A Produção Arquitetônica Dos Espaços Imaginários No Cinema: Resumo

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A Produção Arquitetônica dos Espaços Imaginários no Cinema

Verônica Moralli de Andrade 1

Resumo:

Os cenários cinematográficos, construídos com auxílio da arquitetura, são partes


fundamentais na concepção de um filme em razão de contextualizarem o espectador
em questões como espaço e época de uma narrativa. O presente artigo é um recorte
de um trabalho final de graduação de Arquitetura e Urbanismo, e tem como objetivo
apresentar uma perspectiva histórica da representação desses cenários arquitetônicos
nas mídias audiovisuais. Para isso, foi realizada, primeiramente, uma análise com
foco na arquitetura de obras cinematográficas selecionadas. Também foi necessária
uma revisão literária, bem como pesquisas em artigos científicos relacionados para,
a partir de então, gerar hipóteses relacionadas aos cenários e como estes são
responsáveis pelo diálogo entre arquitetura e cinema. A relevância deste estudo se
dá no ponto que é necessário compreender como uma área técnica, que muitas vezes
é deixada em segundo plano, pode ser também a protagonista da história.
Palavras-chave: Arquitetura. Cinema. Cenário. Direção de arte.

1
Arquiteta e Urbanista pela FAU Mackenzie. Realiza pesquisas na área de Direção de Arte, sendo
integrante do grupo de pesquisa Arte, Design: linguagens e processos. Possui experiência em assistência
editorial no Periódico Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo editado pelo Mackenzie.
Introdução

A concepção da Arquitetura como expressão de qualidade estética fez com que esta
matéria fosse classificada como um dos membros das belas artes - juntamente com
escultura, pintura, música e poesia - por filósofos como Immanuel Kant (1724-1804)
e Friedrich Hegel (1770-1831). Entretanto, diferente das demais, a Arquitetura
possui um vocábulo tridimensional, que inclui o homem em uma imersão de espaço,
possibilitando a caminhada e vivência de diferentes percepções, e interações na
própria arte (ZEVI, 1948).

Assim, pressupõe que a representação arquitetônica em meios que não sejam através
da experiência de vivenciá-la seja incompleta, porém, a sua representação imagética
tem importante papel nos processos criativos, tanto na pré-construção, quanto na
pós. Os primeiros precursores dessa reprodução foram os desenhos manuais, os
conhecidos croquis, que são uma das principais ferramentas utilizadas pelos
arquitetos para manipularem os diferentes aspectos de seus registros gráficos em sua
concepção projetual (PERRONE, 2018), além de serem muito utilizados na
concepção de storyboard.

A noção de perspectiva advinda das pinturas renascentistas, por sua vez, foi
essencial para interpretação correta dos volumes, profundidade, espaço internos ou
paisagens, e todo tipo de grafia que busca reproduzir as características
tridimensionais da realidade, sobretudo a arquitetura. Essa concepção foi essencial
para facilitar o entendimento de resultado de algumas intenções projetuais,
entendendo melhor a ambiência pretendida. A arquitetura de imagens visuais, por
sua vez, ganhou um destaque evidente em razão dos projetos passarem a adotar a
estratégia da persuasão instantânea, com edificações que se tornam verdadeiros
produtos visuais (PALLASMAA, 2011). Neste contexto, as fotografias fizeram
papel importante nessa representação arquitetônica por possuírem caráter
documental ao registrar transformações das cidades no mundo.

Após inúmeras representações de apenas duas dimensões, no final do século XIX, a


arquitetura passou a conferir qualidade estética a uma arte em ascensão. Segundo o
intelectual Ricciotto Canudo (1923), essa nova arte entrou na linha de pesquisa de
Hegel e Kant, servindo de continuação de seus trabalhos. O cinema, conhecido
como a sétima arte, é uma expressão que permite definir dimensões e essência do
espaço existencial, tal como a arquitetura. Assim, o diálogo entre esses dois meios
artísticos tem a possibilidade de experimentações diversas e, nesta situação, ambos
são dependentes entre si para criação de cenas experienciais de várias situações e
propostas.

A presente pesquisa, portanto, procura responder à seguinte questão norteadora:


como a arquitetura em sua essência pode ser encontrada nas produções
cinematográficas ao longo dos anos? É proposto, para tanto, que o estudo utilize
como metodologia a pesquisa exploratória do tema, com abordagens de diferentes
filmes e estudos de suas técnicas empregadas, como também uma revisão literária e
apoio de artigos científicos. Assim, o artigo faz uma análise cronológica da
representação da arquitetura em meios audiovisuais e como esta faz diferença na
concepção cinematográfica do filme e auxilia o espectador em sua interpretação.

Contextualização Histórica do Cinema e a Produção de Espaços Imaginários

O cinema, tal qual como conhecemos, teve um longo processo de adequação e


evolução ao longo dos anos. De pequenas caixas de projeções de sombras, com a
primeira exibição de filmes dos irmãos Lumierè, às grandes produções que
assistimos atualmente, houve avanço de tecnologias, técnicas e, principalmente, do
local de gravação dos filmes: os conhecidos estúdios. Nos primórdios do cinema, os
filmes de curta duração eram gravados com caráter documental, com intenção de
registrar somente atividades do cotidiano, como a chegada de um trem, um bebê se
alimentando, operários saindo de uma fábrica, entre outros. De modo geral, eram
cenas gravadas ao ar livre, em plano geral e com a câmera fixa, sem grande
produção técnica e criativa.

É no século XX, período justamente caracterizado por experimentações e


redefinições artísticas, que a sétima arte é exposta ao público de maneira mais
marcante. Nesse período, há um forte diálogo entre essa nova expressão com a
arquitetura, em razão de uma possibilitar a outra, trocas de novas experiências e
testes. Dessa maneira, há a criação de espaços fictícios destinados exclusivamente
para os filmes: os famosos cenários (LEZO, 2010).

O pioneirismo da Teatralidade de Méliès (1900-1910)


Foi com o parisiense Georges Méliès que o cinema foi elevado para categoria de
arte e espetáculo. O conhecido “cinema de atrações” foi possível graças à sua
experiência com ilusionismo, sua marca pessoal que, ao ser colocada nos filmes,
propiciou a evolução da linguagem fílmica, na qual se aliam o teatro, os efeitos
especiais - com a técnica de corte - e a arquitetura das cenas. O francês dava tanta
importância ao espaço cênico, que reconheceu a necessidade de uma locação para o
registro de sua criação. É no lendário Théatre Robert-Houdin que encontra um lugar
para seus shows de ilusionismo, tornando-o um estúdio e sala de projeção, montado
para gravação com iluminação artificial para filmagens, um pioneirismo na época
(SABADIN, 2018).

O teatro, entretanto, tinha limitações em sua estrutura ao abrigar suas


experimentações cinematográficas. Tal limite foi resolvido com a construção de um
estúdio de vidro em Montreuil, a Star Film, que possuía todas as instalações
necessárias para produção, como camarins para atores, equipamento de filtração de
luz, zonas técnicas, armazéns para cenários entre outros elementos
cinematográficos. Foi nesse momento que Méliès construía cenários deslocáveis que
contextualizavam diversas situações, explorando toda a encenação de suas
apresentações, sendo “o primeiro a adaptar ao cinema as maquetes (já em uso nos
teatros ou circos), e as filmagens através de um aquário” (SADOUL, 1983, p.29).

O primeiro filme que celebrou essas experiências foi a película de 14 minutos


“Viagem à Lua” (Le voyage dans la Lune), de 1902. Em razão da ausência de
tecnologia na época, o diretor utilizou a estrutura de palco e recursos cênicos teatrais
para montar 18 cenários, com pinturas de paisagens nos fundos falsos dos cenários,
espaços e níveis diferenciados de ação para orientar o olhar espectatorial e a câmera
fixa em frente ao palco, representando o olhar do espectador do teatro. Com isso, o
diretor podia dar profundidade às cenas, conseguindo tornar os efeitos e ilusões mais
críveis.

Os anos 20 e a Representação Arquitetônica da Cidade

Na década de 1920, um movimento artístico procedente da poesia e pintura, e que


também influenciou o teatro e a arquitetura, iniciou a valorização do cinema como
arte na Alemanha. O expressionismo alemão se concretizou como um dos estilos do
cinema mudo mais reconhecidos, carregado de interpretações subjetivas do mundo,
e inquietações da existência humana através de imagens distorcidas e irreais,
representando assim um sentimento presente na sociedade alemã no período pós-
guerra (SABADIN, 2018).

Uma obra prima cinematográfica que inaugurou o movimento e que é considerada a


melhor representação do Expressionismo Alemão é o filme “O Gabinete do Doutor
Caligari” (1920), do diretor Robert Wiene. Com a estilização da cenografia, luzes e
personagens, o clássico mergulha o espectador em um universo distorcido ao contar
a história de um hipnotizador e um sonâmbulo recém-chegados a um vilarejo, local
que logo passa a ter uma série de assassinatos.

Ao utilizar a dimensão arquitetônica das paisagens como um subtexto, o filme


utiliza de uma estética irregular, com cenários dramáticos geometricamente
angulosos, pintados fora de perspectiva e com linhas tortas, para retratar a
personalidade e características psicológicas das personagens. Móveis que não se
encaixam na anatomia humana, um forte jogo de luzes e sombras são aspectos
marcantes encontrados nos espaços abstratos em diferentes cenas para discutir a
sanidade e loucura presentes na época.

Deliberadamente artificiais, os cenários foram pintados de forma distorcida,


fora de perspectiva. As angulações de câmera enfatizaram o fantástico e o
grotesco, o contraste de luzes e sombras tornou-se mais forte, e as
interpretações dos atores, teatralmente histriônicas (SABADIN, 2018, p.71)

Em 1927, outro filme alemão importante abriu caminho para a área de ficção
científica em termos de histórias e tecnologia, configurando a primeira distopia
científica. Do diretor Fritz Lang e roteiro de Thea von Harbou, o filme “Metrópolis”
(1927) mostra as injustiças sociais através da arquitetura da cidade, com a elite
morando na parte elevada, enquanto uma segunda cidade é encontrada nos
subterrâneos, onde os trabalhadores operam máquinas para sustentar as camadas de
cima.

O filme traz inovações para a época por ser o primeiro a trazer um caráter futurista a
uma personagem principal inédita, a cidade. Para isso, foi preciso o levantamento de
diversas referências arquitetônicas, como características da cidade de Manhattan e
do estilo art déco, para traduzir o fascínio por grandes escalas, com edifícios
imponentes e a energia da época industrial em visuais limpos e linhas alongadas. O
responsável por tornar essa ideia possível é o arquiteto e pintor Eugen Schufftan
(1893-1977), com a invenção da técnica que leva o seu nome (LEZO, 2010).

O Processo Schufftan consiste basicamente na sobreposição de atores, posicionados


longe das câmeras para ficarem em menor escala, sobre maquetes do cenário,
auxiliados por espelhos especiais, com partes refletoras e transparentes. Assim, a
câmera é posicionada 45º em relação ao plano do filme, encaixando os autores na
parte transparente, dando a ilusão de estarem na mesma escala da maquete e fazendo
parte do cenário. O resultado é uma cena de grande escala muito bem-feita e
convincente (JACOBSEN e SUDENDORF, 2000). Tal técnica foi adotada por
diversos diretores, tal como Alfred Hitchcock em filmes como “O Ringue” (1927),
“Chantagem e Confissão” (1929), “Os 39 Degraus” (1935) e na primeira versão de
“O Homem que Sabia Demais” (1956).

Figura 01 e 02: Set de filmagem do filme Metrópolis com indicação dos elementos
necessários (ator, maquete e espelho) para processo Schufftan e o resultado final.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=pU0k9YzNMwM&t=624s

Hollywood e o cinema dos Estados Unidos

Apesar do cinema ser concebido na Europa, a América foi grande responsável pelo
avanço tecnológico e difusão da sétima arte. Thomas Edison, por exemplo, foi um
dos principais contribuidores para esse feito, por ser o inventor do Kinetoscope (em
português, Cinetoscópio), primeiro equipamento que se tem registro de gravações
cinematográficas, com reprodução individual (SABADIN, 2018). Com a instalação
deste equipamento no seu estúdio Black Maria, em 1892, tem-se o primeiro estúdio
no formato que conhecemos atualmente. Sua principal característica é pintura
externa em preto para auxiliar na captação da iluminação natural através de um teto
retrátil. Além disso, ainda contava com uma estrutura que garantia o giro do estúdio
para que este acompanhasse o movimento do sol durante o dia.

Após o episódio conhecido como “Guerra das Patentes de Thomas Edison”, grandes
estúdios cinematográficos foram formados, tais como IMP/Universal; Paramount,
Fox, United Artists, Columbia e Metro-Goldwyn-Mayer (MGM). Em busca de
cenários naturais e clima agradável, os estúdios começaram a se expandir pela
América do Norte, em direção a Costa Leste, onde acharam um subúrbio de terrenos
baratos chamado Hollywood, que hoje possui o próprio conceito de cinema
(SABADIN, 2018). Assim, a arquitetura do cinema era, muitas vezes, as paisagens
naturais do lugar. A região atraiu rapidamente artistas de várias áreas e, em 1927,
produtores da área fundaram a Academy of Motion Picture Arts and Sciences (em
português, Academia de Artes e Ciências Cinematográficas), para conferir ao
cinema caráter intelectual, cultural e artístico, que posteriormente criaria a
premiação do Oscar.

No mesmo ano, um estúdio cinematográfico veio para revolucionar a história do


cinema com a inserção do som nas produções, a Warner Bros. Com tal advento, foi
necessária a rápida adaptação dos demais, reconstruídos para que fosse possível
garantir isolamento acústico nas instalações. Dessa forma, os estúdios passaram a
ser mais complexos, com grandes estruturas similares a hangares, conhecidas como
soundstages (SABADIN, 2018). Além disso, as produções passaram a ter um ritmo
de filmagem diferente em razão do posicionamento dos microfones, escondidos nos
cenários, que precisam ficar próximos à ação. As salas de projeções, por sua vez,
também tiveram que sofrer adaptações arquitetônicas para instalações acústicas das
edificações.

...E o Vento Levou e a Direção de Arte

Um filme que surgiu nesse ambiente e que se consagrou como a maior bilheteria do
cinema é o clássico “...E O Vento Levou” (1939). Passado por diversos diretores,
como Victor Fleming, George Cukor e Sam Wood, o filme contou com a produção
de David O. Selznick, um nome de grande importância para os estúdios na época.
Em razão da constante mudança de diretores ao longo das filmagens, o filme corria
o risco de ter uma mistura de concepções estéticas, o que poderia acarretar uma
linguagem visual confusa.

Foi o cuidadoso trabalho de William Cameron Menzies que, ao projetar a sequência


de planos da produção através de storyboard de cada tomada do filme, deu uma
unidade ao longa, mesmo depois das sucessivas trocas de diretores. O filme, então,
foi um dos primeiros a ter sequências planejadas através dessa técnica. Foi junto
com o magistral uso das cores, com destaque para o característico vermelho
saturado, que Menzies é considerado o pioneiro na profissão de diretor de arte,
sendo reconhecido inclusive pela Academia, que criou uma categoria no Oscar
especialmente pelo uso da cor para aprimorar o clima dramático.

O cinema norte-americano inaugurou a função do diretor de arte, ou


production designer, em 1939, no filme E o vento levou, de David O.
Selznick. O trabalho realizado por William Cameron Menzies, que desenhou
quadro a quadro a produção a ser realizada, descrevendo nos mínimos
detalhes todos os elementos que comporiam os enquadramentos, levou seu
produtor à definição da nova função na produção cinematográfica: o
production designer, nacionalmente difundido como diretor de arte.
(HAMBURGER, 2014, p. 18)

A partir desse momento, portanto, a arquitetura junta-se a diversos recursos com


grande impacto visual, como luz, som, cor, maquiagem, figurino, temperatura,
objetos de cena e fotografia, para propor uma equipe técnica fundamental ao
cinema, a direção de arte. Em suma, esta área do cinema é responsável pela
espacialidade, visualidade, atmosfera, além da explicitação da dimensão simbólica
da cena, tanto no meio audiovisual, como cênico, de performance, expografia e
instalações em geral. Para Hamburger

quando falamos em direç o de arte, estamos nos referindo à concepç o do


universo espacial e visual próprio a projetos artísticos que se caracterizam
pela situação de imersão do corpo no espaço, alimentando-se essencialmente
dessa convivência (HAMBURGER, 2014, p. 26).

As inovações da época

No período da Segunda Guerra Mundial, o set de filmagem se configurou como


sendo o próprio campo de guerra, uma vez que o cinema estava a serviço do Estado.
Nessa época, com os custos voltados para indústrias bélicas, a linguagem dos filmes
foi alterada para poucos cenários e até mesmo diminuição de luz, dando um tom
ainda mais dramático aos longas (SABADIN, 2018). Porém, após esse período, o
cinema mundial caiu drasticamente. Tal queda se dá principalmente em razão da
sólida inserção da televisão nos lares e das sucessivas crises do pós-guerra. Dessa
forma, apenas os grandes estúdios, tais como Warner, Paramount, Fox, Universal,
MGM e Columbia conseguiram sobreviver, mas não sem reestruturação de cargos e
pessoas.

Passada essa reestruturação, uma Nova Hollywood surge em razão de novos talentos
que possuíam um amplo repertório de quem havia crescido com influência da
televisão. Nessa época, que se compreende principalmente nos anos 60 e 70, houve
a expansão das fronteiras geográficas, com parcerias entre os estúdios norte-
americanos e os europeus. A transição entre os anos 70 e os 80, por sua vez, teve
como principal audiência o público jovem. Com esse novo foco, as comédias
românticas ganharam espaço e os cenários passaram a ser os colégios e ambientes
descontraídos frequentados por esse público (SABADIN, 2018).

O período também foi marcado pela abertura de portas para produções focadas em
gêneros de aventuras e ficção científica, auxiliados pelo avanço da computação
gráfica. A construção do cenário físico nos sets de filmagens de estúdios
cinematográficos alinhados com a tecnologia de efeitos especiais, principalmente os
gerados através de CGI (Computer generated imagery, em português, Imagens
geradas pelo computador), tornam-se essenciais para ambientar o espectador na
história a partir desse período. Um grande exemplo da utilização dessa dupla é a
famosa saga da cultura pop, “Star Wars”. Criada por George Lucas em 1977, a
franquia é considerada uma das maiores do cinema, com três trilogias
cinematográficas, e diversos spin-offs, composta por séries animadas e jogos de
videogame. O motivo de tamanho sucesso é, sobretudo, a criação narrativa de todo
um universo imaginário com 32 planetas diferentes, mostrados em apenas 10 filmes.

Para Zanella (2019), a representação das cidades nesses locais utiliza-se da


arquitetura como visão de mundo, que consiste em mostrar um tempo diferente do
nosso por meio dos espaços cinematográficos. A arquitetura do filme, dita futurista,
possui variações em sua representação. Para representar um futuro otimista, por
exemplo, utiliza-se em sua linguagem elementos tecnológicos, juntamente com o
estilo art déco americano, representando as megalópoles desenvolvidas imaginadas.
Foi utilizado, para a concepção de alguns desses cenários, locações reais, com
edificações já pré-existentes. Foi essa decisão que, após diversos estudos com
diferentes levantamentos, deu um caráter fidedigno e crível ao filme, mesmo com
intervenções cenográficas para representar o mundo de outros planetas (ZANELLA,
2019). Além dessas, entretanto, há ainda aquelas que são elaboradas através da
computação gráfica, com a utilização de chroma key.

Outra característica importante dessa saga se dá também na escala arquitetônica.


Percebe-se que as edificações são reunidas em dois grupos diferentes: no primeiro, a
escala é pequena, e configura-se nas habitações dos personagens - que podem ser
desde palácios, habitações simples, exílios ou até mesmo interior de veículos AT-
AT -. No segundo grupo, a escala grande, são os monumentos que aparecem ao
longo do filme (ZANELLA, 2019). Com essa saga em específico, que tem uma forte
memória midiática e imagem comercial, é importante ressaltar que, mais do que
trazer uma experiência de consumo, traz principalmente um consumo de
experiências. Em outras palavras, é através do auxílio arquitetônico utilizado no
filme que é possível acreditar e vivenciar as diferentes galáxias existentes nos
filmes.

Dessa época, outra produção que vale ser citada é “Blade Runner” (1982), do diretor
Ridley Scott. Situado em um futuro distópico, o filme utiliza da arquitetura para
mostrar tanto a diversidade dos povos retratados no longa, como também a
decadência que uma cidade superpopulosa pode possuir. Segundo o diretor no
documentário “Dangerous Days” (2007), a equipe de artes utilizou como base a
cidade de “Metrópolis” (1927), com tomadas guia do filme de Lang, e a utilização
de maquetes dos prédios e da técnica Matte Painter - representação pintada de um
cenário, ambiente, ou localização distante - muito semelhante à solução já citada do
filme expressionista, porém transformado em uma distopia escura e poluída,
diferente do precedente. Assim, foi possível criar planos gerais com grande
conglomeração de arranha-céus, que nascem de subúrbios superpovoados; chaminés
industriais, e edifícios com arquitetura eclética, com a utilização das ordens
clássicas, até volumetrias funcionais, com pirâmides e cilindros (ALTAMIRANO,
2014).

Outra técnica citada no documentário de 2007 foi a utilização de ambientes urbanos


pré-existentes, com gravações externas aos estúdios e que tem a rua como cenário
principal. Assim, foi usado tratamento de fachada com placas modulares que
possuíam elementos de caráter futurista para revestir os edifícios de aparência
tradicional, e artifícios como umidade e fumaças para dar identidade visual mais
sombria para o filme. Feito de maneira construtiva, “Blade Runner” (1982) mostra
mais uma vez como os cenários são importantes para ambientar o espectador no
contexto social, político, econômico e ambiental de uma produção audiovisual.

O cinema do século XXI

No século seguinte, o cinema é marcado pela globalização. A revolução digital abriu


possibilidades infinitas para produção audiovisual através das novas plataformas e
formatos, como canais no Youtube e streams por exemplo, que oferecem a opção de
acessar e assistir em qualquer momento e local (SABADIN, 2018). Temos então,
uma maturidade nas produções cinematográficas americanas e estrangeiras, com
ideias inovadoras, ricas em detalhes e experimentações para atrair a atenção, tanto
do público, como também da Academia.

Um filme do começo do século que retrata exatamente esse ambiente de inovação,


foi “Dogville”, de 2003. Do excêntrico diretor Lars Von Trier, a característica
principal do filme encontra-se em seu cenário que, ao mesmo tempo, é a sua
ausência. Seu espaço fílmico ocorre na representação de uma vila sobre um palco,
com iluminação artificial, e com limitação das casas e da rua através de marcações
com linhas de giz, assemelhando-se muito à representação de paredes de uma planta
baixa simplificada de um desenho técnico arquitetônico. Assim, o cenário possui
uma grande carga significativa, por sua construção depender do imaginário do
espectador (SOUZA; TRENTIN, 2015), com referências arquitetônicas já pré-
existentes.

A ausência de elementos construtivos garante ao espectador uma visão absoluta do


espaço, e diferentes perspectivas ao acompanhar ao mesmo tempo a cena principal e
a secundária. Para direcionar a atenção nesse ambiente aberto, o diretor ainda utiliza
a iluminação da direção de arte, guiando o que deve ser visto e o que deve
permanecer em segundo plano. Essa forma de representação escolhida é essencial
para a construção narrativa do filme (SOUZA; TRENTIN, 2015). A ideia central é a
desconstrução, tanto do cenário, como da confiança do bem, mostrando as
personagens em sua visão mais crua, com todos seus defeitos e maldades. A
produção nos mostra que a violência está na nossa frente, como também na frente
dos personagens, e a incapacidade de ambos de deter que ocorra.

O filme “A Origem” (2010), do diretor Christopher Nolan, por sua vez, além de
utilizar da arquitetura na direção de arte para a construção dos cenários, também a
utiliza como enredo, cuja principal história é a possibilidade de sonhos serem
manipulados por arquitetos para construir uma realidade imaginária. A construção
do irreal dessa obra encontra-se também associada diretamente ao cenário
construído, que busca representar o infinito da mente humana. Para ilustrar, tem-se a
cena icônica do corredor de hotel que submete os personagens à gravidade zero,
onde construiu-se uma grande estrutura o qual funcionamento assemelha-se muito à
roda gigante.

O primeiro filme estrangeiro a ganhar a categoria principal do Oscar, “Parasita”


(2019) de Bong Joon-ho, também utiliza da arquitetura para contar uma história. A
linguagem arquitetônica mostra as diferenças e desigualdades sociais de duas
famílias coreanas através dos espaços internos e externos, do design e da sua
ausência, da optimização do espaço e do seu oposto, e dos vazios e dos sólidos
(NIOLI, 2019). A primeira família apresentada, que representa a classe
trabalhadora, mora em um minúsculo apartamento, em um subsolo semienterrado -
ou banjiha, um tipo comum de residência da classe trabalhadora na Coréia do Sul -
que possui como únicos pontos de ventilação uma pequena janela alta que fica no
nível da rua no cômodo principal e uma no banheiro, ao lado do vaso sanitário - este
que possui uma elevação em uma plataforma de azulejos absurda e desconfortável
aos olhos dos espectadores (FINN, 2019).

Por sua vez, a família de classe alta, para quem eles vão trabalhar, reflete a situação
financeira oposta quando sua elegante casa é apresentada. Projetada por um famoso
arquiteto coreano da trama, o cenário principal consiste em um minimalismo
moderno, com predominância de madeira e concreto, e conceito aberto, que
possibilita integração da sala com o jardim através de uma divisória de vidro. Este é
um espaço habitacional que conquistou seu lugar na ordem social (FINN, 2019). O
trabalho do designer de produção do filme, Lee Ha Jun, ao concretizar a área
imaginada pelo diretor exigiu referência não de um estilo arquitetônico, mas a
pesquisa de várias casas com design minimalista para capturar uma ótima disposição
do espaço. É quando essa casa é ampliada a cômodos secretos que a história também
expande em sua dimensão de enredo e críticas sociais.

As duas casas apresentadas representam a verdade das duas famílias e a forma como
elas existem economicamente. Enquanto uma possui uma belíssima vista de cima, a
outra aparece quase enterrada. Não é apenas o princípio do filme “Metrópolis”
(1927) (topo da elite, base da massa), mas a própria ideia de que o traçado urbano, e
mesmo doméstico, é uma narrativa em si (NIOLI, 2019). Assim, percebe-se que
essa obra, como também as demais apresentadas, não contam uma história sobre a
arquitetura em si, mas mostram como narrativas diversas são contadas por meio da
linguagem arquitetônica.

Conclusão

Assim como as produções cinematográficas, o presente artigo buscou aproximar o


leitor do mundo do cinema, com um ponto de vista arquitetônico. Neste passeio
histórico foi possível perceber como estas duas artes andam de maneira interligadas
e como essa parceria é benéfica para ambas as partes. Atualmente, é através da
direção de arte, também conhecida como design de produção, que os cenários se
tornam parte da concepç o visual dos filmes e grandes responsáveis pela
contextualização da história e de sua carga simbólica.

Nessa área técnica e criativa são encontrados lugares para novos significados e
intenções, que garantem total diferença na complexidade da arte cinematográfica e
em sua narrativa. Dessa forma, conclui-se, através da análise cronológica, que a
produção arquitetônica dos espaços imaginários é essencial no cinema para passar as
intenções e interpretações pretendidos no filme.

Referências Bibliográficas

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