Anais - 2020
Anais - 2020
Anais - 2020
de História
e Imagens
– X GEHIM
Imagens
Auto/Biográficas:
na História e na
Prática Artística
Anais - 2020
apoio:
X GEHIM
IMAGENS AUTO/BIOGRÁFICAS NA HISTÓRIA E NA PRÁTICA ARTÍSTICA
ANAIS
Realização
GEHIM – Grupo de Estudos de História e Imagens
NuPAA - Núcleo de Práticas Artísticas Autobiográficas
Apoio
UFG- Universidade Federal de Goiás
UEG - Universidade Estadual de Goiás
UPM - Universidade Presbiteriana Mackenzie
PPGH/UFG- Programa de Pós Graduação em História
PPGACV/UFG- Programa de Pós Graduação em Arte e Cultura Visual
PPGEAHC-PPG em Educação, Arte e História da Cultura – Mackenzie
Corpo Editorial
Heloisa Selma Fernandes Capel
Fernando Martins dos Santos
Manoela dos Anjos Afonso Rodrigues
Nayara Crístian Moraes
Capa e Diagramação
Debora Taiane Oliveira Alves
ISSN 2447-6676
Periodicidade: Anual
Ano: 2020
TEXTOS COMPLETOS
SUMÁRIO
ENREDOS HISTÓRICO-BIOGRÁFICOS
............................................................................................................................................................................06
DIÁSPORA E IDENTIDADE EM PAULO FLOR: BIOGRAFIA, HIBRIDIDIZAÇÃO E CRISE.
Elias J. B. Binja
CINEMATOGRAFIAS BIOGRÁFICAS
............................................................................................................................................................................62
A VISITA (1974) E QUE NÃO DOESSE (1998): CONFRONTO E RECONCILIAÇÃO NOS DOCU-
MENTÁRIOS DE MARCEL ŁOZIŃSKI
Davi Marques Camargo de Mello
SONORIDADES BIOMUSICAIS
.........................................................................................................................................................................144
SONORIDADES DE SI NA VOZ DE ELY CAMARGO
Nayara Crístian Moraes
PERFORMANCES BIOGRÁFICAS
.........................................................................................................................................................................168
AMARILDO JACINTO: FOLIA E PAIXÃO DO GRUPO DESENCANTO
Nélia Cristina Pinheiro Finotti
ICONOGRAFIAS (AUTO)BIOGRÁFICAS
.........................................................................................................................................................................259
COMO SE FAZ UMA GRAVURA NO SÉCULO XVI? A VIDA DE JOHANNES STRADANUS
(1523-1605)
Augusto Godinho Vespucci
Elias J. B. Binja1
Introdução
A história de Paulo Flores, em um simples esboço, pode ser dividida em quatro mo-
mentos distintos:
1 Professor na Fam – Centro Universitário, Fama – Faculdade de Mauá – Uniesp/AS, Flam – Faculda-
de Latino-Americana. Professor convidado da Universidade Agostinho Neto em Luanda – Angola. E-mail:
eliasbinja@hotmail.com
BINJA, Elias J. B. Diáspora e identidade em Paulo Flores: biografia, hibridização e crise, In: GRUPO DE ESTU-
DOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020,
Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 7-20.
lecimentos precoces além, de, obviamente, nas famílias desencontradas. É assim que a
família de Paulo Flores encontrou refúgio em Portugal.
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tradição e o moderno, em um hibridismo fecundo. Mas é a dor e o sofrimento do povo an-
golano que assumem destaque em sua poesia e música. As suas composições seduzem e
emocionam os angolanos, falando com ousadia de esperança. Ao cantar a própria histó-
ria, simultaneamente canta a história coletiva, exprimindo o desejo de dias melhores na
triste existência do angolano. Os versos em português mesclam-se ao kimbundu, à gíria
luandina, e até ao inglês e o francês, aparecendo, não poucas vezes, numa justaposição
sutil, proposital e intencional, elaborada para criar o seu hibridismo linguístico.
4º (1999 – Volta definitiva para Luanda – Angola). As idas e vindas de Lisboa – Por-
tugal a Luanda - Angola, que caracterizaram o seu percurso até então, ganham uma nova
página, pois Paulo Flores fixou residência definitiva em Angola. Em Luanda, estreitou
seus vínculos e criou novas colaborações com outros músicos angolanos, nascendo um
período que representa uma viragem na sua criação musical. Neste mesmo ano gravou
“Recompasso”. Em 2003, gravou “Xê Povo” e “Quintal do Semba”, trazendo melodias,
sonoridades e palavras que refletem a grande diversidade do seu repertório poético-mu-
sical. Nestes álbuns contou com a colaboração de músicos da elite musical angolana tais
como: Ciro Bertini, Betinho Feijó, Carlos Burity, Tito Paris, Lura e Sara Tavares, entre ou-
tros. Em 2005, gravou “Vivo”, em que sublinha e reforça a sua visão da história de Angola.
Até o presente, já gravou mais de 15 álbuns, conciliando a composição, os estúdios e as
turnês por todo mundo. Atualmente produz seu trabalho em uma linguagem que se as-
senta na procura e na valorização do patrimônio cultural e musical angolano. A seu ritmo,
ao mesmo tempo em que traz a bagagem da hibridização das suas diásporas, influencia
outros gêneros musicais locais assim como as novas gerações de músicos. Muito além da
música, Paulo Flores desempenha também um papel social importante no apoio à mo-
dernização da música angolana através da colaboração com jovens músicos angolanos.
Além disso também atua no desenvolvimento de ações de solidariedade social como
Embaixador da Boa Vontade da ONU em Angola – desde 2007 – (Jet7 – Angola, 2020).
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imaginação criativa e trouxeram um vislumbre do que acontecia em outros continentes,
em particular nos países irmãos. O Brasil, por exemplo, ostentava uma “cultura de paz”
cobiçada pelos angolanos, que mal conheciam as tensões internas, devidamente ma-
quiadas nas novelas e nas parcas notícias que chegavam. Mas foi no seio dos contrastes
sociopolíticos e econômicos, assim como em meio ao consumo da cultura estrangeira
que foram gestados os vanguardistas da cultura angolana, dos quais destacamos Paulo
Flores.
Paulo Flores está no interstício da tradição músico-cultural da sua geração, vale di-
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zer, enraizado na tradição musical do semba2, lança-se ao novo, como a kizomba3, num
diálogo fecundo e criativo do desenvolvimento cultural. Ele é a expressão significativa
da dinâmica cultural na música e na composição artística do presente tempo, sempre
aberto ao diálogo com as novas tendências. Paulo Flores vê no diálogo com o diferente a
possibilidade da articulação contínua da identidade cultural e musical angolana, levando
para o mundo os valores, as percepções da realidade e o modo de ser e estar do povo
angolano, vale dizer, o modo de autorrepresentação e representação do mundo, fruto do
complexo processo histórico desse povo e de sua diáspora. Neste sentido, o valor do hi-
bridismo aparece como elemento constituinte não só da linguagem, como também das
expressões, e, portanto da representação, o que implica na impossibilidade de se pensar
uma descrição ou discurso autêntico sobre artista e sua obra (BHABHA,1998). A aborda-
gem sobre o artista e sua representação já carrega as marcas deste hibridismo por conter
traços dos discursos, que se por um lado apontam para o jogo de diferenças, por outro
sinalizam a busca por uma autenticidade, vista como infecunda. A identidade, por sua
vez, sob a perspectiva do hibridismo, é dinâmica, inscrita em um processo que remete a
uma imagem sempre em construção.
2 Gênero musical e de dança tradicional de Angola, mais popular entre no povo akua kimbundo, tor-
nou-se muito popular nos anos de 1950. A palavra semba significa “umbigada” em kimbundo. Em tradução
livre, significa “o corpo do homem que entra em contato com o corpo da mulher pela barriga”. Umbigada,
por aqui, é uma dança afro-brasileira praticada nos quilombos.
3 Gênero musical e estilo de dança originário de Angola, nascidos da mistura de diferentes estilos an-
golanos com o zouk. Por essa razão é geralmente confundido com o zouk por ter o ritmo muito semelhante.
11
já aposentados: Elias Diakimueso, Nike, Kamosso, Bangão, Kalabeto, entre outros.
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Segundo Hall (2013), a distinção da nossa cultura é manifestamente o resultado do
maior entrelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade colonial, de diferentes elemen-
tos culturais do continente e outros quadrantes, tal fato deve-se ao caráter dinâmico das
identidades. É na medida em que nos dispusemos a articular a nossa identidade que ba-
lançamos as teias de relações culturais, em busca de novas identificações, pela abertura,
pelo reconhecimento e aceitação do outro diferente. Angola viveu e vive intensamente
o fato. Nos anos de 1980, quando a música estrangeira ganhou protagonismo jamais vis-
to, os Kassav, por exemplo, pareciam provincianos de Luanda. O sucesso do estrangeiro
parecia ameaçar soterrar o nacional, o local, na impossibilidade de novas manifestações
criativas, que atendessem os anseios do povo ávido pelo novo. A saturação emocional,
gerada pela tensão da guerra civil, criou um ambiente cujos desdobramentos exigiam
“escoadouros catárticos”, que a música local não dava conta, resultando na hibridização.
O resultado híbrido não mais pode ser facilmente desagregado em seus elementos de
origem, considerando o assento e o lugar que passou a ocupar na cultura musical ango-
lana. O hibridismo, a impureza, a mistura, a transformação, que vêm de novas e inusitadas
combinações musicais, culturas, ideais, políticas, cinematográficas, cancioneiras, são ele-
mentos da novidade, que entra na cosmicidade do angolano (HALL, 2013).
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identificações artístico-musicais. Desta feita, o que está em jogo é a questão da sobrevi-
vência cultural, face aos deslocamentos de sua base originária, diante dos encontros com
outras culturas. Por isso mesmo, o hibridismo em Paulo Flores dá ênfase ao fato de que
a cultura angolana é uma construção fecunda e que a tradição é uma invenção sempre
aberta, que se recria em contato com novo e diferente.
É verdade que “em qualquer caso, as culturas sempre se recusaram a ser perfeita-
mente encurraladas dentro de fronteiras nacionais. Elas transgridem os limites políticos”
(HALL, 2013, p.39), e tratando-se da música, é bem mais do que se pode imaginar. O su-
cesso da música estrangeira constitui a prova, mas daí não resulta que a proposta musi-
cal de Paulo Flores tenha sido acolhida como estrangeira. Muito pelo contrário, desde o
início, a acolhida é calorosa e o sucesso é imediato, como se fosse plenamente autóctone.
Mesmo sabendo que ela vem embalada de Portugal, de início, ela traz as marcas tangíveis
e indeléveis de ser-se angolana. Então é importante ver a perspectiva diaspórica da mú-
sica de Paulo Flores como subversiva dos modelos tradicionais orientados, desde então,
pelos “mais velhos”. E independemente das configurações culturais do semba, da música
tradicional angolana, Paulo Flores imprime a ela uma nova dinâmica que a desterritoriali-
za em seus efeitos, destinando-a a outros ouvintes para além de Angola. Mas é claro que
as culturas têm seus locais de referências, embora nem sempre seja tão fácil identificá-los,
fundamentalmente na música. Entretanto, a genialidade e o cuidado primoroso de Paulo
Flores subvertem essa lógica quando ele é visto a partir das impressões palpáveis dos
traços da cultura angolana nas suas composições. Os resultados do seu labor artístico,
acolhido com entusiasmo em Angola, sinalizam a identificação real da sua identidade
musical com a identidade cultural do povo angolano.
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res hermenêuticos para interpretá-la; e trouxeram novos elementos que incorporaram à
identidade cultural do povo angolano.
Além do mais, o que há de tão especial, para nós angolanos, na música de Paulo
Flores? A resposta para essa questão, antes de mais nada, está na própria arte que mostra
o ordinário de forma extraordinária, dando cada vez novos significados ao mundano (OC-
VIRK [et al], 2014). O cotidiano, o costumeiro, até o vulgar, tematizados na poesia cantada
de Flores transcendem o ordinário, convidando o ouvinte a mergulhar no impensado.
O óbvio ganha novos contornos e bordas sugerindo significados que trazem o fundo
da cultura e da tradição na superfície, nas expressões. As tristezas gestadas no bojo das
guerras, indizíveis pelas feridas e mágoas causadas, se por um lado tornam-se convites a
repensar a insensatez dessa brutalidade, por outro tornam-se rizíveis, enquanto se dança
15
as próprias “Malambas” do povo. Deste modo, Paulo Flores dá novos sentidos e significa-
dos, trazendo outra vitalidade ao cotidiano, transportando-nos para além do corriqueiro.
Com sua música, passa a comunicar emoções complexas, conforta a alma cansada da dor
persistente, instiga o pensamento e as atitudes em face dos fatos adversos. Com uma
linguagem acessível, possibilita a explicitação mais genuína da sensibilidade angolana ao
mesmo tempo em que expressa ideias que de outra forma não seriam possíveis.
Para além da própria arte, a composição músico-artística de Paulo Flores está ins-
crita na “Tradição Oral”. Segundo Duarte (2009), nas sociedades organizadas a partir do
tronco Bantu, as narrativas orais configuram os pilares em que se apoiam os valores e
as crenças transmitidas pela tradição e, simultaneamente, previnem as inversões éticas
e o desrespeito ao legado ancestral da cultura. Segue-se à tradição, a performance que
acompanha as narrativas, que assume a responsabilidade pela atualização constante dos
ensinamentos, tornando-se exercício vivo e interativo entre os membros da sociedade. A
tradição oral é visual, mímico, imaginativo e encantatório; vale dizer, o texto oral transmi-
te o legado mais legítimo das culturas locais através dos exemplos que visam à solidifica-
ção dos laços entre os membros do grupo, além de garantir o discernimento do lugar de
pertença do indivíduo, sua filiação identitária, permitindo-lhe uma visão de si mesmo e
do outro com um mínimo de conflitos. Esses traços e características são reunidos, de cer-
ta forma, nos versos cantados, nas coreografias, nas apresentações públicas e em outros
elementos ao longo da trajetória artística de Paulo Flores.
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álbum. É assim que, como o texto oral afigura-se como um relicário em que umas das
mais genuínas expressões do povo encontram guarida, o nosso artista transfere e inscre-
ve esse valor na música.
Em Paulo Flores, o ritual que acompanha as suas narrativas cantadas possibilita a re-
edição do mundo ideal das ações justas e dos heróis da tradição musical: Dionísio Rocha,
Manuel Rui Monteiro, André e Rui Mingas, Teta Lando, Teta Lagrimas, os irmãos Kafala,
Bonga, entre outros tantos, que não se analisam pela ótica ocidental. A ótica ocidental
tende a sujeitar a música angolana a um crivo que, quando não nega contrapõe os valo-
res ancestrais a uma nova escala incompatível com os códigos familiares enraizados na
cultura local e sacralizados pela tradição. A ritualização do ato de cantar, a reverência que
Paulo Flores tem pela palavra, o gestual, a interação com o seu público, geram cumpli-
cidade e permitem falar da diferença, reconstruir o velho, pela memória. Desse modo é
possível o recepcionar o novo pela fantasia, pela esperança, pela sacralização, pois é do
sagrado cultural que a sua palavra extrai o poder criador e operacional. As tradições afri-
canas têm uma relação direta com a manutenção da harmonia tanto no homem como no
mundo que o envolve, razão pela qual a maioria das sociedades orais tradicionais, como
a angolana, considera a mentira como uma verdadeira chaga moral (DUARTE, 2009). Cre-
mos que é dessa preocupação que nasce em Flores a necessidade e a busca constante
pela autenticidade. Porque nas tradições africanas, aquele que falta à sua palavra, mata
a sua pessoa civil. Mais do que isso, “desliga-se de si mesmo e da sociedade” (DUARTE,
2009, p.187). Vale dizer que é contra a morte identitária, gerada no bojo do processo de
ocidentalização, que Flores luta. Assim Flores se expressa diante da reverência votada à
palavra cantada, que não admira mais o desconforto do africano no mundo ocidental,
inundado da verborragia inócua que sustenta e contém a massa insatisfeita, anestesiada
com promessas utópicas, vinculadas unicamente no arregimentar de todas as formas de
poder, enquanto se pasteurizam as massas na identidade cultural global.
Considerações Finais
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criou também novas possibilidades de coexistência e relações intersubjetivas. O amálga-
ma identitário e cultural daí resultante, se por um lado reforça a urgência de narrativas
que apontam para a afirmação do sujeito angolano pós-independência, por outro per-
mite um processo de emancipação, possibilitando a construção de novas identidades e
identificações culturais. Ao mesmo tempo, (esse amálgama identitário e cultural) redun-
da no processo de mobilização e resistência que visa salvaguardar os valores originários
que definem a identidade cultural pelo cultivo da arte. Paulo Flores, através da música,
tem dado significativas contribuições na preservação de rituais e expressão culturais. Ain-
da assim, há nele o reconhecimento de que a cultura angolana não se pretende única, co-
locando-a entre outras, na sua diferença, em um diálogo franco e aberto. Foi na diáspora
portuguesa que Paulo Flores descobriu a riqueza e as possibilidades que a hibridização
musical oferece.
Como nos referimos anteriormente, Paulo Flores está no interstício da tradição mú-
sico-cultural da sua geração, enraizado na cultura tradicional da música angolana, onde o
semba aproxima-se ao zouk, resultando no melhor kizomba. Desde o início de sua carrei-
ra artística, percebe as inquietações e as variáveis com as quais a sua geração se debatia,
propõe um diálogo entre a tradição musical angolana e os novos estilos trazidos pela
música estrangeira. O resultado deu em uma música hibrida que restabeleceu a continui-
dade da tradição cultural sem abrir mão das grandes novidades trazidas do estrangeiro. A
música de Paulo Flores é, neste sentido, inovadora, refinada e intensifica a experiência do
angolano com a própria cultura, possibilitando a articulação da identidade cultural e mu-
sical. A troca que estabelece com outras culturas musicais propicia a construção de uma
nova narrativa poética da história do povo angolano, narrativa essa suscitada por sua
experiência diaspórica. A poética do “exílio”, da saudade da terra, inspirada nas viagens
de idas e vindas, e na história de outros refugiados e migrantes oriundos de outras ex-co-
lônias, o definem, assim como redefinem o estilo musical angolano. A música angolana
ganha, desse modo, nova matizes sem necessariamente abdicar de suas raízes.
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golana é esse fio condutor que constrói a sua carreira artística, que o possibilita articular
diálogos com outras tradições musicais distintas. No diálogo, a sua fidelidade às origens é
testada constantemente, mas é a consciência de si autônoma que o possibilita expressar
através da música a autenticidade do seu vocabulário valorativo angolano. Entretanto,
Paulo Flores é genial, criativo, cuidadoso e primoroso e ao subverter a “lógica” da cultura
estática, a partir das impressões palpáveis dos traços da cultura angolana, incrementa
novos elementos de outras culturas nas suas composições. O resultado é acolhido com
entusiasmo pelo seu povo, sinalizando uma identificação real da sua identidade musical
com a identidade cultural angolana.
Paulo Flores não só reivindica o resgate de suas raízes específicas e suas tradições,
como também, pela defesa dos valores artísticos africanos, tenta e constrói uma nova tra-
dição poético-musical, que certamente lhe permiti escapar da corrosão e destruição dos
mitos de seu povo, da rotulação de que a cultura africana é exótica. Então, é diante desta
reverência votada à palavra cantada que, como africano no mundo ocidentalizado, dribla
os desconfortos das crises diaspóricas. Através da afirmação da identidade, Paulo Flores
consegue afirmar a sua diferença, garantindo à sua geração a preservação de valores tra-
dicionais tão longamente negados, ora pela colonização, ora pela guerra civil e cultural.
Apesar das grandes contradições sociais e políticas na sociedade angolana, enfrentando
dificuldades educativas de toda ordem, na música e na dança o povo angolano se encon-
tra e espanta seus males.
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REFERÊNCIAS
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Tradução de Miriam Ávila, Eliana L. L.Reis e Gláu-
cia R. Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
DEWEY, John. Arte como Experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Ed. Martins
Fontes, 2010.
OCVIRK, Otto G. (at al.). Fundamentos de Arte: teoria e prática. 12ª ed. Tradução de
Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Ed. AMGH, 2014.
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(AUTO) BIOGRAFIAS EM
AMBIENTES DE FORMAÇÃO E
ATUAÇÃO
JUSCELINO KUBITSCHEK E AKHENATON:
ENTRE AS AUTO(BIOGRAFIAS) E AS IMAGENS
Introdução
Juscelino Kubitschek foi um homem a quem foi atribuído uma mística muito gran-
de. A sua particular religiosidade que podemos perceber em várias fontes, como seus
discursos, suas biografias e autobiografias, suscitou interpretações místicas por parte de
comunidades esotéricas e/ou espiritualistas, como a Eubiose e a pesquisadora Iara Kern.
São essas duas fontes que utilizarei como análises imagéticas, procurando compreender
de que forma as biografias do ex-presidente carregam informações a respeito das liga-
ções entre JK e o Egito Antigo, que puderam suscitar diversas interpretações de cunho
místico.
A própria Brasília foi alimentada por muita religiosidade nos momentos de sua co-
AFIUNE, Pepita de Souza. Juscelino Kubitschek e Akhenaton: entre as auto(biografias) e as imagens, In:
GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática
Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 22-35.
solidação. Juscelino Kubitschek (2000) em sua autobiografia2 relata que desde os primei-
ros momentos da construção de Brasília até a sua inauguração, todos empenhavam-se
“trabalhando arduamente”, por espírito de cooperação, assim como o ex-presidente nar-
ra: “Era a ‘mística de Brasília’, que atuava no espírito daqueles milhares de pioneiros” (p.
365). Podemos perceber no relato de JK o caráter místico atribuído à construção de Brasí-
lia, reforçando que essa aura influenciava os trabalhadores, atribuindo ao seu papel uma
espécie de missão divina.
2 O Senado Federal publicou o livro Porque construí Brasília (2000) no aniversário de 40 anos da
cidade, que se constitui em uma autobiografia do ex-presidente JK.
3 Recomendo a leitura da tese de doutorado de Maria Leandra Bizello (2008) intitulada Entre
fotografias e fotogramas: a construção da imagem pública de Juscelino Kubitschek (1956-1961) que se
debruçou sobre várias fontes históricas, como documentos, fotografias, jornais e documentários, para
compreender de que forma ocorreu a construção da imagem pública de JK no período de seu mandato.
As imagens da construção de Brasília também contribuíram para a legitimação de sua autoridade, como
um novo presidente, visionário e moderno.
23
A mística nos espectros de JK
Assim, a autora traz um crítico debate do que foi oculto pela história oficial de Brasí-
lia, que enfatiza a monumentalidade e a opulência da nova capital brasileira, escondendo
a situação de pobreza e segregação social sofrido pelos candangos. Não entrarei nesse
pormenor, pois o objetivo em citar esta pesquisa é a sua relação entre ambas personali-
dades, o que aloca JK mais uma vez ao campo místico.
4 O maçom João Baptista Bellavinha (2006) realizou um estudo procurando estabelecer relações
entre o planejamento de Brasília com o Templo de Salomão. Sua tese é a de que Brasília foi inspirada na Bí-
blia e na Maçonaria. Tudo começa pela determinação de três personagens responsáveis pelas construções
de ambos os empreendimentos. O principal destes três personagens, que no Templo de Jerusalém, era o
rei Salomão, este que forneceu todo o material necessário para a construção e acompanhou todo o traba-
lho. O segundo personagem, um artífice, conhecedor da arquitetura e da ciência, Hiram Abiff. O terceiro
24
a pesquisadora procurou estabelecer um crítico debate entre a monarquia dadívica e a
política de JK, encontrando elementos em comum nas suas formas de lidar com grandes
empreendimentos. O que eu achei interessante é que JK suscitou esse tipo de compara-
ção a personagens míticas, que tem sido algo que tenho encontrado com muita frequ-
ência. JK é comumente comparado a diversos líderes políticos, e até mesmo religiosos,
como é o caso do faraó Akhenaton.
Aspectos místicos contornam JK5 desde o seu nascimento. O biógrafo Couto narra
uma versão sobre o fato: No dia 12 de setembro de 1902, no Vale do Jequitinhonha, João
César de Oliveira gritava para todos que o encontravam “Nasceu Juscelino Kubitschek de
Oliveira, futuro presidente do Brasil!”. Outra versão narra que João César de Oliveira teria
enviado um bilhete a um comprador de pedras com quem iria se encontrar, dizendo que
personagem foi aquele que planejou e colocou o projeto inicialmente no papel, o Rei Hiram. Aqui Bellavi-
nha (2006) relaciona JK com o rei Salomão, o Oscar Niemeyer com o Hiram Abiff e Lúcio Costa, com o Rei
Hiram. Ele coloca algumas passagens bíblicas sobre orientações que Deus teria fornecido quanto às cons-
truções dos templos destinados a seu culto, sendo o primeiro deles, o tabernáculo, missão esta, destinada a
Moisés. O Templo de Salomão veio substituir o tabernáculo trezentos anos depois, e para ele, as ordens de
Deus determinavam a construção de duas colunas de bronze para ficarem em frente ao templo “destacan-
do-se de todas as demais obras existentes pela grandiosidade e adornos luxuosos” (p. 44). Aqui uma clara
referência aos dois prédios do Congresso Nacional. Depois da destruição do Templo de Salomão, o Templo
de Zorobabel foi construído, sendo o segundo templo. O Templo de Herodes foi o terceiro, mais luxuoso
que o de Salomão, construído pelo rei Herodes I para agradar os judeus, mas também foi destruído em 70
a.C. pelos próprios romanos. O terceiro templo, era a própria cidade de Jerusalém, o Templo de Jesus Cristo,
que foi incendiado pelos romanos.
5 Couto (2011) narra o crescimento de JK como um período conturbado, pelo fato de a família ter
perdido o pai. JK crescia engajado nos estudos sob a educação rígida e preocupada de sua mãe, Júlia Ku-
bitschek, que teria feito muitos sacrifícios para cuidar de seus filhos devido aos problemas financeiros. Aos
dez anos de idade encantou-se com todo o caminho percorrido pelo prefeito Cosme do Couto, assistindo
às solenidades, e disse a sua mãe que um dia seria prefeito. Com quinze anos completou o seminário e
surgiu um novo sonho, ser médico. Conseguiu fazer aulas de francês e inglês. Aos 19 anos, depois de tanto
procurar emprego, se empenhou nos estudos e passou em um concurso para telegrafista em Belo Hori-
zonte. Dois anos depois ingressou na Faculdade de Medicina. Mas a sua dura rotina de trabalho e estudos
rendeu-lhe problemas de saúde, precisando se licenciar do trabalho, obtendo ajuda de seu tio paterno e
padrinho, Zino, para permanecer na faculdade. Quando se formou, começou a atuar na Medicina e docên-
cia no ensino superior. Conseguiu uma bolsa na Escola de Medicina de Paris, aperfeiçoando-se em sua pro-
fissão e conhecendo o exterior. Quando retorna, casa-se com Sarah Luísa Gomes Lemos. Em 1932 adentra
em sua carreira política, quando foi nomeado capitão-médico da Força Pública de Minas Gerais, trabalho
no qual se destacou e se aproximou de personalidades políticas. Foi nomeado Secretário da Interventoria
de Minas Gerais. Em 1934 foi eleito deputado federal pelo Partido Progressista de Minas Gerais. Em 1940 foi
nomeado prefeito de Belo Horizonte pelo interventor Benedito Valadares. Em 1951 chegou ao governo de
Minas Gerais, conquistando a confiança de Vargas e de vários brasileiros. Em 1954 se candidata à presidên-
cia da República pelo PSD e PTB. Em 1955 vence a eleição com 36% do total de votos.
25
não poderia ir porque a sua esposa teria dado à luz ao futuro presidente da República
(COUTO, 2011, p. 35). Esse fato foi abordado até pela minissérie JK da TV Globo (2006)6.
JK e Akhenaton
Outra representação mística de JK, uma das mais popularizadas atualmente, é aque-
la que faz uma relação entre o ex-presidente e o faraó Akhenaton, assim como podemos
encontrar na poesia de Nicolas Behr:
Com um tom cômico, Nicolas Behr relaciona JK a um faraó, e que sua tumba seria
26
um museu com máquinas de escrever discursos, fuscas em miniatura, dentaduras e pares
de sapatos. Essa representação se deve à popularização das pesquisas dos egiptólogos
Iara Kern e Ernani Pimentel que desenvolveram uma teoria cujo teor é mais encarado
como místico do que científico, auferindo importância dentro dos meios ufológicos e
esotéricos.
Fonte: eubiose.org.br
Outro eubiota, Miguel Henrique Borges (2002) publicou a obra intitulada JK JK! A
conexão esotérica, que traz informações sobre as conexões que JK possuía com a Eubiose.
O autor descreve que JK visitou o templo da Eubiose de São Lourenço (MG) e que possuía
íntimas relações com esta instituição. A obra traz fotografias dessas visitas de JK que ocor-
27
reram durante a década de 70 (Figura 2):
Figura 2 - JK no Templo da Eubiose de São Lourenço (1972)
[...] apresenta a trama que envolveu o Presidente Juscelino como própria de um gênio
transcendente, o que se justifica pelas grandes realizações de seu governo, sobretudo
a inauguração de Brasília, construída num período de quatro anos. Como pôde fazê-la,
sendo o País tido como pobre, sem verbas especiais e no regime democrático? Daí a
inclinação de Juscelino Kubitschek para a espiritualidade e sua ligação com ordens
esotéricas, em nível discreto [...] Interpretações de muitos atos do Governo Juscelino
são colocadas de maneira diferente pelo Autor [...] descartando o estigma de mero
capricho ou interesse menor, costumeiramente lançado sobre grandes decisões dos
governantes (BORGES, 2002, p.05).
Percebi a importância desta obra como uma fonte que traz informações não ofe-
recidas pelos aparatos estatais de Brasília a respeito do nosso ex-presidente. É uma obra
rara, escrita por um eubiota que obteve todo o apoio da Sociedade Brasileira de Eubiose
para a sua realização, pois para tal tarefa, concedeu-lhe acesso aos seus arquivos, como
fotos e depoimentos dos fundadores da SBE.
28
[...] E lá no Templo ele contou que tempos atrás estava em Paris e uma astróloga fran-
cesa lhe disse que a letra K dominava o mundo. (Papai inclusive escreveu sobre isso: os
três KKK, Kennedy, Kubitschek e Kruschev. JK era o ponto de equilíbrio entre Kennedy
e Kruschev). JK se referia ao assunto momentos antes, dizendo que, uns anos depois, o
presidente dos EUA estava morto, o premier soviético desterrado7 e ele mesmo criva-
do de problemas. (SOUZA apud BORGES, 2002, p. 20).
Essa questão dos três “K”s é popularmente conhecida entre os eubiotas, e alguns
deles me disseram que existem alinhamentos políticos que não existem por acaso. Nesse
caso, JK estaria alinhado espiritualmente com ambos líderes políticos dos Estados Unidos
e da União Soviética no período, que estariam nestas posições para realizarem ações im-
portantes afinadas entre os três países. Lembrando que historicamente estes dois líderes
estavam em posição antagônica entre si, frente a uma iminente guerra, e JK seria um
ponto de equilíbrio necessário. Mas o que havia em comum entre eles é que “tinham em
suas mãos, quase que o destino da humanidade” (ibidem, p. 23).
7 JK se referia à queda de Nikita Khrushchev em 1964 e a sua consequente expulsão política da URSS.
Então podemos perceber que os anos de 1963 a 1964 foram complicados para os três líderes políticos, já
que Kennedy foi assassinado em 1963 e JK teve seus direitos políticos cassados através do Golpe de 64
e se exilou em Paris, Lisboa e Nova York, retornando em 1967, sendo aqui vigiado e proibido de atuar na
política. “Angustiado pela mordaça que o obrigava a se calar, Juscelino Kubitschek, agora apenas um velho
fazendeiro, morre a 22 de agosto de 1976 em um acidente automobilístico na Via Dutra, próximo à cidade
de Rezende, no Rio de Janeiro. O acidente nunca foi bem aceito pela opinião pública que até hoje levanta
a suspeita de uma possível sabotagem, já que semanas antes do acidente, havia se espalhado pela mídia
um boato sobre a morte de JK em condições semelhantes ao que aconteceu a seguir” (CÂMARA DOS DE-
PUTADOS, 2006).
29
cheram os copos, o céu enfarruscou e uma violenta tempestade de granizo desabou
sobre o acampamento. “Milagre!”“Milagre!” — gritavam os construtores, recolhendo as
pedras de gelo, maiores do que uma bola de gude, caídas das nuvens. E o uísque, ge-
lado com granizo, correu de mão em mão, festejando, com alvoroço, aquele primeiro
dia de trabalho (JK, 2000, p. 58 – 59).
JK não deixou claro a sua impressão sobre o ocorrido, dizendo apenas que os ho-
mens gritavam que aquilo era um milagre. A partir de elementos como este, muitos espi-
ritualistas e esotéricos buscam imputar misticismos em diversos momentos da sua bio-
grafia.
O fascínio pelo Oriente, mais especificamente pelo Antigo Egito, ficou mais eviden-
te na região na década de oitenta quando a egiptóloga Iara Kern publicou a obra intitu-
lada De Akhenaton a JK: das Pirâmides a Brasília (1984)8. A partir de sua leitura do sonho
considerado profético do sacerdote italiano Dom Bosco, Iara Kern desenvolveu uma pes-
quisa relacionando a cidade de Brasília com a cidade de Akhetaton no Egito, na qual, ela
também defende que Juscelino Kubistchek seria uma reencarnação do faraó Akhenaton.
Iara Kern afirmava que sua pesquisa tinha um caráter místico, e passou a receber convites
de vários grupos esotéricos para ministrar palestras.
Desde os 12 anos de idade Iara Kern era apaixonada pelo Egito Antigo, e pertencia a
uma família protestante, o que a levou a entrar em choque entre os seus preceitos e cren-
ças. Iara fez a sua graduação em História na Universidade de Santa Maria e o Mestrado em
Arqueologia no Queen’s (EUA). No período do seu Mestrado, Iara assistiu a um discurso de
um dos diretores da Nasa que acreditava que o Planalto Central brasileiro era o local mais
seguro do mundo para a transição de Eras, pois a região foi mar há mais de 450 milhões
de anos e nela a civilização teria se principiado (LUZ, 1986, p. 36).
Dioclécio Luz (1986, p. 35) conta que Iara Kern realizou o seu Doutorado em Egip-
tologia na Universidade do Cairo, tendo começado em 1973, ano em que a pesquisadora
8 “Referência obrigatória em qualquer citação ao aspecto místico da cidade, a primeira edição (de
2.000 exemplares) esgotou-se em 40 dias e a segunda (de 5.000 exemplares), ampliada substancialmente,
foi lançada em meados de 1985. O livro já foi traduzido em seis idiomas [...]” (LUZ, 1986, p. 36).
30
esteve com os Cóptas9 participando de seus rituais. Em um deles, Iara foi informada pelo
sacerdote que uma vida passada, teria feito parte da Sexta Dinastia egípcia, tema do qual
ela trabalhava em sua tese e que não era conhecimento da comunidade. Iara conheceu a
sua múmia e de sua família, que estavam no Museu de Sakara, no Cairo, eram uma família
real. Descobriu que teve 11 reencarnações no Egito.
Kern defende que Brasília teria sido construída inspirada na cidade antiga egípcia
Akhetaton e todas as suas edificações da arquitetura monumental seriam inspiradas pe-
las suas edificações. “Assim como no Egito Antigo emergiam monumentos em homena-
gem aos seus fundadores, em Brasília temos uma Ermida em homenagem a D. Bosco”
(KERN, 1984, p. 21).
Kern também analisa vários edifícios de Brasília, como o Congresso Nacional, a Ca-
tedral Metropolitana, o Teatro Nacional, a obra “Meteoro” de Bruno Giorgi no Palácio do
Itamaraty, o Cemitério de Brasília, o edifício da Igreja Católica de Santa Cruz, o edifício do
Conselho Nacional de Pesquisas (CNPQ), o Memorial JK, dentre outros.
Hoje, tanto tempo decorrido, pergunto-me, às vezes, se essa admiração por Akhena-
ton, surgida na mocidade, não constituiu a chama, distante e de certo modo românti-
ca, que acendeu e alimentou meu ideal, realizado na maturidade, de construir, no Pla-
nalto Central, Brasília – a nova Capital do Brasil (KUBITSCHEK apud KERN, 1984, p. 60).
31
Kern cita uma série de discursos do presidente em outras de suas obras, para insistir
que ele teria uma espécie de relação muito forte com o antigo faraó. Ou seria uma espé-
cie de reencarnação? Não que ela deixe isso claro em sua tese, mas pela obra apresentar
um cunho esotérico não é de se estranhar as várias interpretações que isso engendrou
nos pesquisadores que procuram compreendê-la. Para concluir a sua teoria, Kern defen-
de que a forma do Plano Piloto se assemelha ao formato da ave Íbis.
Em sua autobiografia Meu caminho para Brasília (1974) JK relata a sua viagem ao
32
Egito, demonstrando um deslumbramento perante a sua antiga cultura:
A visão do Egito constituiu, para mim, um espetáculo inesquecível. Ali estavam os tú-
mulos dos faraós, as lendárias pirâmides, os santuários Karnak e Luxor, o misterioso
deserto e o velho Nilo, correndo grave e solene através de um universo de areia. Tudo
me parecia fantasmagórico, olhando aquela paisagem áspera, amarela de pó, tive a
impressão de que desfilavam diante dos meus olhos – numa compreensível reversão
histórica – as figuras de César, Marco Antônio, Cleópatra, seguidos, a distância, pelos
chefes das diferentes dinastias, com sua indumentária característica e seus milhares de
servidores. Recordei a beleza, aureolada pelo infortúnio, da Rainha Nefertiti e o visio-
narismo do seu marido Amenófis IV ou Akhenaton – o “Faraó herege”. Apesar da minha
formação religiosa, não escapei do fascínio daquela estranha personalidade, misto de
sonho e audácia, cuja obra de reformador constituiu, durante algum tempo, uma das
preocupações do meu espírito (KUBITSCHEK, 1974, p. 110 – 111).
JK diz que as obras de Akhenaton foram durante algum tempo, preocupação de seu
espírito. Podemos analisar mais adiante no seu depoimento, que ele descreve todo o tra-
balho do faraó e ressalta sobre a mudança da capital do Egito, demonstrando claramente
a sua dedicação ao estudo deste faraó, o que pode ter lhe influenciado em seus feitos no
Brasil.
O Faraó tinha, então, apenas dezenove anos de idade. E, apesar da sua juventude, com-
preendeu que sua revolução religiosa só teria êxito se procedesse, igualmente, a uma
mudança de sede da monarquia, de forma a subtraí-la à tutela milenar dos sacerdotes
dos antigos ídolos, especialmente dos de Amon. Surgiu, assim, a ideia de mudança da
capital do Egito. Ao invés de Tebas – a monarquia iria funcionar em Ekhenaton, a “Cida-
de do Horizonte de Aton”. O plano de transferência, apesar de tão recuado no tempo
– quase quatro mil anos atrás – foi levado a efeito com uma técnica e um planejamento
dignos do século XX. Arquitetos foram contratados. Artífices vieram de todas as partes
do Império. Engenheiros, astrônomos, técnicos em hidráulica, britadores, escultores,
pedreiros especializados foram mobilizados. O local escolhido foi Tell El-Amarna, um
vale situado entre o Nilo e as encostas rochosas do deserto. [...] (KUBITSCHEK, 1974, p. 111)
Analisando esse relato sem se considerar o local o qual JK se refere, essa história
contada pelo ex-presidente muito nos remete à mudança da capital para Brasília. Outra
parte que vale a pena citar é quando JK conta a respeito de seu encontro com a princesa
Marina da Grécia, duquesa de Kent. Quando a princesa conheceu Brasília, por volta de
1958, ainda apenas um canteiro de obras, ela teria dito para o ex-presidente: “O senhor
constrói, Presidente, como os faraós do Antigo Egito o faziam”. (p. 113). E JK ter-lhe-ia
33
respondido: “Quando à monumentalidade, é possível que sim, Alteza, mas quanto aos
objetivos, seguimos caminhos diametralmente opostos. Os faraós construíram para os
mortos, e eu construo para as gerações do futuro” (KUBITSCHEK, 1974, p. 113).
Considerações Finais
Isso não significa que estou julgando que isso se tratava de pura estratégia política,
pois JK era um homem religioso e não é possível saber a respeito de suas crenças íntimas.
Entretanto, após a sua morte, essas representações místicas fortaleceram-se e dissemina-
ram-se de forma pluralizante e é essa questão que me interessa enquanto pesquisadora,
entender de que forma essas representações surgiram e encontraram força para perma-
necer até a atualidade.
34
REFERÊNCIAS
CÂMARA DOS DEPUTADOS. JK: cassação, o exílio e a morte. Brasília: Rádio Câmara, 2006.
Disponível em: https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/CAMA-
RA-E-HISTORIA/337708-JK:-A-CASSA%C3%87%C3%83O,-O-EX%C3%8DLIO-E-A-MOR-
TE-(09'-51%22).html. Acesso em 29 de abril de 2019.
FONSECA, Valesca Soares da; PUHL, Paula Regina; SILVA, Cristina Ennes da. Aconteci-
mentos históricos x conflitos amorosos: o caso da minissérie JK. ALCEU. v. 11, n.21.
Departamento de Comunicação Social da PUC RIO. jul/dez 2010, p. 90 - 103. Disponível
em: http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu21_7.pdf. Acesso em 21 de março de
2019.
LUZ, Dioclécio. Roteiro Mágico de Brasília. Ilustração de Antônio José. Brasília: CODE-
PLAN, 1986.
Fontes
BELLAVINHA, João Baptista. JK – Maçonaria – Bíblia – Brasília, tudo a ver. 1ª ed. Con-
selheiro Lafaiete-MG: Grande BH, 2006.
BORGES, Miguel Henrique. JK JK! A conexão esotérica. Rio de Janeiro: Aquarius, 2002.
COUTO, Ronaldo Costa. Juscelino Kubitschek. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições
Câmara; Senado Federal, Edições Técnicas, 2011. [Série obras em parceria, n. 2].
KERN, Iara. De Aknaton a JK: das Pirâmides a Brasília. 2ª ed. Brasília: Ed. Gráfica Ipiranga
Ltda., 1984.
KUBITSCHEK, Juscelino. Meu caminho para Brasília. Vol 1. Rio de Janeiro: Bloch, 1974.
KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2000. [Coleção Brasil 500 anos].
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ATÎAÎA: PERCEPÇÕES DO MEIO AMBIENTE ATRAVÉS DE PRÁTICAS
ARTÍSTICAS AUTOBIOGEOGRÁFICAS
Introdução
As ideias que colocam o ser humano e a natureza como elementos separados e não
MOREIRA, Ingrid Costa. Atîaîa: percepções do meio ambiente através de práticas artísticas autobiogeográfi-
cas, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na
Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 36-49.
interligados (KRENAK, 2019), ainda persistem e fazem com que a humanidade continue a
legitimar grandes corporações que super exploram e destroem a natureza e os recursos
ao seu redor. As mesmas que seguem construções de conhecimentos moldadas pela in-
fluência da colonialidade, que ainda afeta políticas e conhecimentos referentes às narra-
tivas sobre a natureza (QUIJANO, 2005).
37
tos. Por fim, escrevo sobre os resultados futuros que espero obter com essa prática, posto
que a pesquisa de campo está temporiamente suspensa devido à Covid-19.
Minha história de admiração e interesse pelo que chamo de meio ambiente se inicia
na minha infância, num lugar por vezes esquecido, mas que é guardado com afeto em mi-
nhas reminiscências. Esse lugar, que não sei ao certo se possui um nome, tem localização
em Bela Vista de Goiás, município do interior do estado de Goiás, de propriedade do meu
tio João e outros tios, e que mais tarde se tornou também do meu Avô Osmar (Figura 1).
Lugar de paz e tranquilidade ao qual sempre volto ao recontar a trajetória desta pesquisa.
Figura 1. No centro estão eu e minha mãe ao lado do meu avô Osmar e, do lado direito da foto, está meu
tio João, primeiro fundador do local. Fonte: Acervo pessoal.
O lugar que chamo de fazenda começa a ser presente em minha vida desde o nas-
cimento. Era o lugar escolhido por meus pais para encontrar a família e tirar um descanso
dos dias na cidade. Nesse ambiente retornam as memórias de infância, dos dias de brin-
cadeiras e tranquilidade em meio à imensidão verde. A vontade de voltar a esse lugar
após um longo período sem visita-lo aumenta.
38
Ao adentrar na fazenda, após um período extenso de terra de chão, deparamo-nos
com uma vasta área de gramíneas, diversas árvores e terra. A primeira parada é na casa do
meu tio João, casa simples rodeada de árvores, com celeiro e pomar com jabuticaba, li-
mão, mexerica, banana e muitas outras frutas que não serão lembradas nesse relato. Des-
cendo a estrada da casa avistamos a represa, onde retornam as lembranças dos dias que
passei descansando sob sua bancada ou brincando com meu irmão e meus primos de
pegar girino, achando inocentemente que girino era peixe. Após a represa fazemos uma
caminhada e chegamos à segunda parada, a casa do meu avô Osmar, outra casa simples
rodeada de árvores. Casa rústica, com móveis e janelas de madeira, cheio panelas pen-
duradas acima da pia ao lado da garrafa de café e um vaso de erva-cidreira num canto.
Durante o dia brincava, corria e via os bichos enquanto meus familiares faziam pa-
monha. Já à noite a escuridão e o silêncio irrompiam e nesses momentos os tios acen-
diam a fogueira para contar histórias de terror para todos. Há apenas uma memória triste,
do dia em que meus primos ficaram na fazenda e meus pais não me deixaram ir, meu
irmão voltou contando várias aventuras, algumas inventadas e outras reais como o furún-
culo que ganhou de presente no joelho quando foi pegar mel no mato.
A presença do meu avô, hoje com 75 anos, fez com que eu voltasse repetidamente
a esse lugar para visitá-lo. Anos depois, ele sofreu um acidente na estrada, fraturou uma
perna e ficou impossibilitado de voltar ao seu lar. Nos dias que se seguiram, na casa da
minha tia, ficava angustiado e falava somente em voltar para sua fazendinha. No entanto,
com a piora da sua perna essa volta não aconteceu. Os exames que tinham que ser feitos
mensalmente fizeram com que meu avô voltasse a morar na cidade, fazendo com que eu
não mais voltasse a esse lugar.
39
ciência de que os interesses por temas relacionados ao meio ambiente ao longo da mi-
nha trajetória pessoal e profissional talvez estejam ligados a essa experiência da infância.
Figura 2. Ingrid Costa. Ilustração publicada na capa do jornal da UFG, 2017. Fonte: Acervo pessoal.
Após esse período, sob a inscrição de número 219, ingressei no mestrado em Arte
e Cultura Visual, onde tento interligar os temas Arte e Meio Ambiente numa investigação
desenvolvida na Linha de Pesquisa (B) Poéticas Artísticas e Processos de Criação. Essa
pesquisa tem o objetivo de investigar percepções sobre o meio ambiente por meio de
uma prática artística colaborativa criada para acessar histórias de vida de cinco mulheres
moradoras do bairro Itatiaia, em Goiânia.
40
O bairro Itatiaia entrou em minha vida em 2015, no início da graduação, mas foi só
no final de 2016, quando me mudei de fato para o bairro, é que ele se tornou um lugar
presente em minha vida. Após quatro anos como residente, vejo o bairro como um lugar
especial, carregado de momentos e lembranças. Tais lembranças perpassam lugares e
esquinas, ruas e praças que estarão por muito tempo em minha memória. São ruas cheias
de árvores e verde, casas familiares enormes que parecem ter anos de existência e que
contemplo com admiração, tentando imaginar e inventar suas histórias.
No bairro Itatiaia existe uma área de preservação que fica na sua parte central. É
uma área de praça que corta todo o bairro, composta por passarelas que são rodeadas de
árvores que foram plantadas pela prefeitura e pelos moradores, uma iniciativa que acre-
dito fazer diferença para os seus residentes. Ao investigar mais sobre a origem do bair-
ro e de seu nome, percebi que o significado de ‘Itatiaia’ está ligado ao Pico das Agulhas
Negras, situado no Parque Nacional de Itatiaia2, no Rio de Janeiro, uma das unidades de
conservação ambiental do Brasil. Essas unidades são administradas pelo Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que presta atividades de preserva-
ção, pesquisas científicas, educação ambiental e turismo ecológico. Nesta pesquisa, um
de meus objetivos é provocar uma reflexão sobre os significados do lugar e do nome
Itatiaia, pois esse é um nome derivado da língua Tupi-Guarani e significa “Pedra Pontuda”
(itá significa “pedra” e atîaîa quer dizer “pontudo”), originalmente se referindo ao Pico das
Agulhas Negras, no Rio de Janeiro. O nome do bairro carrega esse traço da cultura indí-
gena, porém deslocado, parece ter sido usado sem levar seu sentido em consideração.
Itatiaia é um nome que revela o afeto e a profunda relação dos povos indígenas com o
seu lugar de origem. Um afeto que os leva a atribuir nomes próprios aos elementos da na-
tureza como forma de agradecimento, nomes que têm seus sentidos e práticas apagados
nos processos de nomeação que se dão assim, de forma deslocada.
41
exploratórios e distantes de um sistema hegemônico e capitalista. Movimentos ambien-
tais e ecofeministas que fogem desse sistema e propõem alternativas sistêmicas para a
valorização da preservação da natureza e dos saberes ecológicos e tradicionais de povos
originários. Os conhecimentos e práticas dessas comunidades são passados a cada ge-
ração através do relato oral. Então, nessa pesquisa utilizo também a história oral, que foi
uma estratégia adotada por esses movimentos nos anos 1960 e 1970 para terem o con-
trole sobre suas próprias narrativas de forma integral (CUSICANQUI, 1987). Nos encontros
com as participantes, utilizarei mapas mentais como meio para acessar suas narrativas de
vida, e a história oral bem como os registros fotográficos das participantes serão funda-
mentais como ferramentas de acesso às suas percepções sobre o meio ambiente.
La historia oral en este contexto es por eso mucho más que una metodología “partici-
pativa” o de “acción” (donde el investigador es quién decide la orientación de la acción
y las modalidades de la participación): es un ejercicio colectivo de desalienación, tanto
para el investigador como para su interlocutor. (CUSICANQUI, 1987)
O método de história oral surge com o intuito de descobrir novas formas de inves-
tigar, por meio do relato oral das participantes que servirá também como matéria para
uma produção artística que consiste na realização de encontros com as mulheres e tam-
bém na produção de cartazes e de um mapa de narrativas que será distribuído poste-
riormente pelo bairro. Esse mapa será o caminho utilizado para circular nossas reflexões
sobre a história do bairro Itatiaia entre os moradores e também estabelecer relações de
vínculo a partir das narrativas das mulheres que foram compartilhadas durante a prática
artística colaborativa.
42
Caminhadas possíveis
Figura 3. Mulheres Andinas. Fotografia. Fonte: Organização sem fins lucrativos Pachama Raymi.
Figura 4. Movimento Chipko: crianças e mulheres abraçando uma árvore, 1987. Fotografia. Fonte: The
Right Livelihood Award.
43
Figura 5. Mulheres do Movimento de Mulheres Camponesas. Fotografia. Fonte: Movimento de Mulheres
Camponesas | MMC Brasil, http://www.mmcbrasil.com.br/site/
Na obra Sementes (Figura 6), faço referência ao movimento Chipko e à ativista am-
biental, filósofa e feminista Vandana Chiva. O movimento Chipko (Figura 4) surgiu nos
anos 1970 na Índia e buscou criar uma resistência feminina frente à destruição das flo-
restas que afetava diretamente as atividades de quem delas dependiam. Essa resistência
foi fundamental para o reconhecimento da autonomia das mulheres, além de sinalizar a
importância de haver mulheres envolvidas com a causa ecológica (SHIVA, 1995). O movi-
mento dessas mulheres foi resistente à destruição das florestas em suas comunidades e
lutou de forma pacífica abraçando árvores com seus corpos para evitar sua derrubada, o
que fazia com que os madeireiros desistissem dessa tarefa. O desaparecimento das árvo-
res nativas da região traria como consequência a deterioração do seu território, que inclui
3 O termo “econarrativa visual” é um dos conceitos que estou a desenvolver nesta pesquisa de mestrado,
como uma ideia de gênero autobiográfico que nasce das narrativas de vida contadas a partir da relação com o
lugar (autobiogeografias), porém com foco nas questões da percepção da natureza e do meio ambiente.
4 www.nupaa.org
44
a substituição dessas árvores por monoculturas.
Figura 6. Ingrid Costa. Sementes, econarrativa visual, 2020. Imagem digital. Dimensões variadas. Fonte:
Acervo pessoal.
45
A existência de pensamentos e conhecimentos impostos, que moldam as visões
sobre a natureza e colocam a Terra como uma coisa e a humanidade como outra, faz com
que as grandes corporações ainda usem essa justificativa para continuar explorando os
recursos da natureza, muito além do necessário para sobrevivemos (KRENAK, 2019). Uma
ideia colonial de natureza que foi iniciada com os cristão que descreviam a natureza e
o ser humano como coisas opostas, com o humano fazendo parte da “cultura” e não da
“natureza”, esta que estava ali apenas para ser dominada e explorada pela humanidade
(MIGNOLO, 2017).
Essa visão de separação entre natureza e humanidade é oposta ao que outros povos
acreditavam, sobretudo na América Latina onde os aimarás5 e os quíchuas6 acreditavam
que tudo o que faziam era parte do meio ambiente, tendo sua existência e suas práticas
como parte da natureza (MIGNOLO, 2017). Na cultura indígena brasileira o sentimento
é semelhante, os povos daqui possuem afetos profundos pelos elementos naturais que
os rodeiam, dando nomes a seres inanimados, a pedras, montanhas e rios como forma
de agradecer pela existência. Esses elementos são seus guias, são de onde eles tiram seu
alimento e suas orientações sobre o clima, colheitas e vida (KRENAK, 2020).
Na obra Olhares da Pacha (Figura 7), trago os olhares femininos sobre a Pacha, por-
que existem vários movimentos que nomeiam a Terra com nomes relacionados ao fe-
minino: Mãe Terra, Pacha Mama, Gaia, uma provedora maternal, um símbolo de comu-
nidades tradicionais femininas, que têm uma importância fundamental para a proteção
ambiental e conservação do meio ambiente, como demonstra o líder e ativista indígena
Krenak (UNBTV, 2019, 20 min 26 s):
Eu acho que depois de um final do século XX totalmente decadente, a gente tem uma
possibilidade de que essa energia feminina que a visão que as mulheres têm sobre a
história de seus povos, pensando nessa constelação de povos indígenas que no caso
de se estender além da fronteiras do Brasil chegam a cerca de 40 milhões de pessoas
5 Povo estabelecido desde a Era pré-colombiana no sul do Peru, na Bolívia, na Argentina e no Chile.
Também conhecidos como Quollas ou Kollas.
6 Designação aplicada aos povos indígenas da América do Sul, que falam o quíchua, especialmente o
quíchua meridional. Distribuem-se pela região andina, especialmente no Peru, na Bolívia, Argentina e Chile.
46
que ficam dentro dessa chave ‘povos indígenas da América Latina’. Pode parecer um
número qualquer, uma cifra qualquer, mas quem conhece a história dos povos indí-
genas na América Latina pode perceber que isso significa que nos estamos vivos e
viemos para ficar, e que agora a voz que deve ser preponderante é a voz que deve ser
preponderante é a voz das mulheres. (KRENAK, UnbTV, 2019, 20 min 26 s).(KRENAK,
Figura 7. Ingrid Costa. Olhares da Pacha, econarrativa visual, 2020. Imagem digital. Dimensões variadas.
Fonte: Acervo pessoal.
Considerações finais
Neste texto, apresentei parte dos elementos que são articulados em minha inves-
tigação de mestrado Atîaîa: Percepções do Meio Ambiente através de Práticas Artísticas
Autobiogeográficas. Apresentei minha narrativa autobiogeográfica que está a acionar as
práticas artísticas, as construções de imagens (econarrativas visuais) e os métodos utiliza-
dos na condução desta investigação. Destaquei, também, os três movimentos ecofemi-
nistas que informam a minha prática artística e compartilhei duas econarrativas visuais
que criei como resposta poética à pesquisa que estou fazendo sobre esses movimen-
tos. Como sinalizado anteriormente, esta é uma investigação em andamento que já foi
aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Goiás, porém está com a pes-
quisa de campo temporariamente suspensa devido à pandemia de Covid-19. Assim que
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possível, realizarei os encontros com as cinco mulheres moradoras do bairro Itatiaia para
desenvolver uma série de ações artísticas colaborativas em que compartilharemos narra-
tivas de vida e produziremos econarrativas visuais. Depois, ingressarei na etapa de produ-
ção de cartazes e, ao final, produzirei uma publicação de artista. Espero com essa pesqui-
sa instigar o pensamento crítico por meio da arte, fortalecer o sentimento de cuidado e
preservação com o lugar e criar espaços para compartilhar histórias auto/biogeográficas
que demonstrem as afetividades e as histórias que vão sendo articuladas do “entre nós e
a natureza” ao “nós como natureza”.
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REFERÊNCIAS
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.
KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São PauloEditora Schwarcz S.A., 2020.
SHIVA, Vandana. Abrazar la vida. Mujer, ecología y desarrollo. Madri: Horas y Horas,
1995.
UNBTV. 16 de jul. 2019. 20 min 26 s. Canal UnbTV no youtube. Disponível em < https://
www.youtube.com/watch?v=qFZki_sr6ws&app=desktop >. Acesso em: 08 jun. 2020.
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NEM “AUTODIDATA”, NEM “ UM INSPIRADO” - A FORMAÇÃO
ARTÍSTICA DE VEIGA VALLE
O capitão Joaquim Pereira Valle, era advogado, foi membro da Irmandade do San-
tíssimo Sacramento4 e lá ocupou os cargos mais importantes da Irmandade, como: pro-
curador (1810 e 1811), tesoureiro (1816 e 1817) e provedor (1820). O capitão Joaquim
Pereira Valle também ocupou vários cargos públicos e políticos de destaque, como te-
soureiro da subscrição voluntária para a compra de embarcações de guerra (por ocasião
da Independência do Brasil), Juiz de paz e ordinário (JAYME, 1973; SALGUEIRO, 1983), foi
2 Seus pais eram o alferes José Pereira Vale (Guimarães, arcebispado de Braga, Portugal) e Maria Fran-
cisca Castelo Branco (JAYME, 1973).
3 Era filha de Custódio Pereira da Veiga e de Petronilha do Amor Divino (JAYME, 1973).
4 Podiam, portanto, fazer parte delas pessoas maiores de doze anos, brancas, de ambos os sexos,
casados e solteiros, desde que idôneas, suficientes e ornadas de bons costumes, para servirem de exemplo
aos confrades. O termo da Irmandade de Meia Ponte, além disso, determinava que o postulante tivesse o
necessário “acceio para vestir uma opa e professar a Religião Cathólica Apostólica Romana”, e que fizesse a
sua custa uma opa encarnada ou vermelha (MORAES, 2012, p.123).
SANTOS, Fernando Martins dos. Nem “autodidata”, nem “um inspirado” - a formação artística de Veiga Valle,
In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prá-
tica Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 50-61.
nomeado pelo presidente da província5, como 4º suplente de delegado da cidade de
Meia Ponte (em 28 janeiro de 1852). Mas o cargo que lhe deu maior destaque foi o de ve-
reador, inclusive quando se instalou a Câmara Municipal de Meia Ponte, ele foi escolhido
como presidente da recém inaugurada camarada.
Sendo Veiga Valle de influente família meiapontense, tinha fácil contato com o que
havia de mais “luxuoso” no Arraial de Meia Ponte e na província, o que acabou influen-
ciando na sua formação artística. Não existe nenhuma documentação que comprove se
ele teve algum professor, ou algo parecido, em algum momento de sua vida, que lhe en-
sinasse a esculpir, dourar e fazer o esgrafiado6. Sendo esse motivo, que alguns estudiosos
afirmam que ele seria um autodidata. Surgindo uma das maiores controvérsias sobre o
artista: se ele foi um autodidata ou não.
O pintor João José Réscala, em seu relatório para a primeira exposição que reuniu
as obras de Veiga Valle, em 1940, na Cidade de Goiás, afirma que o santeiro “Iniciou seus
estudos de escultura e pintura com padre Amâncio, superando em tempo o mestre” (RESCA-
LA, 1940, p.1). Mas nenhuma documentação comprova essa informação, nem mesmo
alguma que se refere ao padre Amâncio como escultor, pintor ou dourador.
Outro fato que corrobora com essa ideia é o fato de Veiga Valle nunca ter saído da
província de Goiás, de não ter nenhuma notícia de algum outro artista, que tivesse técnicas
parecidas com a sua, que fosse contemporâneo a ele. Outro fato que fortalece essa ideia foi
a notícia de seu obituário no jornal Correio Official em 31 de janeiro de 1874, afirma que o
artista dedicou por curiosidade a escultura desde muito moço. De acordo com o obituário
5 A época da nomeação o presidente da província de Goiás era Antônio Joaquim da Silva Gomes.
6 Os desenhos são feitos calcando-se com o esgrafito, espécie de estilete, a camada externa tinta
seca, de modo que a camada interna, o “pão de ouro” brunido, apareça evidenciando os ornamentos. (SAL-
GUEIRO, 1983, p. 71)
51
bom catholico, dotado d´um animo inofensivo, e exemplar pai de família.
Sem estudos, dedicou-se por mera curiosidade d´esde moço as artes de estatuária e
pintor, que exerceo com grande proveito, tornado seo nome muito conhecido na pro-
víncia inteira e legando-nos obras que abonarião a qualquer profissional.
Fica d´elle também um discupulo aproveitável na pessoa de seo filho o Sr. Henrique
Ernesto da Veiga.
Ocupou por vezes lugares de distinção, sendo eleito por muitos anos sucessivos, mem-
bro da assemblea provincial.
Deixou inconsolável a virtuosa consorte, a que esteve ligado por mais de trinta anos,
e que talvez, não resista ao duro golpe da separação pelo estado de abatimento em
que ficou por acompanha-lo desveladamente em tão longa enfermidade; e oito filhos.
Sentimos profundamente a perda; o que manifestamos a aquella Exma. Senhora, fi-
lhos e genro (CORREIO OFFICIAL, 31 de janeiro de 1874, p.02)
(...) A precisão das atitudes anatômicas de seus santos surpreende, quando se pensa na
falta de mestres. O frescor de suas tintas quase centenárias, desafia o entendimento,
quando se cogita da técnica de sua obtenção.
Se não ousarmos afirmar ter sido Veiga Valle um gênio pelo menos temos de admitir
que possuía uma fecunda inspiração genial, palpitante em suas obras.
Seria mais acertado chama-lo “um inspirado”, que um “autodidata”. (CURADO in RENO-
VAÇÃO, 1955, p. 16 e 28).
No texto do professor Luiz A. Carmo Curado, que não especifica e diferencia “ins-
piração genial” de “autodidata”, e do relato do professor e restaurador Amphilóphio de
Alencar7, que também era de Pirenópolis e se dizia um autodidata, Elder Camargo de
Passos cria sua afirmação de que Veiga Valle fosse um autodidata
(...) tornamos a afirmar que VEIGA VALLE foi um autodidata e que durante a sua for-
7 Amphilóphio de Alencar Filho (1940-1988), era professor titular da Faculdade de Educação da Uni-
versidade Federal de Goiás. Em seu relato para Elder Camargo de Passos, o professor afirma que desde a
infância começou a restaurar imagens de amigos e parentes e foi evoluindo conforme suas necessidades.
No entanto, quando se via diante de alguma dificuldade ou impasse, recorria aos livros de arte para tentar
solucionar o problema (PASSOS, 1997).
52
mação artística, observou, estudou, experimentou várias formas e meios de dar vazão
a sua ânsia artística, perscrutando as imagens existentes em Meiaponte e em várias
igrejas da redondeza (PASSOS, 1997, p.125)
Tanto o professor Luiz Curado como Elder Camargo de Passos reconhece a impor-
tância do ambiente que artístico e cultural que rodeava Veiga Valle para sua formação
como artística. No entanto os relatos dos viajantes que passaram pela região, nos apre-
senta um pouco tal ambiente: Saint-Hilaire, que esteve na região em 1819, relata que
no arraial tinha um ar de nobreza, que as ornamentações tinham inspiração europeia e
completa que na “região tinha móveis e pratarias muito bem trabalhadas, que tinham sido
feitas na província”; conta também que na casa do vigário da cidade, existia quadros com
desenhos de flores que “tinham sido feitos por um homem que jamais se afastara de Vila
Boa” (SAINT-HILARE, 1975), nesse ano Veiga Valle teria 14 anos de idade. O que se deve
destacar do relato do viajante é que na província tinha a existência de artistas que tinham
qualidades admiradas e reconhecidas pelos viajantes.
Outro viajante que passou pela região, foi Raimundo da Cunha Mattos, em 1824, e
em seus relatos mostra que “Os carpinteiros já foram excelentes como o mostram as bellas
obras de talhas, nas igrejas, sobretudo na Matriz e na Lapa de Goyaz, nas matrizes de Meia
Ponte, e na do Pilar” (MATTOS, 1874, p. 278). Foi principalmente este ambiente religioso,
que lhe possibilitou o contato com obras de arte que lhe serviram de inspiração, como os
elementos decorativos dos tetos e dos altares, a prataria, a variedade de peças sacras que
vieram de Portugal e de outras regiões do Brasil.
Era dentro dos templos religiosos do Arraial de Meia Ponte que Veiga Valle apreciava a
pintura, escultura, teatro e música, mesmo porque muitas dessas peças são muito parecidas
com as que são atribuídas a Veiga Valle. Sendo assim, para melhor entendimento, se mostra
necessário uma descrição dos principais templos católicos do arraial e fazer uma comparação
das obras existentes com as obras de Veiga Valle. Mas é importante salientar que em mo-
mento algum a intensão será afirmar que Veiga Valle era um simples copista, mas sim tentar
demonstrar a influência dessas obras em seu aprendizado e, quando for o caso, pontuar que
na cidade já se teve outros “artistas” e que alguns conviveram com Veiga Valle.
A mais antiga igreja da cidade é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, tendo sua
53
construção iniciada em 1728; é considerada a primeira grande igreja a ser construída na
província. Mas seu acabamento foi feito de forma mais gradual, as torres só foram con-
cluídas em 1763, a igreja contava com um altar-mor e mais quatro altares laterais com
esculturas de São Miguel, Nossa Senhora das Almas, São Francisco e Nossa Senhora do
Rosário, sendo todas elas do século XVIII. Em 1766, foi contratado o pintor Reginaldo Fra-
goso de Alburqueque para pintar o frontispício do altar-mor. Em 1770, foram esculpidas
duas estátuas de anjos e o cortinado de franjas no arco do altar (ETZEL, 1974). O arraial
contava com pintores que ofereciam seus serviços para as irmandades. Chama atenção
a imagem de Nossa Senhora do Rosário, sendo o Menino-Jesus e os querubins no globo,
por lembrarem muito as peças de Veiga Valle, como se pode ver abaixo:
Figura 1 - Autor desconhecido. Século XVIII. Nossa Senhora do Rosário. Escultura em madeira. Fonte: JAYME, 2002.
Figura 2 - Veiga Valle. Século XIX. Nossa Senhora com o Menino. Escultura em madeira dourada e policro-
mada, 47 cm. Fonte: UNES, 2011
54
A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos8 foi edificada entre 1743 e 1757, era
composta pelo altar-mor e dois laterais, onde tinham imagens do século XVIII, possivelmente
portuguesas. Na igreja, tinha altares que superassem, em arte e formosura, os das demais igrejas
meiapontenses, altares que atestassem, eloquentemente, a habilidade artesanal dos marceneiros
e entalhadores daqueles tempos de grandeza! (JAYME, 2002, p.46). No altar-mor ficava a ima-
gem de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, e nos nichos laterais, uma imagem São Rafael
e outra de São Bento. No altar direito, uma imagem de São Sebastião e no altar a esquerda,
uma imagem de São Benedito. Tais imagens portuguesas, principalmente a Nossa Senhora
do Rosário do Preto, lembra a composição do rosto das madonas de Veiga Valle.
Figura 3 - Autor desconhecido. Século XVIII. Detalhe de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Escultura
em madeira Fonte: JAYME, 2002.
Figura 4 - Veiga Valle. Século XIX. Detalhe de Nossa Senhora das Mercês. Escultura em madeira dourada e
policromada, 38,5 cm. Museu de Arte Sacra da Boa Morte, Cidade de Goiás - GO. Foto: Fernando Santos.
8 A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos não existe mais, por estar em ruínas foi demolida
em 1944. Todas as suas imagens, alfaias, paramentos, móveis e demais pertences e preciosidades da Ca-
pela, após ser a mesma arrasada, em 1944, por ordem religiosa superior, foram repartidos entre as igrejas
existentes na cidade (três). Entretanto, muitas coisas preciosas (imagens, castiçais, crucifixos, móveis etc.)
foram vendidos a antiquários, atraves de seus testas de ferro locais, ou então foram furtadas e até mesmo
destruídas (JAYME, 2002, p.47 e 48).
55
A menor das igrejas do Arraial de Meia Ponte, é a Igreja de Nossa Senhora do Carmo,
se acredita que sua edificação se deu por volta de 1750, a mando de dois ricos mineiros,
Luciano Nogueira Nunes9 e seu genro Antônio Rodrigues Frota10 (ETZEL, 1974). A igreja
era composta com um altar mor, que abriga uma imagem de Nossa Senhora do Monte
Carmo, do século XVIII, vinda de Portugal. Hoje a igreja é composta por mais dois altares
laterais, mas estes altares são da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e foram le-
vados para o local após sua demolição em 1944. Na igreja tem mais uma obra que serviu
de base para que Veiga Valle compusesse suas peças, uma imagem de Nossa Senhora do
Monte Carmo, que como se pode observar o globo com os querubins chama muita aten-
ção por se assemelharem aos querubins de sua Nossa Senhora do Parto, de Veiga Valle.
Figura 5 - Autor desconhecido. Século XVIII. Nossa Senhora do Monte Carmo. Escultura em madeira. Fonte: JAYME, 2002.
Figura 6 - Veiga Valle. Século XIX. Detalhe de Nossa Senhora do Parto. Escultura em madeira dourada e policroma-
da, 140 cm. Museu de Arte Sacra da Boa Morte, Cidade de Goiás - GO. Foto: Fernando Santos.
9 Dizem que suas filhas se gabavam de poderem dançar sobre um leito de pepitas de ouro, porém,
acabaram a vida na mendicância (ETZEL, 1974).
56
A Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, foi construída entre 1750 e 1754. Na cidade
se conta a lenda que, devido a construção da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, feriu a
vaidade de um outro rico mineiro da região, Antônio José de Campos, que logo também
mandou construir uma igreja. A igreja é composta por três altares, dois laterais e um cen-
tral. Ainda no espírito de rivalidade, Antônio José de Campos, mandou trazer da Bahia,
uma grande imagem do Senhor Crucificado, que foi conduzida por um comboio de 260
escravos e colocada no altar-mor. No nicho tem uma porta em duas folhas, onde está
pintada uma imagem de Cristo Crucificado e ao fundo paisagem de Jerusalém. Tal artifí-
cio era utilizado na Semana Santa, quando todas as imagens deveriam ser cobertas com
pano, pois a porta estando fechada, não seria necessário cobrir a imagem, e, ao mesmo
tempo, a imagem de Cristo sempre ficava presente (ETZEL, 1974). Segundo Jarbas Jayme,
o teto, o corpo, capela-mor e os altares foram pintados por Inácio Pereira Leal (JAYME,
1971). Nessa igreja, mais uma vez se observa peças que inspiraram Veiga Valle, o Cristo
Crucificado, da Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, tem o rosto e a composição da roupa
semelhante ao Cristo Morto, de Veiga Valle.
Figura 7 - Autor desconhecido. Século XVIII - Cristo Crucificado. Escultura em madeira. Igreja Nosso Se-
nhor do Bonfim, Pirenópolis - Go. Fonte: JAYME,2002.
57
Figura 8 - Veiga Valle. Século XIX - Cristo Morto. Escultura em madeira, 14,3 cm. Fonte: SALGUEIRO,1983.
Como se pode notar, Veiga Valle viveu em um ambiente que lhe possibilitou apren-
dizado para a iniciar a produzir suas peças. Mesmo não tendo nenhum documento que
comprove a formação de Veiga Valle, pesquisadores como Bruno Correa Lima (1972), Re-
gina Lacerda (1977) e Heliana Angotti Salgueiro (1983), descartam seu autodidatismo e
reafirmam a influência do ambiente que vivia.
Bruno Correa Lima, em seu estudo intitulado Veiga Valle – o genial santeiro de Goiás
(1972), coloca que as peças, que se acredita serem da fase inicial de Veiga Valle, não de-
monstram indecisões típicas de uma pessoa que está iniciando um aprendizado sozinho.
Ele faz a seguinte ponderação sobre o autodidatismo de Veiga Valle
Ora, sendo o escultor J.J. Veiga Valle um autodidata, haveria forçosamente de incorrer
em indecisões até assenhora-se da técnica da estruturação da figura. Assim, entre as
primeiras obras colocou-se as que não apresentava esse apoio bem definido, combi-
nado com o cânone baixo e as dobras da indumentária muito singela, pois em conti-
nuação ver-se-á que o mestre demonstrou durante a evolução da sua arte uma grande
capacidade de invenção no drapeamento. (LIMA, 1972, p. 152)
58
Outra pesquisadora que refuta o autodidatismo de Veiga Valle é a folclorista Regi-
na Lacerda, em seu texto Veiga Valle – o santeiro goiano (1977). Regina rebate a ideia de
Rescala, que coloca o padre Manoel Amâncio da Luz como professor de Veiga Valle e a
também a ideia do professor Luiz Curado, que Veiga Valle seria “mais um inspirado que
um autodidata”. Segundo a folclorista a vida civil e religiosa de Veiga Valle era uma só, e
que isso possibilitou ele “dialogar imaginariamente” com os autores das obras das igrejas.
Regina imagina como foi esse contato de Veiga Valle com o ambiente que o rodeava
(...) O ambiente em que se criou o artista de certa forma já estava preparado: seus olhos
puderam comtemplar a imagem de Nossa Senhora do Rosário (dada como pertencen-
te à igreja-matriz de Pirenóplis, desde 1728); aí se vêem anjos tocando trombetas no
retábulo do altar-mor, pinturas no teto, do camarim e do trono, que o teriam impres-
sionado – feitas em 1766 por pelo pintor Reginaldo Fragoso de Alburqueque. Teria se
impressionado o jovem escultor uma imagem de Nosso Senhor do Bonfim, bela com-
posição barroca trazida da Bahia nos ombros de 260 escravos, por onde do sargento-
-mor Antônio José de Campos – para a igreja construída em Meia-Ponte (entre os anos
de 1750-1754) em honra do mesmo bom Jesus Venerado (LACERDA, 1977, p.70).
59
embora os documentos se calem, é patente um conhecimento cabal de anatomia e de
desenho, explicito na erudita fatura da imagem. Escultor culto, domina segredos plás-
ticos e os códigos iconográficos: Veiga Valle não pode ser um autodidata. (SALGUEIRO,
1983, p.47)
60
REFERÊNCIAS
CURADO, Luís A. Carmo. Veiga Valle – O Fra Angelico brasileiro. In: Renovação, Goiânia,
Ano III, n.01, p. 16 e 28, jan, 1955.
JAYME, Jarbas; JARBAS JAYME, José Sisenando. Casas de Pirenopólis: Casa de Deus/
Casa dos Mortos – Volume I. Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2002.
LIMA, Bruno Correia. O genial santeiro de Goiás. Relatório para o Conselho de Pesquisa
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ), 1971.
PASSOS, Elder Camargo de. Veiga Valle – seu ciclo criativo. Goiás, GO: Museu de Arte
Sacra, 1997.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a província de Goiás. Belo Horizonte, Ed. Itatia/São
Paulo, Ed. da USP, 1975.
- Relatório de João José Rescala, sobre a exposição das peças de Veiga Valle no Lyceu de
Goiás, em 1940.
61
CINEMATOGRAFIAS
BIOGRÁFICAS
A VISITA (1974) E QUE NÃO DOESSE (1998):
CONFRONTO E RECONCILIAÇÃO NOS DOCUMENTÁRIOS DE
MARCEL ŁOZIŃSKI
Introdução
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a Polônia esteve sob um regime ligado
à URSS, provocando constantes crises econômicas e perseguições à classe artística e aos
membros da oposição. Embora a presença de censores, o Estado financiava os filmes dos
cineastas poloneses, ainda que controlasse o material que seria lançado. Contudo, exis-
tiam realizadores que conseguiam driblar a censura e denunciavam o sistema autocrático
do país, e seus filmes eram selecionados e premiados em importantes festivais de cinema.
A Escola Polonesa ainda influenciaria outros cineastas nas décadas seguintes, cujas
MELLO, Davi Marques Camargo de. A visita (1974) e que não doesse (1998): confronto e reconciliação nos
documentários de Marcel Loziński, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens
Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de
Goiás, 2020. p. 63-78.
produções mais representativas fizeram parte do movimento conhecido como Cinema
da Ansiedade Moral. O termo se referia a filmes realistas que examinavam assuntos con-
temporâneos, realizados principalmente entre 1976 e 1981. Essas produções eram forta-
lecidas por uma linguagem híbrida, semi-documental, e retratavam pessoas comuns e
suas ações cotidianas afetadas pelo sistema.
Após 23 anos, com o média-metragem Que não Doesse (Żeby nie bolało, 1998), Mar-
2 A Visita é parte de uma trilogia sobre a mídia criada por Marcel Łoziński. Os outros filmes são Teste
de Microfone (Próba mikrofonu, 1980) e Exercícios Práticos (Ćwiczenia warsztatowe, 1986).
64
cel Łoziński retorna à mesma fazenda com a mesma equipe de filmagem e capta o im-
pacto do filme na vida de Urszula Flis. Esse material é rico na construção de um debate
sobre performance e manipulação do realismo cinematográfico, pois vemos indicações
da direção sobre posicionamentos dos corpos, repetições de ações e o próprio confronto
verbal entre personagem e realizador. Desse modo, a transparência do material ressigni-
fica um processo de produção de quase três décadas.
A Polônia havia perdido a sua independência e grande parte de seu território duran-
te a Segunda Guerra. Cerca de seis milhões de cidadãos poloneses morreram no conflito,
metade deles judeus, e os sobreviventes sofriam de subnutrição, tuberculose e outras
doenças de proporções epidêmicas. Milhares de artistas, intelectuais, líderes civis e mili-
tares se dispersaram pelo mundo e nunca mais regressaram ao país (ZAMOYSKI, 2010, p.
313). A necessidade de reerguer a nação e de promover o reencontro com sua identidade
mobilizaram a Igreja e outras organizações sociais, contando inclusive com a participação
dos partidos nacionalistas de direita e de membros da aristocracia (ZAMOYSKI, 2010, p.
319). Por algum tempo, houve um crescimento na economia e na industrialização, atrain-
do as pessoas do campo para a cidade3. Com a mudança nas fronteiras polonesas e sob
o domínio soviético, a Polônia foi iniciada em um processo de doutrinação de um novo
cidadão socialista por meio de uma perspectiva Marxista-Leninista.
3 Em 1970, 63% dos funcionários e trabalhadores de escritório eram de origem rural (ZAMOYSKI,
2010, p. 322).
65
O florescimento de uma nova sociedade polonesa foi motivado pelo desenvolvi-
mento da literatura e das artes nos anos 1950. Ainda que muitos escritores estivessem
dispersos em outros países, seus escritos, publicados por editoras dos círculos emigrados,
chegavam à Polônia. No entanto, a censura passou a ser mais frequente a partir de 1958,
quando a tiragem de exemplares desses livros foi controlada, assim como restringiu-se
a quantidade de apresentações de peças teatrais. Como explica Zamoyski, os escritores
que não se alinhavam eram perseguidos e presos. Desse modo, refugiavam-se nas metá-
foras para evitar a censura, ou usavam outros métodos de resistência. Stanisław Lem, por
exemplo, célebre autor de Solaris (1961), passou a escrever ficção científica (ZAMOYSKI,
2010, p. 332).
Pondo fim no período stalinista do cinema polonês, foi só com a chamada Escola
Polonesa que cineastas e espectadores compartilharam de novas tendências e fôlegos es-
tilísticos, refletindo a realidade que tinha sido velada pela estética então superada do Re-
alismo Socialista, um período de revitalização da cinematografia polonesa compreendido
entre 1956 e 1964. Os diretores eram jovens e compartilhavam das mesmas experiências,
logo, adotavam uma gama temática e estilística similar. Os diretores da Escola Polonesa
tiveram acesso a uma importante produção vinda do mercado ocidental, como os filmes
do neorrealismo italiano4, os quais acabaram por influenciar suas obras.
66
Durante o período comunista na Polônia, o cinema documentário se tornou uma
ferramenta de propaganda, e, desde 1949, a principal produtora responsável pelos docu-
mentários no país foi a Estúdio de Documentário de Varsóvia (Wytwórnia Filmów Dokumen-
talnych, ou WFD), de Varsóvia. Segundo Jazdon, de 1945 a 1949, existia uma liberdade
limitada que permitiu que os documentaristas poloneses desempenhassem maiores ex-
perimentações com os seus filmes, bastante inovadores e originais (JAZDON, 2014, p. 68).
67
carreira de documentarista, trabalhou como editor de som no Estúdio de Documentário
de Varsóvia. Em 1967, matricula-se no curso de cinema da Escola de Łódź, onde se forma
em 1971, embora só fosse receber o seu diploma em 1976.
68
Em seu curta-metragem Exercícios Práticos (Ćwiczenia warsztatowe, 1986), como o
próprio nome sugere, Łoziński exercita a forma da reportagem jornalística. Pessoas de
todas as idades são questionadas sobre o quê elas pensam sobre a juventude contempo-
rânea. As respostas, em sua maioria, são negativas, adotando um discurso pouco otimista
sobre o futuro dos jovens poloneses. Łoziński decide remontar o material por duas ve-
zes. Num primeiro momento, os depoimentos perdem o seu caráter pessimista ao serem
invertidos: as vozes dos entrevistados são trocadas umas pelas outras, diluindo ideais e
identidades, alterando qualquer tom que demonize o assunto retratado. Na montagem
original, os jovens eram vistos como cidadãos sem perspectivas de vida e baderneiros;
já com a alteração da montagem, os comentários são editados com um viés progres-
sista e positivo. No segundo experimento, Łoziński anula completamente os diálogos,
separando apenas imagens em que os seus entrevistados aparecem sorrindo, mesmo
se, a princípio, alguns desses sorrisos fossem do constrangimento devido à invasão da
câmera. Terminando por inserir uma música animada como acompanhamento, o trecho
se transforma em ironia e pastiche. São três exercícios práticos que exploram o potencial
de manipulação da televisão e da propaganda.
69
A Visita prepara sua geografia com a exponenciação sonora: cavalos relinchando,
galinhas cacarejando e o grito abafado de pneus de motocicletas. Enquanto observando
a jornalista Marta Wesolowska e o fotógrafo Erazm Ciolek, bem vestidos e equipados com
seus aparelhos de filmagem, adentrando um campo monocromático, Marcel Łoziński pa-
rece nos contar, em um único plano contemplativo, a diferença de classes e costumes, a
invasão cosmopolita no pacífico condado de Wysokie, situado na cidade de Lublin, ao
leste da Polônia, onde reside Urszula Flis, uma jovem agricultora intelectual cuja única
companhia é sua mãe doente.
A câmera é quase sempre vigilante, possuindo uma distância que não provoca inti-
midação; todavia, de sua performance à esquiva, percebe-se um interesse inicial em não
se intrometer na ação, para assim ganhar a confiança de suas personagens e colocar em
prática um exercício de provocação. Ela capta os moradores em seus afazeres domésticos,
a força braçal e a mecanização de seus movimentos.
Em entrevista com Ela Bittencourt, Jacek Petrycki conta que, ao ser contratado por
Łoziński para ser o diretor de fotografia de A Visita, viu a oportunidade de pensar “a forma”
do documentário, não apenas o quê era retratado, mas em “como” ele seria realizado.
Marcel queria fazer um filme sobre a mídia, sobre como jornalistas e cineastas podem
ser injustos e brutais em relação a seus assuntos. Sua esposa viu na televisão uma
moça, Urszula, que era perfeita para o filme. Marcel avisou Urszula que ele traria a
mídia, a qual abusaria dela. A jovem jornalista que Marcel trouxe havia se destacado
na política. Ela era forte, mas não comunista. Portanto, o filme não é necessariamente
em preto e branco. Sua essência está na interação entre essas duas mulheres, entre o
ataque de uma e a defesa da outra (PETRYCKI, 2015).
70
ver, estando Urszula em seu espaço, uma agricultora que cuida sozinha de 13 hectares,
teria como melhor escolha seguir um padrão do patriarcado, de trabalhadora e mulher
do lar. “Você acredita que o desenvolvimento humano consiste apenas em ler livros, escrever
cartas ou ir ao teatro de vez em quando?” – aqui, a jornalista afronta o conhecimento, como
se educação e cultura fossem exclusivas de uma só classe. A provocação se estende quan-
do a jornalista afirma que a solução para Urszula é “se adaptar ao ambiente em que vive”.
Ela [Marta Wesolowska] forçou seu ponto de vista, ignorando completamente a sensi-
bilidade da pessoa com quem falou. Era comum então que alguém chegasse “ao cam-
po” com uma tese pronta e alcançasse a realidade. Eu era um estranho nesse método.
Sim, ao preparar um filme, sei mais ou menos o que quero dizer, mas quando vejo a
realidade se movendo em outra direção, sigo a realidade (ŁOZIŃSKI, 2012).
Após 23 anos, Marcel Łoziński decide visitar novamente Urszula Flis com parte da
equipe de filmagem d’A Visita. No média-metragem Que não Doesse, contudo, o cineasta
percebe que o seu interesse não é mais questionar o papel da mídia, mas antes entender
o impacto de um filme na vida dos envolvidos – sejam suas personagens, ou a própria
equipe em bastidores.
De fato, “Que não Doesse” não é mais sobre cinema, é sobre o medo que me domina
quando filmo. É uma questão de idade, ou um maior senso de responsabilidade? Eu
não sei. Eu me pergunto muito mais sobre isso do que costumava fazer. Lembro que,
há 23 anos, a coisa mais difícil foi convencer Urszula de que queria ser honesto. Fiquei
com ela por três dias e finalmente consegui (ŁOZIŃSKI, 2012).
Produzido pela TV Polonesa, Telewizji Polskiej S.A, o diretor opta por iniciar o novo
trabalho com imagens d’A Visita. Vemos os bastidores das antigas filmagens, desde o
71
operador de câmera ao captador do som direto: a elaboração da performance. Diante
deste recurso, ao relembrar de seu próprio passado cinematográfico, Que Não Doesse as-
sume-se um filme autoconsciente, não apenas preocupado em situar o espectador, que
pode ou não ter visto o material que originou a nova busca, como também em realocar
seu espaço e tempo, os anos que separam as duas obras.
Dessa vez, a câmera não quer ficar à esquiva, não mais se comporta como um
voyeur, perdeu a vergonha de outrora e passa até mesmo a frequentar a casa da persona-
gem filmada. Sua observação é participativa, de inclusão.
72
mais receptiva, demonstra interesse pela história de Urszula e respeita o seu discurso.
“Você se arrepende de ter aceitado que fizéssemos esse filme?”, pergunta Łoziński.
“Não, a reação depois do filme até que foi boa, mesmo na vila”, revela Urszula.
Sinto que não abusei das ferramentas de câmera e microfone, que somos parceiros
neste filme. Fizemos com a Kasia Maciejko-Kowalczyk 23 ou 24 versões de montagem.
Cortamos, até percebermos que tiramos muito da personagem. Que ela não estava lá.
Então nós restauramos um pouco. E novamente paramos em alguma fronteira. Enviei
à Urszula a versão sem refilmagens. Ela aprovou (ŁOZIŃSKI, 2012).
73
Aproximando-se de seu desfecho, a jornalista Agnieszka Kublik e o fotógrafo Erazm
Ciolek de despedem da fazenda à alvorada, ao passo que o diretor prepara o último ato
de seu filme, uma ação voltada ao duelo entre criador e personagem, Marcel Łoziński e
Urszula Flis.
É Urszula quem primeiro toma a palavra, “Você realmente acha que é muito fácil co-
nhecer uma pessoa?”. Quando Łoziński afirma que é muito difícil compreender o ser hu-
mano, não é revelada a sua distância, uma vez que a mise-em-scène é reduzida a um
plano-contraplano não localizável no espaço. Łoziński e a sua equipe, nesse ato final, sur-
gem sempre na permanência de uma fotografia, um frame cheio de perguntas e poucas
respostas. Não há a exposição do movimento para para além de sua voz.
“Eu desejo que você tenha feito um bom filme e, ao mesmo tempo, eu desejo ser discre-
ta”. Nessa montagem performática entre humano e o meio, Urszula se direciona não mais
ao cineasta Łoziński, mas à iconografia de sua imagem.
“Quem precisa da verdade da qual você está falando? Quem precisa das histórias des-
sas pessoas, seus erros reais ou imaginários? É como uma anedota.”, provoca Urszula. Ela
sabe que o diretor precisa disso para completar o filme, que não é mais sobre si mesma,
mas também sobre Marcel Łoziński.
“Talvez as pessoas refletirão sobre suas vidas? Elas encontrarão um pouco delas em
você”, afirma Łoziński.
Ao que Urszula conclui, justificando com a frase-título que o filme recebe: “Sinto-me
satisfeita com o fato de Marcel fazer um filme sobre mim depois de todos esses anos, mas, por
outro lado, eu queria que não doesse”.
74
ao queixo, pensativo. Quem pensa é a sua imagem, a imagem de um cineasta por trás
da câmera: a imagem de um personagem. Sua voz não pertence a essa imagem, assim
como essa imagem não define quem ele realmente é. Ausentar-se do movimento impede
o confronto de olhares. Ausentar-se do movimento inibe a sua emoção. Łoziński conse-
gue finalizar o seu filme, logo, para ele talvez não doa tanto – faz parte do narcisismo da
imagem.
Considerações finais
Questionar o papel da mídia na vida privada dos cidadãos poloneses era algo legí-
timo e indissociável ao momento político. O final da Segunda Guerra marca um período
de incertezas e estagnação econômica, que resultaria em uma conturbada crise política
no final dos anos 1960 e que se estendeu até a década de 1980. Ao mostrar a realidade
local sem princípios positivistas e nacionalistas, explorando narrativas sobre o cotidiano
de personagens à margem da sociedade, os cineastas eram cientes que os seus registros,
principalmente documentais, corriam o risco de serem censurados ou arquivados. Devi-
do ao nível de exposição, o acervo dessas vozes e imagens poderia prejudicar os entrevis-
tados quando usado de formas maliciosas pelo Estado.
75
material midiático e seus meios de propagação e criou uma tese alarmista sobre os possí-
veis efeitos indeléveis na vida de uma pessoa. “Em A Visita, falo sobre como é fácil evisce-
rar um homem, marcá-lo para a vida toda e depois abandoná-lo, sair e fazer os próximos
filmes” (ŁOZIŃSKI, 2012).
Eu apenas pensei que valeria a pena me registrar, ver o que aconteceu com ela depois
de anos. E o que aconteceu conosco? Urszula nos contou muito sobre si mesma, sobre
relações familiares, sobre os infortúnios que caíram sobre sua família. Tive a impres-
são de que nenhuma das nossas perguntas a surpreendeu, como se ela já as tivesse
perguntado antes. O que ela fez na frente da câmera foi confissão completa. Ela se
esforçou ao máximo, como se tivesse esquecido que seria um filme. Ela percebeu isso
somente depois das fotos, basicamente me culpando com toda a responsabilidade
pela qual a coloquei. Então, eu me tornei um censor, tive que estabelecer limites. Cor-
tei tudo o que ela podia se arrepender, que excedia os limites da intimidade (ŁOZIŃSKI,
2012).
As relações de poder ainda estão explícitas, e quem detém o poder é aquele que
observa com uma câmera. Contudo, na busca de um novo filme, dessa vez orquestrando
uma ideia sobre a ética de um cineasta, Łoziński demonstra empatia e respeito com a
sua personagem. Mas nem sempre as imagens dão conta da realidade, e é por isso que a
noção de realismo pode ser facilmente manipulada, doa a quem doer.
76
REFERÊNCIAS
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dge, 2005.
JAZDON, Mikołaj. “The Search for a ‘More Spacious Form’: Experimental Trends in Po-
lish Documentary (1945-1989)” In: KUC, Kamila; O’PRAY, Michael (Ed.). The Struggle
for Form: Perspectives on Polish Avant-Garde Film 1916-1989. Nova Iorque: Wallflower
Press, 2014.
ŁOZIŃSKI, Marcel in MARCEL Łoziński – Profile. Dafilms.com. Data não indicada na publi-
cação. Disponível em: https://dafilms.com/program/348-marcel_lozinski_profil. Acesso
em: 14 jun. 2020.
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culture.pl/pl/tworca/marcel-lozinski. Acesso em: 14 jun. 2020.
NAGIB, Lúcia in LABAKI, Amir (Org.). Folha Conta 100 Anos de Cinema. Rio de Janeiro:
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PETRYCKI, Jacek in BITTENCOURT, Ela. Jacek Petrycki: the struggles ive filmed. the stru-
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STOK, Danusia (Ed.). Kieślowski on Kieślowski. Inglaterra: Faber & Faber, 1993.
77
Filmográficas
VISITA, A. Direção de Marcel Łoziński. Produção de Jerzy Herman. 1974. (15 min.), son.,
P&B.
78
A BIOGRAFIA DE ANDREI TARKOVSKI PRESENTE
NO FILME: “O ESPELHO”
É certo que a vida não explica a obra, porém certo é também que se comunicam. A
verdade é que esta obra a fazer exigia esta vida. (MERLEAU-PONTY, 1984, P. 122)
1 Formada em Filosofia pela UPM, cursa mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de São
Paulo. Contato: carolina.ferrarezi22@gmail.com.
FERRAREZI, Carolina Da Silva. A biografia de Andrei Tarkovski presente no filme: “O Espelho”, In: GRUPO DE
ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística,
2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 79-95.
batalha contra os alemães, a família retornou à Moscou.
Ao retornar para Moscou, Andrei Tarkovski continua seus estudos na antiga escola,
onde conhece o poeta Andrei Voznesensky, um dos seus colegas de classe. Nesse período
com o apoio da mãe, Andrei Tarkovski estudou música e pintura, manifestando sua veia
artística. De novembro de 1947 a primavera 1948, o cineasta ficou internado no hospital
com tuberculose. Após a formatura do ensino médio em 1952, Andrei Tarkovski estuda
árabe no MIV (Instituto de Estudos Orientais de Moscou), e geologia na Sibéria. Em 1954
durante uma expedição de pesquisa pelo rio Kureikye próximo de Turukhansk na provín-
cia de Krasnoyarsk que o cineasta decidiu estudar cinema. Dessa maneira, abandona o
trabalho como prospector de minérios para a Academia de Ciências Instituto de Metais
não Ferrosos e Ouro, e em 1954 entra na famosa escola de cinema VGIK em Moscou.
Em 1957 Andrei Tarkovski casa-se com a atriz Irma Raush com quem tem seu pri-
meiro filho Arseny Tarkovski, o casamento termina em 1970. A atriz atuou em dois de seus
filmes: A infância de Ivan (1962) e Andrei Rublev (1966). E após a separação manteve uma
relação difícil com a ex-mulher, cercada de empecilhos para ver o filho. No mesmo ano do
fim de seu primeiro casamento, o cineasta casa-se com a atriz russa Larissa Tarkovskaya
com quem tem seu segundo filho Andrei A. Tarkovski e ficará casado até o fim de sua vida.
80
É importante destacar que Andrei Tarkovski vive um período muito difícil na União
Soviética, desde sua infância até a vida adulta. As guerras sempre deixam suas marcas, é
difícil reconstruir, e o passado está sempre no presente. Além disso, o regime político do
país era duramente repressivo, especialmente com os artistas, que sofriam duras censu-
ras. Em seus diários, escritos entre 1970 até 1986, Andrei Tarkovski narra os acontecimen-
tos de sua vida, e em diversos momentos o artista se queixa sobre a dificuldade de fazer
o que amava.
O cineasta relata que em vinte anos de trabalho, sentia como se tivesse dezesse-
te anos de desemprego. Seus roteiros nunca eram aceitos, seus filmes tinham inúmeras
críticas, diversos pedidos de alterações. Precisava sempre reescrever discretamente os
roteiros para conseguir uma aprovação, sem contar que o intervalo entre os seus filmes
era enorme. Os “chefes” de Andrei Tarkovski pareciam não o suportar, evitavam divulgar
seus filmes no seu próprio país e recusavam diferentes eventos estrangeiros para não
promover o nome de Andrei Tarkovski.
Com muitas dificuldades de trabalhar em seu país, no ano de 1982, Andrei Tarkovski
deixa a Rússia, primeiramente sozinho, depois Larissa se junta ao marido na Itália, mas o
filho “Andriucha” é impedido pelas as autoridades de se juntar à família. O cineasta passa
os últimos anos em uma luta incessante com as autoridades russas para poder ver o filho,
e infelizmente só consegue reencontrá-lo no mesmo ano de sua morte. Na Itália recome-
ça sua carreira filmando um filme em parceria com Tonino Guerra e depois trabalha em
seu último filme na Suécia. Andrei Tarkovski morre com apenas 54 anos em Paris no ano
de 1986, vítima de câncer.
81
zem as angústias do homem lançado em um mundo que se abre aos mistérios da existên-
cia. A natureza está sempre presente, seu potencial estético, sua vitalidade e sua posição
revelam um homem que convive em intersecção com seu meio ambiente.
No documentário: Viagem pela Itália (1983), que traz as filmagens da viagem que
Tonino Guerra e Andrei Tarkovski percorreram pelo país para se prepararem para o filme
Nostalgia (1983), em uma das cenas do documentário, Andrei Tarkovski responde uma
pergunta que fora enviada por meio de uma carta de um de seus espectadores. O jovem
questiona que conselho o cineasta daria para os futuros companheiros de profissão? Ele
responde:
Hoje, qualquer um acha que pode fazer um filme, não gosto muito de dar conselhos,
mas a coisa principal que posso dizer ao iniciante, é que aprenda a não separar o pró-
prio trabalho, os próprios filmes, o cinema, afinal de sua vida cotidiana. Não deve haver
fratura entre as próprias obras, o próprio trabalho e as ações próprias. Isso porque o
diretor é igual ao pintor, ao poeta, ao músico. E como deve se entregar totalmente à
sua arte, fica estranho ver um diretor que considera o próprio trabalho como algum
privilégio, algo trazido pelo destino, e que se contenta só do próprio passado. Eles
vivem de uma maneira e fazem seus próprios filmes de modo totalmente diferentes.
Quero dizer, ainda, aos jovens diretores, que devem responder moralmente pelo filme
que mostram. Isso é o essencial. (NOSTALGIA, 1983)
Nesta fala podemos compreender por que Andrei Tarkovski cria um cinema que
nunca envelhece, como uma obra de arte que perpassa o tempo, seus filmes são sempre
atuais, pois sua subjetividade, seu olhar perante a existência, sua própria vida aparece na
tela como obra de arte. Sua vida não justifica sua obra, mas vida e obra estão imbricadas
na sua forma única de fazer cinema, de dar luz à expressão artística, assim como fazem os
pintores, os poetas e os músicos.
Para o cineasta a capacidade do cinema em captar o tempo, era sua essência mais
importante, por isso, o trabalho do diretor é de “esculpir o tempo”, conceito que ganha
o título do seu livro sobre cinema. De acordo com Tarkovski (2010), as pessoas buscam
o tempo no cinema: o tempo perdido, consumido ou ainda não encontrado. O especta-
dor procura uma experiência viva, e o cinema possibilita isso, pois amplia, enriquece e
concentra a experiência de uma pessoa, e não somente enriquece, mas como também a
82
torna mais longa. Por isso, o cineasta relata em seu livro: que o objetivo de seus filmes era
de trazer a própria vida na tela. Em seu filme “O Espelho” (1974) o cineasta realiza esse ato,
traz sua própria vida na tela, e ao trazê-la, de certa forma, acaba também representando
a vida de inúmeros espectadores.
Muitas coisas, afinal, ficam em nossos corações e pensamentos como sugestões não
concretizadas. Em vez de tentar captar essas nuances, a maior parte dos filmes des-
pretensiosos e é “realistas” não só as ignora, como faz questão de usar imagens muito
nítidas e explicitas, o que no máximo consegue tornar o filme forçado e artificial. No
que me diz respeito, só admito um cinema que esteja o mais próximo possível da vida
– ainda que em certos momentos, estejamos incapazes de ver o quanto a vida é real-
mente bela. (TARKOVSKI, 2010, p.20).
Com essa intenção, Andrei Tarkovski desenvolve uma narrativa cinematográfica fei-
ta de imagem e movimento, trazendo um olhar diferente para o cinema, demonstrando a
vida como ela realmente é, relatando o homem que não constrói o mundo, mas que está
lançado nele. É interessante perceber como o cineasta incorpora os elementos da natu-
reza em seus filmes. Percebemos as imagens da terra, do fogo, da água e do ar em forma
de vento sempre presentes em sua forma de fazer cinema. O homem de Andrei Tarkovski
possui uma relação inerente com a natureza, um indivíduo que retrata seu envolvimento
com a vida cotidiana, e que de certa forma, transparece na tela as características e os de-
safios universais de um homem que se faz no mundo.
Dessa forma, o cinema de Andrei Tarkovski faz emergir na tela, a união do espírito
e do corpo, do espírito e do mundo, da intersecção e do movimento de um no outro. A
experiência do homem no mundo é um “reaprender a ver”, que pode ser identificado
na percepção de um invisível que será posto à visibilidade por intermédio do artista. O
movimento artístico ultrapassa todas as barreiras morais e possibilita o espaço ao novo.
O trabalho do cineasta de esculpir o tempo é, na tela, demonstrar as possibilidades de
ser-no-mundo, bem como, nossas angústias, aspirações, medos e nossa memória. A uti-
lização das imagens dos rostos humanos, assim como o registro do envolvimento do ho-
mem com os fenômenos da natureza eram muito importantes para o diretor. Pois, as ima-
gens das expressões faciais dos atores contribuem significativamente para desvelarmos
os sentimentos internos dos personagens. Para o diretor o sentimento também se faz ver
83
no comportamento dos personagens.
De qualquer modo, fica perfeitamente claro que o objetivo de toda arte – a menos, por
certo, que ela seja dirigida ao “consumidor”, como se fosse uma mercadoria – é explicar
ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado
da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou, se
não for possível explicar, ao menos propor a questão. (TARKOVSKI, 2010, p. 38)
84
excepcional. Elaborado com uma narrativa não linear, o filme se constrói por meio do
narrador personagem da história Alexei que está aparentemente próximo da morte, e
recorda seu passado, começa a repassar sua vida, em especial sua infância com um desejo
melancólico de poder retorná-la.
O Espelho não foi, em absoluto, uma tentativa de falar sobre mim mesmo. Ele fala-
va sobre meus sentimentos para com as pessoas que me eram muito queridas, sobre
meu relacionamento com elas, sobre minha eterna compaixão pelo seu sofrimento e
pelas minhas próprias falhas – o meu sentimento de dever não cumprido. (TARKOVSKI,
2010, p. 160)
Andrei Tarkovski ao trazer sua subjetividade, seus sentimentos e de certa forma sua
própria vida na tela não constrói um “típico” filme autobiográfico, pelo contrário, o filme
transpassa o caráter individual para uma universalidade, pois tece sentimentos universais
e também compõe a áurea de uma época marcada pela guerra, bem como, um modo de
ser russo. A história do diretor contata no filme, se torna a história de diversas pessoas que
viveram em sua época. No prefácio do seu livro “Esculpir o Tempo” nos deparamos com al-
guns depoimentos de seus espectadores que confirmam esse envolvimento com o filme:
“De que fala esse filme? De um homem. Não daquele homem em particular, cuja voz
ressoa por trás da tela, representado por Innokenti Smoktunovsky. É um filme sobre
você, o seu pai, o seu avô, sobre alguém que viverá depois de você, e que, ainda assim,
será ‘você’. Sobre um homem que vive na terra, que é parte da terra, a qual, por sua vez,
é parte dele, sobre o fato de que um homem responde com a vida tanto ao passado
quanto ao futuro. Deve-se ver esse filme com simplicidade e ouvir a música de Bach e
os poemas de Arseni Tarkovski; vê-lo da mesma maneira como se olha para as estrelas
ou para o mar, ou ainda, como se admira uma paisagem. Não há, aqui, nenhuma lógica
matemática, pois esta não é capaz de explicar o que é o homem ou em que consiste o
sentido de sua vida.” (TARKOVSKI, 2010, p. 4).
85
Um professor de Novosibirsk escreveu? “Nunca escrevi a nenhum ator para dizer o que
eu sinto sobre um livro ou filme. Este, porém, é um caso especial: o filme livra o homem
do encantamento do silencio, permite que ele liberte o espírito das ansiedades e das
coisas vãs que o oprimem. Participei de um debate sobre o filme. Tanto os “físicos”
quanto os “líricos” foram unânimes: o filme é profundamente humano, honesto e rele-
vante – tudo isso se deve ao seu autor. E todos os que falaram, disseram: ‘Este filme fala
de mim.’ ” (TARKOVSKI, 2010, p. 6).
Na primeira cena do filme, após o episódio de abertura com o “gago”, temos a lem-
brança de Alexei quando criança de sua mãe sentada na cerca, fumando um cigarro, a
espera do marido, que os abandonaria naquela mesma época. Uma curiosidade sobre
essa cena, que está representada pela figura abaixo, é que o diretor conta em seu livro
“Esculpir o Tempo”, que não revelou para a atriz Margarida Terekhova que interpreta a
mãe de Alexei na juventude (mãe de Andrei Tarkovski), o enredo da história, se seu mari-
do chegaria. Andrei Tarkovski queria que a atriz tivesse a mesma experiência que sua mãe
teve ao esperar pelo marido, sem saber como seria sua relação futura com o esposo. O
cineasta tinha receio que de alguma forma, até mesmo inconsciente a atriz perpassasse
o sentimento da futilidade da espera, por saber que ele não chegaria. A cena precisava
registrar a singularidade daquele momento.
A casa mostrada no filme foi criada a partir da réplica da casa em que o cineasta
viveu na infância, e foi reconstruída no mesmo lugar. Andrei Tarkovski (2010) relata que
quando a casa ficou pronta, levou sua mãe, Maria Ivanovna (que também participa do
86
filme interpretando sua própria mãe, mais velha) para ver a casa, e sua reação superou
todas as expectativas do diretor. Maria Ivanovna experienciou à volta ao seu passado,
despertando sentimentos na atriz que o filme tinha a intenção de expressar.
87
Figura 4: Sonho de Alexei – A mãe flutua na cama (captura de tela)
Maria Ivanovna, mãe de Andrei Tarkovski quando jovem atuou como revisora em
uma gráfica, e o cineasta inclui esse episódio da vida de sua mãe no roteiro do filme. Na
cena em que a protagonista tem a impressão de que cometeu um erro no “jornal” que foi
impresso, a mesma sai correndo para a gráfica para verificar sua suspeita. Não entendemos
o porquê de a personagem ficar tão angustiada, mas um detalhe sutil na cena pode nos
ajudar a decifrar o que para os russos pode ser de certa forma, evidente. No momento em
que ela termina de conferir o material impresso e percebe que não tinha cometido o erro,
fica extremamente aliviada, se levanta e aparece um quadro na parede que se assemelha a
figura de Josef Stalin. É importante ressaltar que no regime de Josef Stalin (1920-1953) não
havia espaço para erros, o equivoco podia resultar em consequências devastadoras.
88
Outro elemento que o cineasta traz de sua biografia e que se incorpora à essência
do filme está nas imagens documentais dos episódios da guerra. Afinal, a guerra e toda
a estrutura do regime soviético marcaram profundamente a vida de Andrei Tarkovski. O
cineasta juntamente com as filmagens da guerra também inclui os poemas de seu pai: Ar-
seni Tarkovski, narrados por ele mesmo e essa junção tem o efeito de ligar todo o enredo
do filme, no sentindo de fluir e estabelecer uma conexão entre as imagens e os poemas.
Andrei Tarkovski (2010) relata que quando assistiu a essas imagens da guerra percebeu
que teria que usá-las e que se tornariam um ponto central do filme. O espírito daquelas
pessoas devastadas por um esforço terrível e desumano daquele trágico período históri-
co se tornaria o coração do filme que teve início com sua própria biografia, sua reminis-
cência lírica íntima de suas lembranças que tanto o atormentavam. Assim, as imagens da
guerra falavam de imortalidade e o uso dos poemas de Arseni Tarkovski possibilitou a
consumação do seu significado fundamental.
Assim como uma obra de arte, o filme está aberto para uma experiência estética
subjetiva, e nos faz refletir de diferentes formas à proposta artística de Andrei Tarkovski.
Um aspecto importante que nos remete a possível escolha do título do filme (“O Espe-
lho”) está diretamente relacionado nas relações que o protagonista Alexei teve com sua
mãe e seu pai, e como isso é replicado na sua vida. Percebemos a ausência do pai desde
a infância de Alexei e um relacionamento difícil com a sua mãe. Depois quando adulto
Alexei na função de pai de Ignate se comporta da mesma forma que seu pai se compor-
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tou: distante e com uma relação conturbada com a ex-mulher. É importante destacar que
a mesma atriz que interpreta a mãe de Alexei na juventude, faz também a sua esposa,
Natalya. E o mesmo ator que faz seu filho, Ignate, o interpreta na adolescência. Temos a
impressão de que a história se repete: como se a mãe espelhasse a esposa e o ele espe-
lhasse seu próprio filho, formando uma possível ideia de eterno-retorno.
É relevante destacar que a obra do cineasta está em constante diálogo com outras artes,
seja pela inclusão dos poemas de seu pai, como citamos, ou pela inserção de obras de artes,
músicas de Bach e a literatura russa. No seu livro “Esculpir o Tempo”, Andrei Tarkovski nos presen-
teia com uma explicação estética do uso do quadro – Retrato de uma jovem com um ramo de
zimbo, de Leonardo Da Vinci no filme “O espelho”. Leonardo Da Vinci era um dos pintores que
Andrei Tarkovski mais admirava. O cineasta destaca que os quadros do pintor demonstram a ca-
pacidade do artista em examinar o objeto de fora, com um olhar que paira por cima do mundo.
90
Assim, os quadros de Leonardo Da Vinci parecem sempre nos inquietar, rodeados
de mistérios assumem uma oposição que é impossível dizer a impressão final que o qua-
dro produz em nós. Não sabemos se gostamos ou não da mulher representada, se ela é
simpática ou desagradável. Ela nos parece ao mesmo tempo atraente e repugnante. O
belo e o satânico parecem tecer sua imagem. E a utilização deste quadro no filme, além
de ser escolhido como elemento atemporal, ao mesmo tempo compõe o confronto entre
o retrato e a heroína do filme, enfatizando nela e na atriz, Margaria Terekhova, a mesma
habilidade de ser encantadora e repugnante.
Figura 8: Quadro: Retrato de uma jovem com um ramo de zimbo - Leonardo Da Vinci (captura de tela)
91
paterno-masculina de seu pai esteve longe em sua infância. As mulheres são as protago-
nistas do filme, sua força motriz, seu caráter antagônico ganham destaque. Não somente
pelo fato do cineasta ter sido criado somente por mulheres, mas também pelo próprio
espírito do filme, da época que Andrei Tarkovski vive os acontecimentos de uma Rússia
que é representada por crianças e mulheres.
Figura 10: Cena final do filme – A mãe de Alexei com ele e Marina (captura de tela)
Por fim, percebemos que a vida não justifica a obra, mas que ambas se complemen-
tam, se fundem para dar luz à proposta estética de Andrei Tarkovski, de um cinema como
expressão artística. A biografia presente no filme “O Espelho” nos apresenta um homem
sensível com o mundo e com outros, um artista que sente remorso, cujo passado não
consegue se desvencilhar, e talvez ao trazer sua vida para o filme consiga finalmente se
sentir em paz com suas lembranças. Como um pintor que precisa pintar uma paisagem,
o cineasta precisou trazer para a visibilidade o que estava no campo do invisível, com-
partilhando sua singularidade. O aspecto fundamental do filme é justamente o fato de
92
não ser apenas um retrato autobiográfico. Andrei Tarkosvki parte da sua biografia, mas
o efeito de seu filme é universal, os espaços deixados pelo cineasta para as experiências
subjetivas dos espectadores, e todos os elementos artísticos e simbólicos fazem do filme
“O Espelho” uma obra de arte.
93
REFERÊNCIAS
JIMENEZ, Marc. O que é Estética? Trad. Fulvia M. L. Moretto. Coleção Focus. São Leopol-
do: RS: Unisinos, 1999.
LEM, H. Stanislaw. Solaris. Trad. Eneida Favre. São Paulo: Aleph, 2017.
_____. “O cinema e a nova psicologia” IN: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cine-
ma. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
_____. O Olho e o espírito. Trad. Nelson Alfredo Aguilar. Os Pensadores. 2ª ed. São Pau-
lo: Abril Cultural, 1984.
_____. O Visível e o Invisível. Trad. José Artur Gianotti e Armando Mora d’Oliveira. 4ª
ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.
STRUGPÁTSKI, Arkádi & Boris. Piquenique na estrada. Trad. Tatiana Larkina. São Paulo:
Aleph, 2017.
___________________. Esculpir o tempo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
Filmografia
94
Solaris (Soliaris, Andrei Tarkovski, URSS, 1972).
95
DOGMA 95:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOGRAFIA DO MOVIMENTO
Introdução
As motivações do Dogma 95
1 Graduando em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). Correio eletrônico: feh_mj@
hotmail.com
ARAÚJO, Felipe Monteiro Pereira de. Dogma 95: considerações sobre a biografia do movimento, In: GRUPO
DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística,
2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 96-114.
A década de 60 traz, dentro da história do cinema, o advento da Nouvelle Vague e
as discussões teóricas levantadas no debate interno vivenciado pelos autores e cineastas
responsáveis pela ascensão desta escola francesa de cinema. É aqui, portanto, que pode-
mos começar a traçar alguns dos possíveis motivos que viriam, posteriormente, a ensejar
a proposta dinamarquesa do Dogma 95. De fato, já em 1954, o cineasta francês François
Truffaut publica um artigo intitulado Une certaine tendence du cinéma français, no nº 31 da
revista Cahiers du Cinema, palco das principais discussões relacionadas ao cinema dentro
do movimento, em que o cineasta expõe suas ressalvas quanto a situação do cinema
francês naquele momento, pois em suas próprias palavras:
Esta escola (francesa), que visa o realismo, sempre o destrói no momento em que o
capta, mais ansioso para encarcerar seres em um mundo fechado, protegidos por fór-
mulas, trocadilhos e máximas, do que deixá-los para se mostrarem como são, diante
de nossos olhos. O artista nem sempre pode dominar seu trabalho. Ele às vezes deve
ser Deus, às vezes sua criatura. (TRUFFAUT, 1954 apud LIMA, 2018, p. 73)
Desta forma, o olhar do cineasta se volta para uma certa vacância de sentido nas
produções francesas daquele período, salientando a instrumentalização no processo cria-
tivo dos cineastas franceses, posto que “o cineasta observa que o cinema francês caminha
rumo a uma proposta comercial que visa a satisfação das massas atendendo a um apelo
da ‘moda’ cinematográfica” (LIMA, 2018, p. 73). É isto que os proponentes do Dogma 95
querem salientar quando relembram o período de 1960. Observaram eles que a crítica
direcionada por Truffaut, que se estendia em larga escala para outros representantes da
Nouvelle Vague, estava correta. O ponto de discordância entre as duas escolas, portanto,
diz respeito justamente à ruptura propositiva, posto que “se Truffaut teve a coragem de
denunciar o cinema ilusório, lhe faltou agressividade para romper definitivamente com
a metodologia tradicional dos recursos fílmicos disponíveis à época” (LIMA, 2018, p. 75).
Considerando este contexto, o Dogma 95 vai mesmo contrariar a proposta dos franceses,
que propugnava “[...] a recusa do que é produzido na França (salvo seletas exceções) e o
cinema americano como foco privilegiado para a busca de autores que, de certa forma,
driblam o sistema e se impõem como artistas coerentes, capazes de construir uma escri-
tura” (MANEVY, 2006, p. 221).
97
Vague, é vista pelos dinamarqueses como um fomento, ainda que sem a intencionali-
dade, das bases daquilo que os próprios franceses criticavam. De fato, para os cineastas
dinamarqueses “o próprio cinema anti-burguês tornou-se burguês, porque os fundamen-
tos sobre os quais suas teorias se baseavam era a percepção burguesa da arte. O conceito
de autor era o romantismo burguês desde o início e, assim, ...falso!” (TRIER; VINTERBERG,
1995, p. 1). Esse enfoque na autoria e na exultação de “mais cinema”, por parte dos fran-
ceses, identificava-se, assim, justamente como um artifício de ilusão ajambrado pelos
responsáveis pela produção do filme e, consequentemente, contrário aos pressupostos
dinamarqueses. Fica expresso, então, no próprio texto do manifesto, quando prenunciam
que “o Dogma 95 tem o objetivo expresso de contrariar ‘certas tendências’ no cinema
hoje” (TRIER; VINTERBERG, 1995, p. 1), o intento de romper com as bases do que, para os
cineastas dinamarqueses, constituía a falsificação do fazer cinematográfico, resultante do
processo de massificação e comercialização da arte fílmica. É nesse sentido, por fim, que
se caracteriza a ideia de “resgate” proposta pelo Dogma.
Tal reflexão, contudo, nos desperta para a seguinte incógnita: se a proposta do Dog-
ma consiste num resgate, qual a referência sob a qual ele lançará luz em nome deste pro-
cesso de recuperação? Além disso, qual o motivo desta possível referência ser a almejada
por eles e qual o método passível de utilização para chegar até ela? Para entender melhor
isto, faz-se necessário investigar mais a fundo o próprio texto do manifesto Dogma 95 e
buscar nele os sinais que nos permitam voltar na história do cinema e entender de manei-
ra mais profunda o seu intento. Nas palavras dos próprios cineastas:
A tarefa “suprema” dos cineastas decadentes é enganar o público. É disso que estamos
tão orgulhosos? É isso que os “100 anos” nos trouxeram? Ilusões através das quais as
emoções podem ser comunicadas? Pela livre escolha de truques do artista individual?
[...] Como nunca antes, a ação superficial e o filme superficial estão recebendo todos
os elogios. O resultado é estéril. Uma ilusão de pathos e uma ilusão de amor. (TRIER;
VINTERBERG, 1995, p. 1)
Nas entrelinhas deste trecho, é possível percebermos o forte enfoque que os direto-
res realçam sobre a presença do realismo na construção do filme e a consequente repulsa
a falsificação do filme, vide que consideram a abordagem ficcional um mecanismo de ilu-
são do espectador. Esta crítica, sobremaneira, direciona-se ao modo de produção fílmica
98
padronizado pela indústria hollywoodiana, posto que
Somando-se aos traços estilísticos, uma questão conceitual reforça a presença de tra-
ços da mitologia cristã por trás do discurso dinamarquês. A primeira evidência nesse
sentido é a oposição binária (verdade x ilusão), que constitui o eixo central do manifes-
to e reproduz uma visão de mundo maniqueísta, compartilhada com a moral dessa re-
ligião. Do mesmo modo, o mote da revelação da verdade como método de libertação
do ilusionismo (“meu objetivo supremo é resgatar a verdade” é a penúltima frase do
manifesto), somado à ausência de uma definição clara para o que seria essa “verdade”,
atribui à ela um aspecto absoluto e mágico, uma vez que se acredita que a sua simples
exposição pública seja suficiente para destruir os vícios que se opõem a ela, procedi-
mento comum a várias religiões, notoriamente ligadas ao cristianismo. (HIRATA FILHO,
2008, p. 125)
99
de uma lista de regras composta por dez mandamentos que restringem os impulsos do
fazer cinematográfico já constitui, por si só, em uma paródia referente aos dez manda-
mentos cristãos. Para além desta roupagem ética-cristã em tom irônico, contudo, o dis-
curso relacionado à busca pela verdade em detrimento da ilusão fílmica encontra rastros
anteriores na própria história do cinema mundial, apontando para similaridades que con-
ferem ao movimento dinamarquês o seu caráter de resgate. Sobremodo, podemos citar o
neorrealismo italiano como um exemplo destes períodos, visto que nesta escola pode-se
perceber que:
É nesse sentido que, no contexto da Itália pós-guerra, nasce uma tendência cine-
matográfica que salienta a latência pelo real, posto que “a impressão que as imagens de
muitas realizações neo-realistas transmitiam era a de uma realidade da qual a câmera se
aproximava diretamente, sem recorrer a mediações formais” (FABRIS, 2006, p. 211). Não
obstante, outros pontos de convergência também podem ser encontrados entre a pro-
posta dinamarquesa e a escola neorrealista, tais como “a recusa dos efeitos visuais, [...] a
utilização de atores eventualmente não-profissionais, [...] a simplicidade dos diálogos, [...]
a utilização de orçamentos módicos” (FABRIS, 2006, p. 205-206). É por esta perspectiva
que o Dogma 95 se orienta, almejando trazer de volta estes elementos que, segundo os
teóricos dinamarqueses, deixaram de existir na produção cinematográfica. As aproxima-
ções com o neorrealismo, contudo, se encerram por aí, posto que “o resgate proposto
pelo Dogma 95 não implica na recuperação da linguagem e estética cinematográfica mas
na recriação do cinema, trazendo à baila a discussão sobre o papel do cinema no pensa-
mento” (LIMA, 2018, p. 76).
Além disto, os próprios limites desta tentativa de aproximação com a realidade por
parte do movimento esbarram nos próprios limites de suas premissas, posto que “a con-
sideração estética é de qualquer maneira indissociável de alguns elementos que podem
100
sofrer negligência, mas não supressão como o enquadramento e a composição, a movi-
mentação da câmera e o uso das lentes, a iluminação e as cores” (FURUITI, 2003, p. 14).
Logo, embora consiga estreitar as relações com o real a partir do despojamento técnico,
enfocando no aspecto narrativo, não há possibilidade de eliminar todo e qualquer ele-
mento de intervenção na produção, por menor que seja, posto que a simples filmagem
de um take já configura uma visão particular e escolhida de uma determinada realidade.
Desta forma, “em lugar da verdade, os filmes do Dogma 95 dialogam com a esfera do
verossímil através da construção eficiente de um mundo diegético que obedece a deter-
minadas regras e convenções bastante reconhecíveis, construídas pela anterioridade de
outros filmes” (FURUITI, 2003, p. 21).
Cabe-nos apontar, entretanto, que, embora o Dogma 95 possua essa atmosfera res-
tauradora em seu bojo, o elemento de resgate que o constitui não é puramente fílmico
ou metódico, mas possui um caráter inerentemente poético/simbólico, posto que visa
alimentar a discussão, iniciada já pelos franceses da Nouvelle Vague, na preeminência da
relação cinema e existência, conectando os indivíduos com a arte fílmica. O método (os
10 pontos delimitados) é, por consequência, apenas um meio para se alcançar este esta-
do de aproximação existencial, realçando as inquietações dos interlocutores com o filme.
Daí, por fim, a explicação para a máxima do manifesto que aponta que “para o Dogma 95,
o cinema não é individual” (TRIER; VINTERBERG, 1995, p. 1), posto que é somente a partir
do efeito gerado numa experiência coletiva frente à obra fílmica que se pode alcançar
este estado. Não obstante, não é somente o efeito que visa a coletividade, mas também a
própria abertura de possibilidades resultante do descompromisso com questões técnicas
presente no Dogma 95, que acaba por proporcionar a democratização da produção cine-
matográfica, que não é mais apenas produto de grandes orçamentos e empresas, o que
expande os horizontes da arte fílmica e a coletiviza. É possível concluir, à visto disto, que,
a despeito do caráter restaurador que o manifesto possui, ele é, igualmente, inovador,
pois responde às demandas que expõe com um arcabouço argumentativo excedente ao
próprio objeto de restauração.
101
uma fluidez de referência quanto ao lugar ao qual o Dogma 95 pertence. Essa realidade,
sobremodo, quando do advento da discussão de um “cinema pós-moderno”, presente,
grosso modo, a partir dos anos 80 do séc. XX, em que as fileiras de modelos de estilo e
linguagem estavam se tornando esgarçadas e a profusão de filmes destituídos de uma
referência de estilo e linguagem iam se acentuando, de modo que “tais filmes desafiaram
as categorias cinematográficas: clássica, modernista, vanguardista, expressionista, surre-
alista – nenhuma delas precisa dar conta de suas especificidades” (PUCCI JR., 2006, p.
363), sedimentou um espaço a ser preenchido. Esse contexto caudaloso de reflexividade
acerca das novas demandas colocadas pela profusão de filmes do período em questão,
alimentadas, também, pelo aprimoramento das técnicas e crescimento do mercado cine-
matográfico, deu sustentação para que, anos depois, surgisse um movimento que fosse
tanto afirmador quanto questionador de algumas das bases deste cenário histórico: o
Dogma 95.
102
horizonte de expectativa sob a qual uma obra foi criada e recebida significa para Jauss re-
velar as questões para as quais ela se constitui como resposta. Assim [...] cada obra deixa
em aberto problemas formais e morais que são retomados pelas obras que lhe sucedem”.
Antes de mais nada, contudo, é a força do Dogma 95 enquanto ferramenta de crítica e re-
flexão sobre a sétima arte que se configura, abrindo caminho para que possamos melhor
compreender o seu lugar dentro da história do cinema.
[...] o realismo não está na própria arte, só o realismo psicológico. O que tem valor é a
verdade artística, isto é, a verdade arrancada da vida vivida, mas purificada de todos
os detalhes inúteis – a verdade filtrada através da alma de um artista. O que tem lugar
na tela, não é a realidade e nem deve ser, porque se fosse a realidade, não seria arte.
(DREYER, 1997, p. 70-71 apud FURUITI, 2003, p. 69)
103
tão da expressão facial é aprofundada no cinema de Dreyer, transpassando a noção de
primeiro plano. Nesse sentido, ressalta-se que
[...] a decupagem afetiva procede através do que o próprio Dreyer chamava de ‘primei-
ros planos corrediços’. Que são sem dúvida um movimento contínuo através do qual
a câmera passa do primeiro plano ao plano médio ou geral, mas sobretudo uma ma-
neira de tratar o plano médio e o plano geral como primeiros planos, por ausência de
profundidade ou supressão da perspectiva. Não se trata mais de plano próximo, mas
de qualquer plano, que possa assumir o estatuto de primeiro plano – as distinções her-
dadas do espaço tendem a desaparecer. Ao suprimir a perspectiva ‘atmosférica’, Dreyer
faz triunfar uma perspectiva propriamente temporal ou mesmo espiritual: esmagando
a terceira dimensão, ele coloca o espaço de suas dimensões em relação imediata com
o afeto, com uma quarta e quinta dimensões, Tempo e Espírito. (DELEUZE, 1983, p. 138)
Este legado deixado por Dreyer, em que nele já se percebia forte contrariedade às
estruturas de produção dominantes, é absorvido e intensificado pelo movimento dina-
104
marquês, quando da formulação de uma espécie de cinema-pensamento. Esta ruptura
em favor de uma maior exploração do aspecto reflexivo da produção cinematográfica
não traz mais apenas a intimidade localizada do sujeito narrativo, desvelado em verdades
identitárias a partir do enredo (como na visão de Dreyer), mas eleva esta reflexividade ao
patamar de fundamento ideológico do movimento dinamarquês, colocando em xeque
não apenas a narrativa, mas também o modus operandi pelo qual ela é elaborada. Nesse
sentido, diferentemente dos críticos das primeiras décadas do cinema, que pretendiam
promover o cinema ao patamar de arte, ou mesmo os posteriores formalistas e realistas,
que advogavam, cada um a sua maneira, por uma essência cinematográfica, o interesse
de Dreyer (e também do Dogma 95) não se debruça sob um valor de marketing, mas sob
o fundamento reflexivo. Logo, pode-se dizer que
Sua obra é independente e livre, sem se auto-afirmar sequer como arte, rejeitando ró-
tulos e definições; é uma busca constante pela provocação do pensar envolto em uma
desconstrução estética que beira à agressão dos sentidos, pois o afeto almejado é uma
forma de escândalo no senso vulgar que ultrapassa toda comodidade que se espera,
comumente, de um cinema promocional. (LIMA, 2018, p. 61)
Todo este aparato conceitual, contudo, remonta a uma tradição ainda mais recua-
da no tempo, influenciada profundamente pela filosofia existencialista do também dina-
marquês Søren Kierkegaard. Esta tradição conceitualiza uma relação comunicativa que é
estabelecida por meio de uma comunicação indireta, que interpela o Indivíduo Singular
na sua relação comunicacional. Neste sentido, a existência a partir de Kierkegaard es-
tabelece um fluxo de reflexividade ao interagir de maneira indireta com os elementos
simbólicos do instante. Frente a isto, vê-se que
105
dura despojada e irônica estabelecida nos ditames dogmáticos conduz a uma percepção
da escritura fílmica pautada na perspectiva de que o idealizador do filme se comunica
com o seu espectador, mas não o faz de maneira direta, transmitindo ideias ou parâme-
tros fixos acerca de alguma determinada questão exposta na narrativa, mas sim por meio
de uma comunicação indireta, em que o espectador não é apenas um sujeito que absor-
ve a informação transmitida na comunicação, mas se insere numa reflexão existencial
acerca de uma determinada questão proposta pelo autor da obra fílmica, colocando-se
na posição de um inspectador (ou Indivíduo Singular, na perspectiva kierkegaardiana)
que, a partir da sua interioridade subjetiva, estabelece uma relação dialética com o obje-
to imagético, dotando-o de uma interpretação própria. Logo, diferentemente da comuni-
cação direta, que estabelece uma ilusão pautada pela comunicação estática, despida de
inquietação existencial, a relação de comunicação proposta pelo Dogma 95 estabelece
uma efetividade na potencialização destas inquietações, conferindo-lhe maior verossi-
milhança e, portanto, desligando-se de ilusões. Logo, “a ironia penetra a existência que,
antes ilusória e superficial, se dissipa para dar lugar a uma existência autêntica que se
lança em direção à verdade” (LIMA, 2018, p. 63).
A influência de Kirkegaard, contudo, possui demais contornos para além do seu as-
pecto puramente comunicativo. Em certa medida, o Dogma 95 se associa a um princípio
do pensamento Kierkegaardiano, no que tange a crítica à modelos estigmatizados de
uma cultura engessada. Sobre a apropriação deste princípio no movimento dinamarquês
e no filme Os Idiotas, Tønder argumenta
106
singularidade. Kierkegaard desenvolve sua versão dessa concepção de regra seguindo
um registro filosófico que destaca o poder incorporado no cômico. Para isso, von Trier
acrescenta sua própria reviravolta cinematográfica: é necessário espantar – que é uma
experiência incorporada – para desvendar a hierarquia que trai o igualitarismo dina-
marquês e liberar a energia necessária para desenvolver outro conjunto de relações.
(TØNDER, 2016, p. 249)
107
Afora os já citados, residem entre as influências do Dogma 95, também, algumas
contribuições que fogem unicamente da produção cinematográfica. Tendo em vista este
fator, é preciso delinear os traços reforçados pelo movimento dinamarquês destas influ-
ências. Inicialmente, portanto, cabe uma aproximação do movimento com a teoria do
dramaturgo alemão Bertolt Brecht, a medida que este
Para aprofundar um pouco mais no que diz respeito a extensão da influência bre-
chtiana no Dogma 95, é preciso, contudo, determinar as bases fundamentais da fortuna
crítica do teórico alemão. Nesse sentido, ao escrever a respeito da Sétima Arte (traçando
um paralelo com os seus escritos sobre teatro), Brecht denuncia o ilusionismo ineren-
te do modo de produção cinematográfico dominante que, pautado em uma metódica
bastante intrincada e engessada, sob a qual – segundo o autor – as bases ideológicas da
sociedade burguesa estão assentadas, transmite os vícios desta cultura dominante. Em
razão disto, Brecht apresenta seu Verfremdungseffekt, técnica sob a qual os fragmentos de
construção da narrativa são expostos, desmantelando a consciência de unidade ilusória
do produto final da obra, posto que os próprios processos de produção da narrativa são
expostos ao espectador durante o desenrolar da trama.
108
quês os fundamentos para se fomentar uma alteração no status de produção do filme,
impulsionada pelos postulados dogmáticos dispostos no manifesto já elencados ante-
riormente, demarcando uma ruptura na mentalidade fílmica do próprio cinema dinamar-
quês. Uma ruptura que, devido ao seu caráter, é uma alteração que traz em seu bojo uma
proposição de novas bases; novos ditames. Uma ruptura dogmática em busca de uma
nova linguagem.
À guisa de (in)conclusão
109
ma 95 enquanto instituição fílmica, dando contornos confirmatórios às bases discursivas
inclusas na proposta dinamarquesa de uma produção de “verdade” fílmica que, no senti-
do simbólico proposto pelo movimento, ela interpreta como residente nesta abertura de
possibilidades proporcionada pela facilitação do processo de produção fílmica.
[...] os filmes de von Trier priorizam práticas formais experimentais que pretendem de-
safiar o assunto, a exibição habitual de filmes e a própria instituição cinematográfica.
Von Trier emprega estratégias de representação que não se preocupam apenas em
reproduzir ações dramáticas, mas em apontar contradições que não podem ser resol-
vidas dentro dos limites da dramaturgia dos filmes. (KOUTSOURAKIS, 2013, p. 15)
110
tese levantada pela pensadora Mette Hjort (2003, 2007), devido a centralidade de sua
perspectiva em todos os demais estudos acerca do Dogma 95. Neste sentido, tentando
apresentar o cenário da indústria cinematográfica da Dinamarca, a autora apresenta in-
formações de como mesmo após a mudança de paradigmas propiciada pelo advento
da cinematografia e persona de Lars von Trier, a intervenção do Estado no fazer fílmico
ainda se fazia presente. Contudo, essa interferência se dava, principalmente, no campo
econômico, não mais cabendo ao Estado interferir no conteúdo dos filmes. Neste cená-
rio, argumenta a autora, a figura de Henning Camre, CEO do Danish Film Institute (DFI),
órgão responsável por desenvolver o cinema dinamarquês, que trouxe novas ideias para
a indústria. A atuação tanto de Camre quando da DFI foram cruciais para que o cinema
dinamarquês sofresse um crescimento significativo. Muitas foram as iniciativas adotadas
para levar à cabo esta meta estipulada, as quais a autora elenca de maneira a esboçar
melhor a orientação da atuação tanto de Camre quanto da DFI. Afirma
Toda esta agenda propositiva engendrada pela DFI contribuiu significativamente para
a expansão interna do mercado dinamarquês, provocando maior fluxo comercial e trazendo
inovações artísticas no que tange a produção cinematográfica em si, tanto no que diz respeito
ao seu processo de produção quanto no próprio conteúdo de seus filmes. A ruptura com todo
este cenário, contudo, se dá com o advento do Dogma 95, definido por Hjort (2003) como “a
resposta de uma pequena nação à globalização”. Neste sentido, a autora relaciona a proposta
dinamarquesa com uma resposta à globalização a partir do fato de que
[...] o Dogma 95 evita o tipo de investimento nostálgico no local, que é uma caracterís-
111
tica dos tipos dominantes de filmes patrimoniais e, portanto, surge como uma atraen-
te resposta não-nacionalista à globalização. A discussão do Dogma 95 como resposta
à globalização envolve, então, um contraste implícito com os filmes de herança nórdi-
ca e dinamarquesa. Enquanto os filmes patrimoniais pertencentes a uma tradição de
pertencimento nacional ou transnacional em primeiro plano de “qualidade”, o Dogma
95 insiste na participação nacional – no mundo da arte e na renovação das tradições
artísticas internacionais. Uma diferença fundamental tem a ver com a participação em
oposição à pertença, com o acesso ao mundo da produção de filmes, e não a algum
conteúdo semântico de primeira ordem. O Dogma 95 [...] é uma tentativa de resistir à
dinâmica de um localismo intensificado alimentado pelo globalismo, concentrando a
atenção, não na herança e na etnia, mas na própria definição da arte cinematográfica
e nas condições de produção dessa arte. (HJORT, 2003, p. 38)
Com isto, a autora enxerga que o Dogma 95 está incluso dentro de um panorama
mais amplo do cinema dinamarquês, marcado por uma progressiva expansão do mer-
cado interno – em razão dos investimentos da DFI – e da figura excêntrica de Lars von
Trier. Seu estudo é, de fato, seminal para o entendimento do lugar do Dogma 95, con-
tudo, a focalização única e exclusivamente no aspecto estruturante das consequências
político-econômicas causadas pelo Dogma 95 dentro de um cenário globalizante parece
apresentar lacunas, posto que desconsidera – e, por vezes, até mesmo ignora – aspectos
diversos da técnica performática e técnica das próprias intenções, motivações e influ-
ências inerentes ao apelo proposto pelo movimento dinamarquês, como apresentamos
anteriormente.
112
REFERÊNCIAS
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Trier. – Illinois: University of Illinois Press, 2010, p. 54-69.
BAINBRIDGE, Caroline. A new vision?: Dogme 95 and the digital revolution. In: ______.
The cinema of Lars von Trier: authenticity and artifice. – Londres: Wallflower Press,
2007, p. 83-101.
HIRATA FILHO, Maurício. O Dogma 95. In: BAPTISTA, Mauro & MASCARELLO, Fernando
(orgs.). Cinema mundial contemporâneo. – Campinas (SP): Papirus, 2008, p. 121-136.
HJORT, Mette. Denmark. In: ______ & PETRIE, Duncan. The cinema of small nations. –
Edimburgo: Edinburgh University Press, 2007, p. 23-42.
______. Dogma 95: a small nation’s response to Globalisation. In: ______ & MACKENZIE,
Scott. Purity and provocation: Dogma 95. – Londres: British Film Institute, 2003, p. 31-47.
MANEVY, Alfredo. Nouvelle vague. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cine-
ma mundial. – Campinas (SP): Papirus, 2006, p. 221-252.
PUCCI JR., Renato Luiz. Cinema pós-moderno. In: MASCARELLO, Fernando (org.). Histó-
ria do cinema mundial. – Campinas (SP): Papirus, 2006, p. 361-378.
113
SCHEPELERN, Peter. ‘Kill your darlings’: Lars von Trier and the origin of Dogma 95. In:
HJORT, Mette & MACKENZIE, Scott. Purity and provocation: Dogma 95. – Londres: Bri-
tish Film Institute, 2003, p. 58-69.
TØNDER, Lars. “At the fringes of one’s consciousness”: Kierkegaard, The Idiots, and the
Politics of Comic Rule Following. In: HONIG, Bonnie & MARSO, Lori J. Politics, theory,
and film: critical encounters with Lars von Trier. – Nova York: Oxford University Press,
2016, p. 247-265.
Fontes
TRIER, Lars Von & VINTERBERG, Thomas. Dogma 95. 1995. Disponível no sítio eletrônico:
https://pov.imv.au.dk/Issue_10/section_1/artc1A.html#i1. Acesso em 22/12/2018.
114
IMAGENS BIOGRÁFICAS
INSTITUCIONAIS
ENTRE FATOS E IMAGENS: ENSAIO SOBRE A BIOGRAFIA
INSTITUCIONAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
I – Introdução
MIRANDA, Maria Imaculada Correia de. Entre fatos e imagens: ensaio sobre a biografia institucional da Uni-
versidade Federal de Goiás, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/
Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás,
2020. p. 116-130.
o período Reuni, chamou-me atenção porque, dentre outros recursos, utiliza-se da foto-
grafia para construir um discurso, uma narrativa institucional sobre o tema em tela.
Assim, parte das imagens ora trabalhadas advém da publicação institucional citada
e estudada por ocasião do mestrado, enquanto outras imagens, embora não façam parte
dela, também compõem a história da UFG. Desse modo, trabalhamos aqui com imagens
de origens diversas, que tem em comum o fato de que podem ser consideradas como
marcos biográficos da UFG, tendo em vista que retratam momentos importantes do cres-
cimento da instituição.
O Reuni foi instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, como parte
das ações que integraram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). Seu objetivo
principal foi o de ampliar o acesso e a permanência na educação superior por meio de
uma série de medidas para retomar o crescimento da educação superior pública, criando
condições para que as IFES promovessem a expansão física, acadêmica e pedagógica da
rede federal de educação superior (BRASIL, 2007). As ações do programa contemplaram
o aumento de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos,
a promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão, dentre outras metas, tendo
como propósito maior a intenção de aumentar o acesso à educação superior pública e,
consequentemente, diminuir as desigualdades sociais no país.
117
estrutura física e de recursos humanos existentes nas IFES” (Brasil, 2007). A premissa era
de que cada IFES que aderisse deveria elaborar seu plano de ações e se esforçar para o
cumprimento das metas estabelecidas no Decreto que previa um acréscimo de 20% ao
orçamento total destinado às IFES. Os recursos adicionais estavam vinculados ao cumpri-
mento das metas estabelecidas para cada etapa, e condicionados a capacidade orçamen-
tária e operacional do MEC. A adesão ao programa, com prazo de duração previsto para
cinco anos, foi estabelecida como voluntária, de modo que a implantação do Reuni teve
início em 2008 e foi concluída em 2012.
Por sua vez, a Universidade Federal de Goiás, criada pela Lei no. 3.834 C, de 14 de
dezembro de 1960, é uma instituição de ensino superior público voltada para o ensino,
pesquisa e extensão. Assim, objetiva transmitir, sistematizar e produzir conhecimentos,
com o intuito de ampliar a formação do ser humano para vida cotidiana e profissional,
de modo a contribuir para a existência de uma sociedade mais justa e democrática (UFG,
2013, p. 12). Registros disponibilizados no site da instituição informam que ao longo dos
59 anos de história da UFG a universidade passou por transformações e pela ampliação
da atuação institucional, de modo que atualmente a UFG possui 102 cursos de graduação
presenciais e 22 mil estudantes, distribuídos em duas regionais, Goiás e Goiânia. Na ca-
pital, a UFG conta com o Câmpus Aparecida de Goiânia, o Câmpus Colemar Natal e Silva
(Praça Universitária) e o Câmpus Samambaia. Na Regional Goiás, a UFG oferece 7 cursos
divididos em duas Unidades Acadêmicas Especiais. Além da graduação, a UFG oferece 78
cursos de pós-graduação stricto sensu entre mestrados, doutorados e mestrados profis-
sionais, com mais de 4.200 alunos2.
118
amplo processo de discussão (grifo nosso), o Conselho Universitário da UFG (Consuni)
aprovou a adesão da UFG ao Reuni com 46 votos a favor e apenas 3 contrários.
Assim, as imagens ora elencadas figuram como suporte dos testemunhos de sujei-
tos históricos da biografia da UFG, e tem o intuito de ampliar nossa percepção a respeito
das mudanças ocorridas na UFG desde a sua criação nos anos de 1960 até os dias atuais.
II – Metodologia
119
UFG – 2006-2013, que traz uma narrativa institucional do período Reuni sob a perspectiva
da gestão da UFG, e da página do Facebook do movimento de estudantes da UFG nome-
ado “As Minas na Reitoria”, ocorrido em junho do ano de 2016.
Figura 1: Ato solene de criação da UFG em 18 de dezembro de 1960. Praça Cívica, Goiânia-GO
Autor: Hélio de Oliveira. Fonte: Acervo Cidarq/UFG, Livro da Gestão UFG (2006-2013), p. 21.
Temos nessa imagem a pueril presença da pungente curiosidade infantil, que pode
ser vista por meio de duas crianças que ali aparecem se esgueirando entre os adultos,
tentando capturar, ao modo delas, o momento solene certamente por elas não entendi-
120
do. A presença dessas crianças pode nos remeter ao anos primeiros de criação da UFG,
permeado de esperanças e norteado por inquietações criativas. Por outro lado, posicio-
nado logo atrás do Presidente da República, Dr. Juscelino Kubitscheck, temos a figura de
um homem portando óculos escuro e uma espécie de quepe militar, aparentando ser al-
guma espécie de autoridade do exército ou similar. Certamente um prenúncio sombrios
dos anos de chumbos4 que sobrevieram sobre a nação brasileira poucos anos depois.
Por trás dessa imagem, que revela o início da consolidação de um sonho, existe
a história de um grupo de pessoas que integravam a sociedade goiana e que ousaram
sonhar com a criação dessa universidade em solo goiano, pleno Brasil central, a despeito
das resistências próprias do contexto social e político dos anos de 1960, tão próximos dos
anos de chumbo que estavam por vir. Nesse sentido HALBWACHS (2006, p. 42) afirma que
não há lembranças que reaparecem sem que de alguma forma seja possível relacioná-las
a um grupo. Assim, de acordo com o Livro da Gestão UFG 2006-2013:
A concretização de uma universidade pública em Goiás foi marcada pela luta persis-
tente de abnegados, verdadeiros guerreiros, ainda em 1960, antes da ditadura militar.
Destaca-se o professor Colemar Natal e Silva, um dos seus fundadores e primeiro Reitor
(1961-1964), que enfrentou aqueles que se posicionaram contrariamente à criação de
mais uma universidade na capital; pois há um ano já havia sido criada a Universidade
Católica de Goiás (UCG). O contexto histórico era favorável, pois estava em curso um
processo para impulsionar o desenvolvimento do Centro-Oeste, tanto que a primeira
denominação extraoficial da instituição foi Universidade do Brasil Central. (UFG, 2013,
p. 21)
4 No Brasil, usamos o termo “anos de chumbo” para descrever um período específico do regime mi-
litar. Igualmente, países como a Argentina, Alemanha e Itália também adotam a expressão para qualificar
sua história na década de 70. Fonte: https://www.todamateria.com.br/anos-de-chumbo/. Acesso em 20 de
julho de 2020.
121
Figura 2: Sede da Faculdade de Direito de Goiás, de 1937 a 1966 – Rua 20, nº 17, Setor Central.
Fonte: Acervo Cidarq/UFG, Livro da Gestão UFG (2006-2013), p. 21.
Por sua vez, a figura 2, nomeada “Sede da Faculdade de Direito de Goiás, de 1937 a
1966” é um registro fotográfico de uma casa com estilo arquitetônico Art Decor5. A ima-
gem traz em primeiro plano o busto de um dos idealizadores da UFG, o já referido Pro-
fessor Colemar Natal e Silva, além de outros elementos panorâmicos como o céu claro
ao fundo, a fiação de energia vinculada a casa e atravessando o céu, bem como parte da
vegetação circunvizinha.
Essa imagem nos remete ao início dos trabalhos da UFG, ao retratar o que atual-
mente é chamado institucionalmente de “Casa da Memória”. Assim, situada na Rua 20,
n.º 19, no Setor Central de Goiânia, é na Casa de Memória que se inicia a história da UFG,
através do diretor da Faculdade de Direito, Professor Colemar Natal e Silva, que se tornou
o primeiro reitor da UFG. De acordo com o Centro de Informação, Documentação e Ar-
quivo – CIDARQ/UFG6:
5 Art Decó é um estilo artístico que surgiu na Europa nos anos 20 e influenciou as artes, moda, cine-
ma, arquitetura, design de interiores, entre outras áreas. Disponível em: <https://www.vivadecora.com.br/
pro/arquitetura/art-deco/>. Acesso em 20 de julho de 2020.
122
ça Federal. Teve sua história iniciada na década de 1930, funcionando como Palácio
Provisório do Governo do Estado de Goiás, tendo sido palco de importantes decisões
que definiram o rumo da nova capital enquanto se erguia o Palácio das Esmeraldas,
assim como abrigou a Faculdade de Direito de Goiás quando houve a transferência da
antiga para a nova capital. De 1969 a 1972 a Casa de Memória abrigou o Conservató-
rio de Música da UFG e em junho de 1973 dá espaço ao Poder Judiciário. Neste ano
ocorreu o ato de assinatura da aquisição do prédio da Rua 20 pela Justiça Federal à
UFG tendo sido tombada como Monumento Histórico através do Despacho n.º 1.086,
de 18 de outubro de 1982, expedido pelo governador Ary Ribeiro Valadão e entregue
à população em 10 de novembro daquele ano, após reforma e restauração de suas
características originais. (CIDARQ/UFG, 2020)
Figura 3: “O Crescimento da UFG”. (Anatoly Kranchenko) - p. 28 e 29, Livro da Gestão UFG (2006-2013).
A figura 3 mostra que entre 2006 e 2013 vários prédios foram construídos na UFG
como pavilhões de salas de aulas e o Centro de Cultura e Eventos da UFG, assim como o
aumento da urbanização do Campus II por meio de abertura de novas vias, adequação
dos acessos para deficientes, asfaltamentos, sinalização de trânsito e paisagismo, embora
123
as reservas verdes do Campus II tenham sido mantidas.
Logo, a figura 3, além de retratar a diminuição dos espaços vazios, mostra também
a construção de uma UFG que cresce de modo significativo a partir das dimensões do
Reuni. Desse modo, a figura 3 apresenta uma vinculação direta e ampla om a primeira di-
mensão do Reuni, que trata da “Ampliação da Oferta de Educação Superior Pública” uma
vez que essa dimensão previa uma expansão do espaço físico para abrigar a expansão da
oferta de vagas contemplada pela primeira dimensão do Programa. Nessa direção o Livro
da Gestão UFG 2006-2013 afirma que:
A figura 4, por sua vez, nomeada: “Inclusão, Acesso e Permanência”, retrata a colação
de grau da primeira turma do curso de Educação Intercultural Indígena da UFG. Assim, a
imagem retrata um aluno indígena em uma tribuna, vestido com trajes acadêmicos em
uma cerimônia de colação de grau, momento em que aparece em primeiro plano, com
o braço erguido, uma alusão clara a um gesto de vitória, de luta, falando ao microfone, o
que sugere que ele tem voz, ou seja, está empoderado no espaço no qual está inserido,
e com uma expressão de felicidade no rosto, sendo certamente a representação do sen-
timento dele e dos seus demais semelhantes, por ele representado em primeiro plano e
que aparecem em segundo plano na fotografia. Assim sendo, a figura 4 também apresen-
ta uma vinculação direta com a segunda dimensão do Reuni, que trata do “Compromisso
Social da Instituição” (acesso, inclusão e permanência), ressaltando o cumprimento da
democratização do acesso ao ensino superior proposta pelo Programa.
124
Figura 4: “Inclusão, Acesso e Permanência”. Fonte: Ascom/UFG, Livro da Gestão UFG (2006-2013, p. 111).
Figura 5: Ocupação da Reitoria da UFG, Sarau do Movimento “As Minas na Reitoria”, 21 de Junho/2016.
Fonte: Acerto fotográfico da Comunidade Minas da Reitoria abrigado em página do Facebook
125
em um cenário noturno. Vamos uma espécie de pátio, com iluminação artificial, pessoas
agrupadas neste espaço, assim como vemos algo que lembra uma chama ou uma foguei-
ra que aparece parcialmente atrás de uma mesa no centro do agrupamento.
126
pliação de debates e inclusão social. Por estes mesmos motivos, apresentamos suges-
tões e contrapontos à resposta da Reitoria da UFG. Pois a mesma está “comprometida
com a superação das desigualdades e o respeito às diferenças e que forme sujeitos
históricos capazes de promover a transformação da sociedade”. (Minas na Reitoria-U-
FG, 2016).
Nesse sentido, consideramos que a imagem aqui retratada figura como histórica
na biografia institucional na medida em que captou um dos tantos momentos de uma
ocupação liderada por estudantes mulheres da UFG, e que foi considerada infrutífera e
127
mesmo mal sucedida, no entanto, colaborou de modo significativo para forçar debates
indigestos para gestão até então silenciados por ela. Sobre a criação da Resolução Con-
suni nº 12/2017, a UFG assim se pronunciou:
IV - Considerações finais
128
seus 60 anos de existência resistindo e respondendo com sabedoria e eficiência aos obs-
táculos inerentes ao caminho. Acima de tudo, as imagens nos levam a pensar nos dife-
rentes diálogos estabelecidos por essa instituição ao longo da sua construção biográfica,
diálogo esse ora tão ameaçado diante do nefasto cenário social e político que o país apre-
senta em pleno ano de 2020.
A despeito desse contexto, a trajetória biográfica da UFG revela que estamos dian-
te de uma instituição que possui todos elementos necessários para seguir avançado no
tempo, tendo em vista o importante papel dela diante da sociedade goiana, bem como
em relação as outras IFES existentes no Brasil. Nesse sentido, entendemos que imagens
institucionais como as que ora expomos, assim como outras que certamente virão, segui-
rão nos contando sobre essa caminhada.
129
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto n° 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o REUNI. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6096.htm>. Acesso
em: 20 julho 2020.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.
130
A MORTE, A MULHER E O
ESTRANGEIRO:
AUTO/BIOGRAFIAS ARTISTICAS
REFLEXÕES SOBRE OS AUTORRETRATOS DE HIERONYMUS BOSCH
Propõe-se aqui fazer uma reflexão a partir de duas imagens do rosto do pintor fla-
mengo Hieronymus Bosch (c.1450 – 1516), realizadas no séculos XV: o primeiro é o seu
autorretrato pintado no Inferno do tríptico O Jardim das Delícias (c.1500), atualmente no
Museu do Prado, Madri; e, o segundo, o famoso retrato conhecido por Autorretrato de
Hieronymus Bosch (15??), desenhado supostamente pelo pintor Pieter Bruegel, O Velho
(1525-1569), atualmente se encontra na Biblioteca de Arras, França.
SILVA, Tiago Varges da. Reflexões sobre os autorretratos de Hieronymus Bosch, In: GRUPO DE ESTUDOS DE
HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia.
Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 132-143.
Os Rostos de Hieronymus Bosch
Esta análise será feita a partir de uma abordagem tríplice, ou seja, contemplando
três dimensões: a formal, a social e a semântica. Artur Freitas no artigo História e imagem
artística: por uma abordagem tríplice (2004), sugere que toda fonte visual pode ser analisa-
da partindo destas três dimensões. Para o autor, esta é uma sugestão metodológica para
o estudo da imagem e não um método rígido.
Desse modo, descrever a imagem como coisa é vê-la como um artefato que, sendo re-
sultado de um trabalho, circulou entre certas instâncias e instituições (galerias, museus,
coleções, exposições públicas ou privadas, acervos etc.), passou por certas mãos (mar-
chands, curadores, críticos, colecionadores etc.), construiu um circuito de relações com
outras “coisas” (relações de troca, de reprodutibilidade, relações com outras obras visuais
e/ou textuais etc.) e eventualmente engendrou certos valores. (FREITAS, 2004, p. 13).
133
Esta análise parte do autorretrato de Hieronymus Bosch, pintado por volta de 1500.
Jhéronimus van Aken; nasceu em Hertogenbosch, uma pequena cidade localizada na
província de Brabante, nos Países Baixos. Tomou como sobrenome uma parte do nome da
cidade, o “bosch”. Nenhum documento preciso testemunha seu nascimento, e, segundo
Gauffreteau-Sévy (1967), o que parece mais verossímil é situá-lo em torno de 1450. Bosch
ficou conhecido por pintar temas moralizantes e de cunho pedagógico e suas obras são
povoadas de representações pictóricas do pecado, cenas infernais e de danação. Bosch
faleceu em 1516 na mesma cidade onde nasceu.
O momento self2 de Bosch está registrado no Inferno Musical, no lado direito do tríp-
tico O Jardim das Delícias (c.1500), obra que é considerada uma de suas mais enigmáticas
criações. Pintura a óleo sobre madeira, no estilo gótico internacional, o tríptico narra os
três primeiros capítulos do livro de Gênesis, a história da criação dos seres humanos e o
envolvimento destes com o pecado e, a danação dos pecadores no Inferno, ambiente
onde Hieronymus Bosch se autorretratou.
Hieronymus Bosch. O Jardim das Delícias (c. 1500) tríptico aberto. Óleo sobre madeira. Dimensões aber-
to 220 × 389 cm.
2 Ato de autorretratar.
134
A trama pintada por Bosch tem início no lado esquerdo chamado de O Paraíso Ter-
restre, no qual é narrada a história da criação do primeiro casal humano, descrita no livro
de Gênesis, Adão e Eva, e o envolvimento destes com o pecado.
Em O Jardim das Delícias, o pintor buscou representar o mundo de seu tempo, se-
gundo ele, povoado de prazeres, sensualidades, imperfeições e pecados. A cena se de-
senvolve em um imenso jardim, com cores claras e fortes. Não há sombra, o que trans-
mite uma sensação de luminodidade; ao centro, em primeiro plano, encontra-se a Fonte
da Juventude e a sua volta casais com expressões felizes mergulham em suas águas. No
segundo plano, em uma pequena lagoa, algumas mulheres se banham, enquanto um
número maior de homens dançam em círculos montados em animais de várias espécies.
E, no terceiro plano, as cenas são mais próximas, casais nus se abraçam e festejam
alegremente, entregando-se ao divertimento, dentro de grandes frutos e bolhas, uma
clara referência ao pecado da gula e, sobretudo, da luxúria. Os animais e os frutos são
recorrentes no Jardim das Delícias, sendo que, para Bosing (1991), Bosch faz uma leitura
visual das canções e dos provérbios obscenos de seu tempo; frutos, animais e estruturas
minerais, por exemplo, fazia parte da literatura flamenga.
[...] muitos dos frutos mordiscados pelos amantes no jardim são metáforas dos órgãos
sexuais; os peixes que aparecem duas vezes no primeiro plano constituem o símbolo
fálico de antigos provérbios holandeses [...] os grandes frutos ocos e as cascas de frutos
para dentro das quais algumas das figuras mergulharam [...] significa uma coisa sem
valor. Bosch não poderia ter escolhido um símbolo do pecado mais adequado, pois foi
um fruto, afinal, que originou a queda de Adão. (BOSING, 1991, p. 53).
Todas as pessoas são representadas nuas, com excessão de uma que se encontra
no canto direito na parte inferior, um homem, que aponta o dedo para uma mulher, su-
gerindo culpá-la por algo. Nesta cena, possivelmente, o homem é Adão e a mulher Eva,
já que ela traz em uma das mãos uma maçã, alegoria do pecado. Eva está envolvida por
um tubo de cristal em uma referência à efemeridade dos prazeres terrenos. A imagem de
Adão vestido, culpando Eva pelo seu pecado, demonstra a condição da mulher na socie-
dade de Bosch.
135
Bosch descreve a sociedade de Brabante3 do século XVI, idealizada por ele como
um ambiente povoado pelos Sete Pecados Capitais4. Dentre eles, a luxúria e a gula são
os pecados mais explorados. Estes são representados pelos festins sexuais, piqueniques
de amor, banquetes de cerejas e framboesas, pintados em tonalidades vibrantes que
expressam uma sensação de tranquilidade. Mas, Bosch coloca o Inferno do outro lado,
enfatizando a danação do pecador.
Na segunda parte, utensílios de uso doméstico como facas, vasos, chaves e sinos são usa-
dos como instrumentos de tortura. O mais enigmático se encontra em destaque ao centro do
quadro, em um pequeno riacho de águas escuras e congeladas, contrastanto com a parte su-
perior que arde em vivas labaredas. Há, ainda, uma criatura com membros inferiores e tronco
que está plantada sobre dois barcos e equibilibra sobre a cabeça uma bandeja com estranhas
criaturas que dançam em círculos enquanto torturam os pecadores que as acompanham.
3 Província dos Países Baixos onde nasceu e viveu Hieronymus Bosch, segundo Gauffreteau-Sévy
(1967), ele nunca saiu de Brabante.
4 Vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Está é a lista os pecados capitas organizada por
São Tomás de Aquino. O termo capital derivar italiano caput, cabeças (LAUAND, 2004).
5 Para São Tomás de Aquino o inferno e o pecado são a imperfeição humana, logo, tudo que está
relacionado ao pecado é imperfeito, inclusive o Inferno (AQUINO, 2006).
136
No centro do quadro infernal encontra-se, em analogia à Fonte da Vida do painel do
Paraíso, o chamo homem-árvore, cujo o torso oval assenta num par de cepos apodre-
cidos que terminam em dois barcos em jeito de sapatos. A sua nádega está caída, de
modo que o olhar do observador depara com a cena da taberna infernal [...]. (BOSING,
1991, p. 58).
137
A expressão de Bosch parece ser indiferente ao ambiente, não há tristeza nem ale-
gria. Ele ignora tudo a sua volta, não ouve os gritos dos danados, nem os ruídos das cha-
mas consumindo as construções no horizonte, não ouve a música tocada pela orquestra
da tortura, composta por uma harpa, um alaúde, uma gaita de fole, uma flauta, uma cor-
neta e um tambor. Bosch não olha para os lados, pois sua atenção está em quem o olha e
seus olhos estão fixados no espectador.
Mas, afinal por que Hieronymus Bosch se retratou no inferno? Sentimento de culpa
frente aos pecados? ou um ato irônio? Na interpretação de Gauffreteau-Sévy (1967), Bos-
ch usou o seu pincel para advertir os pecadores sobre o dramático fim que os esperava,
e que o seu autorretrato entre os danados era uma demonstração de humildade, pois na
mentalidade de sua época considerar-se como bem-aventurado era mal visto, um ato de
arrogância.
Para Bosing (1991), O Jardim das Delícias é uma narrativa pedagógica que ensina e
adverte, mas Bosch usa do estilo burlesco para transmitir seus anseios e impressões sobre
o pecado. É possível identificar na sua obra leituras teológicas, entretanto, a cultura popu-
lar da praça, dos provérbios e dos mitos medievais estão presentes no tríptico, da mesma
forma que estavam em seu inconsciente no momento da criação.
138
Bosch não foi o único artista a se autorretratar em um dos Novíssimos do Homem6.
Temos dois casos de artistas italianos que também o fizeram: Luca Signorelli (1445/1450
– 1523) e Michelangelo (1475 – 1564). No caso Signorelli, o pintor aparece no afresco
Os Condenados que compõe o conjunto do Juízo Final, representado com um demônio,
pintado aproximadamente em 1503, na Catedral de Orvieto. Diferente de Bosch que se
coloca na condição de danado, Signorelli se autorretrata como um demônio, torturando
os condenados.
O inferno de Signorelli, diametralmente oposto o de Bosch, tem luz do dia pleno, sem o
pesadelo das máquinas de tortura ou os monstros grotescos. Os condenados conservam
a dignidade humana e até os próprios demônios estão humanizados. A fé do Renasci-
mento no homem nem se quer no inferno perde a força. (JANSON, 1992, p. 434).
139
genbosch, entre os anos de 1524 ou 1525, e faleceu em 1569.
Este artista foi fortemente influenciado pela obra de Bosch, considerado por Janson
(1992) como o grande pintor flamengo e o primeiro a pintar paisagens não apenas como
plano de fundo. Sua obra, assim como a de Bosch, apresenta uma dificuldade de compre-
ensão. “Não há dúvida que a obra de Hieronymus Bosch o marcou profundamente e que,
sob muitos aspectos, ele é tão difícil de compreender como o seu mestre [...].” (JANSON,
1992, p.493).
Bruegel conhecia bem a obra de Hieronymus Bosch e apreciava tanto o seu estilo
que, talvez essa admiração o levou a desenhar o seu retrato, quiçá com o objetivo de pin-
tá-lo. Mas, por que o fez com uma aparência tão envelhecida?
O Autorretrato de Hieronymus Bosch (c.1560), atribuído a Pieter Bruegel. Desenho a lápis. Biblioteca de Arras.
140
crespos, brancos e volumosos que sai pelas laterais do gorro. Comparando estas carac-
terísticas com o autorretrato de Bosch pintado no Inferno Musical, não é possível inferir,
a priori, uma semelhança, porém quando observamos a expressão de Bosch, percebe-se
uma profunda relação entre as duas obras.
Os conjuntos faciais são idênticos, olhos grandes e vivos, que demonstram olhar
fixo no espectador, nariz volumoso, quase desproporcional ao rosto, e o mais surpreen-
dente, a boca é a mesma, lábios grossos e cerrados. O retrato tem uma semelhança na
expressão de cumplicidade, um olhar atento em quem o olha, parece querer dizer algo,
mas se cala.
Não é possível afirmar com exatidão que Bruegel conhecia outro retrato de Bosch,
que não seja o self do Inferno Musical, no entanto, este, e o seu desenho são os únicos re-
tratos conhecidos de Bosch. O mais provável é que Bruegel ao desenhar, tenha tomado-o
como modelo.
141
No desenho, há dois homens; em primeiro plano, o pintor, Bruegel, e em segundo
plano, o comprador. Velho com cabelo e barbas grandes, o pintor parece estar concluindo
uma obra já encomendada. Este desenho apresenta elementos muito próximos do retra-
to de Hieronymus Bosch e agora não só o gorro, mas novamente as expressões nos fazem
lembrar os dois retratos já analisados.
Os retratos flamengos analisados apresentam uma relação estreita entre si, que
transcende as dimensões formais e sociais, o autorretrato de Bosch, assim como sua obra,
exprime uma complexidade de interpretação. No entanto, alguns indícios formais e histó-
ricos permitem leituras que lançam possibilidades de compreensão de alguns elementos
presentes em sua obra.
142
REFERÊNCIAS
BOSING, Walter. Hieronymus Bosch, cerca de 1450 a 1516, entre o céu e o inferno.
(trad.Casa das Línguas Lda). Benedikt Taschen (volume 11), Taschen, 1991.
FREITAS, Arthur. História e imagem artística: por uma abordagem tríplice. Estudos
Históricos (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 34, n. 34, p. 3-21, 2004.
LAUAND, Luiz Jean. Estudos Introdutórios. In: TOMÁS DE AQUINO. Sobre o Saber (De
Magistro), Os Sete Pecados Capitais. Trad. e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand.
2ª Ed. São Paulo. Martins Fontes, 2004.
A Bíblia Sagrada. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Corri-
gida. Ed. 1995, São Paulo: Sociedade de Bíblia do Brasil, 1995.
DOCUMENTOS ICONOGRÁFICOS:
BOSCH, Hieronymus. O Jardim das Delícias. (tríptico aberto). Museu do Prado, Madri.
Óleo sobre madeira, 220 cm X 390 cm. Disponível em: < https://www.museodelprado.
es/coleccion/obra-de-arte/triptico-del-jardin-de-las-delicias/02388242-6d6a-4e9e-a-
992-e1311eab3609>. Acesso em: 06 de abril de 2020.
_______, Pieter. O Pintor e o Comprador. Desenho. Albertina, Viena. 25,5 cm X 21,5 cm.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:BruegelPortrait.jpg>. Acesso em:
06 de abril de 2020.
143
SONORIDADES BIOMUSICAIS
SONORIDADES DE SI NA VOZ DE ELY CAMARGO
Sua mãe, Élcima, estudou piano e tocava o instrumento em casa, embora muito
pouco, dada às inúmeras tarefas domésticas que carregava sobre si, além dos cuidados
1 Historiadora. Doutoranda em história no PPGH-UFG sob orientação da Dra Heloísa Selma F. Capel.
Mestra em História (PPGH-UFG, 2017). Estagiária docente na Faculdade de História da UFG. Email: ncm.
hist@gmail.com
2 É interessante apontar, principalmente porque este texto aborda relações de gênero, que a mãe de
Ely Camargo é negligenciada na biografia a respeito da artista nos principais veículos de informação social
e musical. Os principais jornais goianos (O Popular e Folha de Goiás), e dicionários e sites voltados para a
música, registram apenas que Ely Camargo é filha de do maestro Joaquim Edson de Camargo. Sua mãe
sequer é mencionada, como se ela tivesse sido gerada e criada apenas pelo pai. Nem mesmo no dicionário
Cravo Albin da música brasileira é mencionado o parentesco materno de Ely Camargo, talvez porque sua
mãe era “apenas” “do lar”? Nem mesmo para citar a descendência de Veiga Valle ou a influência musical da
prática de piano da mãe e seus parentes a figura materna é acionada. A influência do pai e maestro Ca-
margo é o que desponta como principal elo familiar influenciador na biografia escrita acerca dela. O único
documento encontrado até o momento que faz menção à mãe da artista é o documentário “Ely de Canto
a Canto” (2014).
MORAES, Nayara Crístian. Sonoridades de si na voz de Ely Camargo, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA
E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...]
Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 145-155.
que dedicava ao avô de Ely. É o que afirma uma das irmãs da artista, em documentário
produzido acerca de Ely Camargo em 2014. Ely nasceu e cresceu em uma época em que
a desigualdade de gênero se mostrava até mesmo na própria legislação brasileira. De
acordo com a historiadora Maria Amélia Garcia Alencar (2006):
No Brasil das primeiras décadas do século XX, as relações de gênero que se manifesta-
vam na legislação perpetuavam a desigualdade, tendo como pano de fundo o papel
da “mulher moderna” que, de maneira ambígua, deveria ocupar os espaços públicos
como uma extensão do seu lar. Era a mãe exemplar, a esposa honrada, formadora dos
cidadãos, num discurso que combinava individualismo moderno e defesa da honra da
família, concebida como célula primordial da nação (ALENCAR, 2006, p. 161).
O pai de Ely era Joaquim Edson Camargo, professor de música, maestro, músico e
compositor conhecido em Goiás. E suas irmãs cantavam e tocavam piano assim como a
própria. Vários de seus parentes também tocavam e cantavam nas noites goianas. Toda-
via, rapidamente, seu nome dispensava o elo familiar como referência, tornou-se muito
conhecido em Goiás, assim como em outros Estados brasileiros. Ely se formou em farmá-
cia e cursou a chamada Escola Normal. Por uma década lecionou no Colégio Santa clara,
e foi lá que conheceu o primeiro incentivador de seu trabalho como cantora profissional,
Bariani Ortêncio..
146
mil cópias por meio do Bazar Paulistinha. Mas essa parceria também não evoluiu.
Em 1960, devida à sua técnica vocal apurada, fez parte do conjunto vocal Trio Guaí-
ra. Depois de 15 anos trabalhando nas rádios de Goiânia e Brasília, e lecionando no Colé-
gio Santa Clara, Ely Camargo reuniu algum dinheiro e em meados de 1962, pôde, enfim,
ir para São Paulo fazer rádio e partir em busca de realizar seu sonho artístico profissional
como intérprete solista. Levou consigo uma carta de apresentação e indicação de Bariani
Ortêncio e entregou ao produtor cultural Tedy Vieira. Por seu talento e trabalho, ela con-
seguiu não só uma oportunidade na Rádio e TV Tupi, como também gravar seu primeiro
disco solo. Sua primeira apresentação em São Paulo como solista foi na rádio Tupi, com
um violonista que lhe era desconhecido e lá estava, em presença do produtor musical da
rádio. Depois de cantar de modo improvisado, foi imediatamente contratada como can-
tora e radialista. Permaneceu na Tupi por dois anos, fazendo sucesso tanto na rádio como
em seus shows por São Paulo e cidades do interior do Brasil (ELY, 2014)
É muito relevante registrar aqui as palavras de Ely Camargo quando se refere a seu
sonho de gravar discos, porque ao contar sua trajetória a artista coloca o seu sonho pro-
fissional à frente de interesses que a sociedade julgava mais importante para uma moça
do Brasil da época:
Enquanto as moças todas, amigas minhas, pensavam que o máximo, o bacana, era
entrar na igreja com um noivo, em um casamento né (sic), eu incentivava todo mundo
pra casar né, mais eu não (risos). Eu achava que eu não servia para casar né, porque
eu queria ser passarinha, queria voar, e com o casamento você logo arranja um filho
e...(sic). É maravilhoso né. Mas nunca me entusiasmei. Tive até uns pretendentes, mas
não dava não. Eu queria era ir para São Paulo cantar. Meu sonho sempre, sempre, era
ir pra São Paulo fazer carreira, e aqui em Goiânia eu não tinha nenhuma condição de
crescer (ELY, 2014).
Sua irmã afirma que ela saiu de Goiás “com a cara e a coragem, e uma mala”. Confiou
em si mesma. São Paulo era conhecida como a cidade dos artistas, quem queria gravar
deveria ir para lá, onde as grandes gravadoras e rádios ficavam. Nas palavras de Bariani,
naquela época ter um disco era uma honra, era como ter um diploma precioso na parede
(Ibid.).
147
De acordo com Natália Pietra (2018) as mulheres brasileiras nos anos 1960 já esta-
vam integradas ao mercado de trabalho e atuavam em diferentes áreas, embora ganhas-
sem menos e tivessem dificuldades de ascender aos postos de comando, mesmo quando
tinham maior nível de escolaridade, problemas que, infelizmente, ainda enfrentamos.
As vozes masculinas podem melhor ser reproduzidas do que as vozes femininas. A voz
feminina facilmente soaria estridente – mas não pelo fato do gramofone ser incapaz
de captar as freqüências agudas, como é demonstrado pela sua adequada reprodução
da flauta. Preferencialmente, a fim de tornar-se livre, a voz feminina requer a aparência
física do corpo que a carrega. Mas é justamente este corpo que o gramofone elimina,
dando desse modo, a toda voz feminina um som que é pobre e incompleto (ADORNO,
2002, p. 274).
148
de oferecer proteção estatal à família monogâmica e ao casamento indissolúvel. Para tan-
to, propunha, entre outras providências, a “progressiva restrição da admissão das mulhe-
res nos empregos públicos e privados. Não poderão as mulheres ser admitidas senão aos
empregos próprios da natureza feminina e dentro dos estritos limites da conveniência
familiar”. De acordo com Adalberto Paranhos, tratava-se de “reforçar o direcionamento
das energias femininas para funções julgadas compatíveis com sua ‘essência, o que signi-
ficava reafirmar seu enraizamento natural na vida doméstica” (PARANHOS, 2013, p. 136).
Ainda de acordo com Adalberto Paranhos (2015), entretanto, foi apenas na década
de 1970 que o Brasil assistiu a ascensão da mulher no mundo da música discográfica: “em
escala até então inusitada, de compositoras que exploraram um território, o da música
popular brasileira, historicamente dominado por homens” (PARANHOS, 2015, p. 3).
Os laços matrimoniais conferiam às moças, até então, honra moral, à ela, ao marido
e à família. Maria Fernanda B. Bicalho, já em 1989 afirmou o seguinte:
Vemos, portanto, que a elaboração de uma nova identidade da mulher acha-se refe-
rida basicamente à família e aos papéis significativos de esposa e mãe, símbolo do lar
e da moral doméstica. Embora possamos perceber um processo de individualização
da mulher e a valorização de sua trajetória e projeto pessoais, a biografia feminina
continua a se polarizar em torno do casamento, da família e da maternidade, centros
organizadores de sua identidade (BICALHO, 1989, p. 94).
A escolha de Ely Camargo, feita ainda nos anos 50, em renunciar o casamento e a
maternidade, ainda não era muito bem vista, se é que esta escolha para as mulheres já
seja bem aceita nos dias de hoje. No entanto, por ter conseguido lugar de sucesso e proje-
tar Goiás a nível nacional, ela parece ter sido “bem aceita”, embora se tenha rumores acer-
149
ca de sua conduta “pouco feliz”3. Acontece que, tendo em vista o contexto daquele mo-
mento, de movimentos feministas advindas, inclusive, da inovação dos contraceptivos,
como afirma Raquel Soihet, as mulheres vinham lentamente buscando seus interesses e
questionando os papéis que lhes eram atribuídos pela sociedade: “As mulheres estavam
dizendo não a um modelo patriarcal que se lhe impôs, durante séculos apenas a função
de reprodutoras” (SOIHET, 2015, p. 209).
Após ir para São Paulo, Ely gravou 12 LP’s e uma série de discos compactos nas gra-
vadoras Chantecler, RCA Victor e COMEP (Comunicações Edições Paulinas). Seus discos
foram lançados em Portugal, África do Sul e México. Em seu programa de rádio chamado
“Canções da minha terra” dedicou-se à divulgação do folclore nacional e regional, tendo
recebido vários troféus como “melhor intérprete” do folclore brasileiro (ALENCAR, 2011,
p. 350).
A partir de 1964, com o Golpe Civil Militar, ela passa a considerar São Paulo, em
suas próprias palavras, “meio tumultuado”. A vida dos artistas começa a ficar mais agitada
e ela continua sua volta pelo Brasil, porque queria cantar a realidade, cantar o folclore
brasileiro, portanto não servia apenas imaginar. Ao mesmo tempo, continuava gravando
programas de rádio por onde ia e enviava para onde estava contratada em Sâo Paulo.
Entretanto, sempre voltava à sua terra natal, embora, entre idas e vindas, tenha vivo em
São Paulo por quase 30 anos a partir de 1962. Nos anos 2000 a artista passou a integrar,
inclusive, o comitê de cultura goiana (ELY, 2014).
Em 2009 Ely Camargo foi entrevistada pela historiadora Maria Amélia Garcia de
Alencar, pesquisadora da música folclórica, professora aposentada do Programa de Pós-
-Graduação em História da UFG. Em único escrito de cunho historiográfico acerca da ar-
tista, Alencar fez uma retomada dos estudos da cultura popular e do folclore no Brasil e,
a partir desses estudos, publicou o artigo intitulado “O folclore goiano chega ao disco:
autenticidade, identidade e memória”, na revista Dimensões, da UFES. Nele, Alencar dis-
3 As opiniões acerca de suas escolhas poderão ser mais bem exemplificadas em publicação futura
de entrevistas à autora deste trabalho, com pessoas que participaram de sua vida e acompanharam sua
carreira.
150
ponibiliza um pequeno trecho dessa entrevista e relaciona a obra de Ely Camargo como
contribuição para o estudo da cultura goiana e brasileira. Indagada pelo interesse de
pesquisar o folclore brasileiro, a artista responde que precisava “sentir o sabor do povo
cantando” e por isso começou a viajar para diferentes regiões do país a fim de registrar as
festas e performances populares (ALENCAR, 2011, p. 349).
Importante lembrar que neste momento da vida de Ely, uma figura muito impor-
tante se desponta. No documentário “Ely de canto a canto”, a artista indica a amiga Maria
Adalva Cavalcante, conhecida como Estrela Dalva, como principal apoiadora de suas via-
gens ao redor do país entre as décadas de 1960 e 1980. A amiga foi quem teve a ideia de
que viajassem de carro pelo país, registrando sonoridades ao vivo onde encontrassem.
Estrela Dalva dirigia o carro e Ely identificava e registrava os interesses por onde iam, do
Norte ao Sul do país. Adalva diz no documentário que para ela foi uma experiência única
e muito importante da sua vida.
Ely queria registrar o imaginário folclórico manifesto Brasil afora, entrando em con-
tato com diferentes formações de identidades culturais, míticas, religiosas, com diferen-
tes saberes populares, as manifestações originárias do sofrimento e da pobreza, da de-
sigualdade no sertão do país, sul ou norte, Goiás ou Minas Gerais. Assim em sua obra,
as coletividades ou individualidades, se desvelavam em sonoridades. Com o objetivo de
alcançar essa diversidade, gravou ao vivo em diferentes lugares:
Com gravador debaixo do braço, ela registrava cantos que encontrava em merca-
dos populares, praias e festas em diferentes lugares do país. Ouviu e armazenou cantos e
“tocadas” de mendigos, cegos na rua, pagadores de penitências e grupos de festejo que
cantavam em consonância com sua história pessoal e coletiva (ELY, 2014).
De acordo com Alencar, nesse período de coleta e registros sonoros, a artista pas-
sou a frequentar o Museu do Folclore em São Paulo, e foi lá conheceu o pesquisador e
professor Rossini Tavares de Lima, que a auxiliou no conhecimento das músicas que a
própria Ely cantava. Para Alencar, Lima pode ter influenciado a artista na preconização do
método histórico, comparativo e evolutivo, já que a cantora não pertencia formalmente
151
às instituições que promoviam o debate e a pesquisa nesta área: Percebe-se, nas palavras
de Ely, a filiação a um folclorismo romântico, mais ligado à busca das origens e à repro-
dução do ‘sabor do povo cantando’, em outras palavras, a busca por uma “autenticidade”,
que ela buscava preservar. Segundo a historiadora, esta era uma posição “dominante en-
tre os intelectuais goianos ligados à cultura do povo, ancorada numa “visão tradicional,
que enxergava nas raízes culturais algo que deveria ser preservado” (ALENCAR, 2011, p.
349-350).
152
Ely Camargo deu vida às imagens evocadas pelas manifestações de música, dança
popular folclórica e construções identitárias vivenciadas no Brasil. Iconografias musicais
presentes nos álbuns e acervo pessoal da artista, paisagens sonoras e discursos brasilei-
ros, conectados pela obra de Ely Camargo, poderão ser analisadas e “historicizados” em
pesquisas futuras, evocando imagens de um passado não muito distante, que reverbera
até nós em sons e imagens, projetando paisagens, que poderão nos despertar para me-
mórias que permeiam a cultura de várias regiões do país, por meio de uma artista goiana
quase desconhecida na historiografia cultural estadual e nacional.
As buscas da artista pelas autenticidades nos rincões do Brasil, por meio de seus
registros folclóricos, foram acentuadas por José Ramos Tinhorão, o que demarca a boa re-
cepção de sua obra perante um importante crítico da música na época, quando o mesmo
dizia que Ely cantava a “voz anônima de um povo, a alma da própria terra” (TINHORÃO,
1983).
José Ramos Tinhorão disse, na época em questão, que o trabalho de Ely Camargo
chamava atenção porque ela estudou as “manifestações musicais na área das camadas
mais baixas do campo e mesmo dos núcleos de pobres das cidades”. Em sua crítica, men-
ciona que o povo não concebe a sua música como canção, porque a ligam com as danças
ou aos autos, os cânticos populares de caráter religioso, como benditos e hinos de procis-
são, e se prendem também às “manifestações coletivas, ou obedecem a finalidades indivi-
duais, mas específicas, como as canções de embalar, os pregões, as cantigas de velório ou
os cantos de pedir esmolas”. Para ele são atos de cantar ligados à dinâmica cotidiana da
vida, diferente da música popular viabilizada pela indústria cultural fonográfica: “Assim,
153
passa a tornar se um acontecimento altamente importante quando um artista urbano,
desprezando as glórias da comunicação com o público interessado apenas na música
da moda”. Destaca que artistas como Ely, uma artista urbana que empresta “sua voz para
fazer ouvir, através dela, o canto sempre universal do povo” é singular (Ibid.).
154
REFERENCIAS
ADORNO, Theodor W. (1927). The Curves of the Needle. In Essays on Music. (Susan H.
Gillespie et al., Trans.). Berkeley: University of California Press, 2002.
ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. O folclore goiano chega ao disco: autenticidade,
identidade e memória. Dimensões - Revista de História da UFES, v. 26, 2011, p. 340-356.
______. Crimes da Paixão: valores morais e normas de conduta na música popular brasi-
leira. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 13, p. 151-162, jul./dez. 2006.
ELY de canto a canto. Direção: Thiago Camargo e Júlio Vann. Produção: César Kiss, Thia-
go Camargo e Júlio Vann. Roteiro: Thiago Camargo, Júlio Vann e Paulo GC Miranda.
Produção Executiva: César Kiss. Montagem e Edição: Thiago Camargo, Júlio Vann e Érika
Mariano. Captação de Imagens: César Kiss, Júlio Vann e Érika Mariano. Fotografias e Still:
Júlio Vann e Érika Mariano. Som Direto: Thiago Camargo e Bruno “Bicudo” Ribeiro. Dire-
ção de Arte: Ricardo de Podesta. Pós-Produção e Efeitos Visuais: Rildo Farias. Mixagem e
Edição de Som: Thiago Camargo. Entrevistados: Elci Camargo Romero, Elvane Camargo
Tiemann, Waldomiro Bariani Ortêncio, Álvaro Catelan, Dama da Conceição, José Men-
donça Telles, Maria Dalva Cavalcante. Goiânia: Mandra Filmes, 2014. 1 DVD (65 min),
son., color., 8 mm.
FILHO, Marcos Edson Cardoso. Vozes sem os seus corpos: o som da canção gravada por
cantoras no começo do século XX no Brasil. In: Congresso Anual da Anppom, 17., 2007,
São Paulo. Anais do XVII Congresso Anual da Anppom. São Paulo: 2007.
PARANHOS, Adalberto. Além das amélias: música popular e relações de gênero sob o
“Estado Novo”. ArtCultura, Uberlândia, v. 15, n. 27, p. 133-144, jul./dez. 2013.
TINHORÃO, José Ramos. Cantigas do Povo. In: CAMARGO, Ely. Cantigas do povo: água
da fonte. São Paulo: Edições Paulistinas Discos, 1983. 1 LP, 33 rpm.
155
“JEITO GOIANO”: ELEMENTOS AUTOBIOGRÁFICOS E IDENTITÁRIOS NA
CANÇÃO POPULAR GOIANA
Este texto tem como propósito apresentar algumas hipóteses/ideias de uma pes-
quisa de doutorado em andamento, cujo título é: Entre Acordes da Goianidade: identi-
dade e regionalismos na música goiana (1992-2013). No que se refere especificamente a
esse artigo a ideia principal caminha no sentido de explorar como elementos autobiográ-
ficos podem ser identificados em narrativas identitárias no que diz respeito às narrativas
envolvendo a ideia de goianidade. Tais elementos são vislumbrados por meio de entre-
vistas com artistas goianos de música popular goiana – nesse texto em específico, consi-
dero trechos de entrevista com a cantora Maria Eugênia2 -, juntamente com a canção Jeito
Goiano dos cantores Luiz Augusto e Amauri Garcia. Tanto a música quanto trechos da
entrevista, de algum modo, acionam questões referentes ao debate identitário do Estado
de Goiás, dialogando desse modo, com o exercício de construção das narrativas identitá-
rias para Goiás/Goiânia.
2 Em 2018, com o objetivo de contribuir com a pesquisa do Doutorado, fiz uma entrevista com a
cantora Maria Eugênia em sua residência. Na ocasião conversamos sobre músicas, identidade, goianidade
e obviamente sobre sua carreira.
SANTOS, Inglas Ferreira Neiva dos. “Jeito goiano”: elementos autobiográficos e identitários na canção popu-
lar goiana, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na Histó-
ria e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 156-167.
te em uma narrativa autobiográfica, já que ambos os exercícios se constituem em uma
tentativa de localização, de identificação. Com base nessa premissa, faz-se interessante
uma breve incursão aos estudos em torno do debate identitário.
A concepção de identidade que orienta esse estudo filia-se aos estudos que conce-
bem a identidade enquanto móvel, atenta às forças envolvidas em sua construção. Logo,
“a identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato – seja da natureza, seja
cultural. A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente” (SILVA, 2014, p.
96), menos ainda homogênea, acabada, imutável. Por essa condição, ela deve ser enten-
dida como uma construção, uma implicação, um contínuo reinventar-se. Sob esse prisma
portanto, a identidade é compreendida enquanto inconstante, contraditória, fragmen-
tada, inconsistente, inacabada, estando inevitavelmente, ligada às estruturas discursivas
(SILVA, 2014, p. 96).
A partir dessa lógica relacional do debate identitário, segundo Agier (2001), faz-se
necessário pensar a si mesmo a partir de um olhar externo, ou até mesmo de vários olha-
res que se cruzam. Nessa perspectiva somos sempre o outro de outrem, revelando que
no delineamento de um campo identitário, o outro, contribui para o estabelecimento das
fronteiras e do entendimento do próprio eu. É sob tal perspectiva que a ideia de “goiani-
dade” – enquanto expressão identitária regional – está aqui sendo pensada, no interior
do jogo da construção identitária.
Nesse jogo relacional, no qual a identidade não deve ser apreendida enquanto es-
tática, mas dinâmica, assumindo diferentes matizes - no que tange às distintas socieda-
des e períodos – parece-nos interessante um rápido deambulo acerca de sua acepção e
157
operacionalização. Os estudos identitários inicialmente estiveram bastante vinculados à
formação das identidades nacionais e seus litígios, assim entender as forças e mecanis-
mos de construção dessas dadas identidades se configurou por longo período em objeto
de estudo – sobretudo se considerado a formação dos Estados nacionais, especialmente
no final do século XVIII, XIX e início do XX. De modo geral o que se entrevê ao longo dos
estudos identitários, sobretudo das construções identitárias nacionais, é que as socieda-
des – pelo menos a grande maioria - caminharam para uma complexidade sem prece-
dentes e parece não parar, suscitando uma (re) leitura da acepção bastante difundida da
ideia de identidade nacional. Em tese, os estudos vinculados à formação das primeiras
identidades nacionais – europeias e depois americanas – passaram por um processo de
“desconstrução” em torno de suas verdades, reverberando algumas reflexões. O proces-
so de globalização trouxe consigo novas demandas em torno do que se entendia como
sendo uma identidade nacional, quase sempre posta como livre de conflitos e por cer-
to, homogênea. Segundo Hall parece pouco provável que esse processo de globalização
simplesmente venha aniquilar com as identidades nacionais, sendo mais provável uma
produção concomitante de novas identificações “globais”, bem como com novas identifi-
cações “locais” (HALL, 2015, p. 45).
5 Segundo o autor o “conceito de hibridação é útil em algumas pesquisas para abranger conjunta-
mente contatos interculturais que costumam receber nomes diferentes: as fusões raciais ou étnicas deno-
minadas mestiçagem, o sincretismo de crenças e também outras misturas modernas entre o artesanal e o
industrial, o culto e o popular, o escrito e o visual nas mensagens midiáticas” (CANCLINI, 2013, p. XXVII). O
autor busca assim definir hibridação: “[...] processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discre-
tas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas (CANCLI-
NI, 2013, p. XIX).
158
identidades são compostas por um arcabouço simbólico que atribui sentido as vivências
e por certo, sentido às formas de existência; criando, por conseguinte, significados aos
membros de uma sociedade, entende-se que na construção identitária de qualquer gru-
po, elementos da memória são ativados como modo dar sentido e coerência entre a ideia
de passado e presente.
É com base em tal cenário que tais ponderações em torno da acepção de identida-
de, assessora a ideia de goianidade, possibilitando identificar elementos que podem ser
pontuados enquanto constituintes do “jeito goiano de ser”, de uma conjecturada identi-
dade do Estado. Nessa operação algumas qualidades são eleitas como parte integrante
dessa dada identidade, em detrimento de outras.
É exatamente sobre tal perspectiva, que a canção Jeito Goiano bem como as narra-
tivas da cantora Maria Eugênia permitem identificar traços de narrativas identitárias que
são afins e complementares. Tanto a canção quanto a narrativa na qual a cantora narra
159
seu histórico (parentesco), se configuram em narrativas com teor autobiográfico, sendo
possível identificar elementos de uma escrita de si, sobretudo no que se refere à narrativa
da cantora.
A escrita autobiográfica, durante muito tempo, esteve ligada aos sujeitos públicos
e/ou eruditos, sendo possível relacioná-la aos grandes feitos, às histórias individuais in-
terpretadas como extraordinárias que de modo algum poderiam perder-se no tempo.
Essa leitura, inevitavelmente, fundamentou-se na clássica abordagem na qual os feitos
heroicos são tratados como extraordinariamente capazes de provocar mudanças, e con-
sequentemente de serem narrados e exaltados, advogando o princípio da existência de
indivíduos (heróis) repletos de qualidades, envoltos em uma aura quase que de “predes-
tinação histórica”.
160
que se refere a presente pesquisa às narrativas da cantora Maria Eugênia não advém de
uma publicação de um livro autobiográfico propriamente dito, mas de narrativas de si,
expressas em entrevista, na qual a cantora tece uma espécie de quadro biográfico linear,
de alguns membros de sua família até chegar à narrativa de si. Nascida em Goiânia, se-
gundo a cantora Maria Eugênia, desde muito cedo as influências artístico-musicais mar-
caram sua vida e suas escolhas profissionais. O trecho selecionado da entrevista com a
cantora, nos permite identificar o que Lejeune chama de “narrativa retrospectiva” de sua
existência, de suas experiências. As respostas da cantora, advêm dos questionamentos a
ela direcionados acerca do Projeto/CD Noites Goiana, e de sua origem enquanto artista
(linhagem familiar).
MARIA EUGÊNIA: Então, do Noites Goianas nós fizemos o Canto da Gente, que era o
Pádua, João Caetano, Fernando Perillo e eu. Que foi outro sucesso, assim, nós grava-
mos várias músicas, uma de Goiás, da Cidade de Goiás quando a Cidade de Goiás teve
aquela enchente. Nós gravamos uma música linda que ficou super marcada fizemos
anos de shows assim, que deram super certo. Quer dizer as pessoas gostam quando
elas veem essa goianidade explícita né.
MARIA EUGÊNIA: [...] primeira coisa de estruturar essa identidade, depois de ter orgu-
lho dessa identidade, e falar sim, é assim. Porque tem muita gente - jornalista que fala
assim, já falaram assim da gente do Noites Goianas e não sei o quê - e falam assim “E
quem quiser pequi que vá catar na terra”. Tipo assim, depreciando a gente, por que a
gente fala de Goiás e da goianidade (Entrevista realizada pela autora, na residência da
cantora em 09/05/2018).
[...]
[...] eu venho de duas famílias tradicionais goianas, Alencastro Veiga e Pacheco, são
duas famílias que ajudaram a construir o Estado. Então eu tenho essa coisa da goia-
nidade na minha raiz histórica de sangue. Estudei música desde sempre, eu me lem-
bro de saber ler partitura antes de saber ler. Eu estudo música desde os quatro anos,
porque é uma coisa muito infiltrada na minha família, então eu aprendi inicialmente a
tocar piano, depois sempre me interessei muito por teatro, por poesia, pela a arte em
geral.
[...]
Tenho toda ligação, a vertente do meu pai, eu descendo do Veiga Vale, não precisa
dizer mais nada né. Alencastro Veiga, Veiga Jardim, é uma família que se orgulhava
em ter fotógrafos, bailarinos, artistas. Tem um monte de artistas, meu avô tocava vio-
lino de ouvido, tia Fifi, Maria Lucy Veiga Teixeira é uma maestrina que estudou com
Vila Lobos, tá viva até hoje com 90 anos, tocando piano lindamente, foi uma das fun-
161
dadoras do conservatório de música. Enfim, é uma família muito bonita. Da parte da
minha mãe, eu sou descendente de Altamiro Pacheco, Altamiro Pacheco, foi meu tio
avô, uma pessoa que também tem uma história muito bonita, que ele formou todos os
irmãos, ele perdeu o pai e aí ele resolveu sustentar os irmãos depois ele se formou. Ele
que, por exemplo, que doou a casa dele pra Academia, Academia Goiana de Letras, ele
comprava livros. Era um intelectual né. Então assim, eu acho bacana isso, descender de
duas famílias que se importavam com esse tipo de coisa.
[...]
E na universidade naquela época dos anos 80 e tal, tinha uma efervescência cultural
muito grande eu entrei pra fazer um... Assim, eu não me interessava em cantar, não era
o meu sonho, a minha meta. Mas eu era muito nervosa, eu suava muito na mão quan-
do eu ia me apresentar no piano, ficava muito nervosa; resolvi, eu tava acompanhan-
do umas cantoras do piano e tinha lá erudita e tinha popular. Falei assim “ha eu vou
cantar para me exercitar”, (sorrisos) foi aí que surgiu assim, esse encanto pelo palco pra
cantar também. Eu vi que quando eu virei pra frente pra falar coisas para as pessoas,
eu me identifiquei com aquilo. E de uma certa maneira as pessoas me identificaram
como cantora. Acho que havia na época, uma necessidade de cantoras, havia poucas
interpretes que cantavam as músicas dos compositores goianos. Então eu já surgi as-
sim... os compositores foram se apresentando, vieram e pediram pra cantar, então eu
fiquei encantada com a música goiana desde o início da minha, do meu interesse foi
pelo canto popular. Então aí deste festival que eu ganhei por acaso eu esqueci a letra
aí soltei a voz, fiquei chorando porque eu esqueci a letra, mas as pessoas estavam
pensando que eu estava chorando de emoção. (risos) Aí eu via né - isso muito breve -
a música erudita tem uma estrutura muito firme, se você errar qualquer coisa, aquilo
desmorona, e na música popular não; você tem, você pode dar um jeito de fazer um
arranjo que a música se torne sua de uma maneira diferente. Então eu esqueci a letra,
improvisei, aí quando a letra voltou na minha cabeça eu terminei a música e com isso
foram várias descobertas. Descobertas da voz, descobertas de como é gostoso fazer
isso, descoberta da música feita em Goiás. Então logo imediatamente eu me interessei
pelo compositor (Entrevista concedida à autora em 09/05/2018 na residência da can-
tora Maria Eugênia).
A relação da cantora com a elite econômica e cultural da capital fica evidente, en-
trevendo-se que a música popular goiana, assim como a MPB (Música Popular Brasileira)
transcorreu entre as camadas sociais mais abastadas e com relativo nível intelectual. De
modo claro, é possível observar que o público dos artistas goianos4 apresenta perfil simi-
4 Os artistas referidos dizem respeito ao objeto de pesquisa da Tese, dentre eles a cantora Maria
Eugênia. A pesquisa do Doutorado propõe entender as relações entre a música e seu tempo, compreen-
dendo-a como uma possível linguagem de interpretação e expressão da sociedade com a qual interage.
Para tanto, utilizamos como ponto de referência o Movimento da Goianidade impetrado pela a Agência
162
lar, trata-se se, em grande escala, de um público com relativo nível de instrução (jovens
universitários e pessoas mais velhas), os quais, mormente ocupam a região central da
capital5. Ao observar as narrativas da cantora Maria Eugênia em tais fragmentos (origem,
linhagem familiar, iniciação musical), verifica-se claramente que elas se entrecruzam com
as narrativas identitárias do Estado de Goiás, no que diz respeito às narrativas oficiais.
Nesse sentido, as narrativas da cantora bem como parte das obras musicais que ele inter-
preta, dialogam com as narrativas identitárias do Estado, contribuindo, portanto com as
narrativas da goianidade. São narrativas, a exemplo da canção Jeito Goiano, que se confi-
guram em instrumentos de mediação e representação de narrativas identitárias, que de
modo claro, acionam memórias, que não tem como intenção serem apenas de seus com-
positores/artistas, mas outrossim, do coletivo. São autobiografias que apresentam uma
miscelânea entre o vivido e as experiências adquiridas por tabela, no bojo do convívio
social, entremeado por memórias.
No que diz respeito à canção Jeito Goiano, os autores da canção narram o modo
goiano de ser, todavia, falando de si mesmo, de modo que a narrativa se desenvolve na
primeira pessoa do singular, o que torna possível inferir que os compositores estão falan-
do de si mesmo.
Goiana de Imprensa (AGI) no início da década de 1990, cuja sua principal expressão foi a publicação de uma
única edição de uma revista denominada “Goianidade”, em 1992. Tal movimento trouxe dentre várias ma-
nifestações culturais um grupo de cantores goianos Maria Eugênia, Pádua, Luiz Augusto, Fernando Perillo,
João Caetano e Marcelo Barra – dentre outros, designados pela revista de “cantores da terra” e, por nós aqui
nomeados de cantores de “música popular goiana”. Considerando a obra e, em certa proporção, a vida de
tais artistas, buscou-se relacioná-las à dinâmica cultural do Estado de Goiás e sua capital, Goiânia, entre os
anos de 1992 e 2013.
5 Grande parte desses cantores mencionados, dentre outros, consolidaram suas carreiras pelos fes-
tivais da década de 1960 e 70, pelos bailes e especialmente pelos bares da capital. Vale ressaltar que esses
bares em geral lacalizavam-se em regiões nobres de Goiânia, dentre elas a Praça Tamandaré. Em entrevista
Fernando Perillo informa ter cantado em “dois bares que foram muito importantes, que foi o Círios que
foi na década de 70, e logo no começo da década de 80 no Zero Bala, aqui na Praça Tamandaré que eram
frequentados por universitários, jornalistas” (Entrevista concedida à autora em 17/04/2018 na residência
do cantor). Ao ser perguntado sobre o perfil do público Fernando Perillo afirma tratar-se de um público
intelectual, onde o cantor poderia tocar o que havia de melhor. O artista ressaltou ainda que “tinha uma
cobrança, meu repertório tinha que ter uma atualidade muito grande, as pessoas cobravam, e a música
popular brasileira - na década de 70 - foi o auge da música popular brasileira, em termo de... Foi na década
70 e a gente aproveitou isso, era uma música extraordinária” (Entrevista concedida à autora em 17/04/2018
na residência do cantor).
163
Jeito Goiano6
(Luiz Augusto, Amauri Garcia e Hamilton Carneiro - 2012)
164
Vermelho que nem a brasa
Sou goiano de corpo e alma
Sou de cultivar a calma
Pescando na água rasa
De modo claro o que fica evidente em tal canção é o esforço – tanto do letrista,
quanto do responsável pela melodia – em evidenciar por meio de uma linguagem artís-
tica o “jeito goiano de ser”. A narrativa caminha por reverberar a ideia, de que há elemen-
tos que podem ser identificados como autenticamente goianos, de modo a subentender
que, ser goiano é conjugar os adjetivos traçados pela canção. Embora seja uma narrativa
de si, isto é, que elege uma maneira de ser de quem narra a canção, expressa, todavia, de
que ser goiano extrapola o jeito individual de quem narra, dando a entender tratar-se
de um eu coletivo. Nesse âmago, o conceito de “tradição inventada” trabalhado por Eric
Hobsbawm e Terence Ranger parece nos ajudar a entender o esforço do compositor em
torno da manutenção da tradição7 descrita na música. Por “tradição inventada”
7 O Termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as
“tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram
165
[...] entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar cer-
tos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automa-
ticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, ten-
ta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (HOBSBAWM,
RANGER 1984, p. 7).
Assim, essas construções partem a partir dos interesses do presente, de modo que
essas memórias ao serem organizadas dão linearidade e coerência aos episódios narra-
dos, havendo portanto, um forte apelo identitário, pois é a partir de tal enredo – do loca-
lizar-se no mundo e no tempo – que as narrativas se enleiam e passam a adquirir sentido,
tanto para quem narra, quanto para quem de algum modo se identifica com o fato nar-
rado.
de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado no tempo – às vezes coisas de
poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez (HOBSBAWM, RANGER 1984, p. 7).
166
REFERÊNCIAS
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Moderni-
dade – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferen-
ça: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
REVISTA
167
PERFORMANCES BIOGRÁFICAS
AMARILDO JACINTO: FOLIA E PAIXÃO DO GRUPO DESENCANTO
Introdução
O Grupo Teatral Desencanto tornou-se uma companhia teatral atuante nas manifes-
tações culturais e religiosas de Trindade, tendo início em 1988, marcado por uma singula-
ridade, pois transita em vários momentos de organização e participação de festividades
regionais por meio da produção de vestimentas e estilos multiplurais de arte, seja pelo
teatro, pela dança e outras expressões. A inserção do grupo nessas produções é revelada
por sua estética diversificada, ora profanos no Carnaval de Rua e peças diversificadas, ora
cenários sagrados na Caminhada de Fé com peças teatrais sacras.
1 Mestre em Ciências Sociais e humanidades pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). Especialista
em Docência Universitária, pós-graduada em MBA gestão executiva com ênfase em liderança e graduada
em Design de Moda pela UNIVERSO. Graduada em Pedagogia pela FALBE. neliaueg@gmail.com. Partici-
pante do grupo de estudos GEFOPI. E-mail: neliafinotti@gmail.com. Contato (62) 998085280. https://orcid.
org/0000-0002-4946-651X
FINOTTI, Nélia Cristina Pinheiro. Amarildo Jacinto: folia e paixão do Grupo Desencanto, In: GRUPO DE ESTU-
DOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020,
Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 169-178.
apresentar a pesquisa realizada, in loco, no ano de 2018 e 2019, com o Grupo Teatral De-
sencanto. Assim como aconteceu nossa participação nas reuniões e encontros do grupo,
também houve o registro em diário de campo e a realização de entrevistas semiestrutu-
radas com os membros do grupo no processo de construção do carnaval, ou seja, dos
figurinos, adereços e carros alegóricos.
170
Para dar vida e cor aos figurinos, a escola contou com a participação dos integran-
tes do Grupo e da comunidade para o desenvolvimento desses figurinos para compor os
blocos do carnaval. Assim, a escola apresentou sete alas no carnaval de 2018, sendo que
a primeira trouxe a Comissão de Frente, representando os soldados romanos da grande
Caminhada de Fé; a segunda foi do ballet, trazendo a dança sempre presente no Grupo
Desencanto; a terceira, a Ala das Baianas, para falar da paz e da harmonia nas atividades
do grupo; a quarta foi a Ala Infantil, para representar as artes plásticas; a quinta foi das
Porta-bandeiras, representando a escola de samba; a sexta ala, dos Mestres-salas, arle-
quins representando o teatro; e a sétima ala foi a Bateria, trazendo a música em todas as
artes.
2 JACINTO, 2019a.
171
O carnaval desde os primórdios, foi marcado pela valorização da sexualidade nos
figurinos apresentados pela escola, visto que há uma sexualidade presente e, mesmo o
Desencanto tendo uma ligação com a religiosidade local, percebe-se que, no carnaval,
não há uma legitimação do grupo em relação ao sagrado da cidade. São buscados figuri-
nos que possam representar o carnaval brasileiro, ou seja, com muita brincadeiras, alegria
e sensualidade. Nesse sentido, Weber (1999) discorre sobre as relações entre a religiosi-
dade e a sexualidade, em parte conscientes, em parte inconscientes, às vezes direta, às
vezes indiretamente, são cada vez mais extraordinariamente íntimas. O autor ainda relata
que a exaltação sexual é tipicamente um componente da primitiva ação social religiosa
dos leigos.
Weber (2015, p. 67) relata que “particularmente, há uma tensão entre a ética da fra-
ternidade religiosa e as esferas da vida estética e erótica”. No carnaval, é notável essa ten-
são entre a religiosidade, a arte e a sexualidade, e a peça traz ao grupo esta oportunidade
de inspiração e criação por meio da religiosidade. Trindade por ser uma cidade conside-
rada religiosa, o carnaval de rua do Grupo Desencanto pode estar em desacordo com os
padrões religiosos, por ser consideradas por muitos como uma festa pagã. Em várias alas
do carnaval estão presentes figurinos com acentuada sexualidade, alas essas que podem
ser elaboradas e utilizadas de forma consciente ou não da representatividade sensual
que tais figurinos exibem.
172
O samba-enredo trouxe uma letra que conta a história do folclore brasileiro, uma
brincadeira para dizer o que temos, e onde se encontram, apresentando sua identidade,
cantando a cultura, a arte e o Desencanto. E como não poderia faltar, a melodia das mar-
chinhas de carnaval.
173
Vida, paixão e morte de Jesus
Neste tópico, é apresentada a pesquisa realizada in loco, nos anos de 2018 e 2019,
junto ao Grupo Teatral Desencanto na representação da Vida, Paixão e Morte de Jesus
Cristo. A metodologia foi participação nas reuniões e encontros do grupo, assim como o
registro em diário de campo e a realização de entrevistas semiestruturadas com os mem-
bros no processo de construção da peça teatral.
No ano de 2018 foram utilizados mais de três mil figurinos e acessórios para a peça,
com um total de mais ou menos seiscentos atores. Há uma grande variedade de trocas de
figurinos no decorrer da apresentação – até seis trocas de figurinos por ator – e, por isso,
o grupo conta com cinco mil, setecentas e quarenta e oito peças de roupa para a encena-
ção da Caminhada de Fé.
O texto da encenação da Rodovia dos Romeiros foi escrito por Amarildo Jacinto, a cada
ano, ele escreve o início da cena de forma diferente. Em 2018, o grupo iniciou a apresentação no
primeiro painel com a história de Jesus no deserto por 40 dias e finalizou com Jesus no templo
sagrado expulsando os que ali faziam comércio. Nesse painel, acontecem mais de dez cenas que
contam a vida de Jesus para depois, a partir do segundo até o sétimo ocorrer o restante da peça.
174
No segundo momento da encenação, as cenas geralmente começam com músicas,
iniciando os preparativos para a Santa Ceia, a traição de Judas e com a saída dos guar-
das para prender Jesus. O terceiro painel começa com no mercado central de Jerusalém,
depois Jesus no horto e finaliza com a prisão de Jesus. No quarto ponto da Via-Sacra, o
espetáculo tem início com as mulheres arrumado o palácio de Caifás; em seguida, o julga-
mento de Jesus e termina com o suicídio de Judas. Quando a encenação chega ao quinto
painel, acontece a condenação de Jesus e o encerramento é com Jesus levando a Cruz,
juntamente com o cortejo para a crucificação. No sexto ato, Jesus cai pela primeira vez e,
carregando a cruz, ele caminha pela rodovia que simboliza o trajeto até o calvário. O sé-
timo e último painel acontece a crucificação de Jesus e a peça é finalizada com a entrega
do corpo de Jesus à sua mãe Maria.
175
A cena retrata o sofrimento de Jesus, com uma corroa de espinhos em sua cabe-
ça, cuja narrativa pode ser interpretada como um Jesus martirizado na cruz para tirar o
pecado do mundo com seu próprio sangue derramado por todos. Nesse ínterim, relata
Silveira; Reimer (2012, p. 69) que “através da narrativa religiosa são estabelecidos mode-
los que, às vezes, se expressam através de rituais e da vivência diária. Os mitos explicam
o surgimento de determinados fenômenos/eventos, comportamentos e posturas diante
do mundo”. A encenação tem sido retratada há mais de trinta anos como um evento reli-
gioso, sendo representado por seus rituais e mitos, em suas cores e formas, e podem ser
interpretadas como a salvação do mundo, bastante explorada pelo Grupo Desencanto.
Considerações
176
de, a comunidade e a família estão presentes nesse fazer carnaval dentro e fora da Asso-
ciação Grupo Teatral Desencanto.
177
REFERENCIAS
SILVEIRA, João Paulo de Paula; REIMER, Haroldo. Prolegômenos para uma história cultu-
ral das religiões. In: REIMER, Haroldo; SILVEIRA, João Paulo de Paula; PROTO, Leonardo
Venicius Parreira (Coords.). Primeiros Diálogos: Uma introdução à reflexão histórica.
São Leopoldo: Oikos, 2012.
VIANA, Fausto; BASSI, Carolina Rosane. Traje de cena, traje de folguedo. São Paulo:
Estação das Letras e Cores, 2014.
178
BIOMEMÓRIAS ENTRE IMAGENS
E MONUMENTOS
“A PRÓXIMA FRONTERA DOS QUADRINHOS”: UM ESTUDO DE
CASO SOBRE A ARGENTINIDADE NA REVISTA HORA
CERO SEMANAL (1957-1961)
Introdução
A partir dos anos de 1950, as Histórias em Quadrinhos (HQs) ganharam força inédita
dentro da perspectiva industrial e cultural na Argentina. Fruto de um avanço tecnológico
da imprensa e da circulação massiva das narrativas impressas, a popularidade das publi-
cações consagrou-se como “Idade de Ouro” na bibliografia geral sobre o tema. Em meio
aos estudos dos impressos e da sociologia das obras, a origem da expressão se viabili-
za pela intensidade de produção (importada e exportada) e de consumo das historietas
frente a uma nova geração de leitores. Assim, considerando o avanço e aperfeiçoamento
mercadológico acerca das revistas em quadrinhos, pontuamos as especificidades edito-
riais de um grupo em específico: o grupo editorial Frontera.
1 Graduado em História pela Universidade Federal de Goiás. Atual mestrando pelo programa de pós
graduação da faculdade de História, também, pela UFG. Contato: lpires@discente.ufg.br
NASCIMENTO, Leonardo Pires. “A próxima frontera dos quadrinhos”: um estudo de caso sobre a argentini-
dade na Revista Hora Cero Semanal (1957-1961), In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM,
X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade
Federal de Goiás, 2020. p. 180-195.
formado por diferentes gêneros e extratos sociais. Assim, pontuando a perspectiva edi-
ficante dos títulos que davam cabo das revistas, a proposta de relacionamento da arte
com o público vai além dos padrões naturais da cultura de massa até então. Reiterando a
singularidade do grupo editorial nos anos cinquenta, as revistas sintetizavam um avanço
das artes (roteiros e desenhos) para a consolidação de um campo editorial alinhado às
perspectivas das HQs.
181
“A mim desenharam todos, sem exceção. Mas houve um tempo em que me dediquei
a publicar livros (...). Quando me dissociei da Editorial Abril, comecei a publicar minhas
próprias revistas: foi assim que Frontera e Hora Cero nasceu, duas publicações que mar-
caram época no mundo dos quadrinhos. (...) Chegamos a lançar 90 mil cópias [por edi-
ção] e nasceu um impressionante lote de histórias e personagens” (OESTERHELD, 1974).
Neste estudo de caso utilizaremos apenas a revista Hora Cero Suplemento Semanal
como documentação primária. O sucesso comercial e a solidificação de um campo edi-
torial argentino reiteram-se em três instancias: a democratização da leitura, a formação
profissional de artistas e o uso da iconografia latina. Em primeiro lugar, a viabilização
da publicação em altas tiragens compete com as características de materialidade da re-
vista. Isto pois, custando apenas 1,50 peso, a revista compunha-se com quatro histórias
do tipo “continuará”; ainda, o papel de baixo custo, a impressão monocromática com as
histórias em preto e branco e o limitado número de páginas tornava a revista um produto
barato, viabilizando o consumo fácil entre os diferentes tipos de leitores. Ainda sobre a
materialidade, o produto possibilitava uma democratização da leitura e uma associação
aos fins didáticos. Gabriela Pellegrino Soares, em análise da formação de leitores na Ar-
gentina durante a primeira metade do século XX, sugere que, a participação do governo
na solidificação de uma cultura literária entre os leitores mais jovens, consolidavam uma
proposta de argentinidade mediante a divulgação cultural através do impresso. Assim, a
cultura de publicação de histórias infanto-juvenis representava grande parcela do merca-
do impresso argentino, ainda incentivado pelas figuras públicas e escolares em questões
pedagógicas de formação deste leitor dentro de uma orientação social (SOARES, 2007).
Ainda, complementa os sentidos de circulação destas obras de baixo custo através da pu-
blicação junto a jornais, em que os canais de distribuição popularizavam as tiragens por
localizarem-se em diversos pontos de vendas em rotas comerciais, habituado ao caminho
do médio operário (SOARES, 2007). Soares (2007) diz que todo o cenário de distribuição
de revistas “favorecia e expressava o florescimento do mercado editorial”.
182
formação do cidadão argentino. Este ponto se estabiliza, segundo Sebastian Gago (2016),
na “identificação de princípios como o humanismo, a solidariedade, a relativização do
maniqueísmo da moral, a ênfase no protagonismo grupal e o sentido de resistência con-
tra um poder opressivo”. Já no segundo ponto, Gérman preocupa-se com esta democra-
tização e acesso cultural de uma forma mais plural e heterogênea. Assim, considerando
a exclusividade das narrativas intelectuais das novelas argentinas, Héctor Oesterheld diz:
“pessoalmente me sinto mais satisfeito escrevendo para uma massa de leitores de histo-
rietas e não escrevendo novelas para uma seleta minoria” (OSTERHELD, 2005).
183
Ainda, refletindo sobre o conceito de uma “revolução silenciosa” proposta por Jean-
-Yves Mollier (2008), podemos imaginar as HQs como parte da formação desta revolução
de características próprias, pois, pensando em que ela é “silenciosa por não acarretar mu-
dança no quadro político e não fazer correr sangue, essa revolução cultural é, provavel-
mente, o acontecimento mais importante entre os séculos XVIII e XX”. Assim, podemos
compreender a formação de uma cultura popular em divulgação, buscando atingir um
grande público para a consolidação de um sentido de argentinidade forte durante a pu-
blicação da revista Hora Cero Suplemento Semanal.
“1º a compra dos direitos de reprodução: apenas uma vez; 2º devolve os originais ao
desenhista; 3º reconhece os direitos correspondentes do autor em qualquer uma das
próximas publicações que se façam em historietas; 4º constrói-se um sindicato e ven-
de as historietas ao exterior, abandonando os direitos junto ao autor” (DIBUJANTE, nº
29, 1957)
184
a vontade de Oesterheld de nacionalizar os quadrinhos através de uma produção estri-
tamente nacional, causadora de identificação e consumo dos leitores para a fortificação
da produção cultural argentina em período de Guerra Fria. A necessidade de proteger as
qualidades culturais nacionais, como visto por Oesterheld, exige uma demanda afim de
proteção, também, das narrativas contra o avanço do imperialismo cultural norte ameri-
cano. No mesmo manifesto citado anteriormente, Gérman complementa: “a historieta é
má quando se faz mal. Nega-la em conjunto, condenaria o globo, é tão irracional quanto
negar o cinema em conjunto pois há filmes ruins. Ou condenar a literatura pois há livros
ruins. (...) Cremos estar na linha das boas historietas” (OESTERHELD, 1957).
185
gens. Assim, a compra dos direitos de publicação faz-se em apenas uma etapa: a qual o
desenhista será pago pelo que fora exigido pela empresa e permanecerá com seus direi-
tos de republicação para possíveis vendas futuras. Ainda, o retorno dos originais, prática
incomum do mercado, torna-se um ponto de sustentabilidade para do artista. O retorno
das obras originais (os desenhos utilizados como fonte de reprodução) funciona como
uma forma de garantir um sustento econômico extra para o desenhista, que consegue a
conversão econômica mediante a venda no mercado direto. E, finalmente, a relação de
venda e comercialização para o mercado estrangeiro em que as historietas, mediadas
pelo grupo Frontera, ganhava respeitabilidade e um novo mercado no velho continente.
Assim, formavam-se artistas como: Alberto Breccia, Carlos Roume, Alfredo Moliterni, So-
lano López, entre outros.
Para este estudo de caso nos deteremos nas três primeiras histórias publicadas em
Hora Cero Suplemento Semanal, são elas: Ernie Pike, El Eternauta e Randall the Killer. Em
terceiro lugar, a partir da percepção de Sebastian Gago, identificaremos os pontos críticos
das histórias de Héctor Oesterheld e dos desenhistas Hugo Pratt, Francisco Solano López
e Arturo Del Castillo, que compunham o sentido de argentinidade na narrativa das HQs.
Assim, nos deteremos na brevidade da primeira edição comercializada em 1957 na qual
apresenta as principais prerrogativas para o desenvolvimento do caráter nacionalista das
obras em questão.
186
anônimos, recobrando-os identidade e carisma nas páginas impressas. Esta conexão,
além, parte para a representação simbólica, há a metalinguística da proporia narrativa:
abordando a guerra por pontos humanos com uma característica exclusiva, Pike é dese-
nhado à semelhança de seu criador. Pois, “quando criei o personagem, anexei uma nota
com o primeiro roteiro e disse que o fizera simpático, nobre e bom. Como piada, terminei
a nota assim: ‘bah, o fiz como a mim’” (OESTERHELD, 1974). Esta representação caracteriza
o personagem, assumindo as feições latinas do próprio escritor, em que criatura é feita a
semelhança de seu criador (Fig. 2).
187
ainda jovem, é um homem precavido e feliz, que, segundos os soldados, não há ninguém
como ele para “não atacar sem medir os riscos, ou para alegrar um acampamento com
paródias de todo o mundo, desde Stalin até Betty Grable” (OESTERHELD, 1957). Enquanto
Tenente Long, distinto de Holden, é “um sonhador que seguia sonhando apesar de toda
a destruição que tem ao seu redor, seguia crendo na fundamental bondade do homem”
(OESTERHELD, 1957).
Oesterheld compunha o cenário narrativo de Ernie Pike afim de refletir acerca das
temáticas de guerra, mas também de toda a composição do gênero em questão. Sobre-
tudo ao final da Segunda Guerra Mundial e o início do período de Guerra Fria, as histórias
de guerras intensificaram a produção de HQs. A carga de apropriação desse gênero nar-
rativo pauta-se na forte entrada dos comics norte americano no mercado argentino. Para
refrear tal avanço e conceituar as narrativas argentinas, Gérman utiliza este título como
uma forma de mostrar que pela “primeira vez no mundo que os americanos não eram os
188
bonzinhos e os alemães os maus. Haviam heróis em ambas fações, incluso os japoneses o
eram. O único vilão da historieta era a guerra” (OESTERHELD, 1974).
Fonte: publicado em revista Hora Cero Suplemento Semanal número 1, 1957; fotografia divulgada pelo
jornal San Isidro, 2016
189
A representação do cotidiano se estende, também, para o texto. As necessidades
de ampliação dos sentidos de criação de uma historieta são aprofundadas nas primeiras
páginas da história. Enquanto Héctor Oesterheld – ilustrado na HQ – escreve um novo
roteiro, detalha sobre o sentimento citadino de um trabalhador em seu descanso em
uma noite de inverno, pois “fazia frio, mas as vezes eu gostava. Trabalhava com as janelas
abertas. Olhar as estrelas descansa e apazigua o ânimo, como se alguém escutasse uma
melodia muito velha e querida. O único ruído que atrapalhava o silêncio era o leve roçar
da pena sobre o papel” (OESTERHELD, 1957).
190
“Minha condição de navegante do tempo, de viajador da eternidade. Minha triste e
desolada condição de peregrino dos séculos... Tive sorte ao chegar aqui. Pressinto que,
despois de tanto tempo, poderei descansar um pouco” (OESTERHELD, 1957)
“Escutei; todo o resto daquela noite não fiz outra coisa do que escutar. Tal como ele
disse. Quando concluiu já estava claro. Tão claro como para me encher de pavor. Tão
claro como para sentir por ele uma enorme piedade. Mas não adiantarei nada: quero
mostrar a história do Eternauta tal como ele me contou” (OESTERHELD, 1957).
A conclusão da revista fica por parte de Randall the Killer, com roteiros de Héctor
Oesterheld e desenhos de Arturo del Castillo, que conta histórias e contos sobre o faro-
este norte americano. Nesta história os roteiros aprofundam-se nos sentimentos huma-
nistas relacionados aos personagens secundários. Em sinopse básica, a primeira edição
da historieta conta sobre o caso do cowboy Algernon Miles, que chegara a cidade deter-
minado a fazer uma proposta de casamento depois de ter vendido seu gado e acumula-
do vinte mil dólares. Miles retornava a cidade afim de “mudar por completo sua vida de
homem solitário” (OESTERHELD, 1957). Apaixonado por Lina, uma dançarina do saloon,
Miles volta a cidade afim de recuperar a dignidade e respeito de sua amada, torna-a mu-
lher de posse e prosperidade. Entretanto, o caso do valor acumulado por Miles ronda pela
cidade, principalmente entre os bandidos e mal encarados.
191
Ao longo da história, podemos compreender o sentimento e a vontade excitante de
Miles em contraponto com a determinação dos capangas. Assim, orquestrando um cami-
nho direcionando Miles ao saloon, que reunia os principais pistoleiros da cidade, os ca-
pangas o levam para o centro de uma confusão. Quando instigado por Tríbol, o pistoleiro
mais mortífero da cidade, Miles coloca-se como cowboy e defensor de sua amada Lina,
outrora insultada pelo matador. Entretanto, o plano dos pistoleiros acaba por funcionar,
Miles é assassinado no saloon e tem o dinheiro roubado. Lina desespera-se com a falta de
futuro, tanto da humanidade quanto de Miles. Em confissão, diz: “será possível, Hannah,
que nada castigue o crime em todos os tolos?” (OESTERHELD, 1957). Em resposta, recebe
“O único homem capaz de impor justiça está em Shawn Town, muito longe daqui. Ran-
dall... Não se conhece outro nome: lhe chamam Randall “the killer”, o matador.... Porque
só luta contra matadores” (OESTERHELD, 1957).
Nesta primeira narrativa de Randall the Killer podemos notar certas discrepâncias
com o padrão das historietas de faroeste. Inicialmente condicionamos, novamente, a per-
cepção do heroísmo; o personagem que dá nome a série não aparece nos primeiros nú-
meros da série. A apresentação é feita por meio de mitos e lendas, torna-se um cowboy
idealizado e problematizado. Enquanto ninguém o conhece por interim, tem seu nome
verbalizado com certo tom de terror, pois encarna-se como um justiceiro que recorre as
vítimas para ajuda-las. Não cobra por isso. Além, Randall é um meio de salvação para uma
população desesperada, mas não a única. Mesmo com a elaboração perfeita do justiceiro
do velho oeste, Lina concluí sobre o pistoleiro: “Eu o convencerei e o ajudarei a vingar a
Algernon. Mesmo que tiver que lutar ao seu lado, com revolver em mãos” (OESTERHELD,
1957). Lina representa a força do heroísmo coletivo, pois, enquanto não existe Randall, a
mulher levanta sua coragem afim de lutar contra a opressão, tornando-se, também, hero-
ína por conta das necessidades dos conflitos anteriormente representados.
192
duelo. Ainda permitindo que Miles redima-se, este o enfrenta e acaba perdendo a peleja.
Assim, os sentidos de honra e humanismo se intensificam na relação orquestrada nesta
primeira edição, pois a resolução do conflito parecia simples ao primeiro momento, mas
aprofundada por conta dos interesses humanos frente a realidade de cada personagem.
Conclusão
193
do e o público consumidor atuam, em suas devidas proporções, também como editores.
“as partes não adquirem seu significado completo enquanto não são relacionadas com
o todo, e, se a história do livro não pretende se fragmentar em especializações esotéricas
isoladas entre si por técnicas misteriosas e incompreensões mútuas, parece necessária
alguma visão holística do livro como meio de comunicação” (DARNTON, 1990).
194
REFERÊNCIAS
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e biblioteca na Europa entre os
séculos XIV e XVIII. Brasília: editora UnB, 1999.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
RIZ, Liliana de. TORRE, Juan Carlos. Argentina, 1946-1990. In.: BETHELL, Leslie (Org.). A
América Latina após 1930: Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2018.
_____. Oesterheld em primera persona. Buenos Aires: ediciones la bañadera del có-
mic, 200
195
HQS E ZINES BIOGRÁFICOS – OS CAMINHOS ARTÍSTICOS
INTUITIVOS PARA UM AUTOCONHECIMENTO
(OU PARA UMA AUTOPOÉTICA)
Gazy Andraus1
As histórias em quadrinhos passaram por vários momentos desde sua oficial cria-
1 É pós-doutorando pelo PPGACV da UFG, Doutor pela ECA-USP, Mestre em Artes Visuais pela UNESP.
Também publica artigos acerca das Histórias em Quadrinhos (HQs) e Fanzines, bem como é autor de HQs
e Fanzines na temática fantástico-filosófica. E-mail: yzagandraus@gmail.com, gazyandraus@ufg.br, Sites e
blogs: http://tesegazy.blogspot.com/ , https://yzagandraus.wixsite.com/gazy/home
2 Histórias em Quadrinhos, ou HQs, ou ainda simplesmente quadrinhos, como podem ser denomi-
nadas tais artes.
3 Fanzines, ou zines, ou ainda atualmente artezines, como podem ser denominadas tais revistas ma-
nufaturadas independentes, e que representam o lema do “DIY – o it Yourself” – do “faça você mesmo”.
ANDRAUS, Gazy. HQs e zines biográficos – os caminhos artísticos intuitivos para um autoconhecimento (ou
para uma autopoética), In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográfi-
cas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020.
p. 196-215.
ção, aos fins do século XIX, com a ampliação da possibilidade tecnológica de imprimir
jornais e posteriormente revistas. A “aura” que Walter Benjamim (1994) acreditava se es-
vair da reprodutibilidade possível das obras artísticas desde sempre jamais valeu para
este tipo de expressão que pede exclusividade de reprodução para compartilhamento:
as BDs (Bande Dessinèes e Bandas Desenhadas) na França e Portugal, os Comics nos EUA,
Mangá no Japão, Fumetti na Itália e ainda Historieta na América latina espanhola, como
são conhecidas as Histórias em Quadrinhos (HQ) são parte de um legado de arte que não
pode jamais ser menosprezado (como já o fora antes). Para Richerme (2007) a arte e sua
qualidade dependem da inteligência que a gerou e organizou (ainda que para este autor,
arte seja sempre arte, mesmo que diferenciada pelo seu grau de inteligência organiza-
cional), podendo-se afirmar que os quadrinhos (também chamados de Arte-Sequencial),
são essencialmente inteligentes em sua organização e diagramação das páginas, como
asseverou Tisseron (1990), já que neles se encadeiam suas linhas de requadros cartesiana-
mente em contraposição aos desenhos soltos e fluidos que são por eles abarcados.
197
depois profissional...porém, isto foi delineado graças também aos fanzines, como se verá,
após a contextualização de tais revistas independentes, conforme se segue.
4 Em realidade, no ano de 1929, Jerry Siegel, o mesmo que cocriou depois o personagem Superman,
juntou histórias que ele escrevia e eram recusadas por uma revista de ficção científica, e montou sua própria
revista independente de contos chamada Comic Stories, utilizando máquina de escrever e mimeógrafo, dan-
do origem à gênese do que viria a ser batizado de fanzines na década de 1940 (MAGALHÃES, 2018, p.14).
5 Por ser um neologismo de origem pela língua inglesa, fanzine, na tradução em português, tanto pode
ser tido como do gênero masculino (“o” fanzine), como do feminino (“a” fanzine). Porém, adoto a forma do
gênero masculino para tratar dos fanzines e afins, neste artigo em específico.
7 Fanzinato é o equivalente da palavra inglesa fandom. Existem também os prozines, mas este termo
é pouco usado, e serve mais para definir os autores de quadrinhos norte-americanos (principalmente) que
fazem suas revistas independentes.
8 A partir de 2012 se comemora o Dia Nacional do Fanzine – data deliberada pelo autor deste artigo -
graças ao “Ficção” de Edson Rontani.
198
bém a “Geração Mimeógrafo”, contrária à ditadura e “que levou intelectuais, professores
universitários, poetas e artistas em geral a buscarem meios alternativos para a difusão
cultural” (NEGRESIOLO, 08/08/16).
O Fanzine começa a ser muito utilizado atualmente no meio acadêmico, onde tem
aparecido como objeto teórico e prático em cursos de graduação e pós-graduação, como
os que foram ministrados por Elydio dos Santos Neto9, que aplicava os quadrinhos e os
fanzines para profissionais e mestrandos da educação e pedagogia, de forma a ampliar o
199
alcance e a criatividade dos pesquisadores. Ele criou os biograficzines10, como parte de
sua didática a que cada estudante da educação pudesse melhor se conhecer e a seu po-
tencial criativo, muitas vezes bloqueado pelos sistemas que nos engessam. Há muitos ou-
tros exemplos, como a experiência do Gibiozine11, projeto idealizado pelo professor Hylio
F. Laganá, do curso de Licenciatura em Biologia da UFSCAR (Campus de Sorocaba), uma
mescla de gibi de temática da área de biologia cuja produção é fanzineira, trabalhada por
ele dentro de um projeto de pesquisas da universidade, em que os próprios alunos criam as
HQ (que podem ou não versar acerca da área de biologia), envolvendo-os grandemente, já
que colaboram na montagem da revista. Em Goiás, Carlos de Brito Lacerda, em Senador Ca-
nedo/Go, ex-professor do “Colégio Estadual de 1º. E 2º. Grau Pedro Ludovico Teixeira”, numa
empreitada interdisciplinar e com a anuência da gestão daquela escola, promoveu por dois
anos consecutivos, um trabalho com os alunos (e professores), culminando em apresenta-
ções e vendas/trocas dos fanzines de seus alunos e mesas-redondas com palestrantes da
área como convidados. O mesmo o faz Alberto Souza (Beralto) que leciona fanzines com
seu PEIBÊ zine12 no IFF-Campus Macaé do Rio de Janeiro, trazendo uma abrangência enri-
quecedora a seus alunos, dentro do Projeto IFanzine, do qual também colaboram outros,
enviando artes.
11 O título Gibiozine é uma fusão dos termos: “Gibi+Biologia+Fanzine” e os primeiros números podem
ser baixados no link: http://www.ufscar.br/fotografia/gibiobanca.php
12 Que já foi laureado em 2015 com o prêmio de Melhor Fanzine para seu zine “Peibê” pelo Ângelo
Agostini,– evento anual que prestigia autores de quadrinhos e fanzines, devido ao Dia Nacional das Histórias
em Quadrinhos que ocorre todo ano em 30 de janeiro, no Brasil.
200
Como potencial de liberação e desenvolvimento da criatividade em que o autor
pode ser seu próprio editor (faneditor), o fanzine, (arte)zine e/ou biograficzine possibilita
a paratopia editorial às publicações ditas oficiais, não excluindo os ideários dos fãs ama-
dores que seriam “segregados” do sistema oficial, tendo nos zines13 espaços para suas
próprias publicações. Ou seja: fundamenta-se o fanzinato na premissa de que cada ci-
dadão, sendo um autor em potencial, pode verter e tornar factível esta potencialidade
produzindo seu próprio (fan)zine, expondo nele suas idéias e criatividade, muitas vezes
de cunho autobiográfico, e partilhando-o sem o peso de obter lucro e de ser cerceado em
seu conteúdo, visto que o fanzine não é tido oficialmente como um produto comercial
(mas contrariamente, fraternal).
OS/AS ART-ZINES(ARTEZINES)
14 Não se impedindo que haja fanzines eletrônicos, quer sejam apresentados exclusivamente pela rede
virtual da Internet, o que possibilita um outro estudo exploratório acerca do tema.
201
O BIOGRAFICZINE E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
202
sidade de resgatar nossas histórias de vida e, com elas, a nossa capacidade de viver
conscientemente experiências significativas para nossa própria constituição como se-
res humanos; a segunda, retomar a prática de narrar e compartilhar nossas experiên-
cias vividas. Parece-nos que aí estão duas perspectivas que podem nos auxiliar a viver
nosso tempo histórico sem perdermos a capacidade de avançarmos com o novo que
tem sido produzido, mas também sem perdermos o contato conosco mesmos e sem
abrirmos mão da prática da partilha de nossas experiências, o que tem sido uma es-
tratégia interessante de aprendizagem desde os primórdios humanos. (SANTOS NETO;
ANDRAUS, 2010, p.38)
Caixa de TextoÉ interessante como nas artes dos quadrinhos e dos fanzines15 encon-
tram-se todos os tipos de temas, de maneira análoga à literatura tradicional e ao cinema
incluindo-se os biográficos, como nas HQs “Maus” de Art Spielgelman ou “Persépolis” de
Marjane Satrapi, ‘’Modotti’’ do espanhol Angel de la Calle, “Retalhos”, de Craig Thompson,
“Epiléptico”, vol. 1 e 2, de David B., “Memória de Elefante”, de Caeto e Homo Eternus, de
minha autoria, dentre muitos outros. Todos estes quadrinhos trazem, de alguma maneira,
narrativas de cunho biográficos e/ou autobiográficos (Figs. 2 e 2a).
Figs. 2 e 2a: HQs autobiográfica e biográfica: “Persépolis” de Marjane Satrapi e “Maus” de Art Spielgelman
15 Esclarece-se que os fanzines também publicam artes variadas, desde ilustrações, charges e cartuns,
bem como textos poéticos, resenhas, entrevistas etc, não se limitando aos quadrinhos e nem sendo atinentes
a eles com exclusivismo.
203
Mas as HQs se relacionam estreitamente aos fanzines, pois neles tem havido muita
publicação autoral e biográfica, tanto amadora como profissional, principalmente desde
as décadas de 1980 e 90 quando os fanzines serviram de esteio aos autores amadores e
profissionais do Brasil, que não tinham onde publicarem, visto que a maioria das editoras
nacionais preferia trazer material estrangeiro que aqui era traduzido (em especial norte-
-americanos, só depois vindo os mangás japoneses e, aos poucos, os europeus).
Fontes: Caza (arte); Killian (texto). “Vento”. In: Heavy Metal. Nº 17. (3). Ed. Heavy Metal, São Paulo:
1997, p.42; (3), Druillet, Phillipe. Urm Le fou. Genève: Les Humanoïds Associes, 1991(3a) e Moebius.
O Homem é bom? Porto Alegre: L&PM, 1984 (3b).
204
na área de artes da UNESP16.
Antes de nascer, vim literalmente de navio do Líbano, mas no útero de minha mãe,
que após passar um mês singrando o oceano com meu pai, chegaram ao Brasil, quando
três meses depois nasço em Ituiutaba – MG17 em 11/01/1967. Antes de aprender a língua
portuguesa, aprendi a arábica (mas permanecendo analfabeto na escrita e literatura), e
depois, aos 7 anos comecei a ler e a adquirir gibis infantis. Ao início de minha adolescência
passei a ler, concomitantemente, os gibis de super-heróis, consolidando tal leitura con-
forme avançava na adolescência, e diminuindo a leitura dos gibis de humor caricatural.
16 Histórias em quadrinhos poético-filosóficas foi o tema de seu pós-doc, concluído em 2010. Mais
sobre a defesa, aqui: http://portal.metodista.br/noticias/2010/setembro/docente-realiza-defesa-de-posdou-
torado-em-hqs-filosoficos
17 Coincidentemente, tal qual meu irmão das artes gráficas, Edgar Franco.
205
não gostar, era de certa maneira obrigado a trabalhar no estabelecimento, pois a família
assim vivia, e quase não havia tempo para estarmos no apartamento, como a maior parte
das famílias se constituía. Então, como não havia escapatória, meu tempo quase inteiro
no restaurante eu dedicava ao ato de desenhar, e o fazia sempre quando havia brechas
no trabalho de garçom que eu desempenhava (fig. 4).
De 1986/7 em diante, retorno aos quadrinhos, mas agora, embora com influência
de super-heróis, conforme fui conhecendo e adentrando as artes plásticas, os fanzines18
e o fanzinato, passo a me influenciar pelos quadrinhos europeus, alguns deles só “publi-
cados” paratopicamente no Brasil, em zines. Tais artes me fizeram intuitivamente querer
realizar quadrinhos relexivos, e de certa forma, autobiográficos, pois refletiam minha psi-
que e minha formação nas artes e nas leituras paralelas de ficção científica e livros da área
da espiritualidade e até da filosófica oriental, como taoísmo, dentre outros.
18 Minhas publicações iniciais e meu retorno a desenhar quadrinhos – após uma pausa entre meus 17
a 19 anos em que eu apenas desenhava figuras e/ou cenas, se deu inicialmente graças aos fanzines e seus
incentivos, aos quais venho me dedicando até a atualidade.
206
Portanto, algumas de minhas HQs e ilustrações refletiram19 não só meus estados
de ânimo, como meus conhecimentos alcançados durante aquele período acadêmico
que abarcavam fontes das artes e de leituras paralelas de outros temas oriundos de li-
vros, quadrinhos e fanzines. Um exemplo de minha arte foi a quadrilogia “Homo Eternus”,
fanzine de 4 volumes que desenvolvi e que trazia HQs curtas no estilo poético (também
denominado por “fantasia-filosófica), co-editado por mim e por Edgard Guimarães, autor
de quadrinhos, editor do fanzine mais longevo do Brasil, o “QI – Quadrinhos Independen-
tes” e professor de engenharia no ITA. Guimarães, naquele período da década de 1990,
divulgava em seu zines todos os fanzines que recebia, e auxiliava autores promovendo
uma coedição, permitindo-me lançar com ele, entre 1993 e 1994 minha quadrilogia foto-
copiada, que atualmente vem sendo republicada como álbuns comerciais pela Ed. Cria-
tivo (Fig. 5).
Fig 5 Acima, os 4 fanzines da quadrilogia “Homo Eternus” e abaixo, as capas dos álbuns homônimos I e II
lançados pela Ed. Criativo de S. Paulo, em 2018 e 2019, respectivamente.
19 Como refletem até hoje, embora eu as realize em menor monta, pois me tornei também pesquisador
e divido meu tempo nas tarefas acadêmicas, como esta aqui, por exemplo.
207
bastante questionadora sobre tais temas) cujas influências vinham de minhas leituras pa-
ralelas ao curso de artes, incluindo, como já mencionei, taoísmo e outras fontes paralelas
sobre a existência humana. Mas todo este meu processo criativo vinha (e ainda vem) sen-
do desenvolvido sob a audição de música, como o rock progressivo, o Heavy Metal e/ou
músicas instrumentais, conforme explanei à época de minha participação do II Seminário
de Pesquisa em Cultura Visual na FAV-UFG em 2009, no qual pode ser vista uma ação
minha a exemplificar meu processo de criação na época, quando apresentei na prática
tal explanação do processo (Fig. 6)20. Interessante ressaltar que desenvolvi um processo
criativo que me permitiu criar desenhos e HQs diretamente à nanquim, sem esboço pré-
vio, de maneira similar ao ato da pintura e desenho taoísta, fluindo com os movimentos
do pincel ao desenhar uma paisagem (mas sempre com uma ajuda da audição musical):
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=k3d_xuog7Uk
Uma HQ importante que elaborei e que instintiva e intuitivamente reflete meu pro-
cesso autobiográfico daquele período foi “Casulo”, elaborada no início de desenvolvimen-
to dos quadrinhos poéticos, e que foi publicada no volume 1 do zine “Homo Eternus”,
208
pode exemplificar também minha inserção no universo da arte quadrinhística, como se
visualiza na fig. 7:
Fig. 7: HQ autobiográfica poética de G. Andraus, “Casulo”, em que metaforicamente nasce para se “enquadrar
no métier dos quadrinhos.
Fig. 8: HQ autobiográfica poética de G. Andraus, “Sina”, em que o ser pensa estar sofrendo, mas em realidade
não está (publicada em preto e branco no zine e álbum Homo Eternus nº2).
209
uma imagem em 3 quadros que vieram à minha mente enquanto ouvia a música “Unfor-
gettable fire” do U2. Imediatamente levantei-me da cama e pus-me a esboçar as imagens
iniciais para, em seguida, finalizá-la em 3 páginas: o homem crucificado se debate e, so-
mente quando se acalma, se dá conta de ter estado sempre livre (no 1º quadrinho da pg.
1, embora ele esteja na cruz, não está preso a ela, realmente).
Atualmente algo similar ocorre na valorização dos fanzines, que vêm sendo cada
vez mais estudados e utilizados21, assim como foram os quadrinhos, e coincidentemente,
muitos dos autores em ambas as áreas que pertencem a este métier artístico duplo (tanto
autores de quadrinhos como autores de fanzines), igualmente pesquisadores, acabam
por auxiliar na valorização de ambas as artes.
Todavia, ressalto que na área dos quadrinhos e zines poéticos, na qual me “enqua-
21 Pois eu mesmo ora realizo estudos de pós-doutoramento dos zines como arte, os arte-zines, na Fa-
culdade de Artes Visuais da UFG.
210
dro”, os que mais representam trabalhos autobiográficos são estes atinentes a esta linha
temática “autopoética”, ou seja, uma linha que se criou inadvertidamente e se mantém
como processo autoral, conforme exemplifiquei com algumas de minhas artes.
Assim, aqui apresentei esse binômio, como autor dos fanzines e HQs em uma re-
lação à temática autobiográfica, como potencial artístico humano cuja importância ao
desenvolvimento social, cultural, etnográfico e principalmente de autoconhecimento
transparecem, no caso, em minhas obras apresentadas nos quadrinhos e fanzines artís-
ticos, (auto)poéticos e igualmente biográficos, pois que refletem meu ser e meus conhe-
cimentos e todo meu histórico como “personagem” que viveu uma infância e juventude
à revelia do “padrão (trabalhava num restaurante e não vivia uma vida familiar caseira),
desenhava sem parar dinossauros e super-seres, e (quase) sempre teve seus trabalhos
artísticos publicados paratopicamente, ou seja, não oficialmente, nos fanzines que são
considerados à margem da oficialidade. Também refleti uma busca de valorização nos
quadrinhos – que eram desconsiderados na sociedade e nas escolas - pois quando fui
aluno escolar, muito me aborrecia ficar “preso” na sala de aula, contando os minutos para
poder sair do jugo diário e estar no restaurante ou em casa22 com meus gibis e meus de-
senhos e músicas. Meu percurso, assim, tem me levado a uma certa rebeldia ao sistema:
no mestrado desenvolvi uma dissertação para auxiliar o valor aos quadrinhos, bem como
no doutorado (e desta vez, a que eles fossem aceitos, compreendidos e utilizados na uni-
versidade). Agora, no pós-doutoramento, enfatizo os “marginais” e paratópicos fanzines
(e os de arte) a serem estudados e valorizados como partes integrantes do ser-humano
que, como Morin (2000) afirma, não é só físico e racional, mas também biológico, psíqui-
co, cultural, social e histórico, lúdico e imaginário tornando-se totalmente desintegrado
na educação devido às tomizações disciplinares. E para arrematar, minha arte não é pa-
dronizada e muitos fãs de HQs desdenham-na por ser poética, mais uma vez sinalizando
meu processo interno fora do sistema padronizado, no caso, dos quadrinhos mainstream,
além de que eu publico em fanzines, que não estão no sistema oficial. E é nesse percurso
que intento reforçar e ampliar a importância (ainda um tanto desconhecida no âmbito
acadêmico e educacional, principalmente universitário) do potencial artístico dos cha-
22 Dos 8 aos 14 anos, havia o restaurante, dos 15 aos 17, ele foi vendido e pudemos permanecer no
apartamento, como eu sempre queria.
211
mados fanzines, que inclusive não têm a obrigatoriedade de venda, de lucro, nem de as-
siduidade ou de formato-padrão, além de suas possibilidades “mutacionais” para as artes
e seu plenipotencial criativo-educativo interdisciplinar que pode até alterar o estatuto
mental de quem se inicia a elaborá-lo manual e fisicamente (pois além de não visar lucro,
não se presta a pensar em concorrência, mas sim em troca e fraternidade). Como tem sido
comigo!
AUTO-BIO-CONSIDERAÇÕES
Em tais HQs e zines, muito do que são suas derivações poéticas são reflexões de
seus autores, como autobiografias no sentido de externar uma liberdade criativa, um ar-
rojo e um desligamento do status quo “comercial” (os zines não visam lucro), e tal noção é
reflexo da própria necessidade interna do autor de se externar, expressar suas tônicas vi-
tais e sua liberdade de alma, que num sistema competitivo e “oficial” regula e limita tudo.
Assim, todas as angústias e reflexões sobre a vida, aliadas a uma busca de conhe-
cimento na área das artes devido à minha formação, além das leituras paralelas de fc e
212
filosofias orientais com reflexão acerca do espírito humano, vêm se refletindo em meus
zines e HQs poéticos, cuja influência também vem dos quadrinhos europeus. Além dis-
so, venho desenvolvendo estudos sobre tais artes, realizando um mestrado, doutorado e
agora cursando um pós-doutoramento, sempre acerca destas linguagens e do métier em
que estou, nas Histórias em Quadrinhos autorais artísticas e nos fanzines autorais de arte,
reflexos de meu ser autobiográfico intuído e vertido nelas23!
213
REFERÊNCIAS
ANDRAUS, Gazy; SANTOS NETO, Elydio dos. Dos Zines aos BiograficZines: compartilhar
narrativas de vida e formação com imagens, criatividade e autoria. In MUNIZ, Cellina
(org.). FANZINES – Autoria, subjetividade e invenção de si. Fortaleza/CE: Editora UFC,
2010.
BATEY, Jackie. Art-Zines, The Self-Publishing Revolution: The Zineopolis Art-Zine Col-
lection. Publishing_Revolution_The_Zineopolis_Art-Zine_Collection. 2014. Disponível
em https://www.academia.edu/11327760/Art-Zines_The_Self- Acesso em 18/04/2019.
ECO, Umberto. Corto Maltese ou a Geografia imperfeita. In PRATT, Hugo. Corto Maltese:
A balada do Mar salgado. Lisboa: Meribérica/Líber: 1998.
RICHERME, Cláudio. Afinal, o que é Arte? São João da Boa Vista, SP: Air Musical, 2007.
214
TISSERON, Serge. La Bande Dessinee au pied du mot. France: Aubier, 1990.
THOMAS, Susan E. Value and Validity of Art Zines as an Art Form. Art Documenta-
tion - Journal of the Art Libraries Society of North America. Volume 28, Num-
ber 2 | Fall 2009. Disponível em: <https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/
adx.28.2.27949520> e <http://www.journals.uchicago.edu/doi/pdfplus/10.1086/
adx.28.2.27949520> (link direto) Acesso em: 18/04/2019.
215
A REPRESENTAÇÃO BIOGRAFICA DE D. PEDRO I NO MONUMENTO
LIVRO AÇO DOS HERÓIS E HEROÍNAS DA PÁTRIA
Introdução
2 Orientador deste trabalho. Docente do curso de História da Universidade Estadual de Goiás, Doutor
em Sociologia pela Universidade de Brasília. E-mail: ezi@uol.com.br
ALVES, Dâmata Caroline M. Gundim; OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. A representação biográfica de D. Pedro I
no monumento Livro Aço dos Heróis e Heroínas da Pátria, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM
- GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia:
Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 216-226.
O príncipe regente está eternizado na História do Brasil, em livros, na dramaturgia,
na teledramaturgia e em outros meios, o nome dele e uma breve biografia foi inscrita
em um monumento, o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Monumento esse que tem o
objetivo de deixar registrado de forma perpetua o nome de D. Pedro I e outros heróis. O
livro de Aço foi projetado para que mesmo se houver uma catástrofe ele resista, fazendo
com que não se esqueça. Trazendo à memória das pessoas, aquelas figuras importantes
cujo o nome foi registrado ali.
O nome de D. Pedro I está inscrito no Livro de Aço, o que lhe concede o título de
herói nacional. Com a inscrição de seu nome no livro destaca-se sua imagem de Impera-
dor, formador da nação brasileira. Mas em contrapartida a essa imagem, tem-se a de um
Imperador bon vivant e galanteador, memória essa que é reforçada entre outros meios,
pelas suas representações na teledramaturgia. Neste trabalho elucidaremos essa contra-
posição que há entre as duas imagens de Dom Pedro.
A vida de D. Pedro I
217
O primeiro relacionamento amoroso de Pedro de Alcântara foi com Noemi Thier-
ry, uma francesa, tiveram uma filha, mas esta não sobreviveu. D. Pedro se envolveu com
várias outras mulheres, o que lhe rendeu a fama de mulherengo, os filhos que teve com
diferentes amantes foram reconhecidos em seu testamento. Casou-se com D. Leopoldina
Josefa Carolina de Habsburgo-Lorena, filha do Imperador Francisco I da Áustria e da Prin-
cesa Maria Tereza da Sicília. Tiveram cinco filhos, dos quais o caçula Pedro de Alcântara,
posteriormente tornou-se D. Pedro II, Imperador do Brasil.
O casamento entre D. Leopoldina e D. Pedro foi arranjado, nas cartas enviadas pela
agora princesa do Brasil à Família, o casamento no início era feliz, com a morte de D. João
VI, a princesa deu bastante apoio a seu marido, tornou-se amiga de José Bonifácio e ambos:
Dona Leopoldina sofreu várias traições por parte de seu marido, o caso de D. Pedro
com a Marquesa de Santos Domitila de Castro, afetou bastante o casamento, a vida da
princesa e também o final do Primeiro Reinado. D. Leopoldina faleceu em dezembro de
1826 devido a desgostos e outros fatores. Posteriormente D. Pedro casou-se novamente
com Amélia Auguste Eugenie Napoleona von Leuchtenberg com a qual permaneceu até
sua morte em 1834, no Castelo Real de Queluz, em Portugal, vítima de tuberculose.
Em 1820 ocorre em Portugal a Revolução do Porto, que possuía entre seus obje-
tivos, “fazer retornar à metrópole o Rei e a legião de cortesãos e burocratas e acelerar,
assim, o processo de recolonização” (TEIXEIRA, 2000, p. 128). Conseguiram que D. João VI
voltasse para Portugal, e que jurasse fidelidade a Constituição Portuguesa, mas este deixa
seu filho D. Pedro no Brasil como regente. E então as pressões exercidas pela burguesia
portuguesa que antes convergiam sobre D. João VI, agora estão sobre o príncipe regente
D Pedro.
O governo de Lisboa exigia que D. Pedro voltasse para Portugal, mas no Rio de Ja-
218
neiro a população, através das lideranças políticas recolheram mensagens e manifestos
com milhares de assinaturas pedindo a permanência do regente. Diante disso no dia 9 de
Janeiro de 1822, o príncipe regente decide-se por ficar no Brasil tornando esse dia conhe-
cido como o “Dia do Fico” e /ou “O Fico”. Desde então o governante do Brasil teve que agir,
pois nesse momento acirrava-se ainda mais o conflito entre portugueses e brasileiros.
Segundo Francisco Teixeira, o Fico foi uma estratégia de D. Pedro, este ao tomar
suas decisões agradava a ambos os partidos os moderados e os radicais. José Bonifácio
de Andrada e Silva, era ministro no governo de D. Pedro, pertencia ao partido moderador
e buscava acalmar os movimentos separatistas e a radicalização das posições dos políti-
cos e influentes da época. Mas controlar esses movimentos estava cada vez mais difícil,
ao longo de 1822, medidas são tomadas pelo governo para evitar que Portugal recoloni-
zasse o Brasil.
O período era conturbado e exigia que D. Pedro tomasse atitudes certas, ele a prin-
cípio devido as suas atitudes de jovem não repassava muita credibilidade, mas surpre-
endeu em sua estreia política. Em julho de 1822 o Regente assina o Manifesto às Nações
Amigas, onde declarava-se a “Independência do Brasil como reino-irmão de Portugal”
(TEIXEIRA, 2000, p.131) com esse manifesto também ele afastava as ameaças e exigências
da Corte Portuguesa.
219
mas. O Brasil torna-se um país, livre de Portugal e D. Pedro o primeiro imperador.
D. Pedro I com toda certeza será lembrado pela História, mas ele também será lem-
brado por outros meios e um desses meios é através dos monumentos. Que na maio-
ria das vezes passa despercebido aos olhos, mas estão ali, presentes no cotidiano das
pessoas. Alguns monumentos estão dentro de museus, igrejas, palácios e/ou ar livre, em
praças. Mas no caso do monumento que traz o nome de D. Pedro inscrito em si está loca-
lizado em um Panteão.
Feito em aço o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria leva em si, inscrito, o nome de
personagens históricos importantes para a História do Brasil. O Livro de Aço faz parte da
exposição permanente do Panteão da Liberdade e Democracia -Memorial Tancredo Ne-
ves, que juntamente com outros museus e elementos, compõe o Centro Cultural dos Três
Poderes, em Brasília –DF.
Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, o prédio lembra o formato de uma pom-
ba o que simboliza a liberdade e a democracia. Em seu interior fazendo parte da expo-
sição fixa, encontra-se o Mural da Liberdade de Athos Bulcão, o Painel da Inconfidência
Mineira de João Câmara Filho, o busto do almirante Joaquim Marques Lisboa, uma parte
dedicada a Tancredo Neves e claro o Livro de Aço. Compondo a estrutura do prédio e
fazendo parte da exposição, tem-se um vitral no formato do mapa do Brasil idealizado e
feito pela artista Mariane Peretti.
220
A criação de um panteão em reconhecimento aos heróis brasileiros, defendida desde
1891 e concretizada quase um século depois, em pleno processo de redemocratiza-
ção, trouxe para o coração da República a lembrança eterna de personagens funda-
mentais para a consolidação da nação que conhecemos e amamos, inscrevendo de
maneira indelével na história suas contribuições para a Pátria brasileira. (Câmara dos
Deputados. Série cadernos do Museu nº10, 2010, p.7)
Para ter o nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria é preciso que a
Câmara dos Deputados e o Senado aprovem uma lei com o pedido de inscrição do nome
no livro e que o personagem cujo nome será inscrito, se encaixe em uma série de critérios
que estão dispostos no Projeto de Lei n. 2.022-A/2003. Veja os critérios abaixo:
O nome de Dom Pedro I foi inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria através
da Lei N. 9.828 de 30 de agosto de 1999, pelo bicentenário do seu nascimento. Tornando-
-se assim o quarto nome a ser inscrito no Livro de aço, que tem entre suas finalidades o
registro perpetuo dessas personalidades.
Fonte: http://odiarioimperial.blogspot.com/2017/04/os-dez-herois-do-livro-dos-herois-da.html
221
A inserção de Dom Pedro I no Livro de Aço significa que ele é considerado um “herói
alto”, um herói nacional, conforme a definição de Flávio Kothe (2000, p. 55): “há persona-
gens da história de um povo que personificam a “alma” desse povo segundo a ideologia
que num certo momento seja a dominante”. Essa definição é muito interessante pois não
vê o herói de modo absoluto, mas dependente de escolhas ideológicas.
No caso de Dom Pedro, isso é muito evidente, dada a recepção controversa da sua
personalidade nos meios políticos e historiográficos. A personagem marcial, segurando
um cetro, vestido e próximo aos símbolos de poder do Império, como no quadro de Pe-
dro Américo (1879) é o que se pretende preservar na memória nacional, como um dos
grandes heróis nacionais, o que o levou a ser o quarto indivíduo a ser inserido no Livro
de Aço.
Figura 2 – Imperador Dom Pedro I. Pintura de Pedro Américo, 1879. Acervo do Museu
Fonte: https://www.reddit.com/r/brasil/comments/9dv4df/imperador_dom_pedro_i_pintura_de_pe-
dro_am%C3%A9rico/
222
lares e que colocou dúvidas sobre a legitimidade do patriotismo de Pedro I. Nesse sentido
Mais desgastante para a imagem de Pedro I, mais até do que a dúvida sobre sua leal-
dade à Pátria, foi a recepção popular dos seus vários relacionamentos amorosos. Um livro
didático de história, destinado aos alunos do Ensino Fundamental, assim descreve a ima-
gem do Imperador: “Sua imagem pessoal também não era das melhores. Não passava por
um bom chefe de família. Era casado com D. Leopoldina, mas costumava namorar outras
mulheres. O seu caso mais famoso foi com a marquesa de Santos”. (FERREIRA 1997: 75)
Fonte: http://estudioferre.blogspot.com/2012/03/revista-selecoes_28.html
223
O livro de Paulo Setúbal As Maluquices do Imperador, também evidência essa ima-
gem de D. Pedro, como se pode observar no trecho a seguir: “O príncipe foi sempre, em
toda a sua existência, um louco por mulheres. Foi o seu fraco. O traço culminante do seu
caráter. D. Pedro amou furiosamente na vida. Amou quando príncipe. Amou quando im-
perador. Amou quando rei no exílio” (1927, p.24).
Para além dessas duas imagens consolidadas, tem-se a de um imperador que não
se dedicou muito aos estudos, “trocava rapidamente o caderno e a caneta pela corda e o
cabrestante, dado que era-lhe familiar o trato com os cavalos” (MACAULAY. Apud Santos,
2003, p.37). Tinha-se um D. Pedro que gostava bastante de caçar e cavalgar, que tratava
as pessoas que lhe cercavam sem os protocolos que lhe era exigido e mesmo as pessoas
de classes inferiores a sua, tratava de igual para igual.
Enfim, a presença de Dom Pedro I no Livro de Aço dos Heróis da Pátria intenciona
criar uma memória que transforma o primeiro Imperador do Brasil num herói alto da vida
política brasileira. Contudo, tão durável como o que foi escrito nas páginas de aço do livro
são outras particularidades biográficas que questiona a legitimidade do seu heroísmo
pátrio ou que o vê como um personagem caricaturesco de baixo.
Considerações Finais
O primeiro imperador do Brasil teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroí-
nas da Pátria, o que lhe concedeu o título de herói nacional e seu nome ficou registrado
de forma perpetua. Com a inscrição de seu nome no Livro de Aço a memória que se pre-
tende perpetuar é a de um Imperador, símbolo de poder, formador da nação brasileira.
Mas em oposição a essa imagem (memória) de Imperador poderoso, há outra que tam-
bém se solidificou no imaginário das pessoas.
224
de Portugal e depois em 1831, abdicou do trono brasileiro para lutar por sua filha, para
esta assumir o trono Português.
O que se pode notar é que a imagem mais difundida e que permanece na memó-
ria do povo brasileiro sobre D. Pedro I, até a contemporaneidade é essa imagem de um
mulherengo dionisíaco, sobrepujando a outra de herói nacional fundador da nação bra-
sileira. Mas não se pode esquecer que como o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, é um
monumento, e tende a trazer à lembrança do indivíduo algo, que no caso é a imagem de
Dom Pedro I fundador da nação brasileira. Pois lembrar as pessoas de alguém ou algum
fato que ocorreu é uma das funções que os monumentos possuem.
225
REFERÊNCIAS
FERREIRA, José Roberto Martins. História:7a série/Martins. São Paulo: FTD, 1997
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: História e
Cultura. Projeto História (Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do
Departamento de História da PUC-SP), São Paulo, n. 10, dez. 1993.
TEIXEIRA, Francisco M. P. História Concisa do Brasil. São Paulo: Global, 2000. p.117-133
226
CÂNONES MITOBIOGRÁFICOS
NARRATIVAS DA TRAGÉDIA DA PIEDADE E AS MUITAS FACES
DE EUCLIDES DA CUNHA.
2 Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, engenheiro militar, jornalista, escritor, nasceu em Cantagalo,
RJ, em 20 de janeiro de 1866, e faleceu no Rio de Janeiro em 15 de agosto de 1909.
3 Euclides da Cunha foi apontado para fazer o levantamento cartográfico das cabeceiras do Rio Purus
pelo Barão de Rio Branco. A região era local de intensos conflitos entre caucheiros peruanos e seringueiros
brasileiros (RIBEIRO, 2006, p. 148).
4 A grafia do nome de Ana aparece algumas vezes, com apenas uma letra “n” e muitas vezes com
duas letras “n”. A opção pela grafia com apenas uma letra “n” se dá porque essa é a forma da documentação
oficial - como a certidão de casamento de Ana e Euclides, transcrita por Roberto Ventura (2003, p. 271). No
decorrer desse trabalho, quando a grafia é vertida com duas letras “n” trata-se de transcrição.
DAHER, Anna Paula Teixeira. Narrativas da Tragédia da Piedade e as muitas faces de Euclides da Cunha, In:
GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática
Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 228-240.
das inúmeras obras escritas, destaque-se Euclides da Cunha, esboço biográfico, de Ro-
berto Ventura (2003). Também parte dos livros que tratam do episódio em si, A tragédia
da Piedade, o grande drama da República, de Luiza Nagib Eluf (2009); Matar para não mor-
rer: a morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis, de Mary Del
Priore (2009). Utiliza-se, de igual forma, de obras de cunho memorialístico que tratam
do triângulo amoroso. Águas de Amargura, o drama de Euclides da Cunha e Anna (1990),
depoimento de Joel Bicalho Tostes, casado com uma das netas de Euclides e Ana, Eliethe
(filha de Manoel Afonso), a Adelino Brandão e Anna de Assis, história de um trágico amor:
Euclides da Cunha, Anna e Dilermando de Assis (2ª ed. 2009), um depoimento de Judith de
Assis, filha de Ana e Dilermando a Jefferson de Andrade; além de O Pai (1998), de Dirce de
Assis, filha de Dilermando em seu segundo casamento. E, nessa mesma seara, de autoria
do próprio Dilermando de Assis, Tragédia da Piedade (1952) e Um Conselho de Guerra. A
morte do Aspirante da Marinha Euclydes da Cunha Filho (1916).
5 Levillain (2003, p. 45) lembra que a biografia e a história se separam desde a historiografia grega,
quando a história era associada a uma narrativa da coletividade, enquanto à biografia se dava um sentido
de panegírico, de elogio e exaltação aos heróis.
229
sem críticas, embora atualmente não haja qualquer dúvida quanto à possibilidade de se
enfrentar uma biografia como um problema historiográfico.
A fim de recuperar a honra, Euclides envolve-se em uma tragédia que vai ser narra-
da de diferentes maneiras ao longo do tempo. No Rio de Janeiro dos primeiros anos do
séc. XX cabia à esposa ser fiel ao seu marido, a punição do adultério recaía essencialmente
sobre a figura da mulher, porque era dela a obrigação de guardar a honra6 da família, ou
seja, a respeitabilidade de Euclides dependia de Ana. A ele cabia o direito/dever de exigir
o bom comportamento da esposa. É como reverbera Mariza Corrêa (1983, p. 192), “o de-
ver mais enfatizado nesses casos tem sido o da fidelidade da mulher ao homem [...] sua
possível infidelidade absolvendo ou atenuando o ato agressivo cometido pelo acusado”.
E arremata: “esse dever da mulher corresponde a um direito do homem que pode, além
de exigir o seu cumprimento, punir o seu não cumprimento”. (CORRÊA, 1983, p. 192).
Euclides e Ana se casam em 1890 e logo começam a construir sua família: em 1891
Eudóxia nasce para viver poucos meses. Em 1892, mesmo ano em que Euclides conclui
o curso na Escola Superior de Guerra, é promovido a tenente e designado trabalhar na
Estrada de Ferro Central do Brasil, nasce Sólon. Em 1894, chega Euclydes Filho, o Quidi-
nho. Em 1897, Cunha, como correspondente d´O Estado de São Paulo, parte para o sertão
da Bahia a fim de cobrir o s conflitos em Canudos – lá ele chega com a quarta expedição
militar. No ano seguinte, atendendo às suas funções de engenheiro, muda-se com a fa-
mília para São José do Rio Pardo (SP) a fim de supervisar a montagem de uma ponte – e
também escreve grande parte do livro que o catapultaria à fama rapidamente, Os Sertões.
Em 1901 nasce o quarto filho de Ana e Euclides, Manoel Afonso, e em 1902 é publicado
Os Sertões, cuja primeira edição se esgota em cerca de dois meses.
Seu tempo de produção literária é curto, uma vez que morre ainda jovem, mas,
deixa uma produção que reflete sua formação científica - José Veríssimo aponta que o
escritor é “ao mesmo tempo um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um et-
nólogo, de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador e de
6 Segundo Halvor Moxnes (1993, p. 19-20), embora a noção de honra seja universal, a forma como ela
se apresenta varia entre culturas, por se tratar de uma construção social e, como tal, sua compreensão passa
pelo entendimento de contextos mais amplos, como o religioso, o social e o econômico.
230
um homem de sentimento, um poeta, um romancista” - (apud SOUZA, 2010, p. 38), seu
interesse pela natureza e a sua própria carreira de Engenheiro e Jornalista, que o levou
a Amazônia e a Canudos, por exemplo. A obra de Cunha, especialmente Os Sertões, é
basilar do estudo das ciências sociais no Brasil, segundo argumenta Florestan Fernandes
(1977, p. 35). E essa visão de um autor completo, com conhecimento em diversos cam-
pos, persevera. Quando se fala em Euclides dois pontos sempre se destacam: a extensão
e variedade do seu conhecimento, que resultou na produção de sua grande obra prima e
a tragédia da morte. E, cumpre apontar, essa visão do homem da ciência é reforçada pelo
próprio Euclides que, por exemplo, em seu discurso de posse na ABL, afirma ser escritor
por acidente, habituado a andar de terra a terra, “abreviando o espírito à contemplação
de fatos de ordem física adstrito às leis mais simples e gerais” (apud ABREU, 1988, p. 236).
Essa busca pela natureza, pela terra, o leva a aceitar participar da missão de reconhe-
cimento do Alto Purus (1904-05), a qual chefia após nomeação pelo Barão do Rio Branco.
Não sem prejuízo à sua saúde: além de contrair malária em Manaus, voltou a apresentar
sintomas de tuberculose na volta ao Rio de Janeiro em janeiro de 1906, quando encontra
Ana grávida de Dilermando – o menino, Mauro, que ele registra como seu, nasce no início
de julho desse mesmo ano, vive 7 dias e morre.Nesse mesmo período cheio de tantas
tensões familiares o escritor toma posse na ABL. No ano seguinte, 1907, Cunha publica
“Contrastes e Confrontos” e “Peru versus Bolívia” e registra o nascimento de Luís , mais
uma criança que não era sua biologicamente.Ao longo dos anos, vê-se que Euclides se
dedica muito à carreira, com uma força e fidelidade que não encontram par em nenhum
outro campo de sua vida. Ana sempre se queixou da falta de interesse do marido.
A vida de Euclides nos mostra o caminho até a Piedade. A forma como ele foi edu-
cado, as aspirações da sociedade na qual ele cresceu, as escolhas que precisou fazer para
sua formação e o sustento de sua família. São todas peças na construção do homem que
pegou uma arma emprestada sob a alegação de matar um cachorro raivoso, foi em busca
de sua honra perdida e acabou morto. As narrativas da vida de Euclides mostram que
ele era um homem de muitos conflitos, e que seus amigos e admiradores pareciam não
conseguir entender que um homem que enfrentasse tantas limitações no trato pessoal
pudesse ser o gênio reconhecido que ele era na vida pública, o nome influente da Repú-
blica, um exemplo. Um homem de tantos predicados estava fadado a ser bom pai, bom
231
marido, mas essa não foi a narrativa de Ana, nem a de Dilermando. A despeito dos admi-
radores, dos amigos e da própria imprensa.
Com efeito, nos dias e anos que se sucederam à Tragédia da Piedade, inúmeras vo-
zes se levantaram a favor de Euclides, construindo uma narrativa elogiosa, sempre ressal-
tando as qualidades do falecido, construindo a trajetória do herói e contribuindo para sua
mitificação. A Dilermando não coube a mesma sorte, ainda que a justiça o absolvesse do
ocorrido. Foi Monteiro Lobato (apud CIBELA, 1946), um declarado admirador de Euclides
da Cunha, uma das vozes dissonantes a defender Dilermando. Ao colocar-se no lugar de
Assis, Lobato entendeu que, diante do ocorrido, outra opção não lhe restara, “haverá uma
só criatura normal, dessas que olham Dilermando com horror, que, dentro do quadro
daquelas circunstâncias, não fizesse a mesmíssima coisa?” (apud CIBELA, 1946). Essa nar-
rativa em específico, apresentada pela filha de Ana e Dilermando à guisa de biografia da
mãe, apresenta luzes mais favoráveis tanto a Ana quanto a Dilermando e, embora tenha
o cuidado de sempre se referir a Euclides da Cunha de forma respeitosa, não lhe é parti-
cularmente favorável.
Dilermando, ainda que faceando o perigo de perder a própria vida, matara mais
que um grande nome da literatura, ele dera cabo também a um jornalista, um colega
apreciado de todos aqueles que, ainda que por dever do ofício, contariam para o mundo
os desdobramentos daquele dia fatídico. Note-se que além de ter matado um caro cole-
ga jornalista, Dilermando, um militar, matara um jornalista civil em meio ao turbilhão de
uma campanha civilista7.Não podemos divorciar de todos esses fatos a (não tão) pequena
questão: Dilermando dormira com a esposa de Euclides, mais que isso, mantivera uma
relação com ela por anos, ela engravidara, parira e Euclides registrara esses filhos como
7 É o que argumenta DEL PRIORE (2009, p. 104), “o caldo de amarguras contra o exército não ajuda-
va a situação de Dilermando. Neste quadro, um militar que matasse um civil, mesmo em legítima defesa,
não tinha a simpatia do público”. Campanha civilista foi expressão criada para designar a campanha de
Rui Barbosa nas eleições presidenciais de 1910. Quando, em 1908, o então presidente Afonso Pena (1906-
1909) indica o seu ministro da Fazenda, Davi Campista, como candidato à sua sucessão, não há consenso.
Ao contrário, diversas facções políticas entram em conflito, dividindo-se em dois grandes grupos liderados
pelo Partido Republicano Paulista (PRP) e pelo Partido Republicano Mineiro (PRM). Foi então lançada a
candidatura do marechal Hermes da Fonseca, ministro da Guerra de Afonso Pena e, mais uma vez, não
houve consenso. O PRM apoiou Hermes, mas o PRP não, indicando o nome de Rui Barbosa para concorrer
à Presidência. Era o embate entre a República da Espada e a República dos Bacharéis, e a espada venceu
(Conforme informações disponíveis em https://cpdoc.fgv.br/, acesso em 20 dez 2019).
232
seus. Dilermando teria o direito de se defender dos próprios pecados? Teria o direito de
salvar o próprio sangue quando a ele cabia lavar a honra enxovalhada de um homem sem
par? A justiça pode até ter dito que sim, mas, com o resto do mundo, não foi tão simples
assim.
O art. 279 do Código Penal de 1890 previa que a mulher que cometesse adultério
seria punida com um a três anos de prisão. O homem, por sua vez, só incorreria nessa pena
se tivesse concubina teúda e manteúda. O tratamento desigual entre os sexos, comum na
sociedade, repetia-se na lei, uma vez que o adultério feminino era punido a partir apenas
do simples fato de ter acontecido, enquanto que o masculino tinha requisitos para se ca-
racterizar. Jurista do final do séc. XIX, Francisco José Viveiros de Castro argumentava que
a legislação criminal assumia papel civilizatório, incutindo no homem a responsabilidade
pelos seus atos e o respeito à honra da mulher, em uma “vitória das idéias morais sobre a
brutalidade dos instintos” (CASTRO apud MARTINS JUNIOR, 2005, p. 2).
233
Nos primeiros momentos após a morte de Euclides, Dilermando insistiu no discur-
so que a relação entre ele e Ana era como a de uma mãe e um filho. Ao depor, procurou
protegê-la, afirmando que ela não estava na casa da Estrada Real, no dia dos fatos, que
no momento dos tiros aproximava-se da casa com os filhos Sólon e Luis (GALVÃO, 2009).
Quando Ana foi ouvida pelo Delegado de Polícia no dia seguinte à morte de Euclides
(GALVÃO, 2009, p. 66-68) declarou que atribuía a morte do marido aos ciúmes infundados
que este sentia de Dilermando. E sem razão porque “as suas relações com os moços Di-
lermando e Dinorah foram sempre de proteção e carinho maternal”. Contudo, na mesma
data, em nova declaração à polícia, Ana muda sua versão, alegando querer “levantar a
memória de seu marido” (GALVÃO, 2009, p. 77) e declara que embora sempre tenha reco-
nhecido a grandeza de seu caráter e sua honradez, o comportamento ciumento dele lhe
fora muito difícil e, ao longo do tempo, despertou nela sentimentos que lhe eram estra-
nhos e, conhecendo Dilermando nessas circunstâncias, desenvolveu por ele sentimen-
tos de afeição e carinho, a princípio com inocência, porque ele lhe dispensava o mesmo
tratamento, mas que o passar do tempo estreitou esses sentimentos, culminando com o
desejo de se separar de Euclides, situação que Ana declarou, ainda diante da autoridade
policial, ter informado a Dilermando justamente no calor dos acontecimentos que culmi-
naram com a sua viuvez (GALVÃO, 2009, p. 77).
Quando Ana muda a versão de seu depoimento, com o argumento que preten-
dia contar a verdade para que não restasse a impressão que Euclides agira desprovido
de motivo. Os jornalistas aprovaram a dignidade da atitude da viúva, que passou a ser
descrita como vítima de uma paixão doentia e exploração por um homem mais jovem,
que dela se aproveitou inclusive financeiramente. Dilermando, em A Tragédia da Piedade,
lembrou que “não se tratava de uma ingênua donzela, inexperiente e mal encaminhada,
a que me tivesse imposto pela artimanha e pelas lábias” (ASSIS, 1951, p. 319).
Dilermando conta ele mesmo sua versão do que ele chama de “erro dos 17 anos”.
Discorre sobre uma intimidade nascida da convivência eivada de falta de malícia:
234
Euclides, morto e enterrado, tinha sua memória cuidadosamente defendida por
amigos e colegas. Regina Abreu observa que os jornais destacavam “sua competência,
sua honestidade, seu profissionalismo, seu talento, seu caráter, e suas qualidades artís-
ticas e intelectuais” (ABREU, 1998, p. 280 e ss). Na verdade, diz a pesquisadora, logo, as
narrativas subiram alguns degraus e Euclides passou a ganhar os contornos de deidade
que o acompanham até hoje: um homem com “esforço de vontade quase sobre humano”,
um homem que entrou “triunfante na glória dos grandes escritores”, um homem que re-
alizou “uma verdadeira Odisséia, da qual triunfaram o patriotismo, o brio, e a tenacidade
do grande brasileiro” (ABREU, 1998, p. 280). Para a comparação de Cunha a Ulisses, é a
própria Ana quem oferece uma réplica registrada por Brandão (1994, p. 14), “e se fosse
ao contrário? Se as mulheres viajassem, como se portariam os maridos à espera?”. Judith
conta:
Minha mãe ficou uma porção de anos esperando meu pai, que partiu para a guerra,
como na história de Ulisses. […] Pobre Penélope. O marido podia dormir com quantas
princesas ou escravas quisesse, lá por Tróia. Ela não. Tinha que se manter como se não
tivesse nervos, carne, sangue, envelhecendo a fiar (BRANDÃO, 1990, p. 14).
A imprensa iniciara uma narrativa elucidando que Dilermando traíra uma relação
de confiança com Euclides de forma muito pior do que a mera traição física da esposa
(que, recordemos, já seria grave o suficiente para os parâmetros da época). Era recorrente
o argumento que Euclides acolhera e auxiliara Dilermando em sua carreira militar, para
então ser traído de forma tão amarga. A máquina judiciária também pareceu se unir em
torno da construção dessa narrativa e no esforço de preservação da honra de Euclides e
da condenação de Dilermando – e Ana. Evaristo de Moraes traz uma reminiscência:
Foi principal preocupação minha reunir provas de que não houvera a apregoada in-
gratidão, porque, no caso, só esse aspecto moral tinha importância; o mais sempre se
me afigurou pouco. Temível, a despeito dos esforços do delegado Oliveira Alcântara e
do escrivão Anôr Margarido, que visavam fechar o caminho à legítima defesa (MORA-
ES, 1922, p. 212).
235
amanhecido o primeiro dia do segundo julgamento de Assis, a Folha do Dia insufla: “As-
sassino: o monstruoso matador de Euclides da Cunha”, e narra, sem descer o tom:
Mais uma vez, compareceu ontem, à barra do júri, Dilermando de Assis, o assassino
de Euclides da Cunha. Mais uma vez ainda ficou adiado esse julgamento reclamado
pela voz pública, para satisfação a uma sociedade de um delito monstruoso. A falta
de alguns jurados deu motivo a esse adiamento. Lá esteve o réu entretanto — auda-
cioso e cínico, a cuspir os seus olhares de escárnio sobre a multidão que o espreitava
como um ser desprezível e asqueroso. (Jornal Folha do Dia de 03/05/1913. Disponível
em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=3133 94&pag-
fis=49740&url=http://memoria.bn.br/docreader. Acesso em 06 set 2019).
A biografia Anna de Assis, história de um trágico amor traz, de início, a seguinte de-
dicatória:
Dedico este livro aos descendentes de Anna de Assis. Quero deixar aqui consignado o
meu repúdio a tudo que já foi escrito sobre ela. Anna de Assis foi uma mulher excep-
cional, como amante, como esposa, como mãe. Com muito respeito e admiração, sua
filha Judith. (ANDRADE, 2009, p. 6).
8 Revista de nº 153, ano IV, 06/05/2011, notícia às fls. 15. Arquivo disponível em http://objdigital.
bn.br/acervo_digital/div_periodicos/careta/careta_anos.htm, Acesso em 24 ago 2019).
236
co amor”, publicado em 1987 com a visível intenção de enodoar a memória de Euclides
da Cunha e sua família, além de injuriar, difamar e caluniar. Livro que inclusive desres-
peitou a credulidade do leitor, passando-lhe versões, situações e dados que, como será
demonstrado, são absolutamente falsos.
Por isso, não poderíamos deixar sem resposta procedimento tão indigno, colocando
este trabalho ao lado daquele, nas bibliotecas e nas estantes, para todo o sempre. De-
ploramos que a vaidade doentia dos que desejaram aparecer a qualquer custo, alia-
da à ganância do ganho financeiro pelo sensacionalismo condenável, tenha levado
alguns à reabertura do doloroso drama ocorrido em 1909, que sempre mereceu de
nossa parte o mais respeitoso silêncio.
Esperamos que estas páginas sejam suficientes. Mas, se necessário, ou se assim nos
forçarem os ousados caluniadores, nosso arquivo, mais uma vez, voltará a responder-
-lhes com novos documentos. (BRANDÃO, 1990, p. 9).
Dessas palavras exaltadas, importante destacar que o que se nota é uma das conse-
quências dos acontecimentos da Piedade foi a divisão da família entre os descendentes
de Ana e os descendentes de Euclides, como se os filhos de Euclides também não fossem
filhos de Ana. De fato, em muito, a narrativa se constrói para mostrar que Ana falhara no
seu papel primordial, o de guardiã da família, logo, falhara também com os filhos, que,
assim, necessitavam de proteção. Separada da família, ela até poderia recomeçar a vida
ao lado de Dilermando, mas preservar a honra do falecido Euclides passava por manter os
filhos dele longe de Dilermando – e de Ana.
Ana e Dilermando superaram muito juntos, mas a relação deles não resiste. O casal,
que se unira como amante em 1905 e em matrimônio em 1911, se separa no ano de 1926,
embora nunca chegue a requerer o desquite. Dilermando irá se tornar viúvo no ano de
1951, pouco antes de sua própria morte, ainda em tempo de regularizar a situação ma-
trimonial com sua companheira de muitos anos, Maria Antonieta, a Marieta, mãe de sua
filha caçula, Dirce, autora do livro O Pai.
237
Se Anna de Assis é uma ode de uma filha à mãe perfeita e Águas de Amargura uma
defesa veemente de um grande homem, O Pai é o retrato de um homem que passou a
vida à sombra das escolhas de sua juventude, e levou a família com ele. Acerca dos pais,
Dirce rememora, “sempre me custou acreditar que algum dia meus pais pudessem ter
sido jovens e felizes. E me causava surpresa, quase descrédito, qualquer testemunho de
que se pudessem ter enamorado e vivido paixões avassaladoras. ” (CAVALCANTI, 1998, p.
16).
9 Ela foi entrevistada por Jô Soares quando a minissérie Desejo foi ao ar. Disponível em https://www.
youtube.com/watch?v=nV6uM7NMopc. Acesso em 10 nov 2019.
238
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Jefferson; ASSIS, Judith Ribeiro de. Anna de Assis. História de um trágico
amor. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2009.
ASSIS, Dilermando de. A Tragédia da Piedade. 2ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Edições O Cru-
zeiro, 1951.
CIBELA, Ângelo. Um Nome, Uma Vida, Uma Obra. Dilermando de Assis. Rio de Janeiro:
Tip. Duarte, Neves & Cia., 1946.
CAVALCANTI, Dirce de Assis. O Pai. 5ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.
GALVÃO, Walnice Nogueira (Org.). Euclides da Cunha: autos do processo sobre sua mor-
te. São Paulo (SP): Editora Terceiro Nome, 2009.
LEVILLAIN, Philipe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René (org.). Por uma
História Política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996, p. 148-149.
MARTINS JUNIOR, Sob o signo de Otelo: Francisco José Viveiros de Castro e as “contra-
dições” na jurisprudência sobre crimes passionais. In Rev. hist., São Paulo, n. 135, dez.
1996.
239
MOXNES, Halvor. Honor and Shame. In Biblical Theology Bulletin. 1993. P. 19-40. Dispo-
nível em file:///C:/Users/Usuario/Downloads/357560636-Halvor-Moxnes-Honor- and-
-Shame.pdf. Acesso em 10 mar 2020.
240
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO SEGUNDO SIMONE DE BEAUVOIR
INTRODUÇÃO
O presente trabalho irá discutir quais as causas que a mulher foi dominada pelo
homem. Para isto, será usado como principal fonte o livro O Segundo sexo (1949), onde a
autora Simone de Beauvoir faz uma análise de como isso aconteceu, narrando os vários
momento que a mulher foi menospreza na história. Para Beauvoir, o fato de maior rele-
vância foi o advento da propriedade privada, que anulou a mulher, dando mais enforque
no homem, que passou a escravizar outros homens. Uma vez que as mulheres não tinha
força física para o trabalho forçado que a escravidão exigia. Outro fator de muita impor-
tancia, considerado para Beauvoir, a maternidade foi outro fato que ajudou para que a
mulher fosse anulada.
TEIXEIRA, Rita de Cássia Caetano. A representação do feminino segundo Simone de Beauvoir, In: GRUPO DE
ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística,
2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 241-258.
(2013) que trata da questão da maternidade compulsória que é um dos pontos que é
tratado na obra O Segundo Sexo (1949) da alienação da mulher em questão de grandes
conquistas do mundo. Outra obra que será abordada dentro do tema é o artigo Um Dia-
logo Possível Entre Margaret Mead e Simone de Beauvoir, que faz a abordagem da mulher
enquanto gênero, foi a junção de duas importantes escritoras na temática, cada uma em
sua época que mudou todo um imaginário. Ambas as escritoras, cada uma viveu em uma
época, mas que com a análise deste artigo, percebemos que tem pontos semelhante nos
discurso das duas escritoras.
Para esta temática será utilizada ainda a obra de Micheli Perrot Minha História das
Mulheres (2006) esta obra é a mais acessível da autora. Nasceu de um programa de rádio
francês que fez muito sucesso, que tinha como objetivo divulgar o conteúdo de pesquisa
e reflexões acadêmica para um público que não tinha o entendimento adequado sobre o
tema. O livro aborda a crescente ascensão da mulher nos espaços da sociedade. A autora
faz uso de personagens para ilustrar como as mulheres conseguiu o espaço merecido na
sociedade. Será usado, ainda, o livro Problema de Gênero: feminismo e Subversão da Iden-
tidade (1990) de Judith Butler, que é a autora de referênciateorica de feminismo mate-
rialista e pós-modernidade. O livro desconstrói toda a teoria de gênero que o feminismo
baseava-se. A principal tarefa de Butler foi, repensar teoricamente a “identidade definida”
das mulheres como uma categoria definida e emancipada no movimento feminista.
OBJETIVOS:
Objetivo Geral: Analisar por meio da obra literária “O Segundo Sexo” da autora Simone
de Beauvoir como ela representa historicamente a dominação masculina ao longo da história.
242
Objetivos Específicos:
REFERENCIAL TEÓRICO
[...] escreviam três historiadoras feministas “que escrever as mulheres na história impli-
ca necessariamente na redefinição e o alongamento das noções tradicionais daquilo
que é historicamente importante, para incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva
quanto as atividades públicas e políticas (SCOTT, 1995).
O segundo capítulo do livro O Segundo Sexo (1949), discute o ponto de vista psica-
nalítico, que resumidamente, faz uma análise de como a psicanalise vê a questão de cada
gênero. Beauvoir, inicia dizendo:
Não é um corpo-objeto descrito pelos cientistas que exige concretamente e sim o cor-
po vivido pelo sujeito. A mulher é uma Femea na medida em que se sente femea [...].
Assim, é que a estrutura do ovário nela não se reflete; ao contrário, um órgão sem
grandes importancia biológica, como o clitóris, nela desempenha um papel de primei-
ro plano (BEAUVOIR, 1949).
Por tanto, para ser caracterizado com um gênero é preciso sentir-se pertencente a
tal gênero, na visão de Simone de Beauvoir. Com esta afirmação, surge por tanto, a discus-
243
são de determinismo biológico, onde Joan Scott explica:
No entanto, Judith Batler põe o gênero como uma construção social por um corpo
sexuado, ou seja, só define homem ou mulher por que é ensinado para as crianças. Nesta
perspectiva, ela explica:
Levada ao seu limite logico, a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade ra-
dical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos. Suponhamos por
um momento a estabilidade do sexo binário, não decorre daí a construção de “ho-
mens” aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou o termo “mulheres” inter-
prete somente o corpo feminino (BATLER, 2003).
Assim percebemos, que era claro que com esta nova metodologia as mulheres se-
riam incluídas na história por meio de suas experiências pessoais. O qual iria explicar, pos-
teriormente, como o gênero seria uma nova categoria de análise. Assim, surgiria ao longo
dos tempos outras categorias de analise como raça, classe e gênero e, como resultado
das pesquisa seria mostrado o motivo das desigualdade de poder ao longo do tempo.
Batler ressalta:
Simone de Beauvoir constrói isso muito bem, quando enfatiza que a “sexualidade é
coextensiva a existência”. Podemos entender esta afirmação de duas formas: a primeira é
que o avatar (corpo) tem todo o significado sexual e, a segunda que todo fenômeno sexu-
244
al tem sentido existencial. Ambas as afirmações são possíveis de haver uma conciliação.
Ela aponta, ainda: “[...] desde que se distingue “sexual” e “genitália” a noção de sexualidade
torna-se vaga. [...] Mas nada é mais turvo do que a ideia de “aptidão”, isto é, de possível: só
a realidade fornece a prova indubitável da possibilidade (BEAUVOIR, 1949).”
A questão parece estranha. “Tudo é história”, dizia George Sand, como mais tarde Mar-
guerite Yourcenar: “Tudo é história”. Por que as mulheres não pertenceriam à história?
Tudo depende do sentido que se dê à palavra “história”. A história é o que acontece,
a sequência dos fatos, das mudanças, das revoluções, das acumulações que tecem o
devir das sociedades (PERROT,2007).
Ela diz que a mulher ficou muito tempo sendo apenas uma reprodução, esquecidas
pelas massas da sociedade. É que fato que as mulheres não foram as únicas esquecidas,
como se estivesse fora do seu tempo. E, é esse esquecimento que tem muitas razões de
acontecer.
[...] Enquanto o termo “história das mulheres” proclama sua posição política ao afirmar
(contrariamente as práticas habituais) que as mulheres são sujeitos históricos validos,
o termo “gênero” inclui as mulheres, sem lhes nomear, e parece, assim, não constitui
uma forte ameaça. Esse uso do termo “gênero” constitui um dos aspectos daquilo que
se poderia chamar de busca pela legitimidade acadêmica para os estudos feministas,
nos anos 80 (SCOTT, 1995).
Assim, o “gênero” vem como um termo que não produz “ameaças”. Uma vez que os
homens poderiam achar que as mulheres pesquisadoras da história das mulheres, que-
riam pôr as mulheres em lugar de destaque. Sendo, que não era isso que acontecia, elas
queriam apenas igualdade na forma de viver e privilégios másculos, além de tentar en-
tender como esta dominação masculina aconteceu.
245
Existem fatores sociológicos, entre eles, a presença das mulheres na universidade. [...]
Os fatores políticos, no sentido amplo do termo, foram decisivos. O movimento de
liberação das mulheres, desenvolvido a partir dos anos 1970, não visava de início à uni-
versidade e suas motivações não incluíam a história: contava com o apoio de mulheres
intelectuais (PERROT, 2007).
O termo “gênero”, com isso, fez a substituição da palavra “mulher” e foi usado ainda,
para designar uma informação da mulher em relação ao homem. Scott, enfatiza que esta
informação, só confirma que o mundo das mulheres fazia parte do mundo dos homens.
“Gênero” também é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Neste caso,
há a rejeição bastante explicita das explicações biológicas, como a ideia de dominador
comum e as diversas formas de subordinação feminina.
Ao invés disso, cria o chamado “construções sociais” por Scott, que a criação intei-
ramente sociais de ideias sobre os papeis adequados aos homens e as mulheres, é uma
forma de referir-se a origem da identidade social subjetivas de homens e mulheres. Por
tanto, segundo esta última definição, “gênero” é um categoria social imposta sobre o cor-
po sexuado. A partir disso, os estudos sobre a palavras “gênero” tomou o campo do sexo
e sexualidade tornando o mesma, uma palavra extremamente útil, pois difere a pratica
sexual atribuídos as mulheres e aos homens. Scott, explica:
O uso de “gênero” enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas
não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente uma sexuali-
dade (SCOTT, 1995).
MichelliPerrot, complementa:
246
atribuído aos sexos, o que Françoise Héritier chama de “valência diferencial dos sexos”.
Nos campos de antigamente, os sinos soavam por menos tempo para o batismo de
uma menina, como também soavam menos para o enterro de uma mulher. O mundo
sonoro é sexuado (PERROT, 2007).
A virgindade das moças é cantada, cobiçada, vigiada até a obsessão. A Igreja, que a
consagra como virtude suprema, celebra o modelo de Maria, virgem e mãe. [...] Essa va-
lorização religiosa foi laicizada, sacralizada, sexualizada também: o branco, o casamen-
to de branco, no Segundo Império, simboliza a pureza da prometida.Preservar, pro-
teger a virgindade da jovem solteira é uma obsessão familiar e social (PERROT, 2007).
A violação nesse sentido, a violação das meninas é um grande risco, uma vez que
a iniciação dos meninos é construído um rito que era tolerado por todos. Os grandes
escritores, descreviam este ato como “um bando de rapazes que estavam atrás de uma
presa”. Aquela que se deixa-se capturar por essa tentação, tornava-se suspeita de ser uma
mulher fácil. Perrot, destaca ainda, que depois que as moças eram defloradas, nenhum
homem a queriam como esposa. Assim, uma vez deflorada, esta mulher era condenada a
serviço da prostituição, sendo renegada para o resto da sua vida.
Chartier nos deixa explicito que toda reflexão metodológica, tem suas raízes em
uma história pratica e particular, em um espaço de trabalho especifico. Ele propõe três
247
polos, que são separados pelas tradições acadêmicas:
248
aos estudos das lutas de econômicas. No entanto, há um retorno hábil sobre o social, pois
concentra a atenção nas estratégias simbólicas que determinam as posições e as relações
que constroem para cada classe, grupo e/ou meio, sendo um ser-percebido constitutivo
de sua própria identidade.
249
veis como índices seguros de uma realidade que não o é. Portanto, após ser desviada,
a representação transforma em uma máquina de fabricar respeito e submissão, em um
instrumento que produz uma exigência interiorizada, que é necessária para onde faltar o
recurso da força bruta.
Quando Chartier fala das formas de exercício de poder, a perspectiva dele supõe
um distanciamento em relação ao “retorno político”. Foi fundada sobre a liberdade do su-
jeito, que pensando como livre de toda qualquer determinação, era privilegiado de ideias
e a partir da reflexãoda ação. Uma posição que firma a ideia de duas afirmações: ignora as
exigências não sabidas pelos indivíduos e que regulam as representações e ações e, su-
põe a eficácia das próprias ideias e discursos, separado das formas em que se comunicam,
destacando a pratica de investirem de significações plurais e concorrentes.
Nossa perspectiva é outra: quer compreender a partir das mutações no modo de exer-
cício do poder (geradores de formações sociais inéditas) tanto as transformações das
estruturas da personalidade quanto as das instituições e das regras que governam a
produção das obras e a organização das práticas. A ligação estabelecida por Elias en-
tre, por um lado a racionalidade de corte — entendida como uma economia psíquica
específica, produzida pelas exigências de uma forma social nova, necessária ao abso-
lutismo — e, por outro, os traços próprios à literatura clássica — em termos de hie-
rarquia de gêneros, de características estilísticas, de convenções estéticas — designa
com acuidade o lugar de um trabalho possível (33). Mas é também a partir das divisões
instauradas pelo poder (por exemplo entre os séculos XVI e XVII entre razão de Estado
e consciência moral, entre patronagem estatal e liberdade de foro íntimo) que devem
ser apreciadas tanto a emergência de uma esfera literária autônoma como a consti-
tuição de um mercado de bens simbólicos e de julgamentos intelectuais ou estéticos
(34). Estabelece assim um espaço da crítica livre onde se opera uma progressiva politi-
zação, contra a monarquia do Antigo Regime de práticas culturais que o Estado tinha
durante algum tempo capturado em seu proveito — ou que tinham nascido como
reação a seu ascendente, na esfera do privado (CHARTIER, 1991).
250
obras, das representações e das práticas às divisões do mundo social que, conjuntamen-
te, significam e constroem.
FONTES
METODOLOGIA
A História é construída por memorias coletivas e, esta memoria para ser cientifica
existe dois materiais: os documentos e monumentos. Estes materiais, podem ser classi-
ficados como, respectivamente, escolha do historiador e herança do passado. Le Goff,
conceitua sobre o monumento:
251
fundamento do fato histórico, ainda que resulte da escolha, de uma decisão do histo-
riador, parece apresentar-se por si mesmo como prova e histórica. A sua objetividade
parece opor-se a intencionalidade do monumento. Além do mais, afirma-se essencial-
mente como um testemunho escrito (LE GOFF, 2003)
Boa parte dos documentos, tinha que ser em textos escrito. Mas, com o decorrer
do tempo, os documentos foram tratados como monumentos. Uma vez que, na época,
existia muita desconfiança em relação aos monumentos. Assim, o fundamento da histó-
ria “cientifica”, que vai permitir a critica do documento, de maneira a trata-lo como um
monumento.
Le Goff, acrescenta:
Os documentos, portanto, não são qualquer coisa que fica no passado, são produ-
ções de uma sociedade, que foi fabricada de acordo com as suas forças e os poderes que
detinham. Somente a analise de um documento como um monumento, permite que a
memoria coletiva possa recupera-lo e, ao historiador, permite-lhe usa-los cientificamen-
te. Ou seja, com pleno conhecimento de causa.
252
A intervenção do historiador que escolhe o documento, extraíndo-o de um conjun-
to de dados do passado, atribui-lhe um valor de testemunho que depende de sua própria
posição na sociedade da sua época e de sua organização mental, inserindo assim, em
uma situação inicial que é menos “neutra” do que a sua intervenção.
Le Goff ressalta:
253
do campo da memoria para o campo da ciência histórica.
Prost, 2008, vem nos elucidar sobre como devemos tratar os conceito históricos. Ele
diz que é possível encontrar conceitos adequados na linguagem da época, para que seja
designado as realidades do passado. No entanto, os historiadores recorrem a conceitos
estrangeiros da época por parecer bem adaptados.
254
Os verdadeiros conceitos permite a redução a dedução; permitem uma definição
de uma propriedade pertinente, do qual resulta em uma serie de consequências. Os con-
ceitos da História não dependem de um tipo especifico de conceito, mas são contruidos
por uma series de generalização e são definidos por inúmeros de alguns traços pertinen-
te que tem a ver com a generalidade empirica.
Por serem abstratos e fazerem referência a uma teoria, os conceitos formam rede:
eis o que ficou demonstrado com o exemplo da crise do Antigo Regime. Por sua vez, o
exemplo do fascismo, que tem a ver com um domínio completamente diferente, é uma
demonstração, talvez, ainda mais esclarecedora.
Uma parte do sentido dos conceitos históricos advém-lhes, de fato, dos determinantes
que lhes são atribuídos. Aliás, é rara sua utilização, pelo historiador, sob uma forma
absoluta: assim, o temi o revolução é reservado ao evento de 1789. Todas as outras
aplicações dessa palavra, para serem compreendidas, exigem uma qualificação por
adjetivos ou complementos: datas (1830, 1848) ou epítetos — revolução industrial e,
inclusive, primeira ou segunda revolução industrial, revolução das estradas de ferro,
revolução tecnológica, revolução camponesa, agrícola, chinesa, soviética, política e
social, etc (PROST,2008).
A história não cessa de pedir de empréstimo os conceitos das disciplinas afins: ela
passa o tempo chocando ovos alheios. Por ser ilimitadamente aberta, descartamos apre-
sentar a lista desses conceitos. Assim, Prost, 2008, considera:
255
Da forma mais natural do mundo, a história política utiliza os conceitos do direito
constitucional e da ciência política e, até mesmo, da política propriamente dita: regi-
me parlamentar ou presidencial, partido de quadros ou de massa, etc (PROST, 2008).
256
Assim, os conceitos da história resultam, assim, de lutas raramente aparentes pelas
quais os atores tentam fazer prevalecer as representações do social que lhes são pró-
prias: definição e delimitação dos grupos sociais, hierarquias de prestígio e de direitos,
etc. Por exemplo, L. Boltanski mostra como a aparição do termo quadro, tão característico
da maneira francesa de dividir a sociedade, efetua-se no contexto do Front populaire,
em concorrência com o conceito de classes médias e por oposição, ao mesmo tempo, ao
patronato e à classe operária. Os conceitos adquirem sentido por sua inserção em uma
configuração herdada do passado, por seu valor performático anunciador de um futuro e
por seu alcance polêmico no tempo presente.
257
REFERÊNCIAS
CHATIER, Roger. O mundo como representações. Estudos Avançados. Revista das Re-
vistas. Ano 1991.
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. In: Minha História das Mulheres. Tra-
dução de Angela M.S. Correa. São Paulo: Contexto, 2007.
PROST, Antoine. Os conceitos. In: ______. Doze lições sobre a História. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2008, pp.115-131.
Sardenberg, Cecília Maria Bacellar. Motta, Alda Britto da. Gomes, Márcia. Um Diálogo
com Simone de Beauvoir e Outras Falas. Disponível em: repositorio.ufba.br/ri/handle/
ri/6878. Acesso em: 20 de maio de 2019.
258
ICONOGRAFIAS
(AUTO)BIOGRÁFICAS
COMO SE FAZ UMA GRAVURA NO SÉCULO XVI?
A VIDA DE JOHANNES STRADANUS (1523-1605)
Para pensarmos nas gravuras e sua circulação, precisamos entender como e por
quem eram produzidas. Um dos produtores foi Johannes Stradanus, nascido na cidade
de Bruges, na atual região da Bélgica. Seu pai, homônimo a si, era um gravurista não mui-
VESPUCCI, Augusto Godinho. Como se faz uma gravura no século XVI? A vida de Johannes Stradanus (1523-
1605), In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e
na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 260-269.
to conhecido, mas que possivelmente teve grande peso nas decisões que fizeram parte
da vida de Johannes Stradanus, já que este também se tornou um gravurista. Era comum,
como aponta Jacques Le Goff, em fins da Idade Média, que os ofícios fossem aprendidos
pelos filhos, para que estes dessem continuidade aos negócios dos pais (LE GOFF, 1992).
Contudo, ainda jovem, Stradanus se muda para a península Itálica, mais especificamente
para a cidade de Florença, um dos centros culturais renascentistas mais poderosos. Era
comum que os artistas de toda a Europa se dirigissem para Florença, porque buscavam
terminar seus estudos nas Artes. Era sabido também entre os artistas do período, que
os Médici, principalmente Cosimo I, atuavam como mecenas (comitentes ou clientes de
obras artísticas) e garantiam renda e trabalhos. O humanismo cívico instaurado por Leo-
nardo Bruni ainda no Quattrocento, deu nascimento a uma perspectiva de que Florença
era a cidade Moderna correspondente à Atenas de Péricles na Antiguidade, por isso pre-
zava-se pela contratação de artistas para o embelezamento da cidade (JANSON, 1966).
Em Florença, Stradanus trabalhou como pintor na Guilda de São Luca, sendo posterior-
mente contratado por Giorgio Vasari (1511-1574), para pintar afrescos no Palazzio Vec-
chio, sede administrativa da família Médici. Considerado como um artista independente
em Florença, é contratado por Mecenas privados e algumas igrejas, chegando a pintar no
Vaticano (MARKEY, 2012).
Após 1554, estuda na disputada Academia del Disegno por indicação de Giorgio Va-
sari e até a década de 1570 trabalha em projetos mais independentes, como demonstra a
sua produção de retratos para o Rei João da Áustria e Felipe II, rei da Espanha. A partir de
1570, Stradanus passa a ser visto como artista da corte dos Médici, trabalhando primeiro
para Cósimo I de Médici (1519-1574), depois para seus dois filhos, também Grão-duques
da Toscana, Francesco I de Médici (1541-1587) e Ferdinando I de Médici (1549-1609). Pro-
duziu também na Academia Degli Alterati para os Alamani, uma das importantes famílias
que compunham o grande patronado dos Médici por toda a região da Toscana.
Há, contudo, um momento em que a fama do gravurista flamengo passa a ser re-
conhecida também como gravurista e não somente como pintor. Nos volumes da obra
“Vida dos mais eminentes pintores, escultores e arquitetos”, de Vasari, Stradanus aparece
em algumas citações que indicam sua caracterização:
261
Da nossa academia, também, Giovanni della Strada, um flamengo, que [tem] bom de-
senho, a melhor fantasia, muita invenção e uma boa maneira de colorir; e, tendo feito
muita proficiência durante os dez anos em que trabalhou no Palácio em destemper,
afrescos e óleos, depois dos desenhos e instruções de Giorgio Vasari, ele pode [se]
comparar com qualquer um dos muitos pintores que o referido Grande Duque tem em
seu serviço (VASARI, 2009, p. 18).
262
Stradanus foi um inventor, ou seja, um desenhista de gravuras, aquele que produzia
o conteúdo a ser gravado e impresso. Na obra de Vasari, escrita entre 1550 e 1568, Stra-
danus já aparece como um bom desenhista, habilidade que lhe garantiu espaço no mer-
cado visual do período. Após a morte de Vasari - seu mestre -, Stradanus se dedica cada
vez mais à gravura e menos à pintura, fazendo parcerias com a família Galle, importante
no ramo de impressões na cidade de Antuérpia, nos Países Baixos. Primeiro Stradanus se
relaciona com Philips Galle (1537-1612), depois com seu filho Theodor Galle (1571-1633)
e o filho dele, Johannes (1600-1676). A produção da primeira edição de Americae Retectio
é feita com Philips e seu genro Adriaen Collaert. As próximas 4 edições publicadas entre
1591 e 1638 foram produzidas por Theodor e Johannes (MARKEY, 2012).
Imagem 1: “Autorretrato de Johannes Stradanus”, desenho por Johannes Stradanus e impressão por
Johannes Wierix. Gravura em papel, 1581.
263
Imagem 2: “Autorretrato de Johannes Stradanus”, desenho por Johannes Stradanus, gravação por Hen-
drick Goltzius e impressão por Johannes Wierix. Gravura em papel, 1583.
2 Katherine Park destaca que as alegorias são “representações físicas abstratas de conceitos, geral-
mente encorpados – sendo uma das principais formas literárias e visuais de comunicação na Europa Mo-
derna”, utilizadas para atribuir valores aos conteúdos das obras (PARK, 2011, p. 360, tradução nossa).
264
além de ornamentos, expressões e figuras grotescas3 (MARKEY, 2020). Já a publicação de
1583 trouxe algumas alterações, porque Hendrick Goltzius também participou da obra
como “escultor”, acrescentando detalhes no próprio design da gravura. O que Goltzius
acrescenta indica uma linha de pensamento de autovalorização não incomum no perío-
do. Itens como o compasso que fica abaixo da figura da Arquitetura, indicam harmonia
e equilíbrio, além da cabeça de leão alada abaixo do rosto de Stradanus, que é um dos 4
animais descritos no livro Apocalipse pelo apóstolo João. O leão alado (também conheci-
do como “Leão de São marcos”) fica sentado ao lado do trono de Jesus e é visto por João,
sendo o primeiro dos 4 animais a ser descrito pelo apóstolo. O leão é aquele que anuncia
a segunda chegada de Jesus Cristo, promovendo-lhe fama e glórias “sem descansar nem
de dia nem de noite” (A BÍBLIA, 2015, p. 1906). Outro acréscimo de Goltzius é destacável
aqui, como a mão de Stradanus que sai do halo de apresentação do artista, segurando
uma pena, quase como se o próprio Stradanus se desenhasse. A mão de Stradanus não
apenas parece se desenhar, mas também parece se construir, pois sua fama advém de seu
trabalho baseado na razão e objetividade, como veremos adiante.
3 As frases “IPSA VIVITUR”, “NON FALLITUR”, “RATIONE PERFECTUS” e “QUID NON SUPERBAT”, lidas jun-
tas formam: “Na razão, a vida é vivida mais perfeitamente; o que não excede não erra”. A frase “SOLA MA
NET VIRTUS, LABUNTUR CAETERA QUAEQUE AND DIVITAE VIRES, FAMA IVVENTA DECUS” se traduz como: “Resta
apenas a virtude, todo o resto se esvai: riquezas, força, fama, juventude, glória” (MARKEY, 2020, p. 184).
265
O gravurista alemão Augustin Hirschvogel (1503-1553) também retratou as “ciên-
cias medianas”, mas o fez em seu autorretrato, substituindo o pincel e o buril, instrumen-
tos típicos conhecidos no ramo de gravuras, por compassos e uma alegoria da Geome-
tria. Ainda segundo Katherine Park, “em meados do século XVI, entretanto, os artistas
começaram a se promover pelas suas habilidades particulares, anteriormente ligadas às
“artes mecânicas”, em alegorias, que corajosamente inseriram a imprensa e o desenho
ao ramo das Artes Liberais” (PARK, 2011, p. 363, tradução nossa). O conhecido pintor fla-
mengo, Frans Floris (1517-1570), fez o mesmo quando colou uma gravura na porta de sua
própria casa, em 1560, representando alegoricamente a Pintura, Escultura e a Geometria.
Portanto, Stradanus, já em 1583, estava familiarizado com a utilização de alegorias e ob-
jetos materiais em retratos, indicando as “artes manuais” não mais como partes inferiores
do conhecimento, mas valorizando-as, ao mesmo tempo que se valorizava. Park aponta
ainda que Stradanus foi um dos primeiros autores a dar um passo ainda mais além na
valorização das “ciências medianas”, pois algumas de suas gravuras que representam a
conquista da América demonstram a superioridade europeia em relação aos ameríndios
pela utilização de instrumentos racionais em oposição ao mundo supostamente irracio-
nal em que os nativos viviam (Idem, 2011).
Segundo Alessandra Baroni Vanucci, uma das maiores especialistas no estudo das
obras de Stradanus, o gravurista flamengo trazia ainda em suas obras outras facetas da
autovalorização, como pode ser percebido no lema inscrito abaixo de seu rosto nas ima-
gens 1 e 2: “ASSIDUITATE NIHIL NON ADSEQUITUR”, que se traduz como “Não há nada que
não possa ser alcançado por perseverança”, indicando uma perspectiva de valorização do
artista pela sua perseverança e não por talentos inatos. Esses autorretratos foram usados
como frontispício adicionados nas séries de gravuras “Passio Mors et ressurrectio de Nostri
Jesu Christo” (ca. 1584) e a “Encomium musicae” (ca. 1590), pois era comum, segundo Lia
Markey, que autores acrescentassem autorretratos nas suas séries, principalmente para
fazer sua imagem ser reconhecida (MARKEY, 2020). Alguns outros gravuristas, ainda se-
gundo a autora, buscavam formas de autovalorização muito mais amplas e destacadas,
como fez o próprio Hendrick Goltzius, que se dizia como o “Apeles de seus tempos”, um
conhecido pintor da Antiguidade clássica (VANUCCI, 2011, p. 5).
266
dos processos de produção de suas obras, como ocorrerá nos séculos XVIII e XIX, a no-
meação de obras passa a ser um dos aspectos importantes quando elas são finalizadas.
No caso das gravuras, as obras são geralmente nomeadas por todos os seus autores. Um
dos primeiros gravuristas a começar a identificar a autoria das obras é Albrecht Dürer,
após ter descoberto que Marcantonio Raimondi copiava suas gravuras e as vendia como
se fossem de autoria dele (VASARI, 2009). O individualismo renascentista, segundo Jean
Delumeau, influencia no aumento da valorização dos artistas, principalmente a partir dos
retratos e autorretratos, que visavam o estabelecimento de um status soberano daquele
que possui habilidades consideradas raras e se destacava em meio aos demais cidadãos
(DELUMEAU, 1994).
Após um bom tempo na península itálica, sem ter perdido contato com os países
baixos, Johannes Stradanus falece em 2 de novembro de 1605, em Florença. Sua sepultura,
como era comum desde a morte de Leonardo Bruni, não carregava mais os traços medie-
vais que visavam à eternidade da alma, mas sim a valorização de seus feitos em vida e de
sua individualidade. Segundo Horst Janson, as tumbas eram dispostas de modo que po-
diam valorizar o indivíduo, não mais o direcionando para o Paraíso, mas sim para a História.
Leonardo Bruni, por exemplo, é enterrado com o livro “História de Florença”, uma coroa de
louros e com o manto que usou como secretário da República de Florença (JANSON, 1966).
Imagem 3: “Busto de Johannes Stradanus”, Giovanni Battista Caccini, mármore e metal, 1606, Florença.
267
Apesar de não termos muitos dados sobre o sepultamento de Stradanus, sabe-
mos que um busto foi construído para sua lápide na Basílica Della Santissima Annuziata,
em Florença, por Giovanni Battista Caccini (um escultor também a serviço dos Médici) e
carregava a inscrição: “IOANNI STRADANO BELGAE BRUGENSI PICTORI CLARISSIMO IN HAC
AEDE QUIESCENTI SCIPIO FILIUS IMAGINEM AD VIVUM EXPRESSUM MOERENS BENEMEREN-
TI -P- MDCVI VIXIT ANNOS LXXXII OBIIT QUARTO NONAS NOVEMB. MDCV”, traduzida como
“Johannes Stradanus, belga brugense, pintor brilhantíssimo nessa quiescente imagem
de filho de Scipio, vivem expressos seus beneméritos de morte -P- 1606, viveu 82 anos,
morreu em 2 de novembro de 1605” (imagem 3). Essa inscrição identifica Stradanus como
“pintor brilhantíssimo” e não como gravurista. Isso possivelmente se deve ao fato de que
a gravura não era tida sempre como uma das formas de Arte e também porque, por ter
pintado o interior de muitas igrejas, pode ter sido mais reconhecido no ramo eclesiástico
por seus afrescos e menos por suas gravuras. A identidade de Stradanus não é monolítica,
mas sim, fragmentada, sendo pensada e vista por seus contemporâneos e por si mesmo
de acordo com seus contextos e seus valores. Essa variação da identificação de um artista
é um dos sintomas da crescente fragmentação moderna presente na autovalorização do
artista.
268
REFERÊNCIAS
BORGHINI, Raffaello. Il Riposo. Ed. Mario Rosci. Edizioni Labor, vol. 2. Milão, 1967.
JANSON, H. W. The image of man in Renaissanc Art: From Donatello to Michelangelo. In:
O’KELLY, Bernard (Ed.). The Renaissance image of man and the world. Ohio State Univer-
sity Press, 1966.
PARK, Katherine. Allegories of Knowledge. In: DACKERMAN, Susan. Prints and the Pur-
suit of Knowledge in Early Modern Europe. Yale University Press (Ed.), Londres, 2011.
RESTA, Sebastiano. The True effigies of the most eminent Painters and other famous
artists that have flourished in Europe curiosly engraven on copper plates. 1697. Dispo-
nível em <https://archive.org/details/trueeffigiesofmo00rest/mode/2up> Acesso em:
15/07/2020.
STEWART, Alison. The Birth of Mass Media: Printmaking in Early Modern Europe. Facul-
ty Publications and Creative Activity, School of Art, Art History and Design. 22, 2013.
VANUCCI, Alessandra Baroni & SELLINK, Manfred. Stradanus (1523-1605): Court artist
of the medici. Ed. Brepol Publishers, Bélgica, 2012.
VASARI, Giorgio. Lives of the most eminent painters sculptors & architects. Newly
translated by gaston du c. de vere. with five hundred illustrations: in ten volumes. Produced
by Mark C. Orton, Christine P. Travers and the Online Distributed Proofreading Team at
http://www.pgdp.net. 2009.
WOUK, Edward. Toward an Anthropology of print. In: SCHMIDT & WOUK (ed.). Prints in
translations, 1450-1750, imagem, materiality, space. Ed. Routledge, New York, 2017.
269
MARIA LEOPOLDINA, A MÃE DO BRASIL: A REPRESENTAÇÃO
BIOGRÁFICA A PARTIR DA ESTÉTICA MONUMENTAL
Introdução
GUIMARÃES, Mayara Monteiro. Maria Leopoldina, a mãe do Brasil: a representação biográfica a partir da es-
tética monumental, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas
na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p.
270-281.
rador D. Pedro I para amante Domitila de Castro, conquistou o amor do povo brasileiro,
que muito admirou sua atuação social e política, e a considerou a matriarca da nação
independente.
A Habsburgo
Para a família Austríaca a educação era primordial, não só para os homens, como
também para as mulheres - ambos falavam diversos idiomas, tinham conhecimentos das
ciências naturais e da política. Segundo Rezzutti (2017) os membros da família Habsbur-
go também desenvolveram um modelo ativo de iniciativas em que se sobressaíram por
meio da caridade e que com o tempo passaram a ser parte inerente da feminilidade das
mulheres pertencentes à casa da Áustria.
Leopoldina desde muito nova dedicou-se aos estudos da mineração, botânica, lite-
ratura e religião. Tal dedicação aos estudos fica destacada em sua carta destinada à irmã
Maria Luisa.
Além dos amplos estudos na área das ciências naturais, a jovem arquiduquesa estava
cada vez mais inserida nas reuniões políticas e apesar de não gostar tanto dos eventos de
gala, sempre comparecia. Em uma de suas cartas após o Congresso de Viena, em 1814, a Ar-
quiduquesa relata a angústia e falta de paciência para tais eventos da nobreza, dizendo que:
[…] Nossa vida atual não me agrada em nada: das dez da manhã às seis da noite
271
estamos continuamente em vestido de gala, de pé, passando o dia em cumprimen-
tos e ociosidade. Todos os dias temos um jantar de 34 pratos, que começa às quatro e
dura três horas, já que oczar da Rússia deixa-nos esperando durante duas horas […]2.
(apud REZZUTTI, 2017.p, 74-75)
Quando a Princesa pisou nas terras do Brasil descreveu que […] Nem pena nem
pincel podem descrever a primeira impressão que o paradisíaco Brasil causa a qualquer
estrangeiro3, além disso, o povo havia preparado uma bela recepção. Del Priore destaca o
cortejo através da narrativa do Padre Perereca, cronista do evento:
“A filha do César austríaco pisava o solo do Brasil” entrando na mais “afortunada cidade
do Novo Mundo”, anotou um entusiasmado observador. Miríades de pessoas, que ha-
via dois dias aguardavam no cais, espremiam-se para acompanhar ou ver passar o
cortejo, que era precedido por batedores, músicos, porteiros e arautos, todos com
librés ricamente adornadas e plumas brancas nos chapéus. [...]Senhoras brasileiras
272
às janelas traziam seus melhores trajes e abanavam seus lenços coloridos. Uma chuva
de flores caía sobre os passantes e nuvens de aromas perfumavam os ares. Ao longo
do percurso e nas ruas vizinhas, como a do Sabão e dos Pescadores, serpentinas,
lustres de cristal, mangas e globos de vidro “pareciam uma só chama de fogo de várias
cores[...]. (DEL PRIORE, 2012.p,11-12)
A Princesa foi muito bem recebida e teve uma verdadeira festa de boas-vindas. Nas
cartas da Imperatriz, divulgadas nas biografias, vemos uma Imperatriz muito simpáti-
ca com os brasileiros e muito preparada para o saber, no entanto, despreparada para o
mundo, pois havia consigo, uma “filosofia” de vida muito atribuída às ideias religiosas.
Os biógrafos afirmam que ela era uma mulher muito alegre e que apesar das desilusões
matrimoniais, a jovem mãe desempenhou um papel caridoso e diplomático fundamental
ao povo brasileiro.
[…] Homens continuam sendo homens e nós mulheres devemos nos distinguir por
paciência, virtude e conselhos serenos, dados na hora oportuna; eles sempre voltam
e então nos prezam ainda mais e a pedra fundamental da verdadeira felicidade está
na serenidade, virtude, paciência e força interior [...] Poderia dizer também que estou
sozinha aqui, pois vejo tantas atitudes contraditórias que não consigo dormir direito,
e não sei se tenho um amigo em meu esposo e se sou realmente amada, e
sabes que uma maneira de pensar igual e sentimentos genuínos faz em a verdadeira
felicidade; entretanto prossigo no governo da casa, nunca negligenciando meus
deveres […].(RIZZUTTI, 2017.p.224.)
273
Em maio de 1822 um grupo de mulheres baianas escreveu um manifesto político
em apoio à Leopoldina, dizendo:
[...]E ponderando nos que nesta heroica resolução teve V.A.R., anuindo ao que de-
liberava seu augusto e adorado esposo […] mostrando assim quanto é digna do
trono para onde a vontade do Onipotente arbítrio dos impérios a tem chamado;
possuídas do maior respeito, depois de congratularmos aos nossos conterrâneos
por termos entre nós tão preciosas e augustíssimas pessoas, vimos oferecer os
nossos corações, únicas oblações que pôs a natureza ao alcance do nosso sexo,
para que faça a posteridade o devido conceito das brasileiras e, em particular das
baianas.(REZZUTTI, 2017.p,291.)
[…] uma princesa que não nascera no Brasil, mas que o amava como se nele nascida
fosse. Fui testemunha ocular e posso asseverar aos contemporâneos que a princesa
Leopoldina cooperou vivamente dentro e fora do país para a independência do Bra-
sil. Debaixo deste ponto de vista o Brasil deve à sua memória gratidão eterna.
(DRUMMOND.1885-1886 op. cit., p. 42 apud REZZUTI, 2017.p, 297.)
D. Leopoldina muitas vezes fora tratada com indiferença por seu esposo, tanto no
casamento quanto nas questões políticas. Mas, diferentemente de D. Pedro, sua posição
política era muito mais firme e sempre pendia para o lado do Brasil - fato que colaborou
para a decisão mais importante da história brasileira, assim defendendo o trono dos fi-
lhos e os interesses dos brasileiros, e que acabou por conquistar o amor e a simpatia de
todos da nação.
274
A estética: Entre a biografia e o monumento da Imperatriz do Brasil
275
Consorte D. Leopoldina acompanhada de seus filhos, herdeiros do trono de Portugal e do
Brasil: a primogênita, princesa d. Maria da Gloria, e o filho mais novo de colo, sucessor e D.
Pedro I; o Imperador D. Pedro II. Foi uma iniciativa de instituições brasileiras e austríacas,
para reverenciar uma das personagens mais expressivas da trajetória do país, no ano de
comemoração dos 200 anos do nascimento da primeira Imperatriz do Brasil.
Paulo Rezzutti, Carlos H. Oberacker Jr., Mascarenhas Menck e Mary Del Priore, apre-
sentam nas biografias a comoção da população do Rio de Janeiro com a morte da Impe-
ratriz, o resultado desta comoção foi à construção de inúmeras publicações em jornais,
inclusive produções de sonetos, destacando o sentimento de orfandade da população:
“[...] aquella Augusta!…Sublime dom a Mão Omnipotente/Ao pezar foi roubada, e dôr
mais justa/Corra do pranto, solte-se a torrente/Que este golpe tirano a Mãe nos custa/E
que Mãe!!! Sabe o Ceo; a Terra o sente6”. No século XX e XXI o sentimento é diferente, mas
⁵ Leopoldina foi responsável pela criação de diversas instituições de caridade, como: asilos e orfanatos.
⁶ Soneto divulgado na Biografia “D. Leopoldina: A História não contada”, escrita por Paulo Rezzutti,
2017.p, 230.
276
a representação da primeira Imperatriz ainda é percebida como a mãe e matriarca do
Brasil que colaborou de diferentes formas para a sociedade, sua importância e represen-
tatividade culminaram em diferentes produções de sua história, como: o monumento,
biografias, músicas carnavalescas, documentários e novelas, ambos reforçando a imagem
da mãe solitária, virtuosa, e muito admirada pela população.
Imagem II
Sem qualquer dúvida, os tormentos que podemos sofrer são muito maiores em seus
efeitos sobre o corpo e a mente do que quais quer prazeres que o mais erudito sensua-
lista possa sugerir, ou do que a imaginação mais viva e o corpo mais requintadamente
sensível possam desfrutar. (BURKE, 2016.p, 52.)
As paixões possuem diversos aspectos e que também são fontes para o sublime,
que em seu menor grau, proporciona a sensação de admiração, respeito e reverencia;
prazeres subordinados e intimidadores. As paixões podem estar ligadas a autopreserva-
277
ção, sendo este o sentimento mais forte de todos; outras estão relacionadas à sociedade
e se destingem em duas perspectivas: a primeira é a “sociedade dos sexos”, este perten-
cente ao amor (luxúria) em que o objeto de beleza é a mulher; a outra é “a sociedade em
geral”, este nos faz perceber que existem escolhas em que somos movidos pelo prazer.
No caso do monumento da Imperatriz, ele nos move a observá-lo porque além de nos
conduzir a ideia da maternidade, ele também nos transmite o sentimento de solidão, que
está vinculado às privações em geral; para Burke (2016) “todas as privações gerais são
grandiosas” isso porque estão vinculadas a escuridão, solidão e vazio.
Imagem III
Tanto para Burke quanto para Kant, os objetos sublimes possuem grandeza, cor
escura, polidez, potência na expressividade, solidez e magnificência. Por tanto, pode-se
compreender que o monumento é sublime pelas seguintes características: ela está repre-
sentada somente com os filhos e sem a presença D. Pedro I, seu esposo, essa caracteriza-
ção perpassa a sensação do abandono matrimonial; a cor escura; a estatura em tamanho
real e a solenidade da postura e das vestimentas transmitem a ideia de grandeza, ou
nobreza; a posição centralizada dos corpos com todos olhando para frente sem nenhum
sorriso – características que promove um sentimento melancólico, mas que ao mesmo
tempo, gera admiração, respeito e digno de está ali.
278
De acordo com o pensamento de Emmanuel Kant (1993) a dignidade é uma virtude
moral, relacionada diretamente à justiça e a sabedoria – condutas genuínas, que neste
caso, representa a consolidação da imagem de D. Leopoldina enquanto mãe e matriarca
do Brasil.
Conclusão
O objeto estético dispõe de uma sensibilidade e solidez, que indica força e resistên-
cia, assim como as biografias apresentam a austríaca como uma mulher forte e determi-
nada. D. Maria Leopoldina foi muito mais que uma esposa obediente, uma mãe amorosa
e conselheira do Príncipe Regente, ela era uma estadista, Princesa da Independência, in-
centivadora das Artes e da Pesquisa Cientifica no Brasil.
279
Por mais que atualmente existam outras perspectivas sobre a Imperatriz, a imagem
de mãe solitária e matriarca da nação brasileira, abandonada pelo marido, mas amada
pelo povo, ainda se faz presente, e o monumento em comemoração aos 200 anos de seu
nascimento é a consolidação desta imagem que foi construída ainda no século XIX. A re-
miniscência também apresenta a estética do sublime em menor grau, pois incita respeito,
reverência, admiração e melancolia ao observador. Além disso, o objeto monumental nos
envolve em um passado, que apesar de tudo, nos causa uma “inflexível admiração7”.
⁷ Expressão encontrada na obra “Observações sobre o sentimento do belo e do sublime: Ensaio sobre
as doenças mentais” (KANT, 1993), para referir-se a um passado sublime.
280
REFERÊNCIAS
FÉLIX, Loiva Otero. História e Memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo: UFP,
2004. Cap.2. 32-57 p.
OBERACKER JR. Carlos H. A Imperatriz Leopoldina. Sua vida e sua época. Editado pelo
Conselho Federal de Cultura. Departamento de Imprensa Nacional. Rio de Janeiro. 1973.
391-394p. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/76257.
Acessado em: 20 de mai. de 2020
Site(s) acessado(s)
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ENTRE O SACRO E O PROFANO: NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS NA
PINTURA DE NAZARENO CONFALONI (1950-1977)
Cecília Meireles
1 Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás, com doutorado Sanduiche pela Universitá
Degli Studio di Genova. É membro do GEHIM - Grupo de Estudos de História e Imagem CNpq. Email: vigario.
jacqueline@gmail.com
2 Giuseppe Nazareno Confaloni é um artista italiano que veio para Goiás no ano de 1950 para pintar
os afrescos da Igreja Rosário do Pretos a pedido do Bispo da prelazia na época, Dom Cândido Penso. Chega
a Goiânia em 1952, aqui inicia uma ação cultural que culmina em dois eventos importantes como marco de
ruptura artística: a criação da Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) em 1953 e o Congresso Internacional de
Intelectuais em 1954. O artista é apropriado pela crítica, os intelectuais e políticos como o pioneiro da arte
moderna em Goiás.
VIGÁRIO, Jacqueline Siqueira. Entre o sacro e o profano: narrativas autobiográficas na pintura de Nazareno
Confaloni (1950-1977), In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográfi-
cas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020.
p. 282-292.
suas circunstâncias. No primeiro momento apresenta o início de sua vida, ainda jovem,
em suas raízes de infância, sua formação inicial eclesial e como artista. O segundo, apre-
senta o artista em Goiás desenvolvendo suas ações culturais como pioneiro da arte mo-
derna goiana. E, por último, antes de sua morte, quando o artista manifesta vontade de
aposentar-se e voltar para Itália para viver o resto de seus dias de vida no lugar onde nas-
ceu. A análise das imagens busca um diálogo com filósofo espanhol Julian Marias que nos
apresenta a noção de biografia em termos de pessoa, de um lado, o termo (minha vida)
precedido pelo pronome pessoal minha, trata da minha vida em termos substanciais, a
uma realidade que Ortega Y Gasset dizia (O homem é ele e sua circunstância), fazendo
referência a uma realidade que funciona como raiz da experiência dele mesmo. Do outro
lado, o termo (a vida humana) precedido pelo artigo A. Toda realidade pessoal, moral que
afeta o indivíduo humano radica “a minha vida”, (MARIAS, 1994), ou seja, se apresentam
como elementos constitutivos da vida de tal indivíduo, nesse sentido minha vida implica
em toda realidade.
Figura 1 - N. Confaloni, Autoretrato. 1940, Pintura óleo sobre madeira 235 x 36 cm.
283
Há um olhar que se (auto)descreve por meio da arte de pintar (Figura 1). Ao que
tudo indica é o sujeito ficcional que trabalha o sujeito autor, narrador. O desejo do artista
Confaloni de fazer-se representar foi uma constante, ao que se sabe, durante toda sua
vida. O tema retrato o fascinava, pois este remetia a um tipo de beleza com acréscimo de
constantes variantes de caráter individual. Segundo Siron Franco (1982): foi na pintura de
retratos que Confaloni mais se destacou, “[...] conseguiu maior síntese, maior personali-
dade, ele foi um dos grandes retratistas brasileiros, como tal foi magnífico”. Frei Lourenço
tornou-se amigo e conviveu com Frei Confaloni durante onze anos no Convento dos do-
minicanos, casa que agrega os padres junto à Igreja São Judas Tadeu. Em entrevista para
esta pesquisa, Frei Lourenço nos confirmou a afirmação de Siron, em diálogo gravado:
[...] Ele retratava um porquê específico da pessoa [...] ele tem um quadro comigo, des-
conhecido no Brasil, em toda Goiânia, que tinha um padre italiano que viveu aqui mui-
tos anos em Goiás, Padre Manes, e ele o pintou. Aquela pintura que é só tinta óleo,
mas é massa também, uma espécie de alto relevo. Olha, eu conheci esse padre, mas
ele pegou a psicologia do padre, ele pegou o essencial [...] isso do retratismo é, sem
dúvida, ... é importantíssimo.3
Mas, o que esperar desse olhar quando se trata do próprio autorretrato do artista?
Seria possível captar tal essência de si? Ora, a pretensão de Confaloni de construir uma ima-
gem de si, nada tem de inocente, escolhas foram feitas, pois procurou o melhor ângulo, a
melhor posição, a pose adequada e houve todo um cuidado com relação ao traje, ornamen-
tos, pequenos detalhes como sinais distintivos de posição social, a postura corporal e as
técnicas empregadas. Foi preciso criar uma atmosfera de mistério que levasse o espectador
a decifrar marcas deixadas pelo pintor em sua (auto)percepção e construção pessoal.
3 Diálogo gravado em Novembro de 2014 entre a autora e Frei Lourenço, no espaço social do Convento
dos Dominicanos gentilmente cedido pelo Frei Estevão, pároco da Igreja.
284
se retira do corpo? Há também nuances de grisalho nos cabelos de um homem que nos
apresenta ainda vigoroso. Confaloni parece discutir entrelugares, mutações dele mesmo.
No perfil olha para um único ponto, ainda não seria o momento de mostrar a face. Os
anos de clausura escolar terão um sentido e um significado na sua vida mais ampla, so-
bretudo por se realizar em um contexto que perpassa a igreja, a família e o mundo artís-
tico. Mas como será que Confaloni se viu e como o viram nesse momento? Como afirma
Didi-Huberman (2013), é nesse movimento de ir e vir, do “fechar e abrir as pálpebras, de
separação e distanciamento que faz da imagem, [...] o olhar do incessante e do intermi-
nável”.
Mas em todo o caso, teria nesse intento uma realidade histórica visível aos intérpre-
tes dessa obra? Como uma espécie de autobiografia, a imagem surgida é ela e seu con-
texto, na relação entre o pintor e o espelho, a apresentação de um outro: a semelhança
como um desdobramento de si mesmo, um personagem imaginado, traçados de linhas,
moldagem de formas e expressões, estados de Ser, de ausências, porque a imagem é em
si mesma o Ser e o não Ser, ela é um entre, surgido de um contexto e de um tempo ali já
tornado memória.
⁴ As imagens produzem um regime de significação que recorre aos processos da memória psíquica
que, elaborando-se como sintomas sobrevivem e se deslocam historicamente e geograficamente. Assim, elas
sugerem que se alarguem os modelos clássicos da temporalidade histórica e que se sigam a sua sobrevivên-
cia para além do espaço cultural do autor. “Pois é no presente que convivem as imagens que se entrecruzam,
se refletem e se apagam novamente: o anacronismo atravessa todas as contemporaneidades. Não existem
quase, as concordâncias entre os tempos”. (DIDI-HUBERMAN, G. De Semelhança a Semelhança. Alea, vol.13 nº
01, 2011, p. 31). Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2011000100003 Acesso: 19/06/2015
285
Dirigindo o nosso olhar novamente para os traços vigorosos e as decididas pince-
ladas do autorretrato do Artista Nazareno Confaloni, percebemos o jogo de narrativas
pictóricas de (auto) imagem que são tecidos em seus desvios, num jogo de vida contada
entre memórias e confissões. Mas de uma criança que a certa altura sabia o que queria.
Sua imagem de perfil não dá a impressão de Confaloni se vendo inserido em um tempo
de preparação, a expressão denota um tempo de solidão. Todavia, a imagem está longe
de aludir momentos de sofrimento. Parece apresentar o momento de afirmação de sua
identidade religiosa, o que é reforçado com o uso da batina coberta de tintas que pode
significar também o quanto o exercício do sacerdócio e a arte fundiam-se em Confaloni.
A vida religiosa e as artes foram os eixos em torno dos quais o artista desenvol-
veu toda a sua existência. Nesse ambiente religioso e cultural, humanamente falando,
Confaloni se construiu e se ressignificou em diversos momentos e muito deve à vida de
missionário que favoreceu, por meio do seu olhar e do silêncio próprios dos dominicanos,
o artista sensível e voltado às causas sociais. Confaloni resgatava significados, tornando
os tipos humanos do cotidiano visto nos personagens do mundo da sua imaginação em
homens voltados para uma atitude de crença e valores espiritualizados. Seu sentido soli-
dário, o esforço afetivo humano, ávido por se fazer presente no seu trabalho artístico cuja
vontade era afirmar sua fé no aspecto humano do homem moderno, sem descartar a pro-
blemática do seu ser existencial foram elementos presentes em sua vida e obra. Sua arte,
segundo o crítico Emílio Vieira: “[...] coexiste em harmonia íntima com a própria natureza
humana: sobreviverá enquanto sobreviver um homem sobre a terra”5.
Ao que nos apresenta, a história de Confaloni está subsumida entre dois mundos:
em um contexto que abarca período entre duas Grandes Guerras, como sobrevivente
entre ruínas, restos de memórias, em um lugar que guarda vestígios de povos etruscos.
Mas também em Goiás, aquela pacata cidade com ruas de pedras, becos e casarões, e na
jovem capital Goiânia erguida como símbolo da modernidade. De fato, Confaloni parece
ter vivido entre mundos, o que amplia a percepção do seu valor como artista e de ser hu-
mano com valores tantas vezes exaltados por aqueles que o conheceram.
⁵ VIEIRA, Jornal O Popular, Suplemento Cultural, Ed. nº 166 de 04/06/1978. Pronunciamento de Emílio
Vieira na abertura da exposição de artistas goianos, promovida pelo Departamento de Cultura da Prefeitura
de Goiânia, por ocasião do aniversário da cidade, em Outubro de 1977, em uma homenagem póstuma a Frei
Nazareno Confaloni.
286
O Frei artista em missão
287
ências, rugas e sulcos parecem tremer diante de nossos olhos. Emprega um tratamento
cromático mais escuro ao fundo, contrastando com o rosto. Parte do pescoço para baixo
parece diluir-se na tela, como se ele estivesse irrompendo de dentro da terra, apenas com
cabeça para fora dela. Os contornos da representação se apresentam bem delimitados,
marcados em tons negros.
288
Confaloni: da vida ao vácuo
289
visão nítida da orelha, mas apenas de manchas, contornos que se diluem nas pinceladas
bruscas, assim como os cabelos que também ganharam o mesmo efeito, logo atrás do
rosto. Os cabelos parecem se misturar a uma massa de tinta que cobre o segundo plano
da tela. Mas o pintor parece querer confirmar no desenho da boca, ares que denotam a
idade, dentre os quais: uma boca com linhas e contornos bem definidos, levemente caí-
dos, sem volumes, o queixo é pequeno, porém equipara-se ao formato do rosto, apresen-
tando uma dobra logo debaixo, quase como um prolongamento do queixo. Pela forma
como o pintor trabalhou as pinceladas, ficou imperceptível ao espectador apresentação
de um rosto sulcado.
Sem meias verdades o pintor interroga, vivencia e expõe suas ações, suas relações,
suas vivências e experiências, e com o domínio da técnica e estilo inerente a ele mesmo,
utiliza de recursos pictóricos para usar de toda forma de disfarce, mínimos detalhes de
pose, expressões captadas de relance no instante mesmo da cena, e logo, em um tempo
relativamente próximo, tudo isso já terá virado memória. Colocado diante do espelho,
chamado a olhar para si próprio mesmo, “[...] no convite a duplicar e projetar o ente - ou o
lugar e a condição, porque o jogo ontológico é muito invasivo”.
No ano de 1972 quando passava férias na Itália, Confaloni resolve visitar sua sobri-
nha Rossela Orsini e manifestou desejo de aposentar e voltar para Itália.
290
Naquele ano retornou para o Brasil com a pretensão de construir na Itália sua últi-
ma morada e, como havia feito economia com o dinheiro que recebia de seus quadros,
comprou um terreno e já pensava no projeto da casa. Um ano antes de falecer (1976),
dera início a construção da casa. Os tempos eram de um artista maduro que manifestava
certo cansaço e vontade de refugiar-se em um lugar tranquilo que tivesse as marcas de
sua origem.
Esse foi o momento em que ele passa a pintar muitos frades, Santas ceias, madonas
(mulheres negras, do povo, em formato lacrimal, madonas triste, fantasmagóricas).
A vida religiosa e as artes foram os eixos em torno dos quais o artista desenvolveu
toda a sua existência. Nesse ambiente religioso e cultural, humanamente falando, Con-
faloni se construiu e se ressignificou em diversos momentos e muito deve à vida de mis-
sionário que favoreceu, por meio do seu olhar e do silêncio próprios dos dominicanos, o
artista sensível e voltado às causas sociais.
O esforço afetivo humano, ávido por se fazer presente no seu trabalho artístico cuja
vontade era afirmar sua fé no aspecto humano do homem moderno, sem descartar a pro-
blemática do seu ser existencial foram elementos presentes em sua vida e obra.
Em todo objeto artístico há uma motivação estética, ética, algo que nos leva a um
raciocínio sistemático ou se abre para uma série de maneiras de narrar. Foi partindo de
três (auto)imagens construídas pelo artista Nazareno Confaloni que decidimos interpre-
tá-lo, por meio da relação complexa entre vida e obra, como resultado de um jogo entre
o sentido que a forma mostra e o que ela pretende passar despercebido. Esse gesto de
elaboração da própria imagem e montagens são movimentos de tensão em torno de
identidades as quais o artista pretende construir significados, num jogo de ocultações e
revelações. Foi vendo um quadro do artista Confaloni que nos vimos interpretando Frei
Confaloni como um indivíduo plural, que em cada obra se desvela como um novo sujeito,
permitindo-nos uma leitura mais aprofundada referente ao ethos eclesial e cultural do
frade artista.
291
REFERÊNCIAS
DIDI- HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Ed. 34,2013, p.30
FRANCO, Siron. Confaloni por Siron Franco. Revista Goiana de Artes, Goiânia-GO, v. 3,
n.1, p. 81-86, Jan/Jun. 1982
MARIAS, Julian. Mapa del mundo personal. Madrid: Aliuanza Editorial, 1994, p.206.
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