar Joaquim Norberto de Sousa e Silva como o precursor do
conto brasileiro, reforçada por Edgar Cavalheiro, quando aponta o conto ―As duas órfãs‖,
publicado em 1841, como o texto inaugurador do gênero. Contudo, é Noite na Taverna de
Álvares de Azevedo, que Lima diz ser a primeira manifestação literária do conto, tal como
estava em voga na Europa; o livro saiu póstumo, em 1855.
Incontestável entre os críticos é a figura exponencial das letras brasileiras no
século XIX, Machado de Assis (1839-1908), que se destaca como o grande contista da época
e da posteridade. É ele quem fixa as principais diretrizes do gênero, conforme observa Lima,
Fábio Lucas (1976) e outros teóricos.
O conto em Machado de Assis apresenta diversos recursos aplicáveis à narrativa
curta, de tal forma que fica difícil identificar um estilo único ou predominante quanto à
construção do conto. Diversos críticos apontam nele o domínio da linguagem sutil com o
estilo preciso e reticente (HOHLFELDT, 1988). Segundo o próprio Machado de Assis: ―É um
gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de
que ele é muitas vezes credor‖ (ASSIS, 1892, p. 806 apud GOTLIB, 1995, p. 65).
53
Já no início do século XX, surgem Simões Lopes Neto (1865-1916), Lima Barreto
(1881-1922) e Monteiro Lobato (1882-1948).
Com a publicação, em 1912, dos Contos gauchescos de Simões Lopes Neto, o
regionalismo ganha um novo tratamento e o estado do Rio Grande do Sul entra
definitivamente no mapa da boa literatura. É intensa a valorização histórica do gaúcho,
apresentando fidelidade aos costumes crioulos e à linguagem, superando a tendência de
desenhar tipos e regiões brasileiras de forma idealizada, como acontecia nas narrativas
regionalistas do século XIX.
Em estilo diferente de Machado de Assis, segundo Figueiredo (1998), Lima
Barreto denuncia também a hipocrisia da sociedade carioca, o oportunismo e a política do
apadrinhamento, como também as mazelas que resultavam da metamorfose da vida carioca
que, sob uma fachada, imitava o modelo parisiense.
Monteiro Lobato publica, sucessivamente, três livros de contos: Urupês (1918),
Cidades Mortas (1919) e Negrinha (1920). Neles, a matéria narrativa predominante são os
problemas sociais do Brasil, focalizados em São Paulo. Segundo Marisa Lajolo, Lobato atinge
nestes livros o que há de melhor em sua literatura, notadamente em Urupês e Negrinha, nos
quais
[...] comparecem os diferentes brasis que até hoje, sob diferentes formas, assombram
as esquinas da nossa história. Os contos contam do trabalho do menor, do
parasitismo da burocracia, da violência contra negros, imigrantes e mulheres, da
empáfia dos que mandam, do crescimento desordenado das cidades, da degradação
progressiva da vida interiorana; enfim, os contos contam do preço alto do surto de
modernidade autofágica que desemboca na crise de 30 (2000, p. 76).
forma de realismo fantástico, que alguns teóricos denominam estranhamento, outros, absurdo,
começou a ser incorporada ao conto como um modo diferente de se registrar a realidade ou os
fatos ficcionais baseados nessa realidade, que tem a ironia, o sarcasmo e a sátira como
recursos para se denunciar.
tratamento figurativo, verificando suas especificidades para uma melhor compreensão acerca
do tema.
Lançando mão da crítica de autores renomados sobre a teoria do conto como porta
de entrada para o estudo proposto, buscar-se-á uma análise da representação literária do autor,
por intermédio da leitura de cinco contos de reconhecido destaque e importância no âmbito da
literatura nacional: ―Os leões‖, ―As ursas‖, ―Cão‖, ―Coelhos‖ e ―A vaca‖, a fim de captar as
diversas formas pelas quais o animal é percebido na modernidade. Isso porque, segundo uma
afirmação em Woensel (2001, p. 18), ―modernamente o animal não é mais descrito
necessariamente para servir de exemplo moral ou devoto‖, mas ele guarda seus traços
antropomórficos, sua personalidade própria. Desse modo, muitos poetas e escritores
apresentam bichos enquanto figuras ou símbolos de sentimentos humanos ou como
interlocutores, de modo que ainda subsiste nessa visão moderna e contemporânea a tradição
medieval.
Sobre essa crítica à sociedade anteriormente comentada, afirma Mário Frungillo
(2003, p. 161) que, ―Scliar em suas obras transita com desenvoltura da descrição de destinos
individuais para a narração de histórias que abrangem a vida de toda uma comunidade. Em
alguns outros [contos] percebe-se que os destinos do indivíduo e da comunidade são
indissociáveis‖.
Scliar também estabelece uma relação atípica com a religião, visto que, se por um
lado necessita impreterivelmente desta, em particular sobre o ponto de vista cultural, por outro
se distancia sempre que possível do dogma religioso. Conforme ressalta o autor:
Judaísmo não é para mim uma religião – os rituais religiosos judaicos pouco diferem
dos rituais de outras religiões. Judaísmo é para mim uma rica cultura, expressa na
história, na literatura, na arte, no humor até. Não sei que futuro poderá ter esta
cultura, diante do rápido processo de assimilação. O que eu posso fazer é dar uma
minúscula, modéstia colaboração para que ela, de algum modo, sobreviva, para que
o Bom Fim figure no mapa do mundo judaico (SCLIAR, 1994, p. 84).
luz de diversos aspectos como os: linguísticos, semânticos, simbólicos, fantásticos, absurdos,
sociológicos, antropológicos. Como escritor de grande valor para o cenário da literatura
brasileira contemporânea, leva consigo a capacidade de inovar e criar um corpus literário
arrojado e abrangente, capaz de atingir com lucidez diferentes questões que confundem e
inquietam o ser humano, sem, contudo, perder de vista o lirismo.
Visto isso, faz-se necessário salientar que a modernidade também carrega consigo
a metamorfose, majoritariamente, não compreendida, fato este presente nas narrativas de
Scliar. É uma arte fruto da exaustão das combinações possíveis entre as formas de
representações que, como cita Ortega y Gasset (2005, p. 26) o qual se
[...] denominará arte ao conjunto de meios pelos quais lhes é proporcionado esse
contato com coisas humanas interessantes. De tal sorte que somente tolerará as
formas propriamente artísticas, as irrealidades, a fantasia, na medida em que não
interceptem sua percepção das formas e peripécias humanas.
Desse modo, se a poesia teve que se insurgir para permanecer viva, resistir contra
os valores dominantes de uma sociedade voltada para o sistema capitalista e toda sua fome e
necessidade de consumir sem assimilar, a prosa também precisou assumir uma nova postura:
inovar e experimentar. Assim, na intenção de inovar, Scliar apresenta contos com a presença
de animais, com o rastreamento do imaginário bestiário medieval, cujos motivos ele utiliza
como matéria para literatura.
Scliar retrata uma sociedade voltada à hierarquia consumista, à progressiva
necessidade de sedentarização e estabilização, longe dos velhos tumultos revolucionários que
reivindicavam uma sociedade igualitária. Uma sociedade cria vícios e alimenta esses vícios,
ao mesmo tempo inviabiliza o sonho, símbolo de uma sociedade burguesa, laica, de
confluências culturais e civilizacionais (CORREIA, 2005, p. 228). Desse modo, vê-se a
notável recorrência que Moacyr Scliar faz, operando a ligação entre literatura e sociedade, à
proporção que recria, literariamente, o contexto sócio-histórico ficcionalizando, através do
fantástico, as atitudes humanas reais aí existentes, requerendo, portanto, uma maior
observação.
Uma forma de analisar os contos seria o de tomar a personagem como objeto de
pesquisa, a partir das suas aparências, enfim, como ―alegoria social, política, psicológica e o
que mais quiser‖; mediante clichês dos discursos político-social, filosófico-existencial,
psicanalítico, religioso, poético-romântico – todos em forma do condicional-hipotético
(GOMES, 2000a, p. 30).
57
[...] há uma diferença básica a opor-se entre aquela literatura europeia praticada em
torno do elemento fantástico e a que hoje em dia se realiza entre nós: enquanto
naquela o elemento irreal ou não-real apenas serve como ratificação do real como
único dado existente, na literatura latino-americana, aí incluída a brasileira, a
oposição fica totalmente afastada, de tal sorte que ambos os elementos convivem
sem maiores problemas (p. 103).
críticos. Nesse sentido, a discussão não resolvida até hoje sobre a conceituação do gênero,
revela, em última instância, o problema fundamental de se tentar definir de vez um gênero.
Apesar da sua não ser uma definição ainda não resolvida, definitivamente, é
possível afirmar que a narrativa de Scliar pode ser também considerada fantástica, levando-se
em consideração, inclusive, a sua natureza, de que será tratada a seguir. Antes, porém, cumpre
registrar a este propósito uma oportuna colocação de Todorov. Para esse autor, não há
necessidade de que uma obra encarne perfeitamente o seu gênero. Aliás, continua, há pouca
probabilidade de que isto ocorra. Portanto, mesmo que o fantástico fosse um gênero de limites
desmarcados e os textos de Scliar se afastassem dele sob certos aspectos, este fato não teria
maior importância porque, como bem diz Todorov, não é necessário que a obra encarne
fielmente o seu gênero para que a ele pertença.
Por isso, acredita-se não haver nada que impeça a inclusão das obras de Scliar no
gênero em questão, embora, objetivo maior desse estudo não seja o fantástico em Scliar,
apesar de se ocupar dele, como não poderia deixar de ser.
Sob essa perspectiva, será utilizado o termo fantástico em seu sentido amplo, de
algo dúbio e insólito, afinal, o próprio Todorov, em Introdução à literatura fantástica, traz o
termo fantástico num sentido mais abrangente, como uma variedade da literatura, a qual
intitula sua obra, mas também num sentido mais específico, como visto acima.
Seja como for, a única certeza que se tem é que são poucos os livros de crítica
dedicados à literatura fantástica no Brasil, já que são poucos os cultores desse gênero nesse
país. Também porque cada obra dessa literatura, seja ela dita alegórica, surreal, surrealista,
grotesca, estranha, maravilhosa, fantástica, real-mágica, ou como quer que queira chamar,
cada obra literária dessa natureza é, na verdade, uma obra singular e, portanto, algo difícil de
ser, simplesmente, rotulado.
Assim, após esse percurso, depreende-se uma conclusão acerca do autor. Moacyr
Scliar não é apenas um escritor fantástico, nem somente alegórico. Se ele busca tais
elementos, é porque lhe são proveitosos. Desse modo, apesar de não se excluir a literatura
unicamente fantástica em Moacyr Scliar, no presente estudo, haverá a preferência de nomear
sua literatura como fantástica-alegórica, uma vez que, seus contos sugerem cifradamente, ao
leitor, um viés interpretativo, convidando-o, de início, a ler uma segunda história subjacente à
primeira.
60
10
People‘s attitudes toward their animals are shaped as much by their attitudes toward themselves vis a vis the
animal world.
61
Desse modo, é através do gênero fantástico que o escritor gaúcho encontra guarida
para expressar a representação literária da vida humana, compreendendo os vínculos que a
ligam tanto a uma determinada ordem social quanto a um tipo de trajetória que se estende da
busca de ideais à frustração (ZILBERMAN, 1992). No entanto, em Scliar, não há como
desagregar a ironia e o fantástico, uma vez que o humor é causado exatamente pelo ridículo,
pelo escárnio e pelo exagero que tais imagens suscitam:
Moacyr Scliar é um escritor que vê a sociedade com olhos críticos, porém, plenos
da poética moderna. Desse modo, utiliza os motivos imaginários e simbólicos da imagem e do
mundo dos animais (familiares, domésticos ou mesmo selvagens) para lhe propiciar,
adequadamente, elementos literários que desvelam o homem atual.
Joyce E. Salisbury em The Beast Within: Animals in the Midle Ages reforça sobre
a importância dos animais para o autoconhecimento do homem, pois quando ―as pessoas
podem ver um animal agindo como um homem, a metáfora pode trabalhar nos dois sentidos,
revelando o animal dentro de cada ser humano11.‖ (1994, p. 105). Era assim que estudiosos
medievais como Babrius, Marie de France, Odo de Cheridon, espalhavam histórias acerca de
criaturas que, supostamente, instavam as pessoas a uma conduta moral superior.
Várias foram as funções dos animais presentes nos textos medievais.
Fundamentalmente, referiam-se a eles como símbolos do trabalho, de comida e de paródia ao
comportamento humano. Dentre eles, tem-se o lobo, o urso, o leão, o cão, o cordeiro, a
serpente, o boi, o sapo, o burro, o macaco, dentre outros.
Scliar, ao utilizar os animais como objetos ou mesmo como personagens em seus
contos, se aproxima também de outro gênero paralelo ao dos bestiários e muito praticado na
Idade Média: o exemplum. Nesses textos, os clérigos, em suas pregações, no estilo das
parábolas do evangelho, contavam breves estórias, baseadas em fatos, verídicos ou não, que
11
People can see an animal acting as a human, the metaphoric can work both ways, revealing the animal within
each human.
62
Moacyr Scliar traz uma outra contribuição importante: seu subtexto está
intimamente relacionado à consciência das relações sócio-econômicas, e assim,
todas as alegorias que encontramos presentificam sempre a reificação [...] Não
deixando entrever que a sátira em Moacyr Scliar tem uma conotação mais política, o
que o faz ter uma predileção acentuada pela ‗traição‘ e o ‗desgoverno‘ (1988, p.
109).
Nessa linha, apresenta-se o conto ―Os leões‖ em que milhares de leões faziam
tremer o solo da África, sendo tidos como um iminente perigo, já que poderiam invadir a
Europa e os Estados Unidos. Foi decidido, desse modo, exterminá-los com uma bomba
atômica de média potência. Apareceram leões radioativos que escaparam, mas foram vítimas
dos zulus e das gazelas envenenadas. Os que resistiram foram mortos por caçadores. Restou
um último exemplar, uma fêmea, que foi esquartejada, tendo no útero um feto viável. Houve a
tentativa de preservá-lo, tendo sido, mais tarde, levado para o zoológico de Londres, porém
acaba sendo morto por um fanático. Amplas camadas da população saudaram a morte do
leãozinho: ―Eles estão mortos, agora seremos felizes!‖. ―No dia seguinte começou a guerra da
Coreia‖ (SCLIAR, 2004, p. 22).
Torna-se oportuno verificar, primeiramente, a ordem pela qual os animais surgem
no contexto do bestiário de Scliar: a narrativa do leão, o primeiro animal a ser habitualmente
descrito nos manuscritos dos bestiários, também abre O carnaval dos animais, sendo seguido
pelo conto ―As ursas‖, em seguida ―Os coelhos‖ que, por sua vez, precede o conto ―A vaca‖ e,
63
por último, ―O cão‖. Como se vê, essa sucessão conferida aos contos de animais se reveste de
um sentido simbólico coerente, seguindo o exemplo das enciclopédias antigas, o Physiologus
e os bestiários.
Sabe-se que dentre os animais contemplados pelos bestiários latinos produzidos
entre os séculos XII e XIV, o leão aparece como um dos que recebe maior atenção, tendo
presença em quase todos esses livros, sendo difícil, portanto, encontrar um bestiário que não
apresentasse a figura do rei da selva.
Neste paradigmático conto intitulado ―Os leões‖, observa-se a presença desses
animais que, nos bestiários, são símbolo de vida, com páginas inteiras a eles dedicadas,
relacionando-os à imagem da criação. Isso porque, de acordo com os bestiários medievais,
três são as características do leão: o animal apaga com a cauda o próprio rastro para não ser
capturado por caçadores; dorme de olhos abertos; e a fêmea dá à luz a filhotes mortos. De
acordo com a última característica, a leoa, durante três dias, vigia os corpos inanimados dos
seus filhotes e ao terceiro dia, afirma tais livros que é o rugido do pai que os acorda para a
vida (WHITE, 1984). A maior parte dos bestiários ilustra o ressuscitar das crias do leão,
exibindo os progenitores lambendo os filhotes, evidenciando a língua, órgão indispensável
para a articulação da Palavra, entendida como sinônimo de Voz e de Verbo. Dessa maneira,
apesar de terem relação com a vida e o nascimento, eles aparecem no conto, ironicamente,
como os causadores do caos e da destruição, sendo, por esse motivo, aniquilados.
Assim inicia-se o conto de Scliar: ―Hoje não, mas há anos os leões foram perigo.
Milhares, milhões deles corriam pela África, fazendo estremecer a selva com seus rugidos‖
(grifo nosso). Nesse trecho, percebe-se a imponência do rugido do leão, evidenciada no conto,
sendo tal que nenhum ser lhe fica indiferente, fato esse que pode ser lido no manuscrito de
codinome MS. Bodley 764 editado por Richard Barber: ―Qual animal se atreve a resisti-lo cuja
voz é em si mesma terror por natureza, de tal forma que muitos animais que poderiam dele
escapar em virtude de sua velocidade ficam tão aterrorizados através de seu rugir que eles já
são vencidos?‖ 12 (BARBER, 1993, p. 26).
A importância do leão pode ser confirmada pelo famoso dito popular, que o
apresenta como o rei das criaturas terrestres, como de resto se salienta quando se decodifica
etimologicamente a palavra leo que significa rei, explicação proveniente de Isidoro de Sevilha
(560-636) que afirma ―O ‗leão‘ grego se interpreta em latim como ‗rei‘, porque é o mais
importante de todas as bestas‖ (SEVILHA, 1994).
A narrativa do leão, sendo aquela que, de modo geral, abre todos os manuscritos
dos bestiários, também é uma confirmação da premissa de que é ele o rei dos animais. Assim
ocorre em O carnaval dos animais, uma vez que, ―Os leões‖ não é somente o primeiro dos
contos que apresentam nomes de animais, mas de todos da obra. Também pelo mesmo
motivo, é ao leão, nos bestiários, dada a maior dedicação dos autores, sendo o que apresenta o
capítulo mais longo e o maior número de ilustrações, sempre com um maior empenho por
parte dos artistas. É comum a sua história vir acompanhada de cerca de três ou quatro
ilustrações que tencionam esboçar as várias características de que é dotado, o que é raro
acontecer com os outros animais.
Como é possível notar, fundamentalmente, o leão é símbolo de poder e força.
Todavia, como toda figura simbólica, é também dual: primeiramente, porque é um animal
devorador, isto é, inimigo do ser humano, comedor de homens e símbolo do mal, adversário
que deve vencer o herói, como ocorre em Hércules ou Sansão. Entretanto, é também signo de
poder, de majestade, rei do mundo animal e por tudo isso assimilado a leituras positivas,
modelo a ser imitado pelo homem, animal respeitado, temido e admirado.
Outro ponto importante a ser citado acerca do leão que este, dentre os animais dos
bestiários, é o que mais claramente identifica a voz e a palavra, simbologia esta visível pelo
fato da voz ser o sopro da vida, o mesmo sopro pelo qual Deus deu vida ao primeiro homem
(VARANDAS, 2006b, p. 4). Essa identificação pode ser percebida pela voz através da qual o
12
Which animal dares to resist him whose voice is by nature terror itself, so that many animals who could escape
him by virtue of their speed are so terrified by his roaring that they are already vanquished?
65
leão dá vida a suas crias. No conto, isso se manifesta pelo fato de o ser humano ter como
objetivo o extermínio de todos esses animais, como forma de calar uma raça, para que não
deixe vestígio algum, colocando os leões como culpados por todos os problemas existentes.
Há de se lembrar que o leão é mencionado mais de quarenta vezes na Bíblia
enquanto símbolo de força, coragem e de majestade, sendo uma das duas imagens diferentes
de Jesus, quando este é representado por animais. A primeira dessas é a de Jesus como
cordeiro, já a segunda é a de Jesus como leão. O leão é um animal feroz, difícil de ser
domesticado. Tanto é assim que ele é apresentado como o rei dos animais, devido à sua força.
Jesus é apresentado como ―o Leão da Tribo de Judá‖. Esse título faz referência a Jesus como
Rei. Judá era um dos filhos de Jacó, a quem Deus muda o nome para Israel. Seus doze filhos
formaram as doze tribos de Israel do Antigo Testamento. Dentre os doze filhos de Jacó, Deus
levanta a Tribo de Judá, para que dela saíssem os reis de Israel, Davi, Salomão e outros. Jesus
nasce da descendência de Judá, daí o nome Judeu, da linhagem real de Davi. Desse modo,
Deus cumpre a sua promessa de que um dia Ele levantaria um Rei, que dominaria sobre toda a
terra. No livro do Apocalipse, Jesus é apresentado como ―o Leão da tribo de Judá, a raiz de
Davi‖ (APOCALIPSE, 5:5).
Moacyr Scliar, com uma linguagem direta e cortante em ―Os leões‖, deixa como
resultado uma pitada de crítica da condição humana. Apresentando uma narração à maneira
de uma parábola, o conto descreve como os leões são responsabilizados por todos os males da
terra. É exposto também que a violência contra o reino animal é apenas o início do processo
de aniquilamento humano. Por temerem que os leões invadissem a Europa e a América, não
hesitaram em exterminá-los. Houve grande celebração com a morte do último deles.
Entretanto, no dia seguinte, os próprios homens, ―coreanos‖, são vítimas da guerra. Isso
porque, independentemente de qual parte beligerante vença, tanto as vítimas quanto os
algozes, sofrem a destruição que a guerra resulta.
Vale mencionar que a Guerra da Coreia, aludida ao fim do conto, travou-se entre
25 de junho de 1950 e 27 de julho de 1953, opondo a Coreia do Sul e seus aliados, que
incluíam os Estados Unidos da América e o Reino Unido, à Coreia do Norte, apoiada pela
República Popular da China e pela antiga União Soviética. O resultado foi a manutenção
divisória da península da Coreia em dois países, que perdura até os dias de hoje. O único
resultado é o cessar-fogo. Na guerra coreana, morreram cerca de três milhões e meio de
pessoas. O tratado de paz ainda não foi assinado, e a Coreia continua dividida em Norte e Sul.
66
―Os leões‖ é um conto breve, cuja leitura pode ser feita de uma só assentada,
muito vinculado às características realistas e que possui uma narrativa linear, sem surpresas,
pois tenciona fazer um registro da sociedade, não surpreender ou trazer suspense ao leitor.
A estranheza desse conto constitui, pois, o princípio do distanciamento, facultando
um sentido crítico que, segundo Scliar, a literatura judaica contém e ele convenientemente
legou, por estar vinculado a essa tradição. (ZILBERMAN, 2004, p. 06).
Scliar utiliza o humor que é, simultaneamente, a legitimação da atitude judaica,
com o consolo do imaginário, onde a mente pode atingir a liberdade, pondo fim à
discriminação. Nesse sentido, o humor em forma de parábola, ou historieta, servidor da
sabedoria popular, torna-se, então, um trampolim para a crítica social.
O riso como forma de evasão é a melhor ―arma‖ do povo judaico. São ativistas
passivos cujas armas são folhas escritas. O momento de autocrítica judaica; de
automutilação; de chacota é um momento de manifestação de humor e
simultaneamente diminuição da dor. Afinal os contrários atraem-se, num misto
agridoce que caracteriza o humor judaico – rir para não pensar, incidindo no vazio
do não entendimento humano e social, característica do humor de Scliar (CORREIA,
2005, p. 231).
Dessa maneira, Scliar consegue revelar não somente o valor artístico da literatura,
mas igualmente o valor do compromisso que o artista tem com sua cultura. Scliar metaforiza,
num ambiente insólito, acontecimentos extraordinários que simbolizam os desmandos e as
repressões à sociedade da época.
Assim como no Physiologus e bestiários medievais, Scliar descreve a clara
simbologia judaico-cristã do leão. Afinal, além de trabalhar com a figura do leão, estabelece
no contexto do conto uma íntima associação com o sofrimento do judeu e os massacres
aterradores vividos por este, pois, como se sabe, esse povo foi alvo de nacionalismos
fervorosos, de opressões e rejeições sociais ou de integrações, danosas para a preservação de
sua identidade comunitária.
Todorov (2004, p.11) assevera que ―é difícil imaginar atualmente que se possa
defender a tese segundo a qual tudo, na obra, é individual, produto inédito de uma inspiração
pessoal, fato sem nenhuma ligação com as obras do passado‖. Tendo em vista que O carnaval
dos Animais foi escrito sob o regime da ditadura militar (1964-1984) é possível que a morte
dos leões no conto em comento possa não exatamente tratar do holocausto conforme é
mostrado, mas sim de uma alegoria representativa das situações opressivas de então. Nesse
sentido, Mário Frungillo destaca que, apesar da condição judaica ser uma das preocupações
constantes de Scliar
[...] em vez de falar em judeus, o escritor prefere falar em leões, o que permitiria em
princípio estender o significado da narrativa a outros grupos perseguidos. Mas mais
importante que isso é o fato de que a felicidade não pode ser alcançada pela
eliminação do inimigo responsabilizado por todos os males, pois no dia seguinte virá
uma nova guerra, com novos males e um novo bode expiatório se fará necessário
(2003, p. 164).
Esse lado negativo pode ser percebido em uma das visões proféticas da história
feita por Daniel que concede uma explicação das distintas etapas que deverão preceder ao fim
dos dias:
[...] quatro bestas enormes, diversas uma da outra, saiam do mar. A primeira era
como um leão com asas de águia. Eu estava olhando e vi que lhe arrancaram as asas,
a levantaram da terra e a incorporaram como um homem e lhe deram um coração
humano. Depois desta, apareceu outra besta, a segunda, semelhante a um urso; ia
levantada de um lado, e tinha três costelas nas fauces entre seus dentes e lhe dizia:
‗Eia, devora muita carne‘ Depois vi outra besta, como um leopardo com quatro asas
de ave em seu dorso; tinha também quatro cabeças e lhe foi dado o poder. Em
seguida vi uma quarta besta terrível, espantosa, extraordinariamente forte. Tinha
enormes dentes de ferro, comia e triturava e o restante pisoteava com suas patas
(DANIEL,7: 3-7).
Como se pode perceber neste conto, a intertextualidade com textos bíblicos é uma
forma recorrente de escrever desse autor. Muitas vezes, ao revisitar as narrativas bíblicas,
Moacyr Scliar se vale da paródia como recurso principal, como uma forma de discutir
questões delicadas, utilizando textos sérios como base para uma crítica irônica. Desse modo,
ao se remeter à figura de Eliseu em sua ida a Betel, traz o leitor a uma realidade
contemporânea e revela indícios de denúncias para situações presentes.
Em ―Reis‖, há a passagem, em que o profeta Eliseu amaldiçoa os jovens, pela qual
Scliar inicia seu conto:
- Então subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos saíram da
cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo; sobe, calvo!
- E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do SENHOR; então
duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos
(2:23-24).
Assim como no conto, a passagem bíblica relata a ida de Eliseu para Betel, que
naquele momento havia se tornado o centro da idolatria em Israel, um local governado por
Jeroboão.
O escárnio realizado contra o profeta não parece ter sido tão simples, haja vista
que o trataram com desprezo e o humilharam, adquirindo uma conotação blásfema, a começar
pela expressão ―sobe‖, que se referia ao altar mais alto de Betel, destinado aos sacrifícios
idólatras, desafiando a condição de Eliseu como profeta do Senhor.
Os jovens, ainda, chamaram o profeta de ―calvo‖, palavra que, na verdade,
identificava a pessoa de luto. As pessoas raspavam suas cabeças e, provavelmente, no caso de
Eliseu, talvez estivesse sendo acusado da morte de seu irmão de ministério, Elias, já que foi o
último a estar com ele. Desse modo, estava sendo preparada em Betel não uma recepção digna
70
terras eslavas, comemoram cerimônias paralelas, que incluem a figura do animal em questão.
A presença frequente de ursos em festas de primavera, quando as lavouras renascem, aponta
para a relevância simbólica desse animal.
Outra visão acerca do urso, animal de grande riqueza folclórica, está associada à
temática do inverno e do carnaval, possuindo clara importância no bestiário cristão. Os
motivos básicos, procedentes da antiguidade clássica, se encontram também em Isidoro e
depois reaparecem em alguns bestiários. O motivo principal é o do filhote informe moldado e
vivificado por sua mãe. Isidoro diz que o urso se chama orsus porque com sua boca (ore suo)
dá forma a sua cria (WHITE, 1984).
Escritores europeus medievais dos bestiários também acreditavam que os ursos
nasciam como pequenas massas de carne informe e que só adquiriam sua forma característica
após serem modelados pelas lambidas da mãe-ursa. A mesma simbologia do período medieval
é perceptível no conto, pois é possível verificar que Scliar compara as deficiências de caráter
do homem com um ursinho não lambido.
O escritor venezuelano Vladimir Acosta (1995, p. 110) lembra que esta crença
está viva na memória até hoje em dia. Afinal, ainda existe a locução em inglês ―an unlicked
bear‖, e em Francês ―un ours mal léche‖ (um urso mal lambido). O dicionário Petit Robert –
dictionnaire de La langue française explica que esta expressão, em francês, designa uma
pessoa disforme, e por extensão, uma pessoa de rudes maneiras.
72
É assim que, mesmo com o passar dos séculos, a lenda continua viva nesta e
noutras locuções que são um museu vivo do imaginário popular. De forma parecida, tal
simbologia ocorre no conto quando o profeta Elizeu rumo a Betel, é interrompido pelos gritos
de alguns rapazinhos e, invocando forças divinas, os amaldiçoa, surgindo, então, as ursas que
comem os rapazinhos como forma de modelá-los.
Moacyr Scliar serve-se da estrutura abismal – mise en abyme – recurso
caracterizado como ―todo fragmento textual que mantém uma relação de semelhança com a
obra que o contém‖, funcionando como um reflexo, um espelho da obra que o inclui
(DÄLLENBACH, 1977, p. 18). Tal técnica consiste em colocar uma história dentro da
história, como um enclave – uma narração secundária que de algum modo se desenvolve a
partir da ficção original.
A opção do narrador por esse jogo do tempo decorre de um projeto elaborado com
a perspectiva de apreender a verdade geral, em que a linguagem, aparecendo como
fragmentada, conota a descoberta de suas possibilidades, entre elas a de ser fator de renovação
e reconstrução da vida. Vale ressaltar que na alquimia, o urso corresponde ao nigredo da
primeira matéria e, por isso, diz respeito a todas as etapas iniciais.
De forma semelhante, a ursa aparece no conto como a imagem da totalidade, de
fim que é, ao mesmo tempo, e constantemente, o começo. Simboliza um frequente ciclo
cósmico, um ciclo evolutivo que se fecha sobre si mesmo, conformando um todo absoluto. A
ideia dominante nele é a do eterno retorno, a da eterna volta das coisas sobre si mesmas na
circularidade infinita que é, a um mesmo tempo, quietude e movimento, igualdade e
dessemelhança, renovação e permanente identidade (ACOSTA, 1995, p. 180), ocorrência essa
perceptível pelo fato de que a figura retórica utilizada por Scliar neste conto é a repetição ad
infinitum do paralelismo e de situações valendo-se da hipérbole da diminuição, a qual é
sugerido prolongar-se num processo infinito.
O fenômeno promovido no conto das ursas é semelhante a um ritual de
renascimento no qual o animal é o provedor da renovação dos seres vivos. A ursa assemelha-
se no conto também ao uroboros, animal descrito nos livros do período medieval, comumente
associado a alguns mitos cosmogônicos e a certos rituais secretos como os da alquimia.
Apesar de não estar presente nos bestiários, o uroboros é de grande importância na cultura
medieval, tanto na pagã quanto na cristã. Tal besta é uma grande serpente cósmica, que forma
um círculo mordendo sua cauda ou introduzindo-a em sua boca. Essa serpente enorme e
circular aparece estreitamente associada em várias mitologias à estrutura e ao ritmo do
73
cosmos, e em alguns casos se identifica com o oceano que rodeia a terra (ACOSTA, 1995, p.
181).
Há nesta narrativa também a alusão à trajetória sempre igual da humanidade, pois
o tempo inexoravelmente passa. Entretanto, na renovação da espécie, ao contrário do que se
sonha, não surge o esperado, ou seja, pessoas que seguirão os preceitos dos seus antepassados
sem questioná-los. Sempre há a disputa pelo poder entre o novo e o velho; a tensão entre
tradição e inovação, conservação e renovação. Essa visão crítica e realista da humanidade
configura-se um tema que merece a devida atenção, já que Scliar repreende a sociedade, no
que se refere aos regimes políticos.
A partir da premissa da destruição, o autor cria o mito do eterno retorno,
colocando o binômio destruição-criação como forças anímicas da natureza e do homem em
contato direto com um desígnio superior que, no conto, é indicado como sendo a vontade do
Senhor. Todavia, é no plano do fantástico verbal figurativo (a construção de imagens
retóricas) que reside a força semântica e o significado temático dessas narrativas de Moacyr
Scliar. O conto revela-se, então, portador dos chamados mitos cosmogônicos. Neste contexto,
as ações e eventos convergem, no final, para criarem o efeito de uma grande imagem: a
hipérbole da diminuição gradativa, já interpretada como um processo de destruição para a
criação (ou tentativa de criação) (FONSECA, 1981).
Continuando essa viagem no universo de Moacyr Scliar, segue-se o conto ―Cão‖,
que contém algumas das cenas mais brutais na obra de Moacyr Scliar, aproximando-se da
vertente ―brutalista‖ de Rubem Fonseca, como a caracterizou Alfredo Bosi (1988, p. 18). Isso
porque, neste conto, há procura, através desse recurso, de aproximar mais o seu leitor à
realidade que retrata ficcionalmente.
―Cão‖ é outro conto lido como alegoria da violência e apresenta um fundo atroz,
iniciado com uma conversa entre dois homens. O senhor Armando mostra a seu amigo Heitor
um pequeno cão que trouxe de uma viagem. O animal é resultado de diversos cruzamentos
com a alta tecnologia. É enfatizado o grau de treinamento do cão: ―doze anos de
condicionamento contínuo; ele é capaz de reconhecer um marginal a quilômetros de
distância‖ (SCLIAR, 2004, p. 35).
Surge, então, um mendigo pedindo esmolas. Nesse momento, Armando, põe o
bicho em ação com grande entusiasmo. O animal engole o pedinte inteirinho, sem deixar
vestígios. Heitor propõe, assim, ficar com o cão como pagamento de uma dívida. Armando
não aceita, mas ao ser chamado de marginal e ladrão, é comido pelo cão, antes mesmo que
Heitor pudesse colocar seus óculos que haviam caído. Heitor se apossa do cão, mas sua
74
esposa aparece e reclama do animal e ao desconfiar que este tenha sido roubado, chama seu
marido de ladrão e marginal, desse modo, o cão repete o que fizera com o mendigo, Armando
e Heitor, com a mesma eficiência. ―Quanto à mulher, via apenas um cãozinho com a língua de
fora‖ (SCLIAR, 2004, p. 38).
Antes da análise propriamente dita do conto, vale ressaltar que os bestiários
medievais não descreviam tão somente feras selvagens, animais exóticos e monstros. Aqueles
apresentavam da mesma forma, como extensas obras de história natural que são, relatos sobre
vários outros bichos corriqueiros e domésticos, descritos, na maioria das vezes, em termos
realistas, mas que não deixavam de lado a imaginação do escritor ou copista, que, como de
costume, lançava uma pitada de lição moralizante. Assim ocorre em O carnaval dos animais,
visto que Scliar trata desde animais portentosos como os leões e os ursos até os mais comuns
como coelhos e cães.
Não há divergência entre os cientistas que o cão doméstico surgiu do lobo e que é
uma espécie ou sub-raça deste, tendo em vista os nomes científicos do lobo Canis lupus e do
cão Canis lupus familiaris ou Canis canis. Conforme vários historiadores, o cão foi o
primeiro animal a ser domesticado pelo homem. Esse animal possuía um grande valor, tendo
sua imagem crescido, encontrando lugar de destaque nos brasões de grandes famílias e
também na heráldica (SALISBURY, 1994, p. 45).
Apesar de ser comum e do pouco temor que habitualmente provoca, dada sua
condição de animal doméstico, companheiro mais fiel do homem e o melhor guardião de seu
lar, o cão é também considerado uma besta ctônica, ligado ao outro mundo e à morte. Desse
modo, apresenta uma simbologia ambígua, pois como guardião do umbral é também
mensageiro da morte, e como ser ctônico, associado à sombra, muitos escritores atribuem-lhe
o hábito de alimentar-se de pessoas (ACOSTA, 1995, p. 99).
A confluência dessas duas significações simbólico-alegóricas do cão como guarda
e como litigante está presente na figura do cão mais famoso de toda a Mitologia, Cérbero.
Importante salientar que a descrição dessa besta nem sempre é a mesma, havendo inúmeras
variações. Todavia, uma característica presente em todas as fontes é a de que Cérbero é um
cão que guarda as portas do Inferno, não impedindo a entrada, e sim a saída, cão este que
lembra o do conto, pois na Antiguidade, Cérbero era considerado um cão que devorava gente
e, para muitos, é por esta crença que o nome Kérberos (Cérbero) é idêntico a Kroboros
(comedor de carne). Talvez, por esta interpretação, ao cão tenham sido conferidas
características ctônicas.
75
Seja como for, o cão não aparece apenas nos bestiários. Além desses, diversos
enciclopedistas medievais fazem referência ao animal, às vezes, com exagero na precisão,
descrevendo, suas diversas raças e hábitos. Como exemplo, é possível encontrar alguns dados
interessantes acerca do cão em Isidoro e em certos bestiários, como o de Cambridge.
Em Isidoro há a definição do cão como o mais sagaz de todos os animais, pois é
capaz de reconhecer seu próprio nome e os seus comandantes. Relata também acerca de sua
força e velocidade, além de citar a fidelidade ao seu dono e sua função de protetor de seu lar e
das riquezas deste.
Na presente figura, três cães atenciosos são mostrados com coleiras e correntes
para esse animal. Essa ilustração, segundo os bestiários, pode se aplicar alegoricamente aos
três guias espirituais, desde que o condutor possa segurar a corrente para cães.
Já o bestiário de Cambridge também o define como o animal mais sagaz das
bestas, todavia, além disso, é possível ver explicitado não apenas algumas de suas espécies,
mas também suas qualidades e atribuições, acreditando-se que o animal não poderia viver sem
os homens. Nesse sentido, Salisbury afirma que:
76
Há numerosas espécies de cães. Algumas seguem a pista das criaturas selvagens dos
bosques para caçá-las. Outras guardam vigilantemente os rebanhos contra as
infestações de lobos. Outras, os cães domésticos, cuidam das paliçadas de seus
donos, a fim de que não sejam roubados à noite pelos ladrões e para defender seus
donos até a morte. Eles prazerosamente despedaçam a caça com o dono e sempre
guardarão seu corpo quando morto, e não o deixarão. Em suma, é parte de sua
natureza que eles não podem viver sem os homens 13 (1994, p. 18).
Salisbury menciona também acerca das diversas raças de cães, citando exemplos
de fidelidade a seus amos, como o cão de Lisímaco que, ao ver seu dono morrer, se atirou na
fogueira em que queimava este.
O cão também é encontrado em determinadas obras literárias medievais, em
vários relatos de temas cristãos, como a vida de São Roque ou da Lenda de São Alexis, nas
quais o animal é o companheiro fiel ou o único a reconhecer de alguma maneira seu antigo
dono, apesar das mudanças sofridas por este e sua miséria física, fato parecido com o que
ocorrera com Argos – cão de Odisseu, da Odisseia de Homero, que foi o único a identificar o
dono quando esse voltou para casa, depois de ter se ausentado vinte anos.
Dessa forma, acredita-se que muitas das características aparentes e comuns dos
cães, como a lealdade ao dono e o instinto territorial e de caça, foram transmitidos do
comportamento em alcateia, característico do lobo.
Quando o assunto era a caça, o auxílio dos cães era fundamental, pois como
menciona Joyce Salisbury (1994, p. 45-46), tal atividade, altamente ritualizada dependia de
um cão treinado de maneira especial para levar o caçador ao animal. Desse modo, vários cães
eram soltos em busca da caça, enquanto seus tratadores os seguiam, encorajando os animais
com gritos. Assim, em matilhas, os cães lideravam os caçadores em longas caçadas,
terminando com a caça sendo encurralada ou morta pela matilha ou por um dos caçadores que
a abatia com uma espada ou com uma lança. Percebe-se, portanto, a importância do cão
quando o assunto era assistência aos humanos na caça.
Aos cães atribuíam-se também defeitos como ambição, gosto pelo litígio e por
latir demais. Ao fazer referência a uma fábula de Marie de France, em que o cão é
personagem central, Joyce Salisbury (1994, p. 133), sintetiza a evolução desse conceito
negativo do animal ao dizer que ―os primeiros pensadores medievais constantemente
13
There are numberous breeds of dogs. Some track down the wild creatures of the woods to catch them. Others
guard the flocks of sheep vigilantly against infestations of wolves. Others, the house dogs, look after the palisade
of their masters, lest it should be robbed in the night by thieves, and these will stand up for their owners to the
death. They gladly dash out hunting with Master, and will even guard his body when dead, and not leave it. In
sum, it is a part of their nature that they cannot live without men.
77
conferiam características desagradáveis para o melhor amigo do homem‖ 14. Entretanto, havia
outro posicionamento adotado em que se destacava o afeto dos cães a seus donos ligado à
ideia de servidão, pois a sua lealdade tornava-os servos de seus senhores.
O fato é que, na literatura medieval, o cão se associa por um lado aos grandes
senhores e à caça, isto é, como cão de raça, e por outro aos burgueses e a camponeses, ou seja,
como cão doméstico. Dessa forma, apesar de, às vezes, ter traços demoníacos, ligados a
matilhas selvagens e noturnas, é, frequentemente, símbolo de fidelidade, sendo representado
quase sempre associado aos seus amos (ACOSTA, 1995, p. 101).
A ilustração em dois painéis mostra o Rei Garaments capturado por seus inimigos
e resgatado por uma matilha de cães os quais repelem seus capturadores. É, justamente, essa
característica de fidelidade, descrita desde os bestiários medievais, que se esperava do cão
japonês do conto, todavia, por se confiar na tecnologia, o esperado não ocorreu. Por isso,
Mário Frungillo (2003) afirma que
14
Early medieval thinkers consistently attributed disagreeable characteristics to man‘s best friend.
78
Assim, uma das ironias basilares encontrada nesse conto está ligada ao fato do
orgulho de Armando, seu cão, se tornar o responsável por sua morte. Isso porque, de tal
animal destaca-se invariavelmente, desde os bestiários medievais, a fidelidade a seu dono,
mas, no conto, é justamente o oposto que acontece.
Já em ―Coelhos‖ há a história de Alice, que, inicialmente, se lembrou da história
que seu marido contava: ―a dos coelhos, que tendo relações com a coelha‖. Disse a ela: ―Está
muito bom, negrinha, não foi?‖ (SCLIAR, 2004, p. 27).
No conto, Alice perdeu a noção do tempo. ―Que dia é hoje? Quarta ou quinta
feira. Tinha trinta e dois anos, vinte e dois, ou doze? não sabia‖. Seu marido a esta hora devia
estar na estrada. Possuía um carro enorme, um Dodge preto. Ela não gostava, mas dizia ele:
―Gerente de fábrica de conserva deve ser conservador‖. Eles viviam numa casa branca,
isolada no alto da colina. Fazia frio. Pensou em vestir o vestido de lã branco. Ela se vestia
bem. Sobressaltou-se ao olhar no espelho, já estava vestida. Ela ia se encontrar com o marido
às oito (SCLIAR, 2004, p. 29).
Uma noite, foram visitar o sócio do marido. ―Apresento-te meu sócio, negrinha.
Coelho, esta é a minha esposa‖. Coelho! Riu. Riram todos. Ao se lembrar do coelho que
ganhou do pai, desceu para garagem, tirou o carro branco, presente do marido e sobre o banco
um coelho de pelúcia. Pôs-se a descer a estrada pedregosa e enevoada. ―É tarde! É tarde!‖ O
grande Dodge vinha correndo. O marido com os dedos crispados na direção. Cacos de vidro
entravam em sua garganta. ―É tudo tão rápido, não foi?‖ – murmurou ela, e fechou os olhos
(SCLIAR, 2004, p. 30).
Não há como ler o conto sem se lembrar de Alice no País das Maravilhas, de
Lewis Carroll (1999). Assim como no país das maravilhas, a Alice de Scliar não se furta a
80
experimentar a falta de sentido, pois esse é um traço da criança: ir contra o sentido para
construí-lo.
O insólito constitui a base deste conto, embora parta do real. A perda do contato
temporal do homem que corre em busca do tempo, faz com que esse se perca. Desse modo, a
presença do fantástico é empregada com o objetivo de denunciar a falta de sentido da
personagem que não se enquadra no momento vivido.
Assim como Lewis Carroll, Scliar, diferentemente de muitos autores, pois não
escreveu uma história concisa, com uma trama linear, apropriou-se de elementos figurativos,
subjetivos e, muitas vezes, subliminares para recontar uma espécie de delírio.
Cada elemento escolhido por Scliar revela desejos, segredos e turbulências
próprias da mente humana. A história do conto manteve, nas mãos de Scliar, todo o
surrealismo de Lewis Carroll, com a presença de figuras, muitas vezes, ou na sua maioria,
incompreendidas pelas crianças, e que mesmo os adultos precisam parar para refletir sobre.
Várias são as ferramentas empregadas por Scliar para a construção do fantástico
em sua obra. Todas bem empregadas artisticamente, levando o leitor a hesitar sobre a
realidade do conto. A obra apresenta inúmeros aspectos simbólicos, tais como o constante
contraste de cores, como se pode notar em alguns trechos do conto a seguir transcritos:
[...] Era uma bela casa, espaçosa, construída em sólida pedra branca e madeira
escura A cerração cobria tudo, como um mar branco... ―Que frio! Vou por um
vestido de lã branco. Dirigiu-se ao guarda-roupa, abriu as pesadas portas de cedro
escuro (SCLIAR, 2004, p. 27 – grifo nosso).
[...] Correu à garagem, tirou de lá o pequeno carro branco.
[...] Possuía um carro enorme, um Dodge preto (SCLIAR, 2004, p. 27 – grifo
nosso).
[...] Estendeu precipitadamente a mão, derrubando a xícara. Uma mancha preta de
café espalhou-se sobre a toalha branca. Atrás do bule: um coelhinho branco de
pelúcia (SCLIAR, 2004, p. 27 – grifo nosso).
Moacyr Scliar inicia o conto resgatando uma qualidade tradicional dos coelhos:
―O coelho é um animal de coito rápido‖. Assertiva essa provinda do livro 8 de História
Natural de Plínio, o Velho, que menciona acerca da rapidez do coito desses animais e de sua
enorme fertilidade.
81
[...] Que frio! Vou por um vestido de lã branco (SCLIAR, 2004, p. 30).
[...] Um homem forte de espessas sobrancelhas negras e dentes poderosos. Um lobo
solitário. Estreitava-a entre os braços peludos. [...] Os dentes poderosos
arreganhados, brancos, brancos (SCLIAR, 2004, p. 30 – grifo nosso).
Sobre o cordeiro, vale relembrar que este representa uma importante figura do
ideário cristão que se remete à figura do Agnus Dei, o cordeiro de Deus, Jesus Cristo. A
respeito do tema em comento, Joyce Salisbury assim relata o pensamento medieval
corrente:
15
[...] as guides to metaphysical truths, as human exemplars.
16
From the earliest Christian years, lambs were heavily laden with symbolism. Christ was both the lamb of God
and the good shepherd gathering the faithful into the flock. The lamb remained the symbol for the best in self-
sacrifice in the Christian tradition. St. Francis (always sympathetic to all animals) was particularly fond of lambs
because as his biographer, St. Bonaventure, wrote, lambs ―present a natural reflection of Christ‘s merciful
gentleness and represent him in Scriptural symbolism‖.
82
Sob esse ponto de vista, ―os cordeiros eram considerados estúpidos e covardes,
quase que merecendo aquilo que recebiam17‖ (SALISBURY, 1994, p. 132). É possível
demonstrar isso no manuscrito Ba 53: Não nos causa grande admiração, se o lobo come o
cordeiro18 (BRAGANÇA JÚNIOR, 2006, p. 6).
17
Sheep (and lambs) were considered stupid and cowardly, almost deserving whatever they received.
18
Si lupus est agnum, non est mirabile magnum.
83
19
mestre, acima de todos os outros‖ (1994, p. 130). Contudo, por causa de sua insaciável
voracidade seu prestígio foi sendo perdido. Salisbury assim menciona a fábula medieval do
pregador e do lobo, que bem explicita o caráter de insaciabilidade de tal animal numa fábula
em que
[...] um pastor tenta ensinar ao lobo o alfabeto (talvez para melhorar seu caráter). O
lobo concentra tempo bastante para aprender a letra C, mas quando ele é perguntado
como aquilo poderia ser pronunciado, ele responde ―cordeiro‖, revelando que sua
mente não tinha se libertado do seu estômago 20 (1994, p. 130-131).
Já no conto:
Foi então que viu o grande Dodge preto crescendo à sua frente. O marido, dedos
crispados na direção, rindo – os dentes poderosos arreganhados, brancos, brancos.
Os cacos de vidro varando-lhe a garganta, os ferros esmagando-lhe o peito.
É tudo tão rápido, não foi? – murmurou ela, e fechou os olhos (SCLIAR, 2004, p.
30).
Desse modo, embora os contos de Scliar não incluam textos com as marcas
formais dos bestiários – descrição de um animal com uma lição acoplada – apresentam várias
marcas que revelam a influência dos bestiários. Em ―Coelhos‖ é possível verificar acerca da
―natureza‖ dos cordeiros na figura de Alice, uma vez que, no âmbito do imaginário popular
medieval, tais animais necessitavam de um amparo e uma atenção em especial por parte dos
criadores, possivelmente, em razão de sua mansidão e passividade perante o homem e seus
predadores naturais, especialmente do lobo. Desse modo, Scliar explora esse atributo do
19
After all, war – the predatory occupation – was the privilege of the noble class; it was their reason for
existence. That class favored their hunting animals over all others, and on a symbolic level they placed the lion,
the master predator, above all others.
20
[…] a preacher attempts to teach the wolf the alphabet (perhaps to try to improve his character). The wolf
concentrates long enough to get the letter C, but when he is asked what that might spell, he answer ―lamb‖,
revealing hat his mind has not been raised from his stomach.
21
The wolf then grabbed the lamb so small,
Chomped through his neck, extinguished all.
84
cordeiro, animal inerme e covarde, equiparando-o com a mulher, que sofria sem reagir às
injustiças cometidas por outros.
Como é notável, as figuras dos animais ocupam grande destaque na ficção de
Scliar. O homem animaliza-se e desumaniza-se. Por vezes, os animais são os próprios
personagens da narrativa, como no conto ―A vaca‖, em que é mostrado um naufrágio ao largo
da costa da África, em que se salvaram um marinheiro e uma vaca, Carola. Durante a
madrugada com o raiar do sol, o rapaz, agarrado aos chifres da vaca deixou-se conduzir a uma
ilhota arenosa, deserta, com ―poucas árvores raquíticas‖ (SCLIAR, 2004, p. 31).
Sentiu fome. Chamou a vaca Carola, ordenhou-a ―e bebeu leite bom, quente e
espumante‖. Naquela noite dormiu abraçado à vaca e teve ―sonhos reconfortantes‖. Sentia
mais fome. Gradativamente foi comendo as partes tenras de Carola. A vaca contentava-se em
lamber os ferimentos sem dar um mugido. Teve cuidado para não ferir os órgãos vitais.
Depois, com pedaços do couro de Carola fez roupas, sapatos e um toldo para abrigar-se do sol
e da chuva. Atrelou a vaca num velho arado e lavrou um pouco de terra. Usou o excremento
dela como adubo e ossos como fertilizante. Plantou alguns dentes de milho que tinham ficado
nas cáries da dentadura de Carola. ―Na festa de São João, comeu canjica‖ (SCLIAR, 2004, p.
32).
Na primavera, arrancou um dos olhos da vaca e bebeu-o com a água do mar. Teve
visões voluptuosas. Transportado de desejos, aproximou-se dela. ―E ainda desta vez, foi
Carola quem lhe valeu‖. Um dia avistou um navio no horizonte. Arrancou um dos chifres de
Carola e soprou-o como berrante, ―mas não obteve resposta‖. Pôs fogo no ventre da vaca. Ela
incendiou-se, o rapaz ―julgou ter visto uma lágrima. Mas foi só impressão‖. O navio voltou à
ilha. Recolheram-no. Ele ―apanhou um montículo de cinzas fumegantes‖, e deu adeus à
Carola. Julgaram-no louco (SCLIAR, 2004, p. 33).
Em seu país natal, enriqueceu. Tornou-se granjeiro ―dono de um tambo com
centenas de vacas‖. Tinha pesadelos todas as noites. Aos quarenta anos viajou para a Europa
de navio. No ―tombadilho iluminado pelo luar‖, ficou olhando o mar, viu uma ilhota no
horizonte. Alguém lhe diz - alô – ―Voltou-se. Era uma bela loira, de olhos castanhos e busto
opulento. – Meu nome é Carola – disse ela‖ (SCLIAR, 2004, p. 33).
Nesse conto, aparece um dos animais de enorme valia e utilidade para o homem, a
vaca, que contribuiu, significativamente, para a economia humana em todas as épocas da
história, especialmente na medieval. Considerada grande fornecedora de alimento e por ser
empregada na aragem de terrenos até mesmo na atualidade, a vaca era, e ainda é considerada
um animal doméstico, cuja dispersão em territórios europeus já estava consolidada desde o
85
início do período medieval. Seu grande valor para a Idade Média era, portanto, indiscutível, se
o foco tratado fosse de maneira econômica.
Sua importância como bem material é reconhecida por Joyce Salisbury (1994, p.
34) quando descreve que era classificada em códigos como animal de alto nível, embora não
tão alto quanto os animais de caça, pois ―depois dos animais de guerra ou de caça, os mais
valorizados eram aqueles utilizados para o trabalho. Bois e éguas faziam a maior parte do
trabalho duro da aragem, extremamente estressante, para separar os grãos das cascas, e para
puxar carruagem22‖.
Assim como nos bestiários, também ocorre no conto analisado:
Nesse sentido, o marinheiro serve-se da vaca para tirar seu sustento do trabalho no
campo, utilizando-a como instrumento para a realização de seus afazeres.
Álvaro Alfredo Bragança Júnior (2006, p. 06), traçando considerações acerca da
utilização de algumas espécies animais no discurso paremiológico, relata outra visão medieval
da figura masculina desse animal, que consistia em inseri-lo, do mesmo modo como se fazia
22
After animals for war or hinting, the most value were animals that were used for labor. Oxen and mares did
much of the hard word of plowing, harrowing, threshing, and pulling carts, and all the codes ranked them highly,
through not as highly as the hunting animals.
86
23
Beyond its associations with Jesus‘ birth, the ox was probably too mundane an animal, too associated with
property, to be linked to diabolical presence.
24
Animals serving primarily as food were valued less than laboring animals. For example, in the Alaman laws, a
cow (primarily a food animal) was valued at one third the amount of a draft horse, and the Burgundians value
cows, sheep, and pigs equally at about half the rate of a draft animal. The Burgundians valued cows, sheep, and
pigs equally, but goats, wich were about the size sheep, were worth only one third as much as the other foods
animals.
87
Os dias foram se passando e o rapaz cada vez mais se apegava à vaca. ―Vem,
Carola! Ela vinha, obediente. Ele cortava um pedaço de carne tenra – gostava muito
de língua – e devorava-o cru, ainda quente, o sangue escorrendo pelo queixo. A vaca
nem mugia. Lambia as feriadas, apenas. O marinheiro tinha sempre o cuidado de
não ferir os órgãos vitais; se tirava um pulmão, deixava o outro; comeu o baço, mas
não o coração, etc (SCLIAR, 2004, p. 32).
Aqui, pode-se perceber a ironia presente na narrativa de Scliar, uma vez que o
sarcasmo está atrelado ao comportamento do marinheiro, pois, se observava os órgãos vitais
da vaca, era, unicamente, com a intenção de não por fim à sua fonte de alimento, ou seja, a
88
única preocupação da personagem refere-se ao seu próprio bem-estar. Desse modo, de uma
acidez demasiado forte, o humor judaico pode ser encontrado na ridicularização de ambas as
personagens.
A fraqueza e covardia do animal em não sair do estado de submissão à seu dono,
não obstante, foram associadas, metaforicamente, a uma total falta de iniciativa, que
carregaria, então, a imagem que, desde a Idade Média até os dias atuais, se tem deste animal
dócil, porém estúpido.
No conto, o ciclo da vida, nascimento e morte já estaria preparado para a vaca,
que deveria simplesmente segui-lo, já que sua roupagem estaria adequada às suas funções de
servir ao seu senhor, o marinheiro, assim como se lia nos bestiários do período medieval.
O tema da submissão é mostrado com a relação cultivada pelo marinheiro e
Carola, com um relacionamento pobre, de dominador e dominada, de opressor e oprimida.
Como já visto, há tempos os animais aparecem como imagens refletidas, metáforas, símbolos
do próprio homem, com seus sentimentos sublimes e execráveis. Assim, sabendo que a
posição da mulher não é, particularmente, beneficiada na religião judaico-cristã, é possível
afirmar que esta foi simbolizada pela figura da vaca. Todos os sacrifícios que o animal sofre,
em proporção crescente, aponta o alto grau de degradação feminina, ou seja, da mulher que,
meramente, vive para servir o outro.
Como se vê, Moacyr Scliar, com seu ―bestiário moderno‖, vê os bichos, de um
modo geral, como seres providos de inteligência e sensibilidade, projetando neles sentimentos
e conflitos humanos, às vezes ironizando, outras vezes aproveitando o estilo moralizante dos
bestiários. Fato este que mostra a presença de sugestões buscadas à herança do ideário
bestiário medieval, todavia, apresentando modulações, visto que são marcadas por outro
contexto.
89
em vista que não só ―a paródia e a ironia são os traços característicos de Scliar; com elas
convive, de modo estranhamente exuberante, um toque poético capaz de se manifestar até
mesmo diante dos momentos mais terríveis da miséria humana‖ (VOGT, 1979).
Dessa forma, O Carnaval dos Animais, extremamente sugestivo a partir do título,
foge de sua premissa inicial, uma vez que espera-se folhear um livro de fábulas, no sentido
tradicional do termo. Todavia, o que acontece na verdade é que, ironicamente, esses contos
não utilizam apenas as técnicas e recursos daquele gênero, no primitivo sentido alegórico que
ele encorpa: a criação de um mundo animal anímico, sucedâneo ao do homem, para com
intenções satíricas e/ou cômicas criticar, com fins morais, os valores da sociedade humana.
Isso porque, aqui o homem se coloca frente aos desafios da natureza e do próprio homem
numa situação de competição interativa, criando os seus mitos de força e sucumbindo-se a
eles (FONSECA, 1981).
É nesta vivência do choque que está retratada a sociedade possuidora de várias
vozes, considerando o espaço citadino como o lugar por excelência de relações entre seus
habitantes, em que o desapontamento do escritor é manifesto, num sentimento de impotência
e melancolia social, que distancia cada vez mais o sonho da realidade. As personagens que
buscam a vitória frustram-se, e as que não o fazem vivem resignadas dentro do sonho.
Depara-se, assim, com a obra de Scliar, dividida entre o fantástico e o real, mergulhada,
profundamente, na polêmica das questões políticas, sociais, econômicas e mentais que
assolam a sociedade urbana.
Assim, a experiência urbana, no plano da ficção, em Moacyr Scliar se dá sob
signo da velocidade, do dinamismo, da violência do movimento e do caráter multiforme dessa
experiência. Na busca de decifrar o indivíduo na sociedade por intermédio do simbolismo
animal medieval, se percebe que os textos revelam e constituem um verdadeiro liame entre
ficção e realidade, cuja retórica que o discurso ficcional veicula na lógica das aparências.
Atuam, neste sentido, como um bestiário do século XX, seduzindo e desafiando o leitor a
refletir sobre o narrado e dele abstrair conclusões.
91
Pela definição de Paz, nota-se que poesia é a arte revolucionária, que pode
transformar o mundo. Obediência às regras e criação de outras. Dentre diversas outras
definições de poesia, vale mencionar também a de Ezra Pound (2001, p. 40), em ABC da
literatura, para a qual ―literatura é linguagem carregada de significado. A grande literatura é,
simplesmente, linguagem carregada de significado até o máximo grau possível. Começo com
a poesia porque é a forma mais condensada de expressão verbal.‖
Pound explica que Basil Bunting, poeta inglês, autor de Redimiculum Matellarum
e Poems, ao folhear um dicionário alemão-italiano, verificou que a ideia de poesia como
concentração é tão antiga quanto a língua germânica. O verbo alemão dichten corresponde ao
92
substantivo dichtung, significando poesia, foi traduzido por um verbo italiano cujo sentido é
condensar.
Ainda acerca da poesia, é possível verificar, segundo Ana Maria Lisboa de Mello,
que
[...] a poesia resiste à falsa ordem, que é a rigor, barbárie e caos. Resiste ao contínuo
harmonioso pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo
harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando
uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.
É nesta direção que caminha a poesia de Manoel de Barros, haja vista que o autor
desconstrói as coisas do seu significado mais habitual, com vistas a expressar-se com uma
nova linguagem. Trata-se de arrancar as palavras dos clichês. Por isso, propõe uma poética
que vai levar a linguagem às últimas consequências, pois vai desabrigar a palavra de seu
sentido usual. Na verdade, o que o eu lírico faz é se remeter ao próprio sentido da poesia. É
dizer que a poesia é linguagem que quer o avesso do avesso, ou seja, que quer deslocar ao
máximo a representação da realidade, para que essa possa de fato se revelar no seu sentido
mais originário. Nas próprias palavras de Barros:
93
A poesia não é uma opinião nem uma interpretação da existência humana, aquele
que fornece o ritmo-imagem expressa simplesmente o que somos; é uma revelação
de nossa condição original, qualquer que seja o sentido imediato e concreto das
palavras do poema. (PAZ, 1982, p. 180).
Barros, observando a questão de sua influência motivacional e simbólica, que fazem coro
ressonante do imaginário medieval.
Todos estes aspectos apontados acima serão desenvolvidos no decorrer da análise.
Citá-los, como será feito a seguir, e assinalar alguns de seus aspectos serve apenas para situar
o leitor e introduzi-lo na problemática das obras.
um bestiário particular, fazendo o leitor enxergar o Brasil tanto em sua geografia física quanto
em sua geografia humana, a fim de o poeta executar seu trabalho com a linguagem sem
restrições.
Sabe-se que a imagem do animal apresenta uma realidade poética carregada
demasiadamente, pois desde a origem da poesia ocidental, o animal é visto como a
contraparte não-humana, mas animada e, portanto, digna de uma maior consideração
existencial e filosófica. Isso leva às mais antigas cosmogonias míticas e históricas do mundo
antigo, de permeio com a ressignificação na sequência das manifestações do pensamento
cultural moderno, em que, velhas crenças da tradição medieval sobre a natureza e os animais
foram paulatinamente revistos. Fato este que induz o leitor a estudar o assunto sem
desconsiderar as suas reinterpretações, feitas, principalmente, numa época de maior virulência
filosófica e cultural da Idade Média, através do escolasticismo, que deixaria como legado sua
influência nos quadros do conhecimento da história, da cultura e ideologia ocidentais
(FONSECA, 2003, p. 174).
Assim, a imagem do animal torna-se exegeticamente reinterpretada, vindo a ser,
neste contexto, indispensável considerar os bestiários como verdadeiros repositórios da
mentalidade medieval. Desse modo, faz-se permitido entrever que, muito desse imaginário e
simbolismo animal, recorrente da tradição bestiária medieval, encontra-se presente, de
maneira bastante significativa, na poesia brasileira contemporânea, tornando possível afirmar
que todo o imaginário e simbologia acerca do universo animal pode ter explicações vazadas
na história das ideias da cultura europeia. Portanto, essa constante reorganização simbólica se
torna excessivamente complexa, fazendo jus a uma devida averiguação.
Em sua poesia, Manoel de Barros mostra como não afligir a natureza. Então, vive-
a harmonicamente e na busca de discernir, de maneira prática e empírica, virtudes atribuídas à
fauna e flora brasileiras e sua função ideologicamente doutrinária, demonstra como o homem
transforma a natureza e também como é transformado por ela.
Dessa forma, a poesia de Manoel de Barros apresenta a visão particular de um
inusitado poeta que, perante o conhecimento sobre a vida, sanciona as suas figuralidades na
ordem do ideológico, servindo-se para sua poética das posturas filosóficas específicas e não
somente de ações utilitaristas que fazem parte do cotidiano do homem.
Os seres da natureza aparecem na poesia de Barros como expressão da natureza
humana, e o poeta, com a finalidade de exaltar a liberdade, apresenta a sua poesia
comprometido com a reflexão em benefício do humano, em busca não só da representação do
grupo de determinada comunidade, o pantanal brasileiro, mas de toda sociedade.
96
Apesar de o objeto de estudo ser Arranjos para assobio, inicialmente, será feita
uma análise horizontal com o rastreamento do imaginário bestiário medieval em outras obras
que representam e enfatizam também o universo telúrico do Pantanal, cujos motivos e funções
imaginativas e simbólicas servem de matéria para poesia como: Livro de pré-coisas; Poemas
concebidos sem pecado; Matéria de poesia; Concerto a céu aberto para solo de aves;
Gramática expositiva do chão; Compêndio para uso dos pássaros, dentre outras, para uma
compreensão global acerca do tema.
Em seus livros, Manoel de Barros apresenta o contexto pantaneiro e, discorrendo
sobre a natureza, usa a poesia como forma de representar o homem em suas raízes históricas e
contemporâneas, fundando um mundo no espaço do imaginário do Pantanal, fazendo da
natureza a sua casa. Este é o lugar escolhido pelo poeta brasileiro para imitar a criação
exemplar dos deuses, a cosmogonia.
Visto isso, dando início ao passeio pelo bestiário do pantanal, é necessário um
mergulho no conteúdo dos poemas do autor. No Livro de pré-coisas, na parte 1 – Ponto de
partida – o poema em prosa ―Anúncio‖ apresenta:
[...] o movimento íntimo para ―outrar-se‖, observado nos poemas arranjados por
Barros, reflete o desejo de ter várias perspectivas simultâneas para perceber melhor
o mundo. O constante movimento torna anacrônico o conhecimento e nos coloca na
mesma situação que a dos animais, árvores, pedras, águas ... cada qual com seu
modo peculiar de interagir com mundo corpóreo, submetido ao nascimento, à
transformação ou à morte conhecidas por meio das sensações (RODRIGUES, 2006,
p. 65).
Formigas
Pois pois
Nesse poema, percebe-se que Bernardo tem dom de poeta, pois, entende a
natureza, ouvindo as vozes do chão, a fala das águas e o silêncio das pedras. Bernardo mostra-
se como um homem que foge de terminologias prontas, atingindo um estágio de elucidação
em que é capaz de aprender as lições da natureza.
Por este motivo, a poesia de Barros provoca uma perplexidade no leitor, haja vista
que suspende a percepção corriqueira do mundo ao despertar os sentidos para uma visão
extraordinária das coisas. Como ―indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu‖
(BARROS, 1998, p. 45), o poeta serve-se de recursos linguísticos que conduzem a palavra em
direção a uma profunda renovação semântica, estética e, por consequência, poética. A
102
identificação do poeta com a criança se sustenta, em sua poesia, no fato de que ambos
utilizam a linguagem como ampliação do mundo não só vivido, mas também imaginado
(SCOTTON, 2006, p. 52). Mostra-se arqueólogo do verbo, quebrando os limites impostos à
língua para dar forma ao homem e ao universo. E isso ele afirma fazer, pois segundo o
mesmo: ―o sentido normal das palavras não faz bem ao poema‖. É neste contexto que acredita
Dessa forma, tanto para os medievais, quanto para Manoel de Barros, a natureza e
os seus reinos estão investidos de um revelatório poder divino. Nesse sentido, até mesmo os
vegetais ganham status celestial:
Este poder divino atribuído pelo poeta à natureza é consciente, pois, seleciona
vocábulos do campo semântico religioso, tal como no imaginário medieval, para compor suas
entrevisões poéticas:
uma rã me benzeu
com as mãos
na água.
Caramujos sempre chegam depois.
Representa que estão chegando
da eternidade. [...]
eternidade
é palavra
encostada em
Deus. [...]
Sapos sabem divinamentos
Mais do que as árvores
Mais do que os homens.[...]
O lírio
E as garças
São imaculantes
Sou beato de águas
De pedras
e de aves (BARROS, 200b5, p. 52).
aqui também o homem, na figura do eu lírico, é capaz de perceber a sacralidade dos animais,
pois, ―Sapos sabem divinamentos/ Mais do que as árvores/ Mais do que os homens‖ a ponto
de lhes render total devoção ―Eu sou beato de aves‖ (BARROS, 2005b, p. 52).
É, na vida ordinária dos poemas, que o cuiabano Manoel de Barros busca diálogo
com os animais, para os quais dirige uma atenção especial. Ele utiliza sua habilidade de
ultrapassar o conhecimento estabelecido para pregar o valor da leitura da natureza, de forma a
tocar, misteriosamente, o homem.
Na sua poesia também tem lugar para caramujos, lesmas, formigas, trastes,
jacarés, cigarras e outros seres insignificantes aos olhos do atarefado homem social que, a
partir do seu próprio mundo, subvertem o mundo dito normal, quebrando-o, desligando a
palavra das informações e antecedentes culturais pré-existentes (MENEZES, 2001).
Com toda essa exuberância, o Complexo do Pantanal, ou simplesmente Pantanal,
não é somente um pântano, como o nome pode reproduzir. É, sim, uma área influenciada pelo
ciclo das águas, envolvendo períodos de cheias, vazantes e secas que modificam a paisagem.
O nome complexo vem do fato de a região ter mais de um Pantanal dentro de si. Em que pese
o nome, há um reduzido número de áreas pantanosas na região pantaneira.
Nos moldes medievais, a academia, a educação formal, a instrução, o estudo e os
livros são alvo de crítica e ironia, pois, conforme o autor, distanciam o homem do sensível, da
natureza e das fontes. Barros desenvolve, portanto, uma visão letrada da natureza, segundo a
qual era entendida como um conjunto de símbolos e sinais que deviam ser lidos e
decodificados de forma que entenda sua condição genuinamente humana.
Como se vê, Barros, nos textos em estudo, subverte o prosaico, fala com
frequência pela analogia ou pela metáfora, recursos mais empregados pelo escritor, com a
finalidade de exibir o homem em transformação com a natureza física para a (re) visão/leitura
e expressão da vida. Utilizando de nexos inesperados e arranjos impertinentes, com o que
mostra que entre as coisas existe uma inusitada semelhança (GRÁCIA-RODRIGUES, 2006,
p. 1085).
Por esta razão, tal como as palavras nos bestiários medievais, seus poemas
também são dotados dos mesmos processos complexos que esses envolvem, isto é, a sua
interpretação processa-se, de igual modo, em duas etapas: a lectio e a meditatio.
Na poética de Manoel de Barros, percebida como fragmentária, o leitor depara-se
com uma realidade estilhaçada e marcada pela invenção de uma nova linguagem, uma vez que
desconstrói para construir. De modo que sua obra caracteriza-se como um verdadeiro
artesanato da palavra, ou, às vezes, como um grande laboratório vocabular em que o artista
atua sobre cada significado verbal e continua em seu trabalho criativo de novas dimensões
linguísticas (CAMARGO, 1997).
Assim, o autor é o pantaneiro que dessacraliza o mito da criação, discutindo sua
produção, por isso representa evolução, porque dá nova vida para a linguagem ao aplicar o
novo das palavras, próprio de sua linguagem poética: ―[...] traz no rosto a memória de um
peixe‖ (BARROS, 1998, p. 27).
A respeito do conjunto dos livros sobre os quais as reflexões desta primeira parte
do estudo se baseiam, verifica-se que a eficácia do vocábulo está, fundamentada, no domínio
do orador e por suas posições ideológicas que se manifestam em sua formação discursiva. Por
essa razão, vale ressaltar as afirmações de Paz (1982, p. 396) no que se refere ao fato de que o
verdadeiro autor de um poema não é nem o poeta nem o leitor, mas sim a linguagem.
Até agora, uma leitura horizontal das obras do autor foi realizada, a fim de
apreender sua cosmovisão e apontar traços singularizantes de seu projeto literário. A seguir, a
leitura da obra Arranjos para assobio, será feita com o objetivo de explorar o texto
verticalmente, sobretudo as características de seu bestiário poético.
106
Continuando este safári literário pelo bestiário pantaneiro, será dado agora um
mergulho no conteúdo dos poemas de Arranjos para assobio, que é formado pelos títulos
―Sabiá com Trevas‖, com quinze poemas autônomos, ―Glossário de transnominações em que
não se explicam algumas delas (nenhumas) – ou menos‖ que, é um glossário das palavras:
cisco, poesia, lesma, boca, água, poeta, inseto, sol, trapo, pedra e árvore. Em seguida, estão
―Exercícios cadoveos‖ e ―Exercícios adjetivos‖, e, por fim, o capítulo que dá título ao livro
―Arranjos para assobio‖ que se compõe de palavras em estado de dicionário.
Primeiramente, será analisado ―Sabiá com trevas‖, em que Manoel de Barros faz a
comunhão com todas as coisas e seres do pantanal e discorre sobre a sua visão da vida, sobre
o fato de que conhecer não é um processo estático. Assim, no poema II, é exemplificado como
o poeta se desfaz do modo convencional de aprendizagem das coisas, isto é, a coerência
lógica habitual, adquirindo um estilo de conhecimento, que ele mesmo pode viver, obtido
pelos sentidos e no silêncio, tendo como liame uma afinidade erótica com a natureza, com a
vida. Barros afirma que foi aprendendo com o corpo, privilegiando o tato. Tudo é toque,
contato e aderência em sua poesia: ―Só sei por emanações por aderências por incrustações‖
(BARROS, 1998, p. 11). Existe uma fusão na qual um constitui o outro. É neste universo
sonhado pelo poeta, tudo é tudo: um sapo é nuvem, estrela é penacho. Tudo num clima de
inquietação e transformação:
II
forma de reverter os vícios do uso linguístico usual, criando outra forma de comunicação: a
corporal.
Sua poesia, por conseguinte, ganha um traço peculiar, construído no artifício
poético, tradutor de sentimentos e paixões humanas. O seu argumento não é criado para
persuadir pela razão, mas para convencer pela emoção. O processo de criação em sua poesia
leva o poeta a aprender pelo sensível, porque a natureza se impõe sobre o homem.
Conforme Alceu Amoroso Lima (1966), é possível notar na obra de Barros: ―uma
predominância da terra sobre o homem‖. Por intermédio de sua poesia, o poeta explica os
mistérios da vida através da natureza, que, acredita ser uma realidade e finalidade do mundo
natural regido por auspícios divinos. Assim, em sua poesia, a natureza com seus animais não é
somente exposta, mas ―sentida‖.
A poesia de Manoel de Barros condiciona as mais diversas figuras de linguagem,
obtendo como consequência modificações sintáticas. É uma espécie de dublagem infantil com
o intuito de despir o corpo fônico do uso corrente. Apresenta neologismos (harpava), glossário
moderno (legal), sinestesia (Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados), prosopopeia (O rio
ficou de pé e me olha), entre outros. Além dessas figuras, sua obra mostra variações fonéticas
110
III
Além das descrições das precárias condições de vida dos miseráveis que vivem
marginalizados pela sociedade, que convivem melhor com os insetos do que com os seus
semelhantes, a última citação traz à tona a imagem do trapeiro analisada por Benjamin. Assim
como o trapeiro ganha a vida com os rejeitos, o poeta também faz daquilo que a cidade jogou
112
fora e destruiu a matéria de seus poemas (BENJAMIN, 1989, p. 78). É em sua poesia que
Barros alcança a plenitude. Tudo o que pode parecer feio, asqueroso ou ruim, na poesia é algo
que pode se transformar em beleza. Trata-se também de mostrar como os poetas da vida
moderna encontram no lixo da sociedade um tema heroico e de reconstituir os traços daquilo
que a cidade desprezou. Afinal, o próprio Barros afirma: ―o que é bom para o lixo é bom para
a poesia‖ (BARROS, 2001, p. 181).
A analogia que se arranja no poema é de proximidade e transposição. O pierrô é
uma releitura francesa do arlequim da comédia de arte italiana, passando do cômico ao
sofredor e, no Brasil, é o nome, também, de um coleóptero de colorido preto, apresentando
um mosaico irregular de faixas cinzento-prateadas e vermelho-tijolo. Suas larvas são
encontradas em árvores de grande porte. A identificação entre o inseto e a figura do pierrô se
dá ao nível de uma existência amorfa e deserta, de quem está exposto há anos em uma parede
(MENEGAZZO, 1991, p. 188).
Pierrô leva o fardo do isolamento do homem e não evidencia nenhum anseio de
alterar isso. Também é um ser do silêncio, que se contrapõe à linguagem humana. Cumpre o
desígnio de ser nada. Apresenta uma atitude de ostra, de pedra. Fecha-se em si mesmo, fica
calado.
Assim, Manoel de Barros dando novas modalidades às coisas imprestáveis, busca
através da linguagem do corpo, o silêncio como expediente a esses seres, que foram
escolhidos ―desde criança, para ser ninguém e nem nunca‖:
Desse modo, através de suas falas, Barros dá vida aos animais e as coisas
representadas. Não se trata de dar voz aos bichos, como ocorre com intensidade em fábulas,
ele não utiliza as técnicas e recursos daquele gênero. Ao contrário, sua intenção é expor a
animação desses seres da forma que lhes é característica, isto é, a partir do próprio corpo,
almejando alcançar uma linguagem corporal, concebida pela palavra (RODRIGUES, 2006, p.
46).
Assim, outros animais aparecem na poesia de Barros:
―morre verde‖, também, expõe ideias antagônicas: morte e esperança, esta, representada pelo
vocábulo verde. Sem dúvida, Manoel de Barros, poeticamente, demonstra como compõe seu
poema, lançando mão de antíteses.
O sapo ―dorme perante polens e floresce nos detritos‖. A metáfora sapo = vegetal,
sugerida pelo verbo florescer, alude ao fato de que o sapo, animal usualmente considerado
feio, no poema, é bonito, sendo capaz de dar flores. Visto que, ―deveria dormir nos detritos e
florescer nos polens‖.
Barros, então, subverte o pensamento medieval acerca do sapo, pois nesse
período, apesar de ser um animal comum, frequente em campos e pântanos europeus, foi visto
pelo medievo cristão ocidental – que seguiu neste caso algumas tradições antigas – como um
ser monstruoso, venenoso como qualquer serpente e usualmente associado à noite, ao mal e à
morte (ACOSTA, 1995, p. 183).
Assim é que, no poema, apesar de ser um animal considerado feio, apresenta
olhos dourados, e com estes, apalpa bulbos. O sapo come ovo de orvalho. Na metáfora ovo,
indicando gotículas de orvalho, nota-se a presença da água, em forma de ínfimas gotículas de
cristais transparentes, indicando que o sapo é madrugador.
Barros descreve que o sapo ―sabe que a lua tem gosto de vagalume para as
margaridas‖, ou seja, há uma interpretação da lua como vagalume.
Interessante observar que o vagalume é um inseto notívago, da ordem dos
coleópteros, com órgãos fosforescentes na parte abdominal, notório por suas emissões
luminosas. Alimenta-se, principalmente, de bichos muito usuais na poesia de Manoel de
Barros: as lesmas e os caracóis.
Como o próprio poeta, em harmonia com o movimento da natureza, o sapo
―precisa muito de sempre passear no chão‖. Logo após, o sapo, escuro e feio aprende antros
(covas profundas e escuras, cavernas) e estrelas (luz, brilho).
Expõe ainda que o sapo gosta de moscas, afinal, ―moscas são muito predominadas
por ele‖. Em seu couro (escuro) a manhã (chegada do dia, do sol, da luz) é sanguínea
(vermelha, da cor de sangue). Em seguida, em uma espécie de ritual de caça, espera as falenas
(borboletas noturnas) encostado em caules de pedra; os caules são geralmente verdes, porém
aqui, são de pedra, armadilhas para falenas (REINER, 2006, p. 38).
Limboso (escuro) é seu amanhecer (o nascer do sol, claridade, luz). Limbo é o
lugar entre o céu e a terra, segundo a teologia católica, para aonde iam as almas inocentes que,
sem terem cometido pecados mortais, estão para sempre privadas da presença de Deus, pois
115
morreram sem o batismo que as livrasse do pecado original. Vão para o limbo, também, as
almas justas que viveram antes da existência terrena de Jesus Cristo.
Por fim, o poeta informa: ―Tem cios verdejantes‖. Essa afirmação traz a ideia de
fertilidade, fecundidade, acasalamento, procriação. Assim, utiliza o termo para categorizar a
capacidade de produzir vida. E ―em sua estagnação‖, no campo semântico, estão a inércia, a
falta de movimento, a paralisação, a morte (REINER, 2006, p. 38).
Inúmeras, portanto, são as antíteses nesse poema: borboleta verde e olho sujo de
pedra; lama e sol; belo e feio; terra e ar; claro e escuro; dia e noite; morte e vida, levando o
leitor a formar com essas diversas antíteses dois grandes grupos: o primeiro como vida e o
segundo como morte. Os blocos vida/morte são representados pelos seguintes pares: claro /
escuro, dia / noite, sol / lama, amanhecer / limboso, ar / terra, cios verdejantes / estagnação,
borboleta verde / olho sujo de pedra, pólen / detritos, floresce / dorme, olhos dourados /
bulbos, margarida / vagalume, estrelas / antro.
Analisando cada par, individualmente, é possível concluir que todos os vocábulos
do grupo vida, formarão mais dois blocos: o mundo da luz e no mundo celeste, e, as palavras
do grupo morte, construirão o mundo da escuridão e o mundo subterrâneo (REINER, 2006, p.
40).
Por intermédio do estudo de Arranjos para assobio, é possível perceber como
Manoel de Barros lê e constrói sua realidade em seu contexto cultural, que não tem um foco
valorativo, assim como não traz o vício de praticar a diferença entre seus animais, portentosos
ou ínfimos que, aqui, passam a ser analisadas de forma compreensiva e situacional.
O autor apresenta determinadas figuras para se entender qual o objeto de sua
poesia e prossegue, de maneira provocante, cultivando uma transformação, quando faz do
significado de prolepse, ou seja, mudando uma designação que prestigiaria alçar resistência
por outra. Nesse processo, as pobres coisas do chão passam a ser consideradas sagradas:
―Reconhecer a eminência dos insetos leva à sabedoria‖ (BARROS, 2005b, p. 60). ―Meu
desagero é de ser fascinado por trastes‖ (BARROS, 2005b, p. 53). É dessa forma que se
utiliza de tudo aquilo que poderia ser considerado inadequado para a poesia, pois, conforme o
mesmo afirma ―O traste é ótimo‖ (BARROS, 2001, p. 13). Nesse sentido, os inutensílios,
antibens e antimercadorias, ou seja, o que é imprestável constitui o patrimônio do poeta:
XII
Sob esta perspectiva, Barros mostra-se revoltado frente aos valores universais.
Emprega a reprodução de ―servem para poesia‖, consolidando o estranho que constitui seu
mundo. Persiste contrariando os princípios aristotélicos sobre o belo, baseando-se mais nos
elementos sensíveis que nos racionais.
A poesia barreana prima por um palmear o chão, dá vida ao que ali se encontra e
faz do entulho matéria-prima: ―ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA‖ (BARROS,
1998, p. 29), afinal, como afirmou Millôr Fernandes, a obra do poeta é o ―apogeu do chão‖.
Assim, valendo-se de uma linguagem inovadora, o poeta maneja a palavra de forma incomum
aos hábitos dos leitores: o universo do chão (BARBOSA, 2003). É o que ocorre no poema
XIV, em que
XIV
Faz poesia pela metapoesia, redundando, poesia sobre poesia. Dessa forma, nos
moldes dos bestiários medievais, ao versar sobre os hábitos do sabiá, deixa explícita a lição do
poema, tornando-se possível comparar as ações do pássaro ao seu fazer poético.
O universo de Manoel de Barros é composto como arquissemas, indicativos de
um referencial à natureza que se traduz em ―árvore, sapo, lesma, antro, musgo, boca, rã, água,
pedra, caracol‖ (TURIBA; BORGES, 1996, p. 327). Barros não divisa seu ser da natureza
física. É possível perceber em sua poesia a natureza chegando à completa hominização. O
corpo tem sua expressão no ambiente. Ele não é o centro, é parte em intersecção. Todos num
117
patamar de igualdade em que homem e largatixa igualam-se: ―depois que todos se deitassem,
eu iria passear sobre os telhados adormecidos./Apenas me debatia contudo quanto a lagartixa
de rabo cortado‖ (BARROS, 1998, p. 21). Nesse mundo, nada é categórico, pois há uma
estável modificação, uma duradoura transformação, fazendo com que cada ser deixe de ter
uma característica una, comum e individual, para tornar-se múltiplo. Nas palavras de José
Carlos Prioste (2006, p. 143), ―este aflorar multivalente é constituinte do próprio ser que não
se institui pela unidade de uma identidade da unicidade, mas na pluralidade que funda a
própria linguagem‖.
Escrever, para ele, é ―cheio de casca e pérola‖, porque, ―nas fendas do
insignificante ele procura grãos de sol‖ (BARROS, 1998, p. 35). Para entender sua poesia, é
preciso escolher o caminho da sensibilidade, feito pelo entendimento do corpo, e não o
caminho da inteligência, já que, segundo o poeta, poesia é para ―incorporar‖:
As palavras com que compõe seus arranjos poéticos são manipuladas como
brinquedos, passíveis de manusear e distantes da linguagem adulta, culta, pensada. É como
criança que todos foram um dia que Barros acredita obter a liberdade e a poesia: ―Tenho um
lastro da infância, tudo o que a gente é mais tarde vem da infância‖ (BARROS [2002]).
Com sua poesia leva ao entendimento de todo homem ser filho de uma mesma e
única mãe: a natureza. Em Barros, essa noção corresponde, ainda em recorrência medieval,
àquela ideia da natureza constituída como um agregado múltiplo de seres com propriedades
sui generis dentro da sua espécie. Como se pode observar através da capa do livro de poemas
intitulado Retrato do artista quando coisa:
118
É por meio desta natureza divinamente inspirada e instruída que o poeta convida a
todos a sentir o pantanal:
do homem com a natureza, assim como a proximidade com os pássaros, pode ser verificada
em outro desenho feito pelo próprio poeta:
afirma: ―dentro de mim existe um lastro que é o brejal. Misturo dicionários com o brejo, não
faço nada mais que isso‖ (BARROS, 1996).
É assim que o poeta define poesia:
Poesia, s.f.
Constrói imagens imbricadas com os sons, ritmos e sentidos que contrastam entre
si. Nessa combinação de sons, ritmos e imagens, Barros faz seu leitor compreender o mundo
pelos sentidos. Ensina, também, a perceber, de forma inaugural, a realidade que circunda o
homem, por meio de suas metáforas e analogias. Desse modo, sente-se a proximidade das
origens e pelo sensível consegue-se a percepção do mundo.
Como se percebe, em Arranjos para Assobio, Manoel de Barros brinca com
definições do dicionário, invenções que se enquadram no todo de sua obra, reúne as suas
imagens no que ele nomeia, substantiva, antropomorfiza e, por fim, vive, como é o caso da
lesma: animal quase sempre asqueroso, gosmento, marginal, que vem acompanhado de um
caracol; por isso um duplo, como o poeta, que vai cavando espaços nas pedras, abrindo fendas
com o corpo e, a partir daí, vai explorando o erótico na linguagem que adota (PERNA, 1998).
Para Manoel de Barros, a lesma é caracterizada como:
Lesma, s.f
[...] remete a um tempo ancestral, no qual a pressa moderna nada significa, e a vida
se celebra simplesmente pela própria existência. Ao mesmo tempo, traz à lembrança
a contradição entre a vida natural e a cultural, da qual o homem é fruto. Desse modo,
ao mesmo tempo em que a lesma nega a importância dos valores humanos e seus
pudores, é ela um marco vivo de um ser sem lembranças, sem destino, sem
identidade.
Nesse contexto denota a ideia de que, a cada novo período, o universo simbólico
da literatura, até mesmo o simbolismo animal, se reveste de novas significações, porém,
sempre utilizando motivos tradicionais.
O poeta contempla tanto os animais quanto os vegetais e minerais num exercício
campestre, que se constrói por um olhar sutil e pela acentuada sensibilidade de um verdadeiro
homem do pantanal. É com esse olhar que o poeta apresenta a água:
Água, s.f.
Assim é que o vocábulo água é percebido pelo poeta, nessa condição de dicionário
característico. Desse modo, a água e todas as relações que derivam de seu universo: terra,
fauna, flora, expressam um novo que é suporte de um avivamento da vida natural, da qual o
homem é fruto.
Na concepção teológica da poesia de Barros, o mundo como irrupção pelo velar e
desvelar constante instaura a criação não por uma essência que precede a existência, mas pelo
seu inverso, como se pode notar na seguinte passagem do poema acima transcrito: ―Se diz que
no início eram somente elas (as águas) / Depois é que veio o murmúrio dos corgos para dar
testemunho de Deus‖. Para o poeta postular uma teologia do traste não implica numa renúncia
à concepção divina, pois esta é sempre invocada: ―Deus é quem mostra os veios‖ (BARROS,
2001, p. 26). Todavia a noção do divino apresenta-se exclusivamente na concretude do criado.
Assim, em Livro de pré-coisas (2003c, p. 85), até mesmo um simples pássaro como um
quero-quero ―cumpre Jesus‖ (PRIOSTE, 2006, p. 89).
Para expressar uma natureza que também é linguagem, Barros procura no
conjunto de sua obra a linguagem que é por si natureza,
123
[...] mas é uma natureza que fala e que inspira, testemunha e expressão, diremos, de
uma natureza naturante que por si mesma nos fala. [...] Se o poeta trata a linguagem
como coisa natural, é talvez pressupondo uma natureza falante. É em todo caso
respeitando a função semântica da linguagem, elevando ao máximo seu potencial
expressivo; esse potencial será tanto mais elevado quanto mais a palavra for
restituída à sua natureza e reconduzida à sua origem (DUFRENNE, 1969, p. 85).
Poeta, s.m.e.f.
Inseto, s.m.
É notável a faceta não utilitarista dos seres que Barros adota nesta parte do livro.
―O indivíduo com propensão a escória‖ é proveitoso à poesia de Barros, sob essa perspectiva,
os seres de seu bestiário passam a participar de uma nova condição. O inseto é percebido
como pessoa e vice-versa.
124
Manhã-passarinho
Até mesmo o pulo, sob o discurso surrealista, serve como justificativa para
colocar em xeque a realidade concreta e o pensamento lógico. Novamente, nota-se a ideia do
silêncio, perceptível em outros poemas. Assim, Barros incorpora em sua escritura a mania
infantil, pois para ele poesia é como exercícios de ser criança (BARROS, 1999a).
O pulo
Manuel de Barros deseja é estar em harmonia, deixando-se invadir pela natureza para viver
plenamente. Essa atitude torna-se ainda mais evidente quando considera que é ―preciso ser de
outros reinos: o da água, o das pedras, o do sapo‖ (BARROS, 1990, p. 333).
O projeto político e estético de Manoel de Barros utiliza um tempo em que tudo
pode vir a ser. O tempo, em sua obra, não tem marcas cronológicas, é um tempo mítico, como
se exemplifica na passagem:
Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era
encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A
gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora
que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou tem hora
que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os
lagartos e os musgos. Assim: tem hora eu sou quando um rio. E as garças me beijam
e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes. Hoje eu estou
quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como
quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora eu estou
quando infante. Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos no
rancho de palha perto de uma aguada (BARROS, 2006a).
especial atenção ao viés simbólico que Barros utiliza, com o intuito de perceber as condições
que possibilitam o surgimento de um novo olhar sobre o mundo natural, em que o animal
cumpre uma função epistemológica de ensinamento do homem pelos exemplos da natureza
divinamente inspirada e instruída.
Assim, em seu bestiário, o objetivo do poeta é fazer como as minhocas: elas
―arejam a terra; os poetas, a linguagem‖ (BARROS, 2003c, p. 252). Por desatinar ao que as
palavras condicionam e adquirir, no remexer do cisco, a experiência do restolho, a obra de
Manoel de Barros consegue ir além do rótulo de poesia regionalista, não se ocultando diante
da exuberância natural de uma paisagem atraente – o pantanal. O poeta mesmo em seus
arranjos sobre a natureza ainda assim parece atinar sempre para a instância problemática do
ser humano.
132
CONSIDERAÇÕES FINAIS
25
Omnis mundi creatura quasi liber et pictura nobis est especulum; nostrae vitae, nostrae mortis, nostri status,
nostrae sortis.
135
caracóis ou sapos são nuvem ou onde o homem é sabiá. O pantanal é a matéria prima para a
poesia barreana. Mas, esta natureza não é, em absoluto, vista com olhos que contemplam sem
agir, ficando numa enumeração de espécies. E isso, revela a postura de um homem que, frente
à vida, procura agir. Assim é que Manoel de Barros vislumbra o mundo pela ótica da
natureza. O autor delega ao animal a função de transmitir os sentidos das suas reflexões,
coordenando o seu discurso, não só em aspectos exteriores, mas tentando penetrar nas
complexidades e mistérios da interioridade das coisas e dos animais.
Foi possível notar que os contos de Moacyr Scliar são extremamente complexos
com a possibilidade de diversas leituras, negando uma interpretação unívoca. Seus contos
mantêm o leitor em constante tensão, pois num momento dá pistas para seu entendimento e,
logo depois, se contrapõe nelas mesmas, contribuindo para a manutenção de sua natureza
ambígua.
No bestiário de Scliar, foi possível ainda perceber que à medida em que os termos
de comunicação entre o homem e os seres animais transformam-se, alteram-se as condições
do seu encontro. Somente sob estas condições o animal pode ser visto como o outro.
Já Barros, para atingir uma percepção do próprio mundo natural, desenvolve a
temática da natureza a partir de animais, minerais e vegetais, isto é, mimetizando-os e
entrando literariamente em seus corpos. Na tentativa de aproximar-se tanto quanto possível do
mistério que envolve esta metamorfose, observa-se a recorrência de outros recursos como: a
faculdade mimética; a linguagem corporal e a linguagem imagética liberando a própria
linguagem de seu automatismo. Isto porque, ele desenvolve uma visão letrada da natureza,
segundo a qual esta era entendida como constituída por um conjunto de símbolos e sinais que
deviam ser lidos e decodificados de forma a entender os desígnios divinos da Criação. É dessa
forma, que sua obra celebra e consagra a comunhão do homem com a natureza. Afinal, o
poeta ―aprendeu com a natureza o perfume de Deus‖ (BARROS, 2003b, 63).
Manoel de Barros entra, por sua vez, neste mundo por meio ―das infusões, das
aderências, das incrustações‖ (BARROS, 1998, p. 11). O poeta, despojando-se de todo
entendimento racional do ser humano, de toda caraterística humana, vivencia este mundo. Ele
experimenta uma transformação não apenas num animal, mas também em pedras e plantas,
como nos lapidários e herbários, respectivamente, para assim, entender suas ―naturezas‖.
Do mesmo modo, destaca-se neste autor sua singularidade da linguagem
imagética. Esta construção imagética permite vislumbrar a ambiguidade da relação do homem
com a natureza. Sendo assim, rompe com a arbitrariedade e convencionalismos da linguagem
quotidiana, para que o olhar seja deslocado do seu eixo antropocêntrico. Isto pode-se notar no
136
mundo imaginado por Barros que se contrapõe com o mundo real. Um exemplo disto refere-
se ao estatuto de indivíduo dado para o inseto e o de inseto para o poeta.
Estando os autores inseridos no contexto da literatura brasileira contemporânea, eles
fazem parte de uma tendência mais universal, ao se valer de imagens e situações simbólico-
figurativas referentes a uma diversidade de animais, para além do inspiracional, há uma
verdadeira recorrência e renascença das tradições medievais em geral. Eles, dentro do seu
espaço, constroem esta corrente que consiste na reintrodução de legados antigos com o intuito de
descobrir e conservar os valores culturais dos antepassados.
Retomando a noção de bestiário literário como um dos elementos da literatura, o
animal alcança outras dimensões além das simbólicas ou alegóricas. A nova posição adotada
pelos autores estabelece um outro entendimento acerca do animal, pois nesta nova postura, é
possível perceber também que o homem já não ocuparia um lugar privilegiado. Nessa
perspectiva, nota-se que Moacyr Scliar e Manoel de Barros, longe de uma mera fonte
instrutiva e moral, adquiriram autonomia em relação às fraquezas que deviam representar e
passaram a caracterizações da vida e da natureza.
Percebe-se também que as obras dos autores estudados fazem coro ressonante do
imaginário religioso e profano imbuído na cultura erudita, e também na popular, servindo,
neste sentido, de interface entre literatura, as formações do folclore e da oralidade. Deste
modo, assim como o simbolismo animal medieval servia-se da alegoria para, a partir dos seus
comportamentos e características, entender os ensinamentos morais a serem seguidos pelos
cristãos iletrados, também na poesia de Manoel de Barros seu conteúdo simbólico torna-se
bastante popular, fazendo parte do folclore e da oralidade da cultura através de sua criação de
metáforas da natureza que revelam características idiossincráticas e aspectos culturais
inerentes à vida pantaneira.
Acerca da seleção de Manoel de Barros e Moacyr Scliar, vale lembrar que esta foi
feita pensando nos gêneros em que o animal é inserido: na prosa e na poesia. No início deste
estudo, falou-se que o animal é uma figura recorrente na literatura, portanto não é excluinte a
um gênero só. Assim, não se quis cair no marco estrito da definição de cada gênero, nem na sua
especificidade, simplesmente, fazer a distinção entre prosa e poesia.
Algumas das caraterísticas encontradas neste estudo foi uma luta férrea, forte, de um
lado e, do outro, uma entrega do ser humano com relação à natureza. Os escritores perdem, ou
melhor, rendem-se à identidade humana para entregar-se a identidades múltiplas. Na análise dos
textos referentes à imagem animal, nota-se que os mesmos vão tecendo todo um imaginário em
torno da fauna nacional, costurando retalhos de diferentes origens, compondo, no pano de fundo
137
da(s) cultura(s) brasileira(s), bem como o desenho das relações humanas com o mundo natural. Isso
significa que mesmo autores da contemporaneidade da literatura brasileira se propõem a revisitar a
literatura tradicional, uma vez que a tradição do imaginário medieval é uma rica matéria para
construção literária.
O recorte investigativo pelo viés do simbolismo animal medieval, nos diferentes
contextos literários em estudo, permitiu a abertura de uma fresta de conhecimento e tornou-se
possível uma visão crítica e uma compreensão dos fenômenos culturais e literários produzidos por
Manoel de Barros e Moacyr Scliar, por meio da relação dialética entre o estético, o histórico e o
simbólico.
Após a análise do simbolismo animal medieval, por intermédio dos contos em Moacyr
Scliar, nota-se que os temas perceptíveis no decorrer do estudo revelam o embate dos valores
humanos que coexistem na grande cidade, em que uma mitologia urbana imposta, socialmente,
surge em contrapartida à convergência de cenas de sexo e violência. A perspectiva extremista
indicia a desmistificação, o desmascaramento dos mitos sob os quais o homem urbano tenta
sobreviver, e revela, sobretudo, que a tensão entre o real e o ideal se dá no limite não só das
situações, mas da própria vida das personagens, que vivem aturdidas pela sensação de isolamento.
Nesse sentido, nos contos de Scliar, os animais, ao apresentarem as suas características
literais reveladas, na primeira parte das narrativas, logo adquirem uma dimensão alegórica à qual
se alia uma vertente moral e, além de criar situações cômicas com o intuito de criticar, os
valores da sociedade humana. Assim, o comportamento dos animais, juntamente, com a
crítica à sociedade, vem mostrar de que forma o homem deve evitar a perversidade e
aproximar-se da virtude. Afinal, como Umberto Eco (1986, p. 15) afirma: ―Para cada virtude
e para cada pecado há um exemplo tirado dos bestiários, e os animais tornam-se figuras do
mundo humano‖.
Já no poeta em que ―o chão é um ensino‖, existe uma verdadeira aula sobre o
Brasil, naquilo que possui de mais rico: a natureza vegetal, animal, mineral. Sabiás, lagartixas,
vaga-lumes, borboletas, minhocas, caramujos, sapos, camaleões, pardais, beija-flores,
tartarugas, besouros, araras, lesmas, calangos, musgos, violetas, bananeiras, enfim, espécies
da flora e da fauna que povoam o território poético desse grande escritor. Afinal, como
informa Barros: ―O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, das pedras. Sua gramática se
apoia em contaminações sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de árvores, de rãs‖
(BARROS, 1996).
Resguardadas as características históricas e culturais nas quais se manifestou o
processo exegético que privilegiava a leitura simbólico-alegórica, o espaço que Barros elege
138
para pôr o leitor em cena é a natureza. Nela, é fundado um espaço ecológico, em que é saciada
a necessidade de sentido para o mistério da vida. Povoado de animais, vegetais, minerais e
humanos, coloc o homem num território imaginário em que se tornou possível realizar uma
estreita ligação com o fantasioso.
Foi perceptível, ainda, no desenvolvimento da pesquisa, que a carga simbólica dos
animais descritos na literatura brasileira contemporânea chega a uma extrema semelhança
àquelas simbologias dos antigos bestiários medievais. As analogias chegam a ser feitas
nominalmente, como, no caso, da sacralidade da natureza nos poemas de Manoel de Barros.
Afinal, tanto o espaço urbano em Moacyr Scliar como o Pantanal em Manoel de Barros foram
usados como um retrato arrojado e imaginativo do homem como ser religioso, político,
econômico, cultural e sexual, constituindo um verdadeiro espetáculo da representação do ser
humano.
O estudo de ambos os autores trouxe à tona a riqueza da concepção simbólico-
alegórica da natureza, bem patente na continuação da elaboração de bestiários. Foi possível
perceber, ainda, que a cada novo período histórico-cultural o universo simbólico da literatura,
inclusive o simbolismo animal, se reveste de novas significações, porém, sempre
reaproveitando motivos tradicionais. Desta maneira, ao focalizar mitos, simbologias de
animais e lendas associadas a este riquíssimo mundo, teve-se a oportunidade de conhecer um
pouco mais sobre este fantástico universo que é o imaginário zoológico da Idade Média.
139
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ANEXOS
Conto
1968 — O carnaval dos animais.
1976 — A balada do falso Messias.
1976 — Histórias da terra trêmula.
1979 — O anão no televisor.
1984 — Os melhores contos de Moacyr Scliar.
1984 — Dez contos escolhidos.
1986 — O olho enigmático.
1995 — Contos reunidos.
1997 — O amante da Madonna.
1997 — Os contistas.
1998 — Histórias para (quase) todos os gostos.
2002 — Pai e filho, filho e pai.
Romance
1972 — A guerra no Bom Fim.
1973 — O exército de um homem só.
1975 — Os deuses de Raquel.
1975 — O ciclo das águas.
1977 — Mês de cães danados.
1979 — Doutor Miragem.
1979 — Os voluntários.
1980 — O centauro no jardim.
1981 — Max e os felinos.
1983 — A estranha nação de Rafael Mendes.
1991 — Cenas da vida minúscula.
1992 — Sonhos tropicais.
1997 — A majestade do Xingu.
1999 — A mulher que escreveu a Bíblia.
2000 — Os leopardos de Kafka.
2005 — Na Noite do Ventre, o Diamante.
148
Ficção infanto-juvenil
1981 — Cavalos e obeliscos.
1982 — A festa no castelo.
1984 — Memórias de um aprendiz de escritor.
1988 — No caminho dos sonhos.
1988 — O tio que flutuava.
1989 — Os cavalos da República.
1991 — Pra você eu conto.
1994 — Uma história só pra mim.
1995 — Um sonho no caroço do abacate.
1995 — O Rio Grande farroupilha.
1998 — Câmera na mão, o Guarani no coração.
1999 — A colina dos suspiros.
2000 — Livro da medicina.
2000 — O mistério da Casa Verde.
2001 — O ataque do comando P.Q.
2002 — O sertão vai virar mar.
2002 — Aquele estranho colega, o meu pai.
2002 — Éden-Brasil.
2002 — O irmão que veio de longe.
2003 — Nem uma coisa, nem outra.
2003 — Navio das cores.
Crônica
1984 — A massagista japonesa.
1989 — Um país chamado infância.
1995 — Dicionário do viajante insólito.
1996 — Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar.
2001 — O imaginário cotidiano.
2001 — A língua de três pontas: crônicas e citações sobre a arte de falar mal.
Ensaio
1987 — A condição judaica.
1987 — Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública.
1988 — Cenas médicas.
1993 — Se eu fosse Rotschild.
1994 — Judaísmo: dispersão e unidade.
149