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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA

DÁRIO TACIANO DE FREITAS JÚNIOR

O SIMBOLISMO ANIMAL MEDIEVAL:


Um safári literário em Moacyr Scliar e Manoel de Barros

GOIÂNIA – GO
2009
Termo de Ciência e de Autorização para Disponibilizar as Teses e Dissertações Ele-
trônicas (TEDE) na Biblioteca Digital da UFG

Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goi-


ás–UFG a disponibilizar gratuitamente através da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações
– BDTD/UFG, sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei nº 9610/98, o
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1. Identificação do material bibliográfico: [] Dissertação [ ] Tese


2. Identificação da Tese ou Dissertação
Autor(a): Dário Taciano de Freitas Júnior
CPF: E-mail: [email protected]
Seu e-mail pode ser disponibilizado na página? [x]Sim [] Não
Vínculo Empre-
gatício do autor
Agência de fomento: Sigla:
País: UF: CNPJ:
Título: O Simbolismo Animal Medieval: um safári literário em Moacyr Scliar e Manoel de
Barros

Palavras-chave: Literatura, Imaginário, Bestiário, Simbolismo, Moacyr Scliar, Manoel de Bar-


ros.
Título em outra língua: The animal medieval symbolism: A literary safari throught Moacyr
Scliar and Manoel de Barros

Palavras-chave em outra língua: Literature, Imaginary, Bestiary, Symbolism, Moacyr Scliar,


Manoel de Barros

Área de concentração: Literatura, história e imaginário


Data defesa: (02/04/2009)
Programa de Pós-Graduação: Letras e Linguística
Orientador(a): Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca
CPF: E-mail:
Co-orientador(a):
CPF: E-mail:
3. Informações de acesso ao documento:
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1
Em caso de restrição, esta poderá ser mantida por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo
suscita justificativa junto à coordenação do curso. Todo resumo e metadados ficarão sempre disponibilizados.
DÁRIO TACIANO DE FREITAS JÚNIOR

O SIMBOLISMO ANIMAL MEDIEVAL:


Um safári literário em Moacyr Scliar e Manoel de Barros

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Letras e Linguística da Universidade Federal de
Goiás (UFG), como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre no Curso de Mestrado em Estudos
Literários.

Linha de pesquisa: Literatura, história e imaginário.

Orientador: Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca

GOIÂNIA – GO
2009
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
GPT/BC/UFG

Freitas Júnior, Dário Taciano de.


F866s O simbolismo animal medieval [manuscrito]: um safári
literário em Moacyr Scliar e Manoel de Barros / Dário
Taciano de Freitas Júnior. – 2009.
150f.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca.


Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Goiás.
Faculdade de Letras, 2009.
Bibliografia.
Inclui anexos.

1. Barros, Manoel de – Crítica e interpretação. 2. Scliar,


Moacyr - Crítica e interpretação. 3. Imaginário. 4. Literatura
brasileira.
CDU: 821.134.3(81).09
DÁRIO TACIANO DE FREITAS JÚNIOR

O SIMBOLISMO ANIMAL MEDIEVAL:


Um safári literário em Moacyr Scliar e Manoel de Barros

Dissertação defendida no Curso de Mestrado em Letras e Linguística da


Faculdade de Letras da UFG, para obtenção do grau de Mestre em Estudos Literários,
aprovada em _______ de _________________ de 2009, pela Banca Examinadora constituída
pelos seguintes professores:

__________________________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca - UFG
Presidente da Banca

__________________________________________________________________
Profª. Drª. Suzana Yolanda Lenhardt Machado Cánovas - UFG

__________________________________________________________________
Profª. Drª. Dulce Oliveira Amarante dos Santos - UFG
A Deus, por deixar ao meu alcance tudo o
que minha mente pode conceber.
AGRADECIMENTOS

Agradeço àqueles que colaboraram para a plena realização desta pesquisa, em especial:
À minha mãe, Dona Neusa, pela educação e pelo incansável incentivo à leitura; ao meu pai,
Dário, in memoriam, pelo exemplo de vida.
À minha irmã Daniane e aos meus irmãos Neilton e Wilton, simplesmente por existirem em
minha vida e pela torcida, mesmo sem entenderem a importância deste feito em minha
formação profissional.
Ao Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca, pela paciência, amizade e sabedoria na forma
como conduziu a orientação desta dissertação, mas, sobretudo, agradeço também por ser,
desde a graduação, o grande incentivador da minha carreira.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da UFG, por ter viabilizado meus
estudos.
Aos professores: Jorge Alves Santana, Marilúcia Mendes Ramos, Goiandira de Fátima Ortiz
de Camargo e Ofir Bergman de Aguiar, do Programa de Pós-Graduação em Letras e
Linguística, por me abrirem uma nova perspectiva frente ao entendimento da literatura.
Ao Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior, o qual, sem dúvida, contribuiu de forma
essencial para meu crescimento, auxiliando, significativamente, com suas observações
críticas.
Aos colegas do mestrado, que dividiram as angústias e alegrias do percurso, em especial: à
Ana Paula da Costa, companheira sempre presente; ao Renan Cornette Pires e à Nismária
Alves David, pelo convívio intelectual; à Marcela Italo, pelo exemplo de perseverança; e ao
Paulo Antônio Vieira Júnior, meu novo amigo.
À Vera Lúcia Alves Mendes Paganini, pelas palavras generosas e pela confiança nas horas
difíceis.
Ao meu primo Alessandro de Carvalho, pela inestimável amizade e pelo apoio durante todo o
curso.
Aos meus amigos André Yamada, Átila Teixeira e Elvis Cleiton, pelo constante incentivo, e,
acima de tudo, pela fineza.
Aos moradores da Casa do Estudante Universitário pela alegria, convivência e pelo enorme
respeito que sempre tiveram por mim.
Aos amigos do Ministério da Integração Nacional e da Defensoria Pública da União, pela
credibilidade.
Ao Weldon Carlos Elias Teixeira, pela contribuição imediata através de seu conhecimento da
língua inglesa.
Às professoras Dulce Oliveira Amarante dos Santos e Suzana Yolanda Lenhardt Machado
Cánovas, pela honra ao aceitarem a leitura e correção deste trabalho.
À minha querida Alessandra Batista de Campos, pelo afeto, compreensão, encorajamento e
pela paciência em suportar minhas ausências em função da pesquisa.
A todos os outros amigos que me acompanharam nessa árdua travessia, pelo aprendizado que
me proporcionaram, pelo apoio e pela torcida.
FREITAS JÚNIOR, Dário Taciano de. O simbolismo animal medieval: Um safári literário em
Moacyr Scliar e Manoel de Barros. 2009. Dissertação (Mestrado em Literatura). Faculdade de
Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2009.

RESUMO

Sabe-se que a criação estética de diversos autores da literatura brasileira tem sido alvo de
estudos de variados tratamentos, abordagens teóricas e crítico-analíticas, no que diz respeito
ao seu conteúdo imagético, simbólico e figurativo. Apesar de recorrentes, os trabalhos
teóricos que rastreiam a figura do animal, poucas são as obras dedicadas ao seu significado
literário, o que, de certa forma, mostra descaso sobre o assunto. Sem desfavorecer a
importância dos estudos tradicionais, que apenas apresentam a figura animal como forma
implícita do próprio homem, este estudo procura preencher essa lacuna na crítica, examinando
obras da literatura brasileira contemporânea que contemplam a figura do animal baseado em
seus aspectos simbólicos. Assim, como muito do imaginário e simbolismo, originado na
tradição bestiária medieval, encontra-se recorrente na literatura atual, foram eleitos os
seguintes autores contemporâneos de reconhecido destaque e importância no âmbito da
literatura nacional, nos quais será analisada a temática em questão: Moacyr Scliar e Manoel
de Barros. Haverá, portanto, a realização de um estudo descritivo, analítico e crítico-
interpretativo da presença simbólica e imaginária de animais, respectivamente, em contos de
O carnaval dos animais (1968) e no livro de poesia Arranjos para assobio (1982), a partir de
sua própria distinção, seu gênero e sua singularidade, já que cada uma dessas obras, além de
fazer parte de um contexto histórico particular, é marcada pelo traço distintivo de cada autor.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Imaginário, Bestiário, Simbolismo, Moacyr Scliar,


Manoel de Barros.
FREITAS JÚNIOR, Dário Taciano de. The animal medieval symbolism: A literary safari
throught Moacyr Scliar and Manoel de Barros. 2009. Dissertation (Master of Literature).
Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2009.

ABSTRACT

It‘s known that the esthetic creation of diverse brazilian literature authors, has been the aim of
study of several treatments, theoretic approach, critical and analytical, regarding its image
content, symbolic and figurative. Although recurrent, the theoretic works that scrutinizes the
animal figure, few productions are dedicated to its literary meaning, what, somehow, shows
the lack of attention related to this issue. Without decreasing the importance of the traditional
studies, that just presents the animal figure as own human‘s implicit form, this study tries to
fill the critical lack, analyzing literary contemporaneous brazilian productions that
contemplates the animal figure based in its symbolical aspects. Thus, as much of the
imaginary and symbolism, arose in the bestiary medieval tradition, its recurrent found in the
current literature, the following authors, of recognized prominence and importance in the
context of national literature, were chosen to be analyzed: Moacyr Scliar and Manoel de
Barros. So, there will be a descriptive, analytical, critical and interpretative study of the
symbolical and imaginary presence of animals, respectively, in tales of O carnaval dos
animais (1968) and in the poetry book Arranjos para assobio (1982), from its own
distinction, its gender and its singularity, since each of this works, in addition being part of a
particular historical context, it‘s marked by distinctive aspects of each author.

KEYWORDS: Literature, Imaginary, Bestiary, Symbolism, Moacyr Scliar, Manoel de


Barros.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9

1 A EVOLUÇÃO DOS BESTIÁRIOS MEDIEVAIS: ................................................... 21

2 O BESTIÁRIO CONTÍSTICO DE MOACYR SCLIAR ........................................... 50

2.1 O conto literário e seus principais representantes .................................................... 50


2.2 Scliar e o Carnaval dos Animais .............................................................................. 54
2.3 Fantástico ou Alegórico? .......................................................................................... 57
2.4 O bestiário contístico de Moacyr Scliar ................................................................... 60
2.5 O carnaval dos animais: muito além de um livro fábulas ....................................... 89

3 O BESTIÁRIO POÉTICO DE MANOEL DE BARROS........................................... 91

3.1 A poesia lírica ........................................................................................................... 91


3.2 Manoel de Barros, poeta por natureza ...................................................................... 94
3.3 Um passeio pelo bestiário poético de Manoel de Barros ......................................... 97
3.4 O bestiário de Manoel de Barros em Arranjos para assobio ................................. 106
3.5 Confabulando com a natureza ................................................................................ 129

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 132

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 139

ANEXOS ........................................................................................................................... 13946


9

INTRODUÇÃO

Para nós, toda criatura do mundo é como um livro,


1
um quadro, um espelho .
Alain de Lille

Os animais têm sido parte indissociável da tradição e história do homem.


Ocorrência esta perceptível pelo fato de que as primeiras obras artísticas do homem foram
representações de animais associados à caça e a rituais de magia. Seus primeiros deuses foram
animais ou seres antropomórficos ligados a curiosos cultos totêmicos. Como se percebe, os
bichos foram os primeiros e essenciais elementos da vida e do imaginário humano.
Figura notadamente presente na literatura, que herda simbolismos da tradição
bestiária da Idade Média, o animal costuma receber um tratamento que varia entre o
simbólico e o alegórico, mas, constantemente, sob a perspectiva humanística. O animal
representa, dessa forma, virtudes ou defeitos para a instrução edificante, marcada por
intenções catequéticas e moralizantes do ser humano.
Apesar de os trabalhos teóricos que rastreiam a figura do animal serem
recorrentes, poucas são as obras dedicadas ao seu significado literário, mostrando certo
descaso com o assunto. Sem desfavorecer a importância dos estudos tradicionais, que apenas
apresentam a figura do animal como forma implícita do próprio homem, este estudo procura
preencher essa lacuna na crítica, examinando obras da literatura brasileira contemporânea que
contemplam a figura do animal baseado em seus aspectos simbólicos.
Esta dissertação consiste num estudo direcionado ao simbolismo animal medieval
na literatura brasileira contemporânea e justifica-se pelo fato de pouco se ter investigado
sobre a presença do mundo animal, ou dos bestiários, em autores dessa literatura. Além disso,
existem outros fatores imprescindíveis, de pertinência incontestável, para a execução desta: 1)
a notável recorrência que vários escritores brasileiros contemporâneos fazem a imagens e
situações simbólico-figurativas referentes às mais variadas figuras de animais, requerendo,
portanto, uma sondagem analítica; 2) é relevante que esta recorrência apresenta-se carregada
de significações sugeridas por seu valor simbólico, sancionadas por seus respectivos
universos de valores culturais e ideológicos. Destarte, é importante analisar e refletir os
aspectos citados em busca de respostas quanto às manifestações do imaginário animal na
realidade literária brasileira, bem como outros aspectos que envolvem essa problemática.
1
Omnis mundi creatura quasi liber et pictura nobis est especulum.
10

Dessa forma, para a fundamentação teórica do trabalho, não deve causar surpresa
o convívio de pensamentos de áreas do saber academicamente diversas, tal como literatura,
história e filosofia, contribuindo para a ampliação de horizontes do conhecimento.
Esta dissertação é resultado dos estudos iniciados no curso de Mestrado em
Estudos Literários, cuja área de interesse concentra-se na intersecção entre literatura e
imaginário. Nessa zona de aproximação, propõe-se uma leitura da literatura brasileira
contemporânea, pelo viés do pensamento medieval, contemplado na escrita de Moacyr Scliar
e Manoel de Barros. Será apresentado nesta pesquisa, um estudo sobre a presença do mundo
animal, cuja carga imaginária e simbólica pode dar vazas a leituras de fundo interpretativo,
ligado a concepções e valores não só literários, mas também culturais.
O produto do estudo terá como consequência uma pesquisa mais sólida e
delineada de motivos e funções do simbolismo animal que, reelaborado na literatura brasileira
contemporânea, trazendo como herança da tradição bestiária medieval e dos princípios dos
tempos modernos, atende às suas respectivas contextualizações culturais e ideológicas.
Por intermédio da elucidante questão dos elementos simbólicos e suas
recorrências que, no tocante aos animais, perpassam as obras dos autores mencionados, será
possível, consoante a orientação do trabalho, apresentar um estudo original que poderá
contribuir para outras áreas do conhecimento humano e artístico, estas ligadas ao universo
social, ideológico, cultural e antropológico.
Serão utilizados dois tipos de pesquisa, a saber: 1) a pesquisa bibliográfica,
constituída, principalmente, por artigos científicos e livros, visto que permite a cobertura de
uma gama de fenômenos maior, e, 2) a pesquisa documental, que permite o acesso a
documentos como: reportagens de jornal, relatórios de pesquisa, documentos oficiais, entre
outros.
A fonte utilizada para a pesquisa consiste em consulta à bibliografia teórica e
crítica básica, referindo-se a itens necessários ao estudo da tradição bestiária medieval, e, em
relação aos demais itens bibliográficos, a sua quase totalidade é encontrada, facilmente, em
bibliotecas especializadas.
É importante ressaltar a imprescindível obra que será usada como ponto de partida
para o desenvolvimento do estudo, The book of beasts (1984) [O livro das bestas]. De grande
riqueza por sua ilustração, constitui um dos bestiários mais ricos e importantes pelo elevado
número de animais que descreve, em média 150. Publicado pela primeira vez em 1928, é uma
tradução para o inglês de um bestiário latino do século XII, cujo manuscrito encontra-se na
Cambridge University Library [Biblioteca da Universidade de Cambridge], em uma edição
11

feita e comentada por T. H. White. Tal livro, além do embasamento teórico, fornece subsídios
para a análise e discussão acerca do tema estudado.
Desse modo, a fim de melhor aquilatar a peculiaridade e os propósitos dos
bestiários medievais, na literatura brasileira contemporânea, será enfocada uma abordagem
metodológica hermenêutica, a fim de se estudar a tradição bestiária medieval em sua origem,
fontes de influência e elaborações disseminativas.
Para atender aos objetivos do presente estudo, foi proposta uma leitura
hermenêutica, entendendo-a aqui, segundo aponta Palmer (1976), como o momento
culminante entre uma materialidade oferecida pela obra literária e a construção do locutor
para se alcançar, assim, a visão e o modo de estar no mundo do artista, como processo de
compreensão e interpretação dos textos.
A realização dessa leitura, no contexto da interpretação, permitirá uma maior
proximidade com as informações e a captação dos sentidos construídos pela linguagem.
Portanto, pelo estudo hermenêutico, a leitura de Moacyr Scliar e Manoel de Barros foi
necessária para atingir a subjetividade e a singularidade do material coletado em seus textos.
Ainda no âmbito da metodologia, haverá uma abordagem de natureza analítica e
crítico-interpretativa, preponderando com destaque os pressupostos buscados na teoria do
imaginário e do simbólico na configuração da literatura enquanto expressão cultural dos
autores.
Entretanto, antes de se entrar no exame, propriamente dito, do que compõe o
imaginário medieval na literatura brasileira contemporânea, vale ressaltar que essa carga
simbólica sobre os elementos da natureza, no conteúdo imagético da literatura brasileira, não
se restringe apenas ao reino animal. Outros elementos da natureza como pedras (reino
mineral) e plantas (reino vegetal), também mereceram, igualmente, a percepção e o interesse
desses autores da contemporaneidade. Haverá, por exemplo, poemas de Manoel de Barros que
ressaltam não só a importância e a sabedoria dos animais como também das plantas e das
pedras.
Tudo indica que foi na baliza dessa tradição bestiária, em que ciência e
imaginação se fundiam nas descrições de animais, que certos escritores brasileiros
contemporâneos serviram-se como tema e matéria para a construção de suas obras. Assim, é
de extrema importância verificar qual o tratamento dado pela modernidade a esse tema
tradicional e secular, uma vez que esta surge como uma ruptura do medievo.
Nesses ―bestiários modernos‖, será possível encontrar várias ressignificações e
abordagens convergentes e, às vezes, divergentes em relação aos bestiários medievais. Assim
12

como os escribas distorciam as informações dos bestiários, também é perceptível nos


escritores e poetas contemporâneos uma nova simbologia dada aos animais, isso de maneira
extremamente díspar. De fato, muitos animais dos bestiários revelam uma ambivalência
quanto ao seu sentido simbólico, podendo assumir dupla significação, isto é, são capazes de
originar, simultaneamente, uma leitura positiva e uma negativa ou mesmo não conter nenhum
atributo de intenção moralizante. Nesse sentido, os autores recorrem à simbologia medieval,
parodiam o estilo moralizador e o conteúdo ingenuamente maravilhoso dos bestiários
medievais para produzirem sutilmente os efeitos desejados.
Esta investigação fundamenta-se no conhecimento de que escritores, de outras
nacionalidades, e também de língua portuguesa, fizeram ao largo de suas obras,
propositalmente, os seus respectivos bestiários, quer em forma de coletâneas específicas, quer
em forma disseminada. Um conjunto de composições ligadas aos animais como uma espécie
literária que transcende as épocas históricas, remontando à Bíblia, atravessa o Medievo, chega
ao Classicismo através dos livros de emblemas, alcança Camões, Charles Baudelaire,
Apollinaire, T. S. Eliot e Claude Roy até atingir a Contemporaneidade. Este estudo pretende
investigar, pelo processo de uso de animais como símbolos, o que poderiam ser considerados
bestiários, na literatura brasileira contemporânea.
Visto isso, se faz necessário realizar algumas considerações. Uma delas é de que
se deve ter em mente que Moacyr Scliar e Manoel de Barros não apresentam uma consistência
homóloga acerca da temática bestiária, visto que, um mais, outro menos recorrente, utiliza-se
desta matéria para formar os seus bestiários. Se os motivos imaginários e simbólicos da
imagem e do mundo de animais comparecem, por exemplo, disseminados, aqui e ali, num
Moacyr Scliar, o mesmo não acontece com Manoel de Barros que, em grande parte de sua
obra, apresenta uma antologia de animais que pode ser considerado um verdadeiro bestiário.
Em suas obras, Manoel de Barros faz desfilar uma série de animais, os quais são descritos
como portadores de ensinamentos edificantes por seu aspecto moralizador, com clara
ressonância dos tradicionais bestiários medievais.
No que se refere às estratégias de ação operacional, serão as seguintes atividades
realizadas no bojo desta dissertação: num primeiro passo da abordagem metodológica
enfocada, ocorrerá o estudo da exegese da tradição bestiária medieval, que será investigada
em suas fontes de formação e nas suas modalidades disseminativas. Assim, o simbolismo
imagético e imaginário dessa tradição consistirá num exame de bestiários que servirão de
intertexto para o seu enredamento na literatura dos autores brasileiros indicados.
13

Quanto às estratégias de ação orientadas para a finalidade crítica, o primeiro passo


será descritivo, em que se buscará levantar, no corpus do estudo proposto, pertinências e
recorrências imagéticas e figurativas referentes ao mundo animal. No segundo momento, o
procedimento será analítico, quando os elementos de composição simbólica serão observados.
Finalmente, tais elementos serão interpretados no escopo de uma visão crítica. Desse modo,
as imagens simbólicas dos animais que, a partir da tradição medieval disseminam-se na
literatura brasileira contemporânea, a exemplo de outras nacionalidades, revelam posturas
significativas do entendimento simbólico e figurativo do homem frente à natureza.
Assim, nos dois capítulos que analisam as obras dos autores supracitados, haverá
o intuito de suscitar a discussão central da pesquisa. Neles pretende-se realizar um exame na
literatura brasileira contemporânea, de referências ao mundo animal, carregadas de
significações sugeridas por seu valor simbólico. Nestes autores, será feito um relato das
manifestações e do valor dessa carga simbólica, bem como a verificação das modulações
marcadas por outro contexto, no qual o histórico e cultural se interpõem enquanto formações
ideológicas.
O trabalho foi pensado em três capítulos. O objetivo é compreender a relação
entre imagem, ideologia e determinação contextual estética e, culturalmente, marcadas
presentes nas obras. Todavia, para se chegar a uma acepção do assunto, parece importante
realizar, primeiramente, uma investigação da tradição bestiária medieval nas suas fontes de
formação e nas modalidades disseminativas.
Por isso, o primeiro capítulo, ―A evolução dos bestiários medievais: uma breve
introdução‖, realizar-se-á um percurso pela cultura ocidental, a fim de captar as diversas
formas pelas quais o animal é percebido. Haverá ênfase sobre a gênese, evolução e finalidade
estético-ideológica do imaginário e do simbolismo animal na tradição bestiária medieval e dos
princípios dos tempos modernos, com intenção de se entender o tratamento dado aos animais,
sob a perspectiva ocidental, no decorrer dos séculos. Desta maneira, será realizada uma breve
viagem para conhecer as fontes dos bestiários na Idade Média, manuscritos medievais
compostos por descrições detalhadas do mundo natural e essencialmente animal,
disseminados nos princípios dos tempos modernos, de gosto prevalente até o século XVII.
Textos que continuam a exercer sua influência motivacional e simbólica ainda na literatura
dos dias atuais. Por fim, será verificada a nova compreensão, em que a imagem do animal
torna-se exegeticamente reinterpretada, em que autores modernos, propositalmente,
disseminam o simbolismo animal de recorrência bestiária medieval em suas obras, em forma
de coletâneas, ou ao largo de suas obras.
14

No segundo capítulo, ―O bestiário contístico de Moacyr Scliar‖, pretende-se,


preliminarmente, conhecer o estilo do escritor, por meio da análise do gênero por ele adotado.
Serão realizadas reflexões sobre o conto literário, percorrendo um breve itinerário do conto no
século XIX, em seu panorama mundial, com apontamentos, sobretudo, de autores e
tendências do gênero no século XIX e XX no Brasil, para, então, se traçar uma leitura dos
animais.
Logo após, pretende-se produzir uma análise de contos do livro O carnaval dos
animais (1968). Serão discutidas as intenções de Moacyr Scliar, procurando compreender que
seus contos vão além de uma defesa de classe, e que, ao fazerem coro ao simbolismo animal,
tratam da condição humana na constituição da sua essência. A preferência por essa obra recai
no interesse de perceber que a escolha de um gênero discursivo e o uso dos recursos
simbólicos não é apenas para disfarçar a linguagem ou evitar a perseguição da censura, mas,
além disso, parece ser, principalmente, um recurso inerente ao estilo do autor.
Descendente de imigrantes judeus, e tendo passado a infância no Bairro do Bom
Fim, em Porto Alegre, as suas obras trazem uma forma muito peculiar de humor, conhecida
como o humor judaico. Essa espécie de humor vem assim definida em uma antologia de que
Moacyr Scliar foi um dos organizadores:

Os teólogos judeus costumavam dizer que é mais fácil descrever Deus em termos do
que Ele não é. O mesmo processo pode ser útil para a compreensão do humor
judaico. Ele não é escapista, não é grosseiro, não é cruel; ao mesmo tempo, também
não é polido ou gentil.
O humor judaico geralmente versa sobre temas como: a comida, a família, negócios,
o antisemitismo, a riqueza e a pobreza, a saúde e a sobrevivência. Há nele uma
fascinação com a lógica; mais precisamente, pelo tênue limite que separa o racional
do absurdo (SCLIAR; FINZI; TOKER; 1990, p. 2).

Desse modo, o humor judaico costuma produzir não uma gargalhada, mas um
sorriso melancólico, um aceno de cabeça, um suspiro. Possui também um caráter
antiautoritário e democrático, por enfatizar a dignidade do cidadão comum.
O carnaval dos animais, publicado na década de 1960, além da presença do
humor judaico, tem como pano de fundo a atmosfera sociopolítica que imperava no Brasil
durante a ditadura militar, desta forma, o autor usa a palavra como instrumento para a
construção de seu texto.

[...] o fotográfo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar imagem ou


um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas
também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de
abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo
15

que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto
(CORTÁZAR, 1995, p. 152).

Procurar-se-á observar, então, situações cujos sinais se evidenciam na escrita,


como forma de apagamento e de obscurecimento das verdadeiras intenções do autor. Isso por
meio de metáforas, alegorias e dos atributos da literatura fantástica, com a investigação, no
texto, acerca do imaginário animal pelo emprego dos recursos do fantástico e simbólico-
alegórico. A fundamentação teórica para embasamento da discussão será pautada, sobretudo,
nos postulados de Tzvetan Todorov (2004), Joyce E. Salisbury (1994), Maurice Van Woensel
(2001) e Mário Frungillo (2003).
Vale mencionar que a alegoria é uma metáfora continuada como tropo de
pensamento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outro pensamento que
está ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo pensamento (HANSEN, 1986, p. 1).
João Adolfo Hansen, em sua obra Alegoria: Construção e Interpretação da
Metáfora (1986), apresenta um panorama dos diferentes tipos de alegoria empregados por
autores da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento. Escreve que não se deve falar em
simplesmente de a alegoria, e sim em alegorias e apresenta duas formas de construções
alegóricas: a dos poetas, voltada para o procedimento construtivo, uma forma de expressão
retórica, e a dos teólogos, que se dedica à interpretação e entendimento de textos sagrados.
Além disso, ilustrando seu próprio texto com reproduções de obras pictóricas de vários
períodos históricos, o autor reconhece também o uso da alegoria em linguagens não-verbais.
Segundo o mesmo autor, elas são complementares, podendo-se dizer que
simetricamente inversas: como expressão, a alegoria dos poetas é uma maneira de falar; como
interpretação, a alegoria dos teólogos é um modo de entender.
Nesse sentido, Scliar, utilizando a alegoria dos poetas, retorna a oposição retórica
sentido próprio/sentido figurado não para validá-la, mas para reconstituí-la em alguns pontos
de seu funcionamento antigo e de suas retomadas. Desse modo, nos contos de Moacyr Scliar,
será perceptível não apenas a ficção, acabando esta por obter um papel relativamente
minoritário. O que se verá será antes a realidade que se sobrepõe à ficção, compreendendo,
claramente, o retrato autobiográfico do escritor em cada detalhe, em cada traço de cada
personagem.
Isso porque as obras de Scliar remontam, invariavelmente, ao documento
biográfico e memorialista, que confronta o escritor com o seu passado, e que o integra do
ponto de vista humano num tempo e num espaço. Afinal, segundo o próprio autor, sua vida
16

oscilou desde criança entre a assimilação da cultura brasileira e a preservação dos seus hábitos
culturais judaicos.
Por meio dos contos de Moacyr Scliar, pretende-se explorar o simbolismo animal
para embasamento da análise teórica do trabalho. Nesse sentido, será possível evidenciar a
intertextualização dos contos com textos do período medieval e com a Bíblia. O objetivo do
estudo também consiste em perceber se nos contos que intertextualizam textos bíblicos, por
exemplo, existe a intenção de desvincular o sujeito de um mundo material para o espaço
surrealista onde é possível recorrer ao onírico, ao metafísico, ao fantástico e à alegoria, para
metaforizar situações reais e obscurecer a denúncia explícita. Nesta análise, dar-se-á ênfase ao
imaginário ligado aos animais e seus diversos enfoques.
No terceiro capítulo, intitulado ―O bestiário poético de Manoel de Barros‖,
pretende-se discutir, sobretudo, poemas de Arranjos para assobio (1982), observando
determinados recursos poéticos utilizados pelo autor, característicos da poesia contemporânea.
Será proposta uma visão do Pantanal, não na sua exuberância ecológica e turística,
mas sim trazendo seus pequenos seres. Nesse sentido, será visto, então, em que medida a
cultura do pantanal e os animais dessa região estão, pois, imbricados em sua obra. Seu
bestiário revela, a princípio, uma tendência simbólica dos animais, mas que vai partindo para
uma corrente de incorporação, em que o homem não ocupa um lugar privilegiado, mas sim
uma relação de comunhão e entendimento acerca do animal.
A intenção principal desta parte do estudo consiste em elucidar o bestiário de
Barros na obra supracitada, observando-se as influências motivacionais e simbólicas, que
fazem coro ressonante do imaginário medieval.
Para isso, foi proposta uma análise com dois tipos de leitura: uma horizontal –
abordando o conjunto de obras de Barros, a fim de capturar a cosmovisão de sua obra –, e
outra vertical – explorando, em profundidade, uma obra literária por acreditar que haja nela a
reunião de um projeto político e estético do autor.
Haverá, ainda, o interesse em perceber se o autor pode ser considerado um adepto
das tendências pós-modernas, pela sua forma inovadora de narrativa fragmentada. Deste
modo, as questões do simbolismo animal medieval serão trabalhadas, visando compreender
como meandros do texto promovem as especificidades da obra e as intenções do autor.
O direcionamento de Joyce E. Salisbury (1994), por intermédio do livro The Beast
Within: Animals in the Midle Ages, também foi uma leitura providencial para se propor a
discussão sobre o tema, tanto na análise de Manoel de Barros quanto de Moacyr Scliar, pois, a
17

partir desta leitura, nota-se muitas coincidências de textos desses autores com textos do
período medieval:

É óbvio que, nas realizações modernas, o espírito, a figuração, o molde


narrativo/descritivo com que se apresentam os bichos diferem em muito da forma
como eles apareciam nos textos medievais. Se antes a preocupação era de ordem
basicamente instrutiva e moral, e os animais apareciam como símbolos de defeitos
humanos, com o tempo foram adquirindo certa autonomia em relação às fraquezas
que deviam representar e servindo a caracterizações positivas da vida e da natureza.
Como bem observa Maurice, parece ter concorrido para isso a preocupação
ecológica dos tempos modernos em função da qual ocorreu uma espécie de
reabilitação simbólica de alguns vilões clássicos (WOENSEL, 2001, p. 14).

É nesta conjuntura, que o imaginário animal da medievalidade na literatura


brasileira contemporânea será analisado, a partir de diferentes óticas, nas figurações mais
relevantes, em que escritores fazem a ponte entre a arte medieval e a contemporânea,
aproveitando ideias e recursos de ambas as épocas.

Apresentação de análise comparativa

Os critérios básicos que delimitam este estudo colocam-se dentro do contexto da


literatura brasileira, com autores da contemporaneidade que trabalham a temática do animal.
Com base nesses parâmetros, se escolheu os seguintes autores: Moacyr Scliar e Manoel de
Barros. Os dois preenchem minimamente esses critérios.
A escolha desses autores foi feita com base numa pesquisa no âmbito da literatura
brasileira. A lista de escritores que se cotejaram e tinham como temática a figura do animal
era muito ampla para os propósitos deste estudo. Porém, numa revisão mais exaustiva, alguns
foram excluídos por não preencherem os requisitos almejados nesta pesquisa. Aqueles que
trabalhavam com a figura do animal num aspecto meramente representativo do homem foram
descartados por oferecer um tratamento distinto do que aqui se oferece. Com os demais
escritores, percebeu-se que seu tema central não era o animal, sendo este apenas um elemento
a mais dentro de outra temática. Finalmente, ficaram os dois autores anunciados
anteriormente, pois se acredita que estes deram um tratamento especial ao animal, e se
inseriram nas delimitações do objeto de estudo.
No que diz respeito às obras, elas foram escolhidas com base numa pesquisa sobre
o conjunto das obras de cada um dos dois autores. O objetivo deste estudo não é tratar da obra
completa de cada autor, mas sim de uma específica de cada um deles. A escolha dessas obras
foi feita com base em textos onde o animal, representado literariamente, é um agente
18

catalisador de encontros. Os leões, as ursas, as lesmas, as lagartixas ou os caramujos, todos


eles, numa relação de reciprocidade, afetando e sendo igualmente afetados. Também, a
seleção se fez pensando nos gêneros em que tais seres da natureza são inseridos: no conto e na
poesia, haja vista que os animais são figuras recorrentes na literatura, disseminados em todos
os gêneros literários.
O método de análise deste estudo leva em conta a singularidade da cada uma das
obras, que fazem parte de um contexto histórico particular. Cada um dos autores possui uma
vasta obra, onde cada uma, por si só, seria suficiente para escrever várias dissertações.
Moacyr Scliar, num intervalo de 28 anos, de 1972 a 2000, publica 16 volumes de ficção
longa, o que corresponde a, praticamente, um livro a cada dois anos. Somadas as coletâneas
de contos e crônicas, os ensaios de divulgação e os livros infanto-juvenis, Scliar aparece como
grande nome de sua geração. Neste percurso, é possível notar uma mudança de olhar, pois há
textos de ficção que se desenvolvem pela glosa, principalmente, de materiais oriundos da
historiografia até estudos de orientação sociológica ou antropológica (MELO, 2004, p. 03).
Com Manoel de Barros, acontece o mesmo. Em face de uma produção literária
iniciada em 1937, que precisou esperar o final do século passado para atingir o público e
começar a ver reconhecida a sua importância, destaca-se que o ato crítico exerce um préstimo
fundamental. É possível perceber em seu discurso um campo de possibilidades de visões e
características diversas, como marcas particulares de grupos, regiões geográficas, pois sua
obra destaca as nuanças e a geografia do pantanal combinadas numa estética viva. O pantanal
e seus seres afloram no seu desenvolvimento poético e, assim, permite, a quem se debruça em
sua poesia, uma visão privilegiada dos modos de constituição e de sua construção linguística.
Assim, a natureza é a matéria-prima para a poesia barreana. Mas, essa natureza não é em
absoluto, vista com olhos que contemplam sem agir, ficando numa enumeração de espécies.
Pelo contrário, é uma natureza que pode ser vivenciada.
Trabalhar com dois autores, no lugar de apenas um, oferece a possibilidade de
enriquecer a compreensão do tema de estudo e descobrir neles essa capacidade simbólica de
retratar os seres da natureza para se chegar ao entendimento de outros mundos. Por sua vez, o
enriquecimento deste estudo radica-se, justamente, na diversidade de compreensão que
oferece o tema do animal, nas duas obras estudadas. Afinal, como ressalta Antonio Candido,
em Literatura e sociedade:

Uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para
plasmar elementos não literários: impressões, paixões, ideias, fatos, acontecimentos,
que são a matéria-prima do criador. A sua importância quase nunca é devida à
19

circunstância de exprimir um aspecto da realidade, social ou individual, mas a


maneira por que o faz. No limite, o elemento decisivo é o que permite compreendê-
la e apreciá-la, mesmo que não soubéssemos onde, quando, por quem foi escrita.
Esta autonomia depende, antes de tudo, da eloquência do sentimento, penetração
analítica, força de observação, disposição das palavras, seleção e invenção das
imagens; do jogo e elementos expressivos, cuja síntese constitui a sua fisionomia,
deixando longe os pontos de partida não literários (CANDIDO, 2006, p. 33).

Os dois autores, com a palavra como ferramenta, iniciam uma viagem para o
encontro com o animal, com características literais utilizadas como exemplos e que assumem
uma significação simbólico-alegórica, que nem sempre se traduz de forma fixa e definida. São
dois autores que trabalham o animal como tema, mas a partir de uma particularidade literária
exclusiva de cada um deles. Moacyr Scliar destaca esse tema em seus contos, embora, como
já foi dito, também tenha escrito novelas, crônicas, dentre outros; e Manoel de Barros, com
sua poesia.
O recorte investigativo pelo viés do animal, nos diferentes contextos literários em
estudo, permite abrir janelas do conhecimento e, pela dinâmica do aproximar e do distanciar,
torna-se possível construir uma visão crítica contística e poética.
Essa diversidade subsidia também ao enriquecimento da literatura brasileira. O
aporte que estes dois autores fazem a ela ajuda a crítica literária da mesma forma, como uma
contribuição a partir de distintas tradições literárias dentro do contexto brasileiro sobre uma
abstração filosófica levada à literatura. Temporalmente, estes dois autores pertencem a uma
mesma época. Eles nasceram durante a primeira metade do século passado e, portanto, são
contemporâneos entre si. Cada um deles ocupa um lugar importante na tradição literária
brasileira contemporânea.
Finalmente, são com olhos críticos sobre a sociedade, com olhos ―de lince‖, que
esses autores dão uma visão geral sobre o que se poderia chamar de um bestiário brasileiro.
Desta forma, não se pode deixar de considerar, analisar e interpretar os textos em seus
contextos, ressaltando as semelhanças e diferenças, pois é por meio dessa transformação
cultural e por entrecruzamentos de discursos, de diálogos e de culturas, que se poderá
entender sobre a diversidade social e essa inquietude nos dois autores. Essa preocupação pelo
animal representado literariamente será o fio condutor deste estudo.
Como realidade própria, a obra de Manoel de Barros, bem como a de Moacyr
Scliar, exprime, cada qual, uma posição diante de certos temas por meio dos quais se entrevê
suas mais ultimadas explicações e finalidades acerca da vida humana. Desse modo, sabendo
que ambos compartilham de uma visão medieval da natureza, que a veem como
―essencialmente múltipla, isto é, formada por um agregado de seres individuais, cada um
20

possuindo as suas peculiares propriedades de acordo com a sua própria natureza‖


(FONSECA, 2000, p. 76), será possível compreender essa imagem de homem e da sociedade,
que se compõe como realidade existencial na literatura contemporânea.
Sendo assim, após essa explanação preliminar do estudo em suas diretrizes gerais,
terá início, então, um safári literário buscando realizar um estudo descritivo, analítico e
crítico-interpretativo do imaginário e do simbolismo da imagem do mundo animal na
literatura brasileira contemporânea. Esses serão os pontos norteadores da escrita elaborada nas
páginas subsequentes.
21

1 A EVOLUÇÃO DOS BESTIÁRIOS MEDIEVAIS:


Uma breve introdução

Para cada virtude e para cada pecado há um exemplo


tirado dos bestiários, e os animais tornam-se figuras do
mundo humano.
Umberto Eco

A queda da sociedade antiga representada pelo declínio do Império Romano, no


século V, e a ascensão do Cristianismo podem ser assinalados como alguns dos episódios
mais expressivos da história da Europa Ocidental. Esses eventos ligam-se no longo período
conhecido como Idade Média, o primeiro por ter sido um dos fatores que deu início à Alta
Idade Média e o segundo por ter marcado profundamente a cultura desse período, pois foi
uma época marcada pela supremacia da Igreja Cristã e pela estruturação econômica e social
das relações feudais. Nesse período, a interpretação da natureza pelo pensamento imaginário
medieval ditava suas regras à sociedade, cultura e modo de viver da coletividade. A sociedade
medieval, majoritariamente rural, na esteira dessas ideias, exortava o conhecimento da
surpreendente obra que é o mundo, descobrindo na natureza manifestações da perfeição
divina, o principal foco de seu estudo.
No período medieval, as ideias políticas reproduziam concepções com traços
religiosos, em que as origens e os fundamentos do poder respondiam a uma ordem e
hierarquia de representação divina (WOLKMER, 2001, p. 22). Dessa maneira, quando o
assunto era a natureza, a mentalidade religiosa dos medievos acreditava que aquela poderia
intervir na economia e na sociedade da época. Em virtude desse respeito e concernimento, a
natureza era, por essa razão, representada como categoria de manifestação do divino, pois os
padres da Igreja entendiam e quiseram crer a natureza como uma revelação dos desígnios de
Deus. É nesse sentido que, antigas ideias do mundo pagão foram reformuladas com finalidade
doutrinária, havendo uma elevação da religião cristã como detentora da explicação
fundamental do mundo.
A ascensão do Cristianismo, que vem a ser a mais espetacular e respeitável
religião da Idade Média, ocorrida entre os séculos II e V, adquirindo a categoria de religião
predominante da Europa, tanto numérica quanto culturalmente, torna-se um dos elementos-
chave para a análise de diversos momentos históricos. A elevação e difusão da religião cristã
consideradas nas marcas das tensões ideológicas se manifestaram no mundo ocidental,
ostentando um caráter tanto ao nível das mentalidades, quanto ao prático, socializando os
22

discursos referentes a grupos sociais distintos, unidos a um fenômeno maior, o fenômeno


religioso.
Subsequentes à expansão do Cristianismo, a supervalorização da natureza e dos
seus elementos, na vida quotidiana e espiritual da população, teve como resultado uma
diminuição do progresso da ciência e da zoologia, que foram deixadas de lado pelos cristãos,
todavia ocasionando um empenho particular em observar, interpretar a natureza e os animais
de forma simbólica e figurativizada, não obstante, o empirismo e o utilitarismo que
caracterizavam a vida dos medievais.
Desse modo, os seres da natureza foram, na vertente do simbólico, entendidos
como manifestações da potência criadora da divindade. Portanto, para o homem medieval, a
lógica do que seria a natureza apresentava-se num sentido doutrinário, à medida que se
portava de caracteres da ideologia cristã.
Visto isso, torna-se necessário salientar o fato de que, a partir da influência do
pensamento mais culto da cristandade medieval, os animais foram representados de forma
simbólica, muitas vezes, em detrimento da sua realidade empírica. Foi, de certo modo, esse
realismo simbólico o responsável por cumprir, epistemologicamente, finalidades do
entendimento intelectivo da natureza, em que intelectualidade era sinônimo de teologia.
Constata-se, por conseguinte, uma visão peculiar da natureza, segundo a qual o
imaginário equivalia à realidade, muitas vezes, impossível, ou mesmo desnecessária, de ser
investigada. Em se tratando dos animais, consoante a isso, por exemplo, a realidade natural
desses empenhava-se com figurativismos, figuralidades e simbolismos, que em virtude da
religião constavam-se moralisticamente doutrinários. Assim, para cada planta, pedra ou
animal, deveria haver um vício ou virtude que pudessem lhes corresponder anagogicamente.
Charles Raven, identificando as direções teleológicas desse conhecimento teológico da
natureza, afirma que ―a atitude geral em relação à natureza era emblemática. [...] os homens
buscavam na natureza não o conhecimento, mas a edificação; não a ilustração, mas a
exemplificação de ideias preconcebidas‖ (RAVEN cit. CLAIR, 1967, p. 12 apud FONSECA,
2000, p. 75).
Para a Idade Média, assim perspectivada, importante seria a tentativa de
harmonizar a natureza como elemento essencial da fé, principalmente, como forma de
compreender a realização entre o divino por intermédio da realidade material.
Dessa forma, tendo-se por base os comentários acima realizados, o que se
abordará a seguir será um panorama das principais fontes de informação sobre o
conhecimento do mundo animal, fontes essas oriundas da Antiguidade ou surgidas no próprio
23

período medieval. Tudo isso, com a finalidade de investigar sobre a gênese, evolução e
finalidade estético-ideológica do imaginário e do simbolismo animal na tradição bestiária
medieval e dos pontos da tradição do simbolismo animal ou bestiário medieval.
Durante a Idade Média, na Europa Ocidental, os cristãos acreditavam que as
formas de conhecimento e de verdade estavam patentes nos Testamentos e nos ensinamentos
dos Padres da Igreja. A relevância da obediência como um dever determinado por Deus pode
ser encontrada nos escritores do Novo Testamento. Neste pequeno trecho de São Paulo, ficam
evidentes os fundamentos para a filosofia política cristã (WOLKMER, 2001, p. 16):

Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que
não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. Assim, aquele que
resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se
opõem, atraem sobre si a condenação. Em verdade, as autoridades inspiram temor,
não, porém a quem pratica o bem, e sim a quem faz o mal! Queres não ter o que
temer a autoridade? Faze bem, e terás o seu louvor. Porque ela é instrumento de
Deus para o teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva a
espada: é o ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que
pratica o mal. Portanto, é necessário submeter-se não somente pelo castigo, mas
também por dever de consciência (ROMANOS, 13:1-5).

Desse modo, uma exegese crítica das influências desta tradição bestiária terá,
inicialmente, que começar pela Bíblia, atentando ao fato de que a leitura das Escrituras era
efetuada não só no seu sentido literal e histórico, como também na acepção moral e alegórica,
sendo estes dois aspectos de primordial importância na transmissão do bestiário bíblico.
O Antigo Testamento, o que mais trouxe informações sobre os animais,
influenciando direta e indiretamente os escritos medievos, era entendido como um anúncio do
Novo. Quer dizer, o Novo Testamento, que possuía vinte e sete livros escritos por diversos
autores em diferentes épocas e lugares, é um enorme espólio daquele. Ao contrário do Velho
Testamento, o Novo foi escrito num pequeno espaço de tempo, por volta de um século ou um
pouco mais.
As narrativas bíblicas foram percebidas, no período medieval, segundo um
procedimento interpretativo que valorizava a leitura simbólico-alegórica das revelações
divinas, como forma de entender seu conteúdo. Afinal, o livro, na Idade Média, possuía um
valor simbólico e sagrado inigualável, tendo na Igreja a principal responsável pela ascensão
do Cristianismo como a religião da Sagrada Escritura (VARANDAS, 2006b, p. 4).
Sem dúvida, a herança bíblica, a exemplo do pronunciamento bíblico conhecido
como ―Gênesis‖, que descreve as origens dos Céus e da Terra, a criação dos animais e da vida
24

humana em um mundo perfeito, assim como o início do pecado, ainda estava muito presente
nas formas de se entender a cultura daquele período.
Nesse livro, cuja autoria é tradicionalmente atribuída a Moisés, encontra-se uma
importante referência aos animais na narrativa em que Deus, no quinto dia, após a criação do
céu e da terra, criou as ―almas viventes segundo as suas espécies, animal doméstico, e animal
movente, e animal selvático da terra, segundo a sua espécie‖ (GÊNESIS, 1:24). Assim, no
quinto dia, surgiram os animais terrestres, caracterizados como selváticos e domésticos. Mas,
as obras divinas ainda não haviam terminado. Deveria surgir ainda uma última espécie
notável. Então, logo após, no sexto dia, Deus criou o homem, ―à nossa imagem e semelhança,
para que ele presida aos peixes do mar, às aves do céu, às bestas, e a todos os répteis que se
movem sobre a terra, e domine em toda a terra‖ (GÊNESIS, 1:26). Depois disse a esse
homem, chamando-o Adão: ―enchei a terra, e tende-a sujeita a vós, e dominai sobre os peixes
do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra‖
(GÊNESIS, 1:28). Antes de dar ao homem a mulher, após ter ―formado da terra todos os
animais terrestres, e todas as aves do céu, ele os levou até Adão, para ver como os havia de
chamar. E o nome que Adão pôs a cada animal é o seu verdadeiro nome‖ (GÊNESIS, 2:19).

Figura 1: Adão dá nome aos animais.


(Aberdeen Bestiary)
25

Notadamente, em alusão a esta figura acima, estava implicado o conceito


medieval que dizia respeito à separação entre a natureza humana e a animal. Conforme se
pode observar, dada a presença dessa figura nos bestiários, pode-se dizer que Adão, ao
nomear os animais, vincula a criação ao intento de suas metáforas com a finalidade precípua
de edificação moral. Por outro lado, é de se reconhecer a enorme importância da interpretação
provinda da etimologia através da qual é estabelecida uma ligação entre a coisa ou objeto
(neste caso, o animal) e a sua realidade enunciada pela linguagem verbal (VARANDAS,
2006b, p. 29).
A imagem de Adão nomeando os animais incorpora, consequentemente, a voz e a
coisa visível. Além disso, a demarcação por meio de linhas entre a figura humana e as figuras
animais é também uma forma de separar o homem, dotado de razão divina e, portanto,
superior. Apesar disso, não se deve entender que essa ilustração não apresente uma
perspectiva de raiz neoplatônica, que, respaldada, por exemplo, em Santo Agostinho, assevera
que todas as criaturas, por mais estranhas e curiosas que possam parecer, foram criadas por
Deus e, como tal, exprimem a beleza suprema da criação divina (VARANDAS, 2006b, p. 29).
Assim, em ―Gênesis‖, a narrativa dos animais precede a do homem que,
representado por Adão, nomeia-os, marcando a superioridade do ser criado com alma. Afinal,
como se pode observar, Deus ordenou Adão e Eva, e aos seus descendentes, que tivessem não
só o comando, mas também o domínio sobre todos os seres da natureza que movem sobre a
terra (GÊNESIS 1:28).
Com o livro de ―Gênesis‖, estabelece-se a relação homem-animal que, em última
instância, traduz e justifica o modo de vida do povo em sua interação com a natureza. Visto
que, com a Queda do Paraíso, inicia-se a nova vida humana fora do jardim do Éden, quando,
ao sentir fome, Adão e sua descendência tiveram de trabalhar para conseguir o alimento.
Desenvolve-se, então, uma nova ordem, que herdaria a natureza pecaminosa de Adão, em que
o homem haveria de subjugar a terra para sua subsistência, batalhar pelo domínio sobre toda a
criação e alimentar-se de ervas e frutos. A luta pela sobrevivência na natureza, contra as
adversidades, a busca de alimentos, a procura de agasalho contra o frio e a chuva, levou o
homem a desenvolver meios de defesa. Logo, a humanidade foi transpondo novos desafios,
concedendo aos animais um papel frente às suas necessidades, levando-os a serem
aproveitados no vestuário, na caça, agricultura e alimentação.
Desse modo, o Antigo Testamento imprimiu ampla influência na Idade Média,
apresentando animais de diversas espécies e funções, trazendo animais desconhecidos e
exóticos da fauna Ocidental. Todavia, apesar de ter sido a tradição do Velho Testamento a que
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mais contribuiu para o bestiário, o Novo Testamento também transmitiu fortes imagens
animais aos autores dos bestiários medievais. Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, a sua
presença nos milagres, nas parábolas e nas frases de Cristo e dos seus discípulos, como a
pomba que surge na hora do batismo de Jesus no Jordão, representando o Espírito de Deus.
Vale ressaltar também o milagre da expulsão dos demônios de dois possessos, efetuado por
Cristo, que os enviou para uma vara de porcos que depois se lançaram num precipício, e
morreram nas águas do mar. Dos seus ensinamentos, ressaltam-se as referências aos cães que
lambem as feridas de Lázaro ou os pardais de pouco valor. A respeito das frases atribuídas a
Jesus Cristo, destacam-se as pérolas que não devem ser jogadas aos porcos para que estes não
as pisem com os seus pés e a comparação do Rei Herodes a uma raposa, que nos bestiários é
mencionada como um animal manhoso e matreiro, sendo alegoria do demônio, que alicia,
engana e leva à danação do cristão incauto.

Figura 2: A raposa finge a morte para capturar


as aves que lhe começam a debicar o corpo.
(Aberdeen Bestiary)

Como se pode notar, a palavra bíblica assumiu um papel de grande importância


em todas as instâncias para o homem medieval. Afinal, o período medieval, dividido entre o
pecado e a salvação, carregado com o maniqueísmo que sempre impregnou o Cristianismo,
familiarizava-se naturalmente com os ensinamentos bíblicos. Para o medievo, ser sábio era
seguir e usar em sua vida diária a palavra de Deus, como bem caracteriza Johan Huizinga:
27

Quando o homem da Idade Média quer conhecer a natureza ou a razão duma coisa
não a observa para lhe analisar a estrutura íntima, nem para inquirir sobre as suas
origens; olha antes para o céu, onde ela brilha como ideia. Quer se trate duma
questão política, moral ou social, o primeiro passo a dar é reduzi-la sempre ao seu
princípio universal (s.d., p. 221).

Nesse sentido, os exemplos de Cristo, dos santos, dos papas e da própria natureza,
encontrados, sobretudo, nas enciclopédias e bestiários, serviam de guias práticos de moral.
Desse modo, pode-se conferir como os animais se tornaram um rico repositório da exegese
bíblica, motivando significações relativas ao contexto em que eram referidos. A respeito dessa
particularidade, qual seja, a de utilizar os animais para difundir lições de moral, na literatura
de cunho dogmático-doutrinário, era possível perceber, entre as diversas formas de expressão,
que muito da doutrina bestiária era utilizada em exercícios escolares, vários deles usados
como formadores do espírito e da inteligência.
Outras fontes para a criação do bestiário, além do legado bíblico, são as obras dos
autores da Antiguidade Clássica, pois, tanto a filosofia política quanto outras áreas da cultura
e do conhecimento científico estavam sob o controle e sob influência da teologia oficial e das
doutrinas da Igreja. Dessa forma, a herança da Antiguidade Clássica não foi totalmente
abandonada ou esquecida, pois se fez presente na interpretação e na obra dos grandes
pensadores cristãos que souberam adaptar para a teologia cristã a obra de Platão (427-347
a.C), Aristóteles (384-322 a.C.), Sêneca (4-65 d.C.), Cícero (106-43 a.C), Plotino (205-270
d.C) e outros (WOLKNER, 2001, p. 15).
Jacques le Goff corrobora esse fato afirmando que tanto os professores medievais,
quanto os clérigos, utilizavam não somente obras cristãs, mas valiam-se de estudos das
autoridades greco-latinas, por considerá-las trabalhos científicos:

Se estes mestres que são clérigos, que são bons cristãos, preferem como text-book
Virgílio ao Eclesiastes e Platão a Santo Agostinho, não o fazem apenas por estarem
persuadidos de que Virgílio e Platão contêm ensinamentos morais ricos e que, por
dentro da casca existe o miolo...; fazem-no porque, para eles, a Eneida e o Timeu são
antes de mais nada obras científicas – escritas por sábios e apropriadas para serem
objeto de ensino especializado, técnico-, enquanto as Escrituras e a Patrística, que
podem ser ricas em matéria científica ..., o são apenas secundariamente (s.d., p. 31).

Sem dúvida, eles produziram obras artísticas incomparáveis e um pensamento


filosófico que sustentou toda a filosofia ocidental. Autores como Sófocles (495-406 a.C.),
Ésquilo (525-455 a.C.) e Eurípedes (485-413 a.C.), mantêm-se até hoje como referências
obrigatórias na dramaturgia, assim como Sócrates (470-399 a.C.), Platão e Aristóteles que
juntos formam o tripé do nascedouro da filosofia no Ocidente. Não é surpresa que tais autores
28

tenham se mostrado marcantes para a concepção da natureza e de seus seres, com sua
presença atestada na Idade Média:

Tal influência estendeu-se por toda a Idade Média. É certo, porém, que muitas das
descrições de animais transmitidas pelos autores pagãos revelavam-se fantasistas e
fabulosas, assim como deles foi recebido um bestiário constituído por monstros e
animais prodigiosos. No entanto, nunca os autores da Alta Idade Média
questionaram as informações herdadas da Antiguidade, dados os seus autores serem
considerados como ―autoridades‖, no que respeitava ao conhecimento do mundo
animal (CHAMBEL, 2006, p. 6).

Entre as principais autoridades que colaboraram para o desenvolvimento deste


simbolismo animal está Aristóteles que estudou de maneira vasta os animais, especificamente,
observando-lhes o seu comportamento. Aristóteles demonstrou, na sua abordagem do mundo
natural, um espírito científico, crítico e não dogmático, privilegiando a observação direta dos
seres. Não aceitou que a realidade captada pelos sentidos fosse apenas um mar de aparências
sobre as quais nenhum verdadeiro conhecimento se pudesse constituir. Bem pelo contrário,
para ele não havia conhecimento sem a intervenção dos sentidos. Acreditava que a ciência
teria de ser o conhecimento dos objetos da natureza que rodeia o ser humano. É certo, porém,
que recolheu, igualmente, dados provenientes de diversas fontes, pelo que não deixou de
transmitir informações errôneas. Entretanto, pelo espírito crítico que desenvolveu, pela
observação que praticou, assim como pelas relevantes contribuições à ciência, não se
preocupando com os animais fabulosos e com as tradições fantasistas sobre o comportamento
animal, é considerado o verdadeiro fundador da zoologia, levando-se em conta o sentido
etimológico da palavra, uma vez que a ele se deve a primeira divisão do reino animal.
Dessas diversas influências acerca do mundo animal, os bestiários, sem dúvida,
são tributários também de um conhecido autor do século V a.C., Heródoto (484-420 a.C.). O
pai da História descreve características físicas e habituais em suas histórias, com uma
variedade de informações acerca de uma enorme quantidade de animais da natureza, muitos
deles não conhecidos até aquele momento pela fauna ocidental europeia.
No início do quarto século antes de Cristo, Ctésias de Cnidos, um médico grego,
escreve um tratado versando, exclusivamente, sobre a Índia, agrupando várias ideias e lendas
do mundo grego e persa, descrevendo monstros como os cinocéfalos, homens com cabeça de
cachorro, animais como os unicórnios, os grifos, e as mantícoras, bestas com face de um
homem de olhos brilhantes e azulados, o corpo de leão e o rabo como o ferrão do escorpião.
29

Figura 3: Mantícora.
(Bestiário de Oxford. Bodleian Library)

Contudo, segundo alguns historiadores, o mais importante tratado antigo sobre a


Índia que influenciou os bestiários foi produzido por Megástenes. A herança de seu livro
sobreviveu nas obras de Plínio, o Velho (23-79 d.C.), entre outros, e é fonte das descrições
das raças fabulosas, de divindades e animais encontrados no Oriente e em partes
desconhecidas do planeta, até aquele momento.
Naturalistas antigos, como os latinos Solino, Eliano e Plínio, mostram-se também
importantes fontes clássicas de informações sobre os animais para os autores medievais, assim
como os poetas: Homero (8 a.C.), Virgílio (70-19 a.C.), e, com uma gama de exemplos
moralizantes, Ovídio (43-a.C.), que também transmitiu aos autores cristãos um amplo número
de obras sobre a natureza e os seus seres.
O universo intelectual medieval inspirava-se nas fontes clássicas para impulsionar
sua ciência. Nesse sentido, Curtius, após fazer referência a essas ―autoridades científicas‖ da
Idade Média, assim sintetiza o seu valor para a época:

Os autores, todavia, não são somente fontes de saber; são um tesouro da ciência e
filosofia da vida. Encontravam-se nos poetas antigos centenas e milhares de versos,
que ofereciam, em forma condensada, experiências psicológicas e regras de vida
(1957, p. 60).

Pode-se verificar que o legado antigo revelou-se, consequentemente, de uma


notabilidade determinante para os autores da Idade Média. Isso porque lhes foi transmitida
uma variedade de animais comuns e fabulosos, associados às descrições dos seus
30

comportamentos e características físicas, reais ou imaginárias. No entanto, a cultura europeia


da Idade Média não se preocupou em adotar uma postura crítica, o que fez foi cristianizar, por
meio do método simbólico-alegórico, as informações relativamente à natureza e descrições
dos animais, quer dizer, realizaram uma simples subsunção do espólio antigo nos bestiários.
Outra grande influência marcante para os autores medievais dos bestiários foi o
conhecimento transmitido pelos primeiros grandes pensadores cristãos, os Padres da Igreja,
que defendiam o conhecimento da filosofia pagã, na medida em que viam a possibilidade de
utilizá-la a serviço do Cristianismo.
Na Patrística, período do pensamento cristão que se seguiu à época
neotestamentária, e chega até ao início da Escolástica, isto é, os séculos II-VIII, os Padres,
voltados para uma atitude intelectual ortodoxa e uma incorporação rígida à tutela da Igreja,
buscam desenvolver, sistematicamente, uma doutrina que sirva de fundamento filosófico à
teologia, procurando criar novas verdades para a religião cristã, impondo e explicando
dogmas que regulamentam e institucionalizam a fé católica (GILSON, 1995, p. 203).
Neste período patrístico, pode-se dividir os Padres em dois grandes grupos
constituídos pelos pensadores cristãos de inspiração grega, São Justino (100-165 d.C.), São
Irineu, Clemente de Alexandria (150-215 d.C.), Orígenes (185-253 d.C.), São Basílio (330-
379 d.C.) e tantos outros, e os pensadores cristãos latinos, Tertuliano (155-222 d.C.),
Lactâncio (250-320 d.C.), Santo Ambrosio (340-397 d.C.), São Jerônimo (347-420 d.C.) e
Santo Agostinho (354-420 d.C.) (TRUYOL Y SERRA, 1976, p. 260 apud WOLKMER,
2001, p. 22).
Combinado com a fé cristã, o estudo dessa filosofia permitiria o acesso à
argumentação dialética, persuadindo e convencendo racionalmente os crentes, descrentes e
hereges, à aceitação da imensidão dos mistérios divinos de natureza dogmática.
Nesse sentido, destacam-se as influências do pensamento de Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino (1227-1274).

Com a incorporação do legado cultural clássico e o desenvolvimento de uma ciência


medieval em diversos ramos do saber humano, como Lógica, Filosofia e Retórica,
dentre outros, a transmissão desse novo conhecimento despertou uma busca à
sabedoria, quer através de discussões e debates dentro das universidades e escolas
seculares, quer nas ruas e tavernas. Como monumento maior da cultura de então
temos a Summa theologica, de São Tomás de Aquino, onde a ciência do homem é
embasada pelo conhecimento da sabedoria divina (BRAGANÇA JÚNIOR, 1997, p.
45).
31

Com Santo Agostinho, o pensamento religioso medieval chega ao ápice da


Patrística influenciando o pensamento teológico da Idade Média e da Escolástica. Assim, a
ideia de que a cultura legada pelos autores clássicos poderia ser aproveitada pelos cristãos
sempre foi levada em conta na Idade Média, com pensamentos clássicos aproveitados pelos
cristãos e postos a serviço do Cristianismo.
Ainda no período da Patrística, Santo Agostinho fundiu o caráter especulativo da
Patrística grega com o caráter prático da Patrística latina, concebendo o mundo como um livro
de origem divina à semelhança das Sagradas Escrituras. No entanto, o pensamento de Santo
Agostinho valorizava uma via de interiorização mística que tirava o foco de qualquer tentativa
de apreciar o mundo em direção a explanações mais objetivas, ou seja, de atitudes antagônicas
face à pesquisa científica.
Ao longo da Idade Média, os teólogos procuraram entender se haveria a
possibilidade de Deus ter dado alma, não somente ao homem, mas também aos animais. Num
estudo acerca do assunto, o filósofo São Tomás de Aquino procurou concluir sobre o tema,
afirmando que o homem não é somente um corpo, possui uma alma imortal, criada para viver
para sempre na glória de Deus. Diz que o homem não foi criado para se contentar apenas com
o prazer sexual passageiro; diferindo dos animais, cuja alma é puro desejo não disciplinado
pelo pensamento, devendo sua existência a uma busca incessante por uma vida de luxúria sem
satisfação, de vontade sem direção e, pelo fato de o animal não ter a razão, o homem podia
usá-lo, domesticá-lo e até matá-lo. Tomás de Aquino, no século XIII, resgata a tradição
aristotélica ao referir-se à morte dos animais, entendendo que ―as plantas existem para
subsistência dos animais [...] os animais existem para o bem do homem [...] e para seu uso e
alimentação‖ (ARISTÓTELES, 1990, p. 75). Nesse sentido, os animais poderiam ser
equiparados à madeira e às pedras, estando a serviço dos homens para os mais variados
abusos, como se verificou nos séculos seguintes.
Dessa forma, ao passo que Santo Agostinho se fundamenta em Platão e São
Paulo, divulgando a fé como instrumento de compreensão teológica, São Tomás de Aquino se
embasa em Aristóteles por intermédio das versões árabes e judaicas, apregoando a qualidade e
o uso humano da razão. Aquino distancia-se da visão pessimista agostiniana sobre a natureza
humana, pois ainda que o homem tenha caído no pecado é capaz de discernir o bem e o mal, e
tendo como guia a razão (inspirada na luz divina) é possível conhecer a verdade e praticar a
virtude (BLACK, 1989, p. 65). Assim, esses dois nomes da filosofia cristã medieval, tornam-
se importantes responsáveis pelo resgate das filosofias de Platão e de Aristóteles,
respectivamente.
32

Portanto, o homem medieval liga o profano ao sagrado para se obter o


conhecimento por intermédio da religião. O sagrado orienta a vida humana e o homem (rei ou
vassalo, nobre ou clérigo) carece de acesso à verdade cristã para poder sobreviver na Terra. É
nesse sentido, que os bestiários buscam refletir atitudes, sentimentos, condutas, modos de agir
e de pensar, orientando o que conviria ou não a um cristão seguir.
Sendo assim, sem recusar o alicerce cultural proveniente dos textos da tradição
cristã-patrística, os autores medievais resgatam essas obras como fundamento para o
alargamento do horizonte cultural da época, cuja relevância ganha status quando se tem como
parâmetro a citação de Bernardo de Chartres, afirmando que ―somos anões que treparam aos
ombros dos gigantes. Desse modo, vemos mais e mais longe do que eles, não porque a nossa
vista seja mais aguda ou a nossa estatura maior, mas porque eles nos erguem no ar e nos
elevam com toda a sua altura gigantesca‖ (apud LE GOFF, s.d., p. 32).
Relativamente ao conhecimento dos seres da natureza, as fontes, anteriormente,
citadas sofreram várias adaptações. Isso porque, os livros medievais que tratavam do mundo
animal, a princípio, não se desgarraram da reprodução fiel do material de um protótipo – o
Physiologus. Essa matriz, uma peculiar e sumária compilação de escritos sobre animais,
buscada em fontes das mais variadas procedências, constitui um texto escrito, provavelmente,
no século II, na Alexandria. De autoria anônima, sabe-se que a primeira notícia do
Physiologus apareceu no século V, em uma citação realizada por Rufinus de Aquileia (345-
411). Esse livro, imprecisamente traduzido por O Naturalista, influenciou de forma decisiva a
visão letrada e popular do mundo animal na Idade Média, vindo com o correr dos séculos, a
transformar-se num gênero literário bastante conhecido – o bestiário medieval.
No Physiologus, há menção de, aproximadamente, quarenta e nove animais,
número que varia dependendo das diversas versões, efetuadas, conjuntamente, com algumas
referências a plantas e pedras. A quase totalidade dos animais nele apontada pertence ao
domínio dos selvagens, sendo escassos os domésticos e os mais familiares ao homem. Por
outro lado, também se encontram presentes nele animais fabulosos.
A grande inovação do Physiologus incidiu no fato de apresentar os seres naturais
de acordo com uma estrutura conjugada. Originalmente, era um tratado de história natural que
descrevia uma série de animais, mas, posteriormente, o próprio autor-compilador ou outro
autor anexou a essas exposições uma lição edificante cristã. Assim, cada descrição ―obedece a
um esquema padronizado, iniciando-se por uma citação da Bíblia, à qual se segue a expressão
‗O Physiologus diz que...‘ que introduz a descrição do animal, imediatamente seguida da sua
interpretação moral e alegórica‖ (VARANDAS, 2006b, p. 5). Desse modo, para se evidenciar
33

os dogmas da Igreja através dos animais, o Physiologus transmitia exemplos morais a serem
seguidos pelos fiéis.
As interpretações morais e alegóricas do Physiologus não eram fortuitas, mas
resultado de adaptações ou modificações anteriores, ou mesmo direta dos seres. Em certos
casos, tais interpretações eram totalmente arbitrárias, na medida em que manipulavam
significações anteriores, provindas de outras tradições, revelando, desse modo, a sua
intencionalidade catequética com um tempero posto por intermédio da imaginação do autor.
A zoologia do Physiologus servia, nesse nível simbólico, como ensinamento
doutrinário, empenhado no didatismo e na moralização do homem. Entretanto, apesar de
apresentar grande destaque ao lado didático e moral, os animais tornavam-se repositórios
simbólicos de vícios ou virtudes e fonte de ensinamentos religiosos e morais, não havendo
clara distinção entre as características e a sua explicação, aparecendo ambas, normalmente,
imbricadas. Na verdade, nas diferentes versões do Physiologus, privilegia-se a importância da
―natureza‖ simbólica, apesar de não se desprezar a sua realidade física responsável pelos
elementos de analogização e alegorização.
Acerca dos recursos de investigação e de documentação dos animais dos quais
dispunha o autor-compilador do Physiologus, o destaque e a exatidão de muitas das suas
descrições dos animais é surpreendente, principalmente no tocante às características, hábitos,
alimentação e à reprodução desses seres (WOENSEL, 2001, p. 23). As ilustrações, que estão
presentes em algumas versões do Physiologus, retratam de modo esquemático a figuração e a
situação dos animais, determinando-os, na medida necessária, para a individualização de
detalhes próprios e para explicitação do texto que os acompanha. Desse modo, a verdadeira
intenção não era proporcionar um real e detalhado conhecimento zoológico sobre tais animais,
o que importava, realmente, para o propósito da obra era o sentido alegórico e/ou simbólico
de características propiciadoras ao ensinamento moral e doutrinário.
Cita-se, como exemplo, a descrição do castor no Physiologus. Símbolo de um
bom cristão, disposto ao sacrifício de parte de seu corpo em troca da salvação de sua alma, a
descrição desse roedor é quase sempre a mesma. Seus testículos contêm um precioso remédio.
Quando é cercado pelos caçadores, corta com uma mordida seus próprios testículos, os joga
na frente dos caçadores e assim escapa fugindo. Porém, se acontecer de outro caçador o
perseguir, ele se levanta e mostra a virilha ao caçador, para ter sua vida salva novamente.
Este, vendo que lhe faltam os testículos, se afasta. Nesse sentido, é possível tirar da referida
descrição a devota lição: o cristão deve preferir o sacrifício da castidade ao castigo eterno por
causa do pecado mortal. Afinal, segundo o Physiologus, toda pessoa que anda conforme o
34

mandamento de Deus e quer viver castamente, corta de si mesmo todo vício e qualquer ato
impudico, e os joga na frente do diabo. Este, então, vendo que nada possui que é seu, se vai
confundido2.

Figura 4: O castor.
(Aberdeen Bestiary)

O Physiologus, além de tratar dos animais, também mencionava algumas plantas e


minerais, bem como suas respectivas propriedades, mas, com o decorrer do tempo, foi-se
desenvolvendo em versões posteriores um interesse exclusivo pelo mundo animal, sendo que
as seções dedicadas às plantas e pedras contidas no livro foram sendo separadas e deram
origem aos herbários e aos lapidários, cujo cunho moralizador e veio literário assemelhavam-
se aos bestiários (WOENSEL, 2001, p. 24).
As raízes do bestiário também têm como base a sabedoria e o conhecimento de
culturas pagãs. Inicialmente, como espécies de compilações anônimas, como é o caso dos
mais antigos exemplares, os bestiários cresceram com o correr dos tempos, com o acréscimo

2
De castore
Est animal quod dicitur castor mansuetum nimis, cuius testiculi medecine sunt aptissimi de quo dicit
Physiologus, quia cum venatorem se insequentem cognovit, morsu testiculos sibi abscidit, et in faciem venatoris
eos proicit et sic fugiens evadit. Si vero rursus contigerit ut alter venator eum prosequatur, erigit se et ostendit
virilia sua venatori. Quem cum viderit testiculus carere, ab eo discedit.
Sic omnis qui iuxta mandatum dei versatur et caste vult vivere, secat a se omnia vicia, et omnes impudicitie
actus, et proicit eos a se in faciem diaboli. Tunc ille videns eum nichil suorum habentem, confusus ab eo
discedit. Ille vero vivit in Deo, et non capitur a diabolo, qui dicit: persequar, et comprehendam eos. Castor dicitur
a castrando (Aberdeen Bestiary).
35

de contribuições de origens mais variadas, revelando-se, nesse sentido, como verdadeiros


palimpsestos, contendo material e sugestões advindas das mais antigas mitologias e da
tradição oral de épocas remotas (FONSECA, 2003).
Entre as culturas que contribuíram para sua evolução, tem-se o Egito, Roma e
Grécia para se citar apenas algumas das influências ancestrais mais seminais ao nascimento e
elaboração dos bestiários. Uma completa história do assunto contido nos bestiários, além da
tradição oral das várias partes do mundo conhecidas pelos medievais, teria que considerar
uma extensa tradição livresca e cultural (FONSECA, 2003). Entretanto, como é possível
notar, a fonte mais importante da qual se derivaram os bestiários foi o Physiologus. Devido a
sua notabilidade, logo surgiram traduções para várias línguas, tendo a primeira surgido,
possivelmente, na Etiópia, no século V, e as seguintes na Síria e na Armênia. A partir do
mesmo século V, apareceu, provavelmente, a primeira tradução para o latim, apesar dos
manuscritos latinos mais antigos sobre o tema circularem somente a partir do século VIII.
Contudo, para confirmar a existência desta versão latina anterior, encontra-se um documento
oficial, atribuído ao Papa Gelásius I (492-496), conhecido como o Decretum Gelasium, no
qual se apresenta uma condenação pública do texto, ao colocá-lo no Index Librorum
Prohibitorum. Mas é, de fato, apenas após o século VIII que começam a surgir as versões
latinas do Physiologus que, por sua vez, vieram originar o aparecimento do bestiário,
podendo-se, afirmar que o bestiário ou seus diversos exemplares possam ter o seu nome da
expressão ―Bestiarum Vocabulum‖ frase com a qual normalmente começava os exemplares
dos Physiologus. Segundo Angélica Varandas (2006b, p. 5), foi também a partir desse século
que o Physiologus foi vertido para línguas tão variadas como o anglo-saxão, o árabe, o
islandês, o provençal, o castelhano e o italiano, entre outras.
Com o passar do tempo, o Physiologus foi se modificando pouco a pouco até dar
origem ao bestiário. Essa transição é marcada também pela interferência das Etimologias de
Santo Isidoro de Sevilha. Haja vista que, a partir do século XII, os manuscritos do
Physiologus são reorganizados de acordo com a classificação proposta pelo bispo de Sevilha
no Livro XII intitulado ―Os animais‖ de sua obra Etimologias. Essa espécie de enciclopédia,
muito utilizada ao longo de toda a Idade Média, composta de vinte livros, cada um elucidando
as etimologias das palavras de um determinado campo do saber, influenciou os bestiários na
divisão dos capítulos, na importância atribuída à etimologia dos nomes dos animais, o tipo de
descrição da criatura e sua respectiva moralização.
T. H. White, em The Book of Beasts, aponta as mais importantes fontes autorais
que terão estado na origem do Physiologus e do Bestiário. Num quadro adaptado da obra da
36

obra intitulada Animal Lore in English Literature, de Ansell Robin, White corrobora a ideia
de o Bestiário ser herdeiro direto do Physiologus e das Etimologias de Isidoro de Sevilha,
conforme figura abaixo:

Figura 5: Fontes do Bestiário.


(T. H. White, The Book of Beasts)

Entretanto, se por um lado, é praticamente impossível estabelecer-se um limite


preciso, no que tange à passagem do Physiologus para o modelo ou modelos dos bestiários,
por outro lado, não há como negar, entre os estudiosos do assunto, o fato dessas duas
modalidades literárias apresentarem-se caracterizadas, pelo menos empiricamente, por
diferenças básicas que, particularmente, as identificavam.
Dentre essas diferenças, há de se observar inicialmente, quanto à extensão, pois os
bestiários expandiram-se muito além do Physiologus, isto é, muito além de seus 49 capítulos
originais. Foi inserida uma grande quantidade de informações adicionais, fato que tornou
comum surgir, mais tardiamente, bestiários com 150 verbetes sobre uma diversidade de
animais. Outra diferença relativamente aos bestiários consiste no fato de que este
habitualmente continha ilustrações, fato incomum no Physiologus. O bestiário distingue-se
ainda pelo seu modo característico de abordar seu assunto. No Physiologus, as considerações
37

referentes aos animais possuíam natureza teológica, visto começarem a descrever o animal
com a imediata intenção de relacionamento com um dogma cristão. Já nos bestiários as suas
interpretações simbólicas e figurativas tornam-se mais distintas por seu aspecto ético e moral
(GAZDARU, 1971 p. 269 apud FONSECA, 2003, p. 168).
A designação ―bestiário‖, que viria a ser adotada para as obras com características
semelhantes que se seguiram, surge pela primeira vez na Inglaterra, no início do século XII,
com a obra de um clérigo, Philippe de Thaon. É tido como o mais antigo bestiário medieval
que se tem notícia, escrito em francês, dividido em 38 capítulos e constituído por 3194 versos.
É o que mais se aproxima do Physiologus, sendo dedicado à rainha Aelis de Louvain, segunda
esposa do rei Henrique I da Inglaterra. A literatura bestiária produzida por Philippe de Thaon,
nesse bestiário, versifica sobre três grupos de seres da natureza: animais, aves e pedras.
Nesse bestiário, os animais, sejam eles existentes ou não, transcendem o nível
puro e simples da existência, para ocuparem representatividade de virtudes e vícios, alguns se
aproximando da imagem de Cristo e outros do Diabo, carregando em si características
próprias destes. Essa representatividade é evidenciada, por exemplo, na descrição do leão nos
bestiários, em que ―depois do nascimento ele não acorda até que o sol passe por três vezes,
mas, seu pai o acorda dando um rugido, então, assim dizendo, ele vem à vida, logo depois,
toma o controle de seus cinco sentidos e nunca fecha seus olhos, entretanto, frequentemente
ele dorme3‖ (THAON, 1900, p. 39).

Figura 6: O leão sopra para a boca da cria.


(MS. Bodley 764)

3
After birth he does not wake up until the sun circles for the third time, but his father rouses him by giving a
roar; then, so to speak, he comes alive, then he takes hold of his five senses and he never shuts his eyes however
often he sleeps.
38

É perceptível, nesse sentido, o paralelismo representativo dos leões com Jesus


Cristo, havendo uma ligação direta com a ressurreição de Cristo, o fato de os leões nascerem
mortos, e permanecerem assim por três dias, até o dia em que acordam com o rugido de seu
pai.
Enquanto os animais do primeiro grupo traduzem a imagem de infância humana,
por terem suas cabeças voltadas para a terra, preocupados apenas com o alimento, no segundo
grupo, as aves remetem à imagem da salvação, ou seja, do próprio Salvador. Dessa forma, é
possível, por exemplo, observar a águia como representação do filho de Maria.
No último grupo de seres da natureza, ao tratar das pedras, nota-se que estas
representam a estabilidade e a firmeza que enfeixam a relação do homem com Deus. É o
próprio Philippe de Thaon que, reforçando essa ideia, diz que o local no qual se diz as preces,
como o Pater noster, deve ser realizado sobre uma pedra, de modo que simbolize a firmeza da
relação com Deus nos propósitos de retidão e bondade. Assim encontra-se em seu bestiário:
―Pedra significa estabilidade firme, onde Deus nos colocou quando proferimos suas orações,
nós dizemos Pai nosso; e então devemos orar, para adorar Jesus Cristo, posto que, pela sua
paixão nós temos redenção4‖ (THAON, 1900, pág. 39).
No início do século XIII surge o Bestiaire, de Gervaise, com um texto breve de
apenas 1280 versos rimados. Esse livro possui algumas ilustrações na primeira parte do texto,
todas elas pequenas e simples, com exclusão de alguns dos animais, presentes no original de
Thaon. O leão, o antílope e o unicórnio permaneciam como os mais importantes.
Vale ressaltar que o unicórnio é um dos animais fabulosos mais citados nos
bestiários. Talvez seja o mais sugestivo e misterioso de todos, sendo carregado de enorme
simbologia e imaginário. Para o cristianismo, é um animal cristológico associado,
frequetemente, ao bem e a pureza. Nesse sentido, é possível encontrar a seguinte passagem da
Bíblia: ―Tu exaltarás o meu poder, assim como o chifre do unicórnio‖ (SALMO, 91:11).
Os caçadores não conseguem capturar o unicórnio, todavia ele não resiste à
atração de uma donzela que fica a sua espera na mata, com os peitos desnudados ou não,
conforme as versões. O unicórnio deita a cabeça em seu colo e assim um caçador pode
prendê-lo de surpresa. Este animal, de acordo com os bestiários, representa Cristo, sendo a
donzela o qual se deita Nossa Senhora ou, dependendo da versão, a Santa Madre Igreja. Já os
caçadores são os judeus, que depois de capturá-lo, o põe à morte. A selvageria do unicórnio
mostra a incapacidade do inferno para segurar Cristo. O seu único chifre representa a unidade

4
Stone signifies, firm stability where God has placed us when we say his prayer, we say Pater noster; and so we
ought to pray, to adore Jesus Christ, since by his passion we have redemption.
39

de Deus e de Cristo. O pequeno tamanho do unicórnio é um símbolo da humildade de Cristo


em se tornar humano.

Figura 7: A captura do Unicórnio.


(Bestiário de Rochester, Séc. XIII. British Museus)

Ainda no mesmo período, produzido entre 1210 e 1211, conhecido apenas como
Bestiaire ou como Le Bestiaire divin [O bestiário divino], de Guillaume Le Clerc, encontra-se
o mais extenso dos quatro bestiários franceses rimados, com 3426 versos. É o mais conhecido
de todos os bestiários franceses, devido à quantidade de manuscritos existentes. Pelo que se
sabe, são vinte e três manuscritos copiados na França e na Inglaterra, dedicados quase em sua
totalidade aos animais.
O clérigo Pierre de Beauvais, também conhecido como Pierre le Picard, por ter
seu mais antigo manuscrito bestiário escrito no dialecto picardo, entre 1210 e 1218, produziu
um bestiário com duas versões em prosa: uma versão curta, contendo apenas trinta e oito
capítulos, e outra versão longa, com cerca de setenta e um capítulos.
Durante a Idade Média, parece que a visão dos animais transmitida pelos autores
dos bestiários mostrou-se, de certo modo, estereotipada. Isso porque, apesar desses livros
passarem, continuadamente, por diversas modificações, na forma e na maneira de
apresentação de seu conteúdo, o que se pode observar é uma pouca evolução durante o
período medieval, daquele conteúdo propriamente dito, assim como o elenco de criaturas que
o compõem (FONSECA, 2003, p. 168).
40

Vale mencionar que, tal como outros manuscritos da Idade Média, os bestiários
eram copiados por monges e não resultavam de um único autor. À medida que eram escritos,
acrescentavam-se novos animais, funcionando como um livro de notas de um naturalista, em
permanente revisão.
Na Idade Média, os autores dos bestiários não se preocuparam em obter um
conhecimento mais objetivo do comportamento dos animais. Sobressaiu-se, então, uma visão
―finalista‖ sobre a natureza, uma vez que, os pensadores medievais tinham suas atenções
voltadas para o que lhes interessavam, em termos filosóficos e teóricos, de cunho abstrato e
generalizante, do que na observação imediata e na experiência empírica (FONSECA, 2003, p.
169).
Desse modo, o que se elencou foi uma inversão hermenêutica, pois as bestas reais
ou imaginárias foram revestidas pelos autores, a partir de meados do século XII, com alusão a
novos animais, mormente, através da apropriação de outros legados culturais, quer dizer,
novas leituras alegórico-simbólicas, atribuindo, assim, novidades nas funções atribuídas aos
animais. No geral, prevaleceu, nos escritos dos clérigos, uma propagação dos objetos e das
sugestões interpretativas na técnica de abordagem aos seres da natureza, ao mesmo tempo em
que os valores científicos dos animais eram colocados em segundo plano.
Quando os filósofos do século XII falam da necessidade de estudar a natureza,
aludem à obrigação de se conhecê-la para que, desse modo, o homem pudesse meditar e
desvendar a si próprio e, através desse conhecimento, progredir rumo à compreensão da
ordem divina e do próprio Deus. De fato, havia a prerrogativa bíblica que assegurava o
domínio dos homens sobre os animais e, assim, buscava-se colocar uma possibilidade de livre
consórcio entre homens e animais, sem, entretanto, comprometer o lugar privilegiado do
homem.
Interessante observar também que, juntamente com a grande influência que havia
de textos letrados de origem greco-romana e, em especial, das traduções e anotações árabes
dos tratados de Aristóteles, a partir século XII, assinalou-se, categoricamente, o eclodir de
uma nova cosmovisão. Testemunha-se, então, a propagação de um novo modo de pensar,
fundamentado na observação dos elementos naturais e prestes a realizar rompimentos na
prática simbólico-alegórica de entender os seres da natureza.
De fato, do século XII ao XIII, um verdadeiro renascimento científico ocorreu nos
quadros do ambiente medieval do ocidente, principalmente, entre a população urbana, em que
foi perceptível uma abertura de novos caminhos e perspectivas de análise dos fenômenos e
elementos naturais, advogando-se e praticando-se várias propostas baseadas na experiência
41

para descobrir as leis que regiam a natureza e o mundo, ou seja, houve um reconhecimento da
necessidade da utilização de métodos mais objetivos para a observação.
É neste ambiente que a sociedade, no século XIII, se depara com um dos maiores
catedráticos da faculdade de teologia de Paris, o primeiro entre os escolásticos que avaliou os
grandes trabalhos de Aristóteles, procurando interpretá-los em termos cristãos, o dominicano
Alberto Magno (1200-1280) com a obra, De animalibus. Muito possivelmente, o respeitável
trabalho desse autor, que junta, aos tratados de Aristóteles, variadas verificações pessoais, é
uma enorme contribuição da Idade Média à zoologia, pois, apesar de relutante, desmistificou
a veracidade de determinados animais e comportamentos dos mesmos. Isto porque procurava
um entendimento objetivo dos prodígios que cristianizaram os motivos que lhes foram
transmitidos, observando sobre a provável existência dos seres fantasiosos.
A despeito das limitações da obra do frade dominicano, este se tornou famoso por
seu vasto conhecimento e por sua defesa da coexistência pacífica entre ciência e religião,
colaborando incisivamente para um novo modo de pensar e enxergar a natureza e os seus
seres. Alberto Magno, debruçado sobre os conhecimentos provindos de Aristóteles, retirou o
seu melhor, adotando uma atitude crítica, chegando a ponto de afirmar que a ciência natural
não deveria aceitar as afirmações de outros, mas investigar as causas que operam na natureza.
Nesse sentido, dedica um capítulo inteiro, numa de suas obras, ao que ele chamou de ―erros
de Aristóteles‖.
Desse modo, é possível notar que se desenvolveu nesse período da Idade Média
um pensamento racionalista. Entretanto, os bestiários não deixaram de ser um fiel reflexo do
imaginário da época, como um tratado que retrata o universo medieval. Isso porque, para os
clérigos, tudo que Deus criou tinha um sentido profundo e eles se empenhavam na descoberta
de cada ser criado, entendendo na manifestação de Deus, um modo de atingir uma
aproximação de sua real finalidade, conclusão esta que corrobora a premissa de que os seres
naturais foram idealizados e assimilados pela cultura cristã da época, basicamente, em virtude
dos legados bíblicos e antigos.
Assim, apesar da influência da obra de Aristóteles nos letrados medievais, a
sociedade medieval continuou tributária afluente de uma compreensão simbólico-alegórica da
natureza, de modo dilatado como peça de grande valor para a construção dos bestiários, em
que se dava crédito aos relatos míticos e fabulosos acerca dos fenômenos naturais, dos seres
vivos.
A partir do século XV, no período conhecido como Renascença, inicia-se a
negação de que a natureza seja uma estrutura inteligente e viva em si. Nessa época, a tradição
42

dos bestiários teve uma sobrevida, mesmo em pleno período racional e antropocêntrico,
apesar das pessoas preferirem direcionarem seu conhecimento a partir de autores clássicos do
que do simbolismo religioso.
No século XVI surgiu, nos círculos humanistas, os chamados livros de emblemas,
período esse iniciado pelo italiano André Alciato (Andrea Alciati), um grande jurista da
época, que publicou em 1531, na cidade de Augsburgo, seu Emblematum liber, em versos
latinos. Observe a seguir como a tradição medieval dos bestiários teve continuação na época
renascentista através desses livros produzidos por autores humanistas:

André Alciato
Emblema XV

Vigia e Guardião
O galo canta anunciando a nova aurora
E chama os criados à nova latuba;
E o sino está no alto das sagradas torres
E lembra aos que acordam as coisas do alto.
E o leão vigia dormindo de olhos abertos,
Por isso é colocado na porta do templo5.

5
Vigilancia et custodia
Instantis quod signa canens dat gallus Eoi,
Et revocet famulas ad nova pensa manus;
Turribus in sacris effingitur aerea pelvis,
Ad superos mentem quod revocet vigilem.
Est leo: sed custos oculis quis dormit apertis,
Templorum idcirco ponitur ante fores.
43

Os livros de emblemas eram tratados de história natural, sem preocupações


moralizadoras, os quais, todavia, não descartavam a fabulosa fauna medieval, pois, embora
não citem os bestiários, aludem frequentemente aos mesmos, quanto às naturezas e à
simbologia do mundo animal (WOENSEL, 2001, p. 88).
O simbolismo animal também sobreviveu esporadicamente na literatura clerical
pós-medieval, em especial na catequese e nas homilias. Neste vasto campo, Alfredo L. C.
Carvalho deu-se ao trabalho de localizar e analisar todas as referências a dez animais típicos,
nenhum deles fabuloso ou legendário, na extensa obra do português Manuel Bernardes (1644-
1710).
Como é possível perceber, os bestiários como gênero literário, erudito ou popular,
foram perdendo sua serventia e popularidade, pois surgiu um repúdio ao que chamavam de
herança do ―século das trevas‖. Contudo, essa tradição já havia se arraigado às raízes
populares e às massas em geral, fato este que fez com que esse legado do bestiário tenha se
estendido desde os primeiros séculos do período moderno até a atualidade.
Assim, ele chegou ao Brasil através de vários cronistas do período colonial, mais
notadamente os dos séculos XVI e XVII, que relataram e descreveram suas experiências de
contato com a fauna brasileira e americana nos termos dessa tradição. Exemplo disto foi o
caso de Fernão Cardim (1549-1625), que não mediu esforços para descrever
individualizadamente, quase que nos limites da exaustão, os animais da terra, água e ar
brasileiro, desde os de maior porte e impressão até os mais ínfimos e minúsculos (FONSECA,
2000, p. 84).
A descoberta de uma natureza diferente e diversificada no ―Novo Mundo‖, ou
Continente Americano, motivou a preparação de múltiplos relatos pelos europeus, ao longo
dos séculos do período colonial. Todavia, dentre os diversos elementos da natureza, foram os
animais que logo despertaram profundo interesse dos europeus que desembarcaram nesse
continente. Isso pode ser visto na poesia de Rafael Landivar (1731-1793), que ―revivifica a
tópica de América paradisíaca nas descrições jactanciosas da flora e da fauna, da beleza
plácida de rios, lagos, cascatas e montanhas, da ferocidade da terra, da excelência dos
minérios de ouro e prata‖ (CHIAMPI, 1980, p. 104).
Desse modo, é evidente o encantamento do europeu perante essa natureza.
Exploradores, cronistas e naturalistas encontram alguns animais que se pareciam com aqueles
já conhecidos, mas se deparam, também, com muitas espécies completamente novas, que não
se enquadravam no reduzido universo zoológico descrito por Aristóteles, onde havia apenas
entre 550 a 590 animais e que se mantinha como referência desde a Antiguidade (RIBEIRO,
44

2006, p. 60). Assim, a fauna era vista como ―a fauna que não tinha participado da Arca de
Noé, pois não se explicava a sua formação‖ (CHIAMPI, 1980, p. 99). Observem-se as
próprias palavras do padre jesuíta Joseph de Acosta:

Porque se temos de julgar as espécies dos animais por suas características, são tão
diversas que queiram reduzir a espécies conhecidas da Europa, será chamar ao ovo
castanha6 (ACOSTA, 1962, p. 203 apud CHIAMPI, 1980, p. 99).

Amerigo Vespucci (1454-1512), na campanha de 1501-1502, sua terceira viagem


ao novo continente, é bastante enfático em relação a essa percepção: ―E porque nela vimos
muitas gentes e povos e toda geração de animais silvestres, que em nossas regiões não se
acham, e muitas outras de nós nunca vistas, sobre os quais seria longo discorrer‖
(VESPUCCI, 2002, p. 123).
Curiosidade e ambição foram cuidadosamente associadas para instigar os
colonizadores a conquistar sempre mais, pois em qualquer lugar poderiam se deparar com as
fortunas do Eldorado. Haja vista que, este mito nunca foi descoberto na América espanhola,
progressivamente a lenda alcançou a Amazônia, ambiente de riqueza inesgotável, onde há
tudo em abundância. Neste mito, a fantasia do bestiário das índias fala de

Peixes-bois com seios de mulher, tubarões machos com membros viris duplicados,
tubarões fêmeas que parem uma vez em toda sua vida, peixes voadores, leviatãs
cobertos de conchas, tartarugas que desovam ninhadas de seiscentos ovos de
película fina, praias com pérolas imensas banhadas pelo orvalho, vacas marinhas,
unicórnios, sereias, amazonas7 (FUENTES, 1992, p. 60).

As citações anteriores revelam visões diferenciadas do Continente Americano. A


primeira é a visão paradisíaca, que faz parte da busca de um novo mundo, de uma nova
sociedade, de um lugar utópico. O imaginário, pensado desde a tradição filosófica ocidental,
como uma faculdade, a da imaginação, foi delineado sobre aquilo que eles viram de distinto
durante as viagens pelo mar e, igualmente, ao entrarem em contato com terras desconhecidas.
Afinal, uma infinidade de informações míticas e supersticiosas que diziam
respeito, em sua maioria, à tradição grega foram sendo adaptadas ao longo do tempo.
Contudo, mantiveram-se com poucas modificações até o século XVI. Dessa forma pode-se
perceber porque os navegadores europeus acreditaram ter visto tritões (homens com meio
corpo de peixe), antípodas (criaturas com os pés virados para trás), monopodos (homens com

6
Porque si hemos de juzgar a las especies de los animales por sus propiedades, son tan diversas que quererlas
reducir a especies conocidas de Europa, será llamar al huevo castaña.
7
manatíes con tetas de mujer, tiburones machos con miembros viriles duplicados, tiburones hembras que paren
una vez en toda su vida, peces voladores, leviatanes cuajados de conchas, tortugas que desovan nidadas de
seiscientos huevos de tela delgada, playas de perlas inmensas bañadas por el rocío, vacas marinas, unicornios,
sirenas, amazonas.
45

somente um pé), cinocéfalos (criaturas com corpo humano e cabeça de cachorro que comiam
carne humana e se comunicavam latindo), Biemmyas (homens sem cabeça, com o rosto no
peito), Bicéfalos (homens com duas cabeças), e diversas outras criaturas monstruosas e
maravilhosas, quando viajaram por regiões desconhecidas.

Figura 8: Monstros e maravilhas no Brasil Colonial.


(Mary del Priore)

Nessa imagem retirada do livro de Mary del Priore, Monstros e maravilhas no


Brasil Colonial, verifica-se a presença de alguns monstros que os Europeus acreditavam
existir. Até os séculos XV e XVI, período das grandes navegações marítimas, havia a crença
de que esses monstros viviam na região das Índias. Todavia, à medida que os navegadores
foram frequentando tais regiões esses mitos foram sendo desmitificados. Dessa maneira,
passaram a crer na existência dessas criaturas que em outras terras ainda eram desconhecidas.
Assim, o oceano Atlântico e o ―Novo Mundo‖, passaram a ser considerados como o lugar
onde viviam esses monstros.
Assim, quando eles desembarcaram nas terras que futuramente batizariam de
Continente Americano, tudo que havia de exuberante ou de curioso foi identificado com as
imagens que já lhes eram familiares.

Todo um universo imaginário acoplava-se ao novo fato, sendo, simultaneamente,


fecundado por ele: os olhos europeus procuravam a confirmação do que já sabiam,
relutantes ante o reconhecimento do outro. Numa época em que ouvir valia mais do
que ver, os olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer; tudo quanto se via era
filtrado pelos relatos de viagens fantásticas, de terras longínquas, de homens
monstruosos que habitavam os confins do mundo conhecido (SOUZA, 1986, p. 21-
22 apud RIBEIRO, 2006, p. 65).
46

Aquilo que já fazia parte do imaginário habitual dos europeus projetou-se sobre a
realidade que estava perante eles e, dessa forma, puderam compreendê-la. Situações como
esta fizeram com que os europeus vissem no Novo Mundo vários monstros e criaturas
fantásticas e maravilhosas.

O maravilhoso se apoia no desconhecido ou na falta de hábito. Mas não exige a


concordância entre o objeto e o narrado. Importa menos se o rinoceronte e o
unicórnio são o mesmo animal do que se a descrição do animal rinoceronte dá vida a
um objeto original, alusivo, que adquire autonomia de seu criador, que será
reconhecido e perseguido. Num extremo do maravilhoso só haverá palavras por trás
do novo objeto, nem sequer o desagradável rinoceronte. Nestes casos a imagem
pode durar mais ou menos que a criada a partir de um modelo natural, mas também é
obrigada a ser adotada por uma consciência coletiva que primeiro a protege e depois
a liquida (GIUCCI, 1992, p. 14-15 apud RIBEIRO, 2006, p. 66).

A partir desta identificação, os europeus acreditaram ter encontrado o Paraíso


Terrestre. A natureza exótica e o clima agradável eram elementos que colaboravam para que o
Novo Mundo fosse associado ao Paraíso. Comparando-se as peculiaridades das novas terras
com as paradisíacas e encontrando semelhanças entre elas, os europeus logo fizeram uma
associação. Sendo assim, era mais fácil perceber a existência dessas outras terras.
A segunda visão acerca do Continente Americano está ligada à religião católica,
cuja tradição apresenta, por um lado, a posição de um Deus único e eurocêntrico e, por outro
lado, a de confronto, pois isso significa combater o politeísmo e negar a existência de uma
Natureza diferente. As diversas ordens religiosas que desembarcaram na América, sobretudo
os franciscanos e os jesuítas, foram evangelizando e ―civilizando‖ os povos indígenas e,
implicitamente, rompendo com sua cosmologia, sua fusão com a natureza, na qual todos os
seres vivos merecem ser respeitados.
Se havia a ideia de Paraíso, havia do mesmo modo a ideia de Inferno entre os
europeus. Como homens intensamente religiosos, seus pensamentos eram marcados por uma
interminável luta entre o bem e o mal. Sendo assim, no Novo Continente não foram
identificadas somente características paradisíacas, como a vegetação exuberante, mas também
infernais, haja vista a infinidade de insetos e animais venenosos, o forte calor e, sobretudo, da
cultura exótica dos nativos, a saber, os indígenas.
Portanto, as ideias de bem e mal, de Paraíso e Inferno, regeram a visão que foi
difundida sobre as novas terras e aqueles que a habitavam, ora tornando-as edênicas, ora
rechaçando-as.
O Brasil foi visitado pelo naturalista francês Conde de Buffon (1707-1788), que
começou a classificar os animais e os vegetais, tornando-se o primeiro a definir uma espécie
47

como um grupo de seres vivos, que podem potencialmente cruzar uns com os outros tendo
filhotes fecundos. Buffon afirmou que as características das espécies não seriam imutáveis, e
que, através do tempo, elas teriam sofrido profundas transformações, pois a fauna atual teria
se originado de alguma outra já extinta. Ele visitou o Continente Americano durante o século
XVIII, verificando-se a posição eurocêntrica, posição essa presente desde o termo
―descoberta‖, que desconsidera os muitos povos indígenas que viviam no Brasil. O naturalista
avaliava, nesse sentido, o continente como ―imaturo, muitas espécies animais de sua parte
meridional imperfeitas por degeneradas, e o homem afeto a deficiências que, sem obstruir-lhe
a adaptação ao ambiente, tornam infinitamente difícil que ele adapte o ambiente a si, domine-
o e modifique-o‖ (GERBI, 1996, p.38).
O escritor Alejo Carpentier, tendo em vista essa perspectiva eurocêntrica acerca dos
animais e do homem americano, no conto ―Los Advertidos‖, abre um leque de possibilidades que
inclui outros bestiários e até outras ―arcas de Noé‖. Carpentier descreve a existência de quatro
arcas que se encontraram no mar durante o dilúvio:

Abrindo a escotilha mostrou à Amaliwak um mundo de animais desconhecidos que,


entre madeiras que limitavam seus passos, pintavam figuras zoológicas por ele
nunca imaginadas. Assustou-se ao ver que em direção a eles subia um urso preto
com aspecto horrível; abaixo havia animais semelhantes a veados, com corcovas
volumosas. E uns felinos brincalhões, nunca quietos, que se chamavam ‗onças‘.
‗Que faz o senhor aqui?‘ Perguntou o homem [do Reino] de Sin à Amaliwak. ‗E o
senhor?‘ Respondeu o ancião. ‗Estou salvando a espécie humana e as espécies
animais‘, disse o homem de Sin. ‗Estou salvando a espécie humana e as espécies
animais‘, disse o ancião Amaliwak 8 (CARPENTIER, 1995, p. 116).

Assim, foi através dessa cronística colonial que, a partir do seu período de
formação, a literatura brasileira abrigou e disseminou a influência de formas, motivos e
funções imaginativas, simbólicas e ideárias do bestiário medieval, submetendo-os a
diferenciados tratamentos estéticos, culturais ou mesmo ideologicamente marcados
(FONSECA, 2000, p. 79).
Dessa forma, traços característicos fundamentais identificam o substrato que
contribuiu, ideologicamente, para a composição deste imaginário bestiário, de modo que as
influências de ideias oriundas de outros continentes ao lado das diferentes realidades do

8
Abriendo la escotilla mostró a Amaliwak un mundo de animales desconocidos que, entre divisiones de madera
que limitaban sus pasos, pintaban estampas zoológicas por él nunca sospechadas. Se asustó al ver que hacia ellos
trepaba un oso negro de muy fea traza; abajo había como venados grandes, con gibas en los tomos. Y unos
felinos brincadores, nunca quietos, que llamaba ‗onzas‘. ‗¿Qué hace usted aquí‘?, preguntó el hombre [del reino]
de Sin a Amaliwak. ‗¿Y usted?‘, contestó el anciano. ‗Estoy salvando la especie humana y las especies
animales‘, dijo el hombre de Sin. ‗Estoy salvando la especie humana y las especies animales‘, dijo el anciano
Amaliwak.
48

continente americano serviram para a emergência da literatura brasileira, com seus bichos
enquanto figuras ou símbolos de sentimentos humanos, a ponto de remontarem aos bestiários
medievais, mas muito mais, a de criar um bestiário próprio.
Como se vê, com o desenvolvimento científico, esses tratados foram perdendo a
sua importância, passando a sociedade a dar uma maior relevância à observação e à
experiência, além de, atualmente, o animal não impressionar pessoas como em tempos
remotos quando certas feras eram tidas como agentes do Mal. Contudo, os bestiários tiveram
uma grande influência na Literatura (nomeadamente através das fábulas e das alegorias), na
Arte (pelo seu valor pictórico) e até na Biologia (na enumeração e estudo das espécies).
Hodiernamente, assiste-se a um resgate das tradições medievais em geral. A arte
popular e muitas práticas folclóricas quase extintas são pesquisadas, documentadas, e mesmo
reintroduzidas, a fim de se descobrir e conservar os valores culturais dos antepassados.
Paralelamente, preocupados com a conservação do patrimônio da natureza, os ecologistas e o
povo em geral voltaram sua atenção para os animais (WOENSEL, 2001, p. 187).
Torna-se possível, então, afirmar que todo o universo animal pode ter explicações
vazadas na história de ideias da cultura europeia, cuja literatura, desde as suas primeiras
manifestações enquanto gênero e forma, vê a realidade animal como a contraparte não-
humana, mas animada e, portanto, digna de uma maior consideração existencial e filosófica
(FONSECA, 2000, p. 80). Devendo-se, portanto, procurar identificar uma relação da literatura
com a sociedade e cultura, para, então, se obter o elo entre formas de conhecimento e de
pensar em épocas diversificadas ou coincidentes.
Assim, faz-se necessário considerar os bestiários como verdadeiros repositórios da
mentalidade religiosa medieval que, sobremaneira preocupada com a salvação humana,
dificilmente poderia olhar além do horizonte a não ser através da ótica do divino, a qual fazia
transparecer na natureza, assim metafisicamente considerada, os seus vivos exemplos de
ensinamento e de edificação, direcionada para o benefício e formação espiritual do homem.
Assim, nesta concisa explanação, apresentou-se um apanhado geral da evolução
do bestiário medieval ou Livro das Bestas, livro mais lido e copiado na Idade Média, após a
Bíblia, que se firmou como uma obra singular no âmbito da literatura medieval. Foi possível
notar que os seres naturais foram concebidos e assimilados pela tradição cristã da época,
essencialmente, em razão dos legados bíblicos e antigos. Procura-se, desta forma, demonstrar
as características mais acentuadas de cada era e elucidar as novidades que foram se revelando,
por meio de uma abreviada menção às conjunturas culturais e ideológicas que as tornaram
cabíveis.
49

Foi apresentada uma atenção especial à visão dos seres naturais na Idade Média,
com a finalidade de entender as importantes fases que se seguiram, e, de tal modo, cooperar
para uma aproximação ao estudo do bestiário dessa época até a contemporaneidade. Por fim,
foi oportuno mencionar, além disso, as condições que permitiram a manifestação de um novo
olhar acerca do mundo natural, a partir de finais do século XII, que se configura como origem
de uma visão mais lógica da natureza, que tenderia a crescer nos séculos subsequentes.
Sendo assim, a fim de se estudar a tradição bestiária medieval, bem como a
imagística dessa literatura, sobre a presença do mundo animal, sabendo que muito desse
imaginário e simbolismo, recorrentes das elucubrações mentais da cultura medieval,
encontram-se presentes em alguns autores da literatura contemporânea, foram eleitos os
seguintes autores contemporâneos de reconhecido destaque e importância no âmbito da
literatura nacional, nos quais será a analisada a temática em questão: Moacyr Scliar e Manoel
de Barros. Haverá a busca, portanto, de um estudo descritivo, analítico e crítico-interpretativo
da presença simbólica e imaginária de animais nestes autores da literatura brasileira
contemporânea.
É, justamente, acerca dessa presença do simbolismo animal medieval na literatura
brasileira contemporânea que trata o próximo capítulo.
50

2 O BESTIÁRIO CONTÍSTICO DE MOACYR SCLIAR

As pessoas podem ver um animal agindo como um


homem, a metáfora pode trabalhar nos dois sentidos,
revelando o animal dentro de cada ser humano 9.
Joyce E. Salisbury

2.1 O conto literário e seus principais representantes

Dentre as diversas atividades artísticas, a arte literária, provavelmente, é a mais


abrangente, uma vez que trabalha com a linguagem, com a palavra. Partindo desse princípio
fica mais simples compreender por que existem gêneros variados e modos diversos de se
produzir literatura: o poema e a prosa, com suas variantes, a saber, narrativa longa e curta.
Anatol Rosenfeld, em Estruturas e problemas da obra literária (1976, p. 53),
afirma que ―a obra de arte literária é a organização verbal significativa da experiência interna
e externa, ampliada e enriquecida pela imaginação e por ela manipulada para sugerir as
virtualidades dessa experiência‖. A partir dessa definição do ato criador literário, pode-se
considerar o conto como uma forma de expressão literária que envolve em si particularidades
que o diferencia das demais, pois, é capaz de aliar de modo sucinto, intenso e profundo,
experiências e potencialidades, fazendo com que se configure em uma nova e, ao mesmo
tempo, conhecida realidade: primeiro porque parte da assimilação do universo ficcional e,
segundo, por instituir um universo imagético e significativo capaz de exteriorizar as
impressões e conceitos imanentes do leitor, trazendo à tona os seus dramas de ser humano.
O conto, esteticamente, manifesta-se como um momento em que o criador divulga
as experiências humanas por ele entendidas de forma breve e incisiva, pois há no contista o
desejo de enxergar além e mais detidamente os sujeitos e objetos do mundo. A escolha do
conto para o estudo deve-se ao fato de, como arte, ter surgido, há menos tempo que as outras
manifestações e ser até possível determinar-se esse surgimento orientando-se por teóricos que
se propuseram a rastrear sua origem. Assim, a partir da visão de alguns importantes
historiadores da literatura, será possível compreender a origem e conhecer um breve histórico
sobre o conto literário.

9
People can see an animal acting as a human, the metaphoric can work both ways, revealing the animal within
each human.
51

Para isso, serão feitas algumas reflexões sobre o conto literário, percorrendo um
breve itinerário do conto no século XIX, em seu panorama mundial, com apontamentos,
sobretudo, de autores e tendências do gênero nos séculos XIX e XX no Brasil, para, então, se
traçar uma leitura dos animais, tendo como ponto de partida os contos elencados de Moacyr
Scliar.
Desse modo, vale mencionar, preliminarmente, um dos principais representantes
do conto, na primeira metade do século XIX, o norte-americano Edgar Allan Poe (1809-
1849), considerado, juntamente com Julio Verne (1828-1905), um dos precursores da
literatura de ficção científica e fantástica moderna. Segundo Poe, o autor tem de centrar-se nas
emoções que irá causar no leitor. Deve escolher o tom da escrita, o ambiente, a narração e o
fim da narrativa visando o desencadeamento dessas emoções no leitor. Este é o principal
objetivo a ser desenvolvido num processo de escrita de um conto. A isto Poe intitulou ―unity
of effect‖ [unidade de efeito].
Sendo contista e, ao mesmo tempo, teórico, Poe estabeleceu balizas que
continuam a ser referências para contistas e para a crítica literária, mesmo quando os
escritores negam o modelo iniciado por ele (HOHLFELDT, 1988).
Poe, diferentemente da maioria dos autores de contos de terror, usa uma espécie
de terror psicológico em suas obras, suas personagens oscilam entre a lucidez e a loucura,
quase sempre cometendo alguma insanidade, ato impensado ou sofrendo com alguma
moléstia. Uma característica marcante dá-se ao fato de seus contos serem sempre narrados em
primeira pessoa.
Nesse século, o conto foi utilizado por escritores de diversos países, de tal forma
que até autores que se inclinavam mais para o romance, como Honoré de Balzac (1799-1850)
e Charles Dickens (1812-1870) arriscaram-se nessa linha poética e produziram contos que são
verdadeiras obras-primas da literatura ocidental.
Na segunda metade do século XIX, surgem outros dois grandes contistas
europeus: o francês Guy de Maupassant (1850-1893) e o russo Anton Tchekhov (1860-1904).
Maupassant chama a atenção de muitos em sua obra pela notável variedade
temática. Afinal, poucos são os que conseguem dar esta impressão de registro de totalidade da
existência, de criação de um universo fecundo e múltiplo. Além disso, tem na maioria de seus
contos a temática que é uma denúncia realista e risível da sociedade burguesa, em que
mentiras, cobiças, crueldades e covardias não deixam entrever nenhuma esperança para o ser
humano. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai resumem a fórmula do conto de
Maupassant, definida pelo escritor francês Somerset Maugham:
52

O núcleo deste é, em geral, uma anedota. Com o estritamente necessário de palavras


o autor suscita um ambiente, caracteriza as personagens. Arquitetando bem a
história, dosando o interesse, desperta no leitor a avidez de saber o desfecho, e o faz,
satisfeita a curiosidade, voltar (em pensamento pelo menos) a admirar os
pormenores, sempre admiráveis, do desenvolvimento (FERREIRA; RÓNAI, 1998,
p. 263).

Tchekhov, na segunda metade do século XIX, desfaz o modelo proposto por Poe,
e seguidamente praticado por Maupassant, que seria o de valorizar a sequência de
acontecimentos e, sobretudo, o desfecho. A matéria de seu conto, tanto quanto suas peças,
são, em geral, obras-primas que harmonizam, perfeitamente, a forma e a precisão vocabulares
a uma sedutora e correta fluência verbal, sem deixar de conter também um conteúdo lírico dos
mais densos, podendo seus contos serem construídos sobre a reflexão de uma personagem a
respeito de um fato que não se concretiza, mas que abre a possibilidade a um mundo interno
não perceptível até o presente momento por ter sido ofuscada pelo simples cotidiano.
Passando agora para um entendimento das origens e percursos do conto no Brasil,
tomando Lima Sobrinho (1960) e Herman Lima (1967) como base, percebe-se que tais
críticos fazem um balanço, em momentos diferentes, das origens do conto brasileiro, nas
quais citam autores nacionais da primeira metade do século XIX. Para Lima Sobrinho, o
marco decisivo da origem do conto é a fundação do semanário O Chronista, dirigido por
Justiniano da Rocha, que durou de 1836 a 1839. No entanto, Herman Lima acolhe a opinião
de Silvio Romero ao considerar Joaquim Norberto de Sousa e Silva como o precursor do
conto brasileiro, reforçada por Edgar Cavalheiro, quando aponta o conto ―As duas órfãs‖,
publicado em 1841, como o texto inaugurador do gênero. Contudo, é Noite na Taverna de
Álvares de Azevedo, que Lima diz ser a primeira manifestação literária do conto, tal como
estava em voga na Europa; o livro saiu póstumo, em 1855.
Incontestável entre os críticos é a figura exponencial das letras brasileiras no
século XIX, Machado de Assis (1839-1908), que se destaca como o grande contista da época
e da posteridade. É ele quem fixa as principais diretrizes do gênero, conforme observa Lima,
Fábio Lucas (1976) e outros teóricos.
O conto em Machado de Assis apresenta diversos recursos aplicáveis à narrativa
curta, de tal forma que fica difícil identificar um estilo único ou predominante quanto à
construção do conto. Diversos críticos apontam nele o domínio da linguagem sutil com o
estilo preciso e reticente (HOHLFELDT, 1988). Segundo o próprio Machado de Assis: ―É um
gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de
que ele é muitas vezes credor‖ (ASSIS, 1892, p. 806 apud GOTLIB, 1995, p. 65).
53

Já no início do século XX, surgem Simões Lopes Neto (1865-1916), Lima Barreto
(1881-1922) e Monteiro Lobato (1882-1948).
Com a publicação, em 1912, dos Contos gauchescos de Simões Lopes Neto, o
regionalismo ganha um novo tratamento e o estado do Rio Grande do Sul entra
definitivamente no mapa da boa literatura. É intensa a valorização histórica do gaúcho,
apresentando fidelidade aos costumes crioulos e à linguagem, superando a tendência de
desenhar tipos e regiões brasileiras de forma idealizada, como acontecia nas narrativas
regionalistas do século XIX.
Em estilo diferente de Machado de Assis, segundo Figueiredo (1998), Lima
Barreto denuncia também a hipocrisia da sociedade carioca, o oportunismo e a política do
apadrinhamento, como também as mazelas que resultavam da metamorfose da vida carioca
que, sob uma fachada, imitava o modelo parisiense.
Monteiro Lobato publica, sucessivamente, três livros de contos: Urupês (1918),
Cidades Mortas (1919) e Negrinha (1920). Neles, a matéria narrativa predominante são os
problemas sociais do Brasil, focalizados em São Paulo. Segundo Marisa Lajolo, Lobato atinge
nestes livros o que há de melhor em sua literatura, notadamente em Urupês e Negrinha, nos
quais

[...] comparecem os diferentes brasis que até hoje, sob diferentes formas, assombram
as esquinas da nossa história. Os contos contam do trabalho do menor, do
parasitismo da burocracia, da violência contra negros, imigrantes e mulheres, da
empáfia dos que mandam, do crescimento desordenado das cidades, da degradação
progressiva da vida interiorana; enfim, os contos contam do preço alto do surto de
modernidade autofágica que desemboca na crise de 30 (2000, p. 76).

Do modernismo à contemporaneidade, o conto brasileiro ganha novas formas e


temas que, para expressarem a nova identidade nacional, fazem isso de um modo próprio,
particular. O número de contistas no Brasil cresce consideravelmente depois do modernismo,
crescimento que se acelera ainda mais a partir de 1970, quando houve um enfraquecimento da
convencional dicotomia ficção urbana/ficção regional, que esteve presente desde o período de
formação da literatura brasileira, provavelmente, como decorrência da industrialização do
país, desde 1960.
Quatro são as tendências principais que os contistas, a partir do modernismo, vêm
elegendo: conto sócio-documental; conto de introspecção; conto simbólico-visionário; conto
fantástico (MELLO, 2003).
No presente estudo haverá o trabalho somente na linha do conto fantástico e sua
evolução no século XX, especialmente a partir da década de 40, em que a presença de uma
54

forma de realismo fantástico, que alguns teóricos denominam estranhamento, outros, absurdo,
começou a ser incorporada ao conto como um modo diferente de se registrar a realidade ou os
fatos ficcionais baseados nessa realidade, que tem a ironia, o sarcasmo e a sátira como
recursos para se denunciar.

A penetração do coloquial agora provoca a manifestação de um grotesco misturado a


um modesto apocalipse, que não se socorre nem da verossimilhança realista, nem da
palavra intencionalmente literária. Mas não nos equivoquemos: este repúdio da
palavra literária não instaura um estar à margem da literatura. [...] A dificuldade do
fantástico consiste na infinita pluralidade a que ele abre. Essa liberdade contudo se
converte em bolha de sabão se não permitir o retorno ao mundo a que deu as costas.
O fantástico tanto permite o jogo gratuito quanto a forma pregnante e esta só se
cumpre quando o aludido retorno permite a produção de significações antes
ignoradas (LUCAS, 1983, p. 196-207).

Após a segunda metade do século XX, muitos escritores no Brasil


experimentaram a ―quebra dos seus próprios limites‖ ou dos limites da narrativa e produziram
grandes registros do cotidiano. Nessa linha, será analisado Moacyr Scliar, observando-se o
simbolismo animal por trás desse cenário urbano e dos índices de modernidade que permeiam
a obra, assim como as marcas do texto do autor. Por isso, os contos analisados não se
isentarão de registrar também o momento sócio-político do período em que os fatos narrados
acontecem.

2.2 Scliar e o Carnaval dos Animais

Moacyr Scliar escreve contos utilizando uma perspectiva irônica e fantástica.


Desde o seu livro O carnaval dos animais, muitas de suas narrativas são formas de denunciar
situações opressivas da sociedade. Os textos a serem analisados exemplificam a tendência
alegórica do autor, confirmada em outros livros, através de narrativas que representam o
homem na sociedade contemporânea. Pequenos contos que, lidos em profundidade, revelam
todo um pensamento cosmogônico do processo de funcionamento do mundo.
Visto isso, este capítulo propõe discutir contos de O carnaval dos animais, de
Moacyr Scliar, observando determinados recursos da retórica empregados pelo autor que são
característicos da contística contemporânea. Nesta análise, será dada ênfase ao imaginário
referente aos animais e seus diversos enfoques.
Ressalta-se que não será feita a análise de todos os contos da obra desse autor,
mas sim de alguns em que há a presença reiterada do animal como símbolo, alegoria ou
55

tratamento figurativo, verificando suas especificidades para uma melhor compreensão acerca
do tema.
Lançando mão da crítica de autores renomados sobre a teoria do conto como porta
de entrada para o estudo proposto, buscar-se-á uma análise da representação literária do autor,
por intermédio da leitura de cinco contos de reconhecido destaque e importância no âmbito da
literatura nacional: ―Os leões‖, ―As ursas‖, ―Cão‖, ―Coelhos‖ e ―A vaca‖, a fim de captar as
diversas formas pelas quais o animal é percebido na modernidade. Isso porque, segundo uma
afirmação em Woensel (2001, p. 18), ―modernamente o animal não é mais descrito
necessariamente para servir de exemplo moral ou devoto‖, mas ele guarda seus traços
antropomórficos, sua personalidade própria. Desse modo, muitos poetas e escritores
apresentam bichos enquanto figuras ou símbolos de sentimentos humanos ou como
interlocutores, de modo que ainda subsiste nessa visão moderna e contemporânea a tradição
medieval.
Sobre essa crítica à sociedade anteriormente comentada, afirma Mário Frungillo
(2003, p. 161) que, ―Scliar em suas obras transita com desenvoltura da descrição de destinos
individuais para a narração de histórias que abrangem a vida de toda uma comunidade. Em
alguns outros [contos] percebe-se que os destinos do indivíduo e da comunidade são
indissociáveis‖.
Scliar também estabelece uma relação atípica com a religião, visto que, se por um
lado necessita impreterivelmente desta, em particular sobre o ponto de vista cultural, por outro
se distancia sempre que possível do dogma religioso. Conforme ressalta o autor:

Judaísmo não é para mim uma religião – os rituais religiosos judaicos pouco diferem
dos rituais de outras religiões. Judaísmo é para mim uma rica cultura, expressa na
história, na literatura, na arte, no humor até. Não sei que futuro poderá ter esta
cultura, diante do rápido processo de assimilação. O que eu posso fazer é dar uma
minúscula, modéstia colaboração para que ela, de algum modo, sobreviva, para que
o Bom Fim figure no mapa do mundo judaico (SCLIAR, 1994, p. 84).

É notável, em Scliar, que o estado de alienação estabelece uma ponte com o


humor judaico, onde é possível encontrar os paradoxais sentimentos de dor e felicidade,
emitidos no riso. Esse humor critica, ridiculariza e leva o leitor ao desprezo pelo mundo
circundante. Desse modo, a autocrítica judaica é dirigida para o próprio judeu, que se ri com a
sua situação de miséria e marginalização social, num processo antropológico de
automutilação (SZKLO, 1990, p. 133).
Os contos de Scliar dão margem a múltiplos caminhos interpretativos, pois
envolvem em sua estrutura uma heterogeneidade de elementos que comportam analisá-los à
56

luz de diversos aspectos como os: linguísticos, semânticos, simbólicos, fantásticos, absurdos,
sociológicos, antropológicos. Como escritor de grande valor para o cenário da literatura
brasileira contemporânea, leva consigo a capacidade de inovar e criar um corpus literário
arrojado e abrangente, capaz de atingir com lucidez diferentes questões que confundem e
inquietam o ser humano, sem, contudo, perder de vista o lirismo.
Visto isso, faz-se necessário salientar que a modernidade também carrega consigo
a metamorfose, majoritariamente, não compreendida, fato este presente nas narrativas de
Scliar. É uma arte fruto da exaustão das combinações possíveis entre as formas de
representações que, como cita Ortega y Gasset (2005, p. 26) o qual se

[...] denominará arte ao conjunto de meios pelos quais lhes é proporcionado esse
contato com coisas humanas interessantes. De tal sorte que somente tolerará as
formas propriamente artísticas, as irrealidades, a fantasia, na medida em que não
interceptem sua percepção das formas e peripécias humanas.

Desse modo, se a poesia teve que se insurgir para permanecer viva, resistir contra
os valores dominantes de uma sociedade voltada para o sistema capitalista e toda sua fome e
necessidade de consumir sem assimilar, a prosa também precisou assumir uma nova postura:
inovar e experimentar. Assim, na intenção de inovar, Scliar apresenta contos com a presença
de animais, com o rastreamento do imaginário bestiário medieval, cujos motivos ele utiliza
como matéria para literatura.
Scliar retrata uma sociedade voltada à hierarquia consumista, à progressiva
necessidade de sedentarização e estabilização, longe dos velhos tumultos revolucionários que
reivindicavam uma sociedade igualitária. Uma sociedade cria vícios e alimenta esses vícios,
ao mesmo tempo inviabiliza o sonho, símbolo de uma sociedade burguesa, laica, de
confluências culturais e civilizacionais (CORREIA, 2005, p. 228). Desse modo, vê-se a
notável recorrência que Moacyr Scliar faz, operando a ligação entre literatura e sociedade, à
proporção que recria, literariamente, o contexto sócio-histórico ficcionalizando, através do
fantástico, as atitudes humanas reais aí existentes, requerendo, portanto, uma maior
observação.
Uma forma de analisar os contos seria o de tomar a personagem como objeto de
pesquisa, a partir das suas aparências, enfim, como ―alegoria social, política, psicológica e o
que mais quiser‖; mediante clichês dos discursos político-social, filosófico-existencial,
psicanalítico, religioso, poético-romântico – todos em forma do condicional-hipotético
(GOMES, 2000a, p. 30).
57

Isso porque as personagens presentes nos contos de Scliar apresentam


características do sujeito fragmentado, já que, na abertura histórica da era da onipotência
técnica, encontra-se um regime totalitário do homem, que subjuga a natureza e a coage a dar,
a entregar energia, que supervisiona e organiza racionalmente, de forma sistêmica e
burocrática as esferas de atividade social, criando um universo de exigências mecânicas e
produtivas. E, perpassando pelas contradições dessa época, o homem, com efeito, passa a ser
considerado como sujeito fragmentado e dicotômico, negando valores primordiais do ser
humano (JACARANDÁ, 2002).
Assim, os contos de Moacyr Scliar, a serem analisados, foram escolhidos por
causa da atualidade do seu tema, no trabalho com os animais, figurativizado por situações que
chocam a sociedade e podem, atualmente, ser encontradas em notícias de periódicos, jornais,
enfim, nos meios de comunicação de massa em geral. Os textos presentes pertencem,
sobretudo, a um gênero literário que se constitui num choque ao leitor, pois, neles, nota-se, de
maneira mais aguda, os impasses da crise que atravessa a sociedade contemporânea.

2.3 Fantástico ou Alegórico?

Em Conto brasileiro contemporâneo, de Antonio Hohlfeldt (1988), encontra-se


um capítulo denominado ―Conto alegórico‖, cujos principais representantes no Brasil seriam
Murilo Rubião, Péricles Prade, Moacyr Scliar, Roberto Drummond e Victor Giudice. O autor
fundamenta por que prefere o termo alegórico ao fantástico.
Hohlfeldt inicia o capítulo enfatizando a incidência de uma literatura não-
racionalista, não-realista, ao menos aparentemente, que vem se sucedendo no Ocidente
contemporâneo com maior ênfase a partir de Franz Kafka, e que, no Brasil, tem como ponto
de partida a publicação de ―O Ex-Mágico‖ (1947), de Murilo Rubião (HOHLFELDT, 1988, p.
102).
Com as designações acima, trata da literatura do absurdo, como era considerado
em referência a ―O castelo‖, literatura fantástica, até a cunhagem do termo ―realismo-
mágico‖, que acabou ganhando status entre a crítica literária, haja vista a defesa do termo por
Irlemar Chiampi, em O realismo maravilhoso (1980). ―No entanto, qualquer que seja o
posicionamento que se venha a adotar, jamais se alcança esclarecer a gama de variações que
tais textos apresentam e, pelo contrário, termina-se por perder aquele momento que os
unificaria‖ (HOHLFELDT, 1988, p. 102). Continua, sintetizando o porquê de sua preferência
afirmando que
58

[...] há uma diferença básica a opor-se entre aquela literatura europeia praticada em
torno do elemento fantástico e a que hoje em dia se realiza entre nós: enquanto
naquela o elemento irreal ou não-real apenas serve como ratificação do real como
único dado existente, na literatura latino-americana, aí incluída a brasileira, a
oposição fica totalmente afastada, de tal sorte que ambos os elementos convivem
sem maiores problemas (p. 103).

Nessa perspectiva, o fantástico exprime um escândalo, uma ruptura, quase


insuportável, no mundo real. Para que isso ocorra é necessária a suposição da fixidez de um
mundo, para melhor o devastar. Na narrativa fantástica, tudo parece como hoje e como ontem:
tranquilo, banal, sem nada de insólito, e eis que, lentamente ou subitamente, desdobra-se o
inadmissível e o espantoso instala-se (CAILLOIS, 1958, p. 3 apud MELLO, 2003, p. 19).
Para Tzvetan Todorov, no fantástico, defrontam-se duas ordens: a natural e a
sobrenatural. No entanto, colocando-se em foco a realidade humana que proporcionará
contornos tanto ao real quanto ao sobrenatural, chega-se à conclusão de que seus parâmetros
ou normas são balizados pela sociedade ou cultura, na qual este mundo se constituirá. Dessa
forma, nota-se que, para Todorov, a hesitação entre a explicação racional e a sobrenatural é da
essência do gênero (TODOROV, 2004).
O fantástico seria eminentemente ambíguo, traria no seu bojo, não apenas as
ações, como também as reações das personagens frente ao acontecimento e, finalmente, a
realização da possibilidade de vários modos de leitura. Entretanto, Todorov acredita que a
leitura alegórica do texto é um obstáculo para o fantástico, na medida em que suprime a
hesitação acima referida. Embora Todorov não aceite a leitura alegórica na categoria do
fantástico, percebe-se, todavia, na contística brasileira, como no caso de Moacyr Scliar,
narrativas que tendem para o caráter alegórico, ou seja, que contrapropõem dois sentidos: um
literal, aquele denominado também de sentido próprio, e um alegórico, um sentido figurado.
De início, o segundo sentido, por sua força, acaba por apagar o primeiro (MELLO, 2003, p.
19).
Cumpre, a seguir, salientar a posição de alguns críticos que tendem a enquadrar a
ficção de Scliar no gênero fantástico, já que seu discurso narrativo privilegia o insólito e é
marcado pelo gosto do incomum.
Poder-se-ia perguntar, então, como encaixar a literatura de Scliar no gênero
fantástico, uma vez que, até hoje, não se encontrou uma definição definitiva para o próprio
fantástico. Basta, por exemplo, verificar os critérios desencontrados que são adotados pelos
diversos autores na tentativa de definir o gênero. A diversidade de definições quase sempre
acaba condicionada pelo ponto de vista particular adotado por cada crítico ou grupo de
59

críticos. Nesse sentido, a discussão não resolvida até hoje sobre a conceituação do gênero,
revela, em última instância, o problema fundamental de se tentar definir de vez um gênero.
Apesar da sua não ser uma definição ainda não resolvida, definitivamente, é
possível afirmar que a narrativa de Scliar pode ser também considerada fantástica, levando-se
em consideração, inclusive, a sua natureza, de que será tratada a seguir. Antes, porém, cumpre
registrar a este propósito uma oportuna colocação de Todorov. Para esse autor, não há
necessidade de que uma obra encarne perfeitamente o seu gênero. Aliás, continua, há pouca
probabilidade de que isto ocorra. Portanto, mesmo que o fantástico fosse um gênero de limites
desmarcados e os textos de Scliar se afastassem dele sob certos aspectos, este fato não teria
maior importância porque, como bem diz Todorov, não é necessário que a obra encarne
fielmente o seu gênero para que a ele pertença.
Por isso, acredita-se não haver nada que impeça a inclusão das obras de Scliar no
gênero em questão, embora, objetivo maior desse estudo não seja o fantástico em Scliar,
apesar de se ocupar dele, como não poderia deixar de ser.
Sob essa perspectiva, será utilizado o termo fantástico em seu sentido amplo, de
algo dúbio e insólito, afinal, o próprio Todorov, em Introdução à literatura fantástica, traz o
termo fantástico num sentido mais abrangente, como uma variedade da literatura, a qual
intitula sua obra, mas também num sentido mais específico, como visto acima.
Seja como for, a única certeza que se tem é que são poucos os livros de crítica
dedicados à literatura fantástica no Brasil, já que são poucos os cultores desse gênero nesse
país. Também porque cada obra dessa literatura, seja ela dita alegórica, surreal, surrealista,
grotesca, estranha, maravilhosa, fantástica, real-mágica, ou como quer que queira chamar,
cada obra literária dessa natureza é, na verdade, uma obra singular e, portanto, algo difícil de
ser, simplesmente, rotulado.
Assim, após esse percurso, depreende-se uma conclusão acerca do autor. Moacyr
Scliar não é apenas um escritor fantástico, nem somente alegórico. Se ele busca tais
elementos, é porque lhe são proveitosos. Desse modo, apesar de não se excluir a literatura
unicamente fantástica em Moacyr Scliar, no presente estudo, haverá a preferência de nomear
sua literatura como fantástica-alegórica, uma vez que, seus contos sugerem cifradamente, ao
leitor, um viés interpretativo, convidando-o, de início, a ler uma segunda história subjacente à
primeira.
60

2.4 O bestiário contístico de Moacyr Scliar

As atitudes das pessoas através de seus animais são


moldadas na maioria das vezes por suas atitudes através
delas mesmas em face ao mundo animal 10.
Joyce E. Salisbury

A obra de Moacyr Scliar está bem representada em antologias e em ensaios


críticos ou panoramas voltados para a prosa contemporânea. É um escritor que se serve de
temas cotidianos, estabelecendo bases para os mesmos de forma humorística e utilizando,
paralelo a esse elemento, o contraponto irônico. Em vários de seus contos mais recentes, a
ironia está amparada em questões que se referem ao mundo da tecnologia, da informática, da
eletrônica e da globalização. Nele existe a representação de um universo despoetizado, cada
vez mais burocratizado, sem qualquer fantasia, vivendo cada vez mais intensamente um
capitalismo selvagem que radicaliza a relação opressora (HOHLFELDT, 1988, p. 109).
Assuntos esses que, muitas vezes, desvirtuam o conto tradicional, desconstruindo formas de
dizer, deixando como saldo outras estratégias discursivas.
Scliar inicia sua carreira literária no mesmo ano em que se forma em medicina, a
partir da publicação de Histórias de um médico em formação (1962), carregando consigo a
característica de sempre compor críticas à sociedade urbana do Brasil. Faz parte de uma
geração tributária da prosa sóbria dos escritores das décadas de 30 e 40, praticantes de um
neo-realismo voltado para a memória ou para a crônica do cotidiano, característica que
permaneceu com o passar dos anos, já que continuou relatando a realidade social citadina,
inclusive em suas histórias breves e curtas, que é a sua predileção (BOSI, 1988, p. 123).
Com a remodelação do cenário moderno, a cidade passou a ser notável no Brasil
desde toda uma tradição literária no final do século XIX, que se constrói a partir da e na
cidade. Exemplos de autores não faltam, para citar alguns vale mencionar Joaquim Manoel de
Macedo, José de Alencar, Machado de Assis, João do Rio, dentre outros, sendo de grande
valia tais nomes para as letras nacionais, porquanto, legaram uma tradição que foi incorporada
pela literatura brasileira contemporânea, perceptível, sobretudo, em Moacyr Scliar.
Regina Zilberman sintetiza e caracteriza ideológica e formalmente a fórmula do
efeito causado pelo gênero fantástico na produção literária de Scliar:

10
People‘s attitudes toward their animals are shaped as much by their attitudes toward themselves vis a vis the
animal world.
61

Aliando-se ao emprego da técnica do fantástico, Moacyr Scliar alcança a tradução de


conflitos que assolam a todo o indivíduo indistintamente, mostrando as oscilações
entre a lealdade a certas raízes e ideais e a degradação decorrente da aceitação das
regras do jogo econômico e do desejo de ascensão social (1992, p. 80).

Desse modo, é através do gênero fantástico que o escritor gaúcho encontra guarida
para expressar a representação literária da vida humana, compreendendo os vínculos que a
ligam tanto a uma determinada ordem social quanto a um tipo de trajetória que se estende da
busca de ideais à frustração (ZILBERMAN, 1992). No entanto, em Scliar, não há como
desagregar a ironia e o fantástico, uma vez que o humor é causado exatamente pelo ridículo,
pelo escárnio e pelo exagero que tais imagens suscitam:

O elemento irônico na ficção de Scliar, essencial à acentuação temática, é


caracterizado por uma rica variedade de imagens, símbolos, e motivos, que se
desenvolvem através de um uso constante da repetição: seja sobre objetos animados
ou inanimados, ação ou linguagem, é essa repetição que salienta a perspectiva
dominante do autor: a natureza cíclica da vida (SILVERMAN, 1978, p. 185).

Moacyr Scliar é um escritor que vê a sociedade com olhos críticos, porém, plenos
da poética moderna. Desse modo, utiliza os motivos imaginários e simbólicos da imagem e do
mundo dos animais (familiares, domésticos ou mesmo selvagens) para lhe propiciar,
adequadamente, elementos literários que desvelam o homem atual.
Joyce E. Salisbury em The Beast Within: Animals in the Midle Ages reforça sobre
a importância dos animais para o autoconhecimento do homem, pois quando ―as pessoas
podem ver um animal agindo como um homem, a metáfora pode trabalhar nos dois sentidos,
revelando o animal dentro de cada ser humano11.‖ (1994, p. 105). Era assim que estudiosos
medievais como Babrius, Marie de France, Odo de Cheridon, espalhavam histórias acerca de
criaturas que, supostamente, instavam as pessoas a uma conduta moral superior.
Várias foram as funções dos animais presentes nos textos medievais.
Fundamentalmente, referiam-se a eles como símbolos do trabalho, de comida e de paródia ao
comportamento humano. Dentre eles, tem-se o lobo, o urso, o leão, o cão, o cordeiro, a
serpente, o boi, o sapo, o burro, o macaco, dentre outros.
Scliar, ao utilizar os animais como objetos ou mesmo como personagens em seus
contos, se aproxima também de outro gênero paralelo ao dos bestiários e muito praticado na
Idade Média: o exemplum. Nesses textos, os clérigos, em suas pregações, no estilo das
parábolas do evangelho, contavam breves estórias, baseadas em fatos, verídicos ou não, que

11
People can see an animal acting as a human, the metaphoric can work both ways, revealing the animal within
each human.
62

constituíam exemplos a seguir ou a evitar. Embora de caráter didático e moralizador, tanto


como o bestiário, o exemplum não partia da descrição de um animal, e não se apresentava
como um tratado científico (WOENSEL, 2001, p. 17).
É neste contexto, que Scliar apresenta seu bestiário, de certo modo, moralizante,
ao homem, vítima da violência, dos traumas, do desamor, da alienação e da ambição
materialista. Encontra-se neste autor uma sociedade transgredida pela perversão e violência,
em que o desligamento dos laços de identidade que dá lugar à alienação. Seu estilo fantástico
e insólito causa estranheza e, por isso mesmo, torna familiar as imagens que, automatizadas,
passam vertiginosamente sem que sejam percebidas. Antonio Hohlfeldt afirma ainda que

Moacyr Scliar traz uma outra contribuição importante: seu subtexto está
intimamente relacionado à consciência das relações sócio-econômicas, e assim,
todas as alegorias que encontramos presentificam sempre a reificação [...] Não
deixando entrever que a sátira em Moacyr Scliar tem uma conotação mais política, o
que o faz ter uma predileção acentuada pela ‗traição‘ e o ‗desgoverno‘ (1988, p.
109).

Mário Luiz Frungillo tece comentários sobre a obra de Moacyr Scliar


evidenciando que

Muitos de seus contos tratam, de maneira explícita ou velada, de temas ligados à


dolorosa experiência histórica do povo judeu. Temas ligados a essa experiência,
como a emigração, o exílio, as perseguições, os pogroms, o holocausto, o
messianismo e a busca da terra prometida preenchem muitas de suas páginas (2003,
p. 161-162).

Nessa linha, apresenta-se o conto ―Os leões‖ em que milhares de leões faziam
tremer o solo da África, sendo tidos como um iminente perigo, já que poderiam invadir a
Europa e os Estados Unidos. Foi decidido, desse modo, exterminá-los com uma bomba
atômica de média potência. Apareceram leões radioativos que escaparam, mas foram vítimas
dos zulus e das gazelas envenenadas. Os que resistiram foram mortos por caçadores. Restou
um último exemplar, uma fêmea, que foi esquartejada, tendo no útero um feto viável. Houve a
tentativa de preservá-lo, tendo sido, mais tarde, levado para o zoológico de Londres, porém
acaba sendo morto por um fanático. Amplas camadas da população saudaram a morte do
leãozinho: ―Eles estão mortos, agora seremos felizes!‖. ―No dia seguinte começou a guerra da
Coreia‖ (SCLIAR, 2004, p. 22).
Torna-se oportuno verificar, primeiramente, a ordem pela qual os animais surgem
no contexto do bestiário de Scliar: a narrativa do leão, o primeiro animal a ser habitualmente
descrito nos manuscritos dos bestiários, também abre O carnaval dos animais, sendo seguido
pelo conto ―As ursas‖, em seguida ―Os coelhos‖ que, por sua vez, precede o conto ―A vaca‖ e,
63

por último, ―O cão‖. Como se vê, essa sucessão conferida aos contos de animais se reveste de
um sentido simbólico coerente, seguindo o exemplo das enciclopédias antigas, o Physiologus
e os bestiários.
Sabe-se que dentre os animais contemplados pelos bestiários latinos produzidos
entre os séculos XII e XIV, o leão aparece como um dos que recebe maior atenção, tendo
presença em quase todos esses livros, sendo difícil, portanto, encontrar um bestiário que não
apresentasse a figura do rei da selva.
Neste paradigmático conto intitulado ―Os leões‖, observa-se a presença desses
animais que, nos bestiários, são símbolo de vida, com páginas inteiras a eles dedicadas,
relacionando-os à imagem da criação. Isso porque, de acordo com os bestiários medievais,
três são as características do leão: o animal apaga com a cauda o próprio rastro para não ser
capturado por caçadores; dorme de olhos abertos; e a fêmea dá à luz a filhotes mortos. De
acordo com a última característica, a leoa, durante três dias, vigia os corpos inanimados dos
seus filhotes e ao terceiro dia, afirma tais livros que é o rugido do pai que os acorda para a
vida (WHITE, 1984). A maior parte dos bestiários ilustra o ressuscitar das crias do leão,
exibindo os progenitores lambendo os filhotes, evidenciando a língua, órgão indispensável
para a articulação da Palavra, entendida como sinônimo de Voz e de Verbo. Dessa maneira,
apesar de terem relação com a vida e o nascimento, eles aparecem no conto, ironicamente,
como os causadores do caos e da destruição, sendo, por esse motivo, aniquilados.

Figura 9: Os leões reanimam as suas crias, lambendo-lhes o corpo.


(British Library, MS. Royal 12. Séc. XIX)
64

Assim inicia-se o conto de Scliar: ―Hoje não, mas há anos os leões foram perigo.
Milhares, milhões deles corriam pela África, fazendo estremecer a selva com seus rugidos‖
(grifo nosso). Nesse trecho, percebe-se a imponência do rugido do leão, evidenciada no conto,
sendo tal que nenhum ser lhe fica indiferente, fato esse que pode ser lido no manuscrito de
codinome MS. Bodley 764 editado por Richard Barber: ―Qual animal se atreve a resisti-lo cuja
voz é em si mesma terror por natureza, de tal forma que muitos animais que poderiam dele
escapar em virtude de sua velocidade ficam tão aterrorizados através de seu rugir que eles já
são vencidos?‖ 12 (BARBER, 1993, p. 26).
A importância do leão pode ser confirmada pelo famoso dito popular, que o
apresenta como o rei das criaturas terrestres, como de resto se salienta quando se decodifica
etimologicamente a palavra leo que significa rei, explicação proveniente de Isidoro de Sevilha
(560-636) que afirma ―O ‗leão‘ grego se interpreta em latim como ‗rei‘, porque é o mais
importante de todas as bestas‖ (SEVILHA, 1994).
A narrativa do leão, sendo aquela que, de modo geral, abre todos os manuscritos
dos bestiários, também é uma confirmação da premissa de que é ele o rei dos animais. Assim
ocorre em O carnaval dos animais, uma vez que, ―Os leões‖ não é somente o primeiro dos
contos que apresentam nomes de animais, mas de todos da obra. Também pelo mesmo
motivo, é ao leão, nos bestiários, dada a maior dedicação dos autores, sendo o que apresenta o
capítulo mais longo e o maior número de ilustrações, sempre com um maior empenho por
parte dos artistas. É comum a sua história vir acompanhada de cerca de três ou quatro
ilustrações que tencionam esboçar as várias características de que é dotado, o que é raro
acontecer com os outros animais.
Como é possível notar, fundamentalmente, o leão é símbolo de poder e força.
Todavia, como toda figura simbólica, é também dual: primeiramente, porque é um animal
devorador, isto é, inimigo do ser humano, comedor de homens e símbolo do mal, adversário
que deve vencer o herói, como ocorre em Hércules ou Sansão. Entretanto, é também signo de
poder, de majestade, rei do mundo animal e por tudo isso assimilado a leituras positivas,
modelo a ser imitado pelo homem, animal respeitado, temido e admirado.
Outro ponto importante a ser citado acerca do leão que este, dentre os animais dos
bestiários, é o que mais claramente identifica a voz e a palavra, simbologia esta visível pelo
fato da voz ser o sopro da vida, o mesmo sopro pelo qual Deus deu vida ao primeiro homem
(VARANDAS, 2006b, p. 4). Essa identificação pode ser percebida pela voz através da qual o

12
Which animal dares to resist him whose voice is by nature terror itself, so that many animals who could escape
him by virtue of their speed are so terrified by his roaring that they are already vanquished?
65

leão dá vida a suas crias. No conto, isso se manifesta pelo fato de o ser humano ter como
objetivo o extermínio de todos esses animais, como forma de calar uma raça, para que não
deixe vestígio algum, colocando os leões como culpados por todos os problemas existentes.
Há de se lembrar que o leão é mencionado mais de quarenta vezes na Bíblia
enquanto símbolo de força, coragem e de majestade, sendo uma das duas imagens diferentes
de Jesus, quando este é representado por animais. A primeira dessas é a de Jesus como
cordeiro, já a segunda é a de Jesus como leão. O leão é um animal feroz, difícil de ser
domesticado. Tanto é assim que ele é apresentado como o rei dos animais, devido à sua força.
Jesus é apresentado como ―o Leão da Tribo de Judá‖. Esse título faz referência a Jesus como
Rei. Judá era um dos filhos de Jacó, a quem Deus muda o nome para Israel. Seus doze filhos
formaram as doze tribos de Israel do Antigo Testamento. Dentre os doze filhos de Jacó, Deus
levanta a Tribo de Judá, para que dela saíssem os reis de Israel, Davi, Salomão e outros. Jesus
nasce da descendência de Judá, daí o nome Judeu, da linhagem real de Davi. Desse modo,
Deus cumpre a sua promessa de que um dia Ele levantaria um Rei, que dominaria sobre toda a
terra. No livro do Apocalipse, Jesus é apresentado como ―o Leão da tribo de Judá, a raiz de
Davi‖ (APOCALIPSE, 5:5).
Moacyr Scliar, com uma linguagem direta e cortante em ―Os leões‖, deixa como
resultado uma pitada de crítica da condição humana. Apresentando uma narração à maneira
de uma parábola, o conto descreve como os leões são responsabilizados por todos os males da
terra. É exposto também que a violência contra o reino animal é apenas o início do processo
de aniquilamento humano. Por temerem que os leões invadissem a Europa e a América, não
hesitaram em exterminá-los. Houve grande celebração com a morte do último deles.
Entretanto, no dia seguinte, os próprios homens, ―coreanos‖, são vítimas da guerra. Isso
porque, independentemente de qual parte beligerante vença, tanto as vítimas quanto os
algozes, sofrem a destruição que a guerra resulta.
Vale mencionar que a Guerra da Coreia, aludida ao fim do conto, travou-se entre
25 de junho de 1950 e 27 de julho de 1953, opondo a Coreia do Sul e seus aliados, que
incluíam os Estados Unidos da América e o Reino Unido, à Coreia do Norte, apoiada pela
República Popular da China e pela antiga União Soviética. O resultado foi a manutenção
divisória da península da Coreia em dois países, que perdura até os dias de hoje. O único
resultado é o cessar-fogo. Na guerra coreana, morreram cerca de três milhões e meio de
pessoas. O tratado de paz ainda não foi assinado, e a Coreia continua dividida em Norte e Sul.
66

―Os leões‖ é um conto breve, cuja leitura pode ser feita de uma só assentada,
muito vinculado às características realistas e que possui uma narrativa linear, sem surpresas,
pois tenciona fazer um registro da sociedade, não surpreender ou trazer suspense ao leitor.
A estranheza desse conto constitui, pois, o princípio do distanciamento, facultando
um sentido crítico que, segundo Scliar, a literatura judaica contém e ele convenientemente
legou, por estar vinculado a essa tradição. (ZILBERMAN, 2004, p. 06).
Scliar utiliza o humor que é, simultaneamente, a legitimação da atitude judaica,
com o consolo do imaginário, onde a mente pode atingir a liberdade, pondo fim à
discriminação. Nesse sentido, o humor em forma de parábola, ou historieta, servidor da
sabedoria popular, torna-se, então, um trampolim para a crítica social.

O riso como forma de evasão é a melhor ―arma‖ do povo judaico. São ativistas
passivos cujas armas são folhas escritas. O momento de autocrítica judaica; de
automutilação; de chacota é um momento de manifestação de humor e
simultaneamente diminuição da dor. Afinal os contrários atraem-se, num misto
agridoce que caracteriza o humor judaico – rir para não pensar, incidindo no vazio
do não entendimento humano e social, característica do humor de Scliar (CORREIA,
2005, p. 231).

Como elementos delineadores e carregados de um discurso social de manutenção


de valores hierárquicos e duradouros, os bestiários medievais ligados ao mundo animal
forneceram subsídios não apenas para entreter o público ouvinte e leitor, mas, sobretudo, para
contribuir na formação moral e ética do ser humano. Já em Scliar, percebe-se uma
característica a mais: seus textos primam, sobretudo, pela crítica a situações sociais.
A representação do extermínio de um determinado grupo como bode expiatório de
todos os males pode remeter ao massacre de milhões de judeus pelo nazismo, fato este que se
torna ainda mais evidente pela referência à Guerra da Coreia, iniciada poucos anos após o fim
da Segunda Guerra Mundial (FRUNGILLO, 2003, p. 164). Corrobora-se, portanto, que os
textos de Scliar vão além da literatura de formação, funcionando também como alegoria a
problemas da sociedade.
Desse modo, assim como nos textos antigos que lançam mão de procedimentos
alegorizantes, em Scliar há um pressuposto e um efeito, que permitem isolar uma estrutura e
função da alegoria, funcionando por semelhança (HANSEN, 1986, p. 1).
Moacyr Scliar produz narrativas em prosa em que o lirismo, por falar de uma
condição de vida fadada ao sofrimento e à depressão, assusta o leitor, mas também que o
resgata por trazer à tona as vicissitudes do existir, fazendo com que o leitor procure respostas
para suas próprias perturbações existenciais.
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Para Mário Luiz Frungillo (2003, p. 163),

[...] a leitura de seus romances e contos dá a impressão de uma paisagem humana


desolada. [...] quase sempre marcadas por incompletude, pela insatisfação, pela
perda de algo que nem sempre se pode definir numa única palavra. Trazem em si a
marca do exilado, embora nem sempre se possa dizer com exatidão de onde foram
banidos. O fantástico [...] em suas obras não têm, portanto, uma função de mero
entretenimento, antes revela de maneira mais eficaz a desolação de sua paisagem
humana.

Dessa maneira, Scliar consegue revelar não somente o valor artístico da literatura,
mas igualmente o valor do compromisso que o artista tem com sua cultura. Scliar metaforiza,
num ambiente insólito, acontecimentos extraordinários que simbolizam os desmandos e as
repressões à sociedade da época.
Assim como no Physiologus e bestiários medievais, Scliar descreve a clara
simbologia judaico-cristã do leão. Afinal, além de trabalhar com a figura do leão, estabelece
no contexto do conto uma íntima associação com o sofrimento do judeu e os massacres
aterradores vividos por este, pois, como se sabe, esse povo foi alvo de nacionalismos
fervorosos, de opressões e rejeições sociais ou de integrações, danosas para a preservação de
sua identidade comunitária.
Todorov (2004, p.11) assevera que ―é difícil imaginar atualmente que se possa
defender a tese segundo a qual tudo, na obra, é individual, produto inédito de uma inspiração
pessoal, fato sem nenhuma ligação com as obras do passado‖. Tendo em vista que O carnaval
dos Animais foi escrito sob o regime da ditadura militar (1964-1984) é possível que a morte
dos leões no conto em comento possa não exatamente tratar do holocausto conforme é
mostrado, mas sim de uma alegoria representativa das situações opressivas de então. Nesse
sentido, Mário Frungillo destaca que, apesar da condição judaica ser uma das preocupações
constantes de Scliar

[...] em vez de falar em judeus, o escritor prefere falar em leões, o que permitiria em
princípio estender o significado da narrativa a outros grupos perseguidos. Mas mais
importante que isso é o fato de que a felicidade não pode ser alcançada pela
eliminação do inimigo responsabilizado por todos os males, pois no dia seguinte virá
uma nova guerra, com novos males e um novo bode expiatório se fará necessário
(2003, p. 164).

O enredamento do imaginário evocado por Scliar, no conto, está na técnica


narrativa: fragmentada, contrapontística; planos entrecruzados, num vai-e-vem de
personagens e situações, que revela o comportamento do homem moderno através da ironia e
do fantástico (SZKLO, 1990, p. 156). É perceptível a ocorrência de um olhar prismático que a
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literatura de Scliar cria, tentando representar a experiência urbana, já em si substituída por


uma vivência conturbada.
Como visto anteriormente, dentre os contos elencados neste estudo há uns que dão
maior ou menor destaque ao simbolismo animal com recorrência medieval. Entretanto,
mesmo aqueles que são menos enfáticos em tal matéria, todos eles resgatam, de certa forma,
aquela tradição que via na figura do animal uma simbologia supra-real.
No conto ―As ursas‖, se observa a marcha do profeta Eliseu a caminho de Betel
que foi interrompida pelos gritos de alguns rapazinhos: ―Sobe, calvo! Sobe, calvo!‖ Eliseu os
amaldiçoou. Surgiram duas ursas da mata. A menor devorou doze e a maior, trinta. A digestão
da ursa menor é mais ativa. Os trinta choraram e gritaram dentro do estômago da maior.
Acenderam uma luz que clareou o que restava de crânios de bebês e pernas de meninas. Passa
o tempo, os rapazinhos sobrevivem. Conversavam, riam: pulavam e corriam. Cresceram, mas
não muito. Ao se cansarem, traçaram planos, construíram uma cidadezinha. Escolheram o
grande profeta. Surgiu outra geração, os jovens saíram muito maiores e mais fortes que os
pais. Invadiram tudo e não mais respeitavam a polícia (SCLIAR, 2004, p. 23).
Um dia, o grande profeta a caminho de sua mansãozinha é avistado pelos rapazes
que gritam: ―Sobe, calvo! Sobe, calvo!‖ Ele os amaldiçoou em nome do Senhor. Pouco
depois, surgem duas ursas e devoram os meninos: quarenta e dois. Doze foram engolidos pela
ursa menor e trinta pela maior. No estômago da ursa maior ficam chorando e lamentando até
que: ―finalmente, acenderam uma luz‖ (SCLIAR, 2004, p. 25).
Nos bestiários medievais, as peculiaridades literais das criaturas que nele são
utilizadas como exempla assumem uma significação simbólico-alegórica, que nem sempre se
traduz de forma fixa e definida. Muitos animais dos bestiários revelam uma ambivalência
quanto ao seu sentido simbólico, podendo assumir uma dupla significação, isto é, podendo
originar simultaneamente uma leitura positiva in bono e uma negativa in malo (VARANDAS,
2006a, p. 95). Neste estudo, procurar-se-á refletir sobre o conto as suas características
simbólicas inerentes aos bestiários, recorrendo ao exemplo da ursa, por algumas razões
fundamentais, quais sejam, por ser uma das criaturas em que se torna clara essa ambivalência
simbólica própria dos bestiários e por ser um dos animais que recebe grande atenção na obra
ao originar cerca de duas naturezas diferentes, além de sua simbologia estar ligada ao mito da
criação. De fato, a ursa possui características positivas, quando se assume como animal
selvagem, mas se reveste de uma significação negativa quando é referida num contexto
apocalíptico.
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Esse lado negativo pode ser percebido em uma das visões proféticas da história
feita por Daniel que concede uma explicação das distintas etapas que deverão preceder ao fim
dos dias:
[...] quatro bestas enormes, diversas uma da outra, saiam do mar. A primeira era
como um leão com asas de águia. Eu estava olhando e vi que lhe arrancaram as asas,
a levantaram da terra e a incorporaram como um homem e lhe deram um coração
humano. Depois desta, apareceu outra besta, a segunda, semelhante a um urso; ia
levantada de um lado, e tinha três costelas nas fauces entre seus dentes e lhe dizia:
‗Eia, devora muita carne‘ Depois vi outra besta, como um leopardo com quatro asas
de ave em seu dorso; tinha também quatro cabeças e lhe foi dado o poder. Em
seguida vi uma quarta besta terrível, espantosa, extraordinariamente forte. Tinha
enormes dentes de ferro, comia e triturava e o restante pisoteava com suas patas
(DANIEL,7: 3-7).

Como se pode perceber neste conto, a intertextualidade com textos bíblicos é uma
forma recorrente de escrever desse autor. Muitas vezes, ao revisitar as narrativas bíblicas,
Moacyr Scliar se vale da paródia como recurso principal, como uma forma de discutir
questões delicadas, utilizando textos sérios como base para uma crítica irônica. Desse modo,
ao se remeter à figura de Eliseu em sua ida a Betel, traz o leitor a uma realidade
contemporânea e revela indícios de denúncias para situações presentes.
Em ―Reis‖, há a passagem, em que o profeta Eliseu amaldiçoa os jovens, pela qual
Scliar inicia seu conto:

- Então subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos saíram da
cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo; sobe, calvo!
- E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do SENHOR; então
duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos
(2:23-24).

Assim como no conto, a passagem bíblica relata a ida de Eliseu para Betel, que
naquele momento havia se tornado o centro da idolatria em Israel, um local governado por
Jeroboão.
O escárnio realizado contra o profeta não parece ter sido tão simples, haja vista
que o trataram com desprezo e o humilharam, adquirindo uma conotação blásfema, a começar
pela expressão ―sobe‖, que se referia ao altar mais alto de Betel, destinado aos sacrifícios
idólatras, desafiando a condição de Eliseu como profeta do Senhor.
Os jovens, ainda, chamaram o profeta de ―calvo‖, palavra que, na verdade,
identificava a pessoa de luto. As pessoas raspavam suas cabeças e, provavelmente, no caso de
Eliseu, talvez estivesse sendo acusado da morte de seu irmão de ministério, Elias, já que foi o
último a estar com ele. Desse modo, estava sendo preparada em Betel não uma recepção digna
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de um profeta de Deus, mas a execução de um criminoso que havia ―assassinado‖ o seu


predecessor. Pelo fato de Eliseu ter sido comissionado pelo próprio Deus, o qual lhe atribuiria
poderes espirituais, a rejeição advinda da rebeldia daqueles jovens não lançava o profeta
apenas na desonra, mas, também, classificava seus poderes como ―malignos‖, o que era uma
clara e intensa blasfêmia contra o Espírito de Deus. Por último, o texto bíblico declara que
Eliseu apenas amaldiçoou aqueles jovens pela blasfêmia proferida. Foi a providência divina
que estabeleceu um desagravo mais rigoroso, pois somente Ele poderia ter dirigido as duas
ursas para atacar aqueles jovens. Desse modo, Scliar retira de um texto bíblico um dos
princípios mais elementares dos bestiários medievais, qual seja, a demonstração de grande
zelo do Senhor pelo seu servo.
Ocorre, no conto, veneração às ursas, quando os jovens, no estômago da ursa
maior, esquecem-se do passado, restando apenas vagas lembranças que, com o tempo,
adquiriram contornos místicos, quando rezam: ―Grandes Ursas, que estais no firmamento...‖
(SCLIAR, 2004, p. 24), há a retomada de algo que, na verdade, é uma das mais velhas
expressões religiosas que se tem conhecimento, datada da época do homem de Neandertal,
por volta de 100 mil anos atrás. Escavações arqueológicas descobriram que, desde aquele
período, existia o hábito de se colocar crânio de ursos sobre altares rústicos edificados em
grandes cavernas onde, ao que tudo indica, habitava um tipo de antepassado do urso que se
conhece atualmente. Assim, é possível que a matança de um urso e a distribuição dos seus
restos tivessem um caráter de sacrifício ritual do próprio deus-urso, com o desígnio de
promover ao homem regresso ao outro mundo.
Como é possível notar, há diversas representações artísticas que revelam a
importância que, entre várias culturas, o totemismo animal alcançou. Sabe-se que havia
também, uma espécie de legislação não escrita, que é um resultado direto desta importância
sagrada dada aos animais. Por exemplo, entre os celtas não era permitido comer carne de
cavalo, visto que este era um dos animais tidos como sagrado, sendo destinado, unicamente,
aos trabalhos em período de guerra.
Entretanto, entre os povos que cultuam o urso como deus, talvez os nativos norte-
americanos sejam aqueles que lhe tenham dado maior destaque. Esses indígenas viam no urso
uma entidade de poder divino, acreditando na hipótese de se tratarem de deuses disfarçados.
Em diversas lendas indígenas, os ursos aparecem como espíritos mentores que servem de guia
e ajudam diretamente heróis em dificuldades.
Contudo, essa gama de antigas práticas religiosas pertinentes aos ursos, não se
limitam apenas às tribos primitivas. Diversas outras comunidades, na Europa Ocidental e em
71

terras eslavas, comemoram cerimônias paralelas, que incluem a figura do animal em questão.
A presença frequente de ursos em festas de primavera, quando as lavouras renascem, aponta
para a relevância simbólica desse animal.
Outra visão acerca do urso, animal de grande riqueza folclórica, está associada à
temática do inverno e do carnaval, possuindo clara importância no bestiário cristão. Os
motivos básicos, procedentes da antiguidade clássica, se encontram também em Isidoro e
depois reaparecem em alguns bestiários. O motivo principal é o do filhote informe moldado e
vivificado por sua mãe. Isidoro diz que o urso se chama orsus porque com sua boca (ore suo)
dá forma a sua cria (WHITE, 1984).
Escritores europeus medievais dos bestiários também acreditavam que os ursos
nasciam como pequenas massas de carne informe e que só adquiriam sua forma característica
após serem modelados pelas lambidas da mãe-ursa. A mesma simbologia do período medieval
é perceptível no conto, pois é possível verificar que Scliar compara as deficiências de caráter
do homem com um ursinho não lambido.

Figura 10: A ursa dá forma à cria.


(Aberdeen Bestiary)

O escritor venezuelano Vladimir Acosta (1995, p. 110) lembra que esta crença
está viva na memória até hoje em dia. Afinal, ainda existe a locução em inglês ―an unlicked
bear‖, e em Francês ―un ours mal léche‖ (um urso mal lambido). O dicionário Petit Robert –
dictionnaire de La langue française explica que esta expressão, em francês, designa uma
pessoa disforme, e por extensão, uma pessoa de rudes maneiras.
72

É assim que, mesmo com o passar dos séculos, a lenda continua viva nesta e
noutras locuções que são um museu vivo do imaginário popular. De forma parecida, tal
simbologia ocorre no conto quando o profeta Elizeu rumo a Betel, é interrompido pelos gritos
de alguns rapazinhos e, invocando forças divinas, os amaldiçoa, surgindo, então, as ursas que
comem os rapazinhos como forma de modelá-los.
Moacyr Scliar serve-se da estrutura abismal – mise en abyme – recurso
caracterizado como ―todo fragmento textual que mantém uma relação de semelhança com a
obra que o contém‖, funcionando como um reflexo, um espelho da obra que o inclui
(DÄLLENBACH, 1977, p. 18). Tal técnica consiste em colocar uma história dentro da
história, como um enclave – uma narração secundária que de algum modo se desenvolve a
partir da ficção original.
A opção do narrador por esse jogo do tempo decorre de um projeto elaborado com
a perspectiva de apreender a verdade geral, em que a linguagem, aparecendo como
fragmentada, conota a descoberta de suas possibilidades, entre elas a de ser fator de renovação
e reconstrução da vida. Vale ressaltar que na alquimia, o urso corresponde ao nigredo da
primeira matéria e, por isso, diz respeito a todas as etapas iniciais.
De forma semelhante, a ursa aparece no conto como a imagem da totalidade, de
fim que é, ao mesmo tempo, e constantemente, o começo. Simboliza um frequente ciclo
cósmico, um ciclo evolutivo que se fecha sobre si mesmo, conformando um todo absoluto. A
ideia dominante nele é a do eterno retorno, a da eterna volta das coisas sobre si mesmas na
circularidade infinita que é, a um mesmo tempo, quietude e movimento, igualdade e
dessemelhança, renovação e permanente identidade (ACOSTA, 1995, p. 180), ocorrência essa
perceptível pelo fato de que a figura retórica utilizada por Scliar neste conto é a repetição ad
infinitum do paralelismo e de situações valendo-se da hipérbole da diminuição, a qual é
sugerido prolongar-se num processo infinito.
O fenômeno promovido no conto das ursas é semelhante a um ritual de
renascimento no qual o animal é o provedor da renovação dos seres vivos. A ursa assemelha-
se no conto também ao uroboros, animal descrito nos livros do período medieval, comumente
associado a alguns mitos cosmogônicos e a certos rituais secretos como os da alquimia.
Apesar de não estar presente nos bestiários, o uroboros é de grande importância na cultura
medieval, tanto na pagã quanto na cristã. Tal besta é uma grande serpente cósmica, que forma
um círculo mordendo sua cauda ou introduzindo-a em sua boca. Essa serpente enorme e
circular aparece estreitamente associada em várias mitologias à estrutura e ao ritmo do
73

cosmos, e em alguns casos se identifica com o oceano que rodeia a terra (ACOSTA, 1995, p.
181).
Há nesta narrativa também a alusão à trajetória sempre igual da humanidade, pois
o tempo inexoravelmente passa. Entretanto, na renovação da espécie, ao contrário do que se
sonha, não surge o esperado, ou seja, pessoas que seguirão os preceitos dos seus antepassados
sem questioná-los. Sempre há a disputa pelo poder entre o novo e o velho; a tensão entre
tradição e inovação, conservação e renovação. Essa visão crítica e realista da humanidade
configura-se um tema que merece a devida atenção, já que Scliar repreende a sociedade, no
que se refere aos regimes políticos.
A partir da premissa da destruição, o autor cria o mito do eterno retorno,
colocando o binômio destruição-criação como forças anímicas da natureza e do homem em
contato direto com um desígnio superior que, no conto, é indicado como sendo a vontade do
Senhor. Todavia, é no plano do fantástico verbal figurativo (a construção de imagens
retóricas) que reside a força semântica e o significado temático dessas narrativas de Moacyr
Scliar. O conto revela-se, então, portador dos chamados mitos cosmogônicos. Neste contexto,
as ações e eventos convergem, no final, para criarem o efeito de uma grande imagem: a
hipérbole da diminuição gradativa, já interpretada como um processo de destruição para a
criação (ou tentativa de criação) (FONSECA, 1981).
Continuando essa viagem no universo de Moacyr Scliar, segue-se o conto ―Cão‖,
que contém algumas das cenas mais brutais na obra de Moacyr Scliar, aproximando-se da
vertente ―brutalista‖ de Rubem Fonseca, como a caracterizou Alfredo Bosi (1988, p. 18). Isso
porque, neste conto, há procura, através desse recurso, de aproximar mais o seu leitor à
realidade que retrata ficcionalmente.
―Cão‖ é outro conto lido como alegoria da violência e apresenta um fundo atroz,
iniciado com uma conversa entre dois homens. O senhor Armando mostra a seu amigo Heitor
um pequeno cão que trouxe de uma viagem. O animal é resultado de diversos cruzamentos
com a alta tecnologia. É enfatizado o grau de treinamento do cão: ―doze anos de
condicionamento contínuo; ele é capaz de reconhecer um marginal a quilômetros de
distância‖ (SCLIAR, 2004, p. 35).
Surge, então, um mendigo pedindo esmolas. Nesse momento, Armando, põe o
bicho em ação com grande entusiasmo. O animal engole o pedinte inteirinho, sem deixar
vestígios. Heitor propõe, assim, ficar com o cão como pagamento de uma dívida. Armando
não aceita, mas ao ser chamado de marginal e ladrão, é comido pelo cão, antes mesmo que
Heitor pudesse colocar seus óculos que haviam caído. Heitor se apossa do cão, mas sua
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esposa aparece e reclama do animal e ao desconfiar que este tenha sido roubado, chama seu
marido de ladrão e marginal, desse modo, o cão repete o que fizera com o mendigo, Armando
e Heitor, com a mesma eficiência. ―Quanto à mulher, via apenas um cãozinho com a língua de
fora‖ (SCLIAR, 2004, p. 38).
Antes da análise propriamente dita do conto, vale ressaltar que os bestiários
medievais não descreviam tão somente feras selvagens, animais exóticos e monstros. Aqueles
apresentavam da mesma forma, como extensas obras de história natural que são, relatos sobre
vários outros bichos corriqueiros e domésticos, descritos, na maioria das vezes, em termos
realistas, mas que não deixavam de lado a imaginação do escritor ou copista, que, como de
costume, lançava uma pitada de lição moralizante. Assim ocorre em O carnaval dos animais,
visto que Scliar trata desde animais portentosos como os leões e os ursos até os mais comuns
como coelhos e cães.
Não há divergência entre os cientistas que o cão doméstico surgiu do lobo e que é
uma espécie ou sub-raça deste, tendo em vista os nomes científicos do lobo Canis lupus e do
cão Canis lupus familiaris ou Canis canis. Conforme vários historiadores, o cão foi o
primeiro animal a ser domesticado pelo homem. Esse animal possuía um grande valor, tendo
sua imagem crescido, encontrando lugar de destaque nos brasões de grandes famílias e
também na heráldica (SALISBURY, 1994, p. 45).
Apesar de ser comum e do pouco temor que habitualmente provoca, dada sua
condição de animal doméstico, companheiro mais fiel do homem e o melhor guardião de seu
lar, o cão é também considerado uma besta ctônica, ligado ao outro mundo e à morte. Desse
modo, apresenta uma simbologia ambígua, pois como guardião do umbral é também
mensageiro da morte, e como ser ctônico, associado à sombra, muitos escritores atribuem-lhe
o hábito de alimentar-se de pessoas (ACOSTA, 1995, p. 99).
A confluência dessas duas significações simbólico-alegóricas do cão como guarda
e como litigante está presente na figura do cão mais famoso de toda a Mitologia, Cérbero.
Importante salientar que a descrição dessa besta nem sempre é a mesma, havendo inúmeras
variações. Todavia, uma característica presente em todas as fontes é a de que Cérbero é um
cão que guarda as portas do Inferno, não impedindo a entrada, e sim a saída, cão este que
lembra o do conto, pois na Antiguidade, Cérbero era considerado um cão que devorava gente
e, para muitos, é por esta crença que o nome Kérberos (Cérbero) é idêntico a Kroboros
(comedor de carne). Talvez, por esta interpretação, ao cão tenham sido conferidas
características ctônicas.
75

Seja como for, o cão não aparece apenas nos bestiários. Além desses, diversos
enciclopedistas medievais fazem referência ao animal, às vezes, com exagero na precisão,
descrevendo, suas diversas raças e hábitos. Como exemplo, é possível encontrar alguns dados
interessantes acerca do cão em Isidoro e em certos bestiários, como o de Cambridge.
Em Isidoro há a definição do cão como o mais sagaz de todos os animais, pois é
capaz de reconhecer seu próprio nome e os seus comandantes. Relata também acerca de sua
força e velocidade, além de citar a fidelidade ao seu dono e sua função de protetor de seu lar e
das riquezas deste.

Figura 11: A natureza dos cães.


(Aberdeen Bestiary)

Na presente figura, três cães atenciosos são mostrados com coleiras e correntes
para esse animal. Essa ilustração, segundo os bestiários, pode se aplicar alegoricamente aos
três guias espirituais, desde que o condutor possa segurar a corrente para cães.
Já o bestiário de Cambridge também o define como o animal mais sagaz das
bestas, todavia, além disso, é possível ver explicitado não apenas algumas de suas espécies,
mas também suas qualidades e atribuições, acreditando-se que o animal não poderia viver sem
os homens. Nesse sentido, Salisbury afirma que:
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Há numerosas espécies de cães. Algumas seguem a pista das criaturas selvagens dos
bosques para caçá-las. Outras guardam vigilantemente os rebanhos contra as
infestações de lobos. Outras, os cães domésticos, cuidam das paliçadas de seus
donos, a fim de que não sejam roubados à noite pelos ladrões e para defender seus
donos até a morte. Eles prazerosamente despedaçam a caça com o dono e sempre
guardarão seu corpo quando morto, e não o deixarão. Em suma, é parte de sua
natureza que eles não podem viver sem os homens 13 (1994, p. 18).

Salisbury menciona também acerca das diversas raças de cães, citando exemplos
de fidelidade a seus amos, como o cão de Lisímaco que, ao ver seu dono morrer, se atirou na
fogueira em que queimava este.
O cão também é encontrado em determinadas obras literárias medievais, em
vários relatos de temas cristãos, como a vida de São Roque ou da Lenda de São Alexis, nas
quais o animal é o companheiro fiel ou o único a reconhecer de alguma maneira seu antigo
dono, apesar das mudanças sofridas por este e sua miséria física, fato parecido com o que
ocorrera com Argos – cão de Odisseu, da Odisseia de Homero, que foi o único a identificar o
dono quando esse voltou para casa, depois de ter se ausentado vinte anos.
Dessa forma, acredita-se que muitas das características aparentes e comuns dos
cães, como a lealdade ao dono e o instinto territorial e de caça, foram transmitidos do
comportamento em alcateia, característico do lobo.
Quando o assunto era a caça, o auxílio dos cães era fundamental, pois como
menciona Joyce Salisbury (1994, p. 45-46), tal atividade, altamente ritualizada dependia de
um cão treinado de maneira especial para levar o caçador ao animal. Desse modo, vários cães
eram soltos em busca da caça, enquanto seus tratadores os seguiam, encorajando os animais
com gritos. Assim, em matilhas, os cães lideravam os caçadores em longas caçadas,
terminando com a caça sendo encurralada ou morta pela matilha ou por um dos caçadores que
a abatia com uma espada ou com uma lança. Percebe-se, portanto, a importância do cão
quando o assunto era assistência aos humanos na caça.
Aos cães atribuíam-se também defeitos como ambição, gosto pelo litígio e por
latir demais. Ao fazer referência a uma fábula de Marie de France, em que o cão é
personagem central, Joyce Salisbury (1994, p. 133), sintetiza a evolução desse conceito
negativo do animal ao dizer que ―os primeiros pensadores medievais constantemente

13
There are numberous breeds of dogs. Some track down the wild creatures of the woods to catch them. Others
guard the flocks of sheep vigilantly against infestations of wolves. Others, the house dogs, look after the palisade
of their masters, lest it should be robbed in the night by thieves, and these will stand up for their owners to the
death. They gladly dash out hunting with Master, and will even guard his body when dead, and not leave it. In
sum, it is a part of their nature that they cannot live without men.
77

conferiam características desagradáveis para o melhor amigo do homem‖ 14. Entretanto, havia
outro posicionamento adotado em que se destacava o afeto dos cães a seus donos ligado à
ideia de servidão, pois a sua lealdade tornava-os servos de seus senhores.
O fato é que, na literatura medieval, o cão se associa por um lado aos grandes
senhores e à caça, isto é, como cão de raça, e por outro aos burgueses e a camponeses, ou seja,
como cão doméstico. Dessa forma, apesar de, às vezes, ter traços demoníacos, ligados a
matilhas selvagens e noturnas, é, frequentemente, símbolo de fidelidade, sendo representado
quase sempre associado aos seus amos (ACOSTA, 1995, p. 101).

Figura 12: Cães atacam os inimigos de seu dono.


(Aberdeen Bestiary)

A ilustração em dois painéis mostra o Rei Garaments capturado por seus inimigos
e resgatado por uma matilha de cães os quais repelem seus capturadores. É, justamente, essa
característica de fidelidade, descrita desde os bestiários medievais, que se esperava do cão
japonês do conto, todavia, por se confiar na tecnologia, o esperado não ocorreu. Por isso,
Mário Frungillo (2003) afirma que

14
Early medieval thinkers consistently attributed disagreeable characteristics to man‘s best friend.
78

A fé cega nas maravilhas tecnológicas corresponde à cega eficiência da tecnologia


que não sabe distinguir amigos de inimigos. O orgulho de uma civilização
tecnológica, que combina eficiência, precisão e higiene, quando colocado a serviço
de objetivos que remontam aos períodos mais bárbaros e primitivos da humanidade
resulta num pesadelo, que assusta pelo contraste entre os objetivos bárbaros e os
meios empregados para alcançá-lo (p. 165).

A narrativa de Scliar possui natureza dúbia e o insólito de seu universo ficcional


provém de uma ambiguidade básica que se realiza na tensão entre diferentes pólos. A
ambiguidade não se resolve no sentido de se poder optar par uma solução apenas ou por um
caminho definido. Por esta razão, há uma contradição nunca resolvida em sua ficção, um
conflito que se projeta no foco narrativo, no espaço, no tempo, enfim, no nível da organização
romanesca, e ainda na personagem e até mesmo no seu relacionamento com o grupo.
Nesse sentido, o que parece dúbio, insólito, absurdo mesmo, bem como o tamanho
do cão ou até mesmo o modo como devora suas vítimas, sorvendo o sangue sem deixar
vestígios, serve para acentuar, por contraste, o absurdo da própria realidade. É uma literatura
eminentemente crítica do tempo e da realidade que Moacyr Scliar se insere (FRUNGILLO,
2003, p. 161).
O processo de modernização, tendo como exemplo a tecnologia aplicada ao
cruzamento de raças para o nascimento desse cão, age e transforma não apenas a parte perene
da cidade, o ambiente construído, mas também as experiências citadinas, constituindo uma
questão fundamental para os modernos, modificações irrefragáveis resultadas, sobretudo, pela
citada Revolução Industrial tornando a cidade uma imensa arena de contendas acerca do
futuro tecnológico da sociedade (GOMES, 1994).
Visto isso, nota-se que o avanço da tecnologia é incontestável, além de ser um
componente importante para a humanidade. Durante muito tempo, a guerra era travada corpo
a corpo e seu poder destrutivo estava limitado à força dos seres humanos, mas hoje se
desenvolveu uma tecnologia bélica para matar em ritmo industrial. Pode-se observar neste
conto, uma crítica às técnicas cada vez mais eficazes da arte de matar, cada vez mais presente
na vida moderna. Dessa forma a narrativa retorna ao horror das guerras tecnológicas, que
procuram as formas mais eficientes de matar sem sujar as mãos.
Moacyr Scliar nessa versão moderna de bestiário imita em tom de gozação o
discurso moralizador e a descrição ―científica‖ medieval, como base para uma crítica irônica.
Afinal a ironia― tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa; tanto pode
ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva. O prazer da ironia da paródia não
79

provém do humor em particular, mas do grau de empenhamento do leitor no ‗vaivém‘


intertextual‖ (HUTCHEON, 1985, p. 48).
Desse modo, apesar de conferir uma grande leveza à maior parte de suas
narrativas, Scliar apresenta uma espécie de humor amargo, que não esconde, antes torna
evidente, a grande melancolia que perpassa toda sua obra:

O humor é, portanto, extremamente crítico, ácido, com a intenção de acutilar a


sociedade opressora, que não integra os seus valores culturais. Por isso,
forçosamente depois de uma atitude de desespero, alienação mitológica,
apocalíptica, messiânica que dá vida ao sonho, há uma desmistificação da realidade
e uma gradual atitude de descrença (CORREIA, 2005, p. 230).

Assim, uma das ironias basilares encontrada nesse conto está ligada ao fato do
orgulho de Armando, seu cão, se tornar o responsável por sua morte. Isso porque, de tal
animal destaca-se invariavelmente, desde os bestiários medievais, a fidelidade a seu dono,
mas, no conto, é justamente o oposto que acontece.
Já em ―Coelhos‖ há a história de Alice, que, inicialmente, se lembrou da história
que seu marido contava: ―a dos coelhos, que tendo relações com a coelha‖. Disse a ela: ―Está
muito bom, negrinha, não foi?‖ (SCLIAR, 2004, p. 27).
No conto, Alice perdeu a noção do tempo. ―Que dia é hoje? Quarta ou quinta
feira. Tinha trinta e dois anos, vinte e dois, ou doze? não sabia‖. Seu marido a esta hora devia
estar na estrada. Possuía um carro enorme, um Dodge preto. Ela não gostava, mas dizia ele:
―Gerente de fábrica de conserva deve ser conservador‖. Eles viviam numa casa branca,
isolada no alto da colina. Fazia frio. Pensou em vestir o vestido de lã branco. Ela se vestia
bem. Sobressaltou-se ao olhar no espelho, já estava vestida. Ela ia se encontrar com o marido
às oito (SCLIAR, 2004, p. 29).
Uma noite, foram visitar o sócio do marido. ―Apresento-te meu sócio, negrinha.
Coelho, esta é a minha esposa‖. Coelho! Riu. Riram todos. Ao se lembrar do coelho que
ganhou do pai, desceu para garagem, tirou o carro branco, presente do marido e sobre o banco
um coelho de pelúcia. Pôs-se a descer a estrada pedregosa e enevoada. ―É tarde! É tarde!‖ O
grande Dodge vinha correndo. O marido com os dedos crispados na direção. Cacos de vidro
entravam em sua garganta. ―É tudo tão rápido, não foi?‖ – murmurou ela, e fechou os olhos
(SCLIAR, 2004, p. 30).
Não há como ler o conto sem se lembrar de Alice no País das Maravilhas, de
Lewis Carroll (1999). Assim como no país das maravilhas, a Alice de Scliar não se furta a
80

experimentar a falta de sentido, pois esse é um traço da criança: ir contra o sentido para
construí-lo.

- Tenho trinta e dois anos, vinte e dois, ou doze?


―Que dia é hoje?‖ (SCLIAR, 2004, p. 27).
- Podia-me dizer, por favor, qual é o caminho para sair daqui? - perguntou Alice.
- Isso depende muito do lugar para onde você quer ir. - disse o Gato.
- Não me importa muito onde... - disse Alice.
- Nesse caso, não importa por onde você vá. - disse o Gato (CARROL, 1999, p. 46).

O insólito constitui a base deste conto, embora parta do real. A perda do contato
temporal do homem que corre em busca do tempo, faz com que esse se perca. Desse modo, a
presença do fantástico é empregada com o objetivo de denunciar a falta de sentido da
personagem que não se enquadra no momento vivido.
Assim como Lewis Carroll, Scliar, diferentemente de muitos autores, pois não
escreveu uma história concisa, com uma trama linear, apropriou-se de elementos figurativos,
subjetivos e, muitas vezes, subliminares para recontar uma espécie de delírio.
Cada elemento escolhido por Scliar revela desejos, segredos e turbulências
próprias da mente humana. A história do conto manteve, nas mãos de Scliar, todo o
surrealismo de Lewis Carroll, com a presença de figuras, muitas vezes, ou na sua maioria,
incompreendidas pelas crianças, e que mesmo os adultos precisam parar para refletir sobre.
Várias são as ferramentas empregadas por Scliar para a construção do fantástico
em sua obra. Todas bem empregadas artisticamente, levando o leitor a hesitar sobre a
realidade do conto. A obra apresenta inúmeros aspectos simbólicos, tais como o constante
contraste de cores, como se pode notar em alguns trechos do conto a seguir transcritos:

[...] Era uma bela casa, espaçosa, construída em sólida pedra branca e madeira
escura A cerração cobria tudo, como um mar branco... ―Que frio! Vou por um
vestido de lã branco. Dirigiu-se ao guarda-roupa, abriu as pesadas portas de cedro
escuro (SCLIAR, 2004, p. 27 – grifo nosso).
[...] Correu à garagem, tirou de lá o pequeno carro branco.
[...] Possuía um carro enorme, um Dodge preto (SCLIAR, 2004, p. 27 – grifo
nosso).
[...] Estendeu precipitadamente a mão, derrubando a xícara. Uma mancha preta de
café espalhou-se sobre a toalha branca. Atrás do bule: um coelhinho branco de
pelúcia (SCLIAR, 2004, p. 27 – grifo nosso).

Moacyr Scliar inicia o conto resgatando uma qualidade tradicional dos coelhos:
―O coelho é um animal de coito rápido‖. Assertiva essa provinda do livro 8 de História
Natural de Plínio, o Velho, que menciona acerca da rapidez do coito desses animais e de sua
enorme fertilidade.
81

Isidoro, acreditando que a denominação da palavra podia conter em si


informações sobre a própria realidade referida, afirma que o nome ―coelho‖ provém do latim
caniculi, significando cães pequenos, porque são tomados quando monitorados por cães
(SEVILHA, 1994).
Segundo Joyce Salisbury ao tratar da questão da utilização de animais para
representar características humanas, a partir do século XII, a mentalidade medieval associava
os animais a importantes metáforas, tornando-os ―guias para as verdades metafísicas, como
exemplares humanos15‖ (1999, p. 103).
Como se vê, Scliar utiliza, em seus contos, tanto a recorrência aos bestiários
medievais quanto a outras ferramentas de ficção: realismo fantástico, alegorias,
zoomorfização do homem e personificação de animais, tudo isso para construir um discurso
polifônico e se posicionar como crítico da realidade.
Neste pequeno conto, são apresentados implicitamente dois importantes animais
presentes na simbologia bestiária medieval. Por um lado, o cordeiro, símbolo de submissão e
passividade, na figura da esposa, Alice, e seu marido, no papel de lobo, conforme é possível
perceber no seguinte trecho:

[...] Que frio! Vou por um vestido de lã branco (SCLIAR, 2004, p. 30).
[...] Um homem forte de espessas sobrancelhas negras e dentes poderosos. Um lobo
solitário. Estreitava-a entre os braços peludos. [...] Os dentes poderosos
arreganhados, brancos, brancos (SCLIAR, 2004, p. 30 – grifo nosso).

Sobre o cordeiro, vale relembrar que este representa uma importante figura do
ideário cristão que se remete à figura do Agnus Dei, o cordeiro de Deus, Jesus Cristo. A
respeito do tema em comento, Joyce Salisbury assim relata o pensamento medieval
corrente:

Desde os primeiros dias cristãos, os cordeiros eram fortemente carregados com


simbolismo. Cristo foi tanto o cordeiro de Deus quanto o bom pastor reunindo os
fiéis ao rebanho. O cordeiro permaneceu como símbolo para o melhor no auto-
sacrifício conforme a tradição cristã. S. Francisco (sempre simpático a todos os
animais) gostava particularmente dos cordeiros, porque, como escreveu seu biógrafo
S. Boaventura, os cordeiros ―apresentam um reflexo natural da misericordiosa
mansidão de Cristo e o representam no simbolismo das Escrituras 16‖ (SALISBURY,
1994, p. 132).

15
[...] as guides to metaphysical truths, as human exemplars.
16
From the earliest Christian years, lambs were heavily laden with symbolism. Christ was both the lamb of God
and the good shepherd gathering the faithful into the flock. The lamb remained the symbol for the best in self-
sacrifice in the Christian tradition. St. Francis (always sympathetic to all animals) was particularly fond of lambs
because as his biographer, St. Bonaventure, wrote, lambs ―present a natural reflection of Christ‘s merciful
gentleness and represent him in Scriptural symbolism‖.
82

Sob esse ponto de vista, ―os cordeiros eram considerados estúpidos e covardes,
quase que merecendo aquilo que recebiam17‖ (SALISBURY, 1994, p. 132). É possível
demonstrar isso no manuscrito Ba 53: Não nos causa grande admiração, se o lobo come o
cordeiro18 (BRAGANÇA JÚNIOR, 2006, p. 6).

Figura 13: O lobo.


(Aberdeen Bestiary)

Na ilustração acima o lobo se aproxima de um pequeno curral para ovelhas como


um cachorro, furtivamente e silenciosamente, sem despertar o pastor. Seus olhos, segundo
descrito nos bestiários, brilham a noite como lâmpadas.
O lobo, visto pela perspectiva da imagística medieval, prende-se ao caráter
negativo a ele imposto. Desde a fábula 1 do livro I de Fedro, cujo título seria Lupus et agnus,
já seria enfatizado a respeito de sua atitude agressiva e cruel sobre os mais fracos. Ele carrega
consigo a injustiça à ordem social em consequência de sua descomunal ambição, fato este que
o fez perder sua altivez (BRAGANÇA JÚNIOR, 2007, p. 22).
Convém observar que, conforme Salisbury, o lobo não era repreendido por ser
predador, já que, ―afinal de contas, a guerra – ocupação predatória – era privilégio da classe
nobre; era sua razão de existência. Aquela classe favorecia seus animais de caça acima de
todos os outros, preferia em suas caçadas, e em um nível simbólico, o leão, como o predador

17
Sheep (and lambs) were considered stupid and cowardly, almost deserving whatever they received.
18
Si lupus est agnum, non est mirabile magnum.
83

19
mestre, acima de todos os outros‖ (1994, p. 130). Contudo, por causa de sua insaciável
voracidade seu prestígio foi sendo perdido. Salisbury assim menciona a fábula medieval do
pregador e do lobo, que bem explicita o caráter de insaciabilidade de tal animal numa fábula
em que

[...] um pastor tenta ensinar ao lobo o alfabeto (talvez para melhorar seu caráter). O
lobo concentra tempo bastante para aprender a letra C, mas quando ele é perguntado
como aquilo poderia ser pronunciado, ele responde ―cordeiro‖, revelando que sua
mente não tinha se libertado do seu estômago 20 (1994, p. 130-131).

Há no conto de Scliar, uma aproximação com a fábula de Marie de France em


que proporciona outra consideração a respeito do animal, a partir de um ponto de vista
mais ligado à natureza, apresentando o cordeiro, como vítima natural de seus predadores,
sobretudo, do voraz Canis lupus, o lobo, como se depreende dos seguintes trechos

O lobo então apanhou o tão pequeno cordeiro,


Estraçalhou o pescoço, tudo extinguiu21 (SALISBURY, 1994, p. 132).

Já no conto:

Foi então que viu o grande Dodge preto crescendo à sua frente. O marido, dedos
crispados na direção, rindo – os dentes poderosos arreganhados, brancos, brancos.
Os cacos de vidro varando-lhe a garganta, os ferros esmagando-lhe o peito.
É tudo tão rápido, não foi? – murmurou ela, e fechou os olhos (SCLIAR, 2004, p.
30).

Desse modo, embora os contos de Scliar não incluam textos com as marcas
formais dos bestiários – descrição de um animal com uma lição acoplada – apresentam várias
marcas que revelam a influência dos bestiários. Em ―Coelhos‖ é possível verificar acerca da
―natureza‖ dos cordeiros na figura de Alice, uma vez que, no âmbito do imaginário popular
medieval, tais animais necessitavam de um amparo e uma atenção em especial por parte dos
criadores, possivelmente, em razão de sua mansidão e passividade perante o homem e seus
predadores naturais, especialmente do lobo. Desse modo, Scliar explora esse atributo do

19
After all, war – the predatory occupation – was the privilege of the noble class; it was their reason for
existence. That class favored their hunting animals over all others, and on a symbolic level they placed the lion,
the master predator, above all others.
20
[…] a preacher attempts to teach the wolf the alphabet (perhaps to try to improve his character). The wolf
concentrates long enough to get the letter C, but when he is asked what that might spell, he answer ―lamb‖,
revealing hat his mind has not been raised from his stomach.
21
The wolf then grabbed the lamb so small,
Chomped through his neck, extinguished all.
84

cordeiro, animal inerme e covarde, equiparando-o com a mulher, que sofria sem reagir às
injustiças cometidas por outros.
Como é notável, as figuras dos animais ocupam grande destaque na ficção de
Scliar. O homem animaliza-se e desumaniza-se. Por vezes, os animais são os próprios
personagens da narrativa, como no conto ―A vaca‖, em que é mostrado um naufrágio ao largo
da costa da África, em que se salvaram um marinheiro e uma vaca, Carola. Durante a
madrugada com o raiar do sol, o rapaz, agarrado aos chifres da vaca deixou-se conduzir a uma
ilhota arenosa, deserta, com ―poucas árvores raquíticas‖ (SCLIAR, 2004, p. 31).
Sentiu fome. Chamou a vaca Carola, ordenhou-a ―e bebeu leite bom, quente e
espumante‖. Naquela noite dormiu abraçado à vaca e teve ―sonhos reconfortantes‖. Sentia
mais fome. Gradativamente foi comendo as partes tenras de Carola. A vaca contentava-se em
lamber os ferimentos sem dar um mugido. Teve cuidado para não ferir os órgãos vitais.
Depois, com pedaços do couro de Carola fez roupas, sapatos e um toldo para abrigar-se do sol
e da chuva. Atrelou a vaca num velho arado e lavrou um pouco de terra. Usou o excremento
dela como adubo e ossos como fertilizante. Plantou alguns dentes de milho que tinham ficado
nas cáries da dentadura de Carola. ―Na festa de São João, comeu canjica‖ (SCLIAR, 2004, p.
32).
Na primavera, arrancou um dos olhos da vaca e bebeu-o com a água do mar. Teve
visões voluptuosas. Transportado de desejos, aproximou-se dela. ―E ainda desta vez, foi
Carola quem lhe valeu‖. Um dia avistou um navio no horizonte. Arrancou um dos chifres de
Carola e soprou-o como berrante, ―mas não obteve resposta‖. Pôs fogo no ventre da vaca. Ela
incendiou-se, o rapaz ―julgou ter visto uma lágrima. Mas foi só impressão‖. O navio voltou à
ilha. Recolheram-no. Ele ―apanhou um montículo de cinzas fumegantes‖, e deu adeus à
Carola. Julgaram-no louco (SCLIAR, 2004, p. 33).
Em seu país natal, enriqueceu. Tornou-se granjeiro ―dono de um tambo com
centenas de vacas‖. Tinha pesadelos todas as noites. Aos quarenta anos viajou para a Europa
de navio. No ―tombadilho iluminado pelo luar‖, ficou olhando o mar, viu uma ilhota no
horizonte. Alguém lhe diz - alô – ―Voltou-se. Era uma bela loira, de olhos castanhos e busto
opulento. – Meu nome é Carola – disse ela‖ (SCLIAR, 2004, p. 33).
Nesse conto, aparece um dos animais de enorme valia e utilidade para o homem, a
vaca, que contribuiu, significativamente, para a economia humana em todas as épocas da
história, especialmente na medieval. Considerada grande fornecedora de alimento e por ser
empregada na aragem de terrenos até mesmo na atualidade, a vaca era, e ainda é considerada
um animal doméstico, cuja dispersão em territórios europeus já estava consolidada desde o
85

início do período medieval. Seu grande valor para a Idade Média era, portanto, indiscutível, se
o foco tratado fosse de maneira econômica.

Figura 14: O boi.


(The medieval bestiary, British Library, Cotton Tiberius)

Sua importância como bem material é reconhecida por Joyce Salisbury (1994, p.
34) quando descreve que era classificada em códigos como animal de alto nível, embora não
tão alto quanto os animais de caça, pois ―depois dos animais de guerra ou de caça, os mais
valorizados eram aqueles utilizados para o trabalho. Bois e éguas faziam a maior parte do
trabalho duro da aragem, extremamente estressante, para separar os grãos das cascas, e para
puxar carruagem22‖.
Assim como nos bestiários, também ocorre no conto analisado:

Quando a carne começou a escassear, atrelou a vaca a um tosco arado, feito de


galhos, e lavrou um pedaço de terra mais fértil, entre as árvores.
Usou o excremento do animal como adubo. Como fosse escasso, triturou alguns
ossos, para usá-los como fertilizante.
Semeou alguns grãos de milho, que tinham ficado nas cáries da dentadura de Carola.
Logo, as plantinhas começaram a brotar e o rapaz sentiu renascer a esperança
(SCLIAR, 2004, p. 33).

Nesse sentido, o marinheiro serve-se da vaca para tirar seu sustento do trabalho no
campo, utilizando-a como instrumento para a realização de seus afazeres.
Álvaro Alfredo Bragança Júnior (2006, p. 06), traçando considerações acerca da
utilização de algumas espécies animais no discurso paremiológico, relata outra visão medieval
da figura masculina desse animal, que consistia em inseri-lo, do mesmo modo como se fazia
22
After animals for war or hinting, the most value were animals that were used for labor. Oxen and mares did
much of the hard word of plowing, harrowing, threshing, and pulling carts, and all the codes ranked them highly,
through not as highly as the hunting animals.
86

com o cordeiro, dentro da história do cristianismo, pois conforme os textos da época


examinados por Jeffrey Russell um boi nunca seria possuído pelo demônio, pois o animal em
questão encontrava-se presente no nascimento de Jesus e mais ainda, ―além de suas
associações com o nascimento de Jesus, o boi era provavelmente um animal tão mundano, tão
associado à propriedade, para ser unido à presença diabólica23‖ (SALISBURY, 1994, p. 141).
De fato, esse grau de ―mundanidade‖ fez com que a figura da vaca, no decorrer do
período medieval, adquirisse contornos de ―inferior‖, quer dizer, que apresentava
precisamente as qualidades do trabalho subserviente. A partir de comparações com os
camponeses (servos) da gleba e demais tipos de vassalos, pode-se atribuir então a esse animal
a representação metafórica pertencente à classe serviçal, o que se faz perceptível a partir do
acima exposto (BRAGANÇA JÚNIOR, 2006, p. 06).
Joyce Salisbury trabalha essa equação, lembrando que os animais que serviam,
principalmente, como comida eram menos valorizados que os animais de trabalho. Por
exemplo, nas leis de Alaman, a vaca (primariamente um animal de alimento), foi avaliada em
um terço da quantidade de um cavalo de tração e os Burgúndios avaliavam as vacas, carneiro,
e porcos igualmente por volta da metade do valor de um animal para tração. Os Burgúndios
avaliavam as vacas, carneiro, e porcos igualmente, mas cabras, as quais eram quase do
tamanho de um carneiro, valiam somente um terço tanto quanto os outros animais de
alimento24 (SALISBURY, 1994, p. 34).
Através de um provérbio medieval, Bos fenum comedit, cum pectoris ira recedit,
―o boi come o feno, quando a ira de seu peito se afasta‖ exemplifica-se o animal em aparente
sossego, contudo fazer referência a uma ira pectoris anterior, que leva à suposição de uma
provável experiência de sublevação contra sua vida - metaforicamente, a posição social do
homem medieval -, no intuito de afirmar que a alimentação como sustento era tudo que o
medievo poderia almejar (BRAGANÇA JÚNIOR, 2006, p. 06).
A forma metanarrativa da mise en abyme aparece, também, em ―A vaca‖, em que
o desenvolvimento da narrativa cria ao leitor uma ilusão de profundidade, de estar
desfalecendo em abismo.

23
Beyond its associations with Jesus‘ birth, the ox was probably too mundane an animal, too associated with
property, to be linked to diabolical presence.
24
Animals serving primarily as food were valued less than laboring animals. For example, in the Alaman laws, a
cow (primarily a food animal) was valued at one third the amount of a draft horse, and the Burgundians value
cows, sheep, and pigs equally at about half the rate of a draft animal. The Burgundians valued cows, sheep, and
pigs equally, but goats, wich were about the size sheep, were worth only one third as much as the other foods
animals.
87

Encontra-se a presença do erotismo nesse conto, exemplificada pela relação entre


o marinheiro e a vaca, onde se mostra que a vaca vive, simbolicamente, a opressão e a
exploração machista por intermédio do marinheiro. O rapaz come literal e metaforicamente a
vaca, ou seja, Carola. Aproveita-a de diversos modos, utiliza-a em benefício próprio e por
fim, sacrifica-a, sem receio, para salvar-se.
O conto retrata a falta de sensibilidade afetiva para tematizar de maneira mais
aguda a aceitação de um estado de dependência e a corrosão do diálogo, sendo uma outra
forma de violência gerada pela modernidade.
Ao se perceber que a narrativa é organizada a partir da indiferença expressa pelo
marinheiro em relação à sua companheira, Carola, o que se tem é um retrato das mudanças de
valores nas relações familiares e afetivas, tema constante nas obras do autor. A atitude do
marinheiro demonstra o descaso no que se refere às necessidades básicas da vaca, e causa um
maior estranhamento, pelo fato de que foi graças a Carola que o mesmo conseguiu sobreviver
ao acidente, visto que não era bom nadador.
Na maioria das narrativas curtas de Moacyr Scliar, é possível observar e discutir a
temática da identidade cultural do homem, através de dois expedientes: a ironia e o fantástico.
A respeito da brecha por onde se insinua a ironia, o crítico literário Malcolm Silverman
enfatiza:

A característica fundamental de Scliar é a ironia, não a do tipo relativamente sutil de


um Machado ou de um Eça, mas a ironia vibrante, intensa, própria de sua espécie
particular de parábola contemporânea. Ele combina a fantasia infantil e o escapismo
adulto, adicionando ainda uma melodramática ou tragicômica percepção da
insensatez humana. Neste contexto, sua ironia, oscilando entre o ridículo e o
sublime, demonstra ser particularmente rica em imagens simbólicas (1978, p. 170).

Dessa forma, Moacyr Scliar ao evidenciar o comportamento social, o faz com


noções de absurdo e de sobrenatural, buscando uma perfeita harmonia entre a ironia e a crítica
à conduta do indivíduo. Em ―A vaca‖, essa característica está presente na seguinte passagem:

Os dias foram se passando e o rapaz cada vez mais se apegava à vaca. ―Vem,
Carola! Ela vinha, obediente. Ele cortava um pedaço de carne tenra – gostava muito
de língua – e devorava-o cru, ainda quente, o sangue escorrendo pelo queixo. A vaca
nem mugia. Lambia as feriadas, apenas. O marinheiro tinha sempre o cuidado de
não ferir os órgãos vitais; se tirava um pulmão, deixava o outro; comeu o baço, mas
não o coração, etc (SCLIAR, 2004, p. 32).

Aqui, pode-se perceber a ironia presente na narrativa de Scliar, uma vez que o
sarcasmo está atrelado ao comportamento do marinheiro, pois, se observava os órgãos vitais
da vaca, era, unicamente, com a intenção de não por fim à sua fonte de alimento, ou seja, a
88

única preocupação da personagem refere-se ao seu próprio bem-estar. Desse modo, de uma
acidez demasiado forte, o humor judaico pode ser encontrado na ridicularização de ambas as
personagens.
A fraqueza e covardia do animal em não sair do estado de submissão à seu dono,
não obstante, foram associadas, metaforicamente, a uma total falta de iniciativa, que
carregaria, então, a imagem que, desde a Idade Média até os dias atuais, se tem deste animal
dócil, porém estúpido.
No conto, o ciclo da vida, nascimento e morte já estaria preparado para a vaca,
que deveria simplesmente segui-lo, já que sua roupagem estaria adequada às suas funções de
servir ao seu senhor, o marinheiro, assim como se lia nos bestiários do período medieval.
O tema da submissão é mostrado com a relação cultivada pelo marinheiro e
Carola, com um relacionamento pobre, de dominador e dominada, de opressor e oprimida.
Como já visto, há tempos os animais aparecem como imagens refletidas, metáforas, símbolos
do próprio homem, com seus sentimentos sublimes e execráveis. Assim, sabendo que a
posição da mulher não é, particularmente, beneficiada na religião judaico-cristã, é possível
afirmar que esta foi simbolizada pela figura da vaca. Todos os sacrifícios que o animal sofre,
em proporção crescente, aponta o alto grau de degradação feminina, ou seja, da mulher que,
meramente, vive para servir o outro.
Como se vê, Moacyr Scliar, com seu ―bestiário moderno‖, vê os bichos, de um
modo geral, como seres providos de inteligência e sensibilidade, projetando neles sentimentos
e conflitos humanos, às vezes ironizando, outras vezes aproveitando o estilo moralizante dos
bestiários. Fato este que mostra a presença de sugestões buscadas à herança do ideário
bestiário medieval, todavia, apresentando modulações, visto que são marcadas por outro
contexto.
89

2.5 O carnaval dos animais: muito além de um livro fábulas

Os diversos tipos de violência humana parecem expor-se agressivamente nos


recônditos de todas as camadas sociais nos contos de Moacyr Scliar como é visível nesta
análise, em que se nota uma violência pública e perniciosa. Propositalmente, ele parodia a
vida e o homem modernos e a visão de uma sociedade confusa, caótica, obrigando o leitor a
depreender das entrelinhas os sentidos que quer evidenciar. Fato este que fez com que o autor
se transformasse numa espécie de matriz da narrativa fantástica brasileira, disseminando sua
influência em diversos outros escritores.
Nestes contos de Moacyr Scliar, que surpreendem como ―teatro de uma guerra de
relatos‖ como diz Michel de Certeau (1997), levanta um repertório de temas contemporâneos:
a proliferação das diversas formas de violência atreladas à cultura do medo e às relações de
poder, na cidade atual.
O escritor retoma, eficazmente, elementos do simbolismo animal e a arte de
contar histórias à proporção que sua obra reúne elementos tradicionais como o vigor do
enredo, a perfeita caracterização das personagens, o clímax, o suspense, processos formais
modernos como a mistura de gêneros, a descontinuidade cronológica e as mudanças bruscas
de ponto-de-vista. Além de desafiar ―as noções de coerência cultural, fazendo da alteridade
um privilegiado ponto de observação para o entendimento da diversidade‖ (VIEIRA, 2000).
Além disso, os animais de Moacyr Scliar têm um sentido mais amplo e especial:
representam forças sobrenaturais que se manifestam interferindo no mundo dos homens,
forças de extremo poder na determinação da sua vida. Às vezes, são forças que se revestem de
um poder mítico, que condiciona a sobrevivência e evolução transformativa da vida do
homem no mundo. Por vezes, não é só o animal propriamente dito, mas também a natureza,
num sentido mais amplo que, com um animismo de força natural, através dos instintos e
projeções, se revela inclusivamente no homem e nas suas criações (FONSECA, 1981).
Após a análise do simbolismo animal, alinhavando alguns elementos dos contos
de Moacyr Scliar, se destaca o fato de que não é possível ver o autor como um mero retratista
da sociedade. Ele mergulha profundamente no drama do desencontro paradoxal do homem
(LUCAS, 1970). Sua obra apresenta maiores sutilezas, temas mais complexos e ricos, como
os avanços tecnológicos e a submissão da mulher perante o homem.
Na literatura de Moacyr Scliar, permeada pelo universo da violência e das mazelas
existentes na sociedade, mais que um interlúdio, o conteúdo lírico que extravasa os conteúdos
da subjetividade surge como um elemento intensivo em relação à realidade descrita. Tendo
90

em vista que não só ―a paródia e a ironia são os traços característicos de Scliar; com elas
convive, de modo estranhamente exuberante, um toque poético capaz de se manifestar até
mesmo diante dos momentos mais terríveis da miséria humana‖ (VOGT, 1979).
Dessa forma, O Carnaval dos Animais, extremamente sugestivo a partir do título,
foge de sua premissa inicial, uma vez que espera-se folhear um livro de fábulas, no sentido
tradicional do termo. Todavia, o que acontece na verdade é que, ironicamente, esses contos
não utilizam apenas as técnicas e recursos daquele gênero, no primitivo sentido alegórico que
ele encorpa: a criação de um mundo animal anímico, sucedâneo ao do homem, para com
intenções satíricas e/ou cômicas criticar, com fins morais, os valores da sociedade humana.
Isso porque, aqui o homem se coloca frente aos desafios da natureza e do próprio homem
numa situação de competição interativa, criando os seus mitos de força e sucumbindo-se a
eles (FONSECA, 1981).
É nesta vivência do choque que está retratada a sociedade possuidora de várias
vozes, considerando o espaço citadino como o lugar por excelência de relações entre seus
habitantes, em que o desapontamento do escritor é manifesto, num sentimento de impotência
e melancolia social, que distancia cada vez mais o sonho da realidade. As personagens que
buscam a vitória frustram-se, e as que não o fazem vivem resignadas dentro do sonho.
Depara-se, assim, com a obra de Scliar, dividida entre o fantástico e o real, mergulhada,
profundamente, na polêmica das questões políticas, sociais, econômicas e mentais que
assolam a sociedade urbana.
Assim, a experiência urbana, no plano da ficção, em Moacyr Scliar se dá sob
signo da velocidade, do dinamismo, da violência do movimento e do caráter multiforme dessa
experiência. Na busca de decifrar o indivíduo na sociedade por intermédio do simbolismo
animal medieval, se percebe que os textos revelam e constituem um verdadeiro liame entre
ficção e realidade, cuja retórica que o discurso ficcional veicula na lógica das aparências.
Atuam, neste sentido, como um bestiário do século XX, seduzindo e desafiando o leitor a
refletir sobre o narrado e dele abstrair conclusões.
91

3 O BESTIÁRIO POÉTICO DE MANOEL DE BARROS

Pergunte, porém, aos animais,


e eles o ensinarão,
ou às aves do céu, e elas lhe contarão;
fale com a terra, e ela o instruirá,
deixe que os peixes do mar
o informem.
Quem de todos eles ignora
que a mão do SENHOR fez isso?
Em sua mão
está a vida de cada criatura
e o fôlego de toda a humanidade.
JÓ, 12:7-10

3.1 A poesia lírica

O presente capítulo tem como objetivo verificar a presença do simbolismo e do


imaginário bestiário medieval na poesia de Manoel de Barros. Todavia, antes de uma análise
propriamente dita, surge a seguinte pergunta: O que vem a ser poesia? São diversas as
definições de poesia oferecidas por inúmeros estudiosos do assunto. Nesse sentido, Octavio
Paz diz que:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de


transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício
espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria
outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à
terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio. Diálogo
com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero (...).
obediência às regras; criação de outras. Loucura, êxtase, logos.
Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. (...) o poema é
um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas
correspondências, ecos, da harmonia universal (1982, p. 15).

Pela definição de Paz, nota-se que poesia é a arte revolucionária, que pode
transformar o mundo. Obediência às regras e criação de outras. Dentre diversas outras
definições de poesia, vale mencionar também a de Ezra Pound (2001, p. 40), em ABC da
literatura, para a qual ―literatura é linguagem carregada de significado. A grande literatura é,
simplesmente, linguagem carregada de significado até o máximo grau possível. Começo com
a poesia porque é a forma mais condensada de expressão verbal.‖
Pound explica que Basil Bunting, poeta inglês, autor de Redimiculum Matellarum
e Poems, ao folhear um dicionário alemão-italiano, verificou que a ideia de poesia como
concentração é tão antiga quanto a língua germânica. O verbo alemão dichten corresponde ao
92

substantivo dichtung, significando poesia, foi traduzido por um verbo italiano cujo sentido é
condensar.
Ainda acerca da poesia, é possível verificar, segundo Ana Maria Lisboa de Mello,
que

Poesia é símbolo ou expressão simbólica, linguagem que se oculta e se mostra, ao


mesmo tempo; poesia é ritmo que faz pulsar as palavras e possibilita o retorno a um
tempo original, no ato de criar e em cada ato de leitura; expressão simbólica e
movimento rítmico associam-se para proceder a uma revelação (2002, p. 53).

Assim, por intermédio da poesia é possível proporcionar ao homem um encontro


consigo mesmo. Esse encontro pode ocorrer quando o poeta traz para seus poemas algo que é
motivo de conflito para o ser humano, exprimindo, assim, como o próprio homem se
comporta diante de seus conflitos e, sobretudo, diante de si mesmo e do mundo.

É preciso descer, ir ao fundo de si mesmo, calar, esperar. A esterilidade precede a


inspiração, como o vazio precede a plenitude. A palavra poética pode brotar depois
de eras de seca. Mas qualquer que seja seu conteúdo expresso, sua significação
concreta, a palavra poética afirma a vida desta vida. Quero dizer: o ato poético, o
poetizar, o dizer do poeta – independente do conteúdo particular desse dizer - é um
ato que não constitui, pelo menos originalmente, uma interpretação, mas uma
revelação de nossa condição. Falando disso ou daquilo, do morrer ou do nascer, a
palavra poética é ritmo, temporalidade manando-se e reengendrando-se sem cessar.
E sendo ritmo é imagem que abraça os opostos (PAZ, 1982, p. 179).

A poesia, mais especificamente a poesia lírica, suspende o tempo comum, ou


melhor, ela é a ruptura desse tempo. Nesse sentido, ela é uma espécie de revolução. Segundo
Bosi (2000, p. 169):

[...] a poesia resiste à falsa ordem, que é a rigor, barbárie e caos. Resiste ao contínuo
harmonioso pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo
harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando
uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.

É nesta direção que caminha a poesia de Manoel de Barros, haja vista que o autor
desconstrói as coisas do seu significado mais habitual, com vistas a expressar-se com uma
nova linguagem. Trata-se de arrancar as palavras dos clichês. Por isso, propõe uma poética
que vai levar a linguagem às últimas consequências, pois vai desabrigar a palavra de seu
sentido usual. Na verdade, o que o eu lírico faz é se remeter ao próprio sentido da poesia. É
dizer que a poesia é linguagem que quer o avesso do avesso, ou seja, que quer deslocar ao
máximo a representação da realidade, para que essa possa de fato se revelar no seu sentido
mais originário. Nas próprias palavras de Barros:
93

Será que os absurdos não são as maiores


virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais
carregados de poesia do que o bom senso? (BARROS, 1999a).

Na poesia de Manoel de Barros, vê-se que o poeta realça a superioridade da


palavra, pois ―poesia não é feita de sentimentos, mas de palavras, palavras, palavras‖ e a
função da poesia é ―promover o arejamento das palavras, inventando para elas novos
relacionamentos, para que os idiomas não morram a morte por fórmulas, por lugares comuns‖
(BARROS, 1996, p. 309).
Tem-se, então, a exposição de um paradigma que figura por praticamente toda a
obra do autor: a recusa aos grandes temas, a elevação do desimportante à categoria poética;
assinalam, também, as filiações poéticas que, possivelmente, influenciam as escolhas de
Barros para sua composição.
Nesse sentido, em Manoel de Barros é possível verificar uma poesia que busca o
originário, que subverte a linguagem para apresentar o ―real‖, pois é construída a partir da
negação. Afinal,

A poesia não é uma opinião nem uma interpretação da existência humana, aquele
que fornece o ritmo-imagem expressa simplesmente o que somos; é uma revelação
de nossa condição original, qualquer que seja o sentido imediato e concreto das
palavras do poema. (PAZ, 1982, p. 180).

A escolha de Manoel de Barros justifica-se, então, além da constatação de uma


presença contínua de motivos imaginários e simbólicos da imagem e do mundo animal em sua
poesia, mas também pela maneira singular com que os aborda, sem comprometer-se com
dogmas, credos ou verdades absolutas, motivando-se, muito mais, por um imaginário aberto a
múltiplas ligações do homem com a natureza.
Barros também foi selecionado por ser visto como um homem que vive numa
encruzilhada de culturas em que a identidade brasileira é construída, num constante processo
de transformação. Afinal, Campos Filho (2002), em diálogo com Victor M. Toledo, afirma
que a cultura pantaneira contemporânea é uma síntese da tradição e da modernidade trazida
pelos povos que para lá foram, significando, então, transformação.
Visto isso, neste capítulo da dissertação, propõe-se discutir poemas de Arranjos
para assobio, de Manoel de Barros, observando determinados recursos poéticos utilizados
pelo autor, característicos da poesia contemporânea, como a busca incessante da palavra
poética, o uso da metalinguagem na descrição do processo de produção poética e do que é
poesia. Assim, a intenção principal dessa parte do estudo consiste em elucidar o bestiário de
94

Barros, observando a questão de sua influência motivacional e simbólica, que fazem coro
ressonante do imaginário medieval.
Todos estes aspectos apontados acima serão desenvolvidos no decorrer da análise.
Citá-los, como será feito a seguir, e assinalar alguns de seus aspectos serve apenas para situar
o leitor e introduzi-lo na problemática das obras.

3.2 Manoel de Barros, poeta por natureza

Manoel de Barros surge no panorama das letras nacionais em 1937, com a


publicação de Poemas concebidos sem pecado e segue até a sua obra mais recente, Memórias
inventadas: a segunda infância (2006) sendo que grande parte de sua obra foi escrita fora de
sua terra natal. A poesia de Barros, em seu enredamento, apresenta um conjunto de
informações favoráveis à compreensão do ser humano e por não se ajustar ao raciocinar
retilíneo, clama por um retorno ao originário do pensar. Desse modo, busca uma atitude de
apresentação, que converge o sentir e o pensar em um impartível conjugar dos contrários
(PRIOSTE, 2006, p. 13).
Para elaborar sua poesia, o poeta pratica uma transgressão gramatical, ao mesmo
tempo em que brinca com as palavras, como ―um menino a brincar no terreiro‖. Trata-se de
―promover o arejamento das palavras, inventando para elas novos relacionamentos, para que
os idiomas não morram a morte por fórmulas, por lugares comuns‖ (BARROS, 2002, p. 47).
É pela palavra que ele se orienta ou desorienta seu interlocutor a interpretações (abstratas ou
concretas). Pelo fato de o poeta contrariar a gramática, tem a liberdade para criar palavras e
ser motivado por elas para o encontro com o novo. Assim, esse tratamento constitui a matéria-
prima de sua poesia, sobretudo, aquelas desgastadas, ―prostituídas, decaídas‖ que, com prazer,
Barros arruma-as ―num poema, de forma que adquiram nova virgindade‖ (GUIZZO, 1992, p.
310).
O poeta apresenta um universo nada urbano: anhuma, pacus, beija-flor de rodas
vermelhas, gravanhas, águas, pedras e árvores, que juntos compõem um verdadeiro
ecossistema simbólico. Em decorrência disso, é perceptível um determinado efeito de
estranhamento para quem habita em grandes cidades. Ele é porta-voz de um mundo que não é
frequente aos citadinos. O cenário do qual parte sua voz é o do mato embrenhado, das
extensões dos rios. Tudo se misturando num processo de troca e sinestesia (RODRIGUES,
2006, p. 19). Um local ancestral, onde seres miúdos e animais silvestres reinam e compõem
95

um bestiário particular, fazendo o leitor enxergar o Brasil tanto em sua geografia física quanto
em sua geografia humana, a fim de o poeta executar seu trabalho com a linguagem sem
restrições.
Sabe-se que a imagem do animal apresenta uma realidade poética carregada
demasiadamente, pois desde a origem da poesia ocidental, o animal é visto como a
contraparte não-humana, mas animada e, portanto, digna de uma maior consideração
existencial e filosófica. Isso leva às mais antigas cosmogonias míticas e históricas do mundo
antigo, de permeio com a ressignificação na sequência das manifestações do pensamento
cultural moderno, em que, velhas crenças da tradição medieval sobre a natureza e os animais
foram paulatinamente revistos. Fato este que induz o leitor a estudar o assunto sem
desconsiderar as suas reinterpretações, feitas, principalmente, numa época de maior virulência
filosófica e cultural da Idade Média, através do escolasticismo, que deixaria como legado sua
influência nos quadros do conhecimento da história, da cultura e ideologia ocidentais
(FONSECA, 2003, p. 174).
Assim, a imagem do animal torna-se exegeticamente reinterpretada, vindo a ser,
neste contexto, indispensável considerar os bestiários como verdadeiros repositórios da
mentalidade medieval. Desse modo, faz-se permitido entrever que, muito desse imaginário e
simbolismo animal, recorrente da tradição bestiária medieval, encontra-se presente, de
maneira bastante significativa, na poesia brasileira contemporânea, tornando possível afirmar
que todo o imaginário e simbologia acerca do universo animal pode ter explicações vazadas
na história das ideias da cultura europeia. Portanto, essa constante reorganização simbólica se
torna excessivamente complexa, fazendo jus a uma devida averiguação.
Em sua poesia, Manoel de Barros mostra como não afligir a natureza. Então, vive-
a harmonicamente e na busca de discernir, de maneira prática e empírica, virtudes atribuídas à
fauna e flora brasileiras e sua função ideologicamente doutrinária, demonstra como o homem
transforma a natureza e também como é transformado por ela.
Dessa forma, a poesia de Manoel de Barros apresenta a visão particular de um
inusitado poeta que, perante o conhecimento sobre a vida, sanciona as suas figuralidades na
ordem do ideológico, servindo-se para sua poética das posturas filosóficas específicas e não
somente de ações utilitaristas que fazem parte do cotidiano do homem.
Os seres da natureza aparecem na poesia de Barros como expressão da natureza
humana, e o poeta, com a finalidade de exaltar a liberdade, apresenta a sua poesia
comprometido com a reflexão em benefício do humano, em busca não só da representação do
grupo de determinada comunidade, o pantanal brasileiro, mas de toda sociedade.
96

A fim de melhor aquilatar a peculiaridade e os propósitos da arte de Manoel de


Barros, será realizada uma abordagem de natureza analítica e crítico-interpretativa,
destacando os pressupostos buscados à tradição dos bestiários na configuração da obra
estudada. Será um estudo de argumentação, o que sugere não só uma observação de sua
seleção de informações, mas como são interpretadas por ele e o significado que lhes atribui.
Dessa maneira, a partir da visão de alguns importantes estudiosos da literatura,
será possível compreender algumas reflexões sobre o simbolismo animal, de recorrência a
essa tradição, na poética de Barros.
Na abordagem do estudo, será encontrada a existência simbólica dos animais, tais
como foram percebidos nos bestiários da Idade Média, em que o objetivo fundamental era
expor o mundo natural, mais do que documentá-lo ou explicar o seu funcionamento, como
também proporcionar a instrução do homem. Através do conhecimento da natureza e hábitos
dos animais, o homem poderia ver a humanidade refletida e aprender o caminho para a
redenção. Cada criatura assumia uma mensagem de redenção. Procurava-se, então, atribuir a
cada animal um significado místico. É sob essa perspectiva que Manoel de Barros trabalha
sua poesia.
Essa associação, poesia e natureza, em geral, já aparece nos títulos de suas obras,
como se observa em: Poesias; O guardador de águas; Poesia quase toda; Concerto a céu
aberto para solos de aves; O fazedor de amanhecer; Poeminhas pescados numa fala de João;
Cantigas para um passarinho à toa; Poemas rupestres; Compêndio para uso dos pássaros.
Fato este que faz o leitor viver e se encontrar com toda essa sabedoria da natureza oriunda dos
reinos vegetal, mineral e animal, que compõem um verdadeiro bestiário contemporâneo.
Desse modo, o estudo dos bestiários será utilizado para compreender uma de suas
paixões principais, a admiração, para buscar, em língua, a solidificação, na temática desse
autor, que ao admirar algo, apresenta um olhar que corresponde a um ―olhar com espanto
qualquer coisa surpreendente ou da qual se ignora a causa‖.
Serão apresentados, então, exemplos de poemas do livro Arranjos para assobio
que dão certa continuidade à tradição dos bestiários, observando como os animais se
apresentam no universo singular do pantanal.
97

3.3 Um passeio pelo bestiário poético de Manoel de Barros

Eu escrevo com o corpo.


Poesia não é para compreender, mas para incorporar.
Manoel de Barros

Apesar de o objeto de estudo ser Arranjos para assobio, inicialmente, será feita
uma análise horizontal com o rastreamento do imaginário bestiário medieval em outras obras
que representam e enfatizam também o universo telúrico do Pantanal, cujos motivos e funções
imaginativas e simbólicas servem de matéria para poesia como: Livro de pré-coisas; Poemas
concebidos sem pecado; Matéria de poesia; Concerto a céu aberto para solo de aves;
Gramática expositiva do chão; Compêndio para uso dos pássaros, dentre outras, para uma
compreensão global acerca do tema.
Em seus livros, Manoel de Barros apresenta o contexto pantaneiro e, discorrendo
sobre a natureza, usa a poesia como forma de representar o homem em suas raízes históricas e
contemporâneas, fundando um mundo no espaço do imaginário do Pantanal, fazendo da
natureza a sua casa. Este é o lugar escolhido pelo poeta brasileiro para imitar a criação
exemplar dos deuses, a cosmogonia.
Visto isso, dando início ao passeio pelo bestiário do pantanal, é necessário um
mergulho no conteúdo dos poemas do autor. No Livro de pré-coisas, na parte 1 – Ponto de
partida – o poema em prosa ―Anúncio‖ apresenta:

Este não é um livro sobre o Pantanal. Seria antes uma


anunciação. Enunciados como que contrastivos.
Manchas. Nódoas de imagens. Festejos de linguagem.
Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza. De
repente um homem derruba folhas. Sapo nu tem voz de
arauto. Algumas ruínas enfrutam. Passam louros
crepúsculos por dentro dos caramujos. E há pregos
primaveris.
(Atribuir natureza vegetal aos pregos para que eles
brotem nas primaveras...Isso é fazer natureza.
Transfazer.)
Essas pré-coisas de poesia (BARROS, 2003c, p. 09).

O espaço anunciado pelo poeta compõe-se de elementos da natureza arranjados de


maneira original. Apresenta uma clara elaboração de toda uma teoria poética. Preenche seu
poema com imagens que levam a entender acerca do início de algo. Através da palavra
poética mostra a possibilidade de acesso ao que acredita ser o sentido verdadeiro das coisas e
de tudo (SAVIO, 2004). Esses elementos extraídos do universo natural – enfrutar-fruta;
98

primaveris-primavera– compõem o universo telúrico de Barros, retratando, então, essa


verdadeira ―anunciação‖.
Não é somente a natureza que se apresenta em seu aspecto primordial, mas
também a linguagem, que ignora, propositadamente, qualquer tipo de convenção, seja no
aspecto formal ou semântico, formando ―nódoas de imagens‖, ―festejos de linguagem‖
(BARROS, 2003c, p. 09). Barros busca, então, ―incansavelmente essa ruptura, isto é, a
transposição de uma linguagem nova para chegar a uma estética inaugural, convergindo para
um conceito de Poética que leva a invenção de uma obra de arte‖ (VASCONCELOS, 2005, p.
261).
É dessa forma que Barros, afirmando a autonomia do pensamento artístico
moderno, anuncia não só esse poema, mas toda a sua obra que se constitui como um exercício
de desconstruir a lógica para construir uma poética da complementaridade (PRIOSTE, 2006,
p. 146).
Este poeta liga-se à natureza através de sua abstração poética. Nesse sentido,
Barros ao praticar seus poemas concebidos sem pecado, faz com que sua poesia fecunde e
renove a vida e o homem. Inaugura um novo mundo no qual o homem se enche de natureza e,
como num passe de mágica, aprenda acerca das manifestações naturais. Seus versos fazem
com que o leitor passe a perceber o imperceptível e o transcendente. Assim, o sujeito cede
lugar ao objeto, à face coisal do mundo, encenado. Sempre em suas múltiplas articulações à
imagem e ao simbólico (CASTELO BRANCO, 1995, p. 03).
O animal é parte indissociável da cultura e história do homem desde as origens.
Componente desse imaginário, essa figura teve presença nos sonhos, pesadelos, medos e
alegrias dos homens, carregando consigo virtudes ou defeitos para a instrução edificante,
marcada por intenções catequéticas e moralizantes, do ser humano.
Todavia, apesar da prerrogativa bíblica que prescrevia a inegável superioridade
natural do homem sobre os animais, muitos exegetas da doutrina cristã defendiam que tal
domínio pudesse ser entendido como uma possibilidade de livre e ambíguo consórcio entre os
homens e os seres (COHEN, 1989, p. 229).
Nessa perspectiva, constitui-se o bestiário de Barros no conjunto de sua obra,
resgatando um caráter ontológico, em que aparece implícita a existência de tanto um eu como
um outro. Com as palavras, Manoel de Barros explora a natureza considerada em sua
comunhão íntima com o humano:
99

[...] o movimento íntimo para ―outrar-se‖, observado nos poemas arranjados por
Barros, reflete o desejo de ter várias perspectivas simultâneas para perceber melhor
o mundo. O constante movimento torna anacrônico o conhecimento e nos coloca na
mesma situação que a dos animais, árvores, pedras, águas ... cada qual com seu
modo peculiar de interagir com mundo corpóreo, submetido ao nascimento, à
transformação ou à morte conhecidas por meio das sensações (RODRIGUES, 2006,
p. 65).

Nesse raciocínio, valoriza o pequeno e o insignificante. Essa ideia de exaltação


dos elementos ínfimos, proposta por Manoel de Barros em sua obra Tratado geral das
grandezas do ínfimo, foi apreendida pela artista, filha do poeta, que preencheu a capa desse
livro com pequenos pontos e rabiscos:

Figura 15: Desenho de Martha Barros.


(Tratado geral das grandezas do ínfimo)

No pequeno, os valores se engrandecem, se enriquecem chegando à concretização


de um mundo novo, que como todos, possuem atributos de grandeza. Na contemplação é
preciso observar com mais atenção o detalhe. Afinal, o pequeno produz uma distorção da
percepção.
Por isso, interpreta a vida não pela razão, mas pelo sensível: conhece as coisas
incorporando-as a si mesmo. Assim como o homem medieval, Barros percebe na natureza
certa harmonia superior, a ponto de distinguir em seus animais um sussurro especial, que
poderia orientar e ensinar sempre alguma coisa (FONSECA, 2003, p. 165).
100

Achava que os passarinhos


são pessoas mais importantes
do que aviões.
Porque os passarinhos
vêm dos inícios do mundo
E os aviões são acessórios (BARROS, 2003a, p. 27).

É na negação de uma sociedade pautada no imediatismo e utilitarismo, legitimada


pelo saber livresco e doutrinário que sua poesia floresce. Nessa invertida, Barros, então,
repercute um pensamento da Idade Média que via a natureza como um livro de origem divina
que, à semelhança das Sagradas escrituras, devia ser lido e decodificado para entender e
louvar a obra do Criador. Nestes termos, sua obra faz menção à tradição cristã e exalta a
comunhão do homem com a natureza.

Formigas

Não precisei de ler São Paulo, Santo Agostinho,


São Jerônimo, nem São Tomás de Aquino, nem São
Francisco de Assis –
Para chegar a Deus.
Formigas me mostraram ele.
(Eu tenho doutorado em formigas.) (BARROS, 2003b. p. 55).

Isso mostra que Manoel de Barros dirige-se a um leitor acessível, aberto a


novidades como as crianças, pois só essas ―e as putas do jardim entendiam a sua fala de
furnas brenhentas‖ (BARROS, 2005a). Por isso, busca fugir da lógica dominante para viver a
natureza. Propõe a liberdade, uma vez que, ―para ser escravo da natureza o homem precisa de
ser independente‖ (BARROS, 2004, p. 62).
Neste escritor brasileiro, a interpretação se torna criação, as palavras provocam
um extravasamento semântico-visual, tal o nível de abstração que exige do seu leitor, na
medida em que o poeta espera dele essa aptidão. Isso porque, as imagens e situações
recorrentes em sua poesia apresentam-se carregadas de significações sugeridas por seu valor
simbólico.
Cultiva uma poesia contrária ao sistema e mostra-se favorável a todas as coisas
que, por perderem sua função, tornaram-se imprestáveis e viraram ―inutilidades‖. Instaura
outra ordem de associação entre um instrumento prático e utilitário praticando um exercício
da liberdade do homem diante da civilização da máquina e do capital (PRIOSTE, 2006, p.
61). Contrapõe-se às máquinas subservientes porque só as coisas apropriadas ao abandono são
capazes de ligar o poeta a Deus:
101

Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:


quando cheias de areia de formiga e musgo – elas
podem um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo
abandono.)
Também as latrinas desprezadas que servem para ter
grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas.)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam
A Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
(O abandono me protege.) (BARROS, 2000, p. 57).

Assim, apontando para uma crítica ao domínio de uma civilização da técnica em


que vige a produção de objetos que primam pela utilidade, Barros direciona seu desejo de
ouvir as vozes da natureza. Na passagem a seguir transcrita, assim como o poeta, o
personagem Bernardo também assume seu desejo de ser livre o suficiente para entender a
natureza:

Pois pois

O Padre Antonio Vieira pregava de encostar as orelhas


na boca do bárbaro.
Que para ouvir as vozes do chão
Que para ouvir a fala das águas
Que para ouvir o silêncio das pedras
Que pra ouvir o crescimento das árvores
E as origens do Ser. Pois Pois.
Bernardo da Mata nunca fez outra coisa
Que ouvir as vozes do chão
Que ouvir o perfume das cores
Que ver o silêncio das formas
E o formato dos cantos. Pois Pois.
Passei muitos anos a rabiscar, neste caderno, os
escutamentos de Bernardo.
Ele via e ouvia inexistências.
Eu penso agora que esse Bernardo tem cacoete para
Poeta (BARROS, 2005b, p. 61).

Nesse poema, percebe-se que Bernardo tem dom de poeta, pois, entende a
natureza, ouvindo as vozes do chão, a fala das águas e o silêncio das pedras. Bernardo mostra-
se como um homem que foge de terminologias prontas, atingindo um estágio de elucidação
em que é capaz de aprender as lições da natureza.
Por este motivo, a poesia de Barros provoca uma perplexidade no leitor, haja vista
que suspende a percepção corriqueira do mundo ao despertar os sentidos para uma visão
extraordinária das coisas. Como ―indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu‖
(BARROS, 1998, p. 45), o poeta serve-se de recursos linguísticos que conduzem a palavra em
direção a uma profunda renovação semântica, estética e, por consequência, poética. A
102

identificação do poeta com a criança se sustenta, em sua poesia, no fato de que ambos
utilizam a linguagem como ampliação do mundo não só vivido, mas também imaginado
(SCOTTON, 2006, p. 52). Mostra-se arqueólogo do verbo, quebrando os limites impostos à
língua para dar forma ao homem e ao universo. E isso ele afirma fazer, pois segundo o
mesmo: ―o sentido normal das palavras não faz bem ao poema‖. É neste contexto que acredita

Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às


crianças que foram
(...)
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de
reaprender a errar a língua (BARROS, 2006c, p.64).

Neste percurso realizado com Manoel de Barros, compreende-se a natureza em


sua totalidade. No poema ―Ver‖, de Memórias Inventadas – A Infância (2006), o poeta dirige
seu fascínio para os animais que rastejam, como lesmas, lagartixas, revelando que esses
bichos têm um privilégio invejável: saber ouvir as fontes da Terra.

Confesso, aliás, que eu gostava muito, a esse tempo,


de todos os seres que andavam a esfregar as barrigas
no chão. Lagartixas fossem muito principais do que as
lesmas nesse ponto. Eram esses pequenos seres que
viviam ao gosto do chão que me davam fascínio. Eu
não via nenhum espetáculo mais edificante do que
pertencer do chão. Para mim esses pequenos seres
tinham o privilégio de ouvir as fontes da Terra (BARROS, 2006a, p. 32).

Como se sabe, a literatura medieval tomou emprestada da Bíblia elementos


formais, estilísticos e temáticos. Assim, a lição moral dos bestiários encontrava raízes naquela
passagem bíblica referente ao conhecimento que se podia adquirir com os animais:

Pergunte, porém, aos animais,


e eles o ensinarão,
ou às aves do céu, e elas lhe contarão;
fale com a terra, e ela o instruirá,
deixe que os peixes do mar
o informem.
Quem de todos eles ignora
que a mão do SENHOR fez isso?
Em sua mão
está a vida de cada criatura
e o fôlego de toda a humanidade (JÓ, 12:7-8).

Não é surpreendente que Manoel de Barros tenha ressuscitado a tradição dos


bestiários, visto que, nos moldes medievais, é possível notar que as principais metáforas e
analogias criadas pelo autor associam-se ao reino vegetal, animal e mineral, pois considera
sabedoria o que vem desses três reinos sagrados:
103

Pertenço de fazer imagens.


Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc.etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
[...]
Preciso obter sabedoria vegetal.
[...]
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral (BARROS, 2000, p. 51).

Dessa forma, tanto para os medievais, quanto para Manoel de Barros, a natureza e
os seus reinos estão investidos de um revelatório poder divino. Nesse sentido, até mesmo os
vegetais ganham status celestial:

Só as coisas rasteiras me celestam.


[...]
As violetas me imensam (BARROS, 2000, p. 41).

Este poder divino atribuído pelo poeta à natureza é consciente, pois, seleciona
vocábulos do campo semântico religioso, tal como no imaginário medieval, para compor suas
entrevisões poéticas:

uma rã me benzeu
com as mãos
na água.
Caramujos sempre chegam depois.
Representa que estão chegando
da eternidade. [...]
eternidade
é palavra
encostada em
Deus. [...]
Sapos sabem divinamentos
Mais do que as árvores
Mais do que os homens.[...]
O lírio
E as garças
São imaculantes
Sou beato de águas
De pedras
e de aves (BARROS, 200b5, p. 52).

Esse poema retrata a expressividade da obra de Manoel de Barros em termo de


simbologia animal. Ele ressalta com bastante ênfase esse tema recorrente na poética do autor
– o caráter divino dos animais – cujas origens remontam ao imaginário religioso medieval.
Assim como o homem medieval reconhecia a sabedoria que poderia adquirir com os animais,
104

aqui também o homem, na figura do eu lírico, é capaz de perceber a sacralidade dos animais,
pois, ―Sapos sabem divinamentos/ Mais do que as árvores/ Mais do que os homens‖ a ponto
de lhes render total devoção ―Eu sou beato de aves‖ (BARROS, 2005b, p. 52).
É, na vida ordinária dos poemas, que o cuiabano Manoel de Barros busca diálogo
com os animais, para os quais dirige uma atenção especial. Ele utiliza sua habilidade de
ultrapassar o conhecimento estabelecido para pregar o valor da leitura da natureza, de forma a
tocar, misteriosamente, o homem.
Na sua poesia também tem lugar para caramujos, lesmas, formigas, trastes,
jacarés, cigarras e outros seres insignificantes aos olhos do atarefado homem social que, a
partir do seu próprio mundo, subvertem o mundo dito normal, quebrando-o, desligando a
palavra das informações e antecedentes culturais pré-existentes (MENEZES, 2001).
Com toda essa exuberância, o Complexo do Pantanal, ou simplesmente Pantanal,
não é somente um pântano, como o nome pode reproduzir. É, sim, uma área influenciada pelo
ciclo das águas, envolvendo períodos de cheias, vazantes e secas que modificam a paisagem.
O nome complexo vem do fato de a região ter mais de um Pantanal dentro de si. Em que pese
o nome, há um reduzido número de áreas pantanosas na região pantaneira.
Nos moldes medievais, a academia, a educação formal, a instrução, o estudo e os
livros são alvo de crítica e ironia, pois, conforme o autor, distanciam o homem do sensível, da
natureza e das fontes. Barros desenvolve, portanto, uma visão letrada da natureza, segundo a
qual era entendida como um conjunto de símbolos e sinais que deviam ser lidos e
decodificados de forma que entenda sua condição genuinamente humana.

Tudo que os livros me ensinassem


os espinheiros já me ensinaram.
Tudo que nos livros
eu aprendesse
nas fontes eu aprendera.
O saber não vem das fontes? (BARROS, 2003a, p. 30).

É assim que Manoel de Barros recebendo influências da tradição medieval coloca


a sua verdade, como vê e constrói as subjetividades de memória. Requer, então, que o leitor
supere a perplexidade inicial perante sua poesia, para poder vislumbrar como se constrói o
estilístico e o linguístico e ver, no discurso do autor, o seu cenário e os seus seres.
Dessa maneira, seus textos criticam a lógica e a subvertem, desafiando o leitor a
rever certezas e a esperar o inesperado. O que possibilita a coesão é o ―vazadouro de
contradições‖ (BARROS, 1998, p. 45). Tem uma visão ímpar da vida, construindo um mundo
paradoxo em que um brinco é palavra e em que seis é sete.
105

Como se vê, Barros, nos textos em estudo, subverte o prosaico, fala com
frequência pela analogia ou pela metáfora, recursos mais empregados pelo escritor, com a
finalidade de exibir o homem em transformação com a natureza física para a (re) visão/leitura
e expressão da vida. Utilizando de nexos inesperados e arranjos impertinentes, com o que
mostra que entre as coisas existe uma inusitada semelhança (GRÁCIA-RODRIGUES, 2006,
p. 1085).
Por esta razão, tal como as palavras nos bestiários medievais, seus poemas
também são dotados dos mesmos processos complexos que esses envolvem, isto é, a sua
interpretação processa-se, de igual modo, em duas etapas: a lectio e a meditatio.
Na poética de Manoel de Barros, percebida como fragmentária, o leitor depara-se
com uma realidade estilhaçada e marcada pela invenção de uma nova linguagem, uma vez que
desconstrói para construir. De modo que sua obra caracteriza-se como um verdadeiro
artesanato da palavra, ou, às vezes, como um grande laboratório vocabular em que o artista
atua sobre cada significado verbal e continua em seu trabalho criativo de novas dimensões
linguísticas (CAMARGO, 1997).
Assim, o autor é o pantaneiro que dessacraliza o mito da criação, discutindo sua
produção, por isso representa evolução, porque dá nova vida para a linguagem ao aplicar o
novo das palavras, próprio de sua linguagem poética: ―[...] traz no rosto a memória de um
peixe‖ (BARROS, 1998, p. 27).
A respeito do conjunto dos livros sobre os quais as reflexões desta primeira parte
do estudo se baseiam, verifica-se que a eficácia do vocábulo está, fundamentada, no domínio
do orador e por suas posições ideológicas que se manifestam em sua formação discursiva. Por
essa razão, vale ressaltar as afirmações de Paz (1982, p. 396) no que se refere ao fato de que o
verdadeiro autor de um poema não é nem o poeta nem o leitor, mas sim a linguagem.
Até agora, uma leitura horizontal das obras do autor foi realizada, a fim de
apreender sua cosmovisão e apontar traços singularizantes de seu projeto literário. A seguir, a
leitura da obra Arranjos para assobio, será feita com o objetivo de explorar o texto
verticalmente, sobretudo as características de seu bestiário poético.
106

3.4 O bestiário de Manoel de Barros em Arranjos para assobio

No Pantanal não se pode passar régua.


Sobremuito quando chove.
A régua é existidura de limite
E o Pantanal não tem limites.
Manoel de Barros

Continuando este safári literário pelo bestiário pantaneiro, será dado agora um
mergulho no conteúdo dos poemas de Arranjos para assobio, que é formado pelos títulos
―Sabiá com Trevas‖, com quinze poemas autônomos, ―Glossário de transnominações em que
não se explicam algumas delas (nenhumas) – ou menos‖ que, é um glossário das palavras:
cisco, poesia, lesma, boca, água, poeta, inseto, sol, trapo, pedra e árvore. Em seguida, estão
―Exercícios cadoveos‖ e ―Exercícios adjetivos‖, e, por fim, o capítulo que dá título ao livro
―Arranjos para assobio‖ que se compõe de palavras em estado de dicionário.
Primeiramente, será analisado ―Sabiá com trevas‖, em que Manoel de Barros faz a
comunhão com todas as coisas e seres do pantanal e discorre sobre a sua visão da vida, sobre
o fato de que conhecer não é um processo estático. Assim, no poema II, é exemplificado como
o poeta se desfaz do modo convencional de aprendizagem das coisas, isto é, a coerência
lógica habitual, adquirindo um estilo de conhecimento, que ele mesmo pode viver, obtido
pelos sentidos e no silêncio, tendo como liame uma afinidade erótica com a natureza, com a
vida. Barros afirma que foi aprendendo com o corpo, privilegiando o tato. Tudo é toque,
contato e aderência em sua poesia: ―Só sei por emanações por aderências por incrustações‖
(BARROS, 1998, p. 11). Existe uma fusão na qual um constitui o outro. É neste universo
sonhado pelo poeta, tudo é tudo: um sapo é nuvem, estrela é penacho. Tudo num clima de
inquietação e transformação:

II

Me abandonaram sobre as pedras infinitamente nu, e


[meu canto.
Meu canto reboja.
Não tem margens a palavra.
Sapo é nuvem neste invento.
Minha voz é úmida como restos de comida.
A hera veste meus princípios e meus óculos.
Só sei por emanações por aderência por incrustações.
O que sou de parede os caramujos sagram.
A uma pedrada de mim é o limbo.
Nos monturos do poema os urubus me farreiam (BARROS, 1998, p. 11).
107

Outro aspecto importante da obra barreana e de maneira especial nesse poema é


que a dualidade espírito e corpo transforma-se em outro dualismo: natureza física (Pantanal) e
corpo. A natureza é, então, mais do que um lugar onde o homem pantaneiro vive. É a sua
fonte de vida. Por este motivo, Manoel de Barros elimina a arbitrariedade em benefício das
semelhanças. A hera e os óculos se encontram no ineditismo da comparação, circunscrevendo
um homem abandonado (CARPINEJAR, 2005).
Para se introduzir nesse mundo e participar de modo interativo com seus
habitantes, é imprescindível despojar-se de toda noção humana, como faz o poeta: ―Me
abandonaram sobre as pedras infinitamente nu‖ (BARROS, 1998, p. 11), sem qualquer
racionalidade, a fim de distrair, esquecer e afastar o espírito de uma ocupação e a partir daí,
compreender associações até então incertas. Apenas ser um homem nu, em estado puro.
Para entender o que é uma lagartixa, o poeta vive a lagartixa, é a lagartixa. O
mesmo faz com a lesma que, em silêncio, arrasta-se pelas paredes ou pelo chão. Não importa
se o poeta revela sua postura poético-filosófica por meio das coisas e dos seres do chão, ele
consegue o entendimento do ser, de modo completo, por intermédio do corpóreo
(WALDMAN, 1992, p. 4).
Manoel de Barros discorre com o já concebido para recebê-lo ou contestá-lo. Os
temas intertextuais auxiliam a formar a totalidade (SAVIO, 2004). Em Arranjos para assobio,
assim como em Matéria de poesia, Livro de pré-coisas, O guardador de águas, Concerto a
céu aberto para solos de ave, o intercambio entre o homem e a natureza aparece na interação
entre ar, água, árvore, ave, verme, peixe, réptil, casa e poesia, os quais compõem um todo
indissociável neste pequeno bestiário, todos numa relação de coexistência.
Pode-se observar como Manoel de Barros constrói o seu poema, isto é,
debruçando-se sobre a língua e realizando a interação entre o homem e natureza, como
exercício de construção singular capaz de caracterizar um poeta em exercício de criação. O
resultado é o impacto do mundo sobre o homem e o modo como este o afeta.
108

Figura 16: Desenho de Manoel de Barros.


(O Livro das Ignorãças)

Nesse desenho de Manoel de Barros aparece um homem que tem atrás de si um


sol, seus braços parecem morros, seu tronco e suas pernas lembram um rio. Assim como na
sua poesia, o ser humano se combina com outros elementos da natureza.
O poeta instala um eu para um efeito de proximidade com a natureza, exatamente
para aproximar o leitor e mostrar a influência total da natureza sobre o homem, através de
metáforas. Desse modo, apesar do pensamento mágico prevalecer, sua poesia também pode e
deve ser lida a vários níveis, num processo gradual em que o sentido literal, através da
contemplação, é ultrapassado para ceder lugar aos significados alegórico, moral e anagógico
(VARANDAS, 2006, p. 24).
Esta ruptura dos padrões impostos que Manoel de Barros faz na poesia já era
vivenciada no Modernismo e ele acrescenta à sua obra, com as considerações acerca da
metalinguagem. Manoel de Barros percorre este caminho da quebra de paradigma, porque
edifica sua poesia entre a intelectualidade e a simplicidade. Nesse sentido, ele põe em
discussão a obra de arte, seja de forma direta e, com frequência, um tanto rudimentar, de
modo indireto, por exemplo, com a ironização dos gêneros literários, com reescrita ou com o
uso da poética da citação (VATTIMO, 1996, p. 42).
Visto isso, é a difícil situar a obra de Manoel de Barros dentro dos ditames da
poesia brasileira. Isso porque o poeta tira toda a automação própria do vocábulo com o
propósito de alcançar uma disposição incomum. Executa uma espécie de expurgação como
109

forma de reverter os vícios do uso linguístico usual, criando outra forma de comunicação: a
corporal.
Sua poesia, por conseguinte, ganha um traço peculiar, construído no artifício
poético, tradutor de sentimentos e paixões humanas. O seu argumento não é criado para
persuadir pela razão, mas para convencer pela emoção. O processo de criação em sua poesia
leva o poeta a aprender pelo sensível, porque a natureza se impõe sobre o homem.

Figura 17: Desenho de Manoel de Barros.


(O Livro das Ignorãças)

Conforme Alceu Amoroso Lima (1966), é possível notar na obra de Barros: ―uma
predominância da terra sobre o homem‖. Por intermédio de sua poesia, o poeta explica os
mistérios da vida através da natureza, que, acredita ser uma realidade e finalidade do mundo
natural regido por auspícios divinos. Assim, em sua poesia, a natureza com seus animais não é
somente exposta, mas ―sentida‖.
A poesia de Manoel de Barros condiciona as mais diversas figuras de linguagem,
obtendo como consequência modificações sintáticas. É uma espécie de dublagem infantil com
o intuito de despir o corpo fônico do uso corrente. Apresenta neologismos (harpava), glossário
moderno (legal), sinestesia (Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados), prosopopeia (O rio
ficou de pé e me olha), entre outros. Além dessas figuras, sua obra mostra variações fonéticas
110

―taligrama‖; ―vãobora‖, ―amareluz‖, ―nhame-nhame‖ (justaposição, algumas regionais);


―tibum‖, ―pispinicar‖, ―xum‖ (onomatopeias); ―desúteis‖, ―descor‖ (prefixação); ―riachoso‖,
―luaçal‖, ―pedral‖ (sufixação); ―estrelamente‖, ―novembras‖, ―vesúvios‖ (derivação
imprópria). O conjunto heterogêneo - reunião de várias camadas e recursos estilísticos -
promove uma reorganização da língua como a estética do erro, estética que simula o nível da
criança enquanto está aprendendo (CARPINEJAR, 2005).
No poema seguinte, tanto o besouro quanto o poeta compartilham o mesmo
mundo, o da madrugada, onde seres humanos, à beira da sociedade vivem ―catando pelas ruas
toda espécie de coisas que não pretendem‖ (BARROS, 1998, p. 13), brotando uma
familiaridade mútua, de origem enigmática, em que se tem a impressão de que encontra
guarida no simbolismo infantil, cujas qualidades são comparáveis às de seu projeto poético. O
poeta, igualando-se a uma criança, brinca com a linguagem, já que a ―palavra poética tem que
chegar ao grau de brinquedo para ser séria‖ (BARROS, 2000, p. 71). O poema abaixo
demonstra como isso se torna presente:

III

Quando houve o incêndio de latas nos fundos da In-


tendência, o besouro náfego saiu caminhando para al-
cançar meu sapato (e eu lhe dei um chute?)

Parou no ralo do bueiro, olhoso, como um boi que


botaram no sangradouro dele

(Integrante: não sei de onde veio nem de que lado de


mim entrou esse besouro. Devo ter maltratado com os
pés, na minha infância, algum pobre-diabo. Pois como
explicar o olhar ajoelhado desse besouro?) (BARROS, 1998, p. 13).

No caso do poema de Manoel de Barros, não há o esmagamento, como geralmente


se faz com os insetos, mas sim um chute, do qual o besouro sobrevive, ainda que náfego. O
poema III de ―Sabiá com trevas‖ está carregado de um tom dramático e pleno de dúvidas,
pois, o olhar ajoelhado do besouro gera questionamentos em quem o chutou, que se
indagando sobre alguma ação em sua infância, procura entender o porquê desse olhar do
inseto.
A ilustração de Poty para o poema de Barros destaca bem essa situação: ―Devo ter
maltratado com os pés, na minha infância, algum pobre-diabo. Pois como explicar o olhar
ajoelhado desse besouro?‖ (BARROS, 1998, p. 13).
111

Figura 18: Desenho de Poty para o poema de Manoel de Barros.


(Arranjos para assobio)

Continua presente a imagem do animal no poema em homenagem a um Pierrô de


Picasso, em que Barros delineia uma figura dramática que carrega consigo o sofrimento de
um homem marginal à sociedade:
IV
(A um Pierrô de Picasso)

Pierrô é desfigura errante,


andarejo de arrebol.
Vivendo do que desiste,
se expressa melhor em inseto.

Pierrô tem um rosto de água


que se aclara com a máscara.
Sua descor aparece
como um rosto de vidro na água.

Pierrô tem sua vareja íntima:


é viciado em raiz de parede.
Sua postura tem anos
de amorfo e deserto

Pierrô tem o seu lado esquerdo


atrelado aos escombros.
E o outro lado aos escombros.

Solidão tem um rosto de antro (BARROS, 1998, p. 15).

Além das descrições das precárias condições de vida dos miseráveis que vivem
marginalizados pela sociedade, que convivem melhor com os insetos do que com os seus
semelhantes, a última citação traz à tona a imagem do trapeiro analisada por Benjamin. Assim
como o trapeiro ganha a vida com os rejeitos, o poeta também faz daquilo que a cidade jogou
112

fora e destruiu a matéria de seus poemas (BENJAMIN, 1989, p. 78). É em sua poesia que
Barros alcança a plenitude. Tudo o que pode parecer feio, asqueroso ou ruim, na poesia é algo
que pode se transformar em beleza. Trata-se também de mostrar como os poetas da vida
moderna encontram no lixo da sociedade um tema heroico e de reconstituir os traços daquilo
que a cidade desprezou. Afinal, o próprio Barros afirma: ―o que é bom para o lixo é bom para
a poesia‖ (BARROS, 2001, p. 181).
A analogia que se arranja no poema é de proximidade e transposição. O pierrô é
uma releitura francesa do arlequim da comédia de arte italiana, passando do cômico ao
sofredor e, no Brasil, é o nome, também, de um coleóptero de colorido preto, apresentando
um mosaico irregular de faixas cinzento-prateadas e vermelho-tijolo. Suas larvas são
encontradas em árvores de grande porte. A identificação entre o inseto e a figura do pierrô se
dá ao nível de uma existência amorfa e deserta, de quem está exposto há anos em uma parede
(MENEGAZZO, 1991, p. 188).
Pierrô leva o fardo do isolamento do homem e não evidencia nenhum anseio de
alterar isso. Também é um ser do silêncio, que se contrapõe à linguagem humana. Cumpre o
desígnio de ser nada. Apresenta uma atitude de ostra, de pedra. Fecha-se em si mesmo, fica
calado.
Assim, Manoel de Barros dando novas modalidades às coisas imprestáveis, busca
através da linguagem do corpo, o silêncio como expediente a esses seres, que foram
escolhidos ―desde criança, para ser ninguém e nem nunca‖:

Usado por uma fivela, o homem tinha sido escolhido,


desde criança, para ser ninguém e nem nunca. De for-
ma que quando se pensou em fazer alguma coisa por
ele, viu-se que o caso era irremediável e escuro.
Ou uma vespa na espátula.
Esse homem pois que apreciava as árvores de sons
amarelos – ele se marejava sobre a carne dos muros e
era ignorante como as águas.
Nunca sabia direito qual o período necessário para
um sapato ser árvore. Muito menos era capaz de dizer
qual a quantidade de chuvas que uma pessoa necessita
para que o lodo apareça em suas paredes.
De modo que se fechou esse homem: na pedra: como
ostra: frase por frase, ferida por ferida, musgo por
musgo: moda um rio que secasse: até de nenhuma ave
ou peixe. Até de nunca ou durante. E de ninguém an-
terior. Moda nada (BARROS, 1998, p. 17).

A perífrase corrobora o fenômeno poético criado por Manoel de Barros, como


―ser ninguém‖ e ―nem nunca‖ expressões que substituem um adjetivo para o homem. Afinal,
113

o silêncio por si só se explica. Assim, os seres da natureza desdobram-se de forma unívoca


cumprindo sua função epistemológica de ensinamento, como ocorria no período medieval.
O poeta apresenta um panorama em que o homem moderno mostra-se isolado e a
solidão em que vive se traduz numa certa impotência para o diálogo, um descontentamento
com o mundo no qual vive (CAMARGO, 2000, p. 70).
No mundo poético instaurado por Manoel de Barros, a outra forma de linguagem
expressa, a do corpo, passa a ser a mais apropriada para a compreensão dos seres. O poeta
surge como conexão entre o mundo imaginado e o mundo real. Esse mundo adquire
concretude e existência própria, que decorrem do diálogo do poeta com outros seres.

Mais que referente geográfico, em constante decomposição e renovação, o Pantanal


configura-se como um mundo fluido e circular onde a vida e a morte fervilham no
rastro animal e vegetal. A transmutação da morte em vida não só afasta esses
grandes temas de qualquer esquadro metafísico como cria deles uma imagem em
permanente trânsito (WALDMAN, 1992, p. 15).

Desse modo, através de suas falas, Barros dá vida aos animais e as coisas
representadas. Não se trata de dar voz aos bichos, como ocorre com intensidade em fábulas,
ele não utiliza as técnicas e recursos daquele gênero. Ao contrário, sua intenção é expor a
animação desses seres da forma que lhes é característica, isto é, a partir do próprio corpo,
almejando alcançar uma linguagem corporal, concebida pela palavra (RODRIGUES, 2006, p.
46).
Assim, outros animais aparecem na poesia de Barros:

Borboleta morre verde em seu olho sujo de pedra.


O sapo é muito equilibrado pelas árvores.
Dorme perante polens e floresce nos detritos.
Apalpa bulbos com os seus dourados olhos.
Come ovo de orvalho. Sabe que a lua
Tem gosto de vagalume para as margaridas.
Precisa muito de sempre
Passear no chão. Aprende antro e estrelas.
(Tem dia o sapo anda estrelamente!)
Moscas são muito predominadas por ele.
Em seu couro a manhã é sanguínea.
Espera as falenas escorado em caules de pedra.
Limboso é seu entardecer.
Tem cios verdejantes em sua estagnação.
No rosto a memória de um peixe.
De lama cria raízes e engole fiapos de sol (BARROS, 1998, p. 27).

Analisando o poema, verifica-se que, de início, uma borboleta, representando o


belo, morre verde nos olhos sujos de pedra de um sapo, animal escuro e feio. A expressão
114

―morre verde‖, também, expõe ideias antagônicas: morte e esperança, esta, representada pelo
vocábulo verde. Sem dúvida, Manoel de Barros, poeticamente, demonstra como compõe seu
poema, lançando mão de antíteses.
O sapo ―dorme perante polens e floresce nos detritos‖. A metáfora sapo = vegetal,
sugerida pelo verbo florescer, alude ao fato de que o sapo, animal usualmente considerado
feio, no poema, é bonito, sendo capaz de dar flores. Visto que, ―deveria dormir nos detritos e
florescer nos polens‖.
Barros, então, subverte o pensamento medieval acerca do sapo, pois nesse
período, apesar de ser um animal comum, frequente em campos e pântanos europeus, foi visto
pelo medievo cristão ocidental – que seguiu neste caso algumas tradições antigas – como um
ser monstruoso, venenoso como qualquer serpente e usualmente associado à noite, ao mal e à
morte (ACOSTA, 1995, p. 183).
Assim é que, no poema, apesar de ser um animal considerado feio, apresenta
olhos dourados, e com estes, apalpa bulbos. O sapo come ovo de orvalho. Na metáfora ovo,
indicando gotículas de orvalho, nota-se a presença da água, em forma de ínfimas gotículas de
cristais transparentes, indicando que o sapo é madrugador.
Barros descreve que o sapo ―sabe que a lua tem gosto de vagalume para as
margaridas‖, ou seja, há uma interpretação da lua como vagalume.
Interessante observar que o vagalume é um inseto notívago, da ordem dos
coleópteros, com órgãos fosforescentes na parte abdominal, notório por suas emissões
luminosas. Alimenta-se, principalmente, de bichos muito usuais na poesia de Manoel de
Barros: as lesmas e os caracóis.
Como o próprio poeta, em harmonia com o movimento da natureza, o sapo
―precisa muito de sempre passear no chão‖. Logo após, o sapo, escuro e feio aprende antros
(covas profundas e escuras, cavernas) e estrelas (luz, brilho).
Expõe ainda que o sapo gosta de moscas, afinal, ―moscas são muito predominadas
por ele‖. Em seu couro (escuro) a manhã (chegada do dia, do sol, da luz) é sanguínea
(vermelha, da cor de sangue). Em seguida, em uma espécie de ritual de caça, espera as falenas
(borboletas noturnas) encostado em caules de pedra; os caules são geralmente verdes, porém
aqui, são de pedra, armadilhas para falenas (REINER, 2006, p. 38).
Limboso (escuro) é seu amanhecer (o nascer do sol, claridade, luz). Limbo é o
lugar entre o céu e a terra, segundo a teologia católica, para aonde iam as almas inocentes que,
sem terem cometido pecados mortais, estão para sempre privadas da presença de Deus, pois
115

morreram sem o batismo que as livrasse do pecado original. Vão para o limbo, também, as
almas justas que viveram antes da existência terrena de Jesus Cristo.
Por fim, o poeta informa: ―Tem cios verdejantes‖. Essa afirmação traz a ideia de
fertilidade, fecundidade, acasalamento, procriação. Assim, utiliza o termo para categorizar a
capacidade de produzir vida. E ―em sua estagnação‖, no campo semântico, estão a inércia, a
falta de movimento, a paralisação, a morte (REINER, 2006, p. 38).
Inúmeras, portanto, são as antíteses nesse poema: borboleta verde e olho sujo de
pedra; lama e sol; belo e feio; terra e ar; claro e escuro; dia e noite; morte e vida, levando o
leitor a formar com essas diversas antíteses dois grandes grupos: o primeiro como vida e o
segundo como morte. Os blocos vida/morte são representados pelos seguintes pares: claro /
escuro, dia / noite, sol / lama, amanhecer / limboso, ar / terra, cios verdejantes / estagnação,
borboleta verde / olho sujo de pedra, pólen / detritos, floresce / dorme, olhos dourados /
bulbos, margarida / vagalume, estrelas / antro.
Analisando cada par, individualmente, é possível concluir que todos os vocábulos
do grupo vida, formarão mais dois blocos: o mundo da luz e no mundo celeste, e, as palavras
do grupo morte, construirão o mundo da escuridão e o mundo subterrâneo (REINER, 2006, p.
40).
Por intermédio do estudo de Arranjos para assobio, é possível perceber como
Manoel de Barros lê e constrói sua realidade em seu contexto cultural, que não tem um foco
valorativo, assim como não traz o vício de praticar a diferença entre seus animais, portentosos
ou ínfimos que, aqui, passam a ser analisadas de forma compreensiva e situacional.
O autor apresenta determinadas figuras para se entender qual o objeto de sua
poesia e prossegue, de maneira provocante, cultivando uma transformação, quando faz do
significado de prolepse, ou seja, mudando uma designação que prestigiaria alçar resistência
por outra. Nesse processo, as pobres coisas do chão passam a ser consideradas sagradas:
―Reconhecer a eminência dos insetos leva à sabedoria‖ (BARROS, 2005b, p. 60). ―Meu
desagero é de ser fascinado por trastes‖ (BARROS, 2005b, p. 53). É dessa forma que se
utiliza de tudo aquilo que poderia ser considerado inadequado para a poesia, pois, conforme o
mesmo afirma ―O traste é ótimo‖ (BARROS, 2001, p. 13). Nesse sentido, os inutensílios,
antibens e antimercadorias, ou seja, o que é imprestável constitui o patrimônio do poeta:

XII

Os bens do poeta: um fazedor de inutensílios, um travador de amanhecer, uma


teologia do traste, uma folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória de
brilhantes, um parafuso de veludo e um lado primaveril (BARROS, 1998, p. 31).
116

Sob esta perspectiva, Barros mostra-se revoltado frente aos valores universais.
Emprega a reprodução de ―servem para poesia‖, consolidando o estranho que constitui seu
mundo. Persiste contrariando os princípios aristotélicos sobre o belo, baseando-se mais nos
elementos sensíveis que nos racionais.
A poesia barreana prima por um palmear o chão, dá vida ao que ali se encontra e
faz do entulho matéria-prima: ―ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA‖ (BARROS,
1998, p. 29), afinal, como afirmou Millôr Fernandes, a obra do poeta é o ―apogeu do chão‖.
Assim, valendo-se de uma linguagem inovadora, o poeta maneja a palavra de forma incomum
aos hábitos dos leitores: o universo do chão (BARBOSA, 2003). É o que ocorre no poema
XIV, em que

XIV

No chão, entre raízes de inseto, esma e cisca o sabiá.


É um sabiá de terreiro.
Até junto de casa, nos podres dos baldrames, vem
apanhar grilos gordos.
No remexer do cisco adquire experiência de restolho.
Tem uma dimensão além de pássaro, ele!
Talvez um desvio de poeta na voz.
Influi na doçura de seu canto o gosto que pratica de
ser uma pequena coisa infinita do chão.
Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol.
A essa vida em larvas lateja debaixo das árvores o
sabiá se entrega.
Aqui desabrocham corolas de jias!
Aqui apodrecem os vôos.
Sua pequena voz se umedece de ínfimos adornos.
Seu canto é o próprio sol tocado na flauta!
Serve de encosto pros corgos.
Do barranco uma rã lhe entarda os olhos.
Esse ente constrói o álacre.
É intenso o gárrulo: como quem visse a aba verde das
horas.
É ínvio o ardente que o sabiá não diz.
E tem espessura de amor (BARROS, 1998, p. 35).

Faz poesia pela metapoesia, redundando, poesia sobre poesia. Dessa forma, nos
moldes dos bestiários medievais, ao versar sobre os hábitos do sabiá, deixa explícita a lição do
poema, tornando-se possível comparar as ações do pássaro ao seu fazer poético.
O universo de Manoel de Barros é composto como arquissemas, indicativos de
um referencial à natureza que se traduz em ―árvore, sapo, lesma, antro, musgo, boca, rã, água,
pedra, caracol‖ (TURIBA; BORGES, 1996, p. 327). Barros não divisa seu ser da natureza
física. É possível perceber em sua poesia a natureza chegando à completa hominização. O
corpo tem sua expressão no ambiente. Ele não é o centro, é parte em intersecção. Todos num
117

patamar de igualdade em que homem e largatixa igualam-se: ―depois que todos se deitassem,
eu iria passear sobre os telhados adormecidos./Apenas me debatia contudo quanto a lagartixa
de rabo cortado‖ (BARROS, 1998, p. 21). Nesse mundo, nada é categórico, pois há uma
estável modificação, uma duradoura transformação, fazendo com que cada ser deixe de ter
uma característica una, comum e individual, para tornar-se múltiplo. Nas palavras de José
Carlos Prioste (2006, p. 143), ―este aflorar multivalente é constituinte do próprio ser que não
se institui pela unidade de uma identidade da unicidade, mas na pluralidade que funda a
própria linguagem‖.
Escrever, para ele, é ―cheio de casca e pérola‖, porque, ―nas fendas do
insignificante ele procura grãos de sol‖ (BARROS, 1998, p. 35). Para entender sua poesia, é
preciso escolher o caminho da sensibilidade, feito pelo entendimento do corpo, e não o
caminho da inteligência, já que, segundo o poeta, poesia é para ―incorporar‖:

— Difícil entender, me dizem, é sua poesia, o


senhor concorda?
— Para entender nós temos dois caminhos: o da
sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da
inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo
Poesia não é para compreender mas para incorporar
Entender é parede: procure ser uma árvore (BARROS, 1998, p. 37).

As palavras com que compõe seus arranjos poéticos são manipuladas como
brinquedos, passíveis de manusear e distantes da linguagem adulta, culta, pensada. É como
criança que todos foram um dia que Barros acredita obter a liberdade e a poesia: ―Tenho um
lastro da infância, tudo o que a gente é mais tarde vem da infância‖ (BARROS [2002]).
Com sua poesia leva ao entendimento de todo homem ser filho de uma mesma e
única mãe: a natureza. Em Barros, essa noção corresponde, ainda em recorrência medieval,
àquela ideia da natureza constituída como um agregado múltiplo de seres com propriedades
sui generis dentro da sua espécie. Como se pode observar através da capa do livro de poemas
intitulado Retrato do artista quando coisa:
118

Figura 19: Arte de Millôr Fernandes.


(Retrato do artista quando coisa)

É por meio desta natureza divinamente inspirada e instruída que o poeta convida a
todos a sentir o pantanal:

Natureza é fonte primordial?


- Três coisas importantes eu conheço: lugar
apropriado para um homem ser folha; pássaro que se
encontra em situação de água e lagarto verde que
canta de noite na árvore vermelha. Natureza é uma
força que inunda como os desertos. Que me enche
de flores, calores, insetos, e me entorpece até a
paradeza total dos reatores
Então eu apodreço para a poesia (BARROS, 1998, p. 38).

Assim, neste bestiário de Manoel de Barros, o leitor vê e sente o mundo, provando


momentos de total reconciliação. Sua poesia permite ao homem um encontro com o novo, de
modo a viver a natureza plenamente. Barros busca, então, fazer, com sua poesia, que o
homem volte ao seu estado primitivo, como a criança que fala com as coisas, com os bichos.
É neste panorama, do homem unido ao chão e à natureza, que o autor concebe sua
alma por meio de uma poética tão particular que, visivelmente, parte na contramão da lírica
habitual, mas que é a direção apropriada para transmitir-se um modo identitário a partir da
alocução do pantaneiro, sendo reservado pela relação inalienável com a natureza. Essa relação
119

do homem com a natureza, assim como a proximidade com os pássaros, pode ser verificada
em outro desenho feito pelo próprio poeta:

Figura 20: Desenho de Manoel de Barros.


(Livro sobre nada)

Manuel de Barros vê a natureza no centro da pessoa, diferentemente do


humanismo tradicional: a pessoa no centro do conhecimento. Faz uma revisão do que
entende-se por humanidade, de modo que a natureza e as criaturas escondem e espelham uma
verdade divina e transcendental. Nesse sentido, conhecer a realidade é um modo de se
conhecer. Barros procura, então, através de sua poesia fazer com que o homem ultrapasse o
mundano para atingir o essencial.
Como se vê, o universo predominante em Manoel de Barros é do homem que vive
em constante relação com a água, terra, ar, animais, vegetais, embora a predominância para as
poesias destacadas seja o universo animal.
Em ―Glossário de transnominações em que não se explicam algumas delas
(nenhumas) – ou menos‖, nota-se a palavra configurando uma libertação de seu sentido real.
Ela aparece aqui em seu estado de dicionário, embora seja desmentida pela definição que
veicula, inviabilizando uma análise racional do mundo que instaura, como o próprio Barros
120

afirma: ―dentro de mim existe um lastro que é o brejal. Misturo dicionários com o brejo, não
faço nada mais que isso‖ (BARROS, 1996).
É assim que o poeta define poesia:

Poesia, s.f.

Raiz de água larga no rosto da noite


Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de
um homem
Designa também a armação de objetos lúdicos com
emprego de palavras imagens cores sons etc.
geralmente feitos por crianças esquisitas
loucos e bêbados (BARROS, 1998, p. 43).

Constrói imagens imbricadas com os sons, ritmos e sentidos que contrastam entre
si. Nessa combinação de sons, ritmos e imagens, Barros faz seu leitor compreender o mundo
pelos sentidos. Ensina, também, a perceber, de forma inaugural, a realidade que circunda o
homem, por meio de suas metáforas e analogias. Desse modo, sente-se a proximidade das
origens e pelo sensível consegue-se a percepção do mundo.
Como se percebe, em Arranjos para Assobio, Manoel de Barros brinca com
definições do dicionário, invenções que se enquadram no todo de sua obra, reúne as suas
imagens no que ele nomeia, substantiva, antropomorfiza e, por fim, vive, como é o caso da
lesma: animal quase sempre asqueroso, gosmento, marginal, que vem acompanhado de um
caracol; por isso um duplo, como o poeta, que vai cavando espaços nas pedras, abrindo fendas
com o corpo e, a partir daí, vai explorando o erótico na linguagem que adota (PERNA, 1998).
Para Manoel de Barros, a lesma é caracterizada como:

Lesma, s.f

Semente molhada de caracol que se arrasta


sobre as pedras, deixando um caminho de gosma
escrito com o corpo
Indivíduo que experimenta lascívia do ínfimo
Aquele que viça de líquenes no jardim (BARROS, 1998, p. 44).

A lesma, pegajoso ser a causar repugnância aos homens, consubstancia-se ao


divisar do poeta não pela distinção do asco, mas pela plenitude de seu viver. No indistinguível
entre o admirável e o horrendo consolida-se o deslumbramento diante da vida. O arrastar
retardio a escrever na pedra um rastro iridescente revela o preternatural que aflora na própria
natura (PRIOSTE, 2006, p. 156).
121

Nessa perspectiva, a lesma representa, em sua naturalidade rastejante, um avatar


do telurismo que tão fortemente permeia a obra desse poeta, personificando a proximidade,
inclusive física, com a terra, elemento nutridor da civilização, dela brotando uma magnitude
poética que seduz pela simplicidade (LINHARES, 2006, p. 89). A lesma, então, representa
justamente isso, o contato dos seres com as coisas. Destaca sua importância por simbolizar o
próprio poeta que busca uma aderência à terra.
Nessa espécie de filosofia do chão de Manoel de Barros, a lesma, na sua
indiferença ao tempo, nega a historicidade humana e acaba trazendo à tona as inseguranças
guardadas nos mais secretos recônditos, o que desperta o desejo de seu extermínio. Dessa
forma, não se pode querer desfrutar da liberdade vertiginosa da lesma, sem com isso abrir
mão da humanidade e da identidade, via consciência de si, que ela sobeja. É então deflagrada
a contradição: a lesma é ao mesmo tempo libertação e perdição do humano, o que leva tanto
ao fascínio quanto ao medo (LINHARES, 2006, p. 58).
Cria sua lírica, revigorando seus objetos, contestando a história, pois a lírica
ocidental, até o século XIX, apresentava certa homogeneidade em sua temática ao dar ênfase
ao sentimento, especialmente ao amor. Barros recorre a imagens e situações simbólico-
figurativas referentes aos mais variados elementos da natureza, como neste caso, a lesma,
digna, portanto, de uma maior consideração existencial e filosófica.
É fato que os bestiários difundidos nos princípios dos tempos modernos
continuam a exercer a sua influência motivacional e simbólica ainda na literatura dos dias
atuais. Contudo, são reinterpretados, como modulações poéticas, na poesia lírica brasileira
contemporânea, atendendo às suas respectivas contextualizações culturais e ideológicas.
Desse modo, ao estilo dos textos da Idade Média, Barros salienta, mesmo no caso
dos animais aparentemente ínfimos, como por exemplo, a lesma, as suas particularíssimas
propriedades, indicando aquela noção medieval de uma compensatória virtude natural e moral
em benefício do leitor. Neste caso, recorrendo aos bestiários da tradição, no que tange à
narrativa do leão que, quando fareja o caçador, apaga com a cauda as próprias pegadas para
não ser capturado pelo inimigo, a lesma na lânguida relação com a pedra, desfila sobre ela,
não escondendo seus rastros, mas sim, em oposição ao rei da selva, deixando ―um caminho de
gosma escrito com o corpo‖ (BARROS, 1998, p. 44). Assim, segundo Andrea Regina
Fernandes Linhares (2006, p. 57), a lesma
122

[...] remete a um tempo ancestral, no qual a pressa moderna nada significa, e a vida
se celebra simplesmente pela própria existência. Ao mesmo tempo, traz à lembrança
a contradição entre a vida natural e a cultural, da qual o homem é fruto. Desse modo,
ao mesmo tempo em que a lesma nega a importância dos valores humanos e seus
pudores, é ela um marco vivo de um ser sem lembranças, sem destino, sem
identidade.

Nesse contexto denota a ideia de que, a cada novo período, o universo simbólico
da literatura, até mesmo o simbolismo animal, se reveste de novas significações, porém,
sempre utilizando motivos tradicionais.
O poeta contempla tanto os animais quanto os vegetais e minerais num exercício
campestre, que se constrói por um olhar sutil e pela acentuada sensibilidade de um verdadeiro
homem do pantanal. É com esse olhar que o poeta apresenta a água:

Água, s.f.

Da água é uma espécie de remanescente quem já


incorreu ou incorre em concha
Pessoas que ouvem com a boca no chão seus rumores
dormidos, pertencem das águas
Se diz que no início eram somente elas
Depois é que veio o murmúrio dos corgos para dar
testemunho do nome de Deus (BARROS, 1998, p. 44).

Assim é que o vocábulo água é percebido pelo poeta, nessa condição de dicionário
característico. Desse modo, a água e todas as relações que derivam de seu universo: terra,
fauna, flora, expressam um novo que é suporte de um avivamento da vida natural, da qual o
homem é fruto.
Na concepção teológica da poesia de Barros, o mundo como irrupção pelo velar e
desvelar constante instaura a criação não por uma essência que precede a existência, mas pelo
seu inverso, como se pode notar na seguinte passagem do poema acima transcrito: ―Se diz que
no início eram somente elas (as águas) / Depois é que veio o murmúrio dos corgos para dar
testemunho de Deus‖. Para o poeta postular uma teologia do traste não implica numa renúncia
à concepção divina, pois esta é sempre invocada: ―Deus é quem mostra os veios‖ (BARROS,
2001, p. 26). Todavia a noção do divino apresenta-se exclusivamente na concretude do criado.
Assim, em Livro de pré-coisas (2003c, p. 85), até mesmo um simples pássaro como um
quero-quero ―cumpre Jesus‖ (PRIOSTE, 2006, p. 89).
Para expressar uma natureza que também é linguagem, Barros procura no
conjunto de sua obra a linguagem que é por si natureza,
123

[...] mas é uma natureza que fala e que inspira, testemunha e expressão, diremos, de
uma natureza naturante que por si mesma nos fala. [...] Se o poeta trata a linguagem
como coisa natural, é talvez pressupondo uma natureza falante. É em todo caso
respeitando a função semântica da linguagem, elevando ao máximo seu potencial
expressivo; esse potencial será tanto mais elevado quanto mais a palavra for
restituída à sua natureza e reconduzida à sua origem (DUFRENNE, 1969, p. 85).

O universo é recriado em prol de uma disfunção do real. Manoel de Barros não


figura ou configura o concreto, trabalha na transfiguração contínua do homem
(CARPINEJAR, 2005). No modo de ver do poeta, crianças, animais e pessoas marginalizadas
são aptas a vazadouro de contradições porque transcendem os limites impostos ao corpo.
Como ocorre no poema intitulado ―Poeta‖:

Poeta, s.m.e.f.

Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu


Espécie de vazadouro para contradições
Sabiá com trevas
Sujeito inviável: aberto aos desentendimentos como
um rosto (BARROS, 1998, p. 45).

Tal vocábulo – poeta – está considerado como um ―indivíduo que enxerga a


semente germinar‖, capaz de engolir o céu. A consciência moderna de fragmentação subjetiva
está presente no poema. Isso porque o poeta se define como um ―vazadouro para
contradições‖; no movimento contínuo de querer ser, constitui-se a partir do próprio
estilhaçamento: ―aberto para os desentendimentos‖, o que manifesta a incompreensão do
próprio ser humano.
Já o termo inseto é definido pelo poeta como:

Inseto, s.m.

indivíduo com propensão a escória


Pessoa que se adquire da umidade
Barata pela qual alguém se vê
Quem habita os próprios desvãos
Aqueles a quem Deus gratificou com a sensualidade
(vide Dostoievski, Os irmãos Karamozov) (BARROS, 1998, p. 45)

É notável a faceta não utilitarista dos seres que Barros adota nesta parte do livro.
―O indivíduo com propensão a escória‖ é proveitoso à poesia de Barros, sob essa perspectiva,
os seres de seu bestiário passam a participar de uma nova condição. O inseto é percebido
como pessoa e vice-versa.
124

O poema, sob este princípio, há de se constituir como algo sem utilidade. ―O


poema é antes de tudo um inutensílio‖ (BARROS, 1998, p. 25). Desse modo, Barros parece
refutar não apenas a utilidade das coisas, mas implantar uma crítica ao modo de pensar que se
institui por polarizações quando nesses pressupostos determina-se a um dos pólos um valor
incondicional. Daí, a diligência de Barros em atrever-se na via de um fazer que opera um
outro vínculo entre saber e poder, ou seja, através do exercício livre da imaginação que
conjectura objetos sem qualquer utilidade (PRIOSTE, 2006, p. 60).
Além disso, em Arranjos para assobio, existem procedimentos de composição
cubista em que os blocos semânticos são justapostos, permitindo leituras em vários planos,
para a formalização de um discurso rico em essências e representação, onde a única lógica
existente é a poética. O cubismo se apresenta de forma direta, utilizando a visão analítica dos
objetos, desvendando a fragmentação do homem e do mundo (MENEGAZZO, 1991, p. 188):

Estrela é que é meu penacho!


Sou fuga para flauta e pedra doce.
A poesia me desbrava.
Com águas me alinhavo (BARROS, 1998, p. 11).

Nos títulos seguintes, ―Exercícios Cadoveos‖ e ―Exercícios Adjetivos‖, é latente a


recusa de normas, das formas dicionarizadas, além da recusa de expressões preciosas
tradicionalmente poéticas, deixando evidente a preferência por extrair a poeticidade dos
processos expressivos do cotidiano (MARQUES, 2000, p. 97).
O primeiro trecho dos ―Exercícios Cadoveos‖ narra a história de Aniceto, uma das
personagens criadas por Barros, que aprecia se encostar nas coisas, gosta de colar-se nos
seres. Mas o poema não se limita a esse retrato da personagem, enumerando sete utensílios de
Aniceto na segunda parte. Trabalha, então, como em diversas passagens de sua obra, com a
intertextualidade. Lembrando que o termo cadoveo, refere-se, aliás, a uma tribo do Pantanal,
que aparece na antologia de mitos cadoveos recolhida por Darcy Ribeiro na década de 40
(RIBEIRO, 1980).
Nessa perspectiva, observa-se que a poética de Manoel de Barros está
formalmente centrada na combinação inovadora dos vocábulos, tendo como consequência
uma linguagem com expressões insólitas e distantes do lugar comum. Esses processos
constituem uma presença constante em Arranjos para assobio. Nesse livro, Barros inventa
novas palavras a partir de palavras antigas que caíram no desuso e não representam nada,
como também aquelas palavras que, em sua maioria, são consagradas pelo dialeto pantaneiro.
125

Vale ressaltar, novamente, a subversão da lógica que seus textos apresentam,


como em O guardador de águas, em que enuncia como subtítulo: ―Seis ou treze coisas que eu
aprendi sozinho‖, quando, na verdade, apresenta quatorze coisas. E aqui, em ―Exercícios
Cadoveos‖, o poeta afirma alistar sete inutensílios de Aniceto retirados da mitologia indígena,
mas arrola somente seis.
Neste jogo poético, em que a linguagem é vital para o entendimento dos seres de
seu bestiário, deve-se ressaltar que o sujeito lírico do poema desempenha experimentos
linguísticos. Manoel de Barros expõe seus poemas se escrevendo, se reescrevendo e se
inscrevendo na busca de uma linguagem que recupere a relação original do homem com a
natureza. Conjuga, assim, no mesmo espaço, o arcaico e as imagens remotas, com a reflexão
em torno da poesia, que é a condição fundante da modernidade na literatura (CAMARGO,
1997, p. 240).
Em determinado momento de seu bestiário, Manoel imita em tom de gozação o
discurso moralizador e ironiza até mesmo as palavras da Bíblia Sagrada: ―Nossa maçã é que
come Eva‖ (BARROS, 1998, p. 38). Ele posiciona-se do lado do diferente, talvez, por isso,
predomine no curso da escrita barreana o fluir do pensamento, a sintaxe do imaginário
(RODRIGUES, 2006, p. 67).
Em ―Exercícios adjetivos‖ a poesia de Manoel de Barros articula-se no patamar de
brincadeira e interação recreativa. O próprio autor diz que não gosta de adjetivos: ―Retiro os
adjetivos porque eles enfraquecem as plantas‖ (BARROS, 2003b, p. 15), visto que o objeto de
sua poesia é o entulho, o traste, a sobra, a ordem de seu chão é criar objetos de nova
finalidade a partir dos abandonados. As palavras são agitadas e extraídas de seu lugar
tradicional. Como é perceptível no poema abaixo:

Manhã-passarinho

Uma casa terena de sol raiz no mato


Formiga preta minha estrela
Da asa parada pedras
Verdejantes voz
Pelada de peixe dia
De estar riachoso
Manhã-passarinho
Inclinada no rosto esticada
Até no lábio-lagartixa
Mosquito de hospício verruma
Para água arame de estender música
Sabão em zona erógena faca
Enterrada no tronco meu amor!
Esses barrancos ventados...
E o porco celestial (BARROS, 1998, p. 60).
126

Um outro exercício adjetivo de seu bestiário, que apresenta a transubstanciação


ocorrida entre animais e coisas, é manifestado no caso dos caracóis e das paredes em ―Os
caramujos-flores‖. Os caramujos ―só saem de noite para passear‖. Eles procuram paredes
sujas, onde possam grudar ou pastar:

Os caramujos-flores são um ramo de caramujos


que só saem de noite para passear
De preferência procuram paredes sujas, onde se
pregam e se pastam
Não sabemos ao certo, aliás, se pastam eles
essas paredes
Ou se são por elas pastados
Provavelmente se compensem (BARROS, 1998, p. 60).

Há um sentido de equilíbrio, de compensação de um pelo outro ―paredes e


caramujos se entendem por devaneios/ Difícil imaginar uma devoração mútua‖, conseguindo
assim desabrocharem ―como os bestegos‖, conforme informa o poeta:

Paredes e caramujos se entendem por devaneios


Difícil imaginar uma devoração mútua
Antes diria que usam de uma transubstanciação:
paredes emprestam seus musgos aos caramujos-flores
e os caramujos-flores às paredes sua gosma
Assim desabrocham como os bestegos (BARROS, 1998, p. 60).

Não se trata de um consumir o outro, mas de dividirem uma intimidade a ambos


favorável. Todos estão em comunhão, sem hierarquia, os seres e o poeta. Este incorpora e
vive o universo dos caramujos, das formigas, das aranhas. Uma vez que ―não temos um corpo,
somos incorporados‖ (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 45).
Como se vê, Barros retoma em toda sua obra essa decorrência peculiar dos
bestiários, qual seja, a ausência de interesse em classificarem os seus animais numa escala de
importância ou de categorias que apreciasse o grau de evolução das espécies, desde os
organismos mais ínfimos até os mais complexos. É possível apontar aqui que, Barros, a partir
da tradição bestiária, inquire sobre a abordagem de seus animais. Desse modo, lega moldes e
motivos alterados para atender a diversificações contextuais, por onde o cultural e formações
ideárias, senão ideológicas, se manifestam na poesia do autor.
No último capítulo, ―Arranjos para assobio‖, Barros prossegue os exercícios com
as palavras. No seu percurso do singelo, o poeta com ―voz de chão podre‖, reinventa o mundo
por ele contemplado através da palavra criadora e ao renunciar aos convites da competição
acirrada imposta pelo capitalista e o progresso científico, acredita ser ―mais importante fundar
um verso/ do que uma Usina Atômica‖ (BARROS, 1998, p. 65).
127

Até mesmo o pulo, sob o discurso surrealista, serve como justificativa para
colocar em xeque a realidade concreta e o pensamento lógico. Novamente, nota-se a ideia do
silêncio, perceptível em outros poemas. Assim, Barros incorpora em sua escritura a mania
infantil, pois para ele poesia é como exercícios de ser criança (BARROS, 1999a).

O pulo

Estrela foi se arrastando no chão deu no sapo


sapo ficou teso de flor!
e pulou o silêncio (BARROS, 1998, p. 71).

O poema ―O pulo‖, é um exemplo de como essa poesia, inversamente, sempre se


preocupou em apresentar a natureza como efeito de uma construção da imagem visual. A
cenografia, por sua vez, se constrói no próprio texto e revela a construção do poeta. Dessa
forma, este poema constrói-se como um movimento independente do sujeito de transfiguração
dos elementos da natureza numa linguagem simples e precisa (ANDRADE JUNIOR, 2004).
No estado silencioso das lucubrações, cada coisa, cada animal, torna-se ser a sua
maneira. A palavra rende-se, entrega-se ao poeta para que ele a verbalize na sua linguagem
inicial. Manoel de Barros escreve poesia para externar essa inapetência para o mundo dos
homens, pois parece se sentir muito melhor entre as coisas imóveis e os bichos de seu
bestiário que entre os seres falantes (CASTELO, 1999, p. 112).
O poeta mato-grossense, como ser criador, vai revelando a variedade de vidas que
habitam o pantanal. Dessa forma, tanto a estrela quanto o sapo constituem-se seres na medida
em que se encontram: a estrela abdica de sua esfera celestial e ganha qualidade terrena,
arrastando-se de encontro ao sapo, que se vê fertilizado pelo encontro, ficando ―teso de flor‖.
Em Barros, é bastante notável a concepção do poeta como fazedor, expressa no
sentido etimológico da palavra poeta, lembrado por Cury e Walty (1999, p. 25), como ―aquele
que faz‖. Como poeta moderno, ele preocupa-se com o modo de dizer e conduz o leitor à
esfera do não familiar, do estranho, do desfigurado. Conforme revela: ―é preciso propor novos
enlaces para as palavras. Injetar insanidade nos verbos para que transmitam aos nomes seus
delírios‖. Em outras palavras, Barros busca um determinado envolvimento para se alcançar a
matéria da poesia (BARROS, 1992, p. 312).
É comum o aspecto em Barros de um sujeito lírico arcaico, que observa os
animais, está em contato com a terra, para resgatar o homem já perdido (DAVID, 2005, p.
22). Porque o aprendizado do poeta, desde a sua infância, se dá pelo sensível, pela natureza.
Assim, o poeta constrói seu bestiário como forma de escapar da ação do mundo. Afinal, o que
128

Manuel de Barros deseja é estar em harmonia, deixando-se invadir pela natureza para viver
plenamente. Essa atitude torna-se ainda mais evidente quando considera que é ―preciso ser de
outros reinos: o da água, o das pedras, o do sapo‖ (BARROS, 1990, p. 333).
O projeto político e estético de Manoel de Barros utiliza um tempo em que tudo
pode vir a ser. O tempo, em sua obra, não tem marcas cronológicas, é um tempo mítico, como
se exemplifica na passagem:

Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era
encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A
gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora
que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou tem hora
que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os
lagartos e os musgos. Assim: tem hora eu sou quando um rio. E as garças me beijam
e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes. Hoje eu estou
quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como
quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora eu estou
quando infante. Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos no
rancho de palha perto de uma aguada (BARROS, 2006a).

No mundo de Barros, é possível perceber a complexa tensão temporal que envolve


o presente, a noção de tempo é apagada, e todos os seres experimentam um tempo circular. O
tempo para o autor não é nem homogêneo nem contínuo. Trata-se de um tempo ontológico
por excelência, um tempo que não se esgota. Afinal, esse processo contínuo de metamorfose
pela qual passa o poeta e que convida a todos a viver de interação com a natureza pressupõe
uma ruptura com o tempo linear criado pelo ser humano, pois, ―pensar não inclui apenas o
movimento das ideias, mas também sua imobilização‖ (BENJAMIN, 1993, p. 231).
129

3.5 Confabulando com a natureza

No percurso da leitura dos poemas, é descoberta, em Manoel de Barros, a palavra


sendo empregada como uma instituição capaz de fragmentar e recriar o universo. Não
satisfeito em manusear a palavra em tão extenso alcance, o poeta conduz o seu bestiário de
forma tal a obter a liberdade absoluta da linguagem. Um verdadeiro explorador é o termo
apropriado para se definir o que Barros faz com sua poesia, pois, fazendo referência à língua
portuguesa, diz que estudou-a ―com força para poder errá-la ao dente‖ (BARROS, 2003b, p.
18).
A poesia como emanação permanente do império da linguagem tem a capacidade
de filtrar a natureza ou prendê-la em sua própria teia. Assim, ao vincular o real na escória do
mundo concreto, Manoel de Barros faz da palavra arranjo do fazer poético, objeto que se
relaciona com o sublime e ao mesmo tempo fala de si mesma, traços fundamentais na feitura
da novidade poética deste cantor das coisas do Pantanal.
Neste capítulo, buscou-se descrever os animais do bestiário pantaneiro a partir da
poesia de Manoel de Barros e observar como se constroem e aparecem nesta poesia. No
decorrer das análises, o pantanal e todo o seu universo vegetal, animal, a natureza física e
humana estiveram muito presentes com a força das metáforas utilizadas pelo poeta. Diante
das reflexões suscitadas nos poemas do livro Arranjos para assobio, percebe-se também que
Barros traz em seu bestiário uma tendência de não diferenciar seus animais. Na verdade,
segue, assim como no imaginário da tradição dos bestiários, o tratamento dos mais
diferenciados animais, considerando-os, não importando a sua natureza. Dessa forma, todos
os animais, passam a ser considerados num mesmo grau de convicção (FONSECA, 2003, p.
169).
Este desinteresse se vale dos fundamentos teológicos, pois para a cosmovisão
medieval, todos os animais eram igualmente respeitados, desde os animais corriqueiros e
aparentemente insignificantes pela sua vulgaridade até os mais enigmáticos e simbolicamente
reveladores por sua prodigiosidade ou portentosidade (FONSECA, 2003, p. 169). Igualmente
é a poesia de Manoel de Barros ao equiparar todos os seus seres, desde um simples inseto até
uma grandiosa ave, fazendo com que todos os animais, ínfimos ou superiores, sejam avaliados
como parte do sublime na natureza.
A obra de Manoel de Barros enfatiza o tema do humano a partir do cotejo com
uma cultura dominada pela prática racional que determina sobre a serventia da produção e
130

transforma os sujeitos em sujeitados a um modo de pensar abalizado ao objetivo, ao exato, ao


racional e ao irracional. Conhecer sua obra é se deixar levar pela magia de um mundo novo,
um mundo no qual as coisas possuem um sentido inusitado e deixam emanar a essência vital
do universo (MENEZES, 1998).
A comparação Homem / Natureza é uma leitura que sempre tem sentido, pois o
natural físico explica o homem pantaneiro. Entretanto, esse estudo sobre o animal percebeu o
verdadeiro espelho não só do povo pantaneiro, mas de toda sociedade em sua diversidade e
multiplicidade. Desta forma, é possível afirmar que para Manoel de Barros, poesia é a
simbiose: poeta/linguagem/natureza.
Em Barros, foi possível verificar acerca da sucessão comum nos bestiários
medievais, quais sejam das bestas, aves, pedras que corresponde uma hierarquia baseada no
fato de as primeiras viverem com a cabeça direcionada para a terra, procurando apenas a
alimentação, remetendo para uma imagem da infância humana, as segundas, que voam no
céu, encontram-se conotadas com os homens que aspiram por Deus, enquanto as pedras pelas
suas características de solidez, estabilidade e permanência, simbolizam o homem que não se
desvia do bem, surgindo, assim simbolicamente referenciados os três estados espirituais do
cristão (CHAMBEL, 2006, p. 16).
Não resta dúvida que a obra barreana recorrendo à tradição literária medieval
forma-se como um verdadeiro bestiário, tecido por imagens do mundo animal em todos os
seus ambientes, seja no ar, com andorinhas, sabiás, pombas, borboletas; na terra, com
formigas, onças, tartarugas, serpentes, lesmas, rãs, lagartos, vermes; e na água, com toda uma
diversidade de peixes. Todos fazendo parte do caleidoscópio vivo da região. É assim que
Manoel de Barros plasma seu espaço imaginário, predominantemente, na natureza.
Percebe-se no poeta a recorrência de um olhar racional e irracional, lógico e
alógico, com o intuito de predomínio deste sobre àquele (DAVID, 2004). Isso faz com que,
provisoriamente, abdique de sua natureza humana para se colocar no mesmo plano das coisas
e dos animais. O poeta, travando uma luta no terreno da linguagem, não apenas se transforma
num determinado ser, mas em muitos deles ao mesmo tempo. É graças a essa fuga do habitual
que se alcança a compreensão do mundo criado.
No presente capítulo, ainda que brevemente, tentou-se apresentar as linhas
particulares do bestiário de Manoel de Barros, evidenciando a visão de mundo presente no
autor que é capaz de comungar homem e natureza, buscando expor as características mais
marcantes e explicar as inovações que foram se manifestando, através de uma sucinta
referência aos contextos culturais e mentais que as tornaram possíveis. Este estudo deu
131

especial atenção ao viés simbólico que Barros utiliza, com o intuito de perceber as condições
que possibilitam o surgimento de um novo olhar sobre o mundo natural, em que o animal
cumpre uma função epistemológica de ensinamento do homem pelos exemplos da natureza
divinamente inspirada e instruída.
Assim, em seu bestiário, o objetivo do poeta é fazer como as minhocas: elas
―arejam a terra; os poetas, a linguagem‖ (BARROS, 2003c, p. 252). Por desatinar ao que as
palavras condicionam e adquirir, no remexer do cisco, a experiência do restolho, a obra de
Manoel de Barros consegue ir além do rótulo de poesia regionalista, não se ocultando diante
da exuberância natural de uma paisagem atraente – o pantanal. O poeta mesmo em seus
arranjos sobre a natureza ainda assim parece atinar sempre para a instância problemática do
ser humano.
132

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este mundo sensível é como um livro escrito pela mão de


Deus, e as criaturas são como figuras, não reveladas ao
sabor da vontade humana, mas dispostas pelo arbítrio
divino, a fim de manifestarem a sapiência invisível de Deus.
Hugo de S. Victor

Apesar de ainda haver muito a ser explorado há possibilidade de delinear algumas


conclusões. Desse modo, pretende-se discutir aqui alguns pontos a que as leituras, discussões
e aprendizados foram adquiridos ao se indagar acerca do animal nas fronteiras do Imaginário
e da Literatura.
Sabe-se que a criação estética de diversos autores da literatura brasileira
contemporânea tem sido alvo de estudos de variados tratamentos e abordagens teóricas e
crítico-analíticas, no que diz respeito ao seu conteúdo imagético, simbólico e figurativo.
Todavia, poucos foram os que investigaram, na formação imagística dessa literatura, acerca
do quanto e como a literatura contemporânea é herdeira do imaginário medieval, em que a
presença do mundo animal é transformada em motivos literários. Foi a partir dessa
constatação, que este estudo procurou contribuir no preenchimento dessa lacuna na crítica,
analisando o livro de contos O carnaval dos animais e o de poesia Arranjos para o assobio, a
partir de sua própria distinção, de seu gênero e sua singularidade, já que cada uma dessas
obras, além de fazer parte de um contexto histórico particular, é marcada pelo traço distintivo de
cada autor.
O método de análise deste estudo apoiou-se na recorrência que vários escritores
brasileiros contemporâneos fazem a imagens e situações simbólico-figurativas referentes às
mais variadas figuras de animais, mas tendo em conta a singularidade de cada uma delas e que
por sua vez faz parte de um contexto histórico particular.
Desse modo, foi indicado no percurso do estudo acerca da relação existente entre
a literatura contemporânea e o simbolismo animal dos tradicionais bestiários, no que tange à
intenção dos autores em atribuir relações exemplares e, também, não exemplares entre o
homem e o animal.
Entre as várias manifestações que habitam o imaginário dos dois autores, foi
possível destacar o animal. Essa ênfase soa interessante por evocar uma imagem capaz de
aproximar não só os gêneros estudados, mas outros mais, visto poder abraçar a ideia de um
133

novo conhecimento que pressupõe uma mudança de paradigma, especialmente para as


sociedades ocidentais, em que há o resgate, de certa forma, daquela tradição que via na figura
do animal um significado supra-real.
No complexo simbólico operado por Manoel de Barros, não há predominância de
simbolismos, mas uma convivência equilibrada entre eles. Atribui-se isso ao fato de o autor
projetar um espaço primordial, de inícios, em que todos os elementos têm igual importância
na construção do mundo, pois, como se pode notar, sua maior habilidade é inventar
―inutensílios‖ e valorizar os ―patrimônios inúteis da humanidade‖, compostos por todas as
miudezas que estão em estado de abandono. Seu projeto é, de fato, desfazer algo para
construir um novo. Já em Scliar, nota-se um tratamento simbólico dado aos animais para
expressar a representação literária da vida humana, pois, assim como os escritores dos
bestiários, Scliar acredita na necessidade de estudar a natureza para o homem nela descobrir a
si próprio. A discussão sobre a violência através de uma abordagem simbólico-alegórica em
Scliar demonstra, muitas vezes, a animalidade do homem e a humanidade do animal.
A maior parte das personagens que se sucederam nas paisagens estéticas dos
autores estudados refletiu uma estreita ligação com a representação literária da vida humana,
porque, em seus nomes, carregam histórias versando sobre a própria existência humana.
Ao atentar para o que apontam as obras de Moacyr Scliar e Manoel de Barros,
percebe-se a presença do simbolismo animal medieval por meio de vários elementos. Ambos
os autores estabelecem um vínculo através da língua oferecendo a possibilidade de irmanar
experiências simbólicas e conhecimentos, não só de diversos animais, com os seus
comportamentos e características, que, interpretados segundo o método alegórico-simbólico,
contribuíram para enriquecer os bestiários e as enciclopédias, mas também a lidar com o
imprevisível, o inovador e o inaugural.
Nesse sentido, percebe-se que ambos se aproximam por construírem uma
linguagem literária fundada em escolhas e símbolos que exprimem sua experiência
fundamental constituindo uma expressão pela quebra de paradigmas.
Entre os tantos recursos estilísticos que traduzem a imagética desses dois
exploradores da linguagem, que se alicerçam no uso metáforas, alegorias e anagogias capazes
de imprimir expressividade e afetividade aos textos como forma de manifestação do
pensamento mágico, constata-se que, tanto Manoel de Barros quanto Moacyr Scliar,
conscientes de seu ato cosmogônico, ecoam as forças renovadoras de sua época.
Sabe-se que do século XIX até os dias atuais, a literatura, assim como o homem,
passou por enérgicas transformações filosóficas e sociais, com inversões de valores, uso de
134

diferentes linguagens, que surgiram e mudaram conceitos estéticos, causando, assim, um


verdadeiro turbilhão de mudanças na literatura tradicional. Ambos os autores estudados vivem
esse momento e, com uma escrita literária carregada de elementos imagéticos e simbólicos
buscam seus respectivos universos de valores culturais e ideológicos. Assim, não lhes faltam
inventividade nem sensibilidade para fazer fruir o verbo e colocar, no dizer de José
Fernandes, a palavra em estado de loucura.
A presença do alegórico em Moacyr Scliar e de uma natureza mágica em Manoel
de Barros introduz a compreensão da ordem social no domínio do simbólico-alegórico.
Assim, ambos autores utilizam a intervenção do onírico, a possibilidade da interferência do
extraordinário no ordinário, do sobrenatural no natural (TODOROV, 2004).
Vale ressaltar que, embora os dois autores busquem recursos da modernidade,
como a hibridização de gêneros, a intertextualidade, a metalinguagem, entre outros, eles
jamais perdem de vista os elementos do passado. É com isso que ambos metaforizam suas
obras, mostrando seu olhar contemplativo sobre a natureza, sobre a vida e sobre o homem.
Trazer para este estudo tanto o conto como a poesia, reforça a concepção de Nelly
Novaes Coelho de que o valor literário de uma obra não pode ser medido por determinado
autor pertencer a uma ou outra tendência literária, mas ―pela consciência do fazer literário
revelado por sua matéria literária, seu corpo verbal; e, também, pela adequação de tal matéria
às forças renovadoras mais atuantes em seu momento de produção‖ (1985, p. 220).
Moacyr Scliar e Manoel de Barros ampliam os canais da percepção do leitor para
questionar os efeitos de uma civilização reduzida ao qualitativo, ao dinheiro, ao prosaico,
evocando a bandeira de uma sociedade ideal, utilizando, desse modo, a literatura, como
ferramenta propícia à conscientização e à transformação humana.
No desenvolvimento desta análise notou-se uma inquietude comum aos dois autores
a respeito do simbolismo animal. A partir dessa inquietude, os dois utilizaram, assim como
para o homem medieval, o animal enquanto símbolo de uma realidade para indagar sobre o
homem. Basearam-se no que ensina o poeta do século XII, Alain de Lille (1128-1203): ―para
nós, toda criatura do mundo é como um livro, um quadro, um espelho; da nossa vida, da nossa
morte, da nossa condição, da nossa sorte25‖.
Com Manoel de Barros acontece o mesmo. Sua poesia é um espaço sem
delimitações, onde se trocam atributos do reino humano, vegetal e animal. É um espaço em
eterna transformação, em constante metamorfose, onde um inseto é pessoa e vice-versa, onde

25
Omnis mundi creatura quasi liber et pictura nobis est especulum; nostrae vitae, nostrae mortis, nostri status,
nostrae sortis.
135

caracóis ou sapos são nuvem ou onde o homem é sabiá. O pantanal é a matéria prima para a
poesia barreana. Mas, esta natureza não é, em absoluto, vista com olhos que contemplam sem
agir, ficando numa enumeração de espécies. E isso, revela a postura de um homem que, frente
à vida, procura agir. Assim é que Manoel de Barros vislumbra o mundo pela ótica da
natureza. O autor delega ao animal a função de transmitir os sentidos das suas reflexões,
coordenando o seu discurso, não só em aspectos exteriores, mas tentando penetrar nas
complexidades e mistérios da interioridade das coisas e dos animais.
Foi possível notar que os contos de Moacyr Scliar são extremamente complexos
com a possibilidade de diversas leituras, negando uma interpretação unívoca. Seus contos
mantêm o leitor em constante tensão, pois num momento dá pistas para seu entendimento e,
logo depois, se contrapõe nelas mesmas, contribuindo para a manutenção de sua natureza
ambígua.
No bestiário de Scliar, foi possível ainda perceber que à medida em que os termos
de comunicação entre o homem e os seres animais transformam-se, alteram-se as condições
do seu encontro. Somente sob estas condições o animal pode ser visto como o outro.
Já Barros, para atingir uma percepção do próprio mundo natural, desenvolve a
temática da natureza a partir de animais, minerais e vegetais, isto é, mimetizando-os e
entrando literariamente em seus corpos. Na tentativa de aproximar-se tanto quanto possível do
mistério que envolve esta metamorfose, observa-se a recorrência de outros recursos como: a
faculdade mimética; a linguagem corporal e a linguagem imagética liberando a própria
linguagem de seu automatismo. Isto porque, ele desenvolve uma visão letrada da natureza,
segundo a qual esta era entendida como constituída por um conjunto de símbolos e sinais que
deviam ser lidos e decodificados de forma a entender os desígnios divinos da Criação. É dessa
forma, que sua obra celebra e consagra a comunhão do homem com a natureza. Afinal, o
poeta ―aprendeu com a natureza o perfume de Deus‖ (BARROS, 2003b, 63).
Manoel de Barros entra, por sua vez, neste mundo por meio ―das infusões, das
aderências, das incrustações‖ (BARROS, 1998, p. 11). O poeta, despojando-se de todo
entendimento racional do ser humano, de toda caraterística humana, vivencia este mundo. Ele
experimenta uma transformação não apenas num animal, mas também em pedras e plantas,
como nos lapidários e herbários, respectivamente, para assim, entender suas ―naturezas‖.
Do mesmo modo, destaca-se neste autor sua singularidade da linguagem
imagética. Esta construção imagética permite vislumbrar a ambiguidade da relação do homem
com a natureza. Sendo assim, rompe com a arbitrariedade e convencionalismos da linguagem
quotidiana, para que o olhar seja deslocado do seu eixo antropocêntrico. Isto pode-se notar no
136

mundo imaginado por Barros que se contrapõe com o mundo real. Um exemplo disto refere-
se ao estatuto de indivíduo dado para o inseto e o de inseto para o poeta.
Estando os autores inseridos no contexto da literatura brasileira contemporânea, eles
fazem parte de uma tendência mais universal, ao se valer de imagens e situações simbólico-
figurativas referentes a uma diversidade de animais, para além do inspiracional, há uma
verdadeira recorrência e renascença das tradições medievais em geral. Eles, dentro do seu
espaço, constroem esta corrente que consiste na reintrodução de legados antigos com o intuito de
descobrir e conservar os valores culturais dos antepassados.
Retomando a noção de bestiário literário como um dos elementos da literatura, o
animal alcança outras dimensões além das simbólicas ou alegóricas. A nova posição adotada
pelos autores estabelece um outro entendimento acerca do animal, pois nesta nova postura, é
possível perceber também que o homem já não ocuparia um lugar privilegiado. Nessa
perspectiva, nota-se que Moacyr Scliar e Manoel de Barros, longe de uma mera fonte
instrutiva e moral, adquiriram autonomia em relação às fraquezas que deviam representar e
passaram a caracterizações da vida e da natureza.
Percebe-se também que as obras dos autores estudados fazem coro ressonante do
imaginário religioso e profano imbuído na cultura erudita, e também na popular, servindo,
neste sentido, de interface entre literatura, as formações do folclore e da oralidade. Deste
modo, assim como o simbolismo animal medieval servia-se da alegoria para, a partir dos seus
comportamentos e características, entender os ensinamentos morais a serem seguidos pelos
cristãos iletrados, também na poesia de Manoel de Barros seu conteúdo simbólico torna-se
bastante popular, fazendo parte do folclore e da oralidade da cultura através de sua criação de
metáforas da natureza que revelam características idiossincráticas e aspectos culturais
inerentes à vida pantaneira.
Acerca da seleção de Manoel de Barros e Moacyr Scliar, vale lembrar que esta foi
feita pensando nos gêneros em que o animal é inserido: na prosa e na poesia. No início deste
estudo, falou-se que o animal é uma figura recorrente na literatura, portanto não é excluinte a
um gênero só. Assim, não se quis cair no marco estrito da definição de cada gênero, nem na sua
especificidade, simplesmente, fazer a distinção entre prosa e poesia.
Algumas das caraterísticas encontradas neste estudo foi uma luta férrea, forte, de um
lado e, do outro, uma entrega do ser humano com relação à natureza. Os escritores perdem, ou
melhor, rendem-se à identidade humana para entregar-se a identidades múltiplas. Na análise dos
textos referentes à imagem animal, nota-se que os mesmos vão tecendo todo um imaginário em
torno da fauna nacional, costurando retalhos de diferentes origens, compondo, no pano de fundo
137

da(s) cultura(s) brasileira(s), bem como o desenho das relações humanas com o mundo natural. Isso
significa que mesmo autores da contemporaneidade da literatura brasileira se propõem a revisitar a
literatura tradicional, uma vez que a tradição do imaginário medieval é uma rica matéria para
construção literária.
O recorte investigativo pelo viés do simbolismo animal medieval, nos diferentes
contextos literários em estudo, permitiu a abertura de uma fresta de conhecimento e tornou-se
possível uma visão crítica e uma compreensão dos fenômenos culturais e literários produzidos por
Manoel de Barros e Moacyr Scliar, por meio da relação dialética entre o estético, o histórico e o
simbólico.
Após a análise do simbolismo animal medieval, por intermédio dos contos em Moacyr
Scliar, nota-se que os temas perceptíveis no decorrer do estudo revelam o embate dos valores
humanos que coexistem na grande cidade, em que uma mitologia urbana imposta, socialmente,
surge em contrapartida à convergência de cenas de sexo e violência. A perspectiva extremista
indicia a desmistificação, o desmascaramento dos mitos sob os quais o homem urbano tenta
sobreviver, e revela, sobretudo, que a tensão entre o real e o ideal se dá no limite não só das
situações, mas da própria vida das personagens, que vivem aturdidas pela sensação de isolamento.
Nesse sentido, nos contos de Scliar, os animais, ao apresentarem as suas características
literais reveladas, na primeira parte das narrativas, logo adquirem uma dimensão alegórica à qual
se alia uma vertente moral e, além de criar situações cômicas com o intuito de criticar, os
valores da sociedade humana. Assim, o comportamento dos animais, juntamente, com a
crítica à sociedade, vem mostrar de que forma o homem deve evitar a perversidade e
aproximar-se da virtude. Afinal, como Umberto Eco (1986, p. 15) afirma: ―Para cada virtude
e para cada pecado há um exemplo tirado dos bestiários, e os animais tornam-se figuras do
mundo humano‖.
Já no poeta em que ―o chão é um ensino‖, existe uma verdadeira aula sobre o
Brasil, naquilo que possui de mais rico: a natureza vegetal, animal, mineral. Sabiás, lagartixas,
vaga-lumes, borboletas, minhocas, caramujos, sapos, camaleões, pardais, beija-flores,
tartarugas, besouros, araras, lesmas, calangos, musgos, violetas, bananeiras, enfim, espécies
da flora e da fauna que povoam o território poético desse grande escritor. Afinal, como
informa Barros: ―O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, das pedras. Sua gramática se
apoia em contaminações sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de árvores, de rãs‖
(BARROS, 1996).
Resguardadas as características históricas e culturais nas quais se manifestou o
processo exegético que privilegiava a leitura simbólico-alegórica, o espaço que Barros elege
138

para pôr o leitor em cena é a natureza. Nela, é fundado um espaço ecológico, em que é saciada
a necessidade de sentido para o mistério da vida. Povoado de animais, vegetais, minerais e
humanos, coloc o homem num território imaginário em que se tornou possível realizar uma
estreita ligação com o fantasioso.
Foi perceptível, ainda, no desenvolvimento da pesquisa, que a carga simbólica dos
animais descritos na literatura brasileira contemporânea chega a uma extrema semelhança
àquelas simbologias dos antigos bestiários medievais. As analogias chegam a ser feitas
nominalmente, como, no caso, da sacralidade da natureza nos poemas de Manoel de Barros.
Afinal, tanto o espaço urbano em Moacyr Scliar como o Pantanal em Manoel de Barros foram
usados como um retrato arrojado e imaginativo do homem como ser religioso, político,
econômico, cultural e sexual, constituindo um verdadeiro espetáculo da representação do ser
humano.
O estudo de ambos os autores trouxe à tona a riqueza da concepção simbólico-
alegórica da natureza, bem patente na continuação da elaboração de bestiários. Foi possível
perceber, ainda, que a cada novo período histórico-cultural o universo simbólico da literatura,
inclusive o simbolismo animal, se reveste de novas significações, porém, sempre
reaproveitando motivos tradicionais. Desta maneira, ao focalizar mitos, simbologias de
animais e lendas associadas a este riquíssimo mundo, teve-se a oportunidade de conhecer um
pouco mais sobre este fantástico universo que é o imaginário zoológico da Idade Média.
139

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Geral

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146

ANEXOS

CRONOLOGIA DAS OBRAS DE MANOEL DE BARROS

1937 — Poemas concebidos sem pecado.


1942 — Face imóvel.
1956 — Poesias.
1960 — Compêndio para uso dos pássaros.
1966 — Gramática expositiva do chão.
1974 — Matéria de poesia.
1982 — Arranjos para assobio.
1985 — Livro de pré-coisas. (Ilustrações de Martha Barros)
1989 — O guardador das águas.
1990 — Poesia quase toda.
1991 — Concerto a céu aberto para solos de aves.
1993 — O livro das ignorãças.
1996 — Livro sobre nada. (Ilustrações de Wega Nery)
1998 — Retrato do artista quando coisa. (Ilustrações de Millôr Fernandes)
1999 — Exercícios de ser criança.
1999 — Para encontrar azul eu uso pássaros: O Pantanal por Manoel de Barros.
2000 — Ensaios fotográficos.
2001 — O fazedor de amanhecer.
2001 — Poeminhas pescados numa fala de João.
2001 — Tratado geral das grandezas do ínfimo. (Ilustrações de Martha Barros)
2003 — Memórias inventadas: a infância. (Ilustrações de Martha Barros)
2003 — Cantigas para um passarinho à toa.
2004 — Poemas rupestres. (Ilustrações de Martha Barros)
2006 — Memórias inventadas: a segunda infância. (Ilustrações de Martha Barros)
2007 — Memórias inventadas: a terceira infância. (Ilustrações de Martha Barros)
147

CRONOLOGIA DAS OBRAS DE MOACYR SCLIAR

Conto
1968 — O carnaval dos animais.
1976 — A balada do falso Messias.
1976 — Histórias da terra trêmula.
1979 — O anão no televisor.
1984 — Os melhores contos de Moacyr Scliar.
1984 — Dez contos escolhidos.
1986 — O olho enigmático.
1995 — Contos reunidos.
1997 — O amante da Madonna.
1997 — Os contistas.
1998 — Histórias para (quase) todos os gostos.
2002 — Pai e filho, filho e pai.

Romance
1972 — A guerra no Bom Fim.
1973 — O exército de um homem só.
1975 — Os deuses de Raquel.
1975 — O ciclo das águas.
1977 — Mês de cães danados.
1979 — Doutor Miragem.
1979 — Os voluntários.
1980 — O centauro no jardim.
1981 — Max e os felinos.
1983 — A estranha nação de Rafael Mendes.
1991 — Cenas da vida minúscula.
1992 — Sonhos tropicais.
1997 — A majestade do Xingu.
1999 — A mulher que escreveu a Bíblia.
2000 — Os leopardos de Kafka.
2005 — Na Noite do Ventre, o Diamante.
148

Ficção infanto-juvenil
1981 — Cavalos e obeliscos.
1982 — A festa no castelo.
1984 — Memórias de um aprendiz de escritor.
1988 — No caminho dos sonhos.
1988 — O tio que flutuava.
1989 — Os cavalos da República.
1991 — Pra você eu conto.
1994 — Uma história só pra mim.
1995 — Um sonho no caroço do abacate.
1995 — O Rio Grande farroupilha.
1998 — Câmera na mão, o Guarani no coração.
1999 — A colina dos suspiros.
2000 — Livro da medicina.
2000 — O mistério da Casa Verde.
2001 — O ataque do comando P.Q.
2002 — O sertão vai virar mar.
2002 — Aquele estranho colega, o meu pai.
2002 — Éden-Brasil.
2002 — O irmão que veio de longe.
2003 — Nem uma coisa, nem outra.
2003 — Navio das cores.

Crônica
1984 — A massagista japonesa.
1989 — Um país chamado infância.
1995 — Dicionário do viajante insólito.
1996 — Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar.
2001 — O imaginário cotidiano.
2001 — A língua de três pontas: crônicas e citações sobre a arte de falar mal.

Ensaio
1987 — A condição judaica.
1987 — Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública.
1988 — Cenas médicas.
1993 — Se eu fosse Rotschild.
1994 — Judaísmo: dispersão e unidade.
149

1996 — Oswaldo Cruz.


1996 — A paixão transformada: história da medicina na literatura.
2000 — Meu filho, o doutor: medicina e judaísmo na história, na literatura e no humor.
2000 — Porto de histórias: mistérios e crepúsculos de Porto Alegre.
2000 — A face oculta: inusitadas e reveladoras histórias da medicina.
2002 — A linguagem médica.
2000 — Oswaldo Cruz & Carlos Chagas: o nascimento da ciência no Brasil.
2003 — Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil.
2003 — Judaísmo.
2003 — Um olhar sobre a saúde pública.

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