Teoria E Prática Da Pedagogia Social, Da Mediação Intercultural E Da Intervenção Social

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Ricardo Vieira, Victória Pérez de Guzmán,

José Carlos Marques, Pedro Silva, Ana Maria Vieira,


Cristóvão Margarido, Rui Matos e Rui Santos
(Orgs.)

TEORIA E PRÁTICA
DA PEDAGOGIA SOCIAL,
DA MEDIAÇÃO INTERCULTURAL
E DA INTERVENÇÃO SOCIAL

centro de
investigação em
qualidade de vida

Edições Afrontamento .
Título: Teoria e Prática da Pedagogia Social, da Mediação Intercultural e da Intervenção Social
Organizadores: Ricardo Vieira, Victória Pérez de Guzmán, José Carlos Marques, Pedro Silva,
Ana Maria Vieira, Cristóvão Margarido, Rui Matos e Rui Santos
© 2023, Organizadores e Edições Afrontamento
Revisão: Ana Arqueiro
Capa: Edições Afrontamento / Departamento gráfico
Edição: Edições Afrontamento, Lda.
Rua de Santa Catarina, 895, 2.° D.° – 4000-455 – Porto
www.edicoesafrontamento.pt / [email protected]
Colecção: Textos / 197
N.° edição: 2212
ISBN: 978-972-36-2029-0
Depósito legal: 523577/23
Impressão e acabamento: Rainho & Neves, Lda. / Santa Maria da Feira
[email protected]
Distribuição: Companhia das Artes – Livros e Distribuição, Lda.
[email protected]

Setembro de 2023

Este livro foi objeto de avaliação científica.

Este trabalho foi financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto «UIDB/04647/2020» do CICS.NOVA – Centro Interdiscipli-
nar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa.
CAPÍTULO 1
EPISTEMOLOGIA, MEDIAÇÃO INTERCULTURAL
E PEDAGOGIA SOCIAL

Ricardo Vieira, Ana Maria Vieira

Introdução

A mediação remete para a construção de terceiros lugares, mas estes não


têm, necessariamente, de ser um ponto equidistante entre as partes. Se na
mediação jurídica e na mediação clássica, vulgo mediação de conflitos, esse
lugar busca a imparcialidade, na Mediação Intercultural estamos perante a
crítica à neutralidade/imparcialidade. Estamos, nesta linha, perante um novo
paradigma onde a Mediação Intercultural se afirma como intervenção dialó-
gica, a partir dos outros e com os outros, e, portanto, como uma prática da
Pedagogia Social.
Neste texto, pretendemos: compreender as ligações epistemológicas e
metodológicas entre a Mediação Intercultural e a Pedagogia Social; compreen-
der as semelhanças entre a Mediação Intercultural e a Pedagogia Social como
forma de trabalhar com o ‘outro’; discutir o intercultural como paradigma que
rompe com o culturalismo (monoculturalismo).
Pensar em mediação remete para a presença de um terceiro, o mediador.
A terceira parte pressupõe e condiciona a existência de duas partes em disso-
nância. Contudo, num paradigma de Mediação Intercultural, estamos a mon-
tante da gestão/resolução de conflitos, e não no ‘final da linha’, na tradicional
intervenção social resolutiva.

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Teoria e prática da pedagogia social, da mediação intercultural e da intervenção social

Da busca de terceiros lugares e da não neutralidade em Mediação


Intercultural

A mediação enquanto conceito não adjetivado remete, habitualmente, para


a construção de lugares equidistantes, posicionamentos concertados, meios-
termos entre posições opostas ou em conflito. A Mediação Intercultural é
considerada, hoje, não apenas uma variante da mediação em geral, dedicada
à gestão e resolução de tensões e conflitos em sociedades multiculturais, mas,
também, enquanto paradigma de uma nova abordagem da mediação, seja
neste tipo de sociedades, seja no mundo do trabalho, seja na intervenção
familiar, comunitária, etc., e que se prende com o diálogo e a comunicação
com pessoas, grupos e comunidades para a transformação, emancipação e
capacitação. Neste sentido,

o processo de mediação corresponde a uma tentativa de convergência que passa


pela (trans)formação das identidades dos sujeitos e mundos de vida dos participan-
tes, incluindo valores, crenças e representações de si e dos outros, através da comu-
nicação e compreensão recíproca das partes. Nesse contexto, os mediadores ajudam
as partes de diferentes contextos culturais a se entenderem, tornando-se conscien-
tes dos preconceitos relativamente a processos, pessoas, comportamentos, bem
como a se envolverem numa comunicação mais intercultural assente numa prática
de escuta ativa. (Arvanitis, 2014, p. 6)

As tensões e conflitos deixam de ser vistos apenas como fenómenos e pro-


blemas interindividuais para passarem a ser entendidos como choques de
cultura entre valores e filosofias de vida que os sujeitos em diálogo, antidiálogo,
confronto ou conflito fazem emergir nas relações interpessoais. A pessoa não
é, assim, apenas um indivíduo, psicologicamente falando, mas um corpo que
incorporou, ao longo da sua trajetória social, códigos culturais (Bourdieu,
2005) com os quais pensa, age, dialoga ou entra em conflito. Desse ponto de
vista, a mediação passa a ser a busca de um terceiro lugar (Vieira & Vieira,
2016), não necessariamente a meio de posições opostas, mas um terceiro lugar
epistémico e de geometria variável, que ora está próximo de um, ora de outro
dos intervenientes divergentes, diferentes, ou mesmo em tensão verbal, cor-
poral e cultural.
A Mediação Intercultural busca, assim, mais do que a gestão e/ou resolução
de conflitos, a transformação das partes, sujeitos, grupos, famílias, etc., envol-
vidos. Busca uma (trans)formação de todos para uma aprendizagem da con-
vivência (Jares, 2007) e a construção de uma sociedade mais intercultural
(Giménez, 2010). Isto implica uma escuta ativa de todos sobre todos, uma

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Epistemologia, mediação intercultural e pedagogia social

hermenêutica diatópica (Santos, 1997) ou mesmo multitópica (Vieira, 2013).


Esta hermenêutica multitópica pretende a transformação de todos, o que
implica a construção de cidadãos e de selves mais interculturais.
Se na mediação jurídica, um exemplo da mediação clássica (gestão/reso-
lução de conflitos), esse terceiro lugar assenta na ideia da imparcialidade, na
Mediação Intercultural estamos, cada vez mais, perante a crítica à neutrali-
dade/imparcialidade, pilar fundamental da mediação fundada na Escola de
Harvard (Cohen-Emerique, 2008).
Paulo Freire (2002) foi muito claro na crítica a este pilar da mediação
clássica: “Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de
forma neutra” (p. 46); “que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira
cómoda, talvez, mas hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de
acusar a injustiça? Lavar as mãos em face da opressão é reforçar o poder do
opressor, é optar por ele” (p. 70).
A Mediação Intercultural, além de preventiva, assume-se, assim, como
educadora, transformadora da sociedade, comunidades, grupos e indivíduos
e construtora de espaços de (con)vivência. Estamos, pois, perante um novo
paradigma onde a Mediação Intercultural se afirma como intervenção dialó-
gica, a partir dos outros, e, portanto, como uma prática da Pedagogia Social,
uma pedagogia que se estende para além da escola e que assume a educação
a partir dos contextos vários onde a cultura e os valores se transmitem.
Se falar de mediação em geral remete para a presença de um terceiro, o
mediador presumivelmente imparcial, uma terceira parte que condiciona a
existência de duas partes em dissonância, no âmbito da Mediação Intercultural,
que está a montante da gestão/resolução de conflitos, é fundamental a escuta
ativa e a empatia com todos os envolvidos para intervir, o que não permite a
neutralidade axiológica. Daí a ideia da “multiparcialidade” defendida por
Torremorell (2008), ao invés da imparcialidade. A escuta de todos implica
tomar a parte de todos nessa busca de entender o entendimento de todos
(Geertz, 1989), através de uma hermenêutica multitópica (Vieira, 2013). Deste
modo, facilitar a comunicação, fomentar a coesão social e promover a auto-
nomia e a inserção social das minorias e dos mais fragilizados implica que o
mediador não tome a parte da cultura hegemónica para que não fiquemos
perante uma prática assimilacionista mascarada de neutralidade. A autono-
mização, o empoderamento e a ‘advocacia’ dos desfavorecidos implicam um
mediador intercultural que se demarque claramente da imparcialidade e de
práticas assistencialistas e de ajuda humanitária.

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Teoria e prática da pedagogia social, da mediação intercultural e da intervenção social

Entre a mediação e a Pedagogia Social: a Mediação Intercultural


como prática (trans)formadora/interventora

Como vimos, sempre que se fala em mediação é comum emergir, em pri-


meiro lugar, a ideia de posição intermédia, da presença do terceiro termo, ‘o
terceiro’ que se refere ao mediador como pessoa, ou à equipa que assume a
função de ponte, ligação ou catalisador dos processos de mediação. A terceira
parte pressupõe e condiciona a existência de duas partes: “A estrutura ternária
implica abertura, uma vez que o terceiro rompe a dualidade em que os dois
seres se encontram envolvidos” (Torremorell, 2008, p. 23) e é para eles um
ponto de referência comum.
Na epistemologia da Mediação Intercultural, que, além de preventiva, se
assume como transformadora da sociedade e como construtora de espaços de
(con)vivência, estamos perante um novo paradigma assente na Pedagogia
Social. Como sublinham Carvalho e Baptista (2004),

os educadores sociais surgem, neste sentido, como mediadores profissionais, como


promotores de laços sociais numa perspectiva criativa e renovadora que não se con-
funde com a concepção de mediação de tipo curativo ou preventivo. (p. 72)

Ainda de acordo com estes autores, numa matriz de Pedagogia Social,

mais do que procurar minorar tensões existentes entre indivíduos ou grupos, tra-
ta-se de promover relações interpessoais positivas, impulsionadoras de actividade,
de criatividade e de solidariedade. . . . Indissociável do sentido transformador evi-
denciado anteriormente, a mediação pedagógica é necessariamente optimista e
ambiciosa. Nessa medida, ela demarca-se das práticas de simples assistência ou
ajuda humanitária. (p. 72)

Por outro lado, como vimos, quando se fala de mediação, surge, tanto nos
discursos como nos manuais, o grande dogma da neutralidade. A ideia de que
é possível o profissional social ser neutro. Contudo, a única forma de ser neutro
é estar morto, como nos lembra Torremorel (2008). A necessária empatia que
o mediador intercultural tem de desenvolver com as partes envolvidas,
enquanto interventor social, não lhe permite a neutralidade axiológica. Rela-
tivamente a esta questão da neutralidade, que é um dos aspetos mais polémicos
da mediação, fomos assistindo, mais recentemente, à convocação do conceito
de imparcialidade, em vez do de neutralidade, embora alguns autores conti-
nuem a considerar tal atitude como uma abstração. Há, ainda, autores que,
em vez de falarem em imparcialidade – não tomar partido por ninguém –,

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Epistemologia, mediação intercultural e pedagogia social

passaram a falar em “multiparcialidade” (Torremorell, 2008), uma vez que o


mediador tem de promover a escuta ativa com todos, tentar entrar no enten-
dimento de todos, e isso não pode ser feito de forma neutral nem imparcial.
Tal trabalho implica atitudes empáticas por parte do mediador, e daí a ideia
da “multiparcialidade”:

ou seja, tomar partido por todos. Pensamos que esta ideia é especialmente estimu-
lante, uma vez que fez evoluir um debate que estancou no ponto de saber se é, ou
não, possível ser neutro e imparcial, quando é bem evidente que “os mediadores
desempenham, inevitavelmente, um papel influente no desenrolar do conflito”
(Folger e Jones, 1997: 305).
O conceito de multiparcialidade evoca, simultaneamente, independência e
empatia. O mediador, pessoa independente em relação aos actores do conflito e ao
resultado do mesmo, pode adoptar atitude empáticas – já não neutrais – constru-
toras de confiança, incorporando uma carga de sinal positivo no desenvolvimento
do processo mediado. Segundo esta óptica, actuar como se fôssemos neutros seria
bastante pobre. (Torremorell, 2008, p. 24)

Ainda assim, se entendermos a Mediação Intercultural no âmbito da Peda-


gogia Social e não tanto da mediação em geral que nasce a partir de paradigmas
resolutivos da Escola de Negócios de Harvard, dos anos 50, e, portanto, mais
na perspetiva reabilitadora e criativa do que preventiva ou meramente reso-
lutiva, nem é absolutamente de “multiparcialidade” que se trata, apenas.
Efetivamente, para facilitar a comunicação, para fomentar a coesão social e
promover a autonomia e a inserção social das minorias e dos mais fragilizados,
o mediador não pode tomar a parte da cultura hegemónica sob pena de estar
a desenvolver um assimilacionismo disfarçado de neutralidade. Pelo contrário,
tem de buscar a autonomização, o empoderamento e a ‘advocacia’ dos desfa-
vorecidos, o que implica distanciar-se das simples práticas de assistencialismo
e de ajuda humanitária.
De facto, o mediador intercultural não pode deixar de ser, também, um
interventor social que procura mudar situações sociais que geram injustiças,
carências ou revoltas, sempre com o envolvimento dos implicados, como busca
da convivência (Jares, 2007) e da hospitalidade enquanto valor humano (Bap-
tista, 2012; Carvalho & Baptista, 2004). De alguma forma, é aí que se situa
Torremorell (2008, p. 24) ao reutilizar o conceito de ‘multiparcialidade’ a
partir de Folger e Jones. Torremorell (2008) vai ainda mais longe, ao carac-
terizar as competências e o perfil do mediador intercultural:

Chegados a este ponto, poderíamos definir a mediação como um processo ternário


em que os participantes, mediador e protagonistas, exploram voluntariamente a

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Teoria e prática da pedagogia social, da mediação intercultural e da intervenção social

situação conflituosa para facilitar uma tomada de decisões conjunta liderada pelos
protagonistas. (p. 84)

A perspetiva clássica da mediação, tão associada ao final da linha dos pro-


cessos de tensão e conflito onde a resolução, a intenção de pôr termo aos
conflitos e divergências é o objetivo principal, ainda que tal possa não passar
de um sucesso superficial, procura, simplesmente gerir/‘resolver’ ‘problemas’,
muitas vezes sem conhecimento cultural que está subjacente aos comporta-
mentos individuais/sociais, com a ajuda de técnicas de comunicação que
apenas levam a um entendimento que acaba por ser provisório e nada trans-
formativo das identidades dos envolvidos, sejam eles grupos, comunidades
ou indivíduos.
O nosso interesse pela mediação vai para além das técnicas inerentes a
essa gestão e tentativa de resolução e centra-se, essencialmente, na relação
entre as partes envolvidas e na convicção de que tal interação/comunicação/
relação pode ser feita de forma simétrica, sem reféns e sem imposições hege-
mónicas ou suportadas por fundamentalismos. Por isso, também podemos
definir a Mediação Intercultural

como uma tentativa de trabalhar com o outro e não contra o outro, procurando
uma via pacífica para enfrentar os conflitos num ambiente de crescimento, acei-
tação, aprendizagem e respeito mútuo. . . . A mediação, além do mais, procura
equidade e compromisso informado superando a violência, e a exclusão é inte-
grada num amplo movimento personalizador de coesão social. (Torremorell,
2008, p. 85)

A Mediação Intercultural atravessa, ou pode atravessar, se se assumir o


intercultural como paradigma que rompe com o culturalismo (monocultura-
lismo), todas as mediações socioculturais (familiar, comunitária, pessoal,
laboral, jurídica, escolar, etc.) e não está presente apenas em contextos de
forte multiculturalidade, como é o caso evidente da coexistência de pessoas
migrantes, como algum senso-comum aponta, por vezes (Vieira, 2013).
Há uma vertente que coloca a Mediação Intercultural na discussão das
intervenções de natureza preventiva versus resolutiva. No âmbito da Mediação
Intercultural, mesmo na resolução de problemas sociais, que são maioritaria-
mente culturais e contextuais e, portanto, não apenas individuais, o interventor
pode agir com o outro (empowerment) e não através da apregoada forma
neutra, entre os outros ou entre os outros e o sistema, como se nada tivesse a
ver com ele e ele fosse transcultural, e não houvesse valores morais, relações
de poder na interação e uma ética da convivência, fundamental ao entendi-

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Epistemologia, mediação intercultural e pedagogia social

mento ternário. Trata-se do oposto, quer ao assistencialismo, quer, no outro


polo, ao imperialismo ou à autocracia, onde o interventor se assume como
distante, sapiente e objetificador dos sujeitos da intervenção; quer, ainda, ao
essencialismo do culturalismo, onde os padrões culturais são considerados
imutáveis e ‘originais’/primordiais.
Em síntese, parece claro que toda a Mediação Intercultural é sociocultural.
Mas nem todas as mediações socioculturais são, necessariamente, intercul-
turais. A Mediação Intercultural remete, sempre, para a ideia de terceiro lugar,
terceira pessoa, mestiçagem, cultura(s) dinâmica(s), interculturalidade e
(trans)formação dos sujeitos e culturas envolvidas, ao invés de culturas con-
sideradas fechadas em determinado grupo social, sendo, afinal uma pedagogia
social que busca a (trans)formação de todos.

Pedagogia Social e intervenção social mediadora

É possível analisar o desenvolvimento da Pedagogia Social em quatro


etapas. Primeiro, há que recordar que, em termos de emergência da profissão,
a Pedagogia Social surgiu na Alemanha muito relacionada com a sociedade
industrial e com todos os problemas sociais consequentes à mesma.
Procuravam-se soluções para os problemas humanos e sociais, tais como os
decorrentes de fortes movimentos migratórios, da proletarização do
campesinato, do desemprego, da pobreza, da exclusão económica e cultural,
do abandono de menores, da delinquência e da falta de proteção social. A ideia
da Pedagogia Social assentava na necessidade da criação de estratégias que
dessem respostas às necessidades individuais e sociais, estabelecendo um
ideal de comunidade face ao individualismo emergente.
Relativamente à primeira etapa, ela está muito centrada no pensamento e
obra de Paul Natorp (1854-1920), para quem todo o ser humano é, sobretudo,
um ser social. Por isso tanto chamou a atenção para a dimensão social da
educação como reação contra o individualismo. Por isso, também, para Natorp,
toda a pedagogia é social.
A segunda etapa está compreendida entre 1920 e 1933 e coincide com o
aumento dos problemas humanos e sociais em consequência da I Guerra
Mundial. Nohl (1965, como citado em Pérez Serrano, 2003) deixou-nos um
bom contributo ao defender a articulação entre a teoria e a prática numa
perspetiva hermenêutica. De igual modo, deixou-nos uma apologia de uma
Pedagogia Social relacionada principalmente com a política e concebida a
partir de uma perspetiva essencialmente preventiva.

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Teoria e prática da pedagogia social, da mediação intercultural e da intervenção social

A terceira etapa (1933-1949) é considerada, de alguma forma, uma etapa


de estagnação da Pedagogia Social, uma vez que ela é utilizada para propaganda
política pelo nacional-socialismo de Hitler.
Finalmente, a quarta etapa é designada de Pedagogia Social Crítica e inicia-
se nos anos 50 do século passado. O enfoque dado ao carácter preventivo dos
problemas sociais ganha peso e anuncia uma nova fase orientada para as
necessidades educativas emergentes. Esta Pedagogia Social Crítica propõe-se
partir de situações concretas dando importância às diferenças culturais e tendo
em conta a memória histórica. Ela é autocrítica e usa a reflexão do coletivo
como critério de valoração da prática. É dialética, utiliza o modelo ecológico
e, em termos processuais, aposta na dimensão relacional, intercontextual e
intersistémica.
A Pedagogia Social Crítica é a que mais se aproxima do paradigma da
Mediação Intercultural. A Pedagogia Social Crítica busca a emancipação, usa
a investigação como estratégia metodológica e analisa e reflete sobre a obser-
vação para transformar a realidade. Há uma clara intenção de (trans)forma-
ção, conceito que constitui também palavra-chave deste texto. Além disso,
esta nova Pedagogia Social, chamemos-lhe assim, une a teoria à prática numa
dialética constante e aposta numa comunicação geradora de consensos, num
modelo ecológico sustentado pela negociação, tão cara a todos os tipos de
mediações e conexão com os diversos sistemas, aproximando-se, assim, da
Mediação Intercultural, tal como é concebida por Carvalho e Baptista (2004).
Na mesma linha, Cohen-Emerique (2008) defende uma postura de nego-
ciação, caso a caso, uma busca em comum do profissional e da família imi-
grante – a título de exemplo –, mediante o diálogo e o intercâmbio de um
mínimo de acordo, de um compromisso onde cada qual se veja respeitado na
sua identidade e nos seus valores básicos ao aproximar-se do outro (aproxi-
mação bilateral, próxima da hermenêutica diatópica proposta por Santos
[1997]).
De igual modo, AEP Desenvolupament Comunitari e Andalucía Acoge
(2008, p. 99) defendem três tipos de mediação: a preventiva, que consiste em
facilitar a comunicação e a compreensão entre pessoas com códigos culturais
diferentes; a reabilitadora, que é a que mais se aproxima da resolução de
conflitos de valores, próxima da mediação de conflitos, ‘filha’ da Escola de
Harvard dos anos 50; e, por fim, a mediação criativa, igualmente designada
de transformativa por buscar a criação de novas normas, novas ações baseadas
em novas relações entre as partes.
Também Carlos Giménez (2014) distingue a mediação resolutiva da pre-
ventiva e transformativa. A este propósito, defende as seguintes funções da

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Epistemologia, mediação intercultural e pedagogia social

figura mediadora intercultural: facilitar a comunicação entre pessoas/grupos


de culturas distintas; assessorar os agentes sociais na sua relação com os
coletivos minoritários em temas de interculturalidade, diversidade cultural
(culturas diversas, imigração) e relações intercomunitárias; assessorar pessoas
e comunidades minoritárias na sua relação com a sociedade e cultura hege-
mónicas; promover o acesso a serviços e recursos públicos e privados; construir
cidadania e acompanhar ativamente os processos pessoais de integração e
inclusão e favorecer a participação social e comunitária.
José Antonio Caride reforçou bem a relação entre Pedagogia Social e Media-
ção Intercultural. Num texto de 2016, sublinha:

La importancia de los sujetos, y no sólo de los hechos, enfatiza la vocación pedagó-


gica y social de la acción-intervención mediadora, aunque a menudo sea más implí-
cita que explícita. De ahí que nos prestemos a acentuar sus connotaciones educa-
tivas, abriendo los discursos y prácticas de la mediación a la acción-intervención
educadora, con dos argumentos que apelan directamente a los vínculos que existen
entre ambas: de un lado, el que pone de relieve que en toda mediación que se precie
existen propósitos, fines, objetivos o métodos de naturaleza y alcance formativo;
de otro, el que hace notar la dificultad de imaginar una educación que pueda pres-
cindir de los principios éticos y morales, o de los soportes axiológicos y emociona-
les que son inherentes a cualquier práctica mediadora puesta al servicio de la razón
cordial (Cortina, 2007) y de la paz como cultura (Dios, 2011). Aludimos, en sínte-
sis, a todo un conjunto de valores, actitudes, comportamientos y estilos de vida que
rechazan la violencia y previenen los conflictos, haciendo uso del diálogo y la nego-
ciación entre los individuos, los grupos, las organizaciones sociales e, incluso, los
Estados. Una cultura de paz, a la que la mediación puede y debe favorecer, tratando
de capacitar a las personas y a los colectivos sociales para que hagan elecciones,
actuando no sólo en función de las circunstancias del presente, sino también de la
visión del futuro al aspiran. (p. 19)

Américo Peres (2016), no mesmo livro, no capítulo intitulado “Educação


Intercultural e Mediação Sociopedagógica”, deixa bem clara esta proximidade
entre pedagogia e mediação sociopedagógica:

Entendemos que a mediação sociopedagógica faz parte de uma constelação de con-


ceitos – Educação, Cultura, Democracia e Escola/Comunidade/Territórios – em
que o aprender a ser pessoa e o aprender a conviver com os outros se rege por prin-
cípios, conhecimentos, competências, atitudes e valores comuns, como sejam,
Interculturalidade, Igualdade, Comunicação, Unidade, Diversidade, Ética, Política,
Participação, Cidadania, Autonomia, Justiça e Desenvolvimento, como condição
da dignidade da pessoa humana. (p. 64)

21
Teoria e prática da pedagogia social, da mediação intercultural e da intervenção social

Também Capul e Lemay (2003), numa obra dedicada à educação e à inter-


venção social, referem, no primeiro de dois volumes, que a mediação é como
uma arte do

“entre-dois” em que o educador funciona como o intermediário privilegiado entre


o que ainda não é mas se constitui silenciosamente e o que virá a ser numa série de
gestos combinatórios, por ter sabido situar-se, em devido tempo, entre um estímulo
forte e um organismo desejoso de o utilizar. (p. 113)

Para estes autores, o conceito de mediação é há muitos anos usado, mas


só mais recentemente tem sido devidamente apropriado como função essencial
de toda e qualquer relação educativa, uma vez que é capaz de ‘pôr-se no meio’,
que é exatamente o contrário de colocar-se à distância: “o educador é sempre
este personagem que tenta estabelecer uma ponte entre um ser actual e em
devir e um envolvente que deve dar a sua contribuição a um processo” de
desenvolvimento (Capul & Lemay, 2003, p. 113). A função deste mediador
não é propriamente a de tornar os espaços cheios de vida social entre pessoas,
grupos e comunidades, nem a de os manter absolutamente vazios; antes pelo
contrário: é fomentar a participação e fazer com que os sujeitos se tornem
protagonistas da ação social nesse mesmo espaço. Ainda de acordo com Capul
e Lemay (2003):

A mediação pode realizar-se de modo particularmente subtil nos novos locais de


trocas que alguns educadores tendem actualmente a criar para pais, mães sós, ado-
lescentes perdidos nos grandes meios urbanos, jovens em ruptura com a escola,
jovens desocupados, desempregados desesperados por encontrar um sentido para
a sua existência, etc. Toda esta gente tem em comum o conhecimento angustiante
do vazio. Se ficarem sós face a esta depressão individual e colectiva, mergulharão
na abstenção ou nas reivindicações estéreis. Se sentirem que queremos recuperá-
-los através dum tipo de militantismo social generoso mas dominador, não tarda-
rão a mobilizar as poucas forças que existem neles para deter esta nova pressão. Se
se aperceberem duma presença autêntica de acolhimento para que se renovem
laços, o naufrágio do desejo pode deter-se, depois pode surgir a esperança de outros
laços que, combinando-se de maneira singular, permitam o ressurgimento duma
vida psíquica. (p. 113)

Em busca de conclusões

Para facilitar a comunicação, fomentar a coesão social e promover a auto-


nomia e a inserção social das minorias e dos mais fragilizados, o mediador

22
Epistemologia, mediação intercultural e pedagogia social

não pode tomar a parte da cultura hegemónica sob pena de estar a desenvolver
um assimilacionismo disfarçado de neutralidade. Como foi referido, a auto-
nomização, o empoderamento e a ‘advocacia’ dos desfavorecidos implicam
um mediador intercultural que se demarque da imparcialidade, mas também
das simples práticas de assistencialismo e de ajuda humanitária. A Mediação
Intercultural, como prática da Pedagogia Social, posiciona-se numa perspetiva
preventiva, educadora, construtora de terceiros lugares e de interculturalidade,
em busca da transformação das relações sociais desiguais.
Depois de distinguirmos a mediação clássica, assente na resolução de con-
flitos de cariz interindividual, nascida na Escola de Negócios da Universidade
de Harvard, nos Estados Unidos da América, apresentámos a Mediação Inter-
cultural não só como uma prática de negociação de conflitos em grupos e
sociedades multiculturais, mas, também, como paradigma de intervenção
socioeducativa, preventiva, transformadora, reabilitadora, emancipadora e
capacitadora. Como uma pedagogia social ou mesmo uma antropologia apli-
cada na busca da intercompreensão e da hermenêutica multitópica para a
construção de terceiras culturas, fundamentais à construção da intercultura-
lidade e da convivência entre diferentes.
Sublinhámos a necessidade de os educadores, em geral, o educador social,
em particular, e todos os interventores sociais agirem de forma mediadora e
empoderadora, pondo em prática Pedagogias Sociais apoiadas na Mediação
Intercultural (Caride, 2016) e seus pilares fundamentais, de que a escuta ativa
é fundamento, mas em que a neutralidade/imparcialidade/equidistância
precisa de ser questionada por forma a que a intervenção social seja socioe-
ducativa, feita com o outro, a partir da sua lógica e cultura local, o que implica
tomar a parte e é exatamente o oposto do distanciamento e da pretensa, mas
impossível, neutralidade.
A Mediação Intercultural, como prática da Pedagogia Social, tal como é
aqui assumida, posiciona-se numa perspetiva preventiva, educadora, cons-
trutora de terceiros lugares e de terceiras culturas, mas, também, de transfor-
mação das relações sociais com vista à construção de sociedades e de selves
mais interculturais (Vieira, 2014).

Referências bibliográficas

AEP Desenvolupament Comunitari & Andalucía Acoge. (2008). Mediación intercultural:


Una propuesta para la formación. Editorial Popular.

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Teoria e prática da pedagogia social, da mediação intercultural e da intervenção social

ARVANITIS, E. (2014). The intercultural mediation: A transformative journey of learning


and reflexivity. In E. Arvanitis & A. Kameas (Eds.), Intercultural mediation in Europe:
Narratives of professional transformation (pp. 1-16). Common Ground.
BAPTISTA, I. (2012). Pedagogia social: Um campo plural de investigação e intervenção.
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