02 - Find Me Their Bones - Bring Me Their Hearts

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Para os garotos com um i e um z.

Vocês me mantiveram inteira.


“A vida nasce da morte, a morte nasce da vida; sendo opostos, anseiam
um ao outro, dão à luz um ao outro e renascem para sempre. E com eles
tudo renasce, a flor da macieira, a luz das estrelas. Na vida é a morte. Na
morte está o renascimento. O que é então a vida sem morte? Vida
imutável, eterna? O que é senão morte-morte sem renascimento?”
—Ursula K. Le Guin
Traduzido e Revisado por

WhitethornTeca
1

A Reunião

A Princesa Varia de Cavanos me observa com os olhos de um gato selvagem


divertido. Olhos que, em todos os aspectos, deveriam estar mortos. E, no
entanto, aqui está ela, piscando-os e fazendo-os enrugar com seu lindo sorriso
lento.
Uma única realização nua soa como um sino profundo na minha cabeça:
Varia está viva. Ela está bem aqui na minha frente – a filha que o Rei Sref de
Cavanos lamentou profundamente. A irmã que o Príncipe Lucien de Cavanos
sentiu tanta falta. Ao meu lado e ainda longe de mim, Lucien dá um único
passo à frente, alcançando-a com uma mão trêmula.
— Varia. Você está…
— Viva? — Ela termina para ele suavemente. — Sim.
— Isso não é... — Ele caminha em sua direção. — Isso não é um truque
de mágica de uma bruxa? Eu não estou sonhando?
A Princesa Varia olha em volta para a pilha de corpos aos meus pés, o
sangue manchando a grama e o tronco pálido manchado de vermelho.
— Se fosse alguma coisa, seria um pesadelo. — Seus olhos escuros
percorrem os cadáveres para descansar no corpo de Gavik, seus olhos
vidrados manchados de sangue e sem vida. — Mas, como o arquiduque está
morto por causa disso, eu o chamaria de agradável.
Lucien se aproxima de Varia, os dois parecendo imagens sombrias de
cabelos e olhos escuros e pele dourada. O mesmo nariz de falcão orgulhoso
repousa sobre cada um de seus rostos, os mesmos cílios longos, maçãs do
rosto e sobrancelhas afiadas. Meus pés não se mexem; meus lábios não
formarão palavras.
Ela está morta. Ela deveria estar morta, morta por Sem Coração como eu
há cinco anos.
Lucien estende a mão e toca o ombro da irmã, hesitando a princípio, como
se estivesse com medo de dissipar uma ilusão. Mas seus dedos encontram as
vestes dela, e ele respira profundamente.
— Você está viva. Realmente viva. Eu procurei por você, pela Árvore da
qual você falou. Procurei por toda parte, torcendo além da esperança de
encontrar você...
Varia sorri para ele gentilmente, o mesmo sorriso que o Rei Sref me deu
quando ele e eu nos conhecemos enquanto olhamos para o retrato mórbido
dela – conhecedor e arrependido ao mesmo tempo.
Ela descansa a testa na de Lucien.
— Eu entendo que é difícil de acreditar, — ela murmura. — E você fez
bem. Mas haverá tempo para explicar tudo, especialmente agora que Gavik
foi detido. — Ela se afasta e seus olhos vagam para mim. — Você aí, Sem
Coração.
O olhar de Lucien vaga levemente em minha direção, e a alegria em seu
rosto diminui. Num piscar de olhos, ele envia aquela concha dura e
indiferente – sua concha principesca, a que eu trabalhei tanto para penetrar.
Aquele que as bruxas exigiram, eu deslizo e roubo o coração, mesmo quando
o meu foi rasgado em um milhão de direções.
— A quem você pertence? — Varia pergunta. Dói responder a ela,
respirar. O medalhão em volta do meu pescoço parece cheio de chumbo.
— Nightsinger. — eu confesso. — A bruxa Nightsinger. — Vislumbro
minhas mãos ensopadas de sangue, com o sabor ainda na minha língua. As
coisas que fiz – não suporto olhar ao meu redor. Se eu vir com meus próprios
olhos, isso se tornará realidade. Quantos corpos? Quantos homens com
famílias, filhos e sonhos? Comi Gavik, sua garganta – não consigo olhar. Não
consigo olhar.
E você pensou que poderia me escapar, a fome zomba. Você nem
consegue resistir a mim. Veja o que você fez...
O vômito borbulha no meu estômago, e eu sufoco um apelo.
— P-por favor, Princesa Varia. Tire Lucien daqui – longe de mim. Antes
que eu me transforme novamente.
Os olhos da meia-noite de Lucien, cheios de carinho por mim não faz uma
hora, estão tão frios agora. Ilegível. Ele não fala, nem se move, nem olha na
minha direção. Ele é uma estátua.
Em seu lugar na jarra sobre a lareira de Nightsinger, meu coração
certamente deve estar sangrando. Mas eu sabia. Eu sabia que terminaria
assim.
Varia sorri para mim, com pena clara em seus olhos. E, no entanto, há
mais do que apenas pena – algo curioso, algo estranho.
— O que devemos fazer com ela, Lucien? — Varia pergunta a ele. — Ela
traiu sua confiança, não foi? Eu vi isso.
Lucien olha para mim então. Ele olha – graças aos deuses que ele olha –
mas eu não sou refletida em seus olhos. Eu sou de vidro, uma janela que ele
está apenas espiando.
Ele está furioso. Ele deve estar. Eu queimo para implorar para que ele me
perdoe, mas já perdi muito tempo. Eu soube que no momento em que vesti
este vestido escuro para tirar seu coração.
Não. Eu soube no momento em que o vi pela primeira vez no Boas
Vindas da Primavera, eu certamente soube disso enquanto estava atacando os
guardas da lei e Gavik, que ameaçavam sua vida.
Eu sabia disso a cada momento do nosso tempo juntos.
Eu tinha cada segundo para me preparar para isso. Então, por que ainda
espero arrogantemente um final feliz, mesmo com o sangue de uma dúzia de
homens em minhas mãos?
Porque você é egoísta. A fome afunda sal nas minhas feridas.
Lucien se vira, a visão de suas costas me enlouquecendo em um instante,
e o precipício em que minhas duas metades se arrastaram por quatorze dias
agonizantes subitamente se afasta, me rasgando no meio.
— Não! — Eu grito. — Não vá embora! Por favor, Lucien... não me
deixe.
Minhas palavras ecoam no ar pesado.
Egoísta e louca, a fome provoca. Que humano ficaria depois do que
você fez?
Há uma batida, um momento insuportável de esmagar o nada, e então...
— Como eu poderia deixar algo que nunca tive? — Lucien pergunta. Sua
voz decepcionada é uma lâmina de gelo serpenteando em minhas veias, me
congelando, cada palavra me apunhalando.
Desapontado comigo, no que fiz, em si mesmo por acreditar em mim.
Mas ele não perde mais tempo comigo. Ele se vira para a irmã. — Ela
deveria ser interrogada.
— Por nós? — Varia pisca.
Ele concorda. — A verdade deve ser conhecida.
Meu estômago revira descontroladamente, mas Varia apenas suspira. —
Você percebe que o pai não a tolerará na cidade. Ela é sem coração. Ele a
queimaria mais e mais vezes.
Seus olhos de obsidiana voam para uma árvore distante. — A menos que
você o convença. Ele escutará você, mesmo que seja para poupar a vida de
uma traidora.
Traidora.
Eu caio de joelhos. É isso que eu sou para ele? Por que ele não está
exigindo que eu seja punida, então? Por que ele não está exigindo que eu
sofra pelas mentiras que contei a ele, ao engano que teci em torno de seu
coração?
Varia suspira, depois ri baixinho. — O Lucien que eu conhecia nunca se
importaria com a vida de um traidor, e muito menos pedir a seu ajudante que
implore ao pai por isso.
— As pessoas mudam. — diz Lucien.
— Ou não. — Varia responde. — Às vezes só querem dormir com uma
coisa bonita.
Choque torcido sobe em mim. Nosso beijo na tenda horas atrás havia
pingado de saudade. É por isso que ele está sendo tão miserável? Nightsinger
me escolheu para seduzi-lo porque ele tem um tipo – mesmo agora, mesmo
depois de ser traído, ele quer me manter por perto para me usar antes de me
deixar de lado?
O Príncipe não nega. Ele não nega isso, e em vez disso seu rosto suaviza
minuciosamente, punhos fechando. O Lucien que eu conhecia – não. Ele não
faria.
Ele poderia. A fome desliza através de mim. Ele não é nada mais que
um humano. Criaturas egoístas, gananciosas e lascivas.
— Não é hora de discutir, Varia, — diz ele. — Você está viva. Vamos
voltar. Nossos pais vão ficar muito emocionados em vê-la.
— Dê-me um momento — diz ela. — Há algo que devo fazer primeiro.
Observo oco enquanto ela caminha até os restos do corpo de Gavik,
puxando uma bolsa de veludo costurada com palavras negras de dentro de
sua capa. Eu não quero lê-los, não quero fazer nada, mas sentar aqui e
apodrecer na minha própria miséria, mas ela se inclina e pega algo macio,
vazando e vermelho, e é então que percebo que é o coração de Gavik que ela
está soltando dentro da bolsa, uma bolsa em que se lê sanguessuga.
— É engraçado. — Ela ri baixinho de seu lugar ajoelhada no sangue de
Gavik. — Eu carrego essa bolsa há anos, esperando ter a chance de usá-la. E
agora tenho. Não parece real. — Varia lança seus olhos de vidro preto para
mim. — Você entende né? Querendo algo por tanto tempo e depois ficando à
beira de conseguir.
— Sim. — eu resmungo. Ela suspira, e eu identifico a estranheza em seu
olhar então. O jeito que ela olha para mim está quase... com fome, como se
eu fosse uma moeda brilhante e ela é o corvo que me viu nas pedras da
calçada.
— Deixe-me adivinhar: as Altas Bruxas balançaram seu coração na sua
frente? Seu coração pelo meu irmão.
Minha cabeça se levanta. — Como você… ?
— Porque eu os conheço. — Ela ri, quebradiça.
A voz de Lucien desliza entre nós. — Do que você está falando?
Varia lança um olhar por cima do ombro. — Eu sabia que Gavik me
mataria eventualmente. Todo dia ele despertava mais medo em Vetris, não
importa como eu tentasse detê-lo. E todos os dias ele ficava mais forte por
isso. Sua esperteza e astúcia superaram as minhas. Papai gostava de pensar
que a família real era intocável, invencível naquela época. Mas eu sabia a
verdade.
Arqueio as sobrancelhas, o repentino flash de luz do cadáver mutilado de
Gavik quase me cegando. Varia não pisca, seus orbes escuros absorvendo a
luz sem hesitar enquanto ela fala.
— Há um ditado em Avellish: três inimigos significa que dois deles são
amigos. Gavik me odiava – ele sabia que quando eu assumisse o trono, eu
nunca permitiria que ele tivesse tanto poder quanto o pai. Mas Gavik também
odiava bruxas. Então eu os procurei. — Ela sorri por cima do cabelo, seus
lábios rosados duas metades de uma rosa brilhante. — Pai não me protegeria.
Ele confiou demais nos conselhos de Gavik para expulsá-lo da corte. Então
eu tive que me proteger.
Ela respira, longa e suave. — Eu queria herdar o poder prometido à minha
linhagem sanguínea. Mas como eu poderia fazer isso, com tanto ódio por eles
em nossa cidade? A Princesa, pedindo para se encontrar com as bruxas? Isso
nunca teria sido permitido. Eu sabia que não devia perguntar ao pai – não
podia passar por ele. Eu tive que dar a volta nele.
Ela ergue a mão graciosa. Todos os cinco dedos dela se mexem, mesmo
sendo todos feitos de madeira. Madeira polida e elegante, fundindo-se
perfeitamente com a carne e movendo-se exatamente como ela. Ela mexe a
barra da túnica comprida na lama, e onde a perna da esquerda deveria estar é
a mesma madeira viva e lisa, curvada com seus movimentos.
— Fingi minha morte com algumas partes do corpo. Sacrifícios tiveram
que ser feitos para convencer o mundo – e Gavik – de que eu estava morta.
— Mas... — O perfil do falcão de Lucien se intensifica, toda a escuridão
em seu rosto se unindo. — Seus guardas.
— Como eu disse, irmão. — A voz de Varia é cortada. — Sacrifícios
precisavam ser feitos.
Os sussurros dos nobres de semanas atrás me assombram – partes dela
foram encontradas na estrada e todos os seus guardas estavam mortos. Para
além impiedosamente, como um ataque Sem Coração. Isso significa que ela
— ela matou-os, rasgou em pedaços para fazer parecer tão.
O Príncipe parece mais atordoado do que eu, com o rosto frouxo e as
sobrancelhas franzidas na silhueta de Varia.
— Eles não serão esquecidos. — Varia fala novamente, uma nova força
nela. — Há muita coisa que eu perdi, mas se devo parar esta guerra iminente
e salvar nosso povo, não posso perder nada novamente. Você entende
Lucien?
O brilho no corpo de Gavik começa a desaparecer, sua carne que eu mordi
e rasguei emendada na frente dos meus olhos – canelas se fundindo aos
joelhos e pele cobrindo a fenda aberta em sua barriga. Lucien ainda está preso
a Varia, e então ele assente lentamente.
— Sim.
O horror começa a brilhar mais do que meu desespero – Gavik está se
curando. Seu coração em uma sacola, Varia como uma bruxa – cerro os
punhos, procurando minha espada. Não consigo encontrá-lo na grama
encharcada de sangue. Eu o matei. Ele vai querer vingança como eu queria
contra as proibições que me assassinaram.
Ele ficará vermelho de raiva, com a força do monstro.
Ele se põe de pé, o brilho consertando suas vértebras uma a uma até que
seu pescoço se encaixe de volta no lugar.
Então o rosto de Gavik gira para mim, longos cabelos brancos
chicoteando e todos os seus dentes irregulares. O monstro arranha sua pele,
golpeando-me como uma flecha, seus passos rápidos e pesados. Eu me
protejo com os braços, mesmo sabendo que é inútil; Os olhos cruéis de Gavik
estavam escuros de um canto ao outro e cheios de ódio, inchados de sede de
sangue, suas garras estourando pelas pontas dos dedos e seus membros se
quebrando à medida que se alongam.
Ele é hediondo. Ele é aterrorizante.
Ele é eu como eu não era segundos atrás.
— Chega. — A voz de Varia soa, mas Gavik continua se aproximando de
mim. — Eu disse, isso é o suficiente.
São apenas quatro palavras, e ainda assim elas são tão baixas e tão altas
que estremecem no meu peito. Ela é uma mulher esbelta e mais baixa, mas
essas quatro palavras são ditas com todo o peso do mundo girando. A dor que
estou esperando nunca vem. Gavik está congelado acima de mim, seu corpo
monstruoso e artificialmente alto não se movendo nem um centímetro, apesar
de seus olhos queimarem e piscarem para mim. Varia dá um passo atrás dele
e sorri para mim, um sorriso brilhante demais para a carnificina ao nosso
redor, para o monstro encharcado de sangue à sua frente.
— Peço desculpas por ele. Você sabe como os Sem Coração ficam
quando são transformados pela primeira vez.
Por cima do ombro, vejo Lucien, segurando o punho da espada com
juntas brancas, os olhos vidrados agora arregalados e congelados. O medo
lateja seus lábios enquanto olha para a monstruosa espinha congelada de
Gavik. Varia apenas comandou Gavik da maneira que Nightsinger se recusou
comigo. Ela tem controle total sobre ele. Engulo e levanto meus pés trêmulos
quando a Princesa me olha de cima a baixo.
— Está resolvido então. Estamos mantendo você. O pai não ficará feliz
com isso, mas tenho certeza de que posso...
— Zera! — Uma voz repentinamente corta entre nós – Malachite. Eu me
viro para ver sua figura magra, de pele de papel, de pé na beira da clareira,
uma garota de cabelos encaracolados com uma bengala ao lado dele. Fione?
— Lady Zera! — Fione chama, os dois correndo em nossa direção. A
expressão de Fione é confusa na minha visão exausta, mas eu a ouço
claramente engasgar com a próxima palavra. — V-Varia?
Ao meu lado, o sorriso de Varia cresce como o sol nascendo sobre uma
colina.
A exaustão me prende – algemas de ferro apertando meus pulmões. O
mundo se torna um borrão de grama verde e a pele de neve de Malaquite, as
idênticas cabeças de cabelo à meia-noite de Lucien e Varia e as palavras
fraturadas de Fione como um riacho Um feitiço, um truque, não, não pode
ser! e então a sensação de alguém me pegando antes, finalmente,
misericordiosamente, da escuridão.
2

Não Nascida Novamente

Você pensaria que eu já estaria acostumada a acordar em lugares estranhos


agora.
Mas a verdade é que ninguém se acostuma a acordar sozinho.
Há pânico turvo e confusão absoluta, até que todas as partes do cérebro
em meu crânio se instalem no lugar e lembrem-se de mim: Sou Zera
Y'shennria e traí o Príncipe herdeiro de Cavanos.
Um Príncipe cuja irmã ainda está viva.
Um Príncipe que sabe que eu sou um monstro.
nós vamos ser punidos. A fome ri, de alguma forma, mais silenciosa e
mais do que nunca, nem um traço da instabilidade que tive depois de ser
cortada com a lâmina de Lucien em qualquer lugar para ser ouvido.
Finalmente.
O olhar frio de Lucien assombra as costas das minhas pálpebras, o vazio
do meu coração ameaça se expandir e engolir-me inteira.
Não.
Sou Zera Y'shennria, sobrinha de Quinn Y'shennria. Tenho muitas
fraquezas – um vestido de seda bem feito com o número certo de babados, a
ideia de família, a ideia do meu coração, uma xícara quente de bebida de
chocolate e uma fatia de bolo. Mas não vou me deixar enfraquecer pelo
desespero.
Eu atiro para uma posição sentada, minha coluna apoiada por algo macio.
Meus olhos observam tudo devagar, metodicamente: tapetes macios, cortinas
frágeis, veludo marrom e renda branca adornando cada centímetro da sala.
Estou em um sofá apoiado entre uma mesa de mogno e uma cadeira de
madeira de ferro. Vasos de lírios frescos florescem ao lado de relógios de
areia dourados e bonecas estranhamente infantis com cabelos encaracolados
reais e vestidos de seda em miniatura. A sala tem uma névoa de poeira, como
se estivesse acostumada, mas nunca considerada adequada para morar. Até
agora.
Não reconheço a sala, mas reconheço as paredes – como não?
A cor creme pálida, a estampagem luxuosa: este é o palácio real em
Vetris. Como eu cheguei aqui? Eu tento mudar minhas pernas para o chão,
mas algo de metal me puxa de volta ao lugar. Correntes.
Alguém algemou meus braços e pernas nos pés do sofá incrivelmente
pesado de madeira de ferro.
— Bem — digo olhando para o teto. — isso é novo. — Eu chacoalho
minhas correntes. — Seguro. Eu meio que gosto disso.
Há uma pausa enquanto o teto parece me encarar interrogativamente, e
experimento vários segundos fascinantes da minha nova vida estacionária.
— Ok — eu decido. — Eu odeio isso.
Eu torço meu corpo inteiro, balançando contra as almofadas.
Talvez eu não seja forte o suficiente para quebrar as correntes, mas se eu
puder reorientar o sofá...
Meu estômago revira quando eu rolo uma última vez, e o sofá se agita,
tombando e me fazendo cair no chão. As almofadas me sufocam, eu tusso e
pisco no sofá agora firmemente em cima de mim.
As correntes não estavam embaixo do sofá, mas sim marteladas nas
pernas de madeira de ferro.
Considero os aspectos positivos ao inalar grandes quantidades de recheio
de ganso. Eu ainda estou viva. Meu corpo dói com esforço, mas está curado
de todos os cortes e contusões. A espada de Gavik no meu peito se foi. Fico
apenas com o sentimento exausto de lutar contra os homens de Gavik.
Minha determinação de ferro para não sucumbir vacila. Homens de
Gavik. Suas partes do corpo, espalhadas na grama da clareira.
Quantos eu matei? O número cinco era meu antigo número – eu matei os
cinco bandidos que mataram meus pais e eu. Eu jurei que nunca mataria
novamente. E ainda…
Eu engulo arrependimento. Uma coisa de cada vez, Zera Y'shennria. Você
deve saber agora que é muito difícil fazer as pazes em algemas.
Não posso enviar uma mensagem para Y'shennria presa assim.
Quem sabe quantas horas se passaram? Devem ter sido dezenas,
considerando que minhas feridas estão se recuperando mais devagar do que o
normal, graças ao ferimento de mercúrio branco supressor de magia que eu
sofri da espada de Lucien no duelo semanas atrás.
Para curar feridas tão ruins com a conexão entre Nightsinger e eu tão
fraca... deve ter levado dias.
Y'shennria pode ter dito a Nightsinger que eu já sou uma causa perdida –
a qualquer momento, ela pode quebrar meu coração. Ao contrário da maioria,
minha bruxa é uma coisa suave; ela não quer me destruir, mas pelo que ela
sabe, eu fui pega e estou sendo eternamente torturada pelos humanos.
E isso é... não muito longe da verdade, na verdade. O fato de eu não ter
acordado em uma masmorra é promissor. Mas acordar no palácio pode
significar qualquer coisa. Princesa Varia e Lucien obviamente me trouxeram
de volta para me questionar, mas isso poderia significar tortura se eu não
cooperar. E quando terminarem comigo, quando Lucien terminar comigo,
sem dúvida eles me queimarão como um inimigo de todos os humanos. Além
do recém descoberto mercúrio branco, a queima é a única maneira que um
humano pode retardar a regeneração magicamente alimentada de um Sem
Coração.
Minha cabeça ainda gira – por que o Príncipe pediu à irmã que me
poupasse, a traidora? Por que ele pediu que ela apelasse ao Rei por mim?
ele quer algo de você.
A fome ecoa no meu crânio, como sempre, pelos três anos desde que me
tornei Sem Coração. É uma voz terrível e sombria que assombra todos os
Sem Coração, se apressa e preenche as lacunas quando uma bruxa pega nosso
coração e nos torna seu imortal escravo. Ele quer apenas matar, mutilar,
banquetear-se com humanos. Prospera na minha tristeza, minha dor, mantida
à distância e suprimida apenas pela magia da minha bruxa. Em todos os
outros dias que terminam em um y, ele quer me quebrar. Mas agora, suas
palavras soam verdadeiras. Lucien é uma pessoa lógica. E nenhuma pessoa
lógica pediria à irmã que poupasse alguém que tentasse matá-lo. Ele deve
querer algo de mim. Alguma coisa. O que ele poderia querer agora que eu sou
uma traidora aos olhos dele?
seu corpo.
A fratura na minha força de vontade boceja cada vez mais e depois me
despedaça. Isso é tudo o que sou para ele agora? Algo a ser preso e usado?
Não consigo ver o rosto de Lucien, quando ele me viu se transformar no
monstro, da minha cabeça, as expressões horrorizadas daqueles homens
enquanto eu os rasgava em nada além de pedaços. Depois de tudo. Depois
prometi nunca mais matar.
Meus olhos estão cheios de lágrimas quentes. — Qu-que caminho a
percorrer — eu engasgo. — Presa embaixo de um sofá e chorando.
patético, a fome provoca. é melhor assim.
Mais uma vez, a fome está certa. Morrer é melhor – nunca mais verei
Lucien. Sua confiança perdida, sua decepção em mim – nunca vou ver.
Malachite e Fione vão aprender que eu sou uma Sem Coração dele, tenho
certeza. Também não terei que ver seus rostos magoados e traídos. Eu falhei
com Nightsinger. Não parei a guerra como prometi a Y'shennria. Eu não fiz
nada além de decepcionar as pessoas da minha vida. Eu falhei com todos
eles.
E agora eu morro por isso.
Eu fecho meus olhos, uma paz amarga lavando sobre mim.
O barulho da língua de alguém ressoa. — Tut tut. Que bagunça você fez.
Eu olho para ver através do pequeno espaço entre o sofá e o chão, mas de
repente o sofá se levanta de mim, e cinco pares de pernas na armadura se
revelam guardas do palácio. Eles colocaram o sofá de lado, as correntes me
puxando e contorcendo meus membros dolorosamente. Mas pelo menos
agora eu posso ver a quem a voz pertence – a Princesa Varia em carne, seus
cabelos pretos lisos e penteados. Ela não usa mais o manto empoeirado; um
brilhante conjunto roxo e cintilante abraça suas curvas adultas. Ela é uma
adulta, não é? Estou tão acostumada a olhar para o retrato de sua morte na
adolescência que esqueci que ela teria envelhecido no tempo em que se
presume estar morta. Em cinco anos, para ser exata. Seus olhos escuros e
brilhantes olham para mim, um leve sorriso nos lábios quando ela dispensa os
guardas.
Eu não tenho nada a perder. Perdi tudo na clareira.
— Este é o seu quarto? — Eu resmungo. — Terrivelmente arrependido.
Eu me ofereceria para tirar os dentes do chão, mas acho que não vou ficar por
aqui por muito mais tempo.
Varia levanta uma sobrancelha e pula para mim com botas de cano alto.
— Lucien está descansando, caso você se importe.
Malachite e Fione gentilmente me contaram tudo o que aconteceu. Eu
sabia que você tinha que ter coragem para tentar se infiltrar na corte
vetrisiana, mas também não previa senso de humor.
— Está tudo bem. Depois de ver o que a corte tem a oferecer, eu também
não anteciparia o humor. Fanatismo? Com certeza. Beleza? Em espadas. A
capacidade de juntar duas palavras e torná-las engraçadas? Muito mais raro.
— Verdade — Varia concorda, andando ao redor de mim em um clipe
lento. — Eu poderia contratá-la como a nova garota risonha da corte. Mas
isso seria um desperdício de seus... talentos.
Esse brilho faminto em seus olhos retorna quando ela me olha de cima a
baixo. Lembro-me dolorosamente da minha posição – bem abaixo dela. Ela é
uma Princesa e eu sou prisioneira de guerra na melhor das hipóteses. Uma
coisa. Um corpo. Ela poderia fazer o que quisesse comigo.
Eu a vejo andar e acariciar uma das bonecas sentadas na cômoda, seu
dedo delicado saindo com poeira.
— Que vergonha, e que as bruxas se aproveitem do meu irmão. — Ela
suspira levemente. — Embora eu tenha que admitir relutantemente – eles
enviaram a melhor para o trabalho. Eles atingiram todos os seus pontos altos
– loira, alta, afiada como uma tacha. Ele estava condenado a cobiçar você
desde o início. E você, obviamente, foi com isso, porque parecia um trabalho
simples. Um jovem amargo, cansado e solitário. Presa fácil para alguém
como você.
Ela está deitada em palavras simples, o que tem me assombrado nas
últimas duas semanas. Eu estremeço, mas tento sentar mais alto nas
almofadas do sofá.
— Quantos eu...? — Minha garganta seca quebra. — Quantos eu matei?
Na clareira?
Ela tira as mãos. — Nove guardas da lei.
Eu soltei um suspiro. Quatorze homens.
Eu tirei a vida de quatorze homens.
haverá centenas mais, as provocações da fome.
A Princesa continua. — Eu pensei que era estranho – as árvores
continuavam me dizendo que duas pessoas haviam invadido minha clareira.
Um deles era Lucien; Eu estava acostumada a isso. Ele esteve na floresta
quase todos os anos, vasculhando por mim.
Eu falo, palavras quebradiças uma distração bem-vinda. — Por que você
não disse olá antes?
— Ele me perguntou a mesma coisa. — Varia balança a cabeça.
— Como se a resposta não fosse óbvia.
— Gavik — eu respiro, lembrando que ela o fez sem coração. — Onde
ele está agora?
— Por aí. — a Princesa diz enigmaticamente.
Independentemente disso, eu vi Lucien com uma garota na minha clareira
dessa vez, e então parei para assistir vocês dois. Fiquei emocionada no
começo – meu irmão, finalmente passando da minha perda e abraçando o
amor novamente. E então Gavik fez sua entrada sórdida. E como um milagre
enviado por Deus antigo, você descobriu o que eu não pude. Depois de todos
aqueles anos odiando-o enquanto crescia, o que eu sonhei finalmente
aconteceu. Você o arrastou para fora de Vetris, para fora da sede de seu
poder, e você o matou tão graciosamente. Eu não precisava mais me
esconder. Essa é a única razão que até me dignei a ouvir as súplicas de
Lucien para que eu pedisse ao pai que o poupasse – você me libertou, e por
isso vou mantê-la longe das mandíbulas dos torturadores do pai. Seja bem-
vinda.
— Eu não posso levar todo o crédito. — Eu forço um sorriso fino para
ela. — Fione fez a maior parte do pouco 'arrastando-o para fora de Vetris'.
— Então eu ouvi — Varia medita, pressionando. — Lucien... ele sempre
foi fácil de ler. Ele estava apaixonado por você, você sabe. Eu vi nos olhos
dele na clareira, antes de você se virar contra ele. Mas esse coração não foi
bom o suficiente para você, foi? Você pegou o que ele ofereceu e jogou sob
uma roda de carruagem.
Suas palavras podem muito bem ser flechas envenenadas, me enchendo
de buracos que queimam por todo o caminho. Eu estremeço, as correntes
chocalhando. De repente, ela se ajoelha ao meu lado, levantando meu queixo
para que meus olhos envergonhados encontrem os dela. Eles queimam
exatamente como os de Lucien – todos enxofre escuro.
— Eu vivi com as bruxas por cinco anos, Sem Coração. Eu conheço os
segredos deles. Eu conheço os pontos fortes deles. Eu sei como eles puxam
suas cordas para fazer você dançar.
Respirar é doloroso enquanto eu falo. — Coloque seus insultos enquanto
puder. Minha bruxa vai me quebrar a qualquer momento agora. Esse era o
nosso acordo – se eu não a contatasse, ela assumiria que me capturou e me
matou por piedade. Faz dias. Minha morte está chegando.
— Dias? — Ela late uma risada na minha cara. — Você acha que já
fazem dias ? — Meus músculos ficam mais tensos do que uma corda de
besta. Varia deixa cair meu queixo, seus dedos frios deixando minha pele
enquanto ela se levanta. — Nightsinger, certo? Esse é o nome da sua bruxa?
Algo em seu tom confiante me deixa desconfortável.
— Você sabia — a Princesa pega a boneca que ela tocou mais cedo na
prateleira — que um Sem Coração nunca deve dizer o nome da bruxa em voz
alta a outra bruxa? — Ela enrosca um dedo no cabelo da boneca com carinho.
— Claro que não. Se um Sem Coração diz o nome da bruxa em voz alta, você
está essencialmente dando permissão a outras bruxas para roubá-lo. Podemos
usar o som para criar um feitiço para transferir a propriedade. Mas
Nightsinger nunca te contou isso, contou?
Um poço frio endurece no meu pé. Varia gira a boneca como se ela
estivesse dançando com ela.
— Afinal, para que serve? Ela não viveu no último enclave de bruxas –
Windonhigh – com o resto das bruxas. Ela morava teimosamente sozinha em
uma floresta. Não havia bruxas que a levariam embora. E ela sabia que não
haveria bruxas em Vetris para tentar roubá-la também. Ela deve ter desejado
tanto mantê-la sob a ilusão de que você não estava acorrentada a ela. Uma
bondade inútil e, no final, uma que selou seu destino.
Varia subitamente para de girar e deixa cair a boneca, o corpo de
porcelana se despedaçando em um milhão de pedaços, fragmentos de braços
e pernas voando. Um pedaço desliza pela minha bochecha e corta, sangue
quente escorrendo pelo meu rosto.
Mas assim que o corte separa minha carne, a sensação familiar de uma
ferida sendo costurada por superfícies mágicas, me unindo novamente em um
piscar de olhos. Mais rápido que a magia de Nightsinger. Mais rápido do que
qualquer magia que eu já senti. O buraco frio no meu estômago floresce em
horror doentio quando olho para Varia, a Princesa sorrindo para mim.
— Parabéns, Zera. Agora você é a segunda Sem Coração da Filha
Risonha.


Meu cérebro leva três segundos congelados para encaixar e começar a
trabalhar novamente. Não faz dias. Eu me curei imediatamente. Se eu ainda
fosse Sem Coração de Nightsinger, levaria muito mais tempo.
— Não. — eu deixo escapar.
— Sim. — Varia diz pacientemente.
— Você não pode fazer isso — rosno. — A Dama Carmesim – aquela
torre lá fora teria detectado qualquer feitiço que você tentou fazer...
— Eu tenho alguém cuidando disso para mim. — ela diz, chutando os
cacos da boneca à toa. — É realmente incrível quem seu rei, o pai, aprovará
uma posição nessa ferida vermelha depois que você ressuscitar dos mortos e
implorar por ele.
Ela tem alguém na Dama Carmesim que detecta magia – a torre
controlada por polímatas que mantém Vetris a salvo de toda magia e bruxa
desde que foi construída. Não tenho muita certeza de como isso funciona,
mas sente a magia, e os guardas realizam prisões, dependendo das
informações fornecidas pelo sistema watertell. A elaborada variedade de
canos movidos a água transporta mensagens para todos os cantos da cidade
em um piscar de olhos – o que significa que os guardas podem passar as
informações ainda mais rapidamente. Se Varia tem alguém na torre cobrindo
as informações para ela…
— Ninguém sabe — eu assobio. — que você é uma bruxa?
O sorriso de Varia é auto-satisfeito. — Ninguém além de você e Lucien.
Tenho certeza de que Lucien dirá a seu guarda-costas eventualmente – como
é o nome dele? Mallory?
— Malachite. — eu estalo.
— Oh sim. — Ela encolhe os ombros. — E eu direi a Fione quando
chegar a hora. Mas por que estamos falando de assuntos interpessoais
mesquinhos quando temos tanto a fazer? Há uma guerra no horizonte, e você
vai me ajudar a pará-la. Desta vez, sem alguma aposta arriscada envolvendo o
coração do meu irmão. Parece que está mais seguro, e sem tantas bruxas altas
pairando sobre isso.
Ela varre e destranca os grilhões nos meus braços e pernas.
Estou tão ocupada cambaleando com meus pés cansados que mal pego a
túnica de algodão e as calças que ela joga em mim até que estejam na minha
cara. — Use estes. Não podemos tê-la se metendo em coisas manchadas de
sangue e surpreendendo meu povo, agora podemos?
Eu fico ali, paralisada pelo medo, meus olhos percorrendo os pontos da
roupa limpa, os buracos do vestido manchado de sangue que estou usando e
minha pele através deles. Não sou mais Sem Coração de Nightsinger. Minhas
rédeas foram tomadas com força pela Varia. Era mais fácil me resignar à
morte do que considerar viver com meus erros. Minha traição. Mas agora?
Agora vou ter que continuar. Agora vou ter que enfrentar as pessoas que
machuquei.
E isso é muito mais aterrorizante do que morrer.
— O que você está esperando? — A voz de Varia corta meu trauma pós
guerra. — Coloque-o. Temos lugares para estar. Não me faça comandar você
tão cedo.
Comandante.
Uma bruxa pode pedir a seus Sem Coração que façam o que quiserem.
Nightsinger nunca usou em mim ou com seus outros Sem Coração – os
adoráveis filhos Crav e Peligli. Maldição – Crav e Peligli. Como vou vê-los
novamente? Mordo o lábio e tento desesperadamente me concentrar; Varia
não é Nightsinger. Vi como ela comandou Gavik. Eu machuquei o irmão
dela. Em teoria, ela poderia ordenar que eu pulasse de um penhasco para a
boca de uma dúzia de tubarões vorazes e eu não teria escolha a não ser fazê-
lo.
Lentamente, meus membros se movendo como engrenagens enferrujadas,
tirei meu vestido preto e vesti a túnica e as calças. O medalhão de coração de
ouro ainda está entre as minhas clavículas, pesado e de alguma forma
reconfortante. Não tenho certeza se funciona – permitindo que eu vá
fisicamente a mais de um quilômetro e meio da minha bruxa – mas tê-lo em
volta do pescoço me dá uma força estranha, aquecendo meus ossos frios e
medrosos. Minha bruxa é nova, minha não-vida é incerta, mas o colar
permanece.
Um guarda de repente entra quando eu estou vestida e me oferece a
espada enferrujada do meu pai. Só de ver sua alça de metal lascada me deixa
mais fácil. É a última coisa que tenho dos meus pais, e aqui, no fim do meu
mundo e no começo de um novo, não podia pedir nada mais robusto para me
apoiar. Eu pego, prendendo no meu cinto. Sinto-me duplamente protegida
agora, mesmo que saiba que é uma ilusão oca. Varia aponta para um par de
botas pretas perto da porta, e eu amarro-as nas panturrilhas, observando-a
pelo canto do olho. Quando termino, ela imediatamente se move para a porta
e faz um gesto para eu segui-la.
O palácio deve parecer diferente – tão diferente quanto a minha vida –
mas não parece. A luz da lua ainda flui através das janelas e alcança o
elegante carpete vermelho e as estátuas de mármore de mulheres seminuas
com lanças. Os guardas de todas as portas se inclinam para a Princesa, e ela
acena de volta com perfeita realeza, como se não estivesse ausente por cinco
anos. Eles me lançam olhares cautelosos – Lady Zera Y'shennria, com a
Princesa? – mas não questionam. Varia anda à minha frente, e meus pés
tentam acompanhar-me enquanto minha mente gira em torno de si.
— Eu disse ao pai que você é sem coração, é claro. — a Princesa diz
suavemente. — E ele ordenou que essas informações fossem mantidas
fechadas e trancadas, para que o pânico não surgisse. Eu também disse a ele
que sua bruxa está ansiosa para mantê-la viva, e eu garanti que você não pode
compartilhar nenhum dos segredos de Vetris com eles. Mas tenho certeza de
que em algum momento ele terá que questioná-la sobre a morte de Gavik.
Você não vai contar nada para ele, é claro.
— Você obviamente não me conhece — eu atiro de volta. — Eu sou uma
notória tagarela. Vou dizer a ele que você é uma bruxa. Mesmo se você me
comandar...
— Eu não vou ordenar que você fique quieta — diz ela levemente. — Eu
não precisarei. Você não dirá nada a ninguém, muito menos a ele.
Sua convicção misteriosa é de ferro. Como ela pode estar tão confiante
disso? Ela sabe que eu posso chorar? Reginall – o mordomo de Y'shennria e
um veterano da Guerra Sem Sol – me ensinou a estrutura de uma técnica que
os Sem Coração desenvolveram por desespero durante a Guerra. Um
punhado de Sem Coração conseguiu resistir aos comandos de suas bruxas
para lutar e matar. Eles chamaram isso de Choro, pela maneira como lágrimas
de sangue escorrem de nossos olhos durante todo o tempo.
Mesmo que seja temporário, o ato de chorar faz a voz da fome
desaparecer. Totalmente. Não entorpecer-lo, como a alimentação de órgãos
crús, mas erradicá-lo.
Liberta completamente os Sem Coração – permitindo que eles façam o
que quiserem, independentemente do que lhes foi ordenado que fizessem,
independentemente da voz fanática e sedenta de sangue da fome. É a coisa
mais próxima que um Sem Coração pode chegar a ser humano sem ter seu
coração novamente. Chorei naquela noite na clareira quando minha forma
monstruosa matou Gavik, seus homens, e depois me virei contra Lucien.
Consegui chorar e controlar o monstro antes que ele pudesse matar o
Príncipe.
Varia me viu fazendo isso? Lembre-se de me dizer que as bruxas da
Guerra Sem Sol não gostaram muito de seus Sem Coração aprenderem a
desafiá-los.
Aqueles que puderam foram despedaçados – seus corações mantidos pelas
bruxas esmagadas, o que mata os Sem Coração para sempre. Se não quiser
acabar como eles, preciso jogar minhas cartas com muito cuidado.
Eu quase paro de andar. Posso ainda chorar? O Choro tem duas partes:
uma, a calma interna dos pensamentos, a limpeza da mente e a externa, sendo
cortada por uma pura lâmina de mercúrio branco. Minha antiga conexão com
Nightsinger foi enfraquecida no momento em que Lucien acidentalmente me
cortou com sua lâmina de mercúrio branco durante o duelo. Mas essa
conexão entre Varia e eu não foi mutilada pelo mercúrio branco supressor de
mágica. É forte e vibrante.
Meu estômago se contorce quando passamos por portas muito familiares
– para o salão de banquetes, a sala do trono, o lindo vitral Salão do Tempo e
o hall de entrada. O perfume psíquico de Lucien permanece em todos eles –
sombras de lembranças de quando nos conhecemos pela primeira (segunda,
realmente) vez. Estes são os lugares em que estive como uma pessoa
diferente, como um monstro que finge ser humano. Ele me tolerou então.
Ele me amou então.
Meus nervos andam em cacos de vidro – meu corpo estava esperando por
duas semanas inteiras neste palácio para ser insultado e odiado, para que meu
segredo fosse revelado. Eu continuo olhando em volta, doente com a ideia de
encontrar Lucien em cada esquina.
Como ele deve me odiar agora.
O único garoto pelo qual senti meu coração bater, me odiando.
O pensamento tenta me deixar mais louco do que a fome. Atinge dedos
retorcidos para mim, mas me concentro em todas as curvas das estátuas de
mármore, todas as fibras dos grandes tapetes, todas as pétalas dos vasos de
flores impecáveis de estufa. A pintura no hall de entrada do Novo Deus
Kavar paira escura à noite, as escamas nas mãos compridas inclinando-se, as
centenas de olhos tatuados em sua divina pele dourada olhando para mim
como se parecesse dizer: Não há como escapar da justiça.. Você expiará o
que fez.
Quatorze homens. Um para cada dedo na minha mão e depois alguns.
Varia aponta para o hall de entrada, para as gigantescas portas da frente
de carvalho sendo mantidas abertas pelos guardas. Do lado de fora, uma
carruagem enfeitada de preto aguarda na parte inferior da grande escadaria.
— Depressa agora. Há algo que eu quero que você veja. — Ela abre,
passando por mim e descendo as escadas com as saias erguidas. Cada passo
dela é tão perfeito para os padrões da corte vetrisiana que eu sei que até a
Y'shennria ficaria impressionada.
Y'shennria.
ela deixou você aqui para apodrecer, a fome rosna. ela abandonou você
para salvar sua própria pele.
Minhas mágoas doem quando subo na carruagem e me sento em frente à
primeira postura de Varia. Não culpo Y'shennria por me deixar aqui em
Vetris sozinha, mas parte de mim quer. Parte de mim quer se enfurecer e
gritar com a injustiça de tudo – eu queria apenas meu coração. Eu falhei. Por
que tenho que sofrer, continuar vivendo assim, acorrentada a uma bruxa mais
uma vez? Uma parte de mim está furiosa. Uma parte de mim está assustada
até os ossos. E tudo de mim não quer ficar sozinha.
Nightsinger, Crav, Peligli – onde eles estão agora? Será que eu vou vê-los
novamente?
Olho para o rosto levemente sorridente de Varia. Seu lençol de cabelo
preto brilha ao luar. Ela vira os olhos da janela para olhar para mim e seu
sorriso se amplia. Calma. Satisfeita. No controle. Ela é o total oposto de mim.
A cidade também não é diferente de quando eu a deixei. Os talismãs de
ferro giram e giram no vento da meia-noite de cada beiral e calha da chuva –
um crescente com três linhas movendo-se através dele. O olho de Kavar.
Mesmo aqui, o deus dos humanos está me observando. O pináculo do
Templo de Kavar medita sobre os becos e ruas quando passamos por eles,
bêbados gritando hinos e canções de cama igualmente enquanto cambaleiam
para casa a partir de tabernas.
O que Varia quer me mostrar, não está no coração da cidade. A carruagem
nos leva ao que eu acho que é o Portão Sul, pendurado com correntes de
lâmpadas de óleo mornas e sufocadas com o zumbido suave de conversas
murmuradas enquanto as caravanas comerciais se preparam para as partidas
anteriores. A Princesa fica em silêncio durante todo o percurso até a
carruagem parar no portão.
— Estamos aqui. — Ela faz um gesto para eu sair. — Tente se comportar
melhor.
— Oh, eu certamente vou tentar — murmuro e balanço minhas pernas. —
E certamente falhar.
A multidão sonolenta nos envolve quase que instantaneamente, e por um
momento enquanto eu os empurro para seguir Varia, as enormes portas de
ferro fundido do Portão Sul chamam minha atenção. Dez no chão, vinte –
não, trinta guardas de armadura brilhante ficam rígidos na parede branca onde
o portão está aninhado, empoleirados como urubus enquanto observam a
multidão lá embaixo. O muro ao redor de Vetris pode impedir a entrada de
bruxas e bandidos, mas são os guardas da lei que mantêm as pessoas.
Minha mente pisca brevemente para escapar. Mesmo que eu escalasse a
parede por algum milagre e passasse pelos trinta guardas sem ser crivado de
pontas de lança, Varia certamente me impediria com um comando. E não
tenho mais certeza do meu choro.
Mas se eu não correr...
Vou ter que enfrentar Lucien. Fione. Malachite. Vou ter que encará-los
como uma traidora. Como quem eu realmente sou – uma assassina. Uma
mentirosa.
Tudo em mim quer correr. O andaime na parede está tão perto.
Eu poderia correr. Eu poderia correr como se minha vida dependesse
disso.
Varia percebeu que eu estava atrasada e vira na multidão. Se a multidão a
reconhece, nenhum deles mostra. Como eles poderiam?
Faz cinco anos desde que ela foi vista pela última vez. Ela se transformou
em uma jovem mulher, orgulhosa e forte.
— Vamos lá — ela me pede. — Há coisas a serem feitas.
Afasto-me dela lentamente e meus pés se movem para o cadafalso. Eu
tenho que tentar. Eu não posso enfrentar Lucien. Agora não. Não agora que
sou um monstro para ele. Varia pode estar blefando, mentindo sobre ser
minha nova bruxa, sobre toda a provação de propriedade transferida, e eu
poderia pular esse cadafalso. A única coisa entre mim e finalmente correr
livre poderia ser aquela parede branca, a curva daquelas inclinações de
madeira contra ela.
— Não. — A voz de Varia fica mais difícil. — Zera, estou avisando.
— O quê? — Eu zombo de volta para ela. — Com medo de que você não
seja minha bruxa, afinal? Com medo que eu escape?
Giro nos calcanhares, apenas para ser congelada por suas palavras.
— Você vai me seguir.
É apenas metade da voz dela. A outra metade é um tom escuro, profundo
e visceral que eu conheço muito bem, ecoando de algum sino de jato
aninhado dentro do meu próprio ser. Varia e a fome dizem as mesmas
palavras ao mesmo tempo, e o som – o significado – percorre-me como água
gelada do rio, me prendendo no lugar. Eu a seguirei. Eu os seguirei – ela e a
fome – até que eu não possa mais seguir.
Eu giro de novo, desta vez em sua direção, e como se estivesse fora do
meu corpo, pairando acima dele e observando-o como uma peça de teatro, me
observo obedientemente trotando atrás da princesa cada vez mais longe na
multidão.
Ela é minha bruxa.
Cada passo das minhas botas nos paralelepípedos bate em mim como uma
batida terrível e inescapável.
A Princesa Varia d'Malvane de Cavanos – a Filha Risonha – é minha
nova bruxa.
3

A Serpente Branca
eo
Alto-Falante

— Você sabe muito sobre o velho Vetris, Zera? — A Princesa Varia pergunta
quando chegamos ao fundo da multidão do Portão Sul – onde a orla da cidade
de paralelepípedos encontra o pé da parede branca que encapsula Vetris. Ele
aparece gigantesco e brilhando com uma luz profana sob as três luas, mas
meus olhos mal conseguem ver sua beleza antes que meus pés me guiem
incontrolavelmente atrás de Varia.
Sob os efeitos do comando, ainda posso mover meu rosto e meu pescoço
de forma independente. Mas o resto do meu corpo parece que caí no sono,
como se os músculos que movo não fossem realmente meus. Eu posso senti-
los se movendo e não senti-los. Eu fiquei bêbada uma vez, no hidromel
barato que Nightsinger estava fabricando atrás de sua cabine, e essa sensação
de estar absolutamente bêbada é a coisa mais próxima com a qual posso
comparar. Aqui, mas não aqui. Ciente, mas incapaz de fazer qualquer coisa,
além de morder meu lábio e responder. Eu adoraria lançar todos os insultos
sob o sol para ela, mas o medo está começando a conquistar minha raiva. E se
eu estiver sob seu domínio para sempre?
Minha voz é livre, pelo menos – uma pequena misericórdia. Não tenho
certeza do que faria se não pudesse expressar constantemente minha opinião
impecável.
— Não. — eu digo.
A Princesa para um pouco antes de uma porta de latão na parede, ladeada
de ambos os lados por guardas da lei de rosto severo. Eu nunca estive tão
perto da parede antes, pelo menos não por dentro – então estou surpresa ao
ver que ela tem portas. Agora que penso nisso, essas portas devem ser como
os guardas sobem o muro para patrulhar – o único andaime no Portão Sul não
seria suficiente para trafegar todos os guardas.
A Princesa Varia limpa a garganta e fala, suave mas claramente.
— A Filha Risonha chama.
Não tenho tempo para ficar chocada com o fato de ela estar dizendo a
esses guardas da lei seu nome de bruxa. Talvez eles não saibam que é dela.
Talvez seja apenas uma senha para eles. Os guardas da lei imediatamente se
endireitam e depois se afastam da porta para nos deixar passar, Varia
pressionando a porta de latão rangente e, sem nenhum controle, meus pés a
seguem até a penumbra do outro lado.
Eu levanto minha cabeça para os guardas. — Ela é uma merda...
O aperto de Varia no meu pulso é instantâneo. — Se você quer seu
coração de volta, não dirá a ninguém que sou uma bruxa.
Meu coração? Ela está... ela está me tentando agora? Ela está sendo
genuína? Se eu tivesse meu coração, poderia escapar do aperto dela em mim
para sempre – eu poderia escapar da fome. Meu coração é toda a razão pela
qual vim a Vetris e traí o Príncipe em primeiro lugar. Tudo até o momento da
clareira era para o meu coração.
A Princesa fecha a porta atrás de nós, dando um sorriso penetrante para os
guardas. Não há comando para eu não dizer nada, mas a mera chance de
recuperar meu coração ainda tem minha língua. Mais uma vez, estou
acorrentada por mais do que correntes. Uma prisioneira no meu próprio
corpo.
Eu tento não pensar sobre isso. Mas, como todas as coisas em que se tenta
não pensar, de repente é tudo em que consigo pensar.
Ela poderia ordenar que eu fizesse qualquer coisa, e eu ficaria impotente.
Impotente. Deuses, eu odeio essa palavra. Isso tira toda a esperança de mim, a
fome rindo e repetindo-a várias vezes.
impotente, impotente provoca. apenas desista.
Não. Tem que haver algo que eu possa fazer. Tem que haver alguma
saída. E se for mantendo minha boca fechada por ela ser uma bruxa, que
assim seja. A ideia de outros três anos ou mais como Sem Coração é
impensável. Eu mal consegui atravessar a floresta, e isso foi com as presenças
calmantes de Crav e Peligli e com uma bruxa que não me comandou. Não
serei capaz de manter a sanidade através de algo assim novamente, sozinha.
O que for preciso, eu tenho que me libertar.
O gotejamento rítmico constante da água cresce em meus ares, e meus
olhos se ajustam rapidamente; o interior da parede é cavernoso e longo e se
estende aparentemente para sempre, como uma cobra oca colocada no
horizonte. Lâmpadas de mercúrio brancas penetrantes são rebitadas nas vigas
de suporte de latão que moldam a parede. Um aqueduto esculpe o chão,
ladeado por ambos os lados por passarelas raladas, e pela luz das lâmpadas eu
posso ver que ao longo dos anos, a umidade constante dentro deste lugar
desgastou cada centímetro de latão de um verde viridiano brilhante.
Varia se vira, seu rosto ilegível enquanto ela caminha pelo lado direito da
grade com passos certos, como se ela estivesse aqui milhares de vezes.
Talvez ela tenha... Vetris foi onde ela cresceu, afinal. Minhas pernas me
movem atrás dela, enquanto eu estico o pescoço para olhar em todos os
lugares. Os guardas patrulham também o lado da parede, marchando para
cima e para baixo na grade, e entre suas armaduras vejo o estranho manto
marrom de um polímata errante. Um muro desse tamanho requer
manutenção, sem dúvida.
— O velho Vetris era como o reino de Cavanos se chamava há mil anos
— recita a Princesa rapidamente. — Ele abrangeu todo o continente da névoa
– do Oceano Torcido ao Estreito do Norte, da Tempestade Feral ao Mar
Avellish. Foi o maior reino do mundo.
— E eles dizem que bruxas não são boas com seus Sem Coração — eu
ofereço, minha voz ecoando no alto teto de metal. — No entanto, aqui está
você, dando-me uma lição de história gratuita e chata.
Ela me ignora completamente. — Mas o Velho Vetris que conhecemos –
aquele que construiu esta cidade – não era composto apenas por humanos.
Ainda é impossível construir um muro desse tamanho, dessa força, hoje. Sabe
por que isso acontece?
— Mágica, certo? — Sopro uma mecha de cabelo irritante do meu rosto,
minhas mãos presas nos meus lados. — Os humanos e as bruxas construíram
o Velho Vetris e viveram em harmonia juntos.
A Princesa me lança um olhar por cima do ombro. — Então você é mais
esperta que uma aluna de escola, afinal.
Ela para abruptamente em frente a outra porta de latão e a abre, revelando
uma escada em espiral descendo na escuridão total. Ela pisa nela sem um
pingo de medo, e meu corpo a segue cegamente, amarrada firmemente à
ordem. Apesar do fato de ficar mais escuro à medida que descemos as
escadas em espiral, Varia não oferece uma luz ou parece perder o equilíbrio.
E eu também não.
— Bruxas odeiam humanos — sua voz soa. — Humanos odeiam bruxas.
Meu pai e as Altas Bruxas estão atolados em um ódio muito mais antigo do
que qualquer um deles poderia imaginar. — Ela faz uma pausa, nossos passos
ecoando nus. — Papai irá para a guerra muito em breve. Se você tivesse
tomado o coração do meu irmão pelas bruxas ou não, ele teria entrado em
guerra – disso eu tenho certeza. Seu pai foi à guerra antes dele e seu avô antes
dele.
Lutar com bruxas dá propósito aos cavanosianos. Ele construiu todas as
suas tradições, religiões, cultura. Helkyris reverencia o conhecimento. Avel
reverencia a beleza. Cavanos reverencia a guerra. Construiu uma vida para
matar.
Sua risada soa fria e sem conforto. — Embora as bruxas sejam poucas em
número agora, elas já foram poderosas. Nem sempre houve os homens
caçando as bruxas assim – há cem anos, os humanos estavam do lado
perdedor. As bruxas também construíram vidas fora da guerra, apenas de
maneiras diferentes. Eles plantaram espiões. Eles pensaram em novas e
horríveis mágicas feitas para matar, ferir e envenenar. Eles descobriram
maneiras de construir suas cidades tão altas e ocultas que os humanos nunca
as encontrarão. São como duas cobras comendo a cauda uma da outra.
Eu sei disso agora, depois de ter morado com os dois.
Meus joelhos começam a doer com quantas escadas já subimos, mas
minhas pernas ainda pulsam, o comando não se importando com a quantidade
de dor que sinto. Finalmente, depois do que parecem mais de mil passos,
chegamos a um chão de pedra. Mal consigo mais ver a Princesa, mesmo com
meus olhos ajustados. Eu posso ouvir suas botas pararem, no entanto.
— Antes da formação do Velho Vetris — ela diz. — os anais de Cavanos
estavam repletos de histórias de guerras entre humanos e bruxas. Então, é
preciso pensar: o que poderia ter forçado esses inimigos mortais a se unirem e
formar as cidades muradas? O que poderia tê-los forçado a trabalhar juntos
para construir um império, em vez de se despedaçarem?
Eu sei a resposta. Todo mundo que pegou um livro nos últimos mil anos
saberia a resposta.
A escuridão ao nosso redor é tão profunda agora que posso fechar meus
olhos e abri-los e não ser capaz de dizer a diferença.
Tudo o que eu tenho que fazer são os sons de água pingando e um novo
som: um ritmo profundo e sonoro ecoando nas paredes que ficam mais altas
quanto mais baixo formos. Talvez seja o zumbido de uma trapaça polímato?
Mas isso não explica por que não há luzes aqui embaixo.
Andamos por mais alguns segundos, silenciosamente e gradualmente os
sons de baralhar e o barulho de armaduras e vozes roucas e tênues começam
a se infiltrar. Vozes Célebres – inconfundíveis em seu tom meio ronronante e
meio sibilante. Cinco, dez – deve haver pelo menos uma dúzia deles ao nosso
redor.
Guardas reais, talvez?
Existem alguns guardas Célebres, mas a maioria deles serve diretamente à
coroa. Faz sentido – eles não têm nenhum problema em ver neste escuro.
Ligados aos músculos e capazes de ver e ouvir profundamente, mesmo com
uma completa ausência de luz, os Célebres são uma raça de pessoas
semelhantes a gatos e lagartos que antes eram criaturas sem senciência. Mas
depois que um feitiço mal feito deu errado, eles começaram a pensar. Desde
então, eles desenvolveram um ódio profundo pelas bruxas, aliando-se aos
humanos. Os que estão aqui embaixo podem não saber que Varia é uma
bruxa. Eles provavelmente a vêem apenas como um membro da família real
d'Malvane a ser obedecida.
Varia deve ter parado, porque meus pés estão parando.
— Sua Alteza — diz uma voz Célebre. — Não sabíamos que você viria
tão cedo. Yorl está no nível de observação, fazendo medições da besta. Eu
posso ligar para ele se...
— Não haverá necessidade ainda — Varia interrompe-o suavemente. —
À vontade. Vou informá-lo quando precisar de você.
Outro barulho estridente ecoa de todas as direções, como se todos os
célebres estivessem fazendo algo ao mesmo tempo.
Curvando-se?
— Como desejar, Alteza.
Há mais barulho quando passos passam por mim, longe de mim.
Sinto um aperto repentino no meu pulso enquanto a voz de Varia paira
logo acima do meu ombro, um tom de canção.
— Você não respondeu minha pergunta, Zera. O que poderia ter levado os
humanos e as bruxas a trabalharem juntos para formar o Velho Vetris todos
esses anos atrás?
Meu cérebro troveja no meu crânio, espelhado por aquele ritmo pesado e
sonoro que assombra a escuridão. Isso não é engenhoca. É muito grande.
Parece muito... vivo. O célebre mencionou um animal.
A pergunta de Varia, um animal no escuro. Mas não há como...
A voz de Varia parece fraca, distante, enquanto ela late para alguém: —
Abra os portões.
— Pedindo perdão, Alteza… Mas você tem certeza? — Outra voz de
ébano pergunta nervosamente. — Acabou de acordar e está com muita fome.
— Faça como eu digo — Varia morde. — Abra o portão.
O grito de metal quando algo pesado começa a levantar me faz pular da
minha própria pele. Todos os pêlos do meu braço estão eretos, meu corpo
inteiro coberto de pele arrepiada. Algo enorme sacode o chão de repente,
vibrando meus próprios ossos, e se eu não fosse imortal, este seria o ponto
em que eu definitivamente teria me irritado. O cheiro me atinge de uma só
vez – uma onda de morte pútrida, como sangue podre, carregada em um feixe
de ar úmido. O som de escamas varrendo a pedra.
Entendo de repente, tarde demais e de uma só vez horrível – o som
rítmico está respirando e é tão alto que é como o rugido de uma cachoeira
nos meus ouvidos. Não, não é possível por nenhum alcance da imaginação.
Mas uma voz minúscula e aterrorizada soa em minha mente: se Gavik
mantinha uma no cano abaixo da Torre do Rio Oriental por anos...
Meus pés me levam para frente, seguindo Varia automaticamente
novamente, mesmo quando o medo rasteja pela minha garganta e tenta me
puxar para trás. De repente, meus olhos captam uma névoa de luz, crescendo
de um dos dedos de Varia – um dos dedos de madeira que ela usou para
substituir os perdidos. Uma chama emite um pequeno halo de luminescência
laranja, batendo forte contra a escuridão. Com isso, os cantos dos meus olhos
pegam uma lasca de um maciço portão de aço, de um chão de terra que se
estende pelo que parece mais para sempre na escuridão. E então a luz das
lanternas revela algo na sujeira enquanto Varia avança: arranhões,
impossivelmente profundos e impossivelmente longos.
Minha respiração é tão superficial que dói. Não pode ser...
Algo desliza na escuridão além da luz do fogo, o som sibilante de
escamas ficando mais alto. É enorme. Eu posso ouvir o quão grande é – como
o ar se move para dar espaço a ele. A respiração rítmica para de uma só vez, e
a minha também. Uma pesada lança de ar se movendo rapidamente perfura
na minha frente, tão rápido que posso ver as nuvens de poeira se enroscarem
diante dela, e então uma boca se lança na luz do fogo.
Dentes. Centenas deles. Milhares.
um companheiro monstro. Os olhares de fome.
Dentes serrilhados e feitos para rasgar, cada um maior que todo o meu
braço e pingando grossos fios de saliva. Uma língua bifurcada chicoteando
contra os dentes, provando a luz do fogo. Não é a boca toda – é simplesmente
uma pequena parte dela, o canto inferior de uma gigantesca mandíbula
branca, semelhante a um lobo – e, no entanto, poderia engolir Varia e eu
confortavelmente por todo esse instante. Não consigo pensar – tudo o que
posso fazer é assistir, petrificada, enquanto Varia olha calmamente para o
queixo a menos de um metro da frente com seus olhos escuros. O cheiro
quente e pesado de carne podre e entranhas em decomposição se intensifica à
medida que a respiração da criatura lava sobre nós, entrando e saindo como a
maré.
— A resposta para minha pergunta, Zera — Varia exige uniformemente,
observando as presas soltarem uma poça de baba maior que ela no chão. A
luz do fogo pisca em seu rosto plácido. — O que é isso? Qual foi a coisa que
fez humanos e bruxas se unirem sob uma bandeira novamente? Estou tão
distraída.
Pelos meus dentes cerrados, consigo uma única palavra rouca.
— V-Valkerax…


A Princesa é mais corajosa do que qualquer pessoa no mundo.
Por exemplo, ela está a um metro de distância de uma valkerax adulta,
sem um centímetro de terror no rosto.
Ela parece resoluta, orgulhosa, como se prender essa serpente gigante
aqui em baixo fosse sua maior conquista. É como se ela estivesse mostrando
isso para mim como uma criança que escuta um besouro particularmente
bonito que eles pegaram ou uma pedra de rio que encontraram.
— Não tenha medo, Zera. — Ela ri baixinho. – Garanto-lhe, está sedada
com as misturas mais fortes que um polímata pode fazer e contida pelas mais
recentes runas de beneather. Se Gavik é útil para qualquer coisa, é para me
dizer exatamente como manter uma valkerax viva e presa sem deixá-la
morder minha cabeça.
Não consigo ver as runas de beneather esculpidas em qualquer lugar
graças à escuridão, mas saber que elas estão presentes diminui meu medo por
uma fração. Os beneathers – o povo de Malachite que vive embaixo da terra
no Escuro Abaixo – são os únicos que sabem como combater a valkerax,
como mantê-las afastadas. Eles fazem as duas coisas há mil anos, afinal. De
acordo com o que Malaquite me disse há quase uma semana, as runas de
beneather podem manter uma valkerax fora de um local, ou dentro de um
local, vinculando-as com seu nome verdadeiro.
— Como... — eu respiro, observando horrorizada o desaparecimento da
mandíbula da luz do fogo e o massivo barulho de escamas e arestas
retomando enquanto a valkerax se move para outro lugar. — Como você… ?
Há um baque estremecedor que sacode as pedras no chão e Varia e eu
começamos ao mesmo tempo. Fico aliviada ao ver a Princesa recuar – então
até ela está com medo da coisa, no fundo – sobre a borda do portão aberto, e
eu a sigo, meu corpo tremendo e ansioso para fugir. O guincho de metal do
portão se fecha atrás de nós.
— Os comos não são importantes. — Varia funga, o rosto mais pálido à
luz do fogo do dedo, mas não menos sério e composto. — É nisso que eu
quero que nos concentremos.
Eu engulo, engolindo ar velho. — Como em 'o que na cavidade ocular de
Kavar você planeja fazer com essa coisa ?'
— De fato. Yorl. — Ela se vira para alguém na escuridão. — O que eu
vou fazer com essa coisa?
Meu coração bate de novo quando outra figura entra na luz fraca do fogo
– um célebre, piscando rapidamente seus olhos cor de esmeralda, à medida
que se ajustam à luz. Ele não é um célebre adulto – sua juba muito curta e
eriçada ao longo do pescoço para ser plenamente percebida, suas feições
muito nítidas e esbeltas, como uma árvore que cresce rápido demais para o
seu próprio latido sem nenhum músculo ou substância para trás isso. O manto
marrom que ele veste (um manto de polímata sem cinto de ferramentas –
estranho) fica solto nele. É difícil dizer em um ambiente tão sombrio, mas
acho que o pêlo dele é de um amarelo ocre, manchado de escamas
avermelhadas nas costelas e nas pernas. Suas largas orelhas triangulares são
cravejadas com duas fileiras de brincos de prata. Ele carrega um maço de
pergaminhos debaixo de um braço e uma pena na outra pata. Um par de
óculos repousa sobre o rosto, a ponte larga para acomodar o nariz mais largo.
— Quem é essa? — O célebre franze a testa para mim, depois para a
Princesa. — Não aceitarei outra distração no meu laboratório, Varia. Você
me deu apenas um mês...
— Ela é a Sem Coração que você queria — Varia concorda, parecendo
indiferente ao fato de que ele está se dirigindo a ela tão casualmente. O
Célebre estreita os olhos para mim, a luz do fogo pegando seus óculos e os
tornando opacos.
— Oi — eu tento, molhando meus lábios ressecados pelo medo.
— Bela masmorra que você tem aqui. Eu acho. Não vi muito disso,
porque você parece ter aversão à iluminação interior.
Há uma batida quando Yorl me olha e depois se volta para Varia. —
Prefiro Gavik do que a tagarela.
Eu cerro internamente. Talvez eu não tenha a menor ideia do que está
acontecendo, mas quem prefere Gavik a mim é obviamente uma pessoa
terrível ou indiferente – eles tendem a ocorrer em conjunto.
— Sim, bem. — A Princesa suspira. — Gavik não pode chorar. Esta
pode.
Meus olhos a fixam instantaneamente. Então, ela não sabe sobre o Choro.
Então sua confiança de que eu não diria ao Rei que ela é uma bruxa é ainda
mais intrigante – a menos que ela pense que a promessa trêmula do meu
coração é suficiente para me silenciar. E isso é. Mas eu prefiro apodrecer na
vida após a morte do que dizer isso a ela.
— Realmente? — Yorl zomba. — Essa coisa? Parece que ela saiu da
sarjeta.
— E você parece ter saído de um porão com muita baba de valkerax, mas
não me vê insultando você por isso. — ofereço. É
quase bom ficar com raiva ao invés de devastação, e eu deixo isso
alimentar minha língua. Yorl nem pisca com o insulto, me inspecionando por
trás dos óculos com um olhar frio e imóvel.
— Não haverá discussão entre vocês dois. — Varia limpa a garganta, sua
voz a cada centímetro de uma Princesa. — Não temos muito tempo para fazer
o que é necessário. Por favor, diga a ela, Yorl, exatamente por que essa
valkerax está aqui e por que você precisa dela aqui também.
Yorl estreita seus olhos esmeralda para mim. — Você vai ensinar a essa
valkerax como chorar.
Cada palavra é vetrisiana comum. E própria palavra é uma que eu
conheço, mas unidas, elas não fazem sentido. Eu decido fazer uma inspiração
em vez de uma risada. — Eu devo ter te ouvido mal.
O que você disse que implicaria valkerax é Sem Coração. E tenho cem
por cento de certeza de que não há uma jarra no mundo que caiba em um
coração tão grande.
Yorl zomba, voltando-se para Varia. — Eu não vou explicar tudo, desde o
início até ela.
Varia apenas sorri para ele docemente. — Peço que se lembre – sou a
única fora dos Arquivos Negros que pode lhe dar o título de polímata que
você tanto deseja.
Yorl estremece por trás dos óculos. Eu nunca vi um polímata Célebre.
Guarda da lei, com certeza. Mas não polímatas. São raros ou, conhecendo
Vetris, discriminados. Se for esse o caso, seria definitivamente verdade que
Varia é um dos poucos que conseguem fazer dele um.
Ele vira a cabeça amarela de volta para mim, sua voz um zangão. — Mil
anos atrás, os humanos e as bruxas se uniram contra a ameaça da valkerax
que estava arrasando o reino.
— Certo, velho Vetris — eu concordo. — Você pode pular adiante – não
sou tão lenta quanto pareço.
Yorl apenas me olha como se eu fosse uma obra de arte particularmente
chata. — Com os poderes combinados do conhecimento dos polímatas e da
magia das bruxas, eles foram capazes de criar um método para controlar a
valkerax.
— Você quer dizer como as runas beneather? — Pergunto. O
olhar de Yorl se transforma em um olhar fixo, e eu sorrio. — Desculpe,
desculpe. Você tem a palavra. Até que eu decida deitá-lo por completo tédio.
— As runas de Beneather simplesmente proíbem que uma valkerax saia
ou entre como área. — A expressão irritada de Yorl aumenta quanto mais
tempo ele fala. — Tais runas foram inventadas pelo Velho Vetris e dadas aos
beneathers, sim. Nós os esculpimos nas paredes da arena em que mantemos
essa valkerax. Mas você está muito mais familiarizado com o outro método
que os Vetrisianos inventaram.
Yorl levanta a pata, mostrando-me cada um de seus dedos com garras e
colocando um para cada novo ponto que ele faz. — Valkerax cura a um ritmo
surpreendente. É por isso que eles são tão difíceis de matar. Nada comparado
a um Sem Coração, é claro, mas mais rápido que qualquer outra criatura do
mundo. Os Vetrisianos Velhos descobriram que, pegando uma parte da
valkerax e ancorando-a em um objeto com infusão de mágica, qualquer bruxa
que tocasse esse objeto poderia comandar a valkerax, e qualquer um de seus
futuros filhos, a fazer suas ordens.
Meu coração fica frio quando a fome passa pelos meus ouvidos: assim
como nós. acorrentado como nós.
— Você quer dizer... Insensibilidade? — Eu murmuro.
Yorl sacode sua juba meio adulta. — De qualquer forma, foi um protótipo
da maldição Sem Coração. Mas sim. A falta de coração foi desenvolvida
mais tarde, exclusivamente pelas bruxas e sua magia, usando métodos
baseados no controle da valkerax da Velha Vetris.
Minha mente volta aos livros que li, às histórias que examinei na cabana
de Nightsinger e com mais nada para fazer. Os livros nunca foram específicos
sobre como os Vetrisianos Velhos conseguiram salvar o mundo da agitação
de Valkerax, mas agora…
— Foi assim que o velho Vetris enviou a valkerax para o escuro abaixo
— fico maravilhada. — Eles os comandaram ?
Varia assente. — Precisamente. O velho Vetris os forçou a descer, e os
beneathers os selaram lá com as runas. Aqueles de nós acima podem viver
em paz, enquanto os beneathers atuam como seus carcereiros.
Beneather carcereiro para valkerax, bruxa carcereira para Sem Coração. A
pena atinge os dedos corrosivos em meu coração, mas eu me lembro da
mandíbula enorme e presa que vi há alguns segundos atrás, e os dedos se
enrolam neles mesmos. Os livros que falavam de vilas queimadas e
montanhas de cadáveres só olhavam para o reino de destruição da valkerax.
Eles nem sempre foram hostis, mas um dia durante o tempo de Velho Vetris
eles se tornaram assim e têm sido desde então. Os beneathers são tudo que
estão entre eles e nós.
— Mesmo agora — continua Yorl, — a valkerax que você viu dentro da
arena está murchando. O velho comando vetrisiano de permanecer no Escuro
Abaixo está comendo por si mesmo, deixando-o louco de dor. Acabará por
morrer se não o devolvermos ao Escuro Abaixo em breve.
— Mas se eu posso ensiná-lo a chorar... — eu paro.
— Se você pode ensiná-lo chorar, ele pode, em teoria, resistir ao comando
que o consome. — Varia concorda.
Eu olho para ela. — E o que você ganha com a capacidade de resistir?
Varia pisca, surpresa, a luz do fogo chamando a atenção em seus olhos
pouco antes de ela rir. — Tão desconfiada. — Ela inspeciona suas unhas
impecáveis para se recuperar. — Lucien me contou que encontrou o
esqueleto de valkerax de Gavik nos túneis sob a Torre do Rio Leste.
Nós tínhamos. Fione precisava de informações para revelar os crimes de
Gavik – seu tio. Ela nos levou ao seu repositório secreto, onde Gavik havia
mantido uma valkerax nos túneis para protegê-lo.
Concordo com a cabeça, lembrando as runas de beneather que Malaquite
leu na parede onde estava seu esqueleto maciço. — As runas disseram que
foram mortas pela Filha Risonha. Por misericórdia.
Filha Risonha. Essa era a palavra de código para descer aqui. E é o nome
de bruxa de Varia.
— E a espada de Lucien se encaixava perfeitamente no ferimento na
cabeça que o crânio tinha. — ela concorda. — Sim, eu matei aquela valkerax.
Gavik estava guardando para estudar, e a dor de estar fora do Escuro Abaixo
estava doendo horrivelmente. Me implorou para matá-lo.
Eu paro. — Valkerax... pode falar? — Yorl e Varia compartilham um
olhar. Um olhar que eu não gosto. Cheira a segredos.
— De certa forma. — Yorl encolhe os ombros. — O que importa é que
suas mentes foram distorcidas pela magia do comando. Eles falam em
enigmas fragmentados. Ficar no escuro abaixo é tudo que eles apreciam. Se
alguém coloca uma valkerax acima da superfície, ela sofre tremendas
quantidades de dor. E os enigmas fragmentados se tornam apenas mais
difíceis de entender. Palavras não confiáveis, na melhor das hipóteses.
Minha mente desliza em torno de si mesma, como eu penso. A falta de
coração e o que a valkerax passou podem não ser a mesma coisa, mas são
semelhantes. Não ser capaz de falar, sentir dor – parece que quando tentei
fugir de Nightsinger no início da minha vida sem coração. Afastei-me mais
de um quilômetro e meio dela e minha mente ficou em branco com pura
agonia. Eu não conseguia pensar, me mover ou sentir qualquer coisa, exceto a
dor estrondosa pulsando pelo meu corpo. Parecia que passaram horas antes
de Nightsinger me encontrar e me trazer de volta ao seu raio.
Mas Nightsinger não é mais minha bruxa.
Varia varre os olhos negros para o portão, a luz do fogo no dedo beijando
o aço apenas o suficiente para ver o contorno maciço, e então ela se vira para
mim.
— Eu vi você chorar na clareira, Zera. Demorei muito tempo para
investigar e procurar, mas quando morava com as bruxas, consegui que um
dos mais velhos me explicasse – isso permite que a Sem Coração tenha
controle sobre si mesma novamente e traga clareza, mesmo quando estão em
suas formas monstruosas. Você ensinará a valkerax a chorar, e quando ela
puder se controlar e falar, ela me dirá onde estão os ossos deles.
Eu franzir a testa. — Os ossos deles? — — Os velhos vetrisianos
perceberam que controlar a valkerax, uma a uma, com milhares de bruxas,
não era econômico. — diz Yorl suavemente. — Ou estatisticamente possível,
para esse assunto. A valkerax superou em muito as bruxas. Então, eles
reuniram o máximo de peças de valkerax em um objeto intensamente mágico
que puderam, para tentar controlar a massa.
— Uma árvore — Varia esclarece. — É uma árvore, muito mágica, feita
inteiramente de ossos de valkerax. E totalmente perdido no tempo. Mas a
valkerax sabe onde está. Eles podem sentir sua presença sempre, ordenando
que permaneçam no Escuro Abaixo. É o que os mantém lá.
Uma árvore de ossos que pode ser usada para controlar todas as valkerax
do mundo. Varia, que insistiu na limpeza, ela tem que parar a guerra. De
repente, tudo se encaixa.
— Você... — Olho para Varia, meus olhos trabalhando em suas pernas,
seu torso coberto, finalmente em seu rosto iluminado pelo fogo. — Você quer
controlá-los.
O sorriso de Varia se amplia. — Mas o que eu faria com eles, minha Zera
mais inteligente?
O insulto mal atravessa minha descrença. — Você vai usá-los para forçar
uma parada. Um exército de valkerax, equilibrado entre humanos e bruxas.
Ninguém ousaria lutar.
— Ninguém se atreveria a lutar, — ela repete suavemente atrás de mim.
— De fato.
— Você é louca. — eu deixo escapar.
Os olhos da Princesa ficam frios, mas seu sorriso esquenta. — Não, Zera.
Eu sou simplesmente realista.
— A valkerax quase destruiu o mundo! — Jogo minhas mãos para fora.
— Eles poderiam se libertar um dia e arrasariam tudo de novo! Mesmo se
você pudesse manter o controle sobre esta árvore, por cima deles, você iria
ser temida e insultada ainda mais do que bruxas, mais do que ninguém...
— Yorl. — Varia de repente olha para ele, passando pelos meus pontos
como se eles não existissem. — Quanto tempo podemos mandá-la entrar?
— Quando a mistura terminar de fermentar. — Yorl aperta os olhos na
escuridão. — Que deve ser amanhã de manhã.
— Eu não estou fazendo isso — eu estalo. — Não estou ajudando você a
jogar com um poder como esse!
— Você vai. — diz ela. Essa confiança novamente. Eu poderia rasgá-lo
com a minha pura raiva, mas eu mordo o lábio e me seguro.
ela nos mantém reféns como a última bruxa, os sussurros da fome. Eu
levanto meu queixo.
— Em nenhum universo concebível vou ajudá-la, Princesa.
Espero que ela me ordene a ajudar. Mas nenhuma palavra sai da boca
dela, misturada com a fome ou não. Com a mão não iluminada por fogo, ela
enfia a mão na capa e tira algo macio e flexível. Ele afunda de um lado em
seus dedos de madeira. Uma bolsa – um pequeno saco de veludo, costurado
com letras pretas; traidora.
Traidora. Assim como Lucien me chamou.
É idêntico à bolsa em que vi Varia colocar o coração do arquiduque
Gavik, embora a dele se leia sanguessuga. Ela o joga diante de mim, seu
sorriso brilhando quente e de alguma forma feroz nas bordas.
— Você vai me ajudar, Zera, porque, em troca, vou devolver o coração
que você sempre quis. Aquele pelo qual você tentou matar e encantar meu
irmão.
Minha raiva se espalha tão rapidamente quanto a bolsa em sua mão se
move, batendo suavemente em sua palma em um ritmo constante. Um
batimento cardíaco.
Ela desliza a bolsa e ali, em seus dedos, repousa um órgão rosa do
tamanho de um punho. Isso é... Esse é o meu coração? Apenas ali, nas mãos
dela? A brecha no meu peito diminui com um desejo dolorido – o mesmo que
eu sentia cada vez que olhava meu coração sobre o fogo de Nightsinger.
Ela tem. Assim como Varia assumiu o controle de minhas rédeas, ela está
parada na minha frente com meu coração. Não há barras ao redor, nem vidro
entre ela e eu.
Eu posso ouvir ele batendo. Eu posso ver todas as veias azuis pulsando
com minhas memórias, minha vida humana. A coisa pela qual vim a Vetris.
A coisa pela qual sofri esses três anos e duas longas semanas.
nosso coração, a fome choraminga.
— Meu coração. — eu sussurro.
4

Um Coração
Como a
Fome

Antes que eu possa pensar, minha mão dispara, mas o comando de Varia é
instantâneo.
— Afaste-se.
Eu fico rígida, meu corpo automaticamente criando espaço entre nós. Yorl
nos observa com olhos esmeralda vorazmente curiosos.
Meu humor ainda funciona, pelo menos, mesmo quando meus dedos são
consumidos pela coceira enlouquecedora para arrebatar o coração da palma
da mão de Varia.
— Você está mentindo. — eu digo, duro. Eu quase matei o irmão dela.
Não tem como ela me oferecer meu coração.
— Faço muitas coisas, Zera. — Varia diz para mim, olhando fixamente
para a bolsa. — Eu omito. Eu planejo. Mas eu não minto.
Se você ensinar a valkerax além do portão a chorar, retornarei seu coração
e libertarei você do meu serviço.
— Você poderia apenas me mandar ensiná-lo a chorar. — Minhas
palavras são um raio atingindo a terra e fazendo fogo selvagem em seu rastro.
— Por que se incomodar em me subornar?
— Porque eu não posso ordenar que você ensine. — ela responde,
inclinando meu coração e aproximando seu dedo tocado pelo fogo, as artérias
brilhando mais e mais. Um calor horrível arde através do meu peito vazio –
como se o fogo estivesse dentro de mim – e eu me afasto, seu comando me
incentivando como a dor. Ela acena com a cabeça levemente para Yorl, um
comando em seus lábios. — Diga a ele como é a morte.
Minha boca de repente se move em movimento. — Como nada.
Como uma grande frieza vazia. Há um branco atrás dos seus olhos, e
então é como adormecer, mas de uma só vez.
O olhar de Yorl se estreita levemente para mim por trás dos óculos, o rabo
de prata prateado balançando, mas sua expressão nunca muda. Varia acaricia
meu coração na palma de sua mão como uma criatura amada, um animal de
estimação, seu toque leve que emana profundamente dentro do meu peito.
— Agora — ela comanda. — Diga a ele como é o choro.
A fome espelha sua voz, sombria e imperativa, e eu posso sentir a magia
se movendo através do meu coração como uma corrente do oceano –
correndo pela minha garganta. Mas, diferentemente do comando anterior,
onde tudo saiu instantaneamente, meu corpo não obedece. Espero que minha
língua entre em movimento, som e explicação, mas não há... nada. Movo
minha mandíbula experimentalmente, esperando que as palavras fluam.
Silêncio absoluto.
Eu poderia dizer a ele se eu quisesse. Eu poderia manter isso em segredo,
se eu quisesse.
— Viu? — Varia para de acariciar meu coração e olha para mim, o órgão
batendo intensamente na penumbra. — Qualquer coisa a respeito do choro é
impossível de comandar. Ou, acredite, eu teria feito exatamente isso no
momento em que te trouxe aqui. Eu não quero lhe dar o seu coração,– você
não merece isso depois do que você fez com o meu irmão. Eu quero te
ensinar exatamente as conseqüências de machucá-lo. Mas estou sendo
magnânima. Estou deixando de lado meus desejos para parar esta guerra. —
Ela suspira. — Mas você... você não precisa sacrificar nada pelo que deseja.
Eu vou te dar seu coração. Você terá sua liberdade. Tudo o que você precisa
fazer é ensinar a valkerax primeiro.
— Você ainda pode estar mentindo. — eu insisto, meus olhos passando
rapidamente para o meu coração novamente. — Digamos que eu ensine o
valkerax como chorar. O que está impedindo você de me manter como sua
Sem Coração?
— Minha honra como d'Malvane? — Ela oferece.
— Não é bom o suficiente. — Eu apaguei meu olhar.
E então, em um movimento rápido, ela está ao meu lado. Ela segura meu
ombro e enfia o punho inteiro no meu peito, sem cerimônia, sem aviso. Como
uma explosão de um epicentro, a dor irradia de seu punho e eu inclino minha
cabeça para baixo – sem sangue, sem carne, sem feridas, apenas todo o
punho, a pele ali tão negra quanto a meia-noite e embutida nas minhas
costelas. Seus olhos escuros ficaram mais escuros de canto a canto, seus
lábios recitando um canto sem palavras que nenhum de nós pode ouvir. Ela
está tão perto de mim que posso ver as gotas de suor escorrendo por sua
têmpora, sua boca se movendo mais rápido quando a dor dentro de mim
floresce.
A luz do fogo no dedo da outra mão tremula com um vento abrupto,
soprando e nos envolvendo na escuridão. Cada músculo do meu corpo fica
mole, mas o braço dela me mantém suspenso no ar, todo o meu corpo
pendurado em seu punho. Minhas pálpebras tremem rapidamente, e de
repente eu posso ver – minha vida.
O rosto suave e doce da mãe, suas sobrancelhas loiras se tricotando
enquanto ela trança meu cabelo e ri. O nariz grande do pai e o sorriso maior,
mostrando-me como amarrar um nó de caravana.
Viajamos para Helkyris e passamos um dia rolando bolas de neve por um
morro, os pequenos orbes ficando cada vez maiores e colidindo com as
árvores abaixo enquanto gritávamos de alegria.
Meu aniversário, os pardais do lado de fora da janela da caravana
enquanto mamãe trazia para a mesa um prato de doces cobertos de esmalte de
bordo, o sabor rico e açucarado na minha língua.
Pai e eu no banco do motorista, os cavalos se movendo em um ritmo
preguiçoso sob o sol da tarde, as moscas voando sobre o lago escuro
próximo, e ele colocou o chapéu de abas largas na minha cabeça e era tão
grande que caiu sobre meus olhos e tudo o que pude ver era escuridão...
A escuridão à medida que a dor diminui, enquanto Varia acende seu dedo
com fogo novamente, sua mão se afasta do meu peito e as lembranças
deslizam da minha mente como areia do deserto. Sem uso; não importa o
quanto eu tente segurar, eles ficam cada vez mais fracos. Mas naquele
momento – aquele momento glorioso – eles eram reais. Era como se eu
estivesse lá novamente, revivendo tudo de uma vez. E isso foi apenas um
segundo do meu coração estar dentro de mim novamente.
Se eu pudesse ter a coisa toda para sempre...
O desejo de recuperar meu coração me atormentava na floresta de
Nightsinger. Mas não era nada disso. Naquela época, não me lembrava de
nada do que meu coração continha. Com o passar dos anos, fiquei cada vez
mais insensível com a idéia – sim, eu queria meu coração, mas quase
inteiramente pelo prazer. Eu não conseguia lembrar que lembranças estavam
lá dentro ou quão queridas elas eram para mim.
Mas agora eles cantam.
— Não, não! — Eu agarro o pulso de Varia, gritando. — Ponha de volta!
Ponha de volta!
A princesa se solta das minhas garras com uma risada sem fôlego, suor
escorrendo pelas têmporas e um brilho frio nos olhos enquanto ela relança o
dedo, a luz da fogueira dançando. – Você está certa, Zera. Não há razão para
você confiar na minha palavra. Mas você fará isso por mim. Você ensinará a
Valkerax como chorar, ou nunca mais verá seu coração.
Eu ofego, loucamente procurando meu coração na palma da mão. Lá –
entre os dedos! Eu posso ver a rosada disso.
— Você veio a Vetris pelo seu coração. — Varia respira com dificuldade.
— Todos os Sem Coração querem seus corações. Mas você não é totalmente
sem coração, não é, Zera? Na clareira, vi o jeito que meu irmão olhou para
você. E vi como você olhava para ele também.
Ela gentilmente joga meu coração de uma mão para a outra, como uma
bola de malabarismo. Como se isso não significasse nada para ela. Eu gosto
disso, mas meu corpo me para antes que eu possa alcançá-la – o comando
para ficar longe absoluto.
— Ele irá à guerra para proteger seu povo. Ele será o alvo de todo bruxo
assassino do reino. — A preocupação, genuína e medrosa, surge nos olhos
dela. — Mas se eu parar a guerra, se eu encontrar a Árvore dos Ossos e
controlar toda a valkerax, eu poderia fazer a guerra em Cavanos parar para
sempre. Ele estará seguro.
Seguro. Lucien poderia estar seguro – Fione e Malachite também. Todos
em Cavanos estarão seguros; Crav, Peligli, Nightsinger e Y'shennria – todos
eles, a salvo de uma guerra devastadora entre bruxas-humanos como a Guerra
sem Sol. Um gemido escapa dos meus lábios, bestial e patético e não do meu
próprio controle. Eu não posso confiar nela. Mas que escolha eu tenho? Meu
coração está tão perto – está bem ali. A única coisa entre minha humanidade
e eu é a valkerax atrás daquele portão. Não é um príncipe solitário que deve
ser seduzido e enganado, mas um valkerax que deve ser ensinado.
Eu não tenho que machucar ninguém. Eu só tenho que ensinar.
É mais fácil do que qualquer coisa que Nightsinger já me pediu. Não
estou traindo ou mentindo. Eu estaria inteira novamente; Eu poderia parar a
guerra que prometi, sem interromper ninguém no processo.
A voz da mãe está desaparecendo tão rapidamente. O sorriso do pai —
Tudo bem — eu cuspi. — Eu vou fazer isso.
Todo o comportamento do Varia muda em um instante. Ela se endireita,
toda a sua ansiedade e frieza desaparecendo. Ela coloca meu coração de volta
em sua bolsa, e eu assisto com uma ardência ardente. Ela enxuga o suor em
suas mangas, alisa os cabelos, e se vira para Yorl.
— Vou trazê-la para você amanhã de manhã, então. Tudo o que você
precisar, eu vou lhe fornecer. Mas a partir de agora, temos um banquete para
nos preparar. — Ela passa por ele e me olha por cima do ombro. — Venha.
Sem esperar pela minha resposta, ela se afasta, a luz do fogo escurecendo
para cima enquanto suas botas sobem as escadas em espiral para a superfície.
O comando não me força a seguir, mas eu o faço de qualquer maneira,
arrastando os pés após a luz.
— Certifique-se de não ser comido antes disso. — eu chamo Yorl.
— Certifique-se de não comer ninguém antes disso, — ele diz de volta.
Eu zombo quando Yorl e o portão desaparecem na escuridão total, a
respiração da valkerax ainda ecoando em meus ouvidos.
A ironia não me escapa. Raramente acontece – persigo a ironia como um
gatinho zeloso demais que caça borboletas. Varia está na minha frente uma
maneira de recuperar meu coração, assim como Nightsinger fez. É da
natureza das bruxas exercer a liberdade como moeda de troca?
Nightsinger fechou o acordo comigo em primeiro lugar, porque eu estava
pedindo para ser libertada por tanto tempo. E porque ela queria que eu tivesse
algum incentivo ardente para tomar o coração de Lucien, sem dúvida. Ela
poderia facilmente ter me ordenado a obedecer a Y'shennria, ir com ela,
infiltrar-se na corte e aceitá-la. Mas ela não fez. Ela se importa – se preocupa
– com muito de mim para fazer isso.
Na carruagem de volta ao palácio, pergunto: — Por que me escolheu
especificamente para isso? Você está tão desesperada?
Varia move seus olhos aveludados e escuros da janela e para mim. — Eu
tentei encontrar outros Sem Coração. Helkyrisian Sem Coração. Avellish
Sem Coração. Cavanos é o único lugar que o Choro já se tornou conhecido –
as constantes guerras e os Sem Coração expostos à batalha o desenvolveram
naturalmente. Tanto quanto sei, você é a única ainda viva que sabe como
chorar. Os outros morreram com suas bruxas na Guerra Sem Sol ou foram
destruídos por seu conhecimento.
É por isso que ela me olhou com tanta fome na clareira. Suas palavras me
estripam como um peixe. Eu sou a única Sem Coração que resta? Reginall –
mordomo de Y'shennria – sabe um pouco sobre o choro, mas ele é um ser
humano agora. Mesmo que ele entendesse completamente, seria difícil
ensinar sem antes. Então eu sou... eu sou realmente a única.
sozinha. sempre sozinha.
— E então você me encontrou na clareira — murmuro. — Como você
localizaria a Árvore dos Ossos se não encontrou um Sem Coração que chora?
Varia muda, suas saias de seda sussurrando enquanto ela dobra uma perna
sobre a outra. — Procure alto e baixo para mim. O que você acha que eu
tenho feito todos esses anos escondida – tricotando roupas de bebê?
— Então por que você não encontrou ainda?
A princesa franze a testa, os lábios carnudos. Idêntico ao cenho franzido
de Lucien, atinge meu coração como um raio indesejável. — A Árvore dos
Ossos é... ilusória, — diz Varia. — Os Vetrisianos Antigos o bombeavam tão
cheios de magia que ela desenvolveu algumas peculiaridades. Nunca fica
muito tempo em um só lugar.
— Ela pode se mover? — Eu fico maravilhada.
Ela assente. — Pode parecer uma árvore, mas é mais uma relíquia mágica,
na verdade. É por isso que preciso de uma valkerax completamente sã no
controle de si mesma. Eles são os únicos que podem me dizer exatamente
onde é, quando é, com total precisão.
A carruagem ronca sobre os paralelepípedos da ponte familiar que se
estende do bairro comum ao bairro nobre. Observo o rio se mover como uma
cobra preguiçosa de vidro preto sob o arco de pedra.
— Não será apenas Cavanos que temerá você e seu exército de valkerax.
— eu começo. — Será o mundo inteiro. Lucien. Fione. Seu pai. Todo mundo.
Você poderia usá-lo para matar todo mundo.
Varia fala, olhando placidamente pela janela. — Você leu o Midnight
Gifter, certo?
Estou quieta. Claro que li. Uma série de livros imensamente popular,
sobre um nobre na época do Velho Vetris que rouba dos ricos e dá aos pobres
e se veste inteiramente de preto. Foi por essa razão que pensei que Lucien,
quando o conheci pela primeira vez como o ladrão de couro Whisper, era tão
divertido. A semelhança era clara.
— Livro três — diz Varia. — Página um e quarenta e cinco, linha dois. –
Que eu pudesse dar paz ao mundo inteiro de Arathess, eu daria. Que havia
alguma engenhoca de polímatas, alguma alavanca que eu pudesse apertar ou
pressionar para dar paz a todos, sei que morreria com a mão nela... '
— 'E ainda na morte meu esqueleto continuava, os ossos se moviam por
vontade própria e minha carne alimentava sua fornalha'.
— termino. Não é uma citação comum, mas lembro-me bem porque me
impressionou profundamente quando era mais jovem. Varia se vira para mim
e sorri levemente. É um sorriso diferente dos que eu vi até agora – algo muito
mais gentil. Algo que parece mais humano e menos princesa.
— Quero que meu povo viva em paz, Zera.
Pode ser verdade. Suas palavras, seu tom, parecem verdadeiras. Ainda
assim, eu não vou deixar passar.
— Os valkerax tiveram mil anos para se reproduzir no Escuro Abaixo —
eu digo. — Estamos falando de milhares de serpentes.
Talvez centenas de milhares. Uma bruxa pode realmente manter o
controle sobre toda a valkerax em Cavanos? Sozinha?
— Minha carne alimentará sua fornalha. — Varia murmura novamente,
um fragmento da citação reorganizada. A carruagem nos empurra no silêncio
inquieto.
— O banquete hoje à noite é para comemorar meu retorno. — A voz de
Varia volta alta novamente. — Fione estará lá. E Lucien. O guarda-costas
dele também, eu presumo.
Meu medo da valkerax é enterrado por uma onda de ansiedade.
Todos eles sabem agora o quão terrível eu sou. Eu não posso enfrentá-los.
Eu disse que eles se voltariam contra nós as provocações da fome.
— Fiz suas medições enquanto você estava inconsciente no sofá. — Varia
diz levemente. — E meu alfaiate pessoal recolocou várias das minhas roupas
antigas para você. Eu acho que você vai gostar delas.
Um vestido significa apenas uma coisa no Vetris.
— Por mais que eu goste de um vestido bonito, não vou...
— Você não precisa — ela me interrompe. — Eu não sou como as outras
bruxas, Zera. Eu não sou tirânica. Você concordou em me ajudar a encontrar
a Árvore dos Ossos, para que você possa fazer exatamente o que quiser. Os
guardas foram informados, a corte foi enganada – você é simplesmente uma
testemunha do terrível assassinato de Gavik e seus homens. Ninguém sabe
que você é insensível, exceto papai e eu, e Lucien e seu guarda-costas. Vou
contar a Fione hoje à noite, embora tenha certeza de que ela já adivinhou, se
Lucien não tiver contado a ela.
É um alívio pequeno e frio. Eu não me importaria se o nobre tribunal
soubesse o que eu sou. Eles poderiam ter pedras e lanças o quanto quisessem,
se eu pudesse trocar sua ignorância pelo conhecimento de meus amigos.
você já foi realmente amiga? A fome gargalha.
Meu não-coração se divide ao meio com dor. Fomos realmente amigos, se
eu mentisse para eles sobre quem eu era o tempo todo?
Como você pode ser amigo de alguém que não é quem eles dizem que
são?
Olho para os prédios da cidade, procurando freneticamente por algo para
me distrair. Gavik. Se Varia se certificou de que todo mundo acha que Gavik
foi assassinado, ele não pode estar no palácio. Mas ele também não pode
estar longe. Ele deve estar escondido na cidade em algum lugar, cumprindo
as ordens de Varia nas sombras.
A princesa inclina a cabeça, seu cabelo preto brilhando à luz de óleo dos
postes de luz que passam. — Tudo o que estou dizendo é que você pode
querer estar presente hoje à noite. Haverá um anúncio bastante especial no
banquete que acho que você vai querer ouvir.
Anúncios podem dar um pulo voador em uma fenda vulcânica para todos
os cuidados. Mas seria covarde, não seria – fugir das pessoas que machuquei?
Esconder-me nos apartamentos de Varia como uma espécie de verme patético
encolhido em sua toca? Eu os usei. Troquei a confiança deles por uma chance
em meu coração, e agora que minha aposta falhou, o mínimo que posso fazer
é enfrentá-los com a verdade desnuda entre nós. Eles merecem isso.
— Espero não ter que lembrá-la — diz Varia. — que falar com alguém do
que eu sou ou do que você está fazendo por mim é a maneira mais rápida de
perder sua única chance no coração.
Eu franzo a testa. — Mas você precisa de mim. Eu sou a única que pode
ensiná-lo a chorar.
Ela enrola uma mecha de cabelo escuro e brilhante ao redor do dedo
delicado. — Você é apenas um meio de acelerar um longo processo que
acontecerá, de uma maneira ou de outra. Não se engane – você é valiosa. Mas
você também é desnecessária. Você é um luxo que eu gostaria de manter,
mas não teria sacrifícios se você se mostrasse problemática.
Meu estômago agita-se inquieto. Eu deveria saber que não deveria ser
complacente com a princesa. Escondo meus nervos em uma zombaria. —
Suponho que ser chamada de 'luxo' seja um passo além de ser chamada de
monstro.
Ela fica quieta e depois: — Isso me lembra. Você não se
permitirá ser cortada com uma lâmina de mercúrio branco.
O comando restringe minha fome, faz com que ela fique escura e inchada
dentro de mim, mas não tem para onde ir. Simplesmente permanece sob a
minha pele, e eu odeio cada centímetro dela. Ela sabe que a única maneira de
eu chorar e me libertar de sua servidão é sua lâmina branca de mercúrio. E
agora, mesmo que eu me apague a isso, não poderei me cortar, enfraquecer
nosso vínculo mágico com ele e chorar o suficiente para escapar.
Varia sorri. — Você não pode fugir, agora podemos?


No momento em que a carruagem para, disparo da atmosfera desconfortável e
subo os degraus do palácio dois de cada vez.
Felizmente, existem muito poucos nobres nos corredores do palácio – a
pequena Y'shennria agora em residência permanente na minha cabeça me diz
que está com muito medo do seu próprio bem-estar após o boato do
assassinato de Gavik. Há um nobre, olhando para mim de um corrimão
quando entro no verdejante corredor de entrada cheio de flores do palácio.
Ele aparece tão acima de mim, apontou olhos escuros persistindo em lugares
que não deveriam. Em monstros que não deveriam.
Seu cabelo é curto, preto e bagunçado, sua postura imaculada, mesmo
quando a minha diminui. Há um momento que parece anos quando meus
olhos o bebem – impossível e fora de alcance, alto e escuro contra tanto
mármore branco. Ele não mostra quase nada na máscara de impassividade
gelada de seu nobre. Não há sentimentos por trás dos olhos de obsidiana. É
uma aparência familiar.
A primeira vez que ele me viu nas Boas-Vindas da Primavera, seus olhos
eram exatamente os mesmos. Frios. Impermeáveis.
Ele está olhando para mim como se olhasse para todos os outros nobres –
com desdém mal escondido. Nenhuma sugestão de calor. Toda emoção que
eu já tinha visto em seus olhos uma vez agora é esmagada pelo nada.
O príncipe está calado, a mão segurando a grade. Ele não podia falar
comigo, mesmo que ele ainda quisesse – eu não o ouviria tão longe. Isso
ecoaria demais. Seria perdido. Mil coisas inundam minha boca e brincam em
primeiro lugar: me desculpe. Queria dizer-te. Eu não quis te machucar.
mas nós fizemos. e se isso significasse o nosso coração, nós te
machucaríamos novamente. isso por si só nos torna um monstro?
A gola alta de seu casaco esconde sua boca quando ele se afasta, e eu fico
sem nada. Nada além do gosto de cinzas na minha boca.

Aqui está como minha não-vida se desfaz – um passo de salto alto de cada
vez.
Vestida com um vestido azul estranhamente simples, por mais modesto
que possa ser, nunca me senti mais nua. Minha tonalidade labial faz meus
lábios sentirem-se gomosos, inúteis, e eu meio que gostaria que selassem
minha boca, para que eu não pudesse me fazer mal esta noite. Enquanto ando
em direção ao salão de banquetes e os sons de nobres socializadores e
instrumentos levemente alegres se tornam mais altos, minha respiração
começa a se fragmentar. Eu zombei de mim mesma – mesmo após o
treinamento, mesmo depois de assistir a essas coisas mais de uma vez, ainda
fico nervosa.
Ninguém está realmente pronto.
Com o fantasma de Y'shennria ao meu lado, levanto minha cabeça e
entro.
O calor sempre atinge você primeiro – o calor de cem corpos embalados
por perto. O cheiro atinge você em segundo lugar – todo perfume floral
possível que flutua no ar e se mistura com o cheiro de suor e álcool. Isso não
mudou. E o barulho – o barulho é um mar de vozes suaves e altas, de ondas e
quedas, murmúrios e agitações. O tilintar dos copos de vinho nas bandejas, o
clarão das velas das grandes jóias. Todo nobre está envolto nas sedas e pedras
preciosas mais decadentes, e estou usando nada além de um vestido
emprestado e minha própria bravata.
Mesmo com um arquiduque assassinado, mesmo com o país à beira da
guerra, há uma ordem para o banquete. A tradição mantém Vetris unida
quando nenhuma outra cola o faria. Os nobres mais velhos observam os mais
jovens entrarem, exaltando qual deles é mais adequado para o casamento. Os
nobres mais jovens fazem o possível para parecer menos nervosos do que os
que sentem. As garotas Steelrun e d'Goliev – Charm e Grace – que estrearam
comigo nas Boas-Vindas da Primavera, agora parecem mais velhas quando as
vejo entrar. Vejo os gêmeos Priseless, sempre loiros e cheios de desprezo.
Fechamos os olhos e, como se eles compartilhassem uma pele, os dois rostos
ficam com um tom de verde surpreendente ao mesmo tempo. A derrota deles
nas minhas mãos no duelo ainda os atormenta, tenho certeza. Concordo com
eles com um sorriso, e eles se afastam sem sequer um outro olhar.
— E não volte. — Eu ri, pegando um pouco de vinho de uma bandeja que
passava, mas o momento de alegria é curto. Bebo o vinho e isso me dá
coragem suficiente para analisar meus olhos sobre a multidão, procurando um
choque de cabelos brancos familiares, cabelos de rato e cabelos da meia-
noite. Nada. Fione ainda não está aqui, e eu saberia se o príncipe e Malachite
estavam aqui.
O vinho, por sua vez, dá à multidão a coragem de sussurrar.
— Sobrinha de Y'shennria, não é? E Sua Alteza é favorecida.
— ...circunstâncias misteriosas. Ela viu o assassinato de Gavik em
primeira mão. Pobre coisa...
Lady Y'shennria não está aqui com ela? Que curioso.
— Ouvi dizer que a mansão Y'shennria não se mexe ultimamente...
Eu mantenho minha cabeça erguida. Y'shennria se foi – ela me disse que
estaria indo para um santuário fora de Vetris com as bruxas no momento em
que parti para a Caçada. Voltar seria inútil; pelo que ela sabe, ou estou
despedaçada e morta ou me reencontro com Nightsinger. Mas se Y'shennria
não aparecer em breve para uma função nobre – e ela não o fará, porque seria
perigoso e ilógico – ela acumulará mais e mais suspeitas. Especialmente com
a novidade do assassinato de Gavik acontecendo ao redor. E essa suspeita me
desviará, se já não tiver.
Estou com tempo emprestado. Mas eu sempre estive nesta cidade, não é?
— Lady Fione Himintell. — canta o locutor de pé ao lado da porta. Meu
corpo inteiro congela, e todo nobre observa as escadas para vê-la descer. A
forte magia de Varia, sem dúvida, me trouxe de volta à consciência
rapidamente, então faz apenas um dia, dois, no máximo, mas parece que eu
não a vejo há anos, enquanto ela desce a escada em um vestido de prata
perolado, os cachos de camundongo em cascata. Ela parece incrível, e ainda
assim seu rosto está tenso. Ela agarra sua bengala branca de cabeça de
valkerax com juntas igualmente brancas enquanto se move pela multidão, os
sussurros enrolando em torno dela como cobras.
— Arquiduque Gavik morto por bruxas...
— ...agora ela é a mais jovem e mais rica de longe, e em breve será
nomeada arquiduquesa pelo Ministro do Sangue...
— Nem casada...
— Somente o homem mais adequado para Sua Graça é necessário,
então...
Homem? Eu tinha esquecido o quão obcecado esse tribunal estava em
combinar filhos para gerar mais. Eu mordo meu lábio. Eu nem tinha pensado
em um casamento para Fione, mas tenho certeza que isso é tudo o que deve
estar em sua mente agora. Isso e o fato de eu ser uma Sem Coração que
mentiu para ela.
A sociedade vetrisiana não condena as relações homossexuais, mas o
tribunal é outra questão. Tudo o que eles se importam é continuar com suas
linhagens. Às vezes, duas mulheres são mais do que capazes de criar filhos –
mas espera-se que Fione se case com alguém que possa lhe fornecer
herdeiros, não importa o quê. Não por amor, mas por procriação fria e
insensível.
Meu não-coração dói por ela, mas ela se vira, e por um momento nossos
olhos se encontram através da multidão. Estamos perto o suficiente para que
ela possa conversar comigo, se assim o desejar. E ela tem que escolher,
porque eu sou uma classificação muito mais baixa que ela. Eu sempre estive,
mas agora com o manto de arquiduquesa pairando sobre ela, é mais óbvio.
Seus olhos são tão azuis – flores ao meio-dia, impassíveis, e os meus, tenho
certeza, são discos cansados de cinza. Eu forço um sorriso.
Se ela me odeia pelo que fiz, pelo que sou, eu entenderia. Mas eu não
quero que ela faça. Deuses, eu não quero que ela faça.
Deuses, eu quero falar com ela. Conversar com ela sobre a quadra
sufocante, sobre suas expectativas e preconceitos dignos de rolar os olhos
diminuiria a pressão sobre meus próprios ombros.
Quero andar pela sala com ela, de braços dados, como verdadeiras
amigas, como fizemos nos jardins dias atrás.
Eu poderia. Eu poderia ignorar o decoro e falar com ela primeiro, mas
isso só é aceitável se ela aceitar, se ela ainda me vir como amiga. Ela se vira
na multidão, tão perto de mim, e eu aproveito o momento.
— Vem sempre aqui? — Eu tento, abordando-a primeiro como uma
amiga. As pessoas pontilhadas entre nós caem concisas e silenciosas, olhando
para Fione com expectativa. Eu odeio colocá-la no local. Eu odeio essa corda
tensa entre nós, mas está aqui, e estou puxando-a como uma costureira
curiosa tentando encontrar um erro.
Como uma amiga, que está tentando dizer se ela ainda tem a chance de ser
amiga.
O rosto de Fione não muda, as linhas desenhadas com cera em suas
bochechas se curvando em luas crescentes em torno de sua boca de botão de
rosa. Ela está furiosa? Não sei dizer. Ela sempre foi tão imaculada com a
máscara nobre que esconde os verdadeiros sentimentos. Ela foi a primeira
amiga que eu já tive. Não apenas em Vetris, mas acho que também na vida.
Dou um passo à frente e o efeito é instantâneo – ela prontamente dá um
passo para trás, com a máscara quebrando e o rubor empalidecendo.
— Eu… me desculpe. — Seus olhos disparam, em qualquer lugar, menos
na minha direção. — Eu tenho que ir.
Com o estômago afundando, eu a vejo atravessar a multidão, seu corpo
curto engolido por eles em um piscar de olhos. Ódio ou medo? Qual é?
Ambos? Minha presença não a fez se sentir confortável, isso é certo. Depois
do que eu fiz na clareira, quando desmaiei, ela deve ter visto todo o sangue e
os corpos.
quão corajoso pode um rato ser quando enfrenta um lobo despedaçando
ratos? A fome zomba. e, no entanto, lá está você,
tolamente, ainda pensando que um rato e um lobo poderiam ser
amigos...
Pego outra taça de vinho de uma bandeja e a desço, esperando que o
líquido amargo ofusque a voz da fome. Ou afogue o, com alguma sorte.
Observando Fione ir, martela a primeira e mais forte unha no meu peito;
Não posso mudar o que fiz. É assim que a vida é?
Passando os dias machucando os outros, cometendo erros, e ainda assim
não tendo escolha a não ser fazê-lo novamente e novamente?
Agora, mais do que nunca, quero Y'shennria aqui comigo – meus olhos
procuram o rosto dela na multidão, seu cabelo escuro e encaracolado, cheio
de pedras preciosas e seu equilíbrio fácil e gracioso. Ela saberia exatamente
como lidar com essas coisas: que expressão usar e, quando estávamos
sozinhas na carruagem, conselhos. Ela também me repreendia, por acreditar
que eu tinha amigos de verdade aqui em Vetris, mas eu sei que entre as
repreensões haveria núcleos de bondade.
sozinha, sempre.
Eu endireito meus ombros. Eu não posso confiar nela. Conforto é um luxo
que não mereço. Essa dor esmagadora é só minha para lidar.
Há um silêncio que atravessa a sala quando a família real entra.
Os nobres esperam com a respiração suspensa para ver exatamente como
a roupa é esplêndida e, mais importante, como imitá-la. A excitação percorre
a sala como o medo percorre a minha mente. Meu corpo está no ponto como
um cão de caça nos juncos, esperando o menor movimento para me deixar
em um frenesi.
Lá – o rei Sref e a rainha Kolissa saem primeiro, vestidos com veludo
marrom combinando com roscas douradas profundas. A rainha Kolissa
parece tão bonita quanto todos os outros, olhos escuros tão afiados quanto os
filhos e, no entanto, suaves com uma felicidade óbvia. A longa crina de sal e
pimenta do rei Sref é trançada com fita de veludo vermelha, mas é a única
coisa que me diz que ele é o mesmo homem que eu tinha visto antes da
Caçada. Tudo no seu escritório se transformou com o retorno de Varia; suas
rugas são aliviadas, sua pele âmbar brilhando por dentro. Seus olhos
cinzentos, antes tão exaustos e apáticos, agora estão cheios de vida. Ele
assente e sorri para quase todos os nobres que passa, varrendo seu sorriso por
todos eles. Ele parece um homem muito, muito mais jovem.
E então, o inevitável.
Eu posso sentir a presença de Lucien cortando o ar como uma faca
aquecida enquanto ele entra. Vestido inteiramente em seda índigo profunda,
atada a contas de platina, ele se parece com o próprio céu noturno. Mas há
uma estranheza no esboço dele – algo em que estou acostumado. Seu quadril
está ausente da sua usual espada de mercúrio branco. Ele foi originalmente de
Varia. Eu me pergunto – ele devolveu a ela? Nós falamos sobre isso, não é?
Mantendo as espadas de nossa família para que, quando voltarem,
possamos devolvê-las.
Mas essa é uma memória distante.
Seu cabelo da meia-noite é penteado para trás, curto e liso, e uma onda de
horror se move pela multidão quando o vêem.
— Quem ousaria cortar o cabelo do príncipe?
— Ouvi dizer que ele fez isso sozinho, em sua caça — Ele quer ser um
plebeu?
— É repulsivo e vergonhoso – o príncipe de Cavanos, com o cabelo de
um criado!
Observo os olhos de obsidiana de Lucien, mas eles estão olhando para a
frente sem sequer piscar. Ele não vai dar a eles a satisfação, e parte de mim
incha com orgulho torcido. Ele cortou o cabelo naquela noite na Caça na
frente de todos os seus nobres colegas como uma mensagem – fragmentos de
seu discurso ainda ecoam em minha mente. Ele queria evitar a confiança de
Vetris na tradição e na tradição do ódio. Cortar o cabelo comprido que o
marcou como real tinha sido um gesto. Mas os nobres não vêem nada disso.
Eles simplesmente desprezam alguém que se atreve a fazer algo diferente.
— Devo pedir a ele para pegar meu chá? — Um nobre sussurra para outro
homem ao meu lado, e eles compartilham uma risadinha.
Eu giro sobre eles. — Você realmente não deveria, considerando que ele
ainda é – por sangue e nascimento – seu príncipe. E não tenho certeza de
você, mas gosto de manter minha cabeça presa aos meus ombros.
Os nobres tossem, seus olhos deslizando para longe de mim rapidamente.
A rainha Kolissa se vira de repente para Lucien, seu pai, o rei, segue o
exemplo e, por um momento, os três sorriem um para o outro. O sorriso de
Lucien para o pai é amplo, caloroso, genuíno. É
um sorriso diferente do que eu estou acostumada -mais saudável, mais
livre. Do mesmo modo, o retorno de Varia iluminou o rei por dentro, e
também o retorno de Varia aliviou a solidão no sorriso de Lucien.
Ele parece tão feliz, e meu não-coração se aquece com isso.
Lucien vira o olhar de um lado para o outro, procurando a multidão. Meu
estômago pula e se contrai ao mesmo tempo em que ele pousa em mim.
Seu sorriso desaparece instantaneamente.
Mas é claro que sim. É imaginário e impossível, mas algo circula entre
nós – como uma corda de chamas queimando de um lado para o outro. Por
um momento, quando seus olhos encontram os meus, há algo como alívio em
suas profundezas escuras, mas quase instantaneamente eles se transformam
em discos ilegíveis de ferro preto. Sua palavra das clareiras soa no meu
coração.
Traidora.
Eu posso ver o intervalo entre nós, o abismo nos olhos dele, nós dois de
pé em lados opostos. Não há nada que eu possa fazer para fechar a lacuna.
Ele não deixa que eu, ou qualquer outra pessoa, veja a dor, mas eu sei que
está lá, da mesma forma que se sabe sob a tampa de um caldeirão fervendo
um líquido em brasa. Ele mantém sua nobre máscara esticada e envernizada
com puro orgulho. Para os nobres, ainda estamos perto. A última vez que
estivemos na corte, os rumores giraram em torno de que o príncipe herdeiro
me escolheria como sua noiva da primavera na caça. Aos olhos deles, agora
ele deveria me oferecer sua mão.
E, no entanto, tudo o que ele faz é me observar por um momento antes de
se virar.
É um pequeno movimento. Não deve doer tanto quanto dói, como uma
lança enferrujada no peito. Os nobres ao nosso redor se dissolvem em
sussurros frenéticos.
— Um desacordo?
— ...Certamente Sua Alteza escolheu Lady Zera na Caçada?
— O assassinato pode ter o abalado Um assassinato o abalou eu quero
dizer. O assassinato de nove homens que eu matei na frente dele.
os separou facilmente, como bonecos velhos e enferrujados
Lucien se afasta, seu sorriso se mantém enquanto ele e seus pais
conversam com facilidade. À sua sombra, caminha o salgado Malachite em
sua armadura – preta e incrustada de granadas. Seus cabelos e pele brancos
como a neve se destacam ainda mais na armadura escura, o vermelho das
granadas combinando com seus olhos vermelhos. Seus ouvidos compridos e
felpudos podem ouvir todos os boatos nesta sala, tenho certeza.
A espada nas costas dele brilha ameaçadoramente quando ele olha na
minha direção. Ele não é Lucien – não é um nobre treinado desde o
nascimento para esconder seus verdadeiros sentimentos.
Sua fúria é óbvia – não, nojo? Algo entre os dois, gravado em suas longas
sobrancelhas brancas e queixo fino. Estou acostumada com o seu sorriso
fácil, preguiçoso e brincalhão – sempre, não importa a gravidade da situação.
Mas agora esses lábios estão firmes, sérios.
Eu também o perdi.
De repente, os chifres de fogo emitem um novo melodia – não o habitual
de introdução, mas algo maior. Mais importante.
O locutor grita com uma voz trovejante, auxiliada pela pequena
ferramenta de polímato de bronze colocada em seus lábios: — Senhoras
nobres e nobres senhores da alta corte vetrisiana, apresento a Sua Alteza a
princesa, Varia Helsereth d'Malvane, arquiduquesa de Tollmount-Kilstead,
senhora do grande povo e nascida na floresta.
Eu assisto enquanto Varia entra, seu cabelo preto e elegante é oleado com
perfeição e sai por muito tempo, várias pequenas tranças com pontas
espalhadas pelo rosto. Seu vestido verde brilhante praticamente brilha sob a
luz das esferas iluminadas por óleo penduradas nas vigas, cortadas baixo para
mostrar seus ombros lisos e postura precisa. Sua maquiagem é aplicada com
perícia, um blush, um tom labial com notas de morango e a cera de carvão
nas maçãs do rosto, desenhada em duas linhas de estrelas perfeitas
entrelaçadas. Ela mantém seus longos cílios baixos, olhando para ninguém
enquanto ela varre o chão do salão de banquetes para os pais esperando do
outro lado. A espada branca de mercúrio está no quadril dela – sua espada – e
meu peito incha por um breve momento.
Ele conseguiu devolver a dele.
O ciúme luta com a felicidade; Jamais poderei devolver a espada do pai.
Mas Lucien... estou feliz por ele.
Estou tão feliz que ele esteja feliz agora.
Varia não é vista viva há cinco anos. Há um momento de silêncio, e então
os nobres reunidos no salão de banquetes implodem. Os sussurros pegam
fogo e explodem em gritos, suspiros chocados, murmúrios frenéticos, a
conversa retumbante no teto alto.
— Viva?
— Agora Deus Todo-Poderoso – isso não pode ser ela!
— O retrato dela... parece com ela...
— Magia? Certamente ela morreu, e isso é um truque...
— Um impostor? Ela tem a idade certa...
— Você não pode ensinar um impostor a se comportar como um
d'Malvane Alguém na multidão desmaia e as pessoas se aglomeram para
ajudá-las. Até os guardas e criados do banquete parecem chocados, com os
olhos fixos em cada passo dos pés de veludo de Varia. Varia deveria estar
morta – morta por bruxas e Sem Coração enquanto ela estava em turnê pelo
campo quando tinha dezesseis anos. Tudo o que encontraram foram pedaços
dela. Cinco anos se passaram.
E agora ela está diante deles como sua nova princesa.
Quando ela desenha mesmo com sua família, Varia abraça Lucien
primeiro. Seu olhar cresce suave, seus braços ao redor dela tomam cuidado e
seu sorriso em seu cabelo é macio. A rainha Kolissa abraça os dois,
colocando os braços leitosos sobre eles, o brilho revelador de lágrimas nos
olhos enquanto ela aproxima seus filhos.
Mesmo para a realeza, treinados para nunca mostrar seus verdadeiros
sentimentos e, em vez disso, mantê-los atrás de máscaras, restringindo as
emoções de uma reunião tão longa estende os limites da possibilidade.
— Eles são d'Malvanes — ouço alguém sussurrar. — Mas eles são
humanos também.
Eu não deveria, mas assisto o sorriso de Lucien pelo tempo que quiser,
deixando-me perder na fantasia uma última vez que esse sorriso poderia ser
direcionado para mim.
A família real se separa rapidamente, como se sentisse os olhos da corte
neles. Se Varia é a Princesa Herdeira agora, isso significa que Lucien não é.
O que significa que ele não está na linha do trono.
O que significa se casar, toda a pressão de liderar um país – foi tirada
dele. Então, por que ele não parece menos sobrecarregado?
Nossos olhos se encontram novamente, uma última vez antes de ele entrar
no salão de banquetes com sua família. Seus lábios são uma linha concisa,
seus olhos embaçam espelhos.
Sou eu. Sou eu, não é? Eu sou a fonte de sua tristeza.
Isso não está certo. Estou vivendo em uma linha do tempo diferente, a
errada, onde falhei. Eu deveria ter ido embora. Eu não deveria estar de pé
aqui, de vestido, esperando por ele. Eu deveria ter ido embora e ele deveria
estar sorrindo. Ele pode reconstruir agora, sua família reunida ao seu lado.
Ele pode começar a se curar.
Ele está tentando se curar.
Mas eu sou a agulha, rasgando a costura em suas feridas.
5

A Máscara
Fez Duas Vezes

O resto dos nobres e eu chegamos mais perto do salão de banquetes,


sentando-nos da mesma maneira que Y'shennria me ensinou – do mais velho
ao mais novo, do mais alto ao mais baixo.
Fione está diante de mim, é claro, e a família real está diante de qualquer
outra pessoa.
É estranho considerar isso normal, assistir o banquete acontecer sem se
preocupar com o que colheres usar. Eu sei agora, minhas mãos se movendo
automaticamente para cada limpeza delicada do meu rosto e inclinação da
minha tigela. Eu como apenas um pouco, desconfiada das lágrimas de sangue
que acompanham um Sem Coração tentando comer comida humana. Eu
costumava estar tão preocupado com as maneiras à mesa, mas agora minha
mente está em outro lugar, correndo de um lado para o outro numa pista
sozinha enquanto meu corpo se move na pista que Y'shennria construiu para
mim.
A conversa sobre as mesas ecoa no teto alto e dourado; na vanguarda de
toda conversa está Varia. Em voz baixa em torno de bolinhos de abóbora e
sopa de galinha de caça, eles discutem bruxas, a guerra e depois olham para
ela, posicionando entre si onde ela esteve nesses últimos cinco anos e por
quê.
Varia, por outro lado, coloca-se acima da conversa – manobrando sem
esforço a rigidez social com humor e graça assertivos, conversando com
facilidade com os ministros e os servidores. Ela gosta de Fione, que está
sentada bem ao lado dela, oferecendo-lhe pequenos petiscos de comida e
tocando seu ombro em todas as oportunidades. Seus olhares uma para a outra
são quentes, o sorriso de Fione corado e rosado, e me lembro mais uma vez
do quanto Fione amava – ama – Varia. E Varia, em troca, parece interessada
em devolver os afetos. Talvez agora Fione tenha a chance de contar a Varia
como ela realmente se sente, e esse pensamento é um ponto de brilho no meio
de toda a minha dor de cabeça.
Varia uma vez não me ordena a procurá-la ou fazer qualquer coisa. Ela
nem olha para mim. Fione também não – nas poucas vezes em que encontro
seus olhos em mim, ela os afasta instantaneamente e se concentra no rosto
sorridente de Varia. Elas estão completamente absorvidas uma pela outra.
Malachite, aparecendo na parede atrás de Lucien, pega seus olhos de rubi nos
meus e os afasta rapidamente. Nem ele nem Fione podem suportar olhar para
mim por muito tempo.
Mas na cabeceira da mesa, Lucien...
Meu peito se comprime com força, não quando encontro seus olhos da
meia-noite focados diretamente em mim. Ele está me olhando esse tempo
todo? Não consigo me obrigar a retribuir seu olhar. Minha mentira arruinou
tudo. Meus próprios desejos egoístas reduzem nossas chances antes que elas
possam crescer. Há um eu em algum lugar que não é insensível, que não
mentiu para ele, que senta ao seu lado neste banquete e sorri para ele, e ele
sorri de volta, e eles estão apaixonados.
Mas eu não sou ela.
Talvez eu nunca tenha sido ela. E agora eu nunca serei.
Meus olhos deslizam para os de seus pais – o rei e a rainha.
Eles prestam atenção em Varia, rindo com gargalhadas com as piadas dela
e confiando nela todas as palavras. Todo o banquete é atraído por ela, então,
quando Lucien se levanta e pede licença, seus pais deixam isso acontecer.
Malachite o segue. A mesa sussurra sobre isso por um momento, mas então
alguém menciona a aparência bonita de Varia, e esse é o fim de sua
preocupação.
Varia é provavelmente a razão pela qual, quando eu me levanto e me
desculpo, também, ninguém presta muita atenção, nem mesmo ela própria.
Ela pode ser minha bruxa, e ela pode ter meu corpo sob seu controle, mas eu
serei amaldiçoada se eu ficar ao lado dela a cada minuto de cada dia ansiando
por meu coração.
Jogo a capa que acompanha o vestido – uma coisa azul simples – e sigo
Lucien a uma distância de quarenta passos. Em algum lugar entre o ensopado
de peixe profundo e o porco assado, decidi dizer algo ao príncipe hoje à
noite. Uma desculpa? Isso seria muito vazio?
Não sei, mas tenho que tentar. Eu ignoro o aperto no meu estômago
quando a comida tenta sair como lágrimas de sangue – neste palácio não há
menos de cem lugares sombrios para entrar e se reorganizar, se for
necessário.
Malachite fica ao seu lado, e eu os sigo o mais longe que posso, até a
fronteira da Asa da Serpente, onde apenas a família nobre é permitida. Os
dois garotos desaparecem ao virar da esquina, deixando-me pairar na janela,
andando de um lado para o outro. Se ele estiver se aposentando para a noite,
se ele não sair novamente..
— Se você fosse mais óbvia, usaria uma placa com o nome dele.
Minha cabeça bate com a voz – Malachite caminha pelo corredor em
minha direção. O luar do Gigante Azul do lado de fora pega os rubis em sua
armadura, a luz combinada piscando violeta.
Seus olhos estão encapuzados e sua boca está fixa em uma linha plana.
Quando ele me alcança, não sei o que dizer. Ou como dizê-lo.
— Sinto muito. — finalmente consigo. Malachite zomba, seus olhos rubis
rolando.
— Não sou eu quem você precisa se desculpar.
Eu engulo. — Você... não está bravo?
Seus lábios se estreitam em uma zombaria de um sorriso. — Oh, eu sou
mais louco que uma valkerax de uma perna. Só não gosto de sair por aí
mostrando isso.
Meu não-coração dói. — Eu deveria ter te dito que eu sou...
— Eu poderia dar uma merda se você é um Sem Coração, ou uma bruxa,
ou o próprio Deus Antigo — ele me interrompe. — Eu sou um beneather que
vive no mundo superior – eu sei como é ser diferente. Não é o fato de que
você é um Sem Coração pelo qual estou louco. É o fato de você mexer com a
cabeça de Lucien. Você lhe deu uma falsa esperança. E isso é algo que não
posso perdoar.
Mordo o lábio e aceno com a cabeça, todas as palavras que eu queria dizer
roubadas de mim. Ele tem razão. Eu dei a Lucien uma falsa esperança, não é?
Eu forcei o meu caminho em sua vida, prometi amor quando não podia dar. A
ira de Malachite é justa, merecida, e seria egoísta e patético tentar implorar
por sua confiança novamente. Palavras só podem falar muito mais alto que
ações. Meu estômago se contrai, mais forte desta vez, a dor não pode mais ser
ignorada. Giro os calcanhares e começo a me afastar quando sua voz
levemente elevada me para.
— Ele ficou de fora nos seus trajes de couro. Se você for rápido, pode
pegá-lo no bairro comum. Avenida Fleshhouse.
Eu giro no meu calcanhar, meu coração disparando loucamente.
— Obrigado!
Ele está fora do palácio. Eu posso me aproximar dele.
Corro pelo corredor e volto para a entrada do palácio. Meus olhos
procuram a carruagem negra de Y'shennria, Fisher, que deveria estar
dirigindo, esperando por mim com suas orelhas grandes e corpo de
espantalho. Mas ele se foi. Todas as carruagens estacionadas aqui estão
esperando seus respectivos nobres no banquete.
É estranho que coisas tão pequenas possam fazer com que se sinta tão
sozinho. Descendo os degraus do palácio sem uma carruagem esperando por
mim, sinto-me despreocupada. Fora de lugar. Não há mais ninguém para mim
em Vetris. Nenhuma casa segura para voltar. Sem aliados. Duas semanas
atrás, eu ainda tinha Y'shennria e sua casa. E agora eu não tenho ninguém.
abandonada a fome insiste. abandonada por todos.
Eu levanto minha cabeça, espero por uma abertura nas patrulhas de
guarda e corro para a noite quente. As cigarras são as únicas que choram
quando eu me for.

A Avenida Fleshhouse de Vetris está sempre viva, mesmo durante funerais,


dias sagrados e especialmente durante as guerras de fabricação de cerveja.
Ela nunca fecha, nunca observa o silêncio, porque, diferentemente de jóias,
sapatos ou espadas, o conforto humano é sempre necessário. Os açougues
desafiam toda a religião e decoro sufocantes de Vetris, e talvez seja por isso
que me sinto um pouco mais livre aqui, mesmo que os vendedores
ambulantes sentados do lado de fora me gritem enquanto passo ou os clientes
me olhem com desconfiança a cada poucos passos. A objetificação é uma
espada de gume afiado; desconfortável e reconfortante, no sentido de que sou
uma das massas aqui – não a exceção. Não é nobre ou sem coração, mas
apenas uma garota. Reduzida às minhas partes mais simples, reduzida ao que
eu sempre quis ser. Apenas uma garota humana.
Giro meu anúncio e procuro desesperadamente na fachada de cada casa
qualquer pedaço de couro escuro ou uma moldura alta e orgulhosa. O
príncipe Lucien deve estar aqui, vestido com sua roupa de couro, o que
significa que ele está perambulando pelas ruas como Whisper, o enigmático
ladrão que rouba dos ricos e dá aos pobres.
Eu zombo enquanto vasculho a multidão em busca dele, lembrando como
eu costumava pensar que ele era por isso. Quão privilegiado eu era naquela
época, que eu poderia considerar ajudar as pessoas banalizar.
Ali – na porta de uma casa de três andares. Um rapaz de armadura de
couro que se ajusta à pele, uma capa preta sobre ele, emerge da porta de
braços dados com uma garota bonita e sorridente em um vestido de renda.
Meu navio de coragem abre um buraco repentino, vazando por toda parte. O
que estou fazendo, perseguindo-o assim? Ele contratou um carpinteiro,
obviamente. Ele está seguindo em frente. Esse é o negócio dele. E não tenho
mais o direito de fazer parte disso.
Venha agora, Zera. Você é melhor que isso. Não muito melhor, mas ainda
assim. Pelo menos peça desculpas a ele esta noite. E então você pode cuidar
sozinha do seu ciúme bobo e imaturo.
Aperto meus punhos e caminho em direção a eles, meu coração na
garganta e minha boca seca. Eu empurro cada vez mais perto. A garota é tão
bonita que é quase difícil olhá-la – doce e despretensiosa, com cachos
vermelhos brilhantes e um rosto redondo. Ela é humana, toda humana. Eles
estão conversando tão abertamente, Lucien acenando de vez em quando, com
o cotovelo firmemente amarrado ao dela. Ele é livre para fazer qualquer coisa
com quem desejar. Eu sei disso.
separá-los a fome assobia. comê-los juntos.
De alguma forma, chego perto o suficiente para ouvir a garota bonita
falar.
— Não precisa tanto. Mas a matrona não pode pagar – não em cima das
contas dos polímatas também.
— Chillsbane, rascunhos para dormir e analgésicos — ouço a voz de
Lucien roncar atrás de seu capuz. — Tudo certo. Eu posso gerenciar isso.
Os olhos verdes da garota se iluminam. — Realmente?
Ele concorda. — Realmente.
Chillsbane é um medicamento. Eles estão falando sobre medicina? Há um
borrão de renda quando a garota o abraça com força. Ele diz algo para ela,
suave demais para eu ouvir, e então ele volta pela multidão e desaparece
dentro do açougue. Meu primeiro erro foi vê-la partir – quando volto para
Lucien, ele se foi, uma brecha na multidão onde a escuridão costumava estar.
Todo mundo está tão cheio nessa pequena avenida, e o calor do dia não foi a
lugar nenhum com o sol poente. Eu suo e giro minha cabeça loucamente.
— Chapim dos novos deuses. — eu limpo meus olhos e murmuro, a
multidão parecendo a mesma. — Não deve ser tão fácil perder alguém tão
alto.
— E ainda assim você continuamente surpreende a todos nós,
gerenciando-o de alguma forma.
Eu pulo, a voz profunda diretamente atrás de mim enquanto eu giro e fico
cara a cara com Lucien, seus olhos da meia-noite brilhando em seu capuz
com tanto enxofre, que quase recuo. Diga, Zera. Diga agora, antes que ele
possa andar por um caminho ou impedir que você Engulo o ar abafado do
verão. — Lucien, eu sin...
Seus olhos endurecem (ele aprendeu isso com Varia; agora posso ver as
semelhanças) enquanto sua mão se lança e captura meu pulso. — Você será
útil. Venha comigo.
Estou sonhando. Eu tenho que estar. Exceto que o calor em volta do meu
pulso não é de um homem fantasmagórico e sem rosto, é de Lucien – preso
ao braço, ao ombro largo e ao pescoço forte enquanto ele me conduz pela
multidão da Avenida Fleshhouse até o Beco do Carniceiro. Ele está me
tocando, de bom grado, quando eu nunca pensei que ele tocaria novamente. É
simples e pequeno e nada e, no entanto, meu corpo está cantando com ele.
Nossas capas rodopiam atrás de nós, serpentinas de azul e preto enquanto
machucamos a noite toda.
— Onde... — Eu evito um poço de água jorrando e o correio que corre até
ele. — Onde estamos indo?
O príncipe não diz nada, seus passos se alongam, e eu tenho que correr
para acompanhar. Eu deveria arrancar a mão dele do meu pulso, mas é tão
bom ser tocada. Por qualquer um.
Por ele especialmente.
idiota. não faz sentido. A fome zomba. ele nunca mais confiará em você.
nós somos o predador e ele é a presa
— Lucien — eu começo. — Eu quero, eu quero me desculpar.
A outra mão dele abruptamente cobre minha boca e ele me puxa para trás
de uma linha de caixas. A sensação da sua palma suave contra meus lábios –
engulo em seco. Um erro me consome, quente e desconfortável. Eu sou o
monstro, e ele é o príncipe, e ele sabe disso, viu isso, então por que...?
Eu me contorço, mas ele me abraça rápido, seus braços apertados ao redor
do meu corpo. Meu não-coração aperta, minha pele zumbe como um ninho
de vespa.
— Quieta — ele rosna no meu ouvido. — Eu não te trouxe aqui para
conversar. Trouxe você aqui para me ajudar a roubar. Ouça o que eu digo, e
talvez eu ache no meu coração que você queria tanto retribuir o favor.
É tudo o que tenho que fazer? Eu aceno freneticamente, e ele libera cada
parte de mim, decepção persistindo onde sua pele costumava estar. Eu o
deixei sair e recuperei o fôlego, observando-o espiar entre as rachaduras nos
caixotes do que deveria ser seu alvo.
Quando meus nervos se acalmam, olho entre uma fenda e vejo uma
carruagem carregada de barril sendo descarregada por dezenas de homens
musculosos. Eles içam os barris para uma casa próxima, alguns guardas da lei
observando seu progresso.
— Um estoque — Lucien responde à minha pergunta não dita.
— O estoque real, para ser mais preciso. Um polímata real vem aqui para
verificar o inventário, a qualidade e garantir que nada disso seja envenenado,
e então eles enviam tudo para o palácio.
— Tudo isso — fico maravilhada. — Só para vocês quatro?
— Manter um rei idoso no trono exige muitos suplementos – a maioria
deles completamente desnecessários e excessivamente caros. — zomba
Lucien. — Felizmente, há algum remédio real incluído também.
Eu tive um pressentimento mais cedo, mas agora faz todo o sentido. Ele
estava vendo os remédios que o carpinteiro precisava como Whisper, não a
solicitando como Lucien. Deuses, o ciúme é uma fera terrível que torna as
pessoas inteligentes tão monótonas. É por isso que os bardos o alertam com
tanta frequência? Faço um pacto solene entre mim e eu para derrubar um
penhasco, o fato de que fui sempre ingênua o suficiente para não ver a
verdade. De preferência, um penhasco com um pacote de gatos selvagens
com fome no fundo para se livrar das evidências.
Eu me sacudo e limpo a garganta. — A última vez que verifiquei, Alteza,
o Gifter da Meia-Noite não presenteou remédios em açougues.
— Nem ele usava roupa íntima. — diz Lucien. — Personagens de livros
não tendem a fazer muito sentido no contexto do mundo real. Agora, fale
menos e distraia mais.
Ele faz um gesto para a linha corpulenta de homens, e eu sufoco um
gemido.
— Por que não posso ser eu quem faz as coisas legais e furtivas?
— Porque você é a única atualmente usando um vestido. — diz o
príncipe.
— Eu aposto que você ficaria linda em um vestido. — Minha boca
dispara o golpe mais rápido do que eu posso pegá-lo de volta.
Algo como um sorriso torce em seus lábios, mas devo estar imaginando,
porque desapareceu no próximo piscar de olhos. Ele está me dando essa
chance e eu brinco com isso? O que há de errado comigo?
Ele quer uma grande distração? Bem. Vou lhe dar uma grande distração –
tão grande que ele terá que ouvir minhas desculpas de uma hora. Eu ignoro a
dor aguda no estômago pelas poucas mordidas de comida de banquete e
ajusto a bainha para rasgá-la – uma façanha fácil, considerando o quão bom e
velho o tecido é.
Lucien me observa com tédio inexpressivo enquanto manco a terra de
paralelepípedos no meu rosto, mas quando começo a beliscar e torcer minhas
bochechas, ele levanta uma sobrancelha.
— Não é o mendigo sujo, então? — Ele diz.
— Não. — Eu vasculhei em uma pilha de lixo próxima a garrafa vazia
brilhante que eu tinha visto lá. Eu balanço levemente para ele e sorrio. —
Algo muito melhor.
Antes que ele possa perguntar, eu me levanto do nosso esconderijo e
começo a cambalear loucamente em direção aos homens, uma música
horrível que eu ouvi um bêbado cantando ontem à noite da carruagem
fervendo na minha garganta.
— Sete homens chamaram a atenção do padeiro, e sete homens a fizeram
suspirar, depois sete homens que vieram brincar e sete homens comeram
torta naquele dia...
A linha do barril fica quieta, faz uma pausa e todos os homens me olham
de cima a baixo, desconfiados. Os guardas da lei descem, tricotando em volta
de mim em um círculo apertado.
— Uau, esta área está fora dos limites! — Insiste um deles.
Eu olho para ele. — O que você está dizendo? Isso... – Faço um gesto
selvagem para a casa em que eles estão entrando. — Esta é minha casa!
Você... vocês, homens de lata, estão me dizendo que eu não posso entrar em
minha própria casa?
Os guardas da lei olham um para o outro, o aspecto — Melhor lidar com
isso rapidamente antes que nossos superiores ouçam falar.
— Os homens que descarregam os barris ainda são cautelosos, como se
não tivessem certeza de que deveriam continuar trabalhando.
— Vire-se agora, senhorita, e vá embora, — insiste outro guarda policial,
seu bigode espesso se contorcendo enquanto eu me viro em sua direção.
— Senhorita? Senhorita? Eu pareço uma senhorita para você? — Eu
cambaleio no guarda real a minha esquerda. Ele reflexivamente me afasta, e
eu dou um soco desleixado sem poder, quase caindo com o impulso. Os
guardas da lei me empurram para longe da casa.
— Sou senhora! Sou casada... sou casada, seus bastardos brilhantes! Para
um porco de homem! E ele está naquela casa, esperando seu ensopado! Ele é
tão grande quanto um texugo e tão malvado quanto uma montanha, e se ele
não pegar o guisado, eu vou embora. Um doador. — Eu fungo
dramaticamente, manchando meus olhos. — Se ele me bater, a culpa é sua!
O contorno escuro de Lucien aparece entre os trilhos da carruagem, seus
olhos procurando nos rótulos do barril. Os trabalhadores estão começando a
ficar impacientes.
— Senhora. — O guarda da lei à minha direita parece completamente
castigado. — Você está bêbada e tem a casa errada.
— Do que você está falando? — Eu bato, dois dos guardas da lei tendo
que me segurar neste momento. — É ele! — Eu aponto para um homem
aleatório na fila, com um cano apertado no peito. — O que em nome de
Kavar você está fazendo aqui trabalhando? E as crianças? Você vai deixar
eles apodrecerem lá?
O rosto do homem fica frouxo e branco, a boca escancarada como um
peixe. — O que-o que você é?
Eu me agarro ao guarda da lei, a dor da comida torcendo meu interior.
Teta de Kavar. Eu não tenho muito tempo — Esta é sua esposa? — Pergunta
um dos advogados. O homem começa a sacudir a cabeça e eu procuro sua
camisa.
— Como você pôde, seu saco oleoso de esterco de cavalo! — Eu grito. —
Como você pode deixá-los sozinhos lá dentro?
— Eu não tenho ideia do que ela está falando! — O homem protesta. —
Eu nunca a vi na minha...
A dor é penetrante agora, perfurando meu crânio. Eu dou uma guinada e
um barulho borbulhante não inteiramente sob meu controle, e o homem
instantaneamente tenta se afastar. Eu mantenho meu aperto com força, e ele
tropeça, nós dois se esparramando para trás na fila de homens que trabalham.
Barris voam, palavrões e membros passando zunindo pela minha orelha. A
comoção barulhenta sangra o caos – caos suficiente que eu espero que Lucien
possa roubar o que ele precisa. Há um momento em que os guardas da lei
tentam me arrastar para a parte de trás da carruagem, mas é nesse mesmo
momento que meus olhos se arregalam, quentes de sangue. Não posso deixá-
los ver isso, mas tenho que manter a distração.
Faço a única coisa em que me destaco: fazer de conta. Eu dou um gole
trêmulo e, em seguida, o barulho mais doloroso e mais convincente que
alguém já ouviu. Serei a primeira a admitir – não é o meu momento mais
elegante, mas talvez o mais bem-sucedido, porque os guardas da lei recuam
com nojo, mesmo que não haja nada lá, ricocheteando um no outro enquanto
tentam evitar o que acham que é um potencial vômito. A acusação de ser meu
marido – Kavar abençoa seu coração – é uma coisa sensível e começa a
vomitar de verdade, diretamente no guarda da lei mais próximo. Seus amigos
tentam consolá-lo, os guardas da lei tentam se levantar de novo sem tocá-lo
indevidamente, e eu aproveito o momento e saio do beco o mais rápido que
meus olhos sangrentos permitem.
Cinco ruas, quatro praças – corro até ficar sem fôlego, até que eles
precisem correr rápido para me encontrar, e me escondo atrás de um pesado
conjunto de cubas de tinta. O cheiro é horrível, como a idade da palha e da
podridão. Ninguém vai me procurar aqui.
— Eu pedi uma distração, não um erro.
Eu olho para a voz concisa, apenas para ver Lucien parado lá.
Ele me seguiu? Seu olhar analisa sobre o meu rosto, minhas lágrimas de
sangue. A boca aberta do velho Deus – agora não é hora de lembrá-lo de que
sou um Sem Coração. Nunca será a hora.
Eu limpo minhas bochechas freneticamente com as mangas. — Erro? —
Eu começo. — Você não recebeu o remédio, então?
— Você tem ideia de quantas pessoas poderiam ter visto aquelas lágrimas
de sangue? — De uma só vez, ele está ajoelhado ao meu lado, a voz
queimando. — Meu povo tem medo, mas não é denso. Todo mundo dentro
desse maldito muro sabe o que significa chorar sangue! O templo adverte, as
crianças cantam e você acabou de fazer! Na frente de quem sabe quantos!
a preocupação com uma relíquia do passado não é
apropriada para você, senhor príncipe as provocações da fome. A fome
está certa. Eu sou o passado dele. Não é o futuro dele.
Jogo meus cabelos por cima do ombro, dourados em azul. — Você
recebeu o remédio ou não?
Suas sobrancelhas esculpem profundamente o capuz. — Eles poderiam
saber o que você é! Eles podem estar marcando guarda da lei por toda a
cidade procurando por você agora!
Eu respiro fundo. Eu tenho que tirar o foco dele de mim. Ele está se
movendo para trás, quando precisa encarar a verdade e avançar.
Eu sou uma traidora. O fechamento o ajudará, e as desculpas são um bom
ponto de partida. Preciso me desculpar enquanto ainda tenho a chance. Em
um piscar de olhos, ele poderia ter ido embora, entrincheirado na corte
novamente. Além do meu alcance.
— Sinto muito, Lucien. — Encontro seu olhar quadrado. — Sinto muito
por não lhe dizer o que eu...
— Salve suas desculpas — ele rosna, sua mão disparando e envolvendo a
minha. Seus dedos são incrivelmente quentes. — Temos de ir. Se eles sabem
o que você é...
Ele se levanta, me puxando com ele, mas antes que ele possa começar, eu
me solto. Aquele movimento leva tudo em mim – afastar-se da preocupação
dele e não em direção a ela, como cada centímetro da minha pele deseja.
— Se... — eu firmo minha voz. — Se o povo de Vetris descobrir um Sem
Coração no meio deles, se eles a amarrarem, se a queimarem viva – não seria
necessário que o príncipe de Cavanos se importasse com isso.
Eu rezo para os dois deuses que ele entende. Há uma batida. E depois…
— Não seria. — ele concorda, sua fúria mudando para algo baixo e suave.
Minha respiração perfura fora de mim como uma bolha perfurada. Claro
que ele entende. É óbvio para quem tem dois conhecimentos da corte que o
príncipe não deve cuidar de um traidor.
— Mas eu não seria capaz de ajudar. — acrescenta.
Minha cabeça se levanta. — O que?
O som de guardas da lei se aproximando soa alto nos meus ouvidos,
tocando metal e gritando ordens, e em um piscar de olhos, Lucien me puxa
para ele, nas sombras atrás das cubas de tinta e longe da luz. O mundo
desaparece; Eu esqueço o cheiro das cubas, as trilhas de sangue que devem
estar nas minhas bochechas. Cada uma de suas cordas está pressionada contra
a minha – nossos quadris cavando um no outro, nossos peitos corados e
respirando com dificuldade. Eu olho para cima, nossos rostos tão perto que
eu pude contar os cílios escuros em torno de seu olhar estranhamente
divertido.
— Não posso deixar de sentir pena de você, Lady Zera.
Parece que as pedras caem dos meus pés. Um frio doentio surge em seu
lugar.
— Eu tive pena de você quando nos conhecemos nas Boas-Vindas, — diz
ele levemente, um suspiro no final. — Um Y'shennria, sem status ou pais,
sendo oferecido como um brinquedo. Alguém tão afiado quanto você não
merecia ser peão do jogo do casamento.
Se ele tem pena de mim, por que ele está me segurando tão perto? Por que
ele estava tão preocupado com as pessoas vendo minhas lágrimas de sangue
momentos antes?
— Pena? — Minha voz treme. Memórias de nossa dança no desfile de
rua, nossos rostos tão próximos na taverna sob sua capa, sua mão na minha e
sua cabeça no meu ombro enquanto ele derramava lágrimas por sua irmã
perdida. — Nem tudo foi pena.
— Claro que não. — O príncipe ri, o som tão em desacordo com o meu
corpo frio. — Apenas a maior parte.
A frieza endurece no meu estômago como um poço de gelo.
— Depois de alguns dias de profunda introspecção, percebi: fiquei
apaixonado por você porque tinha pena de você. Você tentou tanto me fazer
te amar, e eu tive pena de você por seus esforços. Eu tinha pena de como
você estava sozinha no tribunal, de como era ignorante, de como todos
pensavam terrivelmente porque era uma Y'shennria. Em algum lugar ao
longo do caminho, tornou-se afeto.
Mas um carinho baseado em um solo doentio nunca pode florescer em
uma verdadeira flor; nunca pode florescer no amor verdadeiro.
Engulo o que parece ser lascas de metal, raspando minha garganta no
caminho para baixo.
— Oh. — Ele ri baixinho, oco, mantendo a boca na minha orelha. – Não
pareça tão perturbada, Lady Zera. Você e eu sabemos que é verdade. Foram
apenas duas semanas. Que tipo de amor é verdadeiro depois de apenas duas
semanas?
Estávamos apaixonados, e nada mais.
Seus pensamentos espelham os meus, a verdade como agulhas perfurando
qualquer alegria que eu segurei secretamente.
— E, no entanto — diz ele. — emoções não são jóias convenientes que
você pode colocar e tirar quando quiser.
Afinal, o que isso quer dizer? Que as coisas que compartilhamos não
podem ser removidas da memória?
Seria fácil o suficiente para chegar ao redor e tirar os olhos dele, as
ofertas de fome, salivando. isso fará com que ele te despreze, com certeza.
Varia tinha um fígado fresco de porco à minha espera, isolado sob o
vestido de banquete em seu quarto, mas ainda assim as quedas de fome. Eu
tento lembrá-lo que a morte dele não significa mais nosso coração, mas a
escuridão se desenrola sempre que nossa pele se une, como se fosse treinada
para reagir com pensamentos violentos ao seu perfume, sua sensação. O som
dos guardas da lei se aproximando de crescendos além do nosso esconderijo,
e eu sinto os braços de Lucien se apertarem ao meu redor, sua boca perto da
minha orelha. A sensação de seu hálito na minha pele me sufoca mais do que
o ar abafado do verão, fazendo meu corpo inteiro tremer.
— Você está tremendo. — Seu tom é baixo, desanimado. — Como você
pode ser tão boa em enganar a corte e tão terrível em esconder seus próprios
sentimentos?
Ele está agindo de maneira incrivelmente diferente – tão leve, divertida e
não afetada. Eu já o vira fazer isso uma vez antes, para as outras Noivas da
Primavera, aquelas que ele tratava gentilmente apenas para mostrar, apenas
para manter a corte longe das costas. A farsa foi levantada, foi embora. Ele
deveria retornar à sua vida antes de mim, diante da minha fachada. Ele nunca
é verdadeiramente feliz quando olha para mim e merece ser feliz.
O luar vermelho brilha na armadura dos guardas da lei quando eles
passam por nós – fazendo barulho tão incrivelmente alto – e depois
desaparecem, desaparecendo atrás de uma esquina. Eu arqueio minhas costas
contra o peito de Lucien, numa tentativa de abrir espaço entre nós.
— Que sentimentos? — Eu pergunto.
— Essa é a pergunta, não é? — Ele me libera apenas o suficiente para que
eu possa me virar em seus braços, e eu giro para encará-lo. — Você nunca
me respondeu na clareira.
— Eu te disse, você é ingênuo. — eu vocifero. — Eu te enganei.
— Todo mundo que eu já conheci me enganou — ele me interrompe. —
Isso é o que significa ser um d'Malvane. Você me enganou. E eu tive pena de
você. No final, eu chamaria isso de empate, não é?
— Nós nos beijamos — eu deixo escapar, minha boca correndo sozinha.
— Você e eu – aquele beijo na barraca. Isso não significou nada para você?
Ele se inclina de repente, sorrindo, uma sombra cheia de calor e envolta
em couro, as mãos deslizando para os lados do meu rosto. É
uma farsa. Ele trata bem as pessoas apenas quando as despreza; as noivas
da primavera provaram isso. Eu juro que há um piscar de sentimento genuíno
em seus olhos, mas depois desaparece.
— Como algo que era mentira pode significar alguma coisa?
Assim não. Eu quero o verdadeiro Lucien. Esse não.
— Não se atreva a me tratar como todo mundo, — eu exijo. Os olhos de
obsidiana de Lucien cintilam, a agradável fachada de seus olhos
desmoronando cedo. Ele abaixa as mãos devagar, enfiando a mão no bolso e
pegando um lenço na palma da mão, azul escuro com bordados de rosas
vermelhas. Para limpar meu rosto de sangue?
Seus olhos negros são duros e definidos com determinação, como eram a
primeira vez que nos conhecemos – ele como Whisper, nós dois em um beco
não muito diferente deste.
— Por que não? — Ele inclina a cabeça, um sorriso esculpindo uma
impressão sob o capuz. — Afinal, você me tratou como um trabalho.
Suas palavras apunhalam através das minhas partes sensíveis, e meus
pulmões sugam insinuando um suspiro de ar. Ele a ignora, ainda com aquele
sorriso plácido e irreal em seu rosto, enquanto oferece seu lenço.
— Você foi a única que conseguiu ficar debaixo da minha armadura. Peço
que você seja gentil comigo, até que eu possa construir um novo conjunto –
ele diz, colocando o lenço em volta da minha mão. — Mas eu sei que você
despreza obedecer seu Príncipe Herdeiro.
Eu mal pego o lenço antes que ele atinja o chão, e quando consigo olhar
para cima novamente, ele se foi.
Meu corpo dói com as consequências das lágrimas de sangue e a força
contundente das facadas emocionais de Lucien. Eu limpo meu rosto
cuidadosamente com o lenço. Ele estava certo em ser tão brutal. Emoções não
são jóias, ele disse. Mas elas são. Eu colocaria algumas jóias muito
convincentes para enganá-lo – rubis de amor, esmeraldas de afeto. O que
restou quando os tirei naquela noite na clareira?
Eu. Apenas eu.
O monstro, a garota, a assassina e a mentirosa em sua carne nua.
não merece a vida, muito menos o amor.
Ele me segurou tão perto. Ele me tocou com tanta ternura. Mas ele fez
isso porque eu sou como todo mundo aos seus olhos. Eu o enganei, como
todo mundo na corte.
Não sou mais nada especial para ele.
Fracamente, ouço outra comoção começar na rua – os advogados gritando
sobre um ladrão fugitivo em couro escuro. — Eles passam pelo meu
esconderijo e chegam à próxima praça. Lucien fica nas ruas de Vetris há anos
– ele sabe que é melhor não ser pego.
Então, por que ele se exibia propositalmente entre os guardas da lei
agora?
Meu cérebro de ladrão me dá a resposta ordenadamente; sem os guardas,
é um tiro certeiro de onde estou até a ponte dos nobres.
Meu cérebro Sem Coração me responde dolorosamente: Ele tem pena de
mim.
6

A
Canção da Serpente

Tenho certeza de apenas duas coisas na minha não-vida: que eu realmente


fodi tudo (trocadilhos, muito obrigado) e que Lucien merece alguém muito
melhor do que eu.
Informei Malachite disso na manhã seguinte. Quando voltei ao palácio
ontem à noite, a criada de Varia me disse que eu podia dormir em seus
aposentos, pois ela não voltaria naquela noite. Os guardas me deixaram
passar. Olhei para a cama perfumada da princesa e puxei um cobertor do
armário de roupas de cama e dormi no chão.
Fez maravilhas pelo meu orgulho e nada pelas minhas costas.
— Lucien merece alguém muito melhor do que eu. — digo para
Malachite, quebrando minhas costas segurando um corrimão e torcendo
minha coluna inteira na outra direção enquanto espero minha carruagem até a
valkerax – o servo de Varia também me informou disso esta manhã. O ruído
das minhas vértebras rachadas faz um casal nobre passar tremendo
incontrolavelmente. Eu levanto uma mão e sorrio para eles de uma maneira
— De nada.
Malachite, agora com sua armadura chique e vestindo sua habitual camisa
de cota de malha e calções, revira os olhos. — Os nobres estão sempre
atrasados para o óbvio, ou apenas os que fingem ser nobres?
— Ambos? — Eu ofereço. — Todos? Os seres humanos são,
historicamente, tolos.
— E mentirosos. — ele responde, segurando sua mão pálida e esguia para
mim como se eu fosse um exemplo perfeito.
— E isso. — murmuro um acordo. — As vezes. Por necessidade.
— Desculpe. — Malachite pisca. — Que parte da tentativa de matar um
príncipe e revivê-lo como servo de uma bruxa é necessária novamente?
— A questão é — digo em voz alta. — Enganei Lucien em seus
sentimentos. Eu expressei sua opinião sobre o amor. Portanto, é justo que eu
tente fazer as pazes por isso.
A dor fratura meu corpo como gelo no momento em que as palavras se
formam no ar. Meu rosto se move como uma máscara entorpecida, fazendo
uma demonstração de piscada para Malachite.
— O que significa, é claro, vou ter que encontrar outra pessoa para ele.
Malachite está quieto, optando por olhar pelas grandes portas de carvalho
da entrada do palácio. Por fim, ele pergunta: — Alguém?
— Você sabe. — Dou de ombros, minha túnica simples de linho verde
encolhendo os ombros comigo. — Ele me disse que tem pena de mim,
quando a realidade é que tenho pena dele. Ele praticamente rejeitou todas as
meninas nobres por casamento. Ele não trata nenhum deles com gravidade.
Ele nunca encontrará uma esposa nesse ritmo! Como seu melhor amigo —
aponto para Malachite. — e seu melhor inimigo — digo, apontando para mim
mesma. — Cabe a nós encontrá-lo uma garota mais doce. Inofensiva, não
insensível.
Uma garota sem dentes afiados ou uma fome escura sussurrando
constantemente para arrancar seus pulmões.
Se Malachite pudesse ficar mais branco, tenho certeza que sim, mas seus
lábios finos apenas se encaixam. — A fome diz isso?
— Ai sim. É por isso que precisamos manter Lucien longe. Eu
simplesmente não sou boa. Mas você já sabia disso, é claro.
Malachite solta um suspiro. — Zera...
— Então! — Bato palmas. — Eu vou precisar da sua ajuda.
Precisamos encontrar alguém decididamente menos criminoso e
freqüentemente menos homicida e conduzi-lo até ela.
O beneather me olha de cima a baixo, apertando os olhos como se não
tivesse certeza de quem eu sou. Finalmente, ele assente. — Tudo certo.
— Fantástico. Certifique-se de que ele e eu não nos encontremos nos
corredores. Certifique-se de que ele pare de me encarar durante os banquetes.
Se ele começar a falar de mim, mude de assunto para outra garota. Melhor
ainda, leve-o para conhecer outras garotas. — Eu sorrio para ele. — Se você
fizer bem o suficiente, eu posso até compensá-lo.
Ele levanta uma sobrancelha. — O quê? Y'shennria se foi. Você não tem
nada. Nem o vestido nas suas costas é seu.
você
não tem
nada.
Eu ri. – Você adorava lisonja, Mal. Tenho certeza de que posso conseguir
um elogio ou três em qualquer lugar.
O estalido de ferraduras puxa meu olhar para os degraus do palácio, onde
a carruagem preta de Varia o aguarda. Vou para a porta quando uma mão fria
agarra meu pulso e estou enraizada no lugar.
Olho para trás e vejo os dedos pálidos de Malachite, seus olhos fixos em
mim como duas granadas escurecidas pela chuva.
— Você realmente se importou com ele?
Sim. Claro que sim.
Eu dou de ombros. — Não para ele, particularmente. Só pelo coração no
peito.
Malachite está quieto e depois: — Todos vocês... tudo isso era falso?
Tudo?
Não, eu quero dizer. Sou uma garota de dezesseis anos, dezenove anos, na
verdade, mas ainda sou apenas uma garota.
Treinei com Y'shennria, não em uma trupe de teatro. Não sou nobre, com
uma máscara perfeita aprendida desde o momento em que nasci. As duas
semanas que passei com você, Malachite – e Lucien e Fione – o riso, a raiva,
a alegria; tudo isso era real.
Eu era eu, assim como tentava ao máximo não ser.
Mas ninguém precisa saber disso. Nem Malachite, nem Fione, e
principalmente Lucien – isso apenas tornaria mais difícil seguir em frente.
Eu lanço meu sorriso tímido de volta para Malachite e aceno. — Tudo.
Seu aperto afrouxa, e eu posso sentir seus olhos me observando descendo
os degraus, para dentro da carruagem, até o último pedaço de estrada que sai
do terreno do palácio.


Viro o lenço azul-escuro de Lucien em minhas mãos enquanto a carruagem
se move pela cidade – acariciando as rosas bordadas nas bordas.
Sentimentos não são jóias.
Um coração como o de Lucien não pode ser facilmente influenciado ou
não. Coloquei o lenço no peito, a dor serpenteando fios de seda apertados
entre as costelas. Aparentemente, os insensíveis também não são facilmente
desviados. Mas não posso, sob nenhuma circunstância, cometer o mesmo erro
duas vezes. Eu não podia dar ao luxo de fazê-lo nem uma vez, e ainda
estamos aqui.
Ele não vai me impedir de pegar meu coração novamente. Não importa o
quanto esse coração o queira.
Como mamãe parecia novamente? Está na ponta da minha consciência,
implorando para sair.
Eu cerro meus punhos. Eu posso bloquear meus sentimentos.
Eu posso fazer melhor desta vez. Eu sei que posso. Eu posso fingir até
que se torne realidade, como Y'shennria me ensinou. Eu tenho.
Eu tenho que lutar contra o puxão giratório do rosto de Lucien, sua voz e
seu cheiro, ou eu vou estragar tudo e deixar meu coração deslizar através do
meu alcance mais uma vez.
Eu tenho que seguir em frente. Eu não posso me apegar. Não posso mais
me iludir com alguma ideia calorosa, reconfortante e nebulosa de amor. Eu
tenho que me forçar, com cada respiração dolorida, a esquecer meus
sentimentos por ele. Se isso significa ignorá-los, se isso significa encontrar
outra garota para ancorá-lo...
Se isso significa forçar-nos a separar-nos nas costuras, para que nunca
possamos estar juntos por qualquer extensão da imaginação, que assim seja.
Será a coisa mais difícil que já fiz. Mais difícil do que enganá-lo.
Mais difícil do que deixar Crav e Peligli. Mais difícil do que morrer pela
primeira vez novamente. Mesmo agora, posso sentir minhas próprias costuras
gritando para serem colocadas de volta no lugar.
Mas vou recuperar meu coração. Trarei mãe e pai e minha humanidade de
volta.
Mesmo que isso signifique que tenho que me separar.
Minha mão treme quando eu a estendo pela janela, o lenço apertado nela.
Apenas um aumento dos meus dedos, e ele escorregaria pelo vento, perdido
nas pedras, nas pilhas de cavalos, nos cantos escuros dos becos escuros ou
nos bolsos escuros de algum transeunte. Se eu simplesmente largar, ficarei
livre.
Mas meus dedos não se mexem. Eu os vejo se abrindo, mas os ossos
permanecem travados, frios e dormentes enquanto os encaro.
Não posso. Mas eu tenho que. Não posso. Mas eu tenho que.
— Senhorita?
Eu sobressalto com a voz, olhando para cima e vejo o motorista da
carruagem bem na frente do meu braço estendido, seus olhos preocupados. —
Chegamos.
De fato, a agitação do Portão Sul ecoa à nossa volta, pessoas encarando a
garota com o braço esticado para fora da carruagem. Eu enrolo minha mão,
colocando o lenço firmemente na minha túnica. — V-você olha para isso. Em
tempo recorde. Obrigado, bom senhor.
Eu saio, evitando os olhares dos estranhos, e vou para a porta de latão na
parede. Yorl, o associado de pêlo ocre de Varia, está surpreendentemente me
esperando do lado de fora, vestindo uma túnica de polímata (ainda sem cinto
de ferramentas, o pobrezinho) e uma expressão distinta de irritação. Observo
seu rabo balançar quando me aproximo, a armadura de prata na ponta
brilhando ao sol.
Ontem, Varia o ameaçou essencialmente com sua influência – ele quer ser
um polímata. No entanto, ele já está vestindo as roupas de um. É preciso um
pouco de análise psicanalítica para perceber que ele se acredita muito além de
digno de ser um; ele só quer que Varia o oficie. Ele quer ser oficial aos olhos
do sistema, o suficiente para fazer tudo isso. Mas por que?
As esferas verdes de Yorl se estreitam quando me aproximo.
— Dormiu bem? — Eu provoco.
— Não. — diz ele, imediatamente se virando para a porta e acenando para
os guardas com a senha murmurada: — A Filha Risonha chama. — Ele diz
que isso não significa nada, apenas negócios. — Dos quatro portões, Portão
Sul tem menos tráfego – a única coisa ao sul de Vetris são as montanhas
Tollmount-Kilstead e Helkyris além disso. É uma jornada traiçoeira, então
apenas as caravanas comerciais bem equipadas a enfrentam. O que significa
que o barulho de guardas fortemente blindados é hediondo pela manhã.
— Você sempre dá explicações detalhadas de graça?
— Somente para as pessoas com aparência de bufão persistente grudadas
no rosto.
Estremeço ao caminhar pelas entranhas polidas de bronze da parede, não
por dor, principalmente, mas por surpresa. Eu não sabia que alguém com um
braço tão alto na bunda dele poderia revidar tão bem. Ele abre a porta da
escada em espiral escura e desce sem hesitar, seus olhos de ébano se
ajustando impecavelmente. Eu sigo.
— E aqui estava eu, esperando que você fosse mais inteligente e menos
tagarela. — Minha voz ecoa nas paredes de pedra invisíveis.
— Seu erro. — Ele cheira.
— Inteiramente. — eu concordo, e graciosamente agito minhas mãos na
minha frente. Eu pego seu rabo, e Yorl solta um grito agudo que termina em
um rosnado.
— Tenha cuidado!
— Desculpe! — Eu deixo ir rapidamente e sorrio afetado. — Fiquei tão
momentaneamente com medo do escuro!
Eu ouço um bufo e suas patas começam a clicar novamente na escada. Eu
fico para trás. Foi muito mais fácil descer essas etapas quando a ordem de
Varia me ordenou que o fizesse. Não precisava pensar, nem hesitar, nem me
reajustar; meu corpo simplesmente fez tudo por mim. O único benefício de
ser ordenado, suponho.
— Uma luz seria legal — ofereço. — Isso me impediria de tropeçar e
potencialmente esmagar meu rosto.
— Se você fizer isso, você se curará. — A voz de Yorl é emocional. —
Não há necessidade.
Eu dou uma fungada aguada. — Você é ainda mais insensível do que eu.
Ele não responde isso. Descemos as escadas o mais rápido que meus
olhos cegos conseguem, a batida sonora da respiração da valkerax contra a
pedra o único som.
No momento em que atingimos o nível do solo, Yorl chama para a
escuridão. — Enfie os empaladores feridos e os arqueiros aprontados na
parede. Teori, Jonall – prepare-se para abrir os portões. Finalmente estamos
enviando a Sem Coração.
O barulho da armadura é inconfundível, mas carece da cadência de botas
de metal. O estofamento macio das patas de ébano ecoa como o que soa
como uma dúzia de dispersão para obedecer às suas ordens. É estranho – a
julgar pela sua juba imatura, ele não é muito velho, mas todos aqui em baixo
o estão tratando com vasta antiguidade. As vantagens de conhecer a princesa
em princípio, suponho.
— Sem coração. — eu o ouço dizer e me virar. — Vocês...
— Sou Elizera Y'shennria. Zera, para breve – interrompo. — Mas o
célebre geralmente me chama de dor no rabo de cavalo.
— Não temos tempo para brincadeiras, — ele retruca. — E ainda menos
tempo para apresentações. Eu sou Yorl Farspear-Ashwalker. Isso é tudo que
você precisa saber. A valkerax está sendo fortemente sedada e pode
permanecer acordada por apenas menos da metade por dia. Nós devemos
trabalhar rapidamente. Valkerax faz muito pouco acima do solo. Já se
passaram três dias – outros vinte e ele morrerá.
— Eu pensei que Varia disse que levaria um mês. — Inclino minha
cabeça.
— O mais longo que eu consegui manter uma valkerax viva acima do
Escuro Abaixo foi um mês. Mas a maioria não chega aos dezoito dias.
Eu começo. — Quantas... quantas vezes você fez isso?
— Diversas. Nenhuma delas aqui em Vetris. — Suas respostas são
sucintas e me lembram exatamente por que estou aqui. Meu coração. A
lembrança agridoce disso no meu peito na outra noite corre através de mim,
inebriante e repentina. — Quando estivermos nos aposentos da valkerax, eu
lhe darei um frasco. Você vai beber o conteúdo. Isso permitirá que você fale
com a valkerax exatamente metade de cada vez.
— Eu pensei que eles eram bravos, que ninguém poderia entender seu
discurso.
— Eles são. — Yorl diz friamente.
— Então como...
— É uma receita Vetriana antiga, uma tentativa de negociar com a
valkerax para impedir o tumulto. Uma tentativa que falhou. Meu avô estava
trabalhando para tornar a receita funcional até sua morte. Eu carreguei até o
fim.
— Seu avô também era polímata?
— Você vai beber o frasco. — Yorl me ignora, muito clara e
propositalmente. — E falar com a valkerax.
— Um líquido que permite que você converse com uma criatura que nem
os ursos conseguem entender. — fico maravilhada. — Isso é muito útil. Por
que você ainda não passou para eles?
Yorl está desconfiado em silêncio, mas não tenho tempo para refletir
quando de repente chegamos ao fundo da escada. Eu escuto movimento e o
som suave de armaduras e vozes baixas e distantes, e então o chamado claro
de Yorl: — Abra os portões.
— Você tem certeza, senhor? Nós poderíamos adiar; ainda não comeu
completamente. — Outra voz ecoa.
— Agora. — exige Yorl. O barulho da armadura soa novamente.
— É tudo célebre aqui em baixo? — Eu pergunto.
— Você conhece outras raças que podem ver no escuro e levantar cinco
vezes o seu próprio peso? — Yorl fala.
— Uh — eu começo. — Os beneathers Ele zomba. — Eles não são tão
fortes quanto o célebre. Se a valkerax escapar, somos a primeira linha de
defesa.
— C-certo. — Eu mordo meus lábios. — Nessa nota – está acorrentado,
certo? Tipo, pelo menos uma corrente? Talvez Varia tenha se arrependido e
comprado mais ou menos mil?
Não consigo ver, mas juro que posso ouvir Yorl revirando os olhos. O
barulho de metal quando o portão se eleva me faz pular, e Yorl me empurra
para a frente no vazio abissal, o portão se fechando atrás de mim. O ritmo
sonoro está soando nos meus ouvidos agora. A valkerax está aqui, respirando
e viva, e eu não consigo vê-la.
Um tubo de vidro frio toca minha palma, me fazendo pular.
— Não abandone isso. — diz Yorl, sua voz ainda assertiva, mas agora
tremendo nas bordas. É um pequeno alívio ouvi-lo preocupado.
— Você veio aqui comigo? — Eu estalar. — Você está louco? Você
poderia morrer! Você sabe a morte? Grande desconhecido escuro e
assustador, sem as alegrias dos confortos das criaturas?
— Beba rapidamente. — ele pressiona. — Ele já sentiu nosso passo e está
vindo para cá.
Nunca bebi nada mais rápido na minha vida – minha garganta engoliu
com toda a urgência frenética de um peixe moribundo. Não consigo ver – há
apenas escuridão. Se eu morrer, será do nada. Ou fora do preto, neste caso.
— Diga alguma coisa, droga, — Yorl assobia. — Está na sua frente.
Diga algo.
Diga algo a um valkerax que precisa aprender a chorar, a um val kerax
com dor impensável. Pode ser uma serpente gigante e eu posso ser um
humano, mas se estamos ambos sob o domínio da magia, somos a mesma
coisa usando conchas diferentes.
se vocês são ambos sem coração, a fome aperta meu cérebro, vocês dois
estão com fome.
Eu respiro fundo.
— Olá, — eu gorjeio no escuro. — Primeira ordem do dia: por favor, não
me coma. Segunda ordem...
Há uma pancada no ar, e então algo impossivelmente pesado bate contra
o meu lado, e meus nervos gritam quando eu vôo no ar. Alguma serrilhada
me pega pela perna e me sacode para frente e para trás, minha articulação do
quadril direito se soltando e deixando o resto do meu corpo cair. Eu bati no
chão com uma sacudida aguda de dor e um baque doentio, e com meus
membros restantes eu consegui sentar com força a agonia pulsante da maioria
dos meus ossos sendo quebrados. É um milagre que minha coluna ainda
possa me segurar.
— O-Ok! — Eu levanto minha mão. — Ok, você pode ter essa perna!
Isso é bom. Odiava mesmo. Vai muito bem com um pouco da terra das
masmorras, aposto.
Um rosnado baixo se move pela terra, tão profundo e forte que vibra os
seixos no chão ao redor do meu corpo rapidamente curado.
— Ouça! Eu entendo que você está com raiva! — Eu estremeço quando
minha perna começa a crescer novamente, os ossos se esticando e a carne se
realinhando. — Mas e se eu te disser que posso fazer a voz desaparecer?
O rosnado fica em silêncio de repente, as pedras ainda parando.
Isso pode realmente me entender?
— A voz – aquela na sua cabeça que o força a fazer coisas — insisto. —
Eu posso ensinar você a fazê-la desaparecer.
Há um momento denso de respiração – o peso da valkerax e meu próprio
pânico superficial. Nada se move. Ou, se sim, não consigo ver.
Não sei onde Yorl está na vida após a morte o louco, mas é melhor estar
em algum lugar fora dessa maldita câmara. Há um grito agudo, o som de um
animal sendo torturado, e o chão treme debaixo de mim quando a valkerax se
agita. Eu me preparo para me atacar novamente, me despedaçar, mas o
silêncio se agita eventualmente.
— A voz... — Uma voz como um oceano furioso ronca através da
escuridão, tão alta e dolorosamente antiga – como uma porta de madeira
antiga se abrindo e fechando – que afoga todos os meus pensamentos, todos
os outros sentidos. — A voz raivosa, a voz noturna, a voz eterna. A voz como
uma música nunca sai. Nunca voa para longe. Quer voar para longe, mas
está sempre rindo, no fundo.
Aranhas em um ovo esperando para chocar.
As palavras são quase absurdas, mas minha respiração pega.
— Você – você pode me entender?
O rosnado cresce, e eu levanto meus braços como se eles fizessem
qualquer coisa contra suas milhares de presas. Sua mandíbula serrilhada
ainda me assombra mais. Estou disposto a apostar que morrer lá alcançaria
pelo menos o número cinco na minha lista de mortes mais dolorosas.
— Eu juro, eu posso te ensinar como fazer essa voz ficar quieta!
— Eu grito.
Há um silêncio opressivo na respiração e, em seguida — Por...
— A valkerax aspira ar pesado e afiado, como se tivesse sido esfaqueada.
— Para sempre? Para sempre como o lar da terra? Para sempre como as
luas em nossos sonhos?
— Não para sempre. — Eu engulo. — É só por um tempo. Mas está
quieto. Eu sei uma maneira de fazer a voz ficar tão quieta, é como se nem
estivesse lá.
Outra longa pausa. Então aquele rosnado ecoou novamente, desta vez
contra a minha orelha, uma rajada quente de ar pútrido soprando no meu
rosto. Ele tem a boca aberta bem na minha frente.
A valkerax ronca, um pesado zumbido ressoa como um cachorro gigante
batendo no rabo.
— Acima-prisão-prisão. Acima da pedra, ainda pedra. Sangue quente
dentro do metal nos mantém aqui para ouvir. — Os dentes do valkerax e
mandíbula maciça encaixam abruptamente, jogando ecos brutais em meus
tímpanos. — Ele dá um tremor sibilante quando respira e abre a boca
novamente, a respiração flutuando sobre mim.
— A música faz muita dor. A música vai nos separar. Cante sobre isso
para os outros. A escuridão é o fim, a escuridão para nadar – voa por
dentro. Os pequenos penhascos arranhavam em forma e pedra por dedos
mortais – troveja. — Eles nos mantêm aqui também. Por quê?
Pequenos penhascos? O que isso significa? Oh! As runas? As runas do
beneather – acho que elas pareceriam penhascos na pedra para algo muito,
muito pequeno. A lógica da valkerax é desconcertante, considerando que não
é pequena, mas faz um sentido distorcido.
— Para, uh, ensinar você. — Eu tento me levantar, minha nova perna
balançando. — A pessoa que te pegou quer que eu ensine como fazer a voz
desaparecer. Chama-se Choro. E depois que você aprender a Chorar... eles
farão perguntas.
A valkerax emite aquele som tortuoso de vermelho tortu novamente,
sibilando depois dele. — Dor é a pergunta e ir é a resposta.
Ir. Como, sair? É claro que o valkerax quer deixar este lugar onde está
sendo mantido contra sua vontade.
— Isso é possível? – ele pressiona, o ar quente é esmagador e constante,
sua boca ainda mais perto agora, enquanto bate a cauda e faz toda a arena
tremer.
— Eu não sei. — eu admito, me firmando e engolindo o desejo de correr.
— Tudo o que sei é que posso ensinar você a chorar.
O ar quente reverte tudo de repente, o som da inspiração, minhas roupas
batendo enquanto a brisa violenta me puxa como se eu fosse uma formiga,
um inseto, algo facilmente movido. Eu enterro meus calcanhares no chão e
luto contra ele, mas ele pára abruptamente e eu bato na terra. Giro minha
cabeça, tentando entender a direção em que ele está, quando seis pontos de
luz cortam a escuridão e me congelam em minhas trilhas. Seis ovais – cada
um mais alto e mais largo que eu – duas colunas simétricas de três
empilhadas umas sobre as outras e brilhando em branco.
Olhos. Olhos no b falta.
— Você. — diz o valkerax. — Pequeno você, sozinho na escuridão. Nós
vemos. A música pode ver agora. Os ossos estão amarrados a mim. Rimas no
vento escuro. A Filha Risonha está ligada a você. Rimas no vento escuro.
— Como... — eu começo. — Como você sabia o nome da minha bruxa?
— Tudo o que rima tem um nome verdadeiro. Tudo o que é verdade,
saberemos.
Eu engasgo com minhas palavras não ditas quando os olhos brancos sem
pupila se aproximam, tão perto que posso ver as veias cinza neles.
— Você vai nos ensinar. — o valkerax ronca. — Mas primeiro você vai
morrer.
Não entendo bem meus próximos pensamentos, porque todos os vasos
sanguíneos do meu corpo esfriam de uma só vez, minha pele fica entorpecida
ao nada. Então, uma forte pressão plana no meu peito quando meus pulmões
colapsam, meus olhos rolam como peso morto de volta à minha cabeça, e o
chão corre para me encontrar.
Infelizmente, a valkerax está certa.
Eu morro.
7

Um Uivo
na
Lua

Volto à vida ofegante.


— O que na bochecha esquerda de Kavar... — Eu pressiono minha mão
no meu peito, tentando diminuir a respiração. Olho para o meu corpo –
colocado em algum tipo de tapete de dormir. Um rosto ansioso de pêlo
amarelo de repente consome todo o meu cone de visão, tão perto que posso
ver cada bigode.
— O que ele disse? — O rosto respira pesadamente.
— Ahh! — Eu chuto, Yorl esquivando meus pés com toda a graça de um
gato.
— O que o valkerax disse para você? — Ele insiste.
— Isso não é maneira de acordar uma dama! — Eu o empurro e ele
cambaleia para trás, o bloco de pergaminho e a pena na mão agarrados
desafiadoramente. — Espere, eu posso ver seu rosto!
Giro minha cabeça, identificando a fonte de luz – um tênue pedaço de
musgo crescendo na parede de pedra ao meu lado emitindo um brilho
arroxeado. Quase nada, mas é o suficiente.
Inspeciono meu corpo: inteiro e curado, minha túnica verde esfarrapada e
manchada de sangue, mas ainda intacta.
— Pelo amor dos espíritos, o que ele disse? — Yorl pressiona, ignorando
completamente o meu insulto. Seus ansiosos olhos verdes ficam mais vívidos
com a luz, todos os indícios de sua seriedade fria substituídos pelo olhar
enamorado de uma criança em uma confeitaria. — Ele abordou você pelo
nome verdadeiro? Concordou com o ensino? Ele te disse seu nome
verdadeiro?
— Não, sim e não. — Eu massageio minhas têmporas latejantes. — Não
disse muito. Ou disse, mas fala como um poeta bêbado.
— Para ser esperado. — Yorl murmura, rabiscando em um pergaminho
loucamente. — Em Velho Vetris, valkerax, antes de ser preso à Árvore dos
Ossos, dizia falar em histórias e metáforas grandemente arrebatadoras; era o
seu modo de vida... — Ele para, cutucando a bainha das minhas calças
manchadas de sangue e franzindo o nariz. — Você deve passar pelas roupas
como um ministro preocupado passa pelo vinho.
— Eu garanto. — Sento-me. — Se eu tivesse a minha opinião, não iria
sangrar.
— Já ouvi isso de mulheres antes. — Yorl suspira.
Eu suspiro. — Você sabe o que é uma mulher? E aqui eu pensei que tudo
o que você fez foi ficar aqui no escuro e ordenar as pessoas por aí!
— É o meu trabalho. — diz Yorl, inspecionando meu braço com uma
pancada em sua pena.
— Certo. Seu trabalho é arriscar sua vida entrando na câmara de uma
valkerax faminta.
— Era obrigatório eu entrar, porque... — — Você estava preocupado
comigo. Que doce.
—… o trabalho da minha vida inteira está aí. E não apenas o trabalho da
minha vida – também o do meu avô.
Seu avô. Ele o mencionou em mais de uma ocasião. Ele é realmente muito
importante para Yorl, não é? É por isso que ele está fazendo tudo isso? Eu
bato palmas.
— Acabei de me lembrar; você me matou. Era o soro, não era?
— Sim. Causa falência crítica de órgãos após exatamente metade. Como
você é insensível, você é simultaneamente o único ser no mundo que pode
usar o soro e o único ser que não afetará permanentemente. — Yorl me
oferece sua pata em um gesto surpreendentemente suave e eu o tomo
indignadamente, escovando sujeira das minhas calças.
— Aqui está uma dica minha para você, — eu digo. — É
educado dizer a alguém que você os matará antes.
— Eu vou manter isso em mente. — Ele segura outro frasco. Eu olho para
ele em sua pata, depois para ele. Ele limpa a garganta. — Isso vai te matar.
— Viu? — Eu provoco. — Isso foi tão difícil?
Caminhamos juntos novamente até o portão, a luz do musgo
desaparecendo, para que eu tenha que confiar no som de seus passos mais
uma vez.
— Você tem certeza de que concordou em ser ensinado? — Yorl
pressiona.
Eu concordo. — Com certeza. Embora, de alguma forma, soubesse que eu
morreria logo antes de morrer.
— Como eles têm pouca necessidade de olhos no escuro abaixo — diz
Yorl, — eles desenvolveram aguçados sentidos por temperaturas e as
mínimas vibrações do corpo de um ser vivo. Sem dúvida, ele sentiu seus
sistemas físicos murcharem antes de você.
— Bom — eu murmuro. — Ótimo, até.
Paramos diante do portão e, quando os guardas dos pombos erguem-no
com um esforço estridente, ouço o arranhar dos pés com garras de Yorl
enquanto ele se abaixa. Eu corro atrás dele, alcançando loucamente e agarro
seu rabo novamente.
— Oh não, você não. E se essa coisa decidir comer você ?
— Você disse que concordou em ser ensinado! — Yorl rosna, puxando
seu rabo para longe de mim.
— Eu não posso controlar isso — eu assobio. — Se ficar com fome, não
haverá mais volta para você!
A voz de Yorl é subitamente determinada por um ranite. — Eu esperei
dez anos. Examinei cada centímetro de conhecimento do mundo por esse
momento; Eu sacrifiquei tudo para Varia por isso. É um risco que estou
disposto a correr.
Eu o ouço entrar o resto do caminho. Ele é totalmente, perigosamente
louco, mas não é todo dia que encontro um mortal disposto a arriscar sua vida
por algo tão árduo. Estou impressionada.
E mais do que um pouco preocupada.
Infelizmente, o célebre decidiu não instalar iluminação nos poucos
minutos em que eu morri. Está tão escuro dentro da câmara quanto antes de
eu morrer. Abro o frasco que Yorl me dá, ouvindo a respiração profunda
ecoando pela sala enorme.
— Oi — eu tento nas sombras. — Eu de novo. Você ainda está acordado?
— Você poderia conversar com uma anciã antiga com um pouco mais de
respeito. — Yorl assobia do outro lado da câmara.
— E você pode beijar minha bunda muito bem desenvolvida. — eu sibilo
de volta. O deslizamento de escamas ecoa subitamente, aproximando-se e,
em seguida, uma rajada intrusiva de vento quente e rançoso assalta meus
sentidos. Eu recuei até que minha coluna estivesse achatada contra a parede
de metal, um medo frio agarrando minha garganta.
— Você. — os croaks valkerax com sua antiga vibrato, profundidade. —
Você fica aqui. Você escapou da morte.
Coloquei minha mão trêmula no meu peito vazio. — Você poderia dizer
que eu sou uma especialista nessa área.
A valkerax dá um bufo retumbante, e posso sentir a sujeira inchar sob a
minha túnica com a força. — Isso nós sabemos. É como a vida, como a
morte, como os pequenos penhascos dos olhos de sangue – sempre verdade.
As rimas levaram nossos ossos e levaram seu coração.
Tomou meu coração – Sabe o que eu sou? De repente, o medo que corre
através de mim despenca, e a valkerax e eu respiramos juntos na escuridão
total. Parece que somos apenas nós neste momento – dois monstros abaixo do
mundo.
A valkerax estremece em agonia e sinto o chão estremecer com ela. A
pior parte é que posso imaginar exatamente o que está sentindo. Cada
segundo deve ser uma dor delirante. É um milagre que eu possa entender a
valkerax – soro ou não.
— Isso é possível? — As quebras valkerax o silêncio fin aliado.
— Se eu posso te ensinar, talvez.
— Então ensine com lindas palavras de voz. Cante-nos as maneiras de
silenciar a música. Metal a lâmina na garganta.
Fecho os olhos e me agarro às lembranças de Reginall. O jeito que ele me
ensinou – suave e uniforme, calmo.
— Existem duas partes. — Abro meus olhos por hábito, não por utilidade.
— Existe a parte mental e depois a parte física. Mas a parte física é... difícil
de lidar.
— Nosso conhecimento é inconsciente. Cante em palavras de criança. —
O valkerax bate sua cauda contra o chão, um pouco tremor correndo por toda
a câmara.
— Palavras de criança. Tudo bem. — Eu respiro. — A primeira parte é
toda concentração, tudo depende de você. Mas não será suficiente para fazer
você chorar. Você precisa ser cortado primeiro com uma espada de mercúrio
branco.
— Qual mercúrio? — Ronca. — Cortar?
— Os humanos inventaram essa substância – mercúrio branco.
Isso pode enfraquecer a magia. Se o cortarmos, a voz ficará fora de
controle. Mais alto. Mas, ao mesmo tempo, se você se concentrar, seu
silêncio pode ser mais alto que isso. Você controla a voz em vez de controlá-
lo. Isso é choro.
— Chorando. — Ecos voz do valkerax de todas as direções,
acompanhados pelo som dele deslizando em um círculo em torno de mim. —
Chorar é controlar a música? Choram as três luas antes da maré?
— Sim. Pelo menos eu acho que é. Eu fiz isso apenas uma vez.
De repente, a valkerax solta um som áspero e latido que assusta a pele dos
meus ossos. Isso foi uma risada ?
— Apenas uma vez. Uma vez, o pequeno lobo uivou para a lua, — diz. —
Lobos não mentem, mas sua boca goteja alcatrão.
Mataremos você por nos trazer esperança.
Meu corpo estremece, tentando se defender mesmo que seja inútil contra
uma criatura tão grande. — Eu posso te ensinar. Eu sei como...
— A morte do lobo é inútil. Em vez disso, daremos a morte ao sangue
quente.
Toda a respiração sai de mim de uma vez.
— Yorl! — Eu grito. — Corre!
Porra, meus olhos inúteis – não consigo ver nada. Tudo o que posso ouvir
é a corrida frenética de escamas e passos sobre a terra.
sem utilidade. A fome ri.
A fome. A fome conhece melhor o calor e os aromas do que eu.
Eu me aprofundo nisso. É mantido bem dentro de mim pela magia de
Varia, mas eu pego e puxo os fios mais ameaçadores e provocadores,
deixando-o bater contra o meu cérebro.
garotinha patética, não pode mentir quando precisa, não
pode ser honesta quando conta. você é bom? como você poderia
ensinar outra pessoa a chorar quando não se conhece?
um mentiroso é o que você é Varia está segurando a fome com sua magia,
forte e coberta de ferro. Mas eu conheço a fome agora. Eu conheço alto, e
suave. Eu o conheço caótico e ordenadamente. Durante esses três anos,
concentrei-me em segurar, segurar, mas agora eu sei. Eu sei como apresentar
isso.
Meus dentes crescem, arestas afiadas – não muito longas como uma fome
completa, mas apenas o suficiente. A escuridão da arena se torna pontos
distintos de calor e frio, o ar repentinamente afiado com o cheiro de coisas
vivas: suor, sangue, saliva. Um corpo enorme e quente investe em algo muito
menor e correndo a toda velocidade, desesperada.
A valkerax, perseguindo Yorl.
Ele abre a boca, dentes beliscando os calcanhares de Yorl, e com os
pulmões e as pernas bombeando, deslizo entre eles, batendo o pé na
mandíbula inferior da valkerax e enfiando o braço no topo, presas nas palmas
das mãos. Não posso fugir ou dominá-lo. É muito forte e enorme.
A única maneira de detê-lo é suportá-lo.
A valkerax é como mil cavalos estampados; é um maremoto para acabar
com todos os maremotos. Está com raiva, com fome e loucura, e me diz isso
com seu grito furioso perto do meu ouvido – tão perto que o grande volume
explode meus tímpanos, o sangue escorrendo pelo meu maxilar – que me
odeia. A saliva rançosa escorre pelo meu braço, uma das presas entrando na
minha canela e quebrando-a.
— Vamos matar o mortal. — rosna a valkerax. — Pelas mentiras do lobo!
— Eu não menti! Eu posso te ensinar!
— O lobo fez isso uma vez. Uma vez é a vida de uma mosca.
Uma vez é uma única gota de água no lago. Uma vez é um erro.
— Eu sou a última Sem Coração viva — eu grito, piscando a saliva dos
meus olhos. — quem pode fazer isso! Não estou lhe dando falsas esperanças.
Estou lhe dando sua única esperança!
A valkerax fecha sua boca, levando minha canela e antebraço com ela.
Uma vez que os membros estão desligados, a dor é menor – menos nervos e
carne, à medida que a adrenalina quente corre para impedir todos os
sentimentos. Atiro-me no nariz molhado e preto do valkerax, agarrando-me a
um de seus bigodes ondulados com minha última mão boa. A valkerax se
agita, um turbilhão doentio e forte para me jogar fora, mas eu seguro firme,
cravando minhas unhas em suas escamas.
— Não é liberdade! — Eu grito. — Nunca será liberdade! Mas, por um
momento, você pode voltar ao jeito que as coisas eram!
A valkerax arranca repentinamente para uma parede fria, e no último
segundo eu consigo puxar minha parte inferior do corpo sangrando sobre o
focinho, a serpente cambaleando de dor. Conheço esse desespero – fiquei tão
esperançosa quando Reginall me contou pela primeira vez sobre o choro.
Mas ele me decepcionou mais fácil do que eu decepcionei essa valkerax. Não
expliquei o suficiente e está pagando o preço emocional. Faz mais tempo que
Cavanos está prisioneiro da Árvore dos Ossos, e brinquei com sua esperança.
— Sangue quente nos levou para o céu. A música está muito alta! A
música é muito alta! — a valkerax grita, batendo o ta contra a parede, a pedra
se dobrando sob a força e uma chuva de poeira caindo do teto. — Os sangue-
quentes despedaçaram nossa terra.
Vamos rasgar o seu céu!
— Eu não tenho casa. — eu berro. — E você também não!
estamos melhor sozinhos a fome ecoa em um sussurro. A massa de carne
se contorcendo abaixo de mim diminui de repente sua agitação, sua
respiração ofegante. Eu engulo poeira e sangue, meus ouvidos quebrados
tocando.
— Enquanto a voz estiver conosco — eu suspiro. — em nenhum lugar há
casa.
A valkerax dá à parede outra batida com sua cauda enorme, mas esta é
sem entusiasmo. Sem coração. O chão mal treme.
— Não podemos lembrar quem éramos — começo. — Estamos sempre
sofrendo. Sempre famintos. Isso não está em casa. Isso…
— Seguro minha mão no meu peito. — Este não é um lar. Isto é uma
prisão.
A respiração ofegante da valkerax se transforma em algo como um
gemido profundo e dolorido. Meu braço e minha perna terminam de crescer,
e solto seu bigode grosso, caindo no chão.
— Eu não posso te dar sua liberdade — eu digo, meus dentes estão
tratando, todos os meus sentidos ficando parecidos aos de um humano mais
uma vez. — Mas eu posso ajudá-lo a se lembrar de como era segurar.
8

O Homem
Sem Piedade é
Feito Para Se Curvar

Eu nunca ouço a resposta da valkerax, porque nos próximos segundos eu


morro. E quando acordo de novo, apenas uma palavra está em meus lábios.
— Yorl? Yorl? — Sento-me no tapete, a luz verde do musgo brilhando
em mim enquanto passo pelos outros guardas de célebres fracamente
iluminados sentados contra a parede. — Yorl!
— Pare de gritar por mim, sem coração. — Sua voz ecoa quando ele
aparece na escuridão, com as orelhas amarelas na cabeça. — É feio.
Ele parece empoeirado, mas por outro lado inteiro, e o alívio me inunda.
— Você esta bem!
— Com um agradecimento leve a você. — Ele bufa, puxando outro
pergaminho para rabiscar. — O valkerax está sedado. Escrevi tudo o que
você disse e juntei a briga enquanto você estava indisposta. — Ele olha para
cima. — Achou que você mentiu, certo? De acordo com os textos analíticos
de Grenval Chidon, a valkerax odeia ser enganada.
— Eu adoraria ver esses textos de antemão. — eu gritei.
— É um fragmento de pergaminho tão quebradiço e velho que um toque o
dissolveria em pó.
— Eu teria apenas dobrado a página para manter minha posição um pouco
— eu digo. — Chorei apenas uma vez e contei isso. O valkerax pensou que
isso significava que eu não poderia ensiná-lo. Mas eu posso. Eu acho. Eu
tenho que tentar, pelo menos.
— Talvez em vez de dizer que eu fiz isso apenas uma vez— Yorl diz com
uma careta. — considere tentar, eu já fiz isso antes. Dá um ar melhor de
confiança.
Eu rio, as vibrações machucando minha cabeça latejante. — E você
saberia tudo sobre isso. Não é de admirar que você seja o homem esperto de
Varia.
— Prefiro o termo 'polímato da Princesa Herdeira'.
— Você é? — Eu arqueei uma sobrancelha e fico com pernas irritadas. —
Um polímata?
Ele zomba, o som quase como um ronronar. — Absolutamente não. Os
cavanosianos não acreditam que o célebre seja outra coisa que guardas e
mercenários. A desconfiança deles em relação à magia significa que eles nos
acham inerentemente incapazes de ter pensamentos confiáveis, considerando
que as bruxas nos deram senciência. Eu não tenho cinto de ferramentas. Eu
não estudei nos Arquivos Negros. Sou autodidata.
Eu assobio baixinho. — Autodidata, e você criou este soro Vetrisiano
antigo que ninguém mais conseguiu em mil anos? Considere-me
completamente intimidada.
Em vez de aceitar com orgulho o elogio, ele fica furioso. — O avô fez a
maior parte do trabalho e não recebeu nenhum crédito – nem dos colegas nem
dos Arquivos Negros.
— Ah! Então aqui está você, determinado a conseguir isso para ele.
Yorl me olha com seus olhos verdes incandescentes, suas pupilas felinas
enormes na penumbra, mas não diz nada. Finalmente, ele se vira e se afasta
em direção à escada em espiral que leva à superfície, e eu sigo. Ele me leva
de volta aos degraus, mas estou tão exausta de ser mastigada repetidamente
pela valkerax que tropeço em uma escada.
Sinto algo quente envolver minha mão imediatamente, muito volumoso
para ser dedos humanos. Almofadas de couro, as pontas das garras. Patas de
Yorl.
— Não fique para trás. — Sua voz é rouca.
Secretamente satisfeita, eu passo atrás dele. — Você poderia apenas dizer
'obrigado por salvar minha vida' como todo mundo faz.
Quando chegamos ao topo da escada e emergimos no salão branco
iluminado por mercúrio, ele me diz para encontrá-lo no mesmo local, no
mesmo horário de amanhã, e depois desaparece de volta para a escada escura.
Não suporto a ideia de ficar presa em uma penumbra mais abafada, então
decido voltar para o palácio em vez de sinalizar para uma carruagem,
engolindo ar fresco e quente o tempo todo.
Um passo.
Estou um passo mais perto do meu coração. A valkerax pode me matar
como quiser – mas não vou desistir.
Morrer dói muito menos do que mentir.
O pôr do sol é uma jóia laranja brilhante contra um céu com faixas de
ouro e platina. Eu percorro uma Vetris preparando a hora do jantar – o cheiro
de peixe assado e cerveja de cevada no ar enquanto multidões de
trabalhadores desarrumados se aproximam de casa.
Ultimamente, a carne tem sido escassa, com a maioria dos caçadores de
caça não querendo fazer a longa e perigosa jornada para Vetris, e as
caravanas diminuindo devido a evitar as estradas florestais – qualquer chance
de encontrar uma bruxa e seus Sem Coração um medo constante. Tudo isso
significa que os vendedores de carne vendem restos de lebre e não muito
mais, enquanto os vendedores de legumes florescem – vendendo cabeças
mais baratas de folhas de açúcar e grandes buquês de cogumelos vermelhos
de verão. Os vendedores de peixe estão em situação ainda melhor, com
poleiros gordos e peixes chatos e oleosos dos rios da cidade.
Por um segundo, eu me preocupo que Varia não será capaz de obter os
órgãos brutos que eu preciso, mas então eu lembro que ela é uma Princesa.
Tudo o que ela quer é dela, mesmo com a guerra se aproximando. E enquanto
os órgãos de peixes não me saciam muito, eles fariam uma pitada. Ainda
assim, não consigo deixar de ler muito à frente e nas entrelinhas – se uma
guerra começar, não demorará muito para que o suprimento nativo de peixe
de Vetris seja esgotado.
E é aí que o verdadeiro horror começa. A guerra é aterrorizante. Mas
agora estou melhor do que qualquer um que a fome seja a verdadeira coisa a
temer.
Apesar dos meus pensamentos sombrios, delicadas gotas de pólen branco
de verão flutuam pesadamente ao vento, misturando-se com as grandes
plumas de fumaça branca de mercúrio para envolver a cidade em uma névoa
escura. Eu tive minha perna arrancada por uma valkerax há apenas meia hora.
Ainda estou viva, apesar de ter enganado a corte real que domina essas
pessoas. Nada parece real, como se eu estivesse nadando em um sonho.
Um rosto familiar me leva de volta à terra. Ali, em uma parede de pedra
coberta de pôsteres de procurados, há uma longa fila de pôsteres alinhados
um ao lado do outro com o rosto de Y'shennria pintado neles. Seus olhos
rígidos e cabelos inchados me encaram, a cicatriz em seu pescoço tão bem
desenhada que sinto um toque de nostalgia. É como se dez deles estivessem
aqui, cada um me encarando, cada um decepcionado comigo pelo quanto eu
estraguei todos os seus esforços desesperados para parar a guerra. Caçadores
de recompensas permanecem na frente de seus cartazes, armados até os
dentes com espadas, facas e bestas. Ela está segura, espero – desde a guerra.
Ela tem que estar.
— Se você pudesse me ver agora — murmuro para ela, e vislumbro meu
eu manchado em uma janela que passa. — Você... bem, eu prefiro que você
não me veja agora, na verdade.
Eu aliso meu cabelo em uma tentativa pálida de me fazer parecer uma
apresentadora de Y'shennria. Os caçadores de recompensa partem,
eventualmente, indo para tabernas e pousadas para passar a noite. Olho por
cima do ombro para um lado e para outro, e quando tenho certeza de que não
há guardas da lei, rasgo todos os pôsteres de Y'shennria, rápida e
furiosamente. Fragmentos de pergaminho caem como flocos de neve
irregulares. Minhas botas param antes do último pôster dela. Eu tiro esse com
o maior cuidado possível. Abro o lenço de Lucien e dobro os dois no meu
bolso.
Agora, sabendo que as pessoas me conhecem, alguém com uma túnica
cinza simples chama minha atenção. Eles estavam me assistindo rasgar os
pôsteres, tenho certeza disso. Vislumbro cabelos brancos no capô, uma boca
cruel e familiar, mas quando os ligo eles começam, desaparecendo na
esquina.
Isso não é... Isso não pode ser...
Antes que minha mente possa tomar uma decisão melhor, meu corpo
desliza após a trilha do manto cinza. Eles carregam uma cesta enorme no
braço, cheia de coisas que parecem pães, e eu vejo o manto cinza parar perto
de cada amontoado de crianças vagabundas e sem-teto e oferecem a cesta
para elas. Eles mergulham com fome no pão, olhando para cima como se não
tivessem certeza de que ele vem sem custo, mas a túnica cinza simplesmente
oferece.
Eu os sigo até que a cesta esteja quase vazia, pelas ruas mais sinuosas de
Vetris, e depois de passarem por uma casa em ruínas de tábuas finas e janelas
de gaze, elas congelam em uma pequena passagem, virando-se para mim.
Eles não abaixam o capuz, mas levantam a cabeça e eu posso ver seu rosto
claramente.
A cruel boca torcida, o nariz digno, os olhos lacrimejantes. Seu cabelo é
branco-prateado e curto, e a barba é ainda mais curta no queixo enrugado.
— Gavik? — Eu assobio por entre os dentes. — O que você é...?
— Você tem a pessoa errada. Meu nome é Kreld. — Gavik diz
instantaneamente, quase rápido demais, como se estivesse desviando essa
pergunta com freqüência. Ele respira. – Você. O que você quer?
Ele parece irritado. Não está furioso, como eu esperaria que ele soasse ao
encarar o assassino.
— Oh, nada. — cruzo os braços atrás das costas. — Estou apenas
seguindo um cidadão particularmente caridoso de Vetris e vendo-o trabalhar.
— Você acha que eu distribuiria comida para esses insignificantes vilões
por minha própria vontade? — Ele rosna.
— Não por qualquer extensão da imaginação. — Eu me inclino.
O rosto de Gavik se contorce, seu olhar apontado para a cesta como se ele
não quisesse nada além de queimar a coisa. — Eu poderia estar fazendo
muito mais, mas essa... garota — cuspiu a palavra como veneno — me
ordenou que fizesse esse trabalho de denegrir, dia e noite sem descanso.
Ah, é por isso que ele está aqui. Ele foi comandado. O poder foi
dominado sobre ele como ele dominou toda a cidade de Vetris. A fúria está
gravada em cada centímetro de seu rosto, e tenho um orgulho doentio em
saber que não há nada que ele possa fazer sobre isso.
Ele não conseguia parar, mesmo que quisesse. A ideia de uma bruxa
comandando um Sem Coração completa e totalmente ainda me deixa
enjoada, mas isso parece merecedor.
— É por isso que você não está tentando arrancar minha garganta agora?
— Eu pergunto. — Porque ela ordenou que você jogasse bem?
Gavik apenas brilha, mas é confirmação suficiente. Varia o condenou por
seus crimes de uma maneira que ninguém jamais pôde quando ele era
humano. Ele era o arquiduque Gavik – o homem mais poderoso de Cavanos,
que é o país mais poderoso do continente da Névoa. Ele estava acima da lei.
A Princesa pode estar balançando meu coração cruelmente na minha frente,
mas ela também está punindo alguém que nunca teria sido diferente. Metade
de mim está amarga com ela, e a outra metade está totalmente encantada.
— Na verdade, arquiduque. .. — Eu mantenho seu antigo título como
uma navalha enquanto sorria para ele. — Se eu estivesse no seu lugar, ficaria
agradecido. Distribuir pão dificilmente sobrecarrega o trabalho. Afogar
publicamente pessoas inocentes exige muito mais esforço.
O rosto dele fica em branco. — Afogamento? O que você…?
Ele para. Ele não lembra a vida humana. Ele não se lembra por que está
sendo punido. Ele foi mandado para essas ruas sem saber quanto dano ele
causou às pessoas que vivem nelas. Eu gostaria que ele se lembrasse. Eu
gostaria que ele soubesse o que tinha feito para que ele pudesse aprender.
Mas pessoas como ele – pessoas com ódio nas veias – nunca aprendem
realmente, aprendem?
— A fome nunca sai, você sabe — eu digo. — Ela fica mais calma, mas
nunca, nunca vai embora.
Gavik não fala nem por um momento, e os olhares de um casal que passa
o obrigam a aproximar cautelosamente o capuz do rosto.
— Você nem se lembra de afogar essas pessoas — continuo. — Mas você
fez. Eu vi você fazer isso na primeira vez que vim aqui. Você manteve esta
cidade sob seu controle, aterrorizada com o fato de que uma palavra errada,
um movimento errado, teria matado todos eles. Esse é o tipo de pessoa que
você era como humano. Um tirano. Um assassino em massa. E nunca vou
deixar você esquecer.
Afasto-me dele com uma satisfação sombria no peito, mas ela desaparece
quando passo pelo Templo de Kavar e vejo as casas arruinadas e enegrecidas
– ainda chamuscadas pelo falso fogo de bruxa que Gavik plantou. Seus
crimes são muitos, e mesmo que ele não se lembre deles, puni-lo por eles é
justiça. Mas isso nunca trará de volta as pessoas que ele matou.
Eu cerro meus punhos. Eu matei quatro homens. E eles nunca vão voltar
também.
tão medrosos eles estavam, quando viram o fim de suas
vidas chegando, a fome transborda entre meus ouvidos. tão
medrosos quanto essas pessoas estavam sob o domínio do
arquiduque. como você pode odiá-lo, quando você faz o mesmo?
O sol moribundo flui nos meus olhos, e eu saúdo a queimadura.
Meus crimes são muitos, mas não há bruxa que me force a expiar.
Se ninguém vai me punir, então eu mesmo devo fazê-lo.
— Zera!
Essa voz nunca em um milhão de anos eu achei que eu iria ouvir essa voz
chamar meu nome. Eu me viro para ver Gavik se aproximando de mim, com
o capuz ainda perto, mas a cesta agora vazia. Livre de seu dever, ele sem
dúvida foi finalmente capaz de me perseguir. Eu torço meu nariz em desgosto
com a mera visão dele.
— O que você quer?
Ele se aproxima de mim, inclinando-me enquanto eu me afasto, sua
respiração cheirando a vinho rançoso. Sem dúvida, ele descobriu que o vinho
é uma das poucas coisas humanas que podemos consumir sem chorar sangue.
De perto, ele parece tão abatido – as sombras profundas sob seus olhos são
mais profundas, sua barba emaranhada e manchada de poeira e detritos, seus
olhos azuis lacrimejantes brilhando na pele manchada de lama. Não tenho
certeza se Varia não ordenou que ele não pudesse se limpar.
— Eu sei. — diz ele, baixo e rápido. — A Árvore dos Ossos. Eu sei disso.
Eu sei o que ela planeja fazer com isso.
— Você aprendeu sobre isso depois que perdeu seu coração?
Porque você não deve se lembrar de nada da sua vida antiga.
— Eu não... — Ele estremece. — Eu não sei. Não sei por que me lembro
disso e mais nada. Lembro-me da Árvore dos Ossos, mas todo o resto... está
perdido. Mas Varia me contou algumas coisas. Ela me disse que eu tentei
matá-la. E tenho certeza de que foi por causa da Árvore dos Ossos.
Eu congelo até o último movimento dos meus dedos. Eu sei por que ele
tentou matar Varia – Fione me disse que era porque ele queria a espada de
mercúrio branco de Varia. E porque Varia estava sempre atrapalhando seus
planos para ganhar mais influência. Mas isso não muda o fato de ele não se
lembrar de nada.
— Você sabia sobre a Árvore dos Ossos em sua vida humana?
— Eu sussurro, e ele assente.
— Sim. Não sei como ou por quê. Mas estou certo de que teria anotado. O
desejo de manter um diário está fluindo através de mim agora mesmo, pois
sou um monstro sanguinário, mais forte que um hábito de fumar. Todas as
minhas memórias – devo tê-las anotado em algum lugar.
— Você tentou matá-la — rosno. — porque ela tinha uma espada que
você queria. Porque ela se opôs a você.
Ele solta uma risada desagradável. — Você realmente acha que eu passei
anos tentando matar uma garotinha porque estava irritado com ela? Porque
eu queria uma arma insignificante da Guerra Sem Sol? Posso ter perdido
minhas memórias, Zera, mas sei o que faria e o que não faria.
Eu sou o mesmo. Eu odeio em meus ossos até admitir, mas sou igual a
ele. Não tenho lembranças da minha vida antiga, mas sei do que sou capaz.
Quem eu sou nunca mudou, apenas o que eu lembro.
Olho em volta para a multidão que passa, cuidadosa para murmurar: —
Dificilmente é uma arma insignificante quando pode parar um Sem Coração.
— Muitas coisas já podem parar o Sem Coração, sua idiota patética. —
Gavik insiste. — Fogo. Matando a bruxa deles. Mercúrio branco puro
bombeado em suas veias atua quase tão bem quanto qualquer espada de
mercúrio branco, ou pelo menos ouvi dizer os polímatas nas ruas. Não – eu
não tentei matá-la pela espada. Eu tenho certeza disso.
A confusão me enraíza no lugar. — Então o que...
— A Árvore dos Ossos. — interrompe Gavik, seus olhos se voltando para
os meus. — Você entende? Deve ter sido para a Árvore dos Ossos. Deve ser
importante, se me lembro até agora.
— Porque você também queria. — eu respondo. — Você queria o poder
dela...
— Não. — Ele balança a cabeça, seu olhar agora vidrado e focado ao
longe. — Não, não é isso. — Ele luta, seu rosto se contorcendo com seus
esforços. — Não me lembro. Porra, não me lembro !
Seu grunhido reverbera, e uma mãe passageira puxa seu filho para mais
perto. Gavik zomba da criança e olha de volta para mim.
— Não me lembro. Mas há um sentimento terrível dentro de mim. Como
se estivesse perdendo algo crucial. Algo vital.
Eu zombei. — Você tem certeza de que não é apenas indigestão, Sua
Graça?
Ele cospe então. Bem na minha cara.
Limpo a umidade com a gola da minha túnica, e o olhar que lanço a ele
queima mais quente que o sol e mais sujo que uma pilha de lixo sob o sol.
— Ria o quanto quiser — diz ele. — Ria do que eu fiz, zombe de mim
tanto quanto seus desejos insensíveis. Mas quando Varia a trair, você virá
rastejando para mim. E não te darei nada.
Antes que eu possa responder, ele se vira e se esconde em um beco
escuro, com o cesto nas mãos de nós dos dedos brancos.

Não deixo que as palavras de Gavik me assombrem mais do que o necessário.


O homem não pode ser confiável. O nome de Malachite para ele soa na
minha cabeça – ele é um velho genocida.
Ele odeia Varia, eu e todas as bruxas de Arathess. Tudo o que ele diz é
despeito, não verdade. Ainda assim, é estranho que ele se lembre da Árvore
dos Ossos de sua antiga vida. Não é apenas estranho, mas é impossível. Sem
Coração se lembra muito, se é que lembra alguma coisa. Geralmente, são
apenas pedaços de memória confusos – nada sólido. É muito mais provável
que Varia tenha deixado escapar algo sobre a Árvore dos Ossos depois que
ele foi trocado.
Não há banquete hoje à noite no palácio, então os corredores não são tão
movimentados. Dou um passo para o corredor da frente quando Ulla, a Líder,
se aproxima de mim, com o coque apertado e os olhos abatidos enquanto ela
se curva, o manto de ouro em volta dos ombros que indica sua posição
brilhando ao pôr do sol.
— Lady Zera. A Princesa Varia pediu que eu lhe ofereça esse agasalho
quando e se você voltasse pela entrada principal.
Ela mantém aberta uma túnica azul escura, os poucos nobres espalhados
andando atrás dela e nos jardins no andar de baixo, lançando olhares em
minha direção. Minha túnica está manchada de lama e sangue e, embora não
preste muita atenção no bairro comum, ela faz aqui. Os rumores podem
começar rapidamente se eu não me esconder o mais rápido possível.
— Lady Zera, por favor — Ulla insiste, segurando o manto mais alto. —
Você tem uma reputação para manter.
— Eu? — Eu sorrio para ela.
— Você é uma noiva da primavera e também a favorita do Príncipe
Lucien.
Seu comentário age como uma flecha farpada, se instalando
profundamente em minha carne e se recusando a ser puxado para fora. Não –
eu posso puxar esta flecha. Por mim mesmo. Eu tenho que, ou ele vai
apodrecer no amor novamente.
— Eu era. — eu concordo, dando um tapinha no ombro dela e passando
por ela. — Eu não era?
Eu ando pelos corredores com minha túnica manchada, ignorando os
suspiros suaves dos nobres quando eles me vêem. Tão chocados ficam com a
visão do sangue que várias mulheres até desmaiam, uma delas com frio no
tapete quando me aproximo.
Jovens amordaçados de crianças nobres param e olham para mim,
apontando descontroladamente. Estou imundo entre os cristais brilhantes.
Estou manchado de sangue entre o mármore branco imaculado.
— Não é melhor do que a filha de um açougueiro!
— Ela acha que está lutando na guerra ou algo assim?
— … uma garota violenta!
— Uma coisa tão feia para uma noiva da primavera — Uma Princesa em
potencial do reino coberta de sangue?
Com cada palavra de nojo, posso sentir Lucien se afastando de mim. É um
pequeno passo. Ainda é possível, mas neste momento a desaprovação deles –
tudo voltará ao Rei. Este é apenas o primeiro incidente, mas quando eu
terminar, a corte se revoltará com o simples pensamento de me fazer parte da
família d'Malvane.
Qualquer influência que me resta como Noiva da Primavera, qualquer
ilusão que os nobres ainda mantenham comigo como a favorita de Lucien –
tudo vai secar.
Y'shennria me ensinou a importância de pequenas coisas, aparências,
rumores, e agora estou usando todo o seu conhecimento para fazer
exatamente o oposto do que ela ensinou: remover Lucien de mim, pouco a
pouco. Todo boato será uma gaiola para ele, e toda coisa escandalosa que eu
fizer será a fechadura impenetrável sobre a porta. Vou selá-lo no palácio
novamente, colocando toda a corte entre ele e eu.
Eu nunca vou tocá-lo novamente. E nem ele vai me tocar.
Seus dias de me enfraquecer acabaram.
Chego à Serpente Alada, e os guardas graciosamente me permitem abrir
dramaticamente as portas dos apartamentos de Varia.
Mas os quartos estão vazios. Ela se foi.
Uma nota repousa onde ela deixou meu vestido mais cedo, com uma letra
perfeitamente ondulada; Quando você voltar, junte-se a mim no campo de
tiro. Planejei um piquenique adorável.
Eu bufo. Que nobre da parte dela – um piquenique, enquanto eu estava
sendo devorada por uma valkerax no escuro. A Y'shennria em minha cabeça
insiste em que eu mude para um vestido adequado do armário mais jovem de
Varia para parecer apresentável, mas afasto o pensamento. A última coisa que
quero é parecer apresentável.
Quanto mais feia e selvagem, melhor.
Por isso, faço questão de sorrir e me curvar diante de todos os nobres que
estão a caminho do campo de tiro – o jardim cheio deles a essa bela hora da
noite escura. Os nobres têm o bom senso de garantir que seus sussurros não
me alcancem desta vez. Dessa vez, obviamente, eles foram avisados de mim
– espiando por cima de sebes e arbustos para dar uma boa olhada na
indignidade que estou cometendo por causa deles.
Como os jardins estão tão cheios, o campo de tiro está quase abandonado.
O zelador circula em torno dos alvos de cores vivas da área, acrescentando
novas camadas de tinta com um pincel de crina de cavalo. Pode-se dizer onde
está a Princesa pela comitiva de guardas – mesmo sendo a Princesa Herdeira
não pode libertá-la da ordem preocupada do Rei para proteger sua filha, para
que ela não desapareça novamente.
Eu sigo o brilho de armadura fielmente. Ali, na extremidade da
cordilheira onde a floresta começa, está Varia, sentada em um cobertor
listrado com uma variedade estonteante de frutas, vinhos e doces dispostos
diante dela. E, para minha surpresa, ela tem um convidado.
Observo a Princesa Herdeira levantar a mão, colocando um fio de cachos
de camundongo atrás da orelha de Fione. Observo também o rosto de Fione
se iluminar com um rubor rosado, um sorriso puxando seu rosto como as
pétalas de uma flor desabrochando. Eu nunca – nem uma vez – a vi tão
honestamente feliz. Ela não está dando os sorrisos sarcásticos de gatinho que
costumava dar, mas sorrisos verdadeiramente felizes.
— Zera. — Fione respira suavemente ao me ver, seus olhos azuis de
centáurea se arregalando com o estado da minha túnica, suas bochechas
rosadas e seu sorriso desaparecendo tudo de uma vez. Ultimamente, não fiz
nada além de roubar sorrisos das pessoas.
É uma pena que ela tenha me visto assim, toda ensanguentada, mas é um
sacrifício que estou disposta a fazer.
Varia também me nota, mas o sorriso dela não desaparece.
Suas mãos estão unidas no colo de Fione, mas se separam
instantaneamente, e sinto mais do que um pouco por interromper seu claro
afeto. Fione mexe com o que elas seguravam juntas – a bela adaga beijada em
ouro forrada com anéis de safiras e pérolas. Ela a enfia em uma crosta no
quadril. Essa é a adaga que Fione admiraria ao falar sobre Varia.
De todos nós, percebo agora que Fione teve o final mais feliz, e meu não-
coração pode deixar de brilhar para ela.
— Aí está você! Eu estava começando a me preocupar — a Princesa
Herdeira sussurra para mim e dá um tapinha no cobertor ao lado dela. Ela faz
uma pausa quando vê minha túnica. — Pensei que tinha dito para não
assustar meu povo com sangue. — Ela suspira. — Não importa, sente-se
conosco, sim?
Lanço meus olhos para o rosto de Fione, mas ela se recusa a olhar para
mim, seu rubor desaparecido há muito tempo. Ela se mexe na cadeira,
acariciando um polegar sobre o outro. É um movimento minúsculo, algo que
eu nunca pegaria antes do treinamento de Y'shennria – nervos. Sua recusa em
olhar para mim dói, mas não tanto quanto o fato de minha presença estar
começando a deixá-la insuportavelmente desconfortável de uma maneira que
não pode ser escondida por sua máscara nobre, normalmente perfeita.
— Eu realmente não deveria. — Faço um gesto para minha túnica.
Varia levanta uma sobrancelha. — Sente.
Fione de repente se levanta, apoiando-se na bengala para fazê-
lo rapidamente. — Eu devo ir. Obrigado pela comida, Alteza...
— Oh, por favor, Fione. Todos nós podemos compartilhar uma refeição
juntas, não podemos? — Ela pisca entre nós. Olho de relance para o rosto
conciso de Fione.
— Eu... — Eu engulo. — Eu gostaria, sim.
— Veja? Ela não quer morder você, Fione. — Varia ri. — Por favor,
sente-se.
Fione começa, desta vez girando. — Eu não posso...
Varia solta um suspiro explosivo. — Fione, Fione. Tão corajosa, tão
esperta e ainda tão assustada quando se trata de Sem Coração. Você já contou
a ela?
Meu estômago cai. Me dizer o que? Fione não vai nos encarar, ou mais
precisamente a mim, mas posso ver fracamente seus ombros magros sob o
vestido de musselina tremendo. Varia me olha intencionalmente, tomando um
longo gole de vinho.
— Sem coração é o seu maior medo. Não que eu a culpe. Os livros de
histórias e as canções dos bardos adoram fazê-los parecer assustadoramente
assustadores, não é?
As coisas se encaixam na minha cabeça como uma engenhoca de
polímatas começando. Por isso ela não me olhou no banquete. É por isso que
ela não pode me olhar agora. Eu pensei que era um medo do que tinha feito,
mas não. É um medo do que eu sou.
E isso dói muito mais fundo.
— Fione. — eu começo, minha boca se movendo enferrujada. — Eu
nunca te machucaria...
— Eu vi os veteranos da Guerra sem Sol, — diz Fione suavemente. — Os
homens com pernas e braços mastigados. A maioria deles não teve a mesma
sorte – alguns têm partes do tronco ausentes. Órgãos vitais, comidos. Eu os vi
morrer cedo, porque quase não resta fígado.
Eu engulo ácido, mas Fione continua, sua voz tremendo.
— A cicatriz de Lady Y'shennria. Você sabe como ela conseguiu?
Eu me preparo, amarrando minhas mãos no cobertor de piquenique para
obter estabilidade. — Não.
— Ela estava tentando salvar sua filha. Ela mostrou o pescoço para eles,
para que eles a procurassem.
Tudo dentro do meu peito despenca – e muito osso, cada músculo
subitamente fraco. Y'shennria nunca me contou. Ela fez alusão a isso, mas
nunca foi dito em palavras claras.
Eu sabia que ela havia perdido toda a família, mas esse nível de
brutalidade e sacrifício...
Fione gira, lentamente, seus olhos azuis cuidadosamente fixos nas minhas
botas enquanto ela fala. — Ela sabia que não havia nada que pudesse fazer
para detê-los. Eles sempre voltam. Eles sempre se curam, não importa quais
ferimentos se inflija. Ela não conseguiu revidar. — As mãos de Fione,
apertadas com força, são brancas até as veias. — Essa é a parte que eu tenho
medo. Não é a fome. Não é a forma monstruosa. Mas o fato de que não se
pode lutar contra eles.
Contra você.
o camundongo é esperto. A fome ri. Eu procuro por palavras, qualquer
palavra de conforto, mas nada vem. Qualquer tentativa seria oca; Eu sou o
monstro que ela teme.
— Fione, eu estou pedindo isso como um favor… — Varia se levanta,
dançando valsamente para nós dois com passos minuciosos.
Ela tira um pouco de seu vinho do cálice e para ao meu lado, levando os
olhos para os guardas. — Nos deixe.
— Mas, Alteza — um dos guardas começa. — Sua Majestade ordenou...
— Eu sei muito bem o que ele pediu — ela retruca, depois se compõe. —
Você ainda pode nos assistir. Mas você fará isso a partir da linha de tiro.
Ela aponta para a linha distante de trilhos onde o campo de tiro começa. O
guarda olha para os outros e, sem palavras, eles partem nessa direção.
Quando a cacofonia metálica desaparece, Varia volta o sorriso para Fione.
— Dê-me a adaga, Fi.
Fione olha para ela com os olhos arregalados. — O que?
— Nossa adaga. — Varia corrige. — Eu quero lhe mostrar uma coisa, e
essa espada no quadril de Zera não serve.
— Eu sei que está um pouco enferrujada, mas ainda corta tão bem quanto
qualquer faca de queijo chique. — Faço uma tentativa fraca de uma piada,
mas ela cai achatada – não faz com que Fione pareça menos séria. Ela
cuidadosamente desembainhou a adaga e a entregou à Princesa, sempre
tomando cuidado para ficar fora do alcance do meu braço. Varia inspeciona,
então entrega para mim, focando seu olhar escuro no meu.
— Se você tocar em Fione, encontrará imediatamente um lugar isolado
e usará o objeto afiado mais próximo para se esfaquear três vezes no
estômago. — O comando e a fome aumentam como um na minha cabeça. Os
olhos de obsidiana de Varia perdem a intensidade quando ela se vira para
Fione com um sorriso. — Lá. O estômago deve ser um local bastante
doloroso.
Os tremores de Fione só pioraram, os lábios de botão de rosa
empalidecendo. — Varia, como você pôde?
— Silêncio. — Varia a repreende. — Isso é para sua paz de espírito, tanto
quanto a minha. Não vou permitir que ela ou qualquer outra pessoa te
machuque. Continue. Experimente. Tocá-la.
Fico parada, petrificada. Fione olha nervosamente entre Varia e meus
sapatos, depois volta para Varia novamente, com as bochechas mais brancas
que a primeira e o pequeno corpo tremendo incontrolavelmente. Ela está
nervosa, mas não surpresa, o que significa que Varia já lhe disse sobre ser
uma bruxa.
o medo dela é doce. A fome lambe seus lábios. Ela está certa em me
temer, temer esse vazio dentro de mim.
Ela está certa em temer, mas não deveria. Ela foi a coisa mais próxima
que eu já tive de um amigo. Ela não merece ser mantida em cativeiro pelo
medo. Ela tem que ver quanto controle Varia e o comando têm sobre mim.
Ela tem que ver que está segura.
Com minhas mãos estendidas, eu me aproximo dela. Ela se afasta tarde
demais – meus dedos roçando seus cachos marrom-rato.
O comando me deixa com as mandíbulas no tempo que leva para piscar,
envolvendo os tentáculos nos meus braços e pernas e forçando-os a se
moverem em direção à floresta que toca no campo de tiro. O comando deve
pensar que o relativo isolamento das sombras entre as árvores é bastante
isolado, porque eu ando rápida e propositadamente pela grama, por cima da
manta de piquenique, em torno de troncos e galhos até ficar sozinha.
Minhas mãos erguem a adaga adornada por conta própria, e respiro fundo
e assisto a bela ponta da lâmina beijar o tecido sobre o meu estômago. Eu me
preparo, mas Varia estava certa – o estômago é um lugar horrível para ser
esfaqueado. As coisas tendem a se romper e torcer, e o sangue se acumula
nas cavidades abdominais.
Cerro os dentes e assisto a adaga voar, uma, duas vezes, três vezes, e a
última facada pega algo vital em mim e minhas pernas se dobram com a dor.
Minha bochecha pressiona as agulhas de pinheiro, subitamente quentes e
úmidas do meu sangue, e meus olhos começam a escurecer como meus
ouvidos.
O som de um suspiro horrorizado cortou sons curtos na floresta, e então a
voz calma e fraca de Varia.
—...veja, isso a impedirá de tocar em você. Você não tem nada a temer,
Fi. Ela é minha. A magia a fez minha. E nunca vou deixá-la te machucar.
9

Vidro
e Ossos

A magia da Filha Risonha é tão incrivelmente forte que estou quase ofendida
por ela. Não me dá tempo para me sentar e definhar com dor e fazer um
banquete de pena para mim mesma. As três facadas no meu estômago se
juntam, a pele esquentando nas bordas, onde ela se envolve. Essas pequenas
linhas de calor são o que me arranca do precipício branco da morte e me leva
de volta à não-vida. Eu rastejo de joelhos, deslizando sobre as agulhas de
pinheiro enquanto procuro por Varia.
Acho minha bruxa (deuses, tão estranho chamá-la assim) ociosamente
sentada em um tronco a poucos passos de mim, seus calcanhares batendo na
madeira como uma criança impaciente. Eu vasculho a floresta ao seu redor.
— Só você? — Eu começo. — Que decepcionante festa de boas-vindas de
volta.
Varia de ombros, lençóis da meia-noite caindo sobre seus ombros. —
Fione saiu. Ela viu seu corpo e correu na outra direção, parecendo doente.
— Coitadinha — murmuro. — Provavelmente é melhor assim.
Nenhum humano gosta de ver a carne se recompor novamente Mas pelo
menos agora ela sabe – não posso tocá-la sem consequências muito
dolorosas. Isso deve facilitar a mente dela, pelo menos um pouco, e isso, por
sua vez, me faz sentir um pouco melhor com tudo isso.
Varia limpa a garganta. — Agradeço o gesto, a propósito.
— Qual? Os moribundos? — Eu tiro a sujeira da minha boca e
movimento para a minha túnica que agora está horrivelmente sangrenta. —
Ou bater seu lindo piquenique enquanto coberta de sangue?
O sorriso de Varia está estranhamente ausente enquanto ela fala, seus
lábios arregalados sérios. — Você estendeu a mão para tocá-la primeiro. Não
estava gostando da ideia de ordenar que você o fizesse.
— Porque é aí que você desenha a linha. — Eu bufo.
Os olhos de Varia brilham como fogo de bruxa preto. — Fione é meu
coração querido. Obviamente, é onde eu...
— Ela é uma garota de dezoito anos que nunca deixou a influência da
corte. — respondo. — E você é uma bruxa de 21 anos que planeja usar o
exército mais aterrorizante do mundo contra ele. Ela passou cinco anos
procurando por você. Lucien passou cinco anos. Ambos sofreram
horrivelmente por cinco anos por sua causa.
Varia de repente ri, o som amargo. — Oh, isso é rico. A Sem Coração que
ganhou sua confiança e depois os traiu – me ensinando sobre machucá-los?
Você é realmente a única nobre engraçada de Vetris, Lady Zera.
Meu sangue ferve do jeito que ela diz. Eu trabalhei duro para Y'shennria
ser chamada assim. Ela estava orgulhosa de mim. Não importava o tamanho
da fachada, eu a ergui com meus dois braços.
Eu ganhei esse título.
— Você já disse a ela? — Eu retrocedo. — Você já disse a Lucien o que
vai fazer com a Árvore dos Ossos? Ou você está mantendo isso em segredo
também, para que eles sofram quando você se transformar da noite para o dia
na pessoa mais poderosa e aterradora do mundo?
Há aquela cinza de enxofre nos olhos dela – o mesmo que o de Lucien. Eu
inspiro imenso.
— Eu posso ter traído eles. Mas pelo menos não os abandonei.
Ela se levanta abruptamente do tronco, as saias rodopiando. — Eu estou
protegendo eles!
Minha boca fica silenciosa quando o peito de Varia sobe e desce com a
respiração furiosa. Ela brinca, sorri, desvia, mas não fica com raiva de
verdade. Até agora.
— Sou eu quem interromperá a eterna espiral da guerra em Cavanos. —
diz a princesa, mais suave, mas com uma vantagem menos dura. — Porque é
o que deve ser feito. Mas farei isso sozinha.
— O mundo vai ter medo de você — rosno. — E tire isso de mim,
princesa – isso sempre leva ao ódio.
— Então eles vão ter medo de mim. — Ela levanta o queixo altivamente.
— E eles vão me odiar.
Eu quase solto uma risada então. A teimosia deve ser espessa e inegável
no sangue d'Malvane.
— Você poderia chamar de uma trégua, — eu pressiono. — Você é a
Princesa e uma bruxa. Você seria a pessoa perfeita para negociar uma
conversa de paz, como embaixadora dos dois...
— Então é isso, Zera? — Varia corta minhas palavras. — Para que um
humano ignorante em uma aldeia possa 'acidentalmente' afogar uma bruxa
um dia, e Cavanos possa voltar à guerra em dez anos? Não.
— Mas... elevando a valkerax.
— Eu considerei tudo. — ela me interrompe friamente. — E esta é a
melhor opção.
— Melhor? — Desta vez eu solto uma risada, embora pareça meio
histérico. — Que louco pensaria que comandar um exército devastador de
valkerax é a melhor opção?
Varia está quieta, o vento da floresta brinca com seus cabelos e depois: —
É isso que a Princesa deve fazer pelo seu povo.
O gigante azul em ascensão pega seu rosto, envernizando sua pele
dourada com um azul claro. Seu nariz orgulhoso brilha, suas sobrancelhas
franzidas e uma determinação feroz está gravada em todos os poros, e ainda
assim seus olhos são penetrantemente lúcidos. Onde Lucien é um falcão que
caça para sempre, ela é uma coruja – assistindo, esperando, uma sentinela à
noite.
Estou impressionada por um momento. Eu a vejo pela primeira vez como
um jovem Lucien. Agora entendo por que ele a admira tanto. Por que ele
pegou o manto de Whisper para tentar contemplar seus ideais enquanto ela
estava fora. Lucien cresceu à sua imagem ao longo dos anos em que ela se
foi. Ela é um pilar de convicção, um pilar iluminado por chamas e ardendo
sozinho na noite.
O momento passa e Varia enfrenta seu eu cru com um sorriso.
— Como foi sua primeira sessão de valkerax?
Eu administro uma inspiração. — B-bom. Eu morri duas vezes, mas isso é
apenas negócios, como sempre.
— Você acha que pode ensinar? — Ela pergunta.
— Nenhuma ideia. Mas vou me matar tentando.
Não é minha piada mais forte, mas ganha uma pequena risada da
Princesa, dando um suspiro de leviandade ao ar denso. O vento assobia
através das árvores e entre nós, e finalmente ela se vira para sair da floresta.
— Papai está planejando ligar para você em breve para questionar sobre a
morte de Gavik.
— Vachiayis. — Eu expiro o palavrão.
Varia pressiona. — Eu evitaria dizer a verdade sobre quem o matou. Se
Gavik era ou não um perigo para mim, se você disser ao pai que matou um
nobre de sangue, ele é jurado como Rei para puni-la adequadamente. Mesmo
eu não seria capaz de contornar isso. E, é claro, não é preciso dizer: se você
disser ao pai que sou uma bruxa, nunca conseguirá seu coração.
Eu engulo em seco, e Varia levanta uma mão em despedida, ela se afasta
em direção ao seu anel de guardas. Saio e olho para a manta de piquenique
abandonada, desgrenhada, mas ainda bonita, e faço o que qualquer escravo
morto-vivo sã prestes a ser julgado por sua não-vida faria.
Pego a garrafa de vinho meio vazia e a engulo.
Naquela noite, eu tenho esse sonho novamente.
Estou andando no Salão do Tempo, o vitral me abraçando com cores
brilhantes de todos os ângulos. O vitral conta a história de Vetris em detalhes
perfeitos – de como ela foi construída pelos vetrisianos antigos, de como os
cavanosianos lutaram contra o país vizinho de Helkyris, do Deus Velho e do
Deus Novo em guerra; os humanos e os célebres contra as bruxas e seus Sem
Coração.
Reconheço que já tive esse sonho – fracamente, no fundo da minha
mente, enquanto observava a história passar, lembro-me desse sonho. Na
última vez, o Salão do Tempo se fragmentou, e eu me arrastei pelos
estilhaços para alcançar dois rosários com árvores, tão convencida que se não
os alcançasse, algo horrível aconteceria.
Mas esse sonho é diferente.
Além do vitral, há uma sombra escura. Galhos estendidos. Uma árvore.
Por essa lógica totalitária convincente que se tem em um sonho, eu sei que a
árvore fora do Salão do Tempo está sozinha.
Sinto a solidão emanando fisicamente de como ondas, repetidas e
inegáveis. Meu não-coração se importa com isso, por quão desesperada e
profunda é a sua solidão.
De repente, há um rugido bestial estridente, e o Salão do Tempo implode
sobre si mesmo acima de mim, ao meu redor. O vitral se fragmenta em um
milhão de pétalas brilhantes de todas as cores do arco-íris. Nítidos, eles me
cortaram no caminho, marcando minhas bochechas, minhas mãos viradas
para cima.
Por fim, não há Salão separando a árvore e eu. É uma árvore nua, escura e
pequena e ainda jovem, pouco mais alta que eu.
Eu corro em direção a ela, os cacos de vidro rasgando meus pés. Sangue
por toda parte. Mas os fragmentos manchados de sangue começam a se
mover como eu, correndo mais rápido do que nunca em direção à árvore de
seu livre arbítrio, arrastando linhas vermelhas do meu sangue no chão atrás
deles. Eu corro, mas os cacos de vidro correm mais rápido, chiando um
contra o outro como sinos de vida curta, como milhares de pássaros. Eles
alcançam a árvore primeiro, e eu observo enquanto eles se acomodam no
tronco, prendendo-se a ele como se quisessem ser a casca. Como peças
caóticas de quebra-cabeças, elas se reúnem sobre a árvore como armaduras.
Toda a história de Vetris, fragmentada e quebrada, brilha nos galhos e se
enrosca nas raízes. A árvore brilha tão intensamente que estou quase cega,
meu sangue cai no vidro, a única coisa que ousa entorpece-la.
Ainda assim, as ondas de solidão da árvore não diminuem.
Ainda assim, estendo a mão e, de repente, de repente, como mil lanças de
um exército, todos os cacos de vidro se erguem como espinhos e apontam
para o meu rosto.
Eu acordo no sofá de Varia coberta por um suor frio e úmido.
Meus olhos embaçados focam na sala, e eu olho para as lindas cortinas de
seda, as pinturas em folha de ouro, a pura beleza do quarto da Princesa para
me aterrar, forçar-me a me acalmar. Minha respiração diminui lentamente
enquanto meus olhos bebem com a vista deslumbrante da varanda de
mármore branco ao luar.
Eu pisco quando encontro alguém de pé, seus longos cabelos negros
soltos e emaranhados como se tivessem acabado de acordar.
Varia. Ela está de camisola de musselina, olhando para longe de mim e
em direção à meia-lua do Gigante Azul no céu. Sento-me para ver o rosto
dela e congelo.
Seus olhos estão vidrados, longe. Todo o seu corpo está parado,
balançando suavemente de uma maneira que nunca vi antes.
Ela sempre se destaca, sua postura perfeita. Mas não são os olhos dela
nem o corpo que mais me assusta.
É a boca dela. Sua boca está se movendo, rápida e silenciosamente. A
princípio, acho que ela está lançando um feitiço, aqueles feitiços sem
palavras que somente o Deus Antigo pode ouvir.
Mas então, lentamente, levanto-me do sofá e fico na porta da varanda, e
ouço suas palavras monótonas.
— A árvore. — diz ela. — A árvore... a árvore. A árvore.
O terror me domina, irracional e forte demais. Como ela sabe o que eu
sonhei? Ou ela está sonhando também?
Afasto-me da varanda, envolvo-me em um cobertor de pele de raposa e
passo o resto da noite no corredor com os guardas inquestionáveis.

De manhã, Varia já se foi. O que eu diria? Que eu a vi na varanda sendo


objetivamente perturbadora? Que eu também sonho com uma árvore? Na fria
luz da manhã, meu medo parece infantil e irreal. Então eu empurro para longe
para me concentrar na realidade à minha frente.
Espero o Rei me chamar. Esperar é a pior parte da vida; parece andar
sobre uma cama de unhas enferrujadas, cada passo doloroso.
Mas o Rei não me chama. Primeiro, ele chama pelo seu exército.
O Rei Sref envia um aviso para a maior parte do exército vetrisiano para
se reunir na capital. Ele também chama os fazendeiros e os comerciantes para
consolidar os recursos em Vetris – em pouco tempo as ruas se aglomeram
com vagões de grãos indo e voltando para as torres de armazenamento. É um
lembrete sombrio de que posso me esconder de todas as minhas
preocupações, mas a guerra lá fora avançará inexoravelmente.
Varia mal volta para o quarto dela – seja em reuniões com ministros ou
com Fione passando algum tempo juntas na biblioteca – o que significa que
tenho livre controle dos apartamentos. Se eu quisesse parecer adequada ao
tribunal, voltaria à mansão de Y'shennria para viver. E tenho certeza que
Varia ficaria bem com isso.
Mas morar naquela mansão vazia, cheia de tantas lembranças, me
atormentaria. Eu sei disso. Então eu fico entre as sedas e o mármore,
observando a madeira escura de longe. Os nobres aprovam o máximo que
podem – provocando Varia por ter pena de mim quando Lady Y'shennria
praticamente me abandonou.
Fione me evita a todo custo, disparando quando entramos nos mesmos
aposentos, dando desculpas murmuradas para fugir de qualquer situação
social em que eu exista. Malachite ainda não me olha bem quando estou por
perto. Lucien, por outro lado, age do contrário. Ele olha quando eu passo e
faz questão de me dar o sorriso mais irritante e apaziguador que eu já vi cada
vez que nos encontramos nos corredores. O tipo de sorriso que ele dá às
pessoas que ele não gosta. Eu coço, queimo como um fogo ácido sob a pele –
um fogo do qual não posso escapar, não importa para que lado eu vire ou até
onde chegue. Ele se dirige a mim uma vez, quando nos encontramos na
escada da entrada do palácio – eu indo para a valkerax, e ele voltando da
viagem, com os cabelos suados e as bochechas coradas.
— Lady Zera. — Ele sorri amargamente, com a jaqueta de montaria
debaixo do braço. — Espero encontrar você bem.
É uma coisa tão banal de se dizer, uma risada furiosa começa a borbulhar
em mim. É para garotas muito mais crédulas do que eu. Garotas muito mais
jovens que eu. Garotas muito mais humanas do que eu. Não é uma
brincadeira; é um insulto. E nós dois sabemos disso.
Seu sorriso desdenhoso me afasta, a camisa branca agarrada aos músculos
do braço, me puxando para dentro. Seu rosto está bonito como sempre, mas
seu sorriso falso não é suficiente para esconder os círculos levemente roxos
sob seus olhos. Eu pisco, jogando-lhe um sorriso mais brilhante do que
nunca, construído com vidro puro de raiva.
— Você me achou incrivelmente bem, Alteza. O que posso fazer para
retribuir sua gentileza indagadora?
Isso não o joga. Claro que não. Ele passou por esse tipo de troca a vida
toda. Ele pisca e passa a mão pelo cabelo preto curto, bagunçando mais.
— Seu sorriso, Lady Zera. — diz ele, a voz pingando de maldade
amarrada a mel. — Isso é tudo que eu pediria a você.
Por um segundo, não tenho ideia do que fazer ou dizer. Pela primeira vez,
sinto como se estivesse lutando contra ele como um igual. Nós dois estamos
aqui de pé, sorrindo um para o outro, sabendo exatamente o que nós dois
somos. Não sou mais eu o enganando, sempre com segredos na minha
manga. Somos nós dois em pé de igualdade.
Finalmente.
Seus olhos escuros me seguram. Ele ganhou desta vez. Eu posso sentir
isso enquanto ele se afasta – seus ombros largos e orgulhosos. Ele ganhou
algo invisível de volta de mim. Algo que eu nem sabia que tinha tomado.
Eu permaneço nos degraus, olhando para onde ele estava parado. Se eu
tivesse um batimento cardíaco, sei que seria dolorosamente alto em meus
ouvidos.
Às vezes, vislumbro Lucien ao redor do palácio com Varia.
Geralmente os dois são acompanhados por Fione. Eu os vejo caminhar
pelos jardins, rindo e provocando um ao outro. Varia coloca margaridas atrás
da orelha de Lucien e ele sorri timidamente. Fione tropeça em raízes ou
passarelas de tijolos, e Lucien estende a mão para pegá-la antes que ela caia.
Varia nunca hesita em beijar a mão de Fione em todas as oportunidades. Eles
andam a cavalo, Lucien desafiando sua irmã para uma corrida. Fione insiste
em andar no mesmo cavalo que Varia, agarrando-se às costas dela por sua
vida com um rubor deliciado em suas bochechas.
Eles estão felizes. Lucien está mais feliz do que eu já o vi antes.
Sinto-me de alguma forma culpado por vê-los assim. Mas é a única vez
que posso vislumbrar seu sorriso raro e dourado, o verdadeiro, aquele que
aperta meu peito com tanta força que parece que eu tenho um coração
novamente.
Observo e me pergunto, melancolicamente, como seria me juntar a eles.
Malachite deve ter aceitado meu apelo sobre apresentar Lucien a outras
garotas no coração, porque começo a vê-lo andando com alguém que não é
Varia ou Fione; uma garota bonita, com cabelos loiros claros e olhos
castanhos quentes de canela. Ela é graciosa como Y'shennria e muito mais
quieta que eu. No primeiro dia, Lucien é tão frio quanto o inverno em sua
direção – ignorando tudo o que ela raramente diz, andando rápido como se
estivesse tentando abandoná-la. Mas ela continua voltando. Malachite
continua sorrindo para ela quando ela caminha. Ele a aprova, isso é claro, e
sinto uma pontada de arrependimento por não poder ser a pessoa para quem
ele está sorrindo.
O beneather é inteligente, e ele sabe como Lucien funciona – ele continua
conversando com ela por tempo suficiente para forçar Lucien a se envolver
com ela também. Ela caminha rapidamente para acompanhar Lucien, às vezes
correndo – uma coisa feia que as nobres meninas nunca deveriam fazer. Mas,
ao contrário das outras meninas nobres, ela não parece se importar com a
aparência. Seus vestidos são simples, seus cabelos ainda mais simples. Ela
tropeça nos tapetes enquanto corre, mas sempre se levanta instantaneamente e
continua determinada após Lucien, pedindo desculpas por sua própria falta de
jeito.
Não demorou muito para eu ouvir exatamente quem ela é – Lady Ania
Tarroux, uma Sangue de Ouro cujo dinheiro do pai está financiando grande
parte do esforço de guerra. Os nobres a chamam de simples e um pouco sem
esperança, mas o jeito que ela genuinamente tenta acompanhar Lucien apesar
de ele a ignorá-la – algo sobre isso toca nas minhas cordas infelizes. Ela não
ri excessivamente, não bate os cílios, ou tenta desesperadamente fazê-lo falar.
Ela só está lá, firme e gentil. Estou meio admirada com o quão bem
Malachite conhece Lucien – firmeza e persistência são as duas coisas que
uma garota que persegue Lucien precisa mais do que qualquer coisa, e ela
tem isso de jeito. Ele está bem perfurado.
Às vezes, fica difícil respirar quando penso em tais pensamentos. Mas eu
gosto de culpar a poeira do palácio.
Eu pergunto por ela – as empregadas da cozinha mais do que felizes em
fofocar comigo. Lady Tarroux perdeu a mãe muito jovem e, segundo todos os
relatos, ela é a que criou suas outras quatro irmãs.
Ela é muito devota – passa a maior parte do tempo em oração no Templo
de Kavar, no centro da cidade – e muitas vezes é vista distribuindo comida e
roupas com as sacerdotisas. Ela deve debutar no próximo ano nas Boas-
Vindas da Primavera, e os rumores já estão circulando, é claro, já que Lucien
não anunciou seu noivado comigo.
Ou para qualquer um.
Lady Tarroux é exatamente o oposto de tudo o que sou: quieta, gentil,
descontraída, inocente. E o melhor de tudo, ela é humilde. Ela é diferente dos
outros nobres, o suficiente para chamar a atenção de Lucien, se ele apenas lhe
desse uma chance. E Malachite parece morto em fornecer essa chance.
Ela é perfeita.
A cunha perfeita para dirigir entre Lucien e eu – tão perfeita que quase
tenho pena dela. Vou usar a pobre garota como uma ferramenta, e ela nunca
verá isso acontecer. Mas talvez seja melhor assim – ela terá um marido
principesco, se tudo correr bem.
Mas não tenho tempo para ajudar Malaquite a orquestrar qualquer coisa
entre Tarroux e Lucien. Durante quatro dias, minha vida é consumida
inteiramente pela valkerax. A primeira coisa de manhã, lavo-me, visto-me e
vou para o Portão Sul pela carruagem de Varia. Na arena escura abaixo da
cidade com Yorl, tento desesperadamente ensinar a valkerax como ficar
quieta (um feito cada vez mais impossível, considerando a quantidade de
dor), enquanto simultaneamente tenta entender sua poesia lírica e meio louca.
Cada dia que entro na arena, sua voz fica um pouco mais suave, e isso me
preocupa. Yorl insiste que a valkerax é estável, mas é difícil não pensar o
contrário. No segundo dia, sua voz é alta o suficiente para ouvir. Yorl está
comigo a cada passo do caminho, inabalávelmente corajoso, mesmo quando a
valkerax se agita violentamente em ataques de dor. Mal progredimos – e eu
mal consigo tirar duas palavras coerentes da valkerax. O som disso
choramingando em pura agonia faz meu estômago afundar e sentir pena.
— Você não pode, eu não sei, dar um2 analgésico permanente de
polímato? Ou a Varia mudou a dor?— pergunto a Yorl enquanto subimos as
escadas após a sessão, com a pata na minha. Sinto a crina imatura de Yorl
roçar meus ombros enquanto ele balança a cabeça.
— Eu tentei. Mas a Árvore dos Ossos foi feita com a mais avançada
magia do Vetrisiano antigo disponível. Esse tipo de forjamento está perdido
para nós. Existem soluções temporárias, mas nada funciona permanentemente
para aliviar sua dor. É quase como se fosse uma agonia fundamental que a
Árvore dos Ossos tenha escrito nas leis da existência de valkerax.
— Eu não poderia apenas... — Tropeço em uma escada e Yorl estica seu
braço, e me puxo por ela. — Eu não poderia simplesmente ir até onde a
valkerax mora, então? Dentro do Escuro Abaixo? Eu poderia ensinar alguém
que não está sofrendo.
Yorl bufa. — Ninguém entra no escuro abaixo e sobrevive – não humanos
e nem bruxas. Talvez se você fosse uma festa de abate, mas mesmo assim há
uma boa chance de metade de você não voltar.
— E meu medalhão. — Eu aperto o coração de ouro em volta do meu
pescoço. – Acho que Valkerax mora a mais de um quilômetro e meio, não é?
Varia não gostaria de arriscar sua morte indo muito longe.
Yorl pisca para mim com seus enormes olhos verdes. — Eu devo estar
contagiando você. Você quase soou inteligente agora a pouco.
Não consigo ver meu próprio gesto rude, mas ele pode. Ficamos quietos
enquanto subimos as escadas, e Yorl me deixa no topo.
— Amanhã — diz ele. — Vou alimentá-lo bem e sedá-lo o máximo que
puder. Podemos tentar novamente amanhã.
— E se isso não funcionar?
Yorl olha para mim com firmeza. — Existem outros métodos do
Vetrisiano antigo que posso tentar. Mas eles são... brutais. Prefiro não
recorrer a essas coisas.
— Brutal como? — Eu engulo nervosamente.
— Envolve a retirada de partes do corpo da valkerax.
como sempre, a fome zomba de Yorl. somos eternamente dispensáveis
para eles.
— Existe alguma maneira de não desmembrar uma coisa viva pelo que
queremos? — Pergunto levemente.
— Farei isso se for necessário. — diz ele, resoluto, com o rabo
balançando. — Vou me tornar um polímata, não importa o que deva ser um.
E você? Você fará isso pelo seu coração?
A brecha provocadora em que as lembranças do meu coração estavam
dentro de mim aumenta, bocejando. Nunca comer coisas cruas, nunca ter que
matar novamente. Nunca ter que receber ordens e lembrar de tudo que eu era
antes, o custo da dor de uma criatura.
— Esses métodos não vão matá-lo? — Eu estreito meus olhos para Yorl.
Ele balança a cabeça. — Não. Causaria temporariamente grande dor, e a
valkerax pode nunca mais recuperá-los.
Eu tenho que tentar tudo o que puder para fazer a valkerax falar de forma
coesa, ensiná-la e garantir que não chegue a isso. Mas se isso acontecer...
se sim, a fome insiste na verdade dura. você deseja sua humanidade
fraca como uma mariposa deseja chama, e será sua ruína.
Olho para a escuridão da porta atrás dele e penso na criatura majestosa
que fica lá no fundo, sozinha, com dor, meio morta e toda louca. Se eu fosse
uma boa pessoa, diria que não. Se eu fosse uma pessoa desonesta, diria que
não.
Mas eu terminei com mentiras.
— Sim. — eu começo. — Se é disso que se trata.
Yorl e eu compartilhamos um longo olhar, nossos objetivos gêmeos
atados no silêncio abjeto de ações sujas, e então ele se vira sem palavras e
desce a escada escura, a porta se fechando atrás dele. Eu tomo uma respiração
profunda para aliviar o peso no meu peito, girar nos calcanhares e deixar a
parede. Eu pisco quando meus olhos se ajustam freneticamente à luz solar
brilhante do fim da tarde.
Desta vez, poucas pessoas me olham enquanto eu atravesso a multidão de
South Gate, inteiramente porque não estou coberto de sangue. A valkerax não
teve a presença de espírito para falar duas palavras sensíveis para mim, muito
menos a energia para tentar me morder novamente.
Havia algo que a valkerax disse hoje, no entanto, que ficou comigo.
Os galhos clamam à noite para aqueles que ouvem com sono.
Não tinha contexto, desfocado entre crises de dor, mas ecoa na minha
cabeça. Seria fácil escrever uma frase dessas sem sentido se eu não tivesse
sonhado com a árvore na outra noite. Para ouvir em sono – que poderia estar
sonhando. E havia galhos no meu sonho, cobertos de vidro manchado de
sangue. Vidro que apontava para mim quando tentei me aproximar.
Mas Vetris não é lugar para sonhar com uma Sem Coração.
A guerra, a valkerax, como empurrar Lady Tarroux para Lucien – eu
penso a cada hora do dia, mal caindo na zombaria da experiência Sem
Coração do sono. As criadas de Varia enviam uma jarra de vinho para o
quarto dela todas as noites, e eu me pego mergulhando nela mais do que é
saudável, o vinho a única coisa capaz de deixar minha mente em disparada.
Mas logo – como todos os lugares em que olho para as paredes por mais de
dois dias – o palácio começa a parecer uma prisão. E então me viro para o
único lugar que me resta – a cidade.
A guerra iminente permeia Vetris tão profundamente quanto o fedor de
mercúrio branco; os ferreiros nunca acalmam as bigornas enquanto produzem
montes de espadas e armaduras. Os polímatos se reúnem em grupos, em
tabernas e nas ruas de paralelepípedos, gesticulando com as mangas largas
em prédios e paredes e discutindo sobre como melhor fortalecê-los contra
ataques mágicos.
O exército vetrisiano chega de todo o país graças à convocação do Rei,
reunindo-se do lado de fora do muro branco em pequenos nódulos de tendas
que crescem rapidamente e se espalham pelas pastagens.
Os soldados fazem exercícios durante o dia, o som de suas botas é ouvido
com mais destaque perto dos portões, e à noite eles cambaleiam pelos becos e
estradas de Vetris, bêbados e tagarelando sobre quantas bruxas e Sem
Coração matarão em breve. Eu me permito uma única palavra quando ouço
essas coisas pela primeira vez, ditas com tanto veneno e bravura ao mesmo
tempo. Disse como se estivessem convencidos de que era a coisa certa a
fazer. As crianças seguem em seus calcanhares, animadas por ver tantos
uniformes, suas vozes se erguendo enquanto cantam alegremente as pequenas
canções que fazem enquanto brincam: — Nuvens negras, nuvens negras,
Kavar quebrou todos eles, Água para uma bruxa e fogo para seus escravos!
Eu engulo, doente. Os humanos matam bruxas com água – afogando-os,
para impedi-los de falar feitiços e escapar. E o fogo funciona melhor do que
qualquer outra arma para desacelerar um Sem Coração – queimar um corpo
dificulta a regeneração da magia.
Ouvir da boca de crianças métodos para matar bruxas e derramar sangue
de Sem Corações, causam arrepios na minha espinha.
Por que os humanos e bruxas se odeiam?
Percebo quase imediatamente que é uma pergunta inútil. O velho Vetris
caiu em ruínas cerca de mil anos atrás. Eles se uniram contra a ameaça de
valkerax, mas suas diferenças eventualmente os separaram. É o que dizem os
livros, de qualquer maneira, escritos por polímatas bem versados na história;
suas diferenças eram simplesmente inconciliáveis. Quanto mais eu tento me
perguntar por que os humanos e as bruxas se odeiam, mais juvenil parece;
magia é poder. O poder causa medo. O medo coça para odiar. Pensar onde a
raiz de todas essas guerras começou é inútil; bruxas são bruxas.
Humanos são humanos. Eles temem. Eles odeiam.
Mesmo que o desacordo inicial fosse pequeno, os mil anos de
derramamento de sangue entre bruxa e humano o transformaram em algo
muito, muito maior – uma rede que parece que nunca pode ser destruída ou
escapada. Sufocando a todos nós.
É o terceiro dia em que a valkerax finalmente diz algo que faz sentido. Ele
se enrola em torno de si mesmo, ofegando e chiando: — A árvore dos ossos
sempre chama o carrilhão forte o suficiente para se tornar suas raízes.
Há um momento de respiração, a minha e a dela, e ouso torcer para que eu
tenha chegado até ela, que as próximas frases que ela diz façam sentido
exatamente como aquela.
— Você tem que lutar contra isso! — Eu chamo no escuro. — Eu sei que
é difícil, mas você tem que esclarecer seus pensamentos sobre a dor!
Espero nas agulhas, rezando para que isso me reconheça. Mas, em vez
disso, ele geme, o som como madeira sendo dobrado até quebrar.
— Ódio imortal, raiva imortal. Vida se contorcendo em um mundo de
mortos-vivos. Abaixo do sol e acima das luas, finalmente juntos. — A voz do
valkerax é um sussurro. — A mãe chama o filho; dois longos para se tornar
um. Uma filha como uma arma. Uma rosa entre eles. Um lobo para acabar
com o mundo. UM LOBO. PARA FIM. O MUNDO!
Sua voz repentinamente é tão alta demais, ecoando pela arena e
deslocando pedrinhas do teto. A sujeira chove, e eu me abaixo por baixo de
sua cauda agitada, exatamente quando o ruído me atinge, a morte fria
esperando de braços abertos.
Yorl parece cansado pela primeira vez quando eu acordo de novo, seus
bigodes caindo enquanto ele rabisca em seu pergaminho, sua boca uma linha
pensativa.
— Não está reagindo aos analgésicos da mesma maneira que o último, —
ele murmura. — Invulgarmente voluntarioso.
— Eu poderia tentar dançar por isso, — brinco. — Disseram-me que isso
tira toda a luta das pessoas.
Eu sorrio, pensando em Y'shennria e em como ela estava exasperada
quando me ensinou a dançar. Yorl não morde. Ele fica quieto o tempo todo
em que subimos as escadas, e mesmo quando nos separamos no topo, seus
olhos esmeralda estão profundos no pensamento acelerado.
— Você não vai fazer essa coisa de parte do corpo. — eu começo.
— Eu farei o que for necessário. — Ele me interrompe friamente sem
parar. — Melhor o valkerax estar com dor do que morrer e não nos dar nada.
— É... realmente tão ruim? — Eu engulo, minha garganta seca.
— Você viu o quão fraco está ficando, — diz Yorl, colocando os óculos
no nariz. — O comando da Árvore dos Ossos está corroendo-o, como o ácido
mais básico. Não sobreviverá no solo por muito mais tempo.
Eu o assisto descer as escadas escuras com uma torção no estômago.
— A árvore dos ossos sempre chama o carrilhão forte o suficiente para se
tornar suas raízes.
Essa frase, entre todas as bobagens, assombra o espaço entre meus
ouvidos. Eu conheço a árvore dos ossos. Varia depois disso.
Um carrilhão – o valkerax usa essa palavra para bruxas. Com base no que
a valkerax disse, a Árvore dos Ossos pode chamar uma bruxa? Quão? E por
quê? É uma velha relíquia mágica vetrisiana, pelo amor de deuses, não uma
pessoa com pensamento consciente.
Seria ele - ele - poderia tentar usar uma bruxa para seus próprios fins?
Eu balanço meu cabelo livre de poeira. Não, seria tolice levar a sério tudo
o que a valkerax diz naquelas dores de dor. Está sob tanto estresse e agonia.
Se alguma coisa do que diz enquanto sofre o comando da Árvore dos Ossos
for verdadeira, então Varia não precisaria que eu a ensinasse a Chorar em
primeiro lugar. Gibberish. É só isso.

Estou passando por uma taberna escura do beco quando vejo uma figura
familiar em uma túnica cinza encostada na parede por meia dúzia de homens
furiosos. Gavik. Os homens apalpam paus de madeira e os punhos das
espadas, o ar espesso e enrolado, como um ninho invisível de fios puxados
com força suficiente para cortar.
— ...não tão denso quanto você pensa que somos! — Um dos homens
entra no rosto magro de Gavik. — Eu vi você com meus próprios olhos
naquela noite no mercado negro!
Os homens atrás dele mudam, alguns deles concordando, outros
grunhindo. Gavik se recusa a piscar – olhando para o homem mais baixo do
nariz. O homem está falando sobre a noite em que Gavik fez o ataque ao
mercado negro aqui em Vetris, o que Lucien me mostrou? Aquele que
trocava alimentos e suprimentos vitais sob o radar para escapar dos impostos
esmagadores que Gavik promulgara?
— Não desperdice sua energia com o homem errado. — Gavik zomba,
suas palavras tremendo como se ele estivesse... bêbado?
Aperto os olhos e, com certeza, vejo-o cambaleando de uma perna para a
outra. — Por que um arquiduque estaria aqui, em um beco nojento, com uma
matilha nojenta de cães choramingando?
— É isso aí! — O homem em seu rosto late, puxando um taco.
— Pegue ele, meninos!
Os homens descem como corvos em um cadáver, o som abafado de
golpes pesados encontrando carne retumbante. Gavik, por mais independente
que seja, como sempre o vi no palácio, não é imune à dor. A dor é o grande
equalizador. Isso nos faz parecer tolos e fracos. Faz todos nós gritarmos da
mesma forma, e Gavik não é diferente. Ele grita como um bode ferido, e nos
vislumbres entre os membros voadores dos homens e lampejos de palavras,
eu o vejo rangendo os dentes, sangue e saliva escorrendo pelo queixo.
Eu espero.
A magia de Varia é muito forte até para mim – não posso trazer o monstro
muito além de algumas garras e dentes. Tenho certeza de que deixar o
arquiduque livre entre as pessoas de Vetris significa que Varia tomou as
precauções contra sua transformação, mas nunca se pode ter tanta certeza
com a fome. Eu sou a única chance viável de pará-lo caso o pior aconteça.
Mas... eu também não paro os homens. Tudo o que posso ver é o garoto
que conheci quando vim para Vetris, com o rosto aterrorizado quando ele foi
forçado a subir a escada de mão até o caixão de água sob as ordens de Gavik
e se afogar. Meu pulso dói com a lembrança fantasmagórica da dor quando
Gavik, na mesma fatídica noite do mercado negro, ordenou que um de seus
homens me atirasse com uma besta.
— Eu me pergunto se a Estrela do Ocidente está fora hoje à noite. —
murmuro levemente, olhando para o céu brilhante entre os telhados do beco.
Os gritos de dor ricocheteiam e eu quase ri.
Lady Tarroux certamente ajudaria qualquer pessoa com dor. E aqui estou
eu, apenas me divertindo.
o mal, a fome gargalha. mal até a sua essência.
— Não — eu argumento suavemente. — Eu não sou o mal hoje à noite.
Quando os homens finalmente ficam sem vapor, cospem em seu corpo
amassado e vão embora. O sangue escorre entre os paralelepípedos enquanto
eu aproximo a figura de Gavik caído contra a parede.
— Meu, meu, meu. — Eu me inclino ao lado dele na parede, meus olhos
nas luzes quentes da taverna em frente a nós. — Eu não tinha ideia de que
este lugar servia apenas sobremesas.
É uma pena que os homens não tenham ficado, porque meus olhos pegam
as feridas nas pernas de Gavik que já estão consertando. Os hematomas
desaparecem do roxo avermelhado profundo ao verde, ao amarelo e depois a
nada. Os cortes fecham, costurando pele contra pele. Gavik apenas estremece
e se mantém.
— Eu pensei que você deveria estar morto... — eu tento. — As pessoas
comuns não sabem que você foi declarado assassinado?
Gavik não diz nada, sua voz rouca na garganta ferida com um ruído fraco.
— Você está certo. — eu concordo. — Por que os nobres diriam algo às
pessoas comuns? E por que as pessoas comuns se importam com um nobre
assassinado, quando seus filhos e filhas estão prontos para ir à guerra e
experimentar o mesmo mil vezes?
Meus instintos afiam uma sombra no canto da madeira, do lado de fora da
taberna. Uma vida oportunista, esperando o momento certo para atacar.
— Infelizmente, ele não está morrendo esta noite. — eu digo. — E sua
alma é mais vazia que seus bolsos. Então siga em frente.
A sombra é interrompida, suspiro levemente e olho para Gavik.
— É cruel com Varia, não é? Mandá-lo aqui e não dar uma nova cara?
Você está passando fome, torturando e matando essas pessoas e seus entes
queridos há anos. Eles devem saber como você é. Você é um homem
inteligente. A primeira coisa que você faria é colocar uma máscara. O que
significa que Varia deve ter ordenado que você mantivesse o rosto limpo.
Gavik tosse, o som molhado, mas curador. Seu hálito cheira a vinho
velho.
— É uma música. — ele rouca.
Franzo uma sobrancelha. — Você certamente piorou com as conversas
desde o seu tempo fora do tribunal.
Ele encosta a cabeça na parede, o capuz cinza caindo para revelar a pele
manchada de sangue de seu velho rosto drenado enquanto seus olhos
lacrimejantes se movem para mim.
— Eu sei como me lembro da Árvore dos Ossos. É uma música.
— Deve ter sido uma música terrivelmente memorável. — eu disse.
Sua voz estridente soa, baixa e desafinada, a letra ecoando entre as
paredes do beco. — A árvore dos ossos e a árvore do vidro, finalmente se
reunirão em família.
Meu não-coração aperta. Uma árvore de vidro. Como a do meu sonho. Eu
mantenho meu rosto calmo, composto. — Que tipo de música é essa?
Ele estreita os olhos. — Eu não sei. Não me lembro mais disso.
Mas ouvi isso há muito, muito tempo atrás. E foi importante. Eu persegui
– eu devo ter. Eu não conseguia me lembrar de nada da minha vida humana
quando comecei como um Sem Coração. Mas com o tempo, a única linha
dessa música passou pela minha mente.
Eu me peguei cantarolando, e então as palavras vieram. Depois disso, a
memória da Árvore dos Ossos veio à tona.
Eu franzo a testa. — Que tipo de lembranças sobre a Árvore dos Ossos
estão surgindo naquele seu velho e odioso crânio?
— Nenhuma. — Seus olhos lacrimejantes escurecem, e ele olha para os
paralelepípedos manchados de sangue. — Não me lembro de nada sobre isso.
Mas lembro que existe e é perigoso. Uma arma terrível e perigosa.
Eu apago o ar. Ele não está tecnicamente errado. Percebi isso também no
momento em que Varia e Yorl me disseram o que é a Árvore dos Ossos e o
que faz.
— Eu sei disso — eu mordo. — Onde você quer chegar?
— Varia não pode ter isso. — ele insiste.
— Ela vai conseguir. — eu digo. — E eu vou ajudá-la.
— Você precisa parar. — insiste o arquiduque. — Eu não me lembro... —
Ele bate o punho no chão, os nós dos dedos esfolando-se e curando tudo em
um segundo. — Não me lembro por que, mas a Árvore dos Ossos é
terrivelmente perigosa. Mais do que você pensa, mais do que alguém sabe.
A dúvida começa a aparecer, mas meu não-coração queima.
Claro que é perigoso. Mas é o único caminho que resta para o meu
coração. É a última estrada deixada em aberto, a última que eu posso andar
sozinha. O rosto da mãe permanece, um esboço que eu sei que pode ser
preenchido com tanta facilidade, com tanto carinho, se meu coração voltar ao
meu peito.
— Você não diz — eu falo. — É quase como se fosse uma árvore que
possa controlar toda a valkerax.
De repente, para meu horror absoluto, sinto algo puxar meus punhos da
culatra. Olho para baixo para ver Gavik... implorando. De joelhos, dobrados
ao meio, suas mãos agarrando minhas botas e seu rosto virado para baixo. Eu
cambaleio de volta em alarme.
— Por favor. — Sua voz é fina, todos os traços de superioridade
zombeteira se foram. — Você deve parar de ajudá-la a encontrar a Árvore
dos Ossos. Não sei como, nem por quê, mas posso senti-la. Se ela encontrar a
Árvore, isso significará um desastre.
Um arquiduque. Não apenas qualquer arquiduque – o arquiduque mais
poderoso, o nobre mais influente em Vetris. O homem mais orgulhoso e
arrogante de todos em Cavanos, o homem que me odiava com uma paixão
ardente como sobrinha de Y'shennria e uma garota franca, agora me
implorando.
Ele poderia estar mentindo. Mas por que ele iria? Ele perdeu suas
memórias. Ele perdeu tudo. Isso é alguma tentativa de me fazer sentir pena
dele, de recuperar seu coração eventualmente? Eu o matei, pelo amor de
deuses. Ele deveria ser consumido com vingança e fúria em relação a mim,
mas isso... Ele está realmente tão assustado? Assustado o suficiente para
implorar?
E se ele está assustado, eu também não deveria?
Sacudo-o das botas como uma lesma.
— Não se atreva a me pedir favores — eu rosno para ele. — Não depois
de tudo que você fez.
Eu o deixo no beco, sua música tocando assustadoramente na minha
cabeça.
A árvore dos ossos e a árvore do vidro, finalmente se reunirão em
família.
Duas árvores. Não uma, mas duas.
Meu pesadelo foi sobre duas árvores. Correndo através dos estilhaços do
vitral do palácio, os estilhaços rasgando em mim, minhas mãos pegando dois
rosários com árvores nuas, como o que Y'shennria carregava. Lembro-me
como se fosse real. Lembro-me da terrível certeza que me fez sentir.
Uma certeza de que, se eu não alcançasse esses rosários, algo horrível
aconteceria.
Se ela encontrar a Árvore, isso significará um desastre.
Eu faço o meu melhor para manter as palavras perturbadoras de Gavik fora
do meu trabalho. O vinho ajuda, mas trabalhar com a valkerax é melhor. É
fácil perder o absurdo de um arquiduque assustado dentro de mais absurdos.
Mas minhas perguntas ainda permanecem, meu pesadelo ainda permanece,
me perturbando até os ossos. Gavik disse que tinha vontade de manter um
diário passando por ele e parecia convencido em nossa primeira reunião que
teria escrito sobre a Árvore dos Ossos em algum lugar.
Em uma das raras noites em que Varia se hospeda em seus apartamentos,
eu me inclino no batente da porta de seu banheiro. Ela está definhando em
uma banheira cheia de prata com água com perfume de rosa e violeta,
cravada com leite de cabra, as pétalas girando no branco escuro.
— Você... não teria as coisas de Gavik em mãos, teria? — Pergunto. —
Quero enquadrar alguns deles para a posteridade.
Varia suspira, inclinando a cabeça contra a banheira para que seu lençol
de cabelo molhado caia sobre o lábio.
— Fione e eu concordamos que seria catártico ela queimar tudo.
— Tudo? — Eu tento parecer o mais desinteressado possível, mas Varia
percebe. Ela se senta, virando-se para me olhar com leve irritação.
— Você espera que uma garota que foi abusada por seu tio mantenha uma
coisa dele?
— Não — eu deixo escapar. — Obviamente não.
Agora eu pareço a bunda do cavalo por perguntar. É claro que eu não
negaria a Fione sua catarse sobre os maus-tratos de Gavik a ela. Mas ainda
não consigo evitar me sentir decepcionada.
uma amiga apenas no nome, desejando a dor dela por sua curiosidade.
A fome ri.
Parecendo satisfeita com a minha resposta, Varia relaxa de volta na
banheira, puxando a perna esbelta de madeira viva da água e esfregando-a
com uma barra de sabão Avellish em flocos de ouro. Às vezes, é fácil
esquecer que ela é apenas dois anos mais velha do que eu – meus dezenove
anos técnicos e seus vinte e um anos se sentem tão distantes quando seu
corpo parece muito mais maduro que o meu. É difícil sentir a idade dela
quando ela é uma princesa. E minha bruxa.
— Sua Alteza? — A voz de uma empregada filtra pelos apartamentos. —
Chegou uma carta para Lady Zera.
— Que rico tolo desperdiçaria papel em mim? — Eu tremo, arrancando a
carta da bandeja oferecida pela empregada. O
pergaminho é grosso e cremoso – alto grau – e o lacre de cera na frente é
gravado com uma serpente. Apenas uma.
Lucien.
Eu deveria jogá-la no fogo para manter as aparências. A empregada
certamente diria a todos que podia que viu a Noiva da Primavera de Lucien (o
mero som daquelas palavras unidas por picadas, hoje em dia) jogando a carta
fora como lixo.
Eu deveria jogá-la fora. Para o meu coração. Para mantê-lo no
comprimento do braço, no comprimento da milha. Para ter certeza de que ele
nunca mais terá domínio sobre mim.
Meus dedos descascam sob o envelope antes que eu possa pará-los.
Há uma torre de grãos abandonada no Portão do Oeste, com uma vista
perfeita da cidade e das estrelas. Seu Príncipe pede que você se junte a ele lá
hoje à noite, na décima quarta metade..
Olho para a empregada esperando ansiosamente.
— Devo buscar uma pena e pergaminho, milady? — a empregada
pergunta, de olhos arregalados. Ninguém se atreveria a se recusar a responder
a uma missiva do Príncipe. Ela sabe disso.
Todo o tribunal sabe disso, até o último garoto estável.
Olho ansiosamente para as espirais de tinta de sua letra grande e limpa.
Trocamos cartas assim não faz duas semanas. Como meu sangue se aqueceu
ao ver suas palavras. Eu era uma tola então. Ele é um tolo agora. Há um
mundo inteiro de mulheres esperando a seus pés, nenhuma delas assassina e
nenhuma mentirosa. Um verdadeiro amor – um amor verdadeiro – baseado
em verdade e bondade, em vez de engano e escuridão, está lá fora em algum
lugar para ele. O nome dela poderia ser Lady Tarroux. Poderia ser qualquer
um. Tudo o que sei com certeza é que não sou eu.
Viro-me para a empregada com um sorriso perfeito de Y'shennria. —
Não. Isso não será necessário.
A empregada começa. — Mas, milady...
— Eu acho que vai fazer um lindo pedaço de graveto. — eu digo
alegremente, caminhando até a lareira. Meus dedos hesitam, a carta pairando
acima das chamas.
Meu coração é meu, e só meu. Eu não vou deixar que ele tenha desta vez.
A carta sai da minha mão e cai graciosamente no fogo, as chamas a
consomem de maneira séria e instantânea, deixando apenas cinzas para trás.
10

O Sonho
Sem Fim

Quem disse que é mais fácil destruir coisas do que construí-las foi uma
fraude, e eu quero minha moeda de volta.
Eu deveria estar sentada no castelo, preocupada com a valkerax. Eu
deveria estar pensando no que fazer depois de recuperar meu coração. Como
Crav, Peligli e Y'shennria estão. Mas aqui estou eu, contra meu próprio
julgamento, escondida atrás de uma parede de tijolos e observando a torre
quebrada perto do Portão Oeste como se ela tivesse a chave para todos os
meus problemas.
O maior desastre natural que destruiu esta torre foi muito furioso – marcas
de queimadura brilham negras através dos parapeitos em ruínas. A pedra
enegrecida parece familiar de alguma forma, e então ela me atinge:
Ravenshaunt, a casa ancestral de Y'shennria que foi consumida por bruxas.
Ela me mostrou as ruínas quando me recuperou da floresta de Nightsinger e
me levou para Vetris. São as mesmas marcas. Isso significa que esta torre
também é uma sobrevivente da Guerra Sem Sol.
No meu esconderijo sombrio, eu fico parada. Y'shennria. A verdade que
Fione me revelou – a ideia de Y'shennria descobrindo sua garganta para os
Sem Coração como uma atração para longe de sua filha congela meu sangue.
A partir daqui, minha visão do Portão Oeste é clara. Os soldados andam a
passos largos pelas ruas, o choque de suas espadas, na prática, combate
ressoando de seus campos do lado de fora do muro. Caravanas carregadas de
grãos e outras rações secas entram em Vetris em um fluxo constante, os
guardas da lei descarregando seu conteúdo e fazendo o inventário. O
brilho derretido das forjas dos ferreiros nunca fica escuro.
Eu prometi a ela. Prometi a Y'shennria que pararia a guerra. E, no entanto,
está moendo suas engrenagens bem na minha frente.
Se eu ensino a valkerax, se Varia obtém a Árvore dos Ossos e a controla
sem problemas, se funciona da maneira que Yorl e ela dizem, se Varia não
está mentindo sobre usá-la apenas para parar a guerra – todos esses se's . Eu
tento imaginar um exército de valkerax branco infestando as paredes brancas
de Vetris, facilmente, sem esforço, como serpentes no chão da floresta. Cem
cópias da valkerax abaixo do Portão do Sul, não – milhares delas, tão grandes
quanto crivadas de dentes e garras.
Tal coisa, em termos inequívocos, impediria o frio da guerra.
Ainda posso parar a guerra e conquistar meu coração. Ainda posso fazer
tudo o que eu disse a Y'shennria. Só preciso confiar que o que Varia diz é
verdade.
a confiança é uma ilusão reconfortante, a insípida irmã da
esperança.
Lucien está esperando naquela torre quebrada. Não posso vê-lo, mas sei
que ele está vestido como Whisper, sem dúvida. Ele está me esperando. O
que ele quer dizer não pode ser dito no palácio, e é por isso que ele enviou a
carta e providenciou isso. Quem ele quer evitar no palácio? Ele e toda a corte
sabem que estou me escondendo nos apartamentos de Varia desde o
desaparecimento de Y'shennria. Ele não poderia simplesmente vir falar
comigo lá?
A menos que ele não queira que Varia ouça.
Mas por que? Ela é irmã dele. Ele ama ela. A admiração em seus olhos
quando os vejo juntos é inegável. Ele confia nela, não é?
Os guardas da lei ignoram em grande parte a torre em ruínas, sua atenção
ocupada pelas caravanas. Um ou dois ainda patrulham perto da torre, mas
eles param para falar com alguns soldados.
Respiro fundo e corro pela grama até a torre. Eu atravesso os escombros,
não encontrando nada no térreo, a não ser pedras cobertas de flores silvestres.
Há uma escada em espiral subindo até o telhado, mas faltam seis pés de
degraus. Eu me empoleiro em uma pequena colina e pulo com toda a minha
força, meus braços mal enganchando na pedra. Me levantando, estremeço
com minhas costelas machucadas. Tenho certeza de que Lucien não teve
nenhum problema com esse salto, se seu desempenho escalando um edifício
inteiro durante o falso susto de fogo de bruxa no Templo de Kavar há uma
semana atrás fosse alguma indicação. Ele está mais em forma do que eu. E
sou mais imortal do que ele. Ele se equilibra.
— Não adianta nos comparar. — murmuro enquanto escalo os degraus
gastos. — Eu sou claramente a mais atraente.
Quando chego ao topo da torre, a visão de um peito nu brilhando à luz da
lua me interrompe. Lucien inteiro fica preguiçosamente na borda de pedra
demolida do que resta de uma parede, o corpo espalhado ao longo dela como
se fosse o mais luxuoso sofá do palácio. O luar abraça as linhas fracas de seus
músculos e as extensões suaves de sua pele dourada com alegria
excessivamente zelosa. Reviro os olhos para o céu, para o Deus Antigo e o
Novo Deus, que estão claramente rindo de mim e de qualquer afirmação que
eu ousei fazer da minha própria atratividade.
— É bom saber que vocês dois estão do meu lado. — eu resmungo.
Até o meu eu relutante tem que admitir: ele é lindo. Seus olhos estão
fechados, pestanas escuras compridas contra as bochechas e cabelos pretos
espalhados pela testa. Meu não-coração pula uma batida traidora. Nesse
momento, emoldurado contra o céu estrelado e os discos vermelhos e
vermelhos dos Gêmeos Vermelhos, ele é como uma pintura do Novo Deus –
intocável e requintado.
— Eu costumo cobrar por visualizações prolongadas. — Sua voz
arrastada fratura meu choque. Posso me mover de novo e ando com tanta
dignidade quanto consigo nos últimos passos. Ele está aqui sozinho? Onde
está Malachite? Ele não costuma vir com Lucien em suas excursões à cidade
como Whisper, mas sempre há a chance.
— Eu estava esperando que você considerasse um desconto para mim. —
Jogo meu cabelo por cima do ombro com um sorriso. — Considerando há
quanto tempo estamos juntos.
— Duas semanas é quase uma vida inteira. — ele concorda secamente.
Ele se senta, com as calças de couro enrugando enquanto balança as pernas
compridas e se levanta. A luz da lua destaca suas maçãs do rosto fortes e,
através do meu estupor, fico surpresa com os círculos roxos sob seus olhos,
agora muito mais profundos do que antes. Ele está dormindo todos esses
dias? Ele deveria estar dormindo bem. Ele não deveria se preocupar em
mantê-lo, com Varia sendo a Princesa e tudo. Sua família está inteira
novamente.
— Você costuma chamar garotas para locais isolados para admirar seu
peito nu sob o luar? — Eu arqueei uma sobrancelha. — Ou sou um caso
especial?
— 'Especial' é generoso e grandioso da sua parte. — Ele me lança aquele
sorriso quebradiço enquanto puxa sua camisa de fivela novamente, a fatia de
sua pele do pescoço ao umbigo se destacando fortemente contra o couro
preto. — Normalmente não penso nos traidores como especiais. Na verdade,
eles são bastante comuns na minha linha de trabalho.
Escondo minha vacilada habilmente – deuses te abençoem, Y'shennria.
— Tenho certeza de que ser um Príncipe é realmente um trabalho árduo.
— eu espeto. Por que ele está perdendo meu tempo assim? Por que ele me
chamou aqui e tirou a roupa enquanto esperava por mim? Ele está tentando
me distrair? Isso é mais atormentador do que deveria ser, do que eu prometi a
mim mesma que seria.
— É quando garotas como você testam minha paciência. — Ele abotoa a
camisa de couro, uma por uma, olhos escuros encontrando os meus
friamente. Com aquele olhar em seu olhar, de repente eu entendo. Eu não o
afeto em nada neste momento. Mas ele está provando, inegavelmente, que me
afeta. Seu ardil sem camisa é algo para me irritar. Para provar que ele pode
me controlar, ao invés do contrário. Para me guiar do jeito que eu o guiei por
duas semanas.
Engulo minha raiva com um propósito frio e sorrio para ele.
— Suponho que você me chamou aqui para negócios, Alteza. Afinal, nós
dois sabemos que não é por prazer.
Dou um passo em sua direção e o mundo se move.
Das sombras, lanças de metal atravessam o ar, um zumbido agudo
passando pela minha orelha e penetrando no barro deteriorado, a apenas uma
polegada do dedo do pé da minha bota.
Um raio de besta. O metal balança no ar, um arco pesado que para logo
antes da minha garganta. Uma espada larga.
Malachite está ao meu lado, olhos rubis brilhando com determinação
enquanto ele segura sua espada diante do meu pescoço. Não para isso, como
uma ameaça total, mas logo antes – no máximo, um lembrete hostil. Por trás
de uma pilha de escombros, Fione fica de pé, com o rosto querubim
mortalmente sério e uma besta nas mãos dos nós dos dedos brancos, feitos da
mesma madeira polida da bengala. Uma familiar cabeça de valkerax de
marfim está esculpida no bico dela, e suporta outro parafuso de cinto
brilhante apontado diretamente para mim.
— Desculpas. — Lucien sorri. — Eles insistiram em vir. Algo sobre se
recusar a me deixar em paz com uma Sem Coração.
A espada do pai está muito longe na minha cintura. Repreendo o meu
próprio cérebro por considerar ir contra Malachite e Fione. Eles não são meus
inimigos.
mas também não são seus amigos, a fome me assegura. você viu isso
com suas mentiras.
Levanto minhas mãos devagar. — Se eu soubesse que seria uma festa, eu
teria pelo menos colocado um pouco de blush.
Fione e Malachite não se mexem, nem piscam com a piada.
Lucien é o único que ousa se aproximar de mim, seus passos lentos, cada
um batendo como um tambor contra a pedra. Ele coloca a mão sobre a lâmina
de Malachite.
— Calma, Mal.
— Eu não me importo quantas vezes vocês dois enfiaram a língua na
garganta um do outro – se ela tentar machucá-lo, eu estou cortando a dela. —
Malaquite estreita os olhos para mim. A ameaça deve queimar, mas não é
ódio aos olhos dele – é apenas uma proteção para Lucien. Ele brilha em todos
os cantos de seu rosto branco como papel. Ele não me odeia, por si só. Ele
apenas se importa mais com Lucien.
A voz de Lucien fica séria. — Seja razoável. Fazer suas perguntas seria
muito mais difícil assim.
— Razoável? — Malaquite se encaixa. — Depois de tudo o que ela fez
com você?
— Ela se curaria logo de qualquer maneira. — Fione se levanta, a besta
firmemente apoiada em seu antebraço. — Mas ela sentiria tudo.
Os olhos de Malachite não piscam, mas os de Lucien. Não – eu devo estar
imaginando. Certamente ele sabe melhor do que cuidar da dor que um traidor
poderia passar. Sentimentos não são jóias temporárias, mas também não são
tatuagens permanentes, e ele está fazendo um trabalho miserável de fazer
desaparecer.
— Podemos parar de falar de mim como se eu não estivesse aqui — eu
me inclino. — E comece a falar sobre por que você me chamou. Não
poderíamos ter conduzido esse negócio desagradável dentro do castelo? Ou
tem alguém aí que você não quer que saiba sobre essa pequena inquisição de
vocês?
O olhar de Fione cintila para o de Lucien, mas o príncipe mantém seus
olhos escuros firmes e em mim.
— Você pega uma carruagem todas as manhãs para o Portão do Sul. —
Lucien começa. — Você entra por uma porta e sai cerca de uma hora depois.
Por quê?
— Turismo? — Ofereço com um sorriso inocente.
— Responda a sua pergunta diretamente. — Malachite late, levantando
sua espada mais alto para mim. Lucien exala, sua mão pressionando
suavemente a lâmina de Malachite.
— Largue isso, Mal.
— Ela poderia machucá-lo, Luc. — argumenta Malachite. — Ela é rápida,
e eu tenho que ser mais fácil.
— Coloque-a para baixo. — Lucien silenciosamente exige, seus dedos
segurando a borda afiada da lâmina do beneather com mais insistência.
Começa com o riacho de sangue que escorre entre seus longos dedos. Por que
ele iria?
— Sua Alteza — eu deixo escapar. — Você está se machucando.
Os olhos de rubi irritados de Malachite lutam com os calmos obsidianos
de Lucien por um momento.
— Você confia com muita facilidade, — Malachite finalmente murmura
para ele.
Lucien sorri fracamente. — Eu sei.
É uma piada entre eles, entre nós quatro. Até eu sei que Lucien não está
confiando nem um pouco. Finalmente, o beneather deixa sua lâmina longe de
mim, mas a mantém firme ao seu lado, pronta para entrar em ação. Lucien
limpa o ferimento nas calças e olha para Fione, ainda apontando a besta para
mim.
— Você também, arquiduquesa. — diz ele. — Calma.
— Não. — eu começo. — É inteligente manter pelo menos uma arma
treinada em um Sem Coração o tempo todo. Você nunca sabe quando o
monstro sairá.
As linhas marcadas pelo medo no rosto de Fione endurecem. A
compostura de Lucien enfraquece, sua mandíbula escorregando por um
momento. Ele deve estar se lembrando da clareira, da minha visão, de todas
as presas, garras e sangue.
Eu sorrio para ele. — Então? Que perguntas estão queimando seus
preciosos corpos mortais? — Lucien abre a boca, mas levanto um dedo para
interrompê-lo. — Lembre-se de que qualquer coisa que você me perguntar,
qualquer resposta que eu der, tudo poderá ser extraído de mim pela Varia. O
que você diz estará longe de ser secreto. E eu odiaria todos os seus esforços
em me chamar aqui para desperdiçar.
Lucien parece pensar duas vezes, então faz Fione avançar. Ela não se
mexe, seus olhos azuis centáurea duros e em mim sobre as vistas de sua
besta.
— Você é Sem Coração da Varia. — diz ela.
— Oh, vamos lá. — Eu rio. — Todos nós sabemos que eu sou. Faça-me
uma das perguntas mais difíceis. Eu dou conta disso.
A carranca de Fione só fica mais profunda. — Você vai ao Portão Sul e
por aquela porta. Varia me disse que você faz isso porque a está ajudando a
treinar nossos soldados sobre como combater os Sem Coração. Isso é
verdade?
Olho para Lucien, cujo rosto está subitamente ilegível. Malachite é levado
até a borda com suspeita de partes iguais e prontidão para o cabelo.
Dou outra risada, essa mais leve. — Você é vetrisiana. Você conhece uma
mentira quando escuta uma. Eu diria que sim, mas vocês três são mais
espertos que isso. Bem, talvez não seja Malachite. Pessoas como ele e eu
temos que trabalhar para ser inteligentes. Vocês dois nasceram nisso.
— Não me coloque com você. — Malachite dispara instantaneamente. —
Eu não traí ninguém.
— Somos criaturas muito diferentes, — eu concordo. — Sua honra é
primitiva, e eu nunca tive nenhuma para começar. Suponho que ficou com
todas as minhas memórias da minha vida antiga.
— Memórias? — Lucien pergunta, quieto.
— Oh. Você não sabia? — Examino minhas unhas descuidadamente. —
Quando nossos corações são arrancados, esquecemos tudo sobre nossas vidas
humanas antes desse momento. Mães, pais, amadurecimento, lembranças
tristes e felizes, amáveis e odiosas – tudo isso. Se foi.
Nenhum dos três fala. O ar abafado do verão nos deixa em silêncio, o
zumbido das cigarras enchendo o silêncio.
Malachite, sempre o corajoso, deixa escapar: — Se eu não soubesse
melhor, diria que você está tentando nos fazer sentir pena de você.
Eu bufo. — Há muito tempo tentei fazer com que qualquer um de vocês
sentisse algo por mim. Não vai me pegar mais no meu coração. Portanto, não
há razão real.
— Então o que você está fazendo debaixo do Portão Sul? — Lucien pede
bruscamente. — Eu tentei entrar. Eu segui todas as rotas, novas e antigas,
mas a segurança é impenetrável.
— E eu tentei subornar todos os guardas, — oferece Fione. — Todo
polímato, todo trabalhador adjacente. Mas ninguém se mexe. Alguém sempre
se move. Sempre. Mas não desta vez.
Eles estão trabalhando tão duro. Eles não podem simplesmente deixar o
suficiente em paz, podem? Eu sorrio com simpatia. — E isso te preocupa,
não é?
— Responda às perguntas espirituosas deles! — Malachite exige.
Eu dou de ombros.
— Ela pode não ser capaz. — murmura Fione. — Eu vi Varia ordenar que
ela fizesse... coisas terríveis. Ela poderia ter ordenado que ela ficasse em
silêncio.
— Ela não fez. — eu corrijo. — Mas por que eu conversaria?
Fione e Malaquite trocam um olhar, e os olhos de Lucien endurecem.
Nunca foi tão claro como neste momento que eles pensam em mim como um
inimigo. Eu poderia acabar com toda a suspeita deles, toda a cautela, se
apenas contasse o que estava acontecendo. Se eu dissesse a eles sobre a
valkerax, certamente seus sentimentos por mim suavizariam. Não voltaríamos
a ser como eram as coisas, mas pelo menos não seria mais essa desconfiança
esmagadora.
Mas a valkerax é perigosa. A Árvore dos Ossos é perigosa.
Varia os mantém no escuro por um motivo – ela não quer que eles sejam
associados às consequências disso. Ela espera tomar todo o poder e todo o
ódio e medo que o acompanham. E ela está certa.
Qualquer pessoa envolvida com a Árvore dos Ossos será o inimigo
público número um quando Varia finalmente conseguir.
Eles estarão mais seguros sem saber.
Eu respiro. — Varia está oferecendo meu coração para fazer o que faço,
calma e rapidamente. E vocês três estão me oferecendo, bem. — Sorrio mais,
olhando Lucien de cima a baixo. — Nada além de mágoa e ameaças.
O príncipe se move de repente, nossos peitos perigosamente perto de
serem tocados, nossas sombras enluaradas se misturam nas ruínas da torre.
Ele olha para mim com uma ponta suave em seus olhos negros – um eco da
suavidade em seu olhar que eu vi na tenda da Caçada, logo antes do beijo que
acendeu minha alma em chamas.
Ele cheira fracamente a não cinzas e águas claras, mas a algo como
mercúrio branco. Talvez seja apenas o cheiro da cidade.
— Zera. — Ele diz meu nome gentilmente, como dedos nas notas mais
profundas de um windlute. — Por favor. Diga-me, o que você está fazendo
pela minha irmã?
Eu quero confiar nele. Eu quero confiar no calor que penetra em mim por
baixo de sua pele. Eu quero confiar em seus lábios, tão perto. Quero confiar
que ele tem carinho suficiente por mim, ainda assim, para estar tão de bom
grado, para acreditar em mim quando falo.
— Você realmente acha que eu diria a verdade? Depois de tudo que eu
fiz? — Eu sussurro para ele.
— Estou lhe dando outra chance. — diz ele.
Eu quero acreditar em outra chance. Mas eu sei. Eu sei que isso é apenas
um ato – o mesmo que ele usa para enganar a corte, os nobres, as garotas que
ousam olhar para ele. Sob essa suavidade, há uma decepção frágil, uma
mágoa profunda e traída. Eu posso vê-lo, afiado e sempre crescente, como
espinhos de rosas enraizados em seus olhos.
Nenhuma quantidade de pétalas pode cobrir as feridas que eu infligi nele.
Em nós.
Não há retorno.
Minha tristeza e culpa dão lugar à fúria incrédula. Ele está me usando. Ele
está usando nossa atração contra mim agora. Ele está tão desesperado por
informações sobre o que sua irmã está fazendo?
Com controle perfeito e enfurecido, inclino meu rosto até o dele, nossos
lábios quase se tocando enquanto murmuro: — Você não confia em sua irmã,
Alteza? Você a ouviu na clareira. Ela vai parar a guerra. Não é isso que você
quer? Um país pacífico para o seu povo?
Ele não se afasta. Pelo contrário, ele coloca a mão no meu quadril, e todo
o meu corpo ondula com um calafrio do epicentro. — Ela não pode fazer isso
sozinha.
Derreter nele agora seria tão fácil. Malachite também pode não existir,
Fione também está em branco. No momento, somos apenas ele, eu e as
estrelas. Mas nossos peitos pressionados juntos batiam com o som de apenas
um coração.
ele está nos usando como todo mundo faz, a fome zomba.
não somos nada para ele, mas uma boneca.
Eu me afasto, minha pele enredada em seu clamor pela dor de ser
separada. Eu me viro para Fione, cujas bochechas estão tingidas com o menor
vermelho, os olhos arregalados. Lucien está tentando me usar. Todos os três
estão. Mas eu posso usá-los também.
— Se não podemos ser amigos, — eu começo. — podemos pelo menos
ser as ferramentas uns dos outros. Você não concorda, Sua Graça?
Fione dá um pulo quando eu a sigo, com a besta ainda presa nas mãos
delicadas. Quando ela tricota os lábios, eu sorrio.
— As coisas de Gavik. Varia disse que você e ela queimaram todas elas.
— E? — Fione murmura. Varia poderia estar convencida de que Fione
queimou tudo. Mas conheço Fione melhor do que isso: ela passou cinco anos
coletando informações importantes sobre pessoas importantes nas ruas de
Vetris para vingar Varia. Hábitos como esse não morrem facilmente.
— Você realmente queimou tudo? Tão rápido?
Os olhos azuis de Fione disparam. — Não vejo como isso te preocupa...
— Gavik me disse que mantinha um diário, — eu digo. — Você o viu,
tenho certeza – andando por Vetris entregando pão aos pobres.
— Eu tenho. — Lucien interrompe. — Mas ela não tem. Ele vira a cauda
e corre sempre que a vê.
Varia ordenou que eu me esfaqueasse se eu tocar em Fione, um comando
que Varia está convencida de que a protegerá, fará com que ela se sinta à
vontade. Ela provavelmente comandou Gavik da mesma maneira para ficar
fora do caminho de Fione.
— Traga-me o diário dele. — eu digo. — Se ainda existir. E talvez eu
conte o que está acontecendo.
— Aquele que fala da Árvore dos Ossos? — Fione deixa escapar. Um
silêncio cai sobre nós, e eu sorrio com todos os meus dentes – os humanos,
não meus famintos. Então ela guardou algumas coisas dele. E ela os leu. A
Árvore dos Ossos – Gavik realmente escreveu sobre ele. Seu instinto em
relação ao seu eu humano estava certo.
— Sim. Aquele.
— Não é real. — insiste Fione rapidamente. — É apenas uma desculpa
ilusória que ele estava usando para perseguir Varia. Ele era paranóico. Tudo o
que ele queria era a espada de mercúrio branco.
— Então você me disse. — eu me inclino.
— A Árvore dos Ossos não existe. É apenas uma história de ninar que
antes era para assustar as crianças Vetrisianas Velhas.
— Assim como Sem Coração é uma história para dormir. — eu digo. —
Era para assustar as novas crianças Vetrisianas.
— A evidência de sua existência é anedótica, na melhor das hipóteses. —
ela pressiona severamente, parecendo muito com Yorl quando ele aborda um
assunto que conhece muito, e uma parte de mim percebe, melancolicamente,
que se dariam incrivelmente bem.
— Propaganda anti-bruxa na pior das hipóteses. Ninguém jamais foi
capaz de provar conclusivamente que existe. É apenas um símbolo religioso
que os seguidores do Deus Antigo adoram.
O rosário de árvore nua se apertava na mão de Y'shennria quando ela e eu
fomos forçadas a ir ao templo de Kavar. Meu pesadelo dos dois rosários das
árvores – não um. Dois.
Balanço a cabeça. O desejo de contar a eles quase transborda, como um
copo cheio demais. O desejo de confiar neles novamente, de confiar neles.
Confiar em alguém que não seja a fome – confiar em alguém completamente,
em vez de sem entusiasmo como eu, Varia – parece o paraíso. Isso tornaria o
fardo que eu carrego muito mais leve.
De novo não. Não deixarei que a fraqueza humana roube meu coração de
mim novamente.
Dou um arco adequado para um Príncipe e arquiduquesa e desço as
escadas com um aceno indiferente da minha mão.
— Tragam-me esse diário, meus bons nobres. E então vou considerar
contar uma história para vocês.


As patrulhas no palácio estão mais alertas do que o habitual, talvez se
preparando para a guerra. Ser pega vagando pelos corredores na calada da
noite não é ilegal para um nobre, mas ainda assim os guardas me param,
fazendo perguntas. Dou a desculpa de que estava doente e fui visitar os
polímatas reais na ala do palácio.
Eu sorrio brilhantemente, e embora eu tenha certeza de que eles sabem
que estou mentindo, eles não se atrevem a me impedir – a Princesa disse que
eu era permitida em seus apartamentos, e me surpreender pode significar
invocar sua ira.
Quando entro na sala de estar, as lâmpadas de óleo estão apagadas, os
apartamentos envoltos em penumbra. O luar azul filtra através das janelas de
vidro, e eu passo cuidadosamente pelo quarto.
Meus olhos pegam a figura escura nela. Uma figura sombria, em
movimento. Não... se debatendo. Os cabelos pretos de Varia estão
escorregados na cabeça com suor, os membros tremendo, lutando para se
libertar dos lençóis. Seus olhos estão fechados – ela está dormindo
profundamente, e ainda assim se move como se estivesse lutando contra algo.
Eu deveria deixá-la. Ela é minha bruxa – me mantendo refém do meu
coração. No mínimo, ela merece pesadelos. Mas... o gemido suave que
escapa de seus lábios repentinamente me puxa. Peligli costumava ter
pesadelos como esses, miando assim, e eu sempre a acordava.
Ela significa muito para Fione. Para Lucien.
Eu respiro fundo e vou até a cabeceira dela. Tão perto, eu posso ver o
quão pálida e tingida de verde sua pele se tornou, como se ela estivesse
doente, seus olhos se movendo freneticamente atrás das pálpebras.
Cautelosamente, eu coloquei minha mão em seu ombro. — Sua Alteza?
— Eu digo. Ela não responde. — Varia?
De repente, sua surra se torna violenta, seus membros se contraem,
estremecendo o colchão. Sua canela bate em um pôster de madeira da cama
com tanta força que vibra pelo chão, o sangue escorrendo instantaneamente
vermelho sob a pele. Coloquei as duas mãos nos ombros dela e a sacudo.
— Varia!
Seus olhos escuros se abrem, sua sacudida continua imóvel no mesmo
momento em que ela se senta na cama.
— A Árvore! — Ela engasga, sugando o ar como se estivesse debaixo
d'água por muito tempo. Ela estava sonhando com a árvore novamente, como
se estivesse naquela noite na varanda? Seus olhos são grandes discos pretos,
aterrorizados e fervorosos de uma só vez, como se ela fosse vista no rosto do
próprio Novo Reino. Ela me nota pelo canto do olho e passa o rosto coberto
de suor para mim.
— Você. O que você está fazendo aqui?
— Você estava tendo um pesadelo. — eu digo, apontando para a perna
dela. — E batendo-se sobre isso.
O olhar desorientado de Varia se volta para a lesão, o rosto se
contorcendo de irritação e o peito subindo com força e rapidez, enquanto ela
tenta recuperar o fôlego.
— Saia.
— Você... — Eu começo, minha garganta seca. — Você estava sonhando
com a Árvore dos Ossos?
— Eu disse saia!
Seus olhos são brasas – mais quentes do que no momento em que a vi na
floresta. Ela não é uma coruja esperta e esperada agora.
Ela é esculpida em raiva e algo como pânico. O comando é um
estrangulamento – a fome agarrando minhas pernas e braços me forçando a
sair da sala em um instante. As portas do quarto na frente do meu rosto se
fecham com alguma força invisível – mágica, sem dúvida. O golpe ecoa e
depois se instala.
O comando libera meu corpo rígido e minha mente confusa, e eu
desmorono no assento de amor mais próximo. Eu nunca a vi comandar tão
rapidamente, tão ferozmente.
Por que ela reagiria assim a uma pergunta simples e inocente?
11

O Peso
da Não-Vida

Na manhã seguinte, Varia age como se nada tivesse acontecido.


Pode ser que ela não se lembre disso. Ou pode ser que ela esteja
propositalmente fingindo que isso nunca aconteceu. De qualquer maneira, a
Princesa Herdeira está escondida em seu armário, sendo vestida por suas
criadas, quando Fione entra, com os cabelos longos e enrolados e amarrados
com fitas amarelas para combinar com o vestido. Ela parece adorável. Ela
parece desconfortável. O medo total que vi em seu rosto nas primeiras vezes
em que nos encontramos depois da clareira é muito menor – sem dúvida,
graças ao comando de Varia. Se eu a tocar, eu me esfaqueio.
E posso ver, de maneira tangível, que essa ideia está dando à Fione
alguma medida de segurança; seus olhos ainda evitam encontrar os meus,
mas eu a pego encarando meu perfil de vez em quando.
— Onde vocês estão indo nesta bela manhã, Vossa Graça? — jogo a
educada carta nobre, esperando deixá-la mais à vontade. Os lábios de Fione
franzem levemente.
— Um café da manhã, — diz ela. — Na minha mansão.
— Isso mesmo. — Eu assobio. — Você tem toda a propriedade Himintell
para si agora.
— Não é nada demais. — diz ela modestamente, e eu rio, pegando minha
bebida matinal de chocolate e tomando um gole, lavando o sabor do fígado
que consumi alguns minutos antes de ela e as empregadas entrarem.
— Quando nos conhecemos naquele banquete, — eu começo.
— você era Lady Himintell, sendo atacada por aquelas pilhas de estrume
de babados e ridicularizada por Gavik. E agora — eu aceno para o vestido
dela, sua postura rígida. — Você se livrou dele. Agora você é uma
arquiduquesa. Dê a si mesma um pouco de crédito, sim?
Você fez bem.
Fione respira, seu olhar deslizando pelo chão enquanto ela pensa no que
dizer. Finalmente, ela olha para cima e desta vez está nos meus olhos. Pela
primeira vez desde a clareira, seus olhos azuis centáureas olham para mim.
— Obrigado. — diz ela.
É como o primeiro broto da primavera que atravessa um banco de neve.
Meu peito esquenta e eu sorrio de volta. Não é um longo momento, e logo
seu olhar está fora das janelas novamente, mas, pelo menos, aconteceu. Meu
não-coração parece tão pesado de repente. Incentivado por tudo, abro a boca.
— Ela geralmente tem pesadelos? — A cabeça de Fione se levanta e eu
continuo. — É que ela passa a maioria das noites na sua casa, então não vejo
isso com frequência. Mas ontem à noite...
— Ela se machucou. E conversamos sobre a árvore. — Fione termina
para mim. — Certo?
É a minha vez de parecer surpresa. — Como você...?
Fione abaixa a voz, o rosto repentinamente sem expressão, como se ela
estivesse tentando manter tudo junto. — Isso acontece todas as noites desde
que ela voltou. Ela se agita, ela grita, ela chora.
E ela murmura sobre a Árvore o tempo todo.
Silenciosamente, observamos as empregadas entrando e saindo do
provador com longos pedaços de fita roxa. O rosto de Fione está tão abalado,
tão cheio de preocupação. Não consigo imaginar como deve ser – ter suas
amadas costas, apenas para vê-las lutando tanto durante o sono.
Inclino-me para Fione, tomando cuidado para não chegar perto o
suficiente para assustá-la e murmuro: — Se a Árvore não é real, como você
disse no começo, por que ela está tendo tantos pesadelos?
Eu sei que a árvore é real. Ou, pelo menos, eu sei que Varia acha que a
Árvore é real. Eu sei que Yorl me deu explicações e evidências de por que a
Árvore é real. A valkerax falou sobre isso.
Mas eu nunca vi isso. Eu sei que a Árvore é real no mesmo sentido que se
sabe que os deuses são reais – crença. Fione nunca teve tais crenças para os
deuses; se alguma coisa, ela mostrou desdém por eles. Ela é uma dama de
fatos e evidências, resistindo à fé inquestionável em que Vetris mais se
assustou com Gavik e a ameaça intimidadora da própria magia.
Então, minha pergunta está suspensa e ela não consegue responder.
— Ela vai ficar bem. — Eu sorrio. — Eu vou acordá-la se ficar muito
ruim. Você a acordará em sua casa. Juntas, ainda manteremos nossa Princesa
impertinente.
A expressão de Fione desmorona, preocupa-se. — Sim.
Os guardas entram e anunciam que minha carruagem para o Portão Sul
está pronta. Eu resisto à vontade de abraçar Fione, de colocar meu braço no
ombro dela, e fazer uma reverência para ela.
Observo a cidade passando, as partes mais antigas do bairro comum
movimentadas. Ruidosamente, a construção destrói prédios antigos e ergue
novos como quartéis para soldados, e ainda há mais construções entre as ruas
e os becos quando barricadas de emergência são colocadas, em caso de
invasão. O templo de Kavar está sendo particularmente isolado por essas
barricadas, um padre parado nos degraus e abençoando os trabalhadores
enquanto transportam madeira e metal, seu sermão ecoando enquanto minha
carruagem passa.
— O peso da vida pertence a todos nós!
— De fato. Mas — murmuro para o teto da carruagem. — e o peso de não
viver? A quem isso pertence?
A Princesa não contou a Lucien ou Fione o que ela está fazendo com a
valkerax, por sua segurança, sem dúvida. Ela quer manter a valkerax para si
mesma – não por egoísmo, mas por um desejo de proteger as pessoas mais
próximas a ela. Não consigo achar a culpa dela. Eu faria o mesmo. Mas o
desejo de contar a Lucien e Fione essa verdade ainda queima, mesmo na luz
da manhã. Se eu fizer, se Lucien e Fione ainda acreditassem em mim, eu teria
dificuldade em acreditar que a Princesa Herdeira ficaria satisfeita. E ela
segura meu coração na palma da mão dela, literalmente.
Se Fione me trouxer o diário de Gavik, não é seguro dizer a verdade. Mas
ela merece isso, e minhas duas inclinações lutam entre si, enquanto eu ensino
a valkerax por um dia. Yorl me pressiona com força – experimentamos o soro
três vezes e eu morro três vezes. Mas a valkerax tem outros planos: ou seja,
deitar no chão e chiar. Nem sequer se mexe para me agarrar. Não me
responde, exceto murmurar bobagens mais uma vez – sobre casas no céu e
casas na terra, sobre voar sob o sol. Meu não-coração se sente como uma
almofada de alfinetes enquanto ouço suas respirações difíceis e, então,
finalmente me atinge: não vai durar muito. Todos os avisos de Yorl eram
fáceis de ignorar quando não eram recolhidos no chão. Mas agora, ouvindo
com meus próprios dois ouvidos enquanto luta para viver, eu entendo
brutalmente.
Pode morrer por isso.
Ele vai morrer sem eu ajudá-lo a chorar. Ele morrerá porque eu não fui
rápida o suficiente ou correta o suficiente nos meus ensinamentos.
E a verdade mais nua: talvez eu não recupere meu coração.
mesmo no final de todas as possibilidades. A fome zomba de mim.
egoísta até o fim.
Aproveito o sol baixo do fim da tarde, tentando não pensar. Mas é tudo o
que posso fazer; se eu não conseguir meu coração, onde isso me deixa?
Como um peão para Varia por quantos anos mais?
Ela vai me fazer lutar na guerra?
Uma sombra chama minha atenção na multidão escassa do Portão Sul.
Sob os beirais de uma chapelaria, uma figura escura de couro se apoia na
parede. Lucien. O que ele está fazendo aqui? Eu me viro e escondo meu
rosto. Ficar sozinha com ele novamente não é o que eu preciso agora.
mas é o que queremos, a fome insiste, pendendo sua língua negra.
De repente, algo preto e pequeno chama minha atenção. Uma flor? Não,
uma rosa. Uma rosa negra. É segurada por um braço vestido de couro, e meus
olhos encontram o rosto encapuzado de Lucien, seus olhos cheios até a borda
com diversão destacada enquanto ele segura a rosa para mim. Minha mente
distorcida tenta comemorar – ele está me oferecendo um presente.
não seja ingênua. A fome ri. o pequeno Príncipe já é ingênuo o
suficiente para vocês dois.
— Uma linda rosa para uma bela dama. — diz ele. Um par de mulheres
nobres que passam me olha de cima a baixo, rindo loucamente e estalando a
língua na mesma direção. Uma rosa dada a uma nobre senhora por um plebeu
é extremamente escandaloso.
Lucien segura a rosa com mais insistência quando um mensageiro
atrapalhado passa, e eu tempestuosamente luto contra o desejo de pegar a
flor. Só há um lugar em que as rosas negras crescem em Vetris – em frente à
mansão de Y'shennria. Isso é uma manobra. Ele está tentando me lembrar dos
meus erros, da minha mentira de fingir ser uma Y'shennria – um nobre do
primeiro sangue. Qualquer presente dele não é porque ele particularmente
gosta de mim – nós estabelecemos isso na torre. Ele deve estar fazendo isso
para chegar até mim. Me machucar.
você mentiu. você merece essa dor...
Sorrio enquanto pego a rosa, tomando cuidado para não tocar sua mão
enluvada. Olho as pétalas macias por um momento, apreciando o perfume
familiar que puxa meu coração e depois jogo a rosa por cima do ombro,
diretamente em uma poça de lama.
— Um presente terrível para um doador terrível. — Eu sorrio para ele
levemente.
Há um momento em que acho que posso ver o verdadeiro Lucien – a dor
correndo em seu rosto. Mas evapora como uma gota de chuva ao sol. Ele
meio suspira, seus olhos agora divertidos novamente.
— Temos coisas a esclarecer.
— Temos que esclarecê-los aqui, na frente de todos? — Pergunto.
— Que impróprio da minha parte. — ele diz. — Você está certa. Um
verdadeiro ladrão nunca faz negócios à luz. Meus buracos escondidos são, é
claro, seus buracos escondidos. — Ele aponta para um beco atrás da
chapelaria. — Por aqui.
Meio cautelosa, segui atrás dele sobre os paralelepípedos, cheios de
sujeira quanto mais longe chegamos de qualquer estrada principal. Ele está
me guiando para uma montagem com Fione e Malachite esperando
novamente? Ele me leva a um padrão vertiginoso de curvas: entre barris e
caixotes, embaixo de linhas de lavanderia, em torno de poços e estátuas
gigantes de serpentes que cuspem água e, finalmente, a um prédio
abandonado em uma praça esquecida – ainda de pé, mas moldada e quase
comida por cupins, o batente da porta permanece no que parecem ser palitos
de dente quando nos abaixamos.
A luz do sol tardia joga raios de ouro manchados através do telhado
arruinado e no chão rangente quando Lucien o atravessa, sentando-se na
única coisa robusta do local – uma lareira de pedra no centro.
Ele estende os braços. — Bem-vinda. Você é a primeira visitante que tive
aqui. Eu diria para você tirar os sapatos, mas, a essa altura, uma bota suja
seria o menor dos problemas deste lugar.
— Ele também tem uma emboscada? — Pergunto.
Lucien balança a cabeça. — Eu sei que posso parecer um pouco denso
para você, depois que você me enganou sobre ser humana por duas semanas
inteiras — diz ele. — Mas até eu sei que não devo usar a mesma surpresa
duas vezes.
Abalo o desejo instantâneo de vacilar. Ele realmente não me deixa viver
isso. E por uma boa razão. Mas ainda assim, ele poderia estar mentindo.
Malachite poderia estar atrás de qualquer canto novamente. Metade de mim
sangra com a dor de não poder confiar nele, pois ele não pode confiar em
mim. Ele não me deve honestidade, afinal. O suave arrulhar me faz olhar para
cima naquele momento – um bater de asas de pomba batendo no ar acima do
telhado. Observo uma pena branca flutuar no chão e chego bem a tempo de
pegá-la. Eu posso sentir os olhos de Lucien em mim, como dois pontos de
fogo desconfortavelmente quente, mesmo enquanto acaricio a coisa macia
por algum conforto.
— Essa rosa negra — eu digo. — Era da mansão de Y'shennria?
Eu o ouço rir. — Obviamente. — Há outro momento de silêncio, e então:
— Nas noites em que era difícil estar no palácio, eu ficava do lado de fora da
mansão e observava as luzes do seu quarto. As roseiras pretas estavam
sempre no meu caminho. Mas com o tempo, comecei a sentir um carinho por
elas. Ver uma rosa negra significava que eu estava perto de você, perto da
única pessoa que me entendeu.
A dor aguda em meus pulmões deixa minha respiração irregular, mas eu
me recupero. Eu tenho que me recuperar.
— O que precisamos esclarecer? — Eu pergunto rigidamente.
— Como você deve ter adivinhado de me perseguir todos os dias até o
Portão Sul, sou uma mulher ocupada.
Lucien engole em seco. — Muito bem. — Ele se levanta, mas mantém
distância. — A árvore.
Eu bufo. — Isso é tudo sobre o que mais se fala...
— Eu sabia sobre a árvore antes de qualquer pessoa, — interrompe
Lucien. — Antes mesmo que Varia soubesse.
Viro a pena da pomba com curiosidade. — O que?
— Fione me disse que Varia tem tido pesadelos sobre a Árvore. Que você
viu ontem à noite. Eu fui o primeiro a vê-la ter um pesadelo com isso.
Eu tento não trair o interesse na minha voz. — Quando?
— Eu tinha sete anos. — diz ele. — Ela tinha dez anos. Estávamos no
berçário do palácio.
— Isso é tão jovem. Ela não era uma bruxa, certo?
Ele balança a cabeça, o sol pegando seu capuz preto e iluminando os ricos
negros. — Não. Mas eu lembro da noite em que aconteceu pela primeira vez.
E isso continuou acontecendo. A mãe trouxe todo polímato para ela,
desesperada para diagnosticá-la, para consertá-la. Era o segredo mais bem
guardado do palácio – que Varia estava 'doente'.
— Por quê?
— O pai estava preocupado. — diz Lucien, e estala o pescoço
vagarosamente. — Você já ouviu falar dos assassinos que Malachite lida,
tentando me matar. A família real não é apreciada. E toda a corte conhece o
boato de que somos uma família de bruxas. Qualquer demonstração de
estranheza era o grande medo do pai.
— Então ele não queria que os rumores dos pesadelos de Varia fossem
divulgados. — penso. — Porque isso deixaria os nobres desconfortáveis.
— Desconfortável na melhor das hipóteses. — ele concorda. — E, na pior
das hipóteses, isso lhes daria motivo para descartar os d'Malvanes. As bruxas
nunca são confiáveis em Vetris, não importa quem elas sejam.
— Então sua mãe trouxe polímatas para ela? — Eu lidero. Ele assente,
franja felpuda acenando com ele.
— Todos disseram que ela estava brava. O pai recusou-se a acreditar, mas
continuou acontecendo. Ele costumava ordenar que os servos a drogassem
com raízes da lua todas as noites para que ela pudesse dormir sem se
machucar.
Estou calada. Lucien não está.
— Nas noites ruins, ela costumava dormir. — Seus olhos têm um olhar
vítreo e distante neles. — Lembro-me de acordar e encontrá-la na varanda
olhando para o espaço mais de uma vez.
Fico quieta, meu punho apertando a pena. Então, naquela noite... ela
estava sonhando.
Lucien continua. — Eu tentaria acordá-la, mas tudo o que ela faria é
murmurar sobre a Árvore. Eles pioraram, mais velha ela ficou. Ela quebrou
os dois pulsos quando tinha 13 anos.
— Eles são apenas pesadelos? — Pergunto. — Ou eles poderiam ser
mágicos?
Ele encolhe os ombros. — Não tenho ideia. Os polímatas também não
tinham ideia – eles estudam sintomas mágicos para combatê-los, certamente,
mas nunca viram nada assim. Então fomos levados a acreditar que eles não
eram mágicos. Eles eram apenas parte do modo como sua mente trabalhava
durante o sono.
A poeira gira na luz, como milhares de vaga-lumes em miniatura.
Eu entendo uma coisa então. — E você... Então, quando ela morreu, você
foi procurar. Você usou as caçadas anuais do Príncipe para procurar na
floresta, pensando que poderia encontrar essa árvore. Você pensou...
— Eu pensei que tinha algo a ver com a morte dela. — ele concorda,
olhos focando em mim novamente. — Isso a atraiu para algum lugar. Isso
parece igualmente louco, eu sei. Parte de mim estava usando isso como
desculpa. Mas outra parte de mim era – ainda é – suspeita. Os polímatas
disseram que seus sintomas não eram mágicos. Mas já vi acontecer demais
para pensar que é apenas um sintoma humano.
Ele respira fundo, pesado e longo, olhando para o céu azul do verão
através dos cacos do telhado. — Ela se foi por cinco anos. E ela voltou. E
ainda assim, ela ainda sonha com aquela maldita árvore. Eu esperava que ela
tivesse melhorado. Fione e eu – depois que superamos a alegria de tê-la de
volta – nós dois ousamos ter esperança, mas...
Por um momento, admiro a maneira como os raios de sol iluminam seu
nariz orgulhoso, suas sobrancelhas grossas. O Príncipe Lucien vira os olhos
para mim.
— Havia um polímato — diz ele. — Um, dentre os milhares, que não
pensavam que Varia estava louca.
— Apenas um? — Eu torço um pouco.
— Ele não era um polímata oficial. — diz o Príncipe. — Mas mamãe e
papai estavam tão desesperados para encontrar alguém que soubesse de algo
que pediram alguém que pudesse passar no teste básico. Ele era um velho
célebre. Sempre me lembrei do nome dele – ele foi a primeira pessoa que se
vestiu com roupas de polímata e sorriu para mim gentilmente ao mesmo
tempo. Farspear-Ashwalker.
Muro Farspear-Ashwalker.
Meu sangue esfria. Esse nome é assustadoramente familiar – é o
sobrenome de Yorl. Pai do Yorl? Não, seu avô? Quem fez toda a pesquisa
sobre polímatas e não recebeu nenhum crédito por isso?
Aquele que quase fez o soro que me permite falar com valkerax? O que
Yorl está trabalhando tão duro para reivindicar com a valkerax – com Varia?
— O que ele disse sobre os pesadelos de Varia? — Eu deixo escapar.
Lucien suspira. — Eu não sei. Eu era jovem. Eu estava brincando com
algum brinquedo ao lado da mãe enquanto eles conversavam. Garanto-lhe, na
última década, que tentei lembrar. Tudo se mistura. Mas uma coisa se
destacou.
Meus pés me levam até ele, queimando de curiosidade. — O que é isso?
Lucien olha para mim lentamente. — Uma canção. Não me lembro do
que eles estavam falando, mas lembro que em algum momento esse velho
célebre começou a cantar.
Uma canção. Não pode ser – isso não pode ser uma coincidência.
— Quais foram as palavras? — Eu exijo.
— Eu não... — Lucien passa a mão frustrada pelo cabelo. — Não me
lembro. Se eu pudesse, tenho certeza que faria mais sentido.
Só lembro que ele começou a cantar...
— A árvore dos ossos e a árvore do vidro finalmente se reunirão como
família. — Deixei as palavras caírem da minha boca, minha voz trêmula e as
notas um esqueleto nu do que me lembro de Gavik cantando.
O rosto de Lucien se ilumina instantaneamente. — Você sabe disso? —
Ele agarra meus ombros. — Os olhos de Kavar – como você conhece a vida
após a morte?
Eu olho para cima, meus olhos brilhando nos dele, nós dois corados com a
descoberta. A fachada de seu imenso esforço se foi agora. Ele está me
tratando como alguém que ele realmente gosta de novo. É então que percebo
o quão perto estamos. Quão alto minhas palavras poderiam atiçá-lo. Ele não
pode saber o que eu sei. A valkerax é perigosa.
— Zera. — ele insiste, os dedos tremendo nos meus ombros. — Você está
acumulando toda essa informação – por quê? Varia não pode fazer tudo
sozinha. Eu sei que ela está tentando. Eu sei que ela vai se matar fazendo
isso. Por favor, você precisa me ajudar a ajudar minha irmã antes que ela se
machuque.
As palavras de Varia, sua recitação do Gifter da Meia-Noite, ecoam na
minha cabeça. Minha carne alimentará sua fornalha. Ele está certo em estar
preocupado. Ela fará qualquer coisa pelo seu povo, assim como ele. O
cuidado em sua voz é uma faca de veludo e mergulhou no meu peito. Seu
amor por ela é tão óbvio e livre de culpa ou emoções complicadas. É tão forte
que até brilha através de seu desdém por mim, o obriga a pedir ajuda a
alguém contra quem ele mantém seu orgulho como um escudo.
— Se você me contar o que está acontecendo. — ele pressiona. — Fione e
eu podemos ajudá-la.
— Por que você faria? — Eu rio. — Nós não somos mais amigos. Eu sou
um monstro, não sua Noiva da Primavera. Você não tem nenhuma obrigação
comigo. Na verdade, você me odeia.
Lucien inala, desta vez afiado como uma lança. — Zera...
Começo a me mover para deixar o prédio em ruínas, o sol passando pelos
meus olhos.
— Se eu pudesse convencer minha irmã a libertar você... — a voz do
príncipe chama de repente.
— Não. Não serei libertada por sua mão. — Minha voz é de aço macio.
— Por que não? — Ele pressiona. — Eu poderia libertar você...
— Eu vou me libertar.
O silêncio permanece, meu corpo à beira do colapso se eu não sair de
debaixo do seu olhar. Minhas botas dão um passo no chão empoeirado e as
palavras de Lucien desta vez não são suaves – elas são fortes e claras para as
minhas costas.
— Eu não te odeio. Eu não posso te odiar.
Meu peito desmorona. Virar-me e encará-lo agora, conversar sobre nossos
problemas e desconfiar, tentar curar as feridas que fiz – quero isso.
ele está manipulando você. A fome zomba. puxando você
com isca para ajudar a irmã com quem ele se importa muito.
Falo sem me virar para olhá-lo. — É melhor se você o fizer.
Cada pedregulho que eu ando e coloco entre ele e eu, é mais fácil respirar.
A pressão no meu peito está esmagando, mas o vazio no meu coração é frio e
vazio. Ele não ficará entre o meu coração e eu. De novo não. Não dessa vez.
Eu não vou mais ser fraca.
Meus pés me levam de volta ao Portão do Sul, decididamente, mas
quando emerjo à luz do sol da estrada principal, meus ouvidos ouvem o som
de passos de um guarda se aproximando. Eles param atrás de mim e um
guarda chama: — Lady Zera?
Lucien ordenou que eles caíssem em mim? Não. Ele é rápido, mas não tão
rápido, e não se arriscaria a revelar sua identidade como Whisper. Viro-me
para encarar os guardas da lei – um número impressionante deles, pelo menos
uma dúzia, e seis deles atrás são guardas da guarda célebre real.
— Sim? — Eu pergunto inocentemente.
— Sua Majestade, o rei, pediu sua presença na sala do trono.
Um arrepio rasteja pelos meus braços. Chegou a hora do inquérito sobre o
assassinato de Gavik.
A sensação de mal estar no meu estômago se intensifica, mas mantenho
minha postura alta enquanto suspiro. — Muito bem. Lidere o caminho,
senhores.
Para minha surpresa, os guardas da lei me cercam, separam e depois se
fecham, as duas metades se comprimindo ao meu redor em uma formação
protetora – e inescapável. Enquanto eles marcham coletivamente para a frente
e eu ando no centro da flor de ferro, passamos pelo local escondido à sombra
de Lucien perto da chapelaria.
Eu posso sentir os olhos me seguindo, duas agulhas de obsidiana picando
na minha pele, o ar ecoando com as palavras que eu não posso dizer a ele.
Aprendi, Alteza, que é mais fácil odiar do que amar.
12

Um Fogo
Tornado Real

A sala do trono não é tão intimidadora quanto costumava ser.


Presumo que é isso que significa crescer, deixar de ter medo das coisas
que costumavam aterrorizá-lo.
Enquanto os guardas da lei me conduzem através da beleza dos vitrais do
Salão do Tempo, meu corpo começa a formigar com a ansiedade familiar
relacionada à corte, mas respiro fundo e deixo passar por mim. Não tenho
mais a perder. Eu empurrei Lucien para longe. A amizade de Fione e
Malachite está enterrada há muito tempo. Tudo o que tenho é meu coração, e
isso torna tudo muito mais simples.
mais solitário do que nunca.
O arco-íris brilha no Salão do Tempo, estando embaixo dele – eu
costumava admirá-lo, mas agora tudo em que consigo pensar é no meu
pesadelo. Varia tem pesadelos sobre uma árvore. E tive um pesadelo em que
este salão desabou e tive que percorrer os estilhaços de vidro quando eles me
cortaram para alcançar dois rosários do Velho Deus com árvores nuas. Eu
assisti os cacos de vidro deste salão se arrumarem na casca de uma árvore,
tornando-a.
O mal-estar rasteja através de mim quando a luz do sol do verão brilha
nos meus olhos, lançando sombras vermelhas e azuis sobre a minha pele.
Em comparação, o corredor todo de pedra que se abre para a sala do
trono, e a própria sala do trono, parece um levantamento de mil libras do meu
peito. A grande caverna de pedra que abriga o trono me faz sentir em paz.
Talvez por causa do pesadelo do Salão do Tempo, mas também porque o
lugar está quase vazio de pessoas.
Os tetos abobadados da caverna são sustentados por pilares de pedra
polida, tudo iluminado pelos círculos de vidro gravados no alto que deixam
entrar vários feixes concentrados de luz solar abrasadora do lado de fora. A
luz pega nos braseiros de ouro, mas se espalha sobre o trono de cristal na
parte de trás e no centro da sala. Os guardas da lei me marcham pela longa
caminhada no tapete e me detêm no meio de um grande raio de sol.
Meus olhos se ajustam, poeira ensolarada girando em torno de mim
enquanto eu capto cada rosto – o Rei Sref, relaxado e bonito no trono
brilhante, seus enormes guardas célebres reais ao seu lado, e depois
espalhados pelo trono em cadeiras menores estão os três ministros de
Cavanos. Reconheço todos eles pelos banquetes e pelo treinamento de
Y'shennria – os Ministros do Sangue, Tijolo e Moeda.
A cadeira do Ministro da Espada está vazia – o espaço onde Gavik
deveria estar sentado parece aumentar de tamanho a cada segundo que passa.
Eu pensei que não seria nervoso. Mas o Rei Sref ainda é um Rei. Ele se
comporta como um verdadeiro governante, um verdadeiro d'Malvane, e seu
olhar cinza e afiado em mim faz minhas mãos suarem. Eu lentamente faço
uma reverência digna ao chão e levanto minha cabeça apenas quando sua voz
soa estridente.
— Lady Zera Y'shennria... — O Ministro do Sangue, um homem de
bigode baixo, se levanta da cadeira, a voz muito mais alta do que a estatura
trai. — Sobrinha de Quinn Y'shennria, você vem à nossa frente como
testemunha secundária do assassinato do arquiduque Gavik Himintell. A
evidência que você fornecer aqui será usada na investigação de desenterrar o
assassino dele. Sob os muitos olhos vigilantes do Novo Deus, você deve falar
apenas a verdade. Se isso você não fizer, a corte de Vetris será obrigada a
agir corretamente. Você entende?
Testemunha secundária. Isso significa que Lucien já falou com eles. Ele
disse a verdade? Não – se ele fizesse, eu já estaria acorrentada. Então ele
deve ter mentido. Mas se eu não contar a mesma história, subitamente me
tornarei um ímã para suspeitas. E se os ministros investigarem minha história,
certamente descobrirão quem – o que – eu realmente sou. E não posso me dar
ao luxo de ser jogada na masmorra e torturada. Não enquanto a valkerax
estiver em tão curta vida.
Concentro meus olhos no trono, no rosto quieto e inexpressivo do Rei
Sref. Lucien aprendeu esse movimento em particular com o pai, não Varia.
Os outros ministros me observam com olhos críticos.
Foi o Ministro do Sangue que me levou furtivamente à corte vetrisiana
com alguns subornos da parte de Y'shennria, sem dúvida sem saber que eu
era verdadeiramente uma Sem Coração, mas ele definitivamente não está
mais do meu lado. Neste momento, não tenho aliados.
Você me tem e somente eu.
Mesmo que Varia tenha retornado, mesmo que o rei esteja mais feliz
agora, ele ainda mantém aquele ar persistente de perfeita calma.
Sua máscara é, e sempre foi, impecável. Ele sabe que eu sou uma Sem
Coração, uma criatura que ele passou a vida inteira lutando e matando, e
ainda assim nada trai em seu rosto. Varia disse a ele que eu era benigna, e
isso mostra. Ele confia inteiramente em Varia.
Como pode qualquer pai não quer confiar em seu filho?
— Eu entendo. — eu digo baixinho. O Ministro do Sangue se recosta na
cadeira e faz um gesto para o rei.
— Vossa Majestade, podemos começar com o inquérito.
Os olhos cinzentos do rei se movem sobre o meu rosto enquanto ele retira
dezenas no trono. Sua voz é baixa, de alguma forma oprimida, apesar do fato
de ele estar tão feliz ultimamente.
Talvez seja por causa de Gavik? Aos olhos do rei, Gavik era alguém em
quem confiar. Minha mente pisca para Varia. Quanto autocontrole ela deve
ter, depois de ser forçada a se esconder por cinco anos, para não contar ao pai
quem a obrigou a se esconder em primeiro lugar?
Meus lábios se abrem e, por um momento, acho que o menor pensamento
em dizer ao rei Varia é uma bruxa. Fica pronto e disposto nas fibras da minha
língua: Varia é uma bruxa. Ele penetra através do meu sangue e surge na
minha garganta, mas tão rapidamente quanto sobe, o pesado bloco de ferro
total do pensamento de recuperar meu coração o apaga.
— Lady Zera — o rei diz lentamente. — Vou pedir apenas uma vez.
Naquela clareira, você viu quem matou o arquiduque?
Eu tenho que mentir para o rei. Menos do que isso e ele vai me prender,
torturar, usar como um teste de guerra para os polímatas dentro de Vetris.
Inspiro, paro e depois: — Não, Majestade. Tudo foi um borrão.
Minha resposta soa na caverna alta e entre os pilares de pedra esculpidos
ameaçadores. O Ministro da Moeda é o único que ousa fazer barulho – seu
bufo suave.
— Por todas as contas, Vossa Majestade, ela revelou recentemente ser
menos do que uma fonte confiável. — diz o Ministro da Moeda. — Ela
consorte com plebeus em seu tempo de lazer.
— Andar pelo bairro comum não inibe a capacidade de dizer a verdade,
Sarcomel. — o rei responde, sem expressão. Os Ministros do Tijolo e Sangue
mudam de lugar e Sarcomel se encolhe. Eu soltei o menor suspiro. O Rei Sref
se vira para mim, seus longos cabelos salgados caindo por cima do ombro.
— Você nos dirá o que viu. — diz ele. — O melhor que puder.
Eu aceno, mesmo que meu interior esteja se mexendo. Ele sabe que eu
sou insensível, mas não consigo inventar nenhuma bruxa ou coisa mágica na
frente dos outros três ministros.
arrogante! a fome chia.
— Eu... eu convidei Lucien para caminhar comigo na floresta. — Eu tento
fazer minha voz o mais firme possível. — Quando a festa de caça estava
tomando banho, vi um belo teixo e pensei que seria bom olhar ao luar.
Sarcomel zomba, desta vez com uma toxicidade em suas palavras. —
Vossa Majestade, não tenho ideia de por que estamos entrando na palavra de
um Y'shennria. Eles são traidores do Deus Antigo, e o templo diz...
— Não vou me incomodar com o que o templo diz em uma investigação
independente, buscando a verdade do assassinato de um de meus ministros.
— O Rei Sref levanta a voz um fio de cabelo e os ministros ficam em silêncio
novamente.
O Ministro do Tijolo se manifesta. — Com todo o respeito, Majestade, o
Ministro Sarcomel tem razão. Lady Quinn Y'shennria está desaparecida da
capital há seis dias. O momento de sua ausência é inegavelmente
questionável. Deveríamos nos concentrar menos em interrogar as
testemunhas nebulosas – que são crianças incapazes de muito – e mais em
trazê-la de volta a Vetris.
Eu quase dou um passo para trás. A irritação deste velho gambá mofado!
A certeza segura com a qual ele vê Lucien e eu como incapaz me deixa
cambaleando. Surpreende-me repetidamente com o quão pouco nobres
vetrisianos cuidam de seus filhos.
— Você está insinuando que meu filho, o Príncipe, não é capaz, Ministro
Polsk? — Pergunta o Rei friamente, e eu celebro viçosamente suas palavras
por um momento.
— N-nem um pouco, Majestade. — o rosto antigo e manchado de fígado
do Ministro Polsk cora com um leve tom esverdeado. Eu só posso assistir
enquanto os balanços de potência se inclinam para frente e para trás.
Enquanto o Ministro Polsk tropeça nas próximas palavras, o Ministro
Sarcomel se levanta da cadeira e aponta furiosamente para mim.
— Você viu ou não viu o arquiduque Gavik assassinado, Lady Zera? —
ele grita. — Se alguém conseguisse chegar até Gavik e matá-lo, nós
poderíamos ser os próximos! Você não vê? Ninguém está seguro. Esta é uma
trama profunda das bruxas para desestabilizar o poder dentro de Vetris e nos
esfarelar por dentro! E
vocês estão todos sentados aqui entretendo a realidade de conversar com
um de seus simpatizantes como se fosse lógico, como se ela não
representasse nenhuma ameaça!
Os olhos cinzentos do Rei encontram os meus por um breve segundo, e a
verdade circula entre nós. Sarcomel é um idiota medroso, mas ele está
parcialmente certo. Eu represento uma ameaça, muito mais do que ele jamais
poderia sonhar. Um Sem Coração sendo tolerado na corte vetrisianana?
Estranho. Impossível.
Mas sempre fui um pouco impossível; impossivelmente bonita,
incrivelmente bem vestida. A menina impossível está aqui na frente de um
Rei cavanosiano, existindo exatamente onde ela não deveria, quando não
deveria.
Os Ministros rapidamente se dedicam a discutir, Sarcomel o mais alto de
todos. Eu cerrei meus punhos na minha saia, nervos zumbindo através de
mim. O que quer que eles decidam, estou à mercê deles. Varia disse isso
sozinha – ela pode fazer muito por mim.
Suas vozes ricocheteiam entre as paredes de pedra, os guardas da lei os
cercando, imóveis. Com a exibição dos ministros, tenho quase certeza de que
Gavik era o falso líder deles, e agora sem a cabeça, eles estão sem leme, se
debatendo.
Sarcomel interrompe a discussão e aponta para mim descontroladamente.
— Sua Majestade, ela é uma ameaça até que Lady Y'shennria possa ser
encontrada e limpa. Exijo sob a Concordata Sem Sol que você a prenda como
inimiga do reino!
Não – não a masmorra. Eles descobririam que eu sou um Sem Coração
eventualmente, se eu fosse pega em uma cela, curando rapidamente e ficando
mais faminta e mais brava enquanto eles insistem que eu coma comida
humana em vez de órgãos. O rei se inclina para frente e, assim que abro a
boca para me defender, a porta da sala do trono se abre. O aplauso ecoa na
caverna e envia Sarcomel latindo.
Quatro guardas da lei entram correndo na sala do trono, liderados por um
Malachite de aparência sinuosa, as sobrancelhas brancas contraídas. Ele passa
por mim sem sequer olhar zangado em minha direção – e é assim que sei que
algo está muito, muito errado.
— Sua Majestade. — diz Malaquite, e é a primeira vez que o ouvi usar
um honorífico de bom grado, mas ele não dobra o joelho. — Há um incêndio
de bruxas no bairro comum, perto do Portão do Sul.
Fogo de bruxa? Fogo de bruxa real? O ar fica tão espesso que parece
sufocante. Sarcomel começa a exclamar alguma coisa, mas o Rei Sref levanta
do trono, descendo as escadas e se aproximando rapidamente de Malachite.
— Lucien? — O rei exige de Malachite, procurando o rosto do beneather
enquanto meus pulmões lutam contra eles. Lucien estava no Portão Sul.
Acabei de vê-lo lá.
morrendo. A fome ri. ele está queimando vivo sem nunca
saber como você se sente sobre ele — Não no palácio — responde
Malaquite. — Estou indo.
O rei assente, toda a troca é cortada e com muito por dizer.
Malachite imediatamente se vira, correndo com sua longa marcha para
fora da caverna.
— F-Fogo de bruxa? — Sarcomel gagueja.
O Ministro do Sangue e o Ministro do Tijolo compartilham um olhar
tenso. O fogo de bruxa de Gavik ao redor do templo de Kavar duas semanas
atrás era falso. Mas isso? Gavik não é mais capaz de orquestrar uma coisa
dessas, e os Ministros parecem chocados demais para ter feito isso. Varia
nunca deixaria Gavik fazer isso de novo, e ela nunca faria isso sozinha e
atrairia toda essa atenção.
O que significa que a probabilidade de um verdadeiro incêndio de bruxas
é…
Eu me viro para o Rei Sref. — Sua Majestade, eu também vou.
Volto para o inquérito, mas Lucien...
— Enquanto eu respirar, Lady Zera, nunca permitirei que alguém como
você seja sua noiva — murmura o Rei Sref, tão perto que consigo ver os pés
de galinha enrugando seus olhos sérios. — Mesmo assim, você o protegeria?
— Sim. — eu deixo escapar. O Rei esconde seu olhar em mim, como uma
rebarba presa sob a pele. Eu posso sentir todos os movimentos de seus olhos
como o bisturi de um polímato entrando no meu corpo. E então, quando ele
me rasga em pedaços, ele assente.
— Então vá. Não deixe meu filho se ferir, ou será o último erro que você
cometerá.
Giro e deixo sua ameaça fria na sala do trono mais fria.

Eu ouço o caos antes de vê-lo.


Os passos dos criados correm freneticamente, todos se reunindo para se
pressionar contra as janelas do palácio voltadas para o norte. O barulho deles
é silencioso e vacilante, as palavras bruxas e a guerra dançando
freneticamente no ar. As multidões são tão densas e apertadas ao longo das
janelas do corredor que eu não conseguiria entrar em nenhuma delas, mesmo
que quisesse.
Não posso me dar ao luxo de parar e ficar de boca aberta,
independentemente. Lucien está lá em baixo.
Foi Varia? Ou as bruxas lançaram o primeiro ataque da guerra?
Os guardas da lei do palácio parecem acreditar no último, e bruscamente
nos afastamos um do outro enquanto eles correm para se armar e estabelecer
um perímetro. Faz trinta anos que um cavanosiano lutou contra um Sem
Coração, e apenas os mais velhos parecem capazes de manter a cabeça,
andando calmamente.
Ouço vários guardas mais jovens passando enquanto corro pelo corredor.
— ...barricar as portas e janelas?
— As barricadas não impedem bruxas, tolos, elas se teletransportam...
— ...o exército completo ainda não chegou. Se eles trouxessem Sem
Coração o suficiente, poderiam nos invadir...
— Ponha-se em seus postos! — Grita um oficial comandante de repente, e
todos os guardas da lei espalhados como moscas bem blindadas.
Finalmente chego à entrada do palácio e congelo.
Dos degraus do palácio, da altura dele, é fácil ver onde exatamente está o
fogo de bruxa – fumaça subindo em enormes plumas da área perto do Portão
Sul. As plumas são tão altas que superam a Senhora Carmesim, que detecta
mágica, no meio do bairro comum. Se eu olhar de soslaio, ali, contra o
ameaçador pôr-do-sol carmesim, posso ver o lampejo de uma chama escura e
sombria piscando entre os telhados de madeira. Eu anulo o pânico e tento
pensar. Ainda tenho tempo para encontrar Fione ou Varia? Será que alguma
delas seria capaz de fazer a diferença? Varia poderia nos teletransportar para
o Portão Sul, mas qualquer um que visse fazer algo levemente mágico nesse
momento em particular provavelmente seria espancado até a morte. Eu tenho
que ir sozinha.
Se Lucien morrer...
Engulo o medo frio e passo os pés mais rapidamente pelos degraus do
palácio. Ele não vai morrer. Não vou deixar que ele atrapalhe meu coração.
Mas também não vou deixá-lo morrer.
Pegar uma carruagem não é o movimento certo; muito pânico vai entupir
as ruas. Os guardas da ponte que cruzam o bairro nobre e o bairro comum
provavelmente não deixarão ninguém passar. O que significa que a única
opção viável para chegar a Lucien é a que Y'shennria me mostrou – através
dos canos de aqueduto do rio que separam os bairros. Desço correndo os
degraus e sobre o palácio, levantando peso quando chego à margem do rio.
Até as estradas nobres do quarteirão são frenéticas – carruagens e guardas
da lei em corridas de cavalos de um lado para o outro. Mas funciona a meu
favor; ninguém me impede no meu caminho. Deslizo meu cabelo suado para
trás para ver corretamente e desço pela lateral da parede coberta de algas, me
deixando pendurar antes de cair em um cano de latão. Eu sigo os canos
enquanto eles se entrelaçam, enormes e verdes maciços e enferrujados, como
cobras petrificadas.
Eu quase consegui atravessar quando ouvi um guarda da costa nobre
gritando: — Você está aí! Ninguém é permitido nisso! Volte imediatamente!
— Deuses, eu gostaria de saber mais de um juramento de beneather. —
murmuro baixinho, me puxando para cima e para outro tubo. Meus olhos
pegam um cano distante no lado comum da costa – se eu pular longe o
suficiente, poderia fazê-lo e jogar o guarda da lei.
Mas é um grande salto, o rio correndo furiosamente abaixo. Se eu não
conseguir, serei varrida e perderei um tempo precioso.
— Pare! — Os gritos do guarda ficam mais altos quando ele determina
cruzadamente seu primeiro cachimbo.
— Você obviamente não me conhece, senhor. — eu grito, afastando meus
cabelos suados dos meus olhos novamente. — Eu preciso de pelo menos três
'por favor' e uma rasteira antes de fazer qualquer coisa!
Girando para enfrentar o cachimbo, respiro. Dentro e fora.
Do silêncio, no silêncio.
De pé em um cano enferrujado, fugindo de um guarda enquanto corria em
direção a um garoto que eu não posso ter é um lugar muito estranho para
obter uma revelação, mas nunca fui de normalidade. É isso que significa ficar
em silêncio, o que Reginall, que me ensinou a Chorar, quis dizer – no meio
da cacofonia, no meio do caos da vida, para encontrar aquele momento em
que a única coisa que importa é o que se faz a seguir. O passado não importa.
O futuro não importa.
Tudo o que tem significado é o momento.
É isso que o silêncio significa – viver apenas pelo próximo momento.
Eu aperto minhas pernas e atiro para a frente. Minhas coxas bombeiam
com toda a minha força condensada e o mundo cai quando eu pulo da borda
do cano.
O rio agita-se em picos embaixo de mim, como em tempos de lentidão,
meus braços e pernas agitando como se estivessem submersos em calda de
açúcar, e de repente minha palma bate em metal duro, meus dedos emitindo
fracas rachaduras. Pausa. Meu impulso me move para frente, na curva de
outro nível de cano de metal com meu peito, todo o vento batendo em mim
enquanto minhas costelas se quebram. A magia da Filha Risonha começa a
funcionar instantaneamente, mas me puxando para cima com os dedos
quebrados e a palma da mão fraturada... a dor é cegante, tridentes de raios
pulsando no meu braço, na minha espinha e nas costas. Inspiro úmido e puxo
o sangue do meu pulmão perfurado, mas essa respiração é energia suficiente
para eu lançar minha outra mão para a frente e me levantar pelo resto do
caminho.
Quando me levanto, estou curada. O cheiro de fumaça queima meu nariz,
os gritos e gritos dos vetrisianos ecoando entre todos os edifícios do bairro
comum. Eu me dou conta rapidamente – a Dama Carmesim a leste de mim
significa que o Portão Sul fica na próxima rua.
Meu palpite anterior estava certo – as ruas que se afastavam do Portão Sul
estão completamente congestionadas, homens gritando enquanto tiravam as
pessoas do caminho, célebres de olhos arregalados com as orelhas na cabeça
e as hastes levantadas, bebês berrando gritos de medo. Os pais os afastam do
caminho de seu braço e os guardas da lei tentando impedir que todo o caos
acabe em pânico. Eu sou a única que se move em direção ao portão e,
felizmente, os guardas da lei estão preocupados demais em impedir que a
correria iminente me pare.
Meus olhos procuram freneticamente na multidão por Lucien, mas não há
nenhum indício de um capuz de couro escuro em qualquer lugar para ser
visto. Ele ainda não pode estar na chapelaria?
Vou em direção a ela, a fumaça se espessa como a névoa do inverno
enquanto luto contra a corrente de pessoas.
Ao contrário das estradas que levam ao Portão Sul, o coração dele está
vazio. O crepitar das chamas ruge alto em meus ouvidos, ondas de calor
atingindo minha pele exposta e, quando eu viro uma esquina, eu finalmente o
vejo pela terceira vez na minha vida.
Fogo de bruxa.
13

Oração

Nightsinger mantinha uma lareira acesa o tempo todo, as chamas negras


mantendo os três corações de Crav, Peligli e eu quentes em seus frascos. Os
corações de Sem Coração devem ser mantidos aquecidos o tempo todo, por
feitiço ou chama, ou no caso de Nightsinger, ambos. Fogo de bruxa é um
feitiço para mim. Observo as grandes gotas de fogo negro sombrio devorarem
a madeira modesta dos prédios vetrisianos, trincas de vigas e brasas
espalhadas, sabendo que nenhuma quantidade de água pode apagá-las. O
fogo das bruxas só para de queimar quando a bruxa que o acendeu o deseja
ou se elas morrem.
Se Lucien está queimando, ele nunca vai parar de queimar.
se ele morrer, ele a deixará para trás, como você deseja.
As palavras da fome só me estimulam mais rápido na estrada.
Recuso-me a considerar a validade do que diz desta vez. Ele não vai
morrer. Ele não vai.
Ele pode não ser meu mais uma vez, mas eu me recuso a viver em um
mundo sem ele.
Brasas perdidas prendem meu cabelo e meu vestido, queimando através
de tecidos e pele - queimando para sempre -, mas eu as ignoro e continuo
pressionando os becos iluminados por do sol .
Eu não quero que ele morra. Não quero que ele me esqueça.
Esse pensamento queima mais quente em mim do que o fogo de bruxa.
Por toda a minha insistência dele seguir em frente, ele me odeia, eu não quero
que ele o faça. Quero que ele esteja comigo, para que estejamos juntos. Não
quero perdê-lo, mesmo sabendo que devo, e isso está me despedaçando.
A fumaça espessa obscurece meu senso de direção, e o contorno vago da
parede branca ao redor de Vetris aparece acima da minha cabeça. Procuro
rapidamente quaisquer marcadores distintos e encontro a beira do Portão Sul,
os andaimes saindo da fumaça.
Vislumbro brevemente a porta que leva à valkerax e paro. Yorl e o outro
célebre estão muito longe e cercados por pedra e metal - estarão seguros.
A fumaça está tão espessa agora que mancha meus olhos, meus pulmões
lutando para respirar. Sei que tenho apenas um pouco de tempo antes de
morrer por inalar tanta fumaça, mas Lucien também. E ele não volta a viver.
O calor escorre pela minha pele com suor, e cambaleio quando me aproximo
da chapelaria. O fogo condensa aqui em uma cova sufocante, o olho do
inferno. Um edifício desmorona quando passo, madeira e ladrilhos caindo no
chão, e gritos agudos cortam o rugido do fogo enquanto pessoas saem do
porão do prédio, lideradas por uma figura familiar em couro preto.
Ele ainda está vivo! Graças aos deuses! Meu coração dispara, a fome
zombando disso.
traidora.
— Vão! — Lucien grita, apontando para a estrada aberta para longe do
Portão Sul, e não precisando ser avisado duas vezes, as pessoas fogem,
aventais e casacos agarrados à boca e ao nariz. O capuz de Lucien o protege
um pouco, mas não o suficiente, e eu assisto horrorizada quando ele
imediatamente se vira para entrar em outro prédio em chamas. Corro até ele e
puxo seu braço.
— Ei! Seu tolo!
Lucien cambaleia, arregalando os olhos. — Você-o que você está fazendo
aqui?
— Férias! O que você acha? — Eu grito. — Precisamos sair daqui!
A fogueira negra brilha em seus cabelos mais escuros. Ele não diz nada,
os olhos arregalados. Ele não está usando a máscara principesca ou
propositalmente me ignorando, ele está... não está me vendo . Seus olhos
estão sem foco, vidrados. Antes que eu possa perguntar o que há de errado,
ele se vira, pegando outro prédio em chamas.
— Oh não, você não! — Eu estalo para ele, puxando-o de volta pelo
braço. Para minha surpresa, seu corpo cede facilmente, com tão pouca
resistência que ele quase cambaleia para trás em mim. Ele está ofegando,
suando e segurando meu braço como se fosse o último degrau de uma escada
pendurada em um poço. Há quanto tempo ele está aqui, ajudando as pessoas a
sair do fogo? Ele está à beira da exaltação - seu coração por seu povo maior
do que seu corpo pode sustentar.
— Aguente! — Eu grito, passando o braço sobre o meu e carregando seu
peso enquanto o conduzo para trás. Precisamos de ar fresco e rápido.
— Você — Lucien murmura, seu rosto tão perto do meu que posso ver o
suor esculpindo suas maçãs do rosto. — Você me odeia?
— Certo, sim... porque agora é um ótimo momento para discutir nosso
relacionamento! Quando tudo está pegando fogo literalmente!
— Eu estalo, arrastando-o sobre os paralelepípedos. — Onde na vida após
a morte há um beneather super-forte quando você precisa dele?
Através do barulho alto dos prédios devorados pelo fogo e o sangue
zumbindo em meus próprios ouvidos, assusto com a sensação de algo suave e
calejado na minha bochecha. Uma mão. A mão de Lucien, perdendo uma
luva e descansando lá levemente, enquanto seus olhos sem foco se
concentram em mim ao mesmo tempo.
— Por favor, fique nos meus sonhos, pelo menos.
Meu peito se contrai com uma dor irracional. Ele está falando palavrões e,
inquieto, temo que ele esteja além da ajuda. Sua mão cai frouxamente ao seu
lado, e meu interior cai com ela. Não, não, não
— Fique vivo. — eu grito com ele, histérica afinando minha voz. — Você
me escutou? Não te dei permissão para morrer, Lucien!
— Luc! — uma voz repentina uiva. Malachite sai correndo de uma parede
de fogo, as chamas rolando de sua pele e caem como água com óleo. Ele
agarra todo o corpo de Lucien de mim e o joga por cima de um ombro, o peso
morto do Príncipe nada ao beneather.
— Por aqui!
Cansada demais para questionar, sigo seu contorno nebuloso e comprido
através da fumaça. O mundo gira, mas eu agarro a cota de malha quente de
Malachite, passando meus dedos por ele como um chumbo, enquanto queima
minha pele. Há uma pausa no fogo, graças a um trecho de velhos prédios de
pedra, e quando chegamos a ele e entramos em uma rua cheia de cidadãos
confusos e lamentando, observando as chamas, minha tontura se foi.
Malachite coloca Lucien em uma carruagem à espera e faz um movimento
frenético para mim. — Temos que levá-lo a um polímato! Rápido!
Concedo a mim mesma um momento de encarar os olhos descansados de
Lucien, seus cílios contra suas bochechas, o contorno de seu corpo frouxo no
banco da carruagem. Ele queria salvar seu povo. Ele dirigiu-se a este limite
para tirá-los do fogo. Ele talvez tenha morrido por eles.
Mas eu? Eu não posso morrer, e o fogo ainda acende.
— Continue sem mim. — Eu aceno. — Vá!
Malachite não precisa ser avisado duas vezes. Ele fecha a porta da
carruagem e o motorista manobra a multidão a uma velocidade alarmante.
Observo-os partir e depois volto, entrando no fogo e nos prédios em chamas
com os quais o Príncipe estava tão preocupado.
se matando por ele, até o fim.


Consigo tirar mais quatro pessoas do andar superior de seus prédios,
aproveitando o pouco que posso da fome para afastar as vigas e puxar
homens adultos sobre as pedras da calçada.
Finalmente, quando a quarta pessoa se afasta, desmorono na entrada de
um prédio, a fumaça fazendo o mundo escurecer.
Fracamente, através dos meus olhos moribundos, sinto queimação e vejo
o fogo negro se espalhando pelas minhas pernas, sobre o meu corpo. Queima.
Eu posso sentir meu cabelo queimando, sangue e pus e gordura assando sob a
minha pele.
— Fogo… — eu sussurro. — Por seus escravos.
A fumaça não me mata rápido o suficiente, o fogo consome meu corpo
lento em uma onda de calor agonizante que nem consigo reunir a energia
necessária para escamar . Minha pele fica preta, rachando como terra seca,
meu corpo se contorcendo enquanto o fogo consome meus músculos e ossos.
A magia de Varia tenta desesperadamente me curar, mas o fogo nunca é
satisfeito, rugindo através do meu corpo como se não fosse nada além de
inflamação e energia para ele se alimentar.
Finalmente, uma fome maior que a minha.
Às vezes, quando a morte dói especialmente, minha boca choraminga
coisas espontâneas, implorando aos deuses por minha mãe. Meu pai. Alguém.
Qualquer um.
O fogo se enfurece, me consumindo, consumindo minha voz pequena e
assustada.
A última coisa que vejo é a parede branca ao redor do Portão Sul, a porta
de latão por onde passo todas as manhãs me provocando. A valkerax está lá
em baixo. Estou tão perto do meu coração, e ainda assim tão longe.
Finalmente, misericordiosamente, eu morro.

Demora muito mais tempo para curar um Sem Coração queimado, mas
eventualmente acontece. Eu acordo com as cinzas ao meu redor, a casa em
que desmoronei agora nada além de uma pilha de preto. O fogo continua em
fúria, mas segue adiante, além da vizinhança imediata do Portão Sul,
consumindo os telhados de edifícios distantes. Minhas roupas sumiram, mas
a espada do pai está ao meu lado, o metal quente e chamuscando minhas
mãos enquanto eu a pego. A porta de latão que leva à valkerax ainda
permanece forte e provocadora.
Eu olho para ele da melhor maneira possível que meus olhos
reformadores podem. Eu já morri uma dúzia de maneiras. E o fogo é, ainda, a
pior de todas. Minha cabeça está girando, meu corpo formigando como se
estivesse sendo esfaqueado inúmeras vezes, mesmo enquanto se cura. Algum
dia, em breve, não precisarei continuar morrendo assim. Algum dia, a agonia
de ser trazida de volta após uma dor terrível nunca mais fará parte da minha
vida.
— Estou indo, pai. — murmuro através dos meus lábios rachados,
olhando para a espada enferrujada na minha mão. — Para você e mãe.
Meu corpo está quase inteiro, e cambaleio até meus pés carbonizados e
lentamente curando e saio pela estrada novamente antes que a fumaça possa
me matar mais uma vez.
Quando chego à movimentada rua, todo último pedaço da minha pele
carbonizada está curada. Um tipo de célebre me vê saindo das chamas e joga
um cobertor em volta do meu corpo nu. Volto ao palácio entre boatos
voadores, famílias deslocadas e guardas temerosos e fortemente armados
assediando a população. Eles batem nas portas, interrogando em voz alta
quem chama a atenção.
Os soldados vetrisianos do exército do lado de fora dos muros se arrastam
para dar apoio sob a forma de mais intimidação e patrulhas vagando pelas
ruas e, entre as ondas da minha exaustão, meu não-coração afunda – a ponta
da faca pela qual a guerra se aproximou chegará ainda mais perto nessa onda
de fogo de bruxa. Nightsinger, Crav, Peligli, Y'shennria – o perigo da guerra
e da morte está se aproximando cada vez mais perto deles.
Consigo me arrastar de volta ao bairro nobre e atravessar a ponte bem
guardada, exibindo a espada enferrujada do pai para os guardas da lei – um
item que toda a corte vetrisiana sabe que possui Lady Zera Y'shennria e a
única coisa minha que sobreviveu às chamas. Os nobres estão reunidos no
gramado da frente do palácio em grupos unidos, todos assistindo o fogo com
rostos preocupados.
Nenhum Sem Coração invasor foi visto do outro lado do muro, e assim o
pânico inicial desapareceu, mas ainda fervilha logo abaixo da superfície.
Estou na metade da estrada de cascalho para o palácio quando ouço o
suspiro de um grupo nobre próximo, reunido em torno de um grande tubo de
latão, não muito diferente do pequeno que Y'shennria me deu para ver a
distância pela primeira vez que nos conhecemos.
— O fogo!
— Saiu!
Viro a cabeça por cima do ombro e, pela primeira vez, os nobres
decidiram falar a verdade. O sol, começando a se pôr em tons brilhantes de
violeta e gelo, ilumina um Portão Sul esfumaçado, livre de chamas negras,
cinzas e carvão, a única evidência que resta.
Quem quer que fosse a bruxa, onde quer que estivesse, eles queriam que o
fogo parasse ou foram mortos. Sabendo em que estado a cidade está, correria
o risco de adivinhar o último. Varia saberia. Ela precisa – ela tem pessoas na
Dama Carmesim, limpando suas ações mágicas da detecção. Certamente eles
descobriram algo sobre essa bruxa desonesta.
Eu ando pela Ala da Serpente de volta ao quarto de Varia, e brevemente
meus olhos pegam o corredor que leva aos apartamentos de Lucien. Um
bando de polímatas reais permanece lá fora, sussurrando com olhares
preocupados em seus rostos. Não quero nada além de entrar em seu quarto e
vê-lo, ver com meus próprios olhos se o peito dele ainda sobe e desce.
— Lady Tarroux!
Eu olho para cima e vejo os polímatos agitando uma Lady Tarroux sem
fôlego. Seu rosto está branco, as mãos agarradas na frente do peito e a voz
suave apenas alta o suficiente para eu ouvir.
— Por favor, eu imploro. — ela implora. — Diga-me, ele vai viver?
Meu coração afunda quando um dos polímatos balança a cabeça. — Sinto
muito, senhora. Ainda é muito cedo para contar.
O rosto redondo de Lady Tarroux se enruga, mas ela tenta tanto
permanecer forte, sua postura reta e verdadeira. — Por favor, deve haver algo
que eu possa fazer para ajudar. Permita-me ajudá-lo da maneira que puder.
— Sinto muito. — insiste o polímata. — Não há nada. Sua condição é
muito delicada. O rei e a rainha já o visitaram – ele deve permanecer sozinho
agora. Os únicos permitidos no interior são seus polímatas e seu guarda-
costas.
Meu estômago afunda e depois sobe. Malachite deve estar dentro. Isso é
bom – tenho certeza de que ele não deixará Lucien morrer tão facilmente. O
rei e a rainha visitaram, mas não Varia?
Onde ela está? Talvez controlando os danos – tentando descobrir qual
bruxa fez isso?
Lady Tarroux engole, seu pescoço longo e elegante balançando.
— Então ficarei aqui, o mais próximo possível, e orarei ao Novo Deus por
sua vida.
Os polímatas e eu a vemos assentar no tapete, os polímatas lutando e
insistindo em uma senhora nobre como ela não deveria se ajoelhar em um
lugar tão público, mas Tarroux os ignora. Ela senta-se de costas contra a
parede de Lucien e aperta as mãos, os lábios se movendo silenciosamente em
fervorosa oração. Algo como afeição por ela brota em mim espontaneamente
– orgulho significa tudo para um nobre, e aqui está ela, se prostrando na
esperança de que traga Lucien de volta à vida, independentemente da
aparência.
Vou para o quarto de Varia e visto o vestido mais próximo que posso
encontrar antes de me aventurar no corredor novamente.
Quando me aproximo da porta de Lucien, os polímatas me observam com
cautela, mas quando vou para Lady Tarroux, eles parecem relaxar. Lady
Tarroux não olha para cima até ouvir minhas botas na frente dela. Ela pisca
seus grandes olhos castanhos para mim e me dá um sorriso pálido.
— Lady Zera. Você veio visitar o príncipe também? Ele gosta muito de
você – sua presença sem dúvida fortalecerá o espírito dele.
Eu limpo minha garganta. — Não tenho tanta certeza disso.
— Eu tenho. — Ela coloca a boca em uma linha determinada, as
sobrancelhas cerradas. — Ele raramente fala comigo, mas quando fala, é
sobre você. Ele cuida de você profundamente. Pelo que reuni, você é uma
pessoa maravilhosa.
É algo tão estúpido para um nobre dizer – tão diferente dos elogios pelas
costas que estou acostumada de meninas da minha idade na corte. Vindo
dela, e de um rosto tão sério, suas palavras não parecem fabricadas. Ela é tão
genuína, nenhuma máscara nobre a ser vista. É assim que todos os Sangue de
Ouro são, ou ela simplesmente nunca desenvolveu uma máscara para
começar? Eu quase rio, mas consigo guardar para mim enquanto me sento ao
lado dela.
— Eu nunca orei antes. — eu admito. — Você terá que me ensinar.
Os olhos de Tarroux brilham de alegria. — Sim, claro. Eu ficaria honrada.
Sento-me ao lado dela e repito suas orações, minhas mãos entrelaçadas.
Ela reza pelo bem-estar de Lucien, sua força, sua longevidade. Ela reza para
que ele viva uma vida longa e feliz, ficando um pouco sem fôlego com o
esforço de dizer tantas coisas tão rapidamente. Sua sinceridade é óbvia, e
mais de uma vez eu tenho que sufocar uma risada de como é adorável.
Ficamos ali um pouco antes de eu me cansar, agradecer e me desculpar
pelos apartamentos de Varia, onde é mais fácil ficar de mau humor e me
preocupar com Lucien sem lutar contra o desejo de invadir seu quarto. A
imagem dele inconsciente e imóvel na carruagem é queimada nos meus
olhos, talvez literalmente. Mesmo quando saio, horas depois, Lady Tarroux
ainda está lá, sem se mexer nem um centímetro e orando fervorosamente. Seu
cabelo está grudado na testa com suor, os ombros caídos por manter essa
posição por tanto tempo.
Ela fica ao lado de Lucien. Ela é inabalável, enquanto um traidor como eu
contempla, a cada hora do dia, recuperando meu coração e deixando Vetris
para sempre.
— Nossa pequena dama comeu? — Eu pergunto aos guardas.
Eles balançam a cabeça. Nova pestana de Deus, ela pode ser mais teimosa
do que o próprio Lucien – eles vão dar um ao outro pela corrida. Mas ela tem
que comer, ou não fará nenhuma corrida. Eu me viro e faço uma viagem até
as cozinhas. Depois de algumas palavras e muitos passos cuidadosos, volto
com um prato carregado de carnes frias e pão quente, frutas doces e nozes
densas e escuras. Ajoelhada, coloco na frente dela e sorrio.
— Ei, milady sacerdotisa. — eu provoco. — Faça uma pausa e coma.
Estou bastante certa de que o Novo Deus não escuta as orações de cadáveres
encolhidos.
Os olhos de Lady Tarroux se abrem, caindo no prato e depois no meu
rosto. — Você, Lady Zera. Você trouxe isso para mim?
— Você vê mais alguém por aqui bobo o suficiente para não comer por
sete horas? — Eu sorrio.
Os cabelos loiros de Lady Tarroux capturam a luz da lua enquanto seus
lábios se abrem em um sorriso gentil. — Eu vejo agora. Sua Alteza estava
certa – você realmente é gentil.
— Tudo o que fiz foi empilhar algumas coisas em um prato. — Eu
suspiro. — Não é como se eu crescesse os frutos do meu próprio rabo.
Espero que ela recue com a palavra, mas Lady Tarroux apenas ri, como
mil passarinhos felizes em uma árvore. — E também é verdade que você é
muito divertida!
Eu coro vermelha – ouvir de alguém tão direto é diferente de ouvir dos
costumeiros bajuladores nobres. — Apenas se apresse e coma antes que
desmaie."
— Sim, obrigada. — concorda Tarroux, rasgando um pedaço de pão e me
oferecendo o outro inferno. Balanço a cabeça com um sorriso irônico.
— Eu sou uma... exigente comedora. É todo seu.
Ela fala em torno da boca cheia, uma quebra de etiqueta inesperadamente
deliciosa que me lembra tanto Crav, que nunca conseguia parar de falar com
a boca cheia.
— Você disse que nunca rezou antes de hoje. — diz ela. — Você não é
religiosa?
— Não particularmente. — digo cautelosamente, esperando sua
advertência. Mas isso nunca acontece. Ela apenas assente sabiamente.
— Meu pai é como você. Nós somos originalmente de Helkyris.
A religião é menos prioritária do que a polmatemática. Mas quando
cheguei à maioridade aqui, encontrei a luz de Kavar. O templo dele me
chamou. Meu pai está um pouco decepcionado comigo, mas ele tem minha
outra irmã, pelo menos. Ela é inteligente.
— Não seja modesta. Eu já vi aqueles livros de hinos no templo.
— digo. — Você precisa ter pelo menos uma xícara de inteligência para
memorizar tantas palavras. E é tudo velho vetrisiano também.
— Oh… — Ela fica um pouco vermelha nas bochechas. — Mas eu gosto
muito. Quase não parece esforço.
Está quieta enquanto ela persegue o pão com um gole de água, pegando
uma uva e olhando pensativa. Ela canta algo suave e baixinho, a linguagem
como nada que eu já ouvi antes.
— Isso é um hino? — Eu pergunto.
Tarroux assente. — Meu favorito. É muito florido, comparado aos outros
hinos. Ele usa muitas metáforas, a maioria delas sobre o mundo natural. —
Ela repete as letras em Vetrisiano Antigo, falando mais do que cantando
agora.
— O que essa linha significa? — Eu arqueei uma sobrancelha.
Ela sorri brilhantemente. — É o principal chorus. O padre me disse que
significa 'glória para a primeira árvore e não para outras'.
Paro de mexer na minha bainha do vestido. — A primeira árvore?
Ela assente. — O padre disse que é uma velha metáfora para Kavar. —
Ela se inclina e sussurra conspiratoriamente. — Uma vez, eu estava
procurando a música na biblioteca de hinos do templo e encontrei uma versão
antiga de antes da Guerra sem Sol. Ele falava sobre todo tipo de coisas
estranhas e maravilhosas. Mas os padres não usam mais essa versão.
Eu me inclino. — Por que não?"
— Ele menciona o… Bem, eu… — Ela franze a testa e sussurra ainda
mais suave. — O Deus antigo .
— Que herege. — eu sussurro de volta, fingindo admiração. — Mas
fascinante.
— Não é? — Ela sorri. — Eu sei que não devemos falar dele, porque os
olhos de Kavar estão sempre olhando, e eu tento não falar.
Mas é o meu hino favorito. Estava sendo cantado quando entrei no templo
aqui em Vetris, e por isso sempre tive um ponto fraco por isso.
A primeira arvore poderia, como diz Tarroux, ser apenas uma metáfora.
Mas algo sobre isso não se encaixa bem comigo. O abeto no hino, a música
que o avô de Gavik e Yorl sabe…
— Você se lembra como foi o velho hino que você encontrou? — Eu
pressiono. —No vetrisiano comum, é claro.
A abertura repentina da porta ao nosso lado nos faz pular de pé enquanto
um polímato sai correndo.
— Ele está acordado! Sua Alteza está acordada! Informe o Rei
rapidamente!
As correntes de ansiedade apertadas se soltam dentro de mim
instantaneamente. O puro alívio me inunda até os dedos dos pés,
enfraquecendo os ossos, me mantendo na posição vertical. Lucien está
acordado. Ele vai viver . Um dos guardas sai correndo para contar ao Rei e,
ao meu lado, Lady Tarroux se apoia em uma parede próxima com uma das
mãos, fazendo o sinal de Kavar tocando a outra mão nas duas pálpebras.
— Oh, graças ao novo Deus. — Ela se vira para mim. — Lady Zera,
devemos cumprimentá-lo juntas? Estou certa de que ele ficaria feliz em vê-la.
Eu olho para a fenda escura na porta aberta. Entrar, vê-lo acordado e vivo
com meus próprios olhos – Não.
Ouvir dizer que ele está vivo. Isso é o suficiente para mim.
Eu sorrio para Tarroux. — Você continua. Tenho negócios a tratar.
Seu rosto está machucado, mas apenas por um segundo antes de fazer
uma reverência. — Claro. Obrigado por sua companhia, Lady Zera.
— Você pode me agradecer, Lady Tarroux — eu faço uma reverência
mais profunda. — ficando ao seu lado.
As palavras doem, não, como se eu tivesse cortes nos lábios e cada sílaba
seja sal e vinagre. Suas pálidas sobrancelhas se franzem, e eu posso ouvir as
engrenagens da corte trabalhando em sua mente; A Noiva da Primavera do
Príncipe Lucien, que ele havia pedido para se casar com ele na Caçada,
pedindo a outra garota em sua residência que ficasse com ele. É um pivô
estranho, um caminho bizarro para uma Noiva da Primavera seguir –
rejeitando o Príncipe, afastando-o dela quando sua própria existência na corte
pretende atraí-lo.
Eu saí antes que ela pudesse falar.
O Rei não me manda continuar a investigação, outras coisas claramente
ocupando seu prato agora – Lucien, o fogo de bruxa, a guerra. Ando de um
lado para o outro sobre o tapete do quarto de Varia, o desejo de encontrar
Malachite e exijir saber se o Príncipe está se recuperando bem, roendo ainda
mais a fome. O menor lampejo de possibilidade da outra linha do tempo da
minha vida passa pela minha mente – visitando a cabeceira de Lucien,
segurando sua mão. Estourando em lágrimas de alívio, e seu sorriso suave
quando ele me abraça e me diz para não me preocupar.
por quinze dias de mentiras e catorze homens, e ainda assim você espera
um final feliz...
Pego a jarra de vinho mais próxima e despejo o copo em uma andorinha.
A fome se transforma em um rio liso, mas a culpa são as pedras afiadas
que esperam ao pé da cachoeira.
14

O Nome
do Lobo

A Princesa Varia não volta para seus apartamentos até as primeiras horas da
manhã escura e melada, quando os pássaros do sol começam a gritar. Acordei
do meu sono induzido pelo vinho e a vi parada na prateleira de bonecas de
porcelana, acariciando o chapéu de fita de uma distraidamente. De alguma
forma, usando essa consciência bruxa que Nightsinger também tinha, ela sabe
que estou acordada e fala sem se virar.
— Ninguém morreu no incêndio, mas várias dezenas ficaram feridas.
Uma grande quantidade de propriedades foi perdida. — Ela faz uma pausa,
seu cabelo lânguido trêmulo e, em seguida. — Meu pai redigiu uma
declaração formal de guerra. Foi anunciada à meia-noite.
Meu interior afunda até meus joelhos. Guerra. A guerra que as bruxas e
Yśhennria e eu temíamos por tanto tempo. Parte de mim sabia que era
inevitável após o incêndio, mas nunca pensei que a burocracia vetrisiana
pudesse se mover tão rápido.
As pessoas vão morrer agora. Talvez não por minha causa, mas também
não fiz nada para cumprir os planos das bruxas de parar a guerra. Tento
deixar a culpa para trás, lentamente, como uma faca recém-afiada – sempre
consciente de sua capacidade de prejudicar, sempre consciente de sua
utilidade como ferramenta.
— Foi um verdadeiro incêndio de bruxas? — Eu finalmente pergunto.
— Sim. — ela diz.
— Você não fez isso. Você não faria. Isso sabotaria todos os seus planos
para baixo. Então quem fez?
Varia pega a boneca, e minha memória dela quebrando a outra me faz
instintivamente se afastar.
— Quem foi o pobre tolo — ela murmura. — Eles deixaram sua mágica
espiral completamente fora de controle.
— O quê? — Eu pisco.
— O exército dos soldados atualmente reunidos será enviado para arrasar
as florestas a leste e oeste de Vetris. — Ela continua, com a voz clara desta
vez. — Esse é o primeiro protocolo – destrua todos os esconderijos que
possam ter perto da cidade.
Meu coração dispara e tropeça. Mas isso significa...
— Nightsinger. — eu começo. — Ela mora na floresta. Crav e Peligli e...
— Eu pulo do sofá. — Eu tenho que avisá-los.
— Porque enviar uma mensagem para uma bruxa de Vetris certamente
ainda será possível com a cidade em alerta total em tempo de guerra. — diz
Varia.
— Sim, bem, eu prefiro não sentar aqui e beber chá enquanto eles
morrem. — eu mordo.
Varia suspira. — Concentre-se em ensinar a valkerax. Vou mandar uma
mensagem para você.
— Você sabe onde ela mora?
— Aproximadamente. — A princesa encolhe os ombros. — Eu podia
sentir onde ela estava quando puxei sua propriedade dela. Vou pedir ao meu
pessoal que lhe envie um rabo de rato seco – um aviso de bruxa. Se ela ainda
estiver lá, chegará a ela e ela saberá fugir.
— Você promete?
Varia suspira. — Sim. Eu prometo. Ela é cidadã de Cavanos, e eu seria
negligente em não salvar sua vida.
Suas palavras são ecos das de Lucien – ou é o contrário? — Você tem
certeza de que vai chegar até ela? Você não acha que eles aumentarão a
segurança na cidade?
— Preocupe-se com a valkerax. — Sua voz é dura. — Vou levar o carro
de tudo o mais.
— Até que você não possa mais. — eu digo. — Até que o fardo fique
grande demais para seus ombros.
— 'Um fardo muito grande'? A d'Malvane não sabe o significado dessas
palavras. — Ela ri, mas o som é de alguma forma fraco. — Ouvi dizer que
sua pergunta foi interrompida. Estou quase certa de que, com a guerra em
pleno andamento, o pai não terá mais tempo para isso. Você teve sorte.
— É assim que se chama seu fantoche de carne hoje em dia? Sorte?
Varia ri de novo e se dirige para o banheiro, o vapor de um banho já
preparado entrando pela porta aberta. Eu a vejo puxar a bolsa com Traidor e
a bolsa com Sanguessuga. O coração de Gavik e o meu. Meu sangue dispara
com a proximidade do meu coração. Ela os coloca sobre uma mesa pequena,
me dando um sorriso.
— Você está ciente, é claro, que sua bruxa deve colocar seu coração de
volta em seu corpo para que você se torne humana novamente.
Eu zombei. — Passei três anos na floresta com Nightsinger. Claro que eu
sei disso.
Ela fica quieta antes de se virar, entrando no banheiro. Quando a ouço
deslizar na água, vou até a mesa, acariciando a bolsa Traidor.
Está tão quente. Eu posso sentir a massa macia de carne. Eu posso sentir
meu próprio batimento cardíaco e luto contra as lágrimas que isso traz aos
meus olhos. Minha outra mão segura a espada enferrujada do pai.
— Logo. — eu sussurro.
Minha mão olha para outra coisa na bolsa – algo duro e afiado.
Eu quase pulo para trás – quase me lancei. O que quer que esteja lá é
afiado o suficiente para cortar. A curiosidade zumbe através de mim e,
cautelosamente e ouvindo os movimentos de Varia o tempo todo, abro as
cordas da bolsa. Lá, brilhando ao lado do pedaço rosado do meu coração, há
uma lasca clara. Eu chego e toco com cautela – é suave de uma maneira
inconfundível. Vidro. O que o vidro está fazendo no saco de coração de uma
bruxa?
— Por favor, não. — Varia chama do banheiro, e minha mão se retrai
instantaneamente.
— Por que há vidro lá dentro? — Eu estalo.
O riso de Varia é baixo. — Sempre tem vidro, Zera. É assim que os
recipientes Sem Coração são feitos.
— Mas — eu começo. — A Nightsinger tinha frascos de vidro e nenhuma
lasca por dentro.
— A lasca estava no próprio frasco. — Varia responde levemente, como
se eu fosse uma criança perguntando sobre o alfabeto. — Derretia ao lado de
um copo comum. Por que você acha que tantas bruxas optam por usar jarros
em vez de sacolas mais econômicas? Porque é uma solução muito mais
elegante para combinar os dois.
Mordo o lábio, cuidando para fechar a bolsa de tal maneira que a lasca
não fure meu coração.
— Eu prefiro malas para a... personalização. — Ela ri, e meus olhos caem
nas palavras enfiadas na minha bolsa e na de Gavik.
— Qual é o objetivo dessa lasca de vidro? — Eu exijo. — Isso poderia
perfurar meu coração lá...
— Isso nunca será. A lasca é o que encanta os recipientes Sem Coração. É
o que lhes dá sua mágica. Ele preserva seu coração e o conecta à sua bruxa.
Essencialmente, dá a você sua imortalidade.
Penso nos frascos de vidro em que Nightsinger guardava os corações de
Crav, Peligli e meu. Aquele vidro – cada um desses frascos tinha uma lasca
derretida nele? De onde vieram as lascas?
Balanço a cabeça. Não importa como sou mantida prisioneira.
Tudo o que importa está saindo.
— Lucien está perguntando sobre o que estou fazendo no Portão Sul, —
eu chamo. — Você não está preocupada que eu conte a ele?
— Preocupada? — Varia medita. — Por que eu deveria estar? Ninguém
que trabalha para mim dirá a ele; Eu já vi isso de várias maneiras. E você,
certamente, não dirá a ele, porque ele tentaria nos parar. E isso apenas
colocaria em risco suas chances de recuperar seu coração.
Eu olho para o tapete chique. Ela colocou em palavras o que eu sempre
soube. Eu ficaria quieta sobre a valkerax para sempre, se isso significasse
recuperar meu coração. Mas a teimosia de Lucien por si só não é o maior
problema.
— Eles descobrirão o que você está fazendo. — insisto. — Eles
aprenderam muito sobre descobrir segredos enquanto você estava fora. Ele
tem o conhecimento e Fione tem a pura inteligência para farejar qualquer
enredo que você possa ter.
— Se isso é verdade — Varia diz com um suspiro. — por que eles já não
fizeram isso?
Porque eles estão apaixonados por você, eu quero dizer. Eles te amam
como uma irmã, como uma amante. Eles admiram você.
Exceto que Varia já sabe disso, não sabe? Ela está usando o amor deles
para sua vantagem. Ela está usando o amor de todos, utilizando o passado
como uma cortina de fumaça. Eu devo ser a única em Vetris que não acha o
máximo dela. É a única coisa que Gavik e eu sempre teremos em comum.
Eu ligo os calcanhares e saio da sala. Antes de chegar à porta, a voz de
Varia sai do banheiro. — Lucien se recuperará em vários dias. Se você quer
saber.
Alívio quente me inunda novamente, pela segunda vez. — Eu não quero.
— eu chamo de volta.
Dos apartamentos desbotados atrás de mim, ouço algo que soa levemente
como um bufo cansado, e então: — Juvenil.
Na manhã seguinte, espero minha carruagem na ponta dos pés.
Não é preciso um polímato para perceber que o número de guardas
estacionados no palácio triplicou profundamente agora que uma guerra foi
oficialmente declarada. As ondas de água ao redor do palácio e do bairro
nobre estão constantemente disparando, lançando grandes fontes brilhantes
no ar tenso à medida que as mensagens são transmitidas. Os próprios nobres
estão estranhamente ausentes de andar pelos jardins do palácio, e isso me
perturba mais do que tudo. Eles são criaturas de hábitos, não importa o
quanto as coisas fiquem ruins. Se eles estão restringindo seus eus decadentes
e não afetados, a água deve realmente estar aqui.
Quando a carruagem chega, vejo a cidade se preparando pela janela. As
lojas de alfaiataria e joalheria ornamentadas da First Street estão fechadas, as
luzes apagadas. As padarias ainda lidam com pão, mas de maneira silenciosa,
como se fossem irracionalmente frágeis que, fazendo muito barulho,
convocasse as bruxas do outro lado da parede e direto para elas. Os ferreiros
e o templo são os únicos que se atrevem a fazer barulho por cima de um
sussurro – os ferreiros batendo fortemente em suas bigornas e os sacerdotes
cantando sobre a justiça e a retribuição do Novo Deus.
É lá nos degraus do templo que finalmente encontro os nobres, agarrando-
se fervorosamente às vestes dos padres, implorando a garantia de que estarão
seguros na guerra vindoura. Os plebeus, enquanto isso, estão oferecendo aos
seus filhos, cônjuges e irmãos alistados, lágrimas e despedidas. Tento não
pensar no rosto deles ensanguentado pela minha espécie, marcado como
Y'shennria.
Mas eles serão. É só uma questão de tempo.
ensinar essa valkerax a Chorar é apenas uma questão de tempo, fala a
fome.
O Portão Sul é efetivamente abandonado, frio e cinza. O perímetro do
fogo de bruxa foi isolado pelos guardas da lei, linhas nervosas deles traçando
as cicatrizes do fogo. Fica a leste de um raio de três quarteirões, abrangendo o
que devem ser quarenta edifícios no mínimo. As poucas caravanas que
normalmente estão aqui de manhã se foram, e os dois guardas da lei que
guardam a porta na parede ainda estão presentes. A devastação coça meu
estômago, mas forço um sorriso quando me aproximo.
— Ainda está aí, senhores? — Pergunto. Nenhum deles responde, mas um
deles obriga a acenar para mim. Eles estão claramente em alerta máximo com
a guerra e preocupados apenas com os negócios, então eu lhes dou a senha e
entro.
Yorl me cumprimenta com uma espada quando entro nas entranhas
atrevidas da grande muralha. E não apenas qualquer espada. A lâmina é
branca pura e inconfundível. É a espada de mercúrio branco de Varia.
— Vamos reter a espada aqui, no laboratório. — diz Yorl. — Você pode
pedir sempre que vir a necessidade.
Eu levanto uma única sobrancelha. — Nenhum pagamento com juros ou
algo assim?
Ele bufa e começa a andar. Eu o sigo, pasma, enquanto olho a lâmina
branca de mercúrio. É uma das únicas quatro lâminas do mundo que foram
fundidas com mercúrio branco puro – um processo complicado que ninguém
jamais foi capaz de replicar, embora Gavik tenha tentado. O polímata que os
forjou desapareceu antes da Guerra Sem Sol, trinta anos atrás. O mercúrio
branco inibe a magia, e o mercúrio branco puro ainda mais. Se eu me
cortasse, o elo entre Varia e eu enfraqueceria o suficiente para eu chorar de
novo, para recuperar um pouco de controle sobre mim.
Passei a lâmina sobre o meu antebraço, mas o comando soa.

Você não se permitirá ser cortado com uma lâmina de mercúrio branco.
Eu quase jogo a espada na escuridão antes de me lembrar o quão precioso
é. Preciso cortar a valkerax com ela para aprender a chorar corretamente. Se
eu puder fazer isso, terei meu coração de volta e meu próprio choro se tornará
um ponto discutível.
A guerra logo acima da minha cabeça – enrolando como uma víbora
pronta para atacar – se tornará um ponto discutível.
Mil valkerax, presas pingando, rastejando sobre a parede branca de
Vetris.
Endireitando meus ombros e sacudindo a imagem aterrorizante, vou para
a pata de Yorl enquanto ele me leva pelos degraus escuros.
Nossa respiração ecoa, unida pela respiração mais profunda, mais alta e
mais lenta da valkerax, como a respiração do próprio mundo. O barulho da
armadura ressoa quando Yorl ordena a abertura do portão.
— Não me convide dessa vez. — eu me inclino para ele, engolindo o soro
em um gole. Sinto o rabo dele se debater no ar.
— Não me diga o que fazer. — diz ele.
— Por favor. — Um guarda célebre à minha sibilância direita. — A-
apenas entre. Antes que eu largue o portão.
Eles podem levantar cinco vezes o seu próprio peso, existem dois, e ainda
assim estão lutando – o portão deve ser incrivelmente pesado. Eu me abaixo e
ouço as garras de Yorl arranhando a terra enquanto ele se abaixa na arena
atrás de mim.
— Se você morrer, posso usar sua pele como capa? — Pergunto
levemente.
— Se você morrer, posso usar sua pele como camisa? — Ele responde.
— Vida após a morte, sim. — eu assobio. — Isso parece tão elegante.
Três advertências: use um colar de babados, pinte-o de rosa brilhante e
esfolie-o quando não estiver vivo.
— Sem promessas. — resmunga Yorl. A respiração grande e profunda ao
nosso redor de repente se aproxima de mim, e o som de escamas duras
deslizando sobre a terra para na frente dos meus pés.
Está respirando corretamente – nenhum dos suspiros fracos que eu me
acostumei.
— Lobo faminto. — Vozeirão do valkerax grosas sobre meus ouvidos. —
Você fez com segurança a jornada de volta.
Eu mudaria meu olhar para Yorl se pudesse ver alguma coisa na
escuridão. Está me abordando? Nesse caso, é uma grande melhoria em
relação aos quatro dias de nada além de objetivas debatidas e faladas sem
sentido.
— Yorl. — eu engulo e grito. — Você fez...
— Foco, Sem Coração. — ele late. Eu inspiro imenso.
— Eu vou continuar retornando todos os dias, minha boa valkerax. — eu
gritei, sorrindo na escuridão total. — Até você aprender a chorar! — Eu
seguro a lâmina branca de mercúrio. — Veja isso? Esta é a parte física que eu
estava falando. Você tem que ser cortado por isso para o Choro funcionar.
— Essa coisa pequena, como uma lança feita de neve... — Uma rajada de
ar quente e rançoso sopra sobre mim, concentrada no ouvido, minha mão
segurando a espada. — Com um cheiro de estrelas moribundas. Esta é a
lâmina que vamos segurar na garganta da música?
— Sim. A música será mais alta, quase alta demais para resistir, mas
também estará sujeita ao seu controle. O que significa que tenho que ensiná-
lo a entrar em silêncio primeiro.
Faço uma pausa e balanço a cabeça. Eu sou a única que parece louca
agora. Há um silêncio, o ruído da pena de Yorl arranhando loucamente em
seu pergaminho interrompendo-o.
— A rima, — diz o valkerax finalmente. — Ouvimos um sinal sonoro
acima de nós ontem, quando o sol estava se movendo para encontrar o mar.
Rima. O valkerax já disse essa palavra o suficiente para eu saber o que
significa com certeza: uma bruxa.
— Uma rima acima de você? — Eu congelo, olhando para o escuro. Isso
poderia significar a bruxa que iniciou o incêndio?
— Como? Como alguém silenciosamente corta a garganta de uma
música?
Eu saio de meus próprios pensamentos. Qualquer coincidência irritante
que esteja acontecendo, não é tão importante quanto ensinar isso, como
recuperar as lembranças quentes do meu coração.
— Tudo bem. — Sento-me na sujeira. — Primeiro, você deve relaxar.
— Uma tarefa na montanha feita para o menor roedor. Um roedor sem
uma voz alta gritando por dentro.
— Vamos devagar. Esse é o ponto principal. — Penso de volta àquele
salto através dos canos, até o momento na clareira antes de me transformar no
monstro e defender Lucien. — É assim que você fica calado. Você não pode
pensar em muitas coisas ao mesmo tempo. Tem que ser apenas uma coisa.
— Uma — se repete valkerax. — Uma raiz, não a planta inteira.
Um pouco de emoção me percorre quando percebo que está entendendo o
que estou dizendo. Isso é enorme, comparado aos últimos dias. —
Exatamente! Pense em apenas uma coisa e deixe que essa coisa se torne seu
mundo inteiro. Toda a sua razão de estar vivo.
— Um propósito de ser. — Eu ouço a onda valkerax torno de si.
— Desafiar a música que canta da imortalidade estéril. Isso entendemos.
— Ótimo. Bem, isso oficialmente faz de você o mais inteligente, o que
significa que sou a mais bonita. Hum. Não que suas presas e garras gigantes
não sejam bonitas. Porque elas são.
Juro pelo outro lado da arena, ouço Yorl bater com a pata na testa.
Reginall fez parecer tão fácil quando ele me ensinou. Eu digo para a
valkerax escutar sua própria respiração, concentrar-se nos lugares do corpo
em que sente um vazio dolorido. É mesmo um momento em que me permite
aproximar-me, e com tensão e medo tensos, corro minha mão pelas escamas
brancas e macias de seu peito, abaixo do tufo de crina parecida com um leão,
para encontrar o esterno. É tão incrivelmente grande – uma escama é tão
grande quanto a palma da minha mão inteira. E tem milhares. O cheiro dele
não é menos de perto, mas sentir pela primeira vez depois de ouvi-lo bater e
ranger os dentes por tanto tempo é incrível.
Depois de algumas falhas em que quase perco um braço por tocar nos
pontos errados, descemos exatamente onde a valkerax se sente vazia – a
perna traseira esquerda. É aí que os Vetrisianos antigos tiram um osso para
adicionar à Árvore dos Ossos. Ele voltou a crescer desde então, mas parece
mais fino de alguma forma.
Eu aperto minha mão de volta em seu corpo, e meus dedos pegam algo
molhado em suas costelas. Os músculos da valkerax se contraem sob a minha
pele enquanto corro cuidadosamente o local mais uma vez – é um buraco.
— Yorl. — eu começo. — O que um buraco está fazendo aqui?
É como se estivesse faltando uma de suas...
— Escamas? — Yorl oferece, a voz fria. — Removemos algumas e as
derrubamos nos eixos aproximados do Escuro Abaixo, a fim de estabilizar a
mente da valkerax. Quanto mais seu corpo obedece ao comando, mais
saudável ele se torna.
— Você-você... — eu engasgo.
— A guerra está aqui, Sem Coração, mais cedo do que qualquer um de
nós esperava. O mundo se move, e devemos seguir em frente. — Yorl insiste.
— Você parece a valkerax agora, — murmuro inquieta.
— O que o Falador fala, Lobo faminto? – o valkerax pergunta.
Meio enojada com as feridas da valkerax, minhas palavras são curtas. —
Por que você continua me chamando assim?
— Esses são os nomes verdadeiros de vocês. — O valkerax puxa para
longe de mim, seu calor corporal sumindo na escuridão fria. — Você é o lobo
faminto. O sangue quente nos observando com muitos olhos é o alto-falante.
Nomes verdadeiros têm seu poder.
Nomes verdadeiros – Malachite não disse nada sobre eles? Eles eram
importantes para o clima, certo? O nome verdadeiro de Varia estava riscado
nas paredes do tubo, onde ela matou a valkerax de Gavik – a Filha Risonha.
Esse também é o nome dela. As runas de Beneather sempre conhecem nomes
verdadeiros e os preenchem automaticamente, como mágica. Magia
Vetrisiana antiga, para ser mais preciso.
Nomes verdadeiros têm seu poder.
Eu simplesmente pensei que Varia adotou esse nome como seu nome de
bruxa, porque ela estava satisfeita com o som. Mas se é o nome verdadeiro
dela, algo que ela não pode escolher... isso significa que toda bruxa usa o
nome verdadeiro? O nome verdadeiro de Nightsinger é Nightsinger?
— Então você dá esses nomes... — eu começo.
— Nós não damos, — insiste a valkerax, a voz rasgando com um rosnado
no final. — Nós apenas publicamos, mas onde os sinos podem ler apenas seu
próprio nome quando chegar a hora de encontrar seu poder, podemos ler
todos.
Está dizendo que bruxas podem descobrir seu nome verdadeiro? Você
sabe como uma bruxa se torna? Eu perguntei isso a Fione uma vez, sem me
conhecer.
No meio do meu movimento, a valkerax continua com sua voz irregular.
— O roteiro é grande e interminável e há poder nele, e sempre vamos ler,
pois é nosso dever.
— Dever? — Eu sussurro. — Para quem?
Espero em ganchos, em agulhas. Nós respiramos juntas na escuridão, e
em algum lugar entre as respirações, eu morro.

Yorl está lá ao meu lado quando eu volto à vida, a luz do musgo brilhando
em seus olhos dilatados enquanto ele me entrega outro frasco sem palavras.
— Estamos chegando a algum lugar, finalmente. — digo. Seu focinho se
abre em um sorriso quando ele rabisca em seu pergaminho.
— Eu poderia dizer.
Abro o frasco. — Você parece um garoto cuja mãe acabou de dar a ele
um ano inteiro de namoradas.
O sorriso de Yorl desaparece quando ele me leva de volta ao portão, mas
quando sinto que é iluminado pelo outro cílio, não ouço Yorl imediatamente
tentar passar por baixo dele.
— O que há de errado? — Pergunto.
Yorl engole audivelmente. — É... A valkerax já está esperando por nós,
logo antes do portão.
De repente, um hálito quente sobe e desce sobre nós – tão perto que ele
provavelmente desliza a cabeça para fora do portão com facilidade. Mas isso
não acontece. Ele apenas espera, respira e depois pergunta com sua voz
estranha : — Dói, quando o lobo faminto morre?
Yorl e eu nos escondemos sob o portão com cautela, e o combo o fechou
com um baque frenético. A valkerax desliza um pouco para trás enquanto me
afasto do portão, seguindo atrás de mim.
— Sim. Mas já estou acostumada a isso agora. — Dou de ombros.
— Nós morremos apenas uma vez, — diz. — Mas você morre para
sempre. Esse é o seu dever.
— É um prazer. — eu concordo, então percebo que sarcasmo pode não
ser o caminho a seguir com uma valkerax, já que eu mal consigo me
comunicar com ela. — Espere, por que está morrendo meu dever?
O som de algo pesado chicoteando no ar e, em seguida, — A vida é um
jardim, — insiste a valkerax. — Em que a morte é necessária para florescer.
tolo louco, a fome zomba. falando de coisas que não tem poder.
A bile sobe na minha garganta, e a parte mais estranha é que não sei por
que. Raiva, confusão, tristeza; tudo isso gira na minha cabeça.
— Você está me dizendo que eu mereço ser Sem Coração sem
brincadeira? Que sofrimento é meu dever? — Eu cerro os punhos. — Que
minha mãe e meu pai mereciam morrer para que eu pudesse me tornar um?
Ou você está dizendo coisas sem sentido de novo?
Há um longo silêncio em que ele não oferece mais nada. Eu respiro. Não
importa o quão enfurecido eu esteja, isso não está ajudando a ensiná-lo a
chorar. Prioridades, Zera.
— Você tem um nome? Algo que eu possa ligar para você em vez de 'Ei,
valkerax'?, — Pergunto.
Há um momento de silêncio e, em seguida, — Evlorasin. — diz,
desenhando as sílabas com sua voz antiga e rouca.
— Evlorasin. — Eu tento na minha língua enquanto me acomodo na arena
de pernas cruzadas. Eu ouço Evlorasin enrolar ao meu redor, corpo longo e
musculoso circulando sobre a terra em todas as direções.
Eu respiro, sentindo o vazio no meu peito com cada parte do meu ser.
Permanecer neste momento, e somente neste momento, limpa minha cabeça
das palavras de raiva da valkerax. É bom, de alguma forma, praticar
permanecer em silêncio, mesmo que seja de muitos metros abaixo do solo e
cercado por uma valkerax sanguinária que mal é mantida à distância. Respirar
e deixar todo o resto à deriva em segundo plano – Lucien, Varia, a guerra – e
apenas me concentrar no vazio familiar de meu próprio coração é o mais
próximo que cheguei a experimentar a verdadeira paz há muito tempo.
Eu tento definir como respirar, e a valkerax faz o melhor que pode
enquanto sofre, e por um momento escasso, suas enormes respirações se
estabilizam completamente, entorpecendo as inspirações e exalações
silenciosas.
Estou tão
interiormente feliz – estamos realmente, honestamente, chegando a algum
lugar! – que mal ouvi a mudança.
Do meio do silêncio, a respiração de Evlorasin entra em colapso e surge
um rosnado baixo. Ele reverbera no chão, através dos meus ossos e no meu
peito. Sinto uma mudança no ar parado da arena – a valkerax não está mais
enrolada em mim. Está baixo, tenso, e eu posso ouvir suas garras raspando o
chão, rítmicas e impacientes.
— Yorl? — Eu tento chamar. — Yorl? O que está acontecendo?
Sua voz flutua para mim, muito calma. — As misturas de analgésicos
estão acabando. Precisa de muito mais com as balanças removidas.
— Dê um pouco, então, e seja rápido. — Minha voz fica seca quando
sinto a respiração quente se aproximando das minhas costas.
— Apenas levante-se — Yorl diz com cuidado. — E vá até o portão.
Não estou imaginando coisas – agora posso sentir o calor da queima da
minha espinha, como se Evlorasin estivesse com a boca bem nas minhas
costas. Eu não vou morrer, mas o pensamento de ser digerida, viva, por todo
o corpo da serpente, subitamente saltou para o número um na lista abrangente
de maneiras pelas quais ela prefere não morrer. Fracamente, através do meu
terror, pego os gritos do portão quando ele se abre e, com a mesma calma que
minhas pernas trêmulas permitem, levanto-me e ando com passos ruidosos
em direção a ele.
— É isso aí — Yorl me encoraja. — Você está quase lá.
— A música — Evlorasin arfa, sua voz mais distorcida do que eu já ouvi –
mais agonizada do que nos últimos dias juntos. — A música chama por você.
Tremores congelam meus nervos, meu pensamento racional, e começo a
correr. Evlorasin investe, suas garras raspando sobre a sujeira, sua enorme
boca retalhando o ar enquanto tenta por mim.
Mergulho no que penso ser o portão, batendo com força no chão, e quase
instantaneamente sinto o ar deslocado quando o metal pesado bate logo atrás
das solas dos meus pés.
— Volte! — O valkerax ri, e eu posso ouvi-lo andando atrás do portão,
choramingando gentilmente um momento e rosnando o próximo. — Volte
pequeno lobo! Estamos sozinhos na música! Mas podemos ficar juntos! A
árvore dos ossos e a árvore do vidro, finalmente juntas!
Meus incisivos cortam minha língua por puro choque. Osso.
Vidro. Essa frase – é tão parecida com a que Gavik cantou. Isso é mais
que coincidência. Algo está batendo contra outra coisa na minha cabeça,
tentando com todas as suas forças se alinhar e se encaixar no lugar. Pode ser
o problema ou a experiência quase digerida, mas meu corpo fica frio, meus
olhos reviram na minha cabeça. Tento desesperadamente manter a
consciência, perguntar a Evlorasin o que isso significa, mas a morte sempre
tem o que é devido.
O mundo fica preto.
Yorl me acorda no pequeno tapete de dormir, e nunca fiquei tão feliz em ver
alguém tão colorido e iluminado e com um pouco menos de dentes.
— Evlorasin vai ser assim a partir de agora? — Eu limpo os restos de suor
frio da minha testa.
— Evlorasin? — Yorl franze as sobrancelhas.
— Esse é o nome verdadeiro.
Yorl pensa sobre isso, depois oferece sua pata para mim, e começamos a
subir as escadas. — Julguei mal a quantidade de analgésico necessária. Vou
me ajustar e amanhã permanecerá sedado por mais um pouco.
— Isso não vai entrar no nosso tempo de ensino?
— Sim. — Ele balança a cabeça. — Teremos menos tempo. E o tempo é
crucial agora, nos últimos dias da valkerax, mais do que nunca. Mas... — Ele
estremece.
— Mas o que?
— Eu tenho... — Ele estremece novamente. — Fé.
— Fé?
— Eu não tenho muitas vezes. — ele retruca, como se eu tivesse dado um
soco nele em vez de uma palavra. — Tenho poucas ações na crença
imaginária, infundada e improvável que praticamente transformou esse país
contra si mesmo. Mas por alguma razão irritante, eu tenho agora. Eu tenho fé
em... em, bem, você. — Ele envelhece para terminar com um grande
sobressalto.
Um sorriso enrola meus lábios. — Bem então. Deixe-me anotar você na
minha lista de pessoas que estou tentando desesperadamente não
decepcionar.
A subida escura da escada está se tornando cada vez menos cansativa para
o meu corpo. Yorl mal tem que arrastar meu eu invisível pelas escadas pela
mão – lembro como os passos vão.
— Dizia algo sobre a árvore dos ossos e a árvore do vidro — eu digo, e
com um grande gole, pressiono. — Seu avô – o nome dele era Muro
Farspear-Ashwalker.
Não posso vê-lo, mas o corpo inteiro de Yorl fica rígido ao meu lado.
— Como você...?
— Ele foi ao Rei Sref uma vez. — eu avanço. — O rei estava preocupado
com os pesadelos de Varia. Seu avô cantou uma música para eles e tinha uma
frase assim. Uma árvore de osso e uma árvore de vidro. — Há uma batida. —
Lucien me disse.
Yorl está absolutamente silencioso, e juro que o ar entre nós fica
subitamente mil vezes mais frio.
— O que isso significa...? — Eu começo, mas Yorl é mais rápido.
— 'O hino da floresta'. — interrompe Yorl, cada palavra cortando. — O
avô baseou toda sua pesquisa nisso. E ele foi chamado de tolo por isso.
— Yorl.
— Basta — ele late. — Você não precisa saber disso. Esqueça que você já
ouviu falar sobre isso.
— Mas isso não é...
Suas patas quentes de repente seguram minhas mãos. — Estou falando
sério, Zera. — Não Sem Coração, mas Zera desta vez. — Não faz sentido.
Isso levou meu avô à ruína. Você precisa largá-lo antes que você o arruine
também.
Ele espera. Como se eu fosse esquecer uma coincidência como essa. Mas
ele não vai se mexer, a menos que eu concorde.
Finalmente, eu aceno. — OK. Tudo certo. Me desculpe, eu trouxe isso à
tona.
Ele suspira. — Está bem. Contanto que você tenha o bom senso de não
persegui-lo.
Depois de uma longa e silenciosa jornada, chegamos ao topo da escada.
Pela primeira vez, eu não sou uma bagunça ofegante.
— Por mais que eu odeie admitir, você fez um bom trabalho hoje. — diz
Yorl na porta.
— Ah, eu também aprecio você. — Eu toco seu nariz preto, mas ele
levanta o queixo para fora do caminho.
— Não.
Eu bato meu pé. — Por que todos nesta cidade odeiam diversão?
— Você acha divertido um estranho enfiar os dedos no nariz?
— Até o nariz? Bruto. Eu só estava indo para tocar. Quem está tentando
enfiar os dedos no nariz?
— As crianças humanas. — ele resmunga. — Toda chance que eles têm.
Eu ri. — Bem, não ande por aí azedo e caído, e talvez você seja alto
demais para que seus dedos sujos cheguem.
— Bondade. Você dá conselhos para ganhar a vida? — Yorl fala sério.
— Você sabe, ele me disse seu nome verdadeiro. — Eu o ignoro. —
Evlorasin fez.
Seus enormes olhos verdes brilham como estrelas cadentes gêmeas e ele
coloca os óculos no nariz. — Sim?
— Sim. Alto-falante. Então começou a espiralar, dizendo algo sobre seu
dever de ler? E que meu dever está morrendo. — Suspiro.
— Isso foi apenas divagações? Quero dizer, você coloca suas escamas no
Escuro Abaixo, para que ele desmonte menos, certo?
O focinho de Yorl faz uma careta. — Eu não sei. Meu avô gostava de
dizer que são criaturas misteriosas. Eles vivem por cerca de quinhentos anos,
mas a maioria das minhas pesquisas indica que eles antecederam os seres
humanos e os pássaros em mais de dez mil. Por todas as contas, eles estavam
aqui no começo do mundo e estarão aqui no fim.
A música que canta de imortalidade estéril, Evlorasin havia dito.
Imortalidade estéril – quinhentos anos. Não consigo imaginar viver tanto
quanto uma valkerax. Exceto que posso, na verdade, e é por isso que estou
ensinando uma valkerax para o meu coração.
— O Alto-Falante. — Aponto para Yorl, depois para mim. — O
Lobo Faminto. — Há uma batida quando penso nisso e coloco um sorriso
de comedor de merda. — Meu nome verdadeiro é muito melhor.
Yorl revira os olhos. — Só porque você diz algo uma vez em voz alta não
o torna verdade.
É um momento de leveza antes que eu tenha que atravessar o Portão Sul,
carregado de cinzas, e retornar aos humanos frenéticos e frenéticos que
mergulham na guerra, e eu me deleito o máximo que posso – o que não é
muito tempo, considerando que Yorl é obcecado com o trabalho dele e me
deixa quase instantaneamente para voltar à valkerax. Mas eu o ouço
murmurando feliz Ironspeaker para ele mesmo, como se o nome fosse um
casaco e ele o estivesse experimentando no vestiário.
A valkerax. Tudo o que dizia rodopia, diáfano e enigmático, na minha
mente. Eu sei muito pouco sobre bruxas, valkerax e nomes verdadeiros, e
ainda assim todos parecem entrelaçados. Mas de que serve o conhecimento?
Eu não sou uma bruxa. Tudo que eu preciso é ensinar. Todo o resto é inútil.

No caminho de volta ao palácio, um vendedor ainda está aberto em meio à


crise da guerra e está vendendo vapor quente com vidros de bordo. Há algo
profundamente familiar no cheiro, então eu compro um. Eu o ponho em
minhas mãos sabendo que não posso morder – eu choraria lágrimas de
sangue depois de ingerir um alimento humano e muitos guardas da lei estão
por perto, todos à beira da faca e procurando raivosamente por sinais de Sem
Coração. Uma garota enxugando demais os olhos poderia ser uma delas.
— Olhe para mim, sendo inteligente e preocupada com meu próprio bem-
estar. — fico maravilhada. Me contento em cheirar o doce, o mero ato de
mantê-lo perto de mim de alguma forma estranhamente reconfortante.
Meus pés me levam para casa. Não para o palácio, mas para a mansão de
Y'shennria. Fico na frente da severa arquitetura escura segurando o portão de
ferro preto em uma mão e o doce na outra. O cheiro de rosas negras me enjoa
– pesado com mel e alcaçuz. As janelas estão vazias, sem vida. Olho a janela
do quarto de Y'shennria bem no alto, quieto e amargamente ainda, e fecho os
olhos. Por um momento, a janela está acesa com uma luz amanteigada e,
contra ela, a silhueta real de uma mulher com cabelos inchados, uma xícara
de chá na mão enquanto olha para a noite, procurando alguém.
Os guardas da patrulha vão encontrar a doce vidraça de bordo na varanda
de Lady Y'shennria, e questionarão.
15

O Hino
da
Floresta

Eu acordo na manhã seguinte com uma terrível dor de cabeça de vinho e


grossas ondas de fumaça ao longe.
Tomo um gole de chocolate – dane-se as lágrimas de sangue – para me
livrar do gosto dos erros da noite passada e assisto as nuvens de fumaça
ardendo no horizonte: desta vez não dentro de Vetris, mas no leste e oeste da
cidade. Essas devem ser as florestas queimando.
Quantas bruxas estão perdendo o último lar que têm agora?
Varia acorda mais tarde do que eu, mas não muito, e ela observa a fumaça
comigo em seu roupão de seda, nós duas em silêncio por um longo momento.
— Tente não se preocupar tanto com Nightsinger. Enviei uma mensagem.
— ela diz enquanto se vira da janela para se preparar para o dia. — Ela deve
estar em Windonhigh agora, se já não estivesse. — Engulo o alívio, me
recusando a deixá-la perceber. Já estou em desvantagem suficiente com ela.
— Você pensaria que eles nomeariam o último enclave das bruxas como
algo, ah, eu não sei, mais intimidador — eu digo. — Algo mais do feitio das
bruxas. Muito mais do que palavras como sombrias e sanguinárias
envolvidas.
Varia não diz nada sobre isso, deixando sem palavras suas criadas para
vesti-la, o que inerentemente proíbe qualquer conversa mais herética sobre
bruxas. Fione chega logo depois, e esperamos juntas, sem jeito, sentadas nos
sofás de frente uma para a outra, enquanto as criadas terminam o cabelo de
Varia. Sua bengala com a cabeça de valkerax brilha no sol da manhã, e fico
maravilhada que uma coisa aparentemente tão pequena possa se transformar
em uma besta de pleno direito.
— Bombom? — Eu ofereço a ela um chocolate do prato deles.
Ela olha para o chão, determinada a não encontrar meus olhos. O que eu
digo para ela? Não se assuste? Está tudo bem? Ela deveria estar assustada. E
nada está bem.
— Você fez essa coisa você mesma? — Eu jogo minha cabeça na
bengala, e Fione finalmente assente.
— Sim. Usando os materiais e as plantas do meu tio.
Eu assobio, impressionada. — Você já pensou em ser um polímata se a
coisa toda de 'arquiduquesa' não der certo?
— Isso... isso sempre funcionará. — diz ela suavemente. — Porque eu
nasci para isso.
Há uma batida de silêncio constrangedor, mas de alguma forma ridículo, e
para minha surpresa quando caio na gargalhada, ela também. Fixamos os
olhos em nossa risada, a dela muito mais silenciosa, mas ainda lá, e por um
momento é como se tudo estivesse de volta ao normal. Eu saboreio enquanto
durar.
— Como eu poderia esquecer? — Eu chio. — Sobre como funciona a
nobreza?
— Extremamente justa. — Fione revira os olhos através da risada.
Quando nos acalmamos, inspiro imensamente.
— Estou feliz, você sabe — eu tento. — Que você teve a chance de contar
a Varia como se sente.
Isso faz seus olhos gaguejarem até mim, e eu sorrio. Ela começa a abrir a
boca para dizer algo quando Varia entra, colocando a mão no ombro de Fione
e sorrindo para ela.
— Você está pronta para ir?
Fione passa entre ela e eu e depois acena para Varia, pegando sua mão e
se levantando. Elas saem e vejo Fione parar na porta.
— Algo errado, querida? — Varia pergunta gentilmente.
Fione balança a cabeça. — Não.
Eu olho para o lugar onde ela costumava sentar, os restos de nossa risada
ainda ecoando em meus ouvidos. É então que noto algo saindo das almofadas
do sofá em que ela estava sentada. Marrom, couro. Vou até lá e arranco. É
um caderno de algum tipo. Abro e analiso entre os rabiscos selvagens, os
diagramas de engenhocas estranhas e um esboço de uma espada que
reconheço – a espada de mercúrio branco de Varia.
Este... este é o diário de Gavik. Fione realmente trouxe para mim.
Meu coração dispara quando meus dedos pulam mais rápido, folheando as
páginas freneticamente. Eu me acalmo o suficiente para perceber que ser
apressada não vai me levar a lugar algum, e enquanto termino minha bebida,
leio a coisa toda.
O estilo de escrever é, naturalmente, insuportavelmente cheio de si
mesmo. A maior parte são detalhes aborrecidos do dia-a-dia do que é
necessário para manter os polímatas reais em operação. Listas de materiais
como cobre, prata, ácido e base, notas repletas de equações e números em
centenas de experimentos realizados em nome do fortalecimento do exército
vetrisiano contra bruxas. Ainda mais, são notas tolas rabiscadas sobre certos
nobres: suas fraquezas, seus usos, coisas que Gavik pode empregar para
manipulá-los. Datado há duas semanas, ele fala sobre insinuar para os
gêmeos Priseless dos quais eu precisava ser cuidada. Está perfeitamente
alinhado com o momento em que os gêmeos Priseless tentaram me amarrar e
escarificar meu rosto durante o meu primeiro banquete. Malachite me salvou
aquele tempo.
Zombando, segui em frente. O ódio de Gavik por bruxas e adoradores do
Deus Antigo permeia tudo, chamando-os de todos os maus nomes sob o sol.
Uma página me choca completamente; fala sobre como Y'shennria recusou a
mão de Gavik para o casamento uma vez, há muito, muito tempo. Por isso o
velho idiota rançoso a odiava tanto. Eu sempre pensei que seu vitríolo era
excessivo para ela – mais do que apenas um ódio por sua religião. Meu
próprio ódio por ele queima ainda mais quente agora.
Existem algumas páginas que simplesmente não consigo ler – escritas em
algum tipo de código glifico. E há outras páginas inteiramente cobertas por
números que são muito longos para serem equações. Mais código, talvez.
Finalmente, finalmente, encontro o que estou procurando.
É uma página escondida no final do diário, desbotada e manchada de
água. Parece que foi arrancado de outro livro, um livro muito mais antigo que
este diário. As letras são ilegíveis, mas reconheço algumas delas. Eles se
parecem exatamente com as runas de beneather que vi no cano com o
esqueleto de valkerax. Runas Vetrisianas antigas, como as esculpidas nos
arcos de cada um dos quatro portões de Vetris. Felizmente, entre todas as
linhas, Gavik rabiscou traduções: Um império de grandeza incalculável, uma
terra rica construída em alegria, Fortalecido nas cinzas, nas serpentes
seladas no nascimento, Pelos ossos que alcançam o céu, a magia é clara
Vidro feito como uma lâmina, para desafiar a morte daqueles que amamos,
Duas árvores crescidas, grandes raízes entre a pedra rastejando, A
felicidade do outrora grande império que eles agrediram, Um funeral para
as mãos, nossas bandeiras vetrisianas a meio mastro, A árvore dos ossos e a
árvore do vidro, finalmente se reunirão em família.
Eu ofego, minha boca pescando pelas palavras que não consigo encontrar.
Eu li as frases várias vezes. Este é o Hino da Floresta sobre o qual Yorl
falou. Eu posso entender a essência; O velho Vetris sela a valkerax com a
Árvore dos Ossos. Mas então, vidro? Vidro feito como uma lâmina, para
desafiar a morte?
Minha mente pisca para a lasca de vidro na minha bolsa de coração. Não.
Não – não pode ser esse vidro. Mas Varia disse ela mesma que as lascas são o
que me liga a ela e dá a minha imortalidade.
Uma árvore de vidro, como no meu sonho.
Eu tenho que encontrar Gavik.
Coloco uma capa marrom simples e saio correndo do palácio. A
carruagem de Varia se foi, levando a Princesa e Fione para o café da manhã,
então eu mesma saio do terreno do palácio. Provavelmente é o melhor – não
poderei encontrar Gavik em uma carruagem que não se encaixa em pequenas
vielas. Penteio o ventre de Vetris, tecendo estradas e becos laterais,
perguntando aos vendedores e guardas da barraca se eles viram um homem
com uma túnica cinza. Nada – eles o viram por aí, é claro, mas todas as
assombrações que me apontam estão vazias. A cidade está esticada e enrolada
em torno de si, a declaração de guerra do Rei Sref estampada em todos os
pilares e espaços vazios da muralha. Não importa para onde você vá, os
soldados sufocam as ruas, marchando sob as ordens gritadas de seus
superiores, seus uniformes verde-jade com guarnições prateadas brilhando ao
sol.
Eu caio contra a parede de uma loja no Beco do Carniceiro, segurando o
diário perto do meu peito. Onde ele estaria? Sei que ele recebeu ordens para
distribuir pão, mas quão difícil pode ser um homem encolhido com uma
grande cesta de pão?
— Você parece perdida. — Uma voz profunda me faz olhar para cima.
Ali, em pé na minha frente, está Lucien em sua roupa de Whisper, os couros
lustrosos em todos os ângulos do corpo, os olhos cansados e grossos com
olheiras no capuz. Sua postura é um pouco desgastada, mas se recusa a
parecer algo menos que forte. Meu não-coração canta, implorando para que
eu corra adiante e pergunte se ele está bem, inspecione-o para ter certeza de
que ele está curado. Que ele é real, vivo e não vai a lugar nenhum. Mas eu
não sou mais sua noiva da primavera. Eu dei esse manto para Tarroux ontem.
Eu aperto meu punho, lutando para fazer minha voz parecer leve.
— E você parece terrível. Alguma razão específica para você sair da cama
e se mover contra os desejos de seus polímatas?
— Eu cometi o erro de dizer a ele que eu vi você sair do palácio em um
estado de confusão. — a voz de Malachite fala lentamente quando o pálido
beneather entra no beco.
— Bem, bom dia para você também. — Eu pisco para Malacite.
— Estou bem. — Lucien insiste em nós dois.
— Bem? Você inalou tanta fumaça que estava tossindo de preto! —
Malachite argumenta.
— Uma pessoa ferida poderia fazer isso? — Lucien pergunta,
prontamente apoiando as pernas para o que parece ser um golpe tão rápido
que ele estremece. De repente, ele pensa melhor e retira dezenas. — Tudo
certo. Novo plano – movendo-se o menos possível.
— Vamos voltar para o palácio, — rosna Malachite. — Precisa de
descansar.
— O que eu preciso é de um amigo, não de uma segunda mãe.
— Lucien ri. Seus olhos de obsidiana focam em mim. — Quem
exatamente você está procurando?
— Como você sabe que estou procurando alguém? — Eu fungo.
— Você estava fazendo perguntas aos fornecedores. A única vez que
alguém faz isso é quando está procurando por alguém.
— Pelo que você sabe, eu poderia estar procurando alguma coisa.— eu
argumento.
— Como o quê? — Lucien levanta uma sobrancelha atrás do capuz.
— Uma tigela quente de sopa, talvez. — ofereço.
— Um senso de dignidade. — responde Malachite.
— Um senso de humor. — eu atiro de volta para ele. — Desde que você
parece ter perdido o seu.
— Perdido? Não — Malachite zomba. — Você roubou de mim na mesma
época em que tentou matar meu melhor amigo, Sarvett.
— Ooh. — Eu sorrio com a palavra dele. — Gosto do som desse. O que
isso significa?
— Escorpião da caverna conivente. — Malachite sorri de volta para mim
pela primeira vez.
— Chega. — A voz principesca de Lucien corta entre nós. — Por mais
que eu goste de assistir vocês dois brigando por mim como crianças ao longo
de um doce, devo estar na cama. Temos tempo limitado antes que alguém
perceba que eu fui embora. — Ele olha para mim. — Então. Como podemos
ajudar?
— Nós? — Malachite grita incrédulo.
— Ao me deixar em paz e dormir. — Giro meu calcanhar. — Ah, e
certifique-se de beber todos os remédios que os polímatas mandam.
— Eu vou. — ele concorda, alcançando meu passo facilmente.
— Assim que eu encontrar quem você está procurando.
— Porque você é intrometido. — Suspiro, tentando não perceber o quão
perto seu corpo está do meu, seu peito logo atrás do meu ombro. Eu quase
posso sentir o calor dele.
— Intrometido, cuidadoso. — Ele acena com a mão. — É tudo a mesma
coisa.
— Realmente não é.
— Agora. — Ele me ignora imperiosamente. — Apresse-se e me diga
quem você procura. Seu Príncipe pode encontrá-los. Mas seu Príncipe
também é uma pessoa muito ocupada.
— Se eu fizer, você me deixará em paz?
— Na verdade. — ele concorda.
— Gavik. — eu digo. — Ele está com uma túnica cinza…
— Entregando pão, certo. — Lucien termina para mim. — Eu sei.
Eu o assisto caminhar até a entrada do beco.
— Luc — Malachite exala. — Nós realmente não temos tempo para
isso...
Lucien abaixa o capuz e leva os dedos à boca e faz um apito distinto,
semelhante a um pássaro, composto por três notas. Há quase trinta segundos
de silêncio, Lucien e Malachite e eu parados no beco. De repente,
aparentemente do nada, na densa multidão, surge uma criança suja e com
menos de doze anos de idade. Ele faz uma careta como Crav também, mas
quando vê Lucien, seu rosto se ilumina. Este não é o primeiro menino que eu
vi com Lucien – havia uma garotinha a quem ele deu bugigangas, bugigangas
que roubou de nobres. Quantos deles ele conhece? E todos parecem felizes
em vê-lo?
O Príncipe se ajoelha ao nível dos olhos do garoto e entrega algumas
moedas de ouro, murmurando uma pergunta. A criança aponta em direção ao
Portão Oeste e depois aparece novamente na multidão.
Lucien se vira para mim, um sorriso esboçado no tecido escuro de sua
máscara. — Gavik está perto da antiga cervejaria em torno do Portão Oeste.
Venha. Ainda podemos pegá-lo se formos rápidos.
— Novamente, com o nós! — Malachite exala. Lucien apenas se afasta e,
é claro, Malachite segue. Eu sigo atrás do beneather, alcançando Lucien o
melhor que posso.
— Você nunca me disse que sua rede de informações era composta
inteiramente de garotos de rua. — digo levemente.
— Não inteiramente, mas principalmente. — o Príncipe concorda. — Eles
não tentam mentir por suas moedas tanto quanto os adultos. E eles tendem a
perceber coisas que os adultos ignoram.
Além disso, a cidade é dura com eles acima de tudo. É tudo o que posso
fazer agora para facilitar isso.
Eu zombo, mas o som não tem dentes. Meu não-coração está muito
quente. Orgulhoso. Afasto e um empurrão repentino na multidão se agita
também. Recuo cambaleando, perdendo Lucien e Malachite rapidamente no
enxame de cabeças. Eles podem ser altos, mas eu mal posso ver o mar das
pessoas.
— Novo idiota de Deus. — eu juro. Outra pessoa esbarra em mim, desta
vez com tanta força que a calçada corre para cumprimentar meu rosto. Eu me
preparo, mas algo pega minha mão no último minuto, e eu faço um aperto
frenético nela para a vida querida. Eu pisco com a ajuda, apenas para ver
couro preto. A mão de Lucien, segurando meu cotovelo. Ele me puxa para
cima, o sorriso sob sua máscara é tão torto que faz meu não-coração dar um
pulo.
— Não fique para trás. — diz ele.
Estou tão atordoada que não consigo expressar as palavras, e as poucas
que começam a aparecer são cortadas pelo sentimento da mão enluvada dele
deslizando na minha. Ele segura minha mão, me guiando através da multidão
enquanto eu encaro suas costas, incrédula. A antiga afeição por ele começa a
erguer a cabeça, meu corpo inteiro perfurado agradavelmente pela sensação
adocicada e açucarada.
não um ganho, a fome exige. nunca mais. ele está enganando você com
a promessa de amor, e você se apaixonará novamente por ser fraca.
É só uma mão. Apenas um momento. Um momento não pode doer, pode?
você pediu momentos duas semanas atrás, a fome rosna. e ele arruinou
você por isso.
A fome está certa. Eu arranco minha mão da dele, e ele felizmente não
tenta agarrá-la novamente. Em breve, estamos no sopé do Portão Oeste, um
lugar muito mais movimentado do que o Portão Sul, mas a área perto da
antiga cervejaria é relativamente mais calma. Lucien para diante dele, o ar
maduro com o cheiro viscoso e pungente de levedura.
— Pronto! — Lucien aponta para uma figura em cinza ao longe.
— Esse é ele.
— Finalmente. — diz Malaquite. — Podemos parar de brincar e voltar
para o palácio agora?
— Por todos os meios. — Eu tenho minhas mãos. — Continue.
— Nem mesmo um beijo de agradecimento? — Lucien sorri. A palavra
beijo vinda dele, apunhala direto nos meus pulmões. Não é isso que ele
realmente quer, é? Nada pode voltar ao que era entre nós. Eu sei disso agora.
Não consigo mudar o valor do pa. Tudo o que posso fazer é seguir em frente
– com ele, com todos. Faço uma pausa e depois estendo a página do diário
para ele.
— Aqui. Este é o meu agradecimento.
Lucien pega, seus olhos escuros perplexos, mas enquanto ele lê as linhas,
seu olhar fica mais nítido até que ele olha de volta para mim. — Essa é a
música – a que Muro cantou naquele dia na sala do trono. Onde você
encontrou isso?
— Fione me deu o diário de Gavik. Isso estava dentro. Eu pensei que
você deveria saber.
Ele olha de volta para ele e depois entrega para mim. — O que isso
significa?
— Estou prestes a descobrir. — eu digo, levantando meu queixo em
direção a Gavik. Há um silêncio enquanto Lucien olha entre Gavik e eu, e
então ele exala. Ele rapidamente se transforma em tosse, o som atormentando
seu corpo enquanto ele se dobra. Malachite lança um olhar preocupado para
mim, pego minha capa e tiro o lenço de Lucien. Desdobro a foto de
Y'shennria e a entrego a ele.
— Estou devolvendo isso para você na sua hora de necessidade.
Os olhos escuros do príncipe brilham quando ele olha para cima.
— Isso foi concebido como um presente de despedida para você.
A sensação de sua mão na minha apenas alguns momentos atrás, o
orgulho no meu peito brotando por ele. O calor que se espalha pelo meu
corpo simplesmente porque eu o vejo. Não importa o quanto eu queira ser
implacável, eu não posso fazer isso. Eu não consigo me separar todo o
caminho. Eu sou sem esperança.
fraca. repugnantemente fraca e patética...
— Sim. Bem. — Eu limpo minha garganta. — Estou devolvendo.
O olhar de Lucien suaviza. Não. Não, Zera. Fique forte. Você não o
amará novamente. Você não pode. Seu coração é mais importante do que
qualquer coisa no mundo – que até o amor.
— Estou devolvendo, — eu me corrijo, cheirando altivamente, — até que
você possa me encontrar um presente de despedida melhor. Algo feito de
ouro e com mais algumas gemas, de preferência.
Cerdas de Malachite. — Sua pequena insolente...
Lucien ri de repente. O som é divertido, mas não da maneira oca que ele
reserva para os nobres. É sincero, leve e puxa a medula da minha
determinação. Malachite parece tão chocado quanto eu.
Lucien sorri para mim, pegando o lenço da minha mão com o menor dos
arcos. — Muito bem. Vou ficar de olho.
Eu luto contra o rubor subindo pelas minhas bochechas e girando nos
calcanhares, caminhando em direção a Gavik com a página na mão.
16

Carne
Alimentará seu
Forno

Gavik ouve meus passos nos paralelepípedos e olha para cima. Seu cesto de
pão está quase cheio desta vez, alguns vagabundos se juntaram ao redor dele
enquanto ele os entregava aos pães. Naquele momento, lembro o nome
verdadeiro dele – era na parede do cano onde também estava o esqueleto de
valkerax. O Homem Sem Piedade. Se ao menos pudessem vê-lo agora.
Quando Varia terminar com ele, ele terá muita misericórdia – de um jeito ou
de outro.
— O que você está fazendo aqui? — Gavik pergunta, sua voz desconfiada
de irritação. Talvez sentindo o conflito iminente entre nós, os vagabundos
pegam seu pão e dispersam quando me aproximo.
— Eu tenho um presente. — digo levemente, jogando o diário para ele.
Ele o pega na cesta, pegando a farinha de rosca quando a abre. Seu rosto
envelhecido se contorce enquanto ele digitaliza algumas páginas.
— Este... este é o meu diário.
— E aqui eu pensei que você era o ministro inteligente do grupo. — eu
digo. Aponto para a página antiga onde ele copiou a tradução do hino, e ele
olha de soslaio. — Você vai me dizer o que isso significa. É chamado de
Hino da Floresta. Metade do seu diário está em código, então eu não
conseguia entender. É por isso que estou aqui.
Gavik franze as sobrancelhas. Ele lê o hino e depois balança a cabeça.
— Essa é realmente a música sobre a A Árvore dos Ossos que eu
conheço. Parte disso, pelo menos. As outras partes – devem estar nessas
passagens codificadas, junto com o motivo pelo qual é tão perigoso. — Ele
franze a testa. — Eu posso... Sim, isso parece algo que eu posso resolver.
Mas vai levar tempo.
— Você criou o código em primeiro lugar. — Eu bufo. — Você já não
sabe?
— Não me lembro de nada da minha vida antiga. Tudo isso é nebuloso,
exceto por uma frase do hino. Este código parece complicado. No entanto —
ele diz com um sorriso de escárnio. — Você está correta. Se eu escrevi, posso
cancelar a gravação. Mas preciso de tempo.
— Eu não tenho tempo. — Cruzo os braços sobre o peito.
— Temos todo o tempo do mundo — ele murmura. — Afinal, somos
imortais.
— Vou ensinar a valkerax como chorar o mais rápido que puder. Está
começando a aprender. Varia terá a Árvore dos Ossos mais cedo do que você
pensa.
— Você pode parar. — diz ele. — Você pode parar por apenas algumas
horas. O comando não me deixa fazer nada além de distribuir pão até o pôr
do sol.
— A valkerax está definhando. — insisto. — Está morrendo muito mais
rápido do que se pensava, e se eu não posso ensinar, não consigo meu
coração...
— Você me odeia. — ele afirma. Minha carranca é profunda, e eu assisto
a mão dele na cesta e ofereço um pão a um transeunte quase
automaticamente. O transeunte pega, mas os olhos lacrimejantes de Gavik
nunca saem do meu rosto. — Eu te odeio. Mas nós dois estamos vinculados a
uma pessoa. Essa pessoa tem nossas coleiras. Temos um inimigo em comum,
Zera, não importa quanto você queira negar.
— Ela vai me dar meu coração — eu argumento. — Ela tem um senso de
moralidade, diferente de você...
— Isso não significa que ela é inocente. — diz ele resolutamente.
Caio na gargalhada cruel e fria. — Você terá que me perdoar se eu não
levar você a sério, considerando que isso está vindo do homem que afogou
inocentes.
— Algo não está certo — diz Gavik. — Eu sei disso. Sei disso da mesma
maneira que conheço essa única linha do hino. Eu posso provar isso para
você. Algumas horas, tudo o que eu peço. Eu sei que você não confia em
mim; eu não espero que faça. Mas, no mínimo, você deve saber que tipo de
pessoa sua bruxa é antes de entregar a chave para um exército de valkerax,
não acha?
— Ela só vai usá-los para forçar uma parada na guerra. — Luto com tudo
o que tenho contra a lógica dele – não quero concordar com um galeirão
genocida.
— Posso garantir que, como alguém que passou a vida perseguindo o
poder — diz Gavik, — quando o poder absoluto se apresenta, não há mais
justiças. É tudo ou nada.
Ele não está errado. Ele não está errado e eu odeio isso. Meu coração é
tudo o que importa, certo? Então, por que estou aceitando a ideia de impedir
o ensino de valkerax para ele?
Varia está se debatendo em sua cama. Sua voz murmurando sobre a
árvore. Meu próprio pesadelo. A preocupação de Lucien no rosto dele e a
negação de Fione no dela. As coincidências, empilhando-se umas sobre as
outras.
Se algo está errado com minha bruxa, então onde isso deixa as pessoas
que a amam? Meus amigos?
ex-amigos, a fome corrige a oleosidade.
Este. Este pode ser meu presente de despedida para eles.
— Tudo bem — eu vocifero. — Você tem seu dia. Certifique-se de não
desperdiçar.
Evlorasin não quer falar hoje. Quer ficar em silêncio. E eu também,
francamente, mas todos temos trabalhos a fazer.
Eu o distraio da melhor maneira possível, sem realmente danificar seus
ensinamentos até agora – faço todo tipo de perguntas inofensivas. O que fará
quando estiver livre, para onde irá. Evlorasin quer voar, principalmente.
Adora voar. Estou um pouco surpresa – não sabia que eles podiam voar, e
passo uma quantidade exorbitante de tempo questionando Yorl quando morri
pela primeira vez.
Funciona como um encanto – pelo menos por um tempo. Ele fica tão
envolvido em me contar sobre todos os textos do Velho Vetris que falam
sobre eles voando que quase esquece de me dar meu próximo frasco. Ele se
lembra eventualmente e rosna para mim por distraí-lo.
Peço desculpas profusamente e entramos novamente na arena.
— O que você quis dizer? — Eu pergunto a Evlorasin. — Quando você
disse que a árvore dos ossos sempre chama a melodia forte o suficiente para
ser suas raízes?
A valkerax agita sua cauda, claramente irritada por, pela terceira vez
consecutiva, eu ter interrompido seu silêncio.
— Somos como o rio sobre pedras; dizemos muitas coisas verdadeiras e
não as lembramos.
— Você estava com muita dor. — eu concordo. Evlorasin bufa uma
respiração violenta de ar pelo nariz.
— Dor não é nada e tudo. O Lobo Faminto também sabe disso.
Sinto a valkerax mover o ar enquanto circula em volta de mim, uma
lufada de ar quente flutuando contra o meu corpo. Há uma pausa longa e com
muita respiração, e então Evlorasin fala.
— A música que nos chama vem da árvore dos ossos.
— Certo. — eu digo baixinho. A música significa fome. A fome que força
Sem Coração e valkerax a obedecer a comandos, que se alimenta de nossas
próprias dúvidas e medos.
— Uma árvore não pode crescer sem o sol ou a chuva — Evlorasin
assobia. — A árvore dos ossos não é diferente. O sol não é sua comida. A
água não é o seu alimento.
— Então, — murmuro.— o que é?
— Poder. — Bigodes da serpente batem o ar. — Poder por toda parte,
flutuando como nuvens e caindo como terra. Poder que não pode ser
sustentado por uma árvore sem as mãos. Um carrilhão deve segurá-lo,
oferecer o copo aos lábios da árvore.
Tricotei as sobrancelhas na escuridão. Um carrilhão deve segurá-lo. Pelo
poder, Evlorasin significa mágica, não é? O que significa que a Árvore dos
Ossos precisa de mágica. Magia de um carrilhão – uma bruxa.
— Podemos ouvir seus gritos de fome — rosna Evlorasin, baixo em sua
garganta. — Não é alimentado com sol ou chuva há muitas luas. Anseia por
um grande e grandioso carrilhão, tocando clara, alta e doce para o mundo.
Isso chamará essa melodia, como nos chama e nos puxa para baixo da terra.
Meu corpo inteiro se sente subitamente rígido. A primeira coisa em que
minha mente pisca é a mágica de Varia. Minhas feridas. Leva seus segundos
mágicos para me curar – é mais forte e mais potente que a magia de
Nightsinger por quilômetros e quilômetros. Quando fui queimada viva pelo
fogo de bruxa, meus ossos nada mais que cinzas, a magia de Varia não levou
horas para me curar. Matar um Sem Coração pelo fogo é conhecido por
retardar significativamente sua cura. O fogo de bruxa começou
aproximadamente ao pôr do sol. Mas a magia de Varia me deu vida
novamente durante o mesmo pôr do sol.
Ela é extremamente poderosa.
Os pesadelos de Varia sobre a Árvore – estão chamando ela. Se o que
Evlorasin diz é verdade, tudo se alinha.
A Árvore dos Ossos quer a magia de Varia. E está chamando ela.
Saio com Yorl após a sessão, sentindo seu rabo chicoteando o ar ao meu
lado enquanto subimos as escadas.
— Nós não podemos perder tempo como você fez hoje. — A voz do
célebre tem um rosnado. — A valkerax pode parecer melhorada, mas isso
não significa que seja melhor fisicamente. A morte não é...
— A Árvore dos Ossos se alimenta da magia de uma bruxa, certo? —
Yorl fica quieto, soltando minha mão. Posso ser capaz de encontrar o meu
caminho agora, mas é o gesto que mais dói. A pouca confiança que eu
construí com ele parece subitamente tensa, mas eu continuo. — A Árvore dos
Ossos é mais como uma relíquia Vetrisiana Velha, você disse. Eles injetaram
tanta engenharia mágica e polímata nela que ela desenvolveu uma mente
própria. E se estiver manipulando Varia? Isso é possível? Ela é uma bruxa
forte, e se estiver com fome...
Ele me para na escada, algo ligeiramente afiado cutucando o vazio vazio
do meu peito. Uma garra da pata de Yorl. Ele está apontando para mim. Não
consigo ver seu olhar, mas posso sentir aquelas enormes esferas de esmeralda
no meu rosto.
— Você quer seu coração em seu peito novamente ou não?
Meus próprios truques aumentam. — Obviamente.
— Então por quê? — Ele pergunta com cuidado e suavidade. — Por que
você está perguntando a essas perguntas?
Eu expiro frustrada. — Porque é importante! Varia disse que quer que a
Árvore dos Ossos controle a valkerax e interrompa a guerra, mas e se a
Árvore a estiver manipulando?
— E se for? — Yorl argumenta. — Nenhuma troca no Velho Vetris foi
desigual. Varia terá seu exército de valkerax. E a Árvore dos Ossos se
alimentará de sua magia. Ela sabe disso.
Minha carne alimentará sua fornalha.
— Meu avô sabia disso. Ele disse isso ao Rei e à Rainha, mas eles não
acreditaram nele. Eles não queriam acreditar nele – que a filha deles se
machucaria durante o sono todas as noites até que estivesse morta, ou até que
alguma relíquia do velho vetrisiano que consumisse sua magia.
Uma frieza penetra nas minhas veias. Yorl puxa a garra de volta do meu
peito.
— A verdade é apenas a verdade, Zera. Isso não afeta nada. O que mais
importa é o que Varia quer. Se ela conseguir, conseguiremos o que queremos
também. Concentre-se nisso.
Centralize sua mente nisso.
Meu não-coração afunda. — Se ela pegar a Árvore, ela vai morrer?
Yorl começa a subir os degraus, com os pés macios, e eu ando com ele,
procurando as paredes frias de pedra.
— Eu não sei — Yorl admite. — Não há muita documentação sobre como
a Árvore se alimenta, apenas que exige uma forte fonte de magia de vez em
quando. Mas eu arriscaria um palpite de que não é preciso toda a magia de
uma bruxa – as invenções do velho vetris são complexas e geralmente não
funcionam instantaneamente. Provavelmente sugaria a magia dela
lentamente.
— E matá-la? — Eu pergunto.
Yorl fica quieto e depois: — Sim. Eventualmente. Pelos cálculos do meu
avô, uma bruxa não pode sobreviver tendo toda a sua magia tirada dela.
Não posso mais seguir adiante. Varia vai morrer. Lucien e Fione perderão
sua amada novamente. Sua dor voltará dez vezes. E eu estou ajudando isso a
acontecer.
As suspeitas de Lucien estavam certas. E algo mais me atormenta.
— Se ela morrer, o que acontece com a valkerax? Eles são livres para
andar? — Pergunto.
— Não — diz Yorl. — A Árvore dos Ossos sempre assumirá como
padrão forçar a valkerax para o Escuro Abaixo. Se... quando... — sua voz
pega. — Quando ela morrer, em teoria toda a valkerax voltará para baixo.
Estou calada. Então Varia está fazendo tudo isso apenas por poder
temporário. A conversa entre Yorl e eu morre e não ressurge até chegarmos à
porta do nível da superfície.
— Nada disso nos preocupa, Zera. — diz ele, suas pupilas se cortam à
luz. — Mantenha sua mente em seu próprio objetivo. Não dela. Não meu.
Seu próprio.
Eu respiro. Cada fibra do meu ser sabe que sua lógica é sólida.
Mas não consigo deixar de pensar no rosto de Lucien, como ficará
quebrado quando Varia morrer novamente. E eu a terei ajudado ao túmulo
com minhas próprias mãos.

Nada me distrai dos meus pensamentos melhor do que um livro.


E agora preciso de distração mais do que nunca. Eu preciso ler as palavras
de outra pessoa para limpar minha cabeça de todas que zumbem no meu
crânio.
Meu tempo na corte vetrisiana não me permitiu visitar a biblioteca tanto
quanto eu gostaria. Eu tinha a biblioteca de Y'shennria, que me serviu bem
durante os poucos momentos de descanso entre tentar roubar o coração do
Príncipe, mas eu nunca pus os pés na biblioteca do palácio. A maior parte do
meu tempo aqui se concentrava em coisas chatas, como fingir ser
interessantes e fazer outras pessoas como eu.
Um desperdício, no final.
Um desperdício, sempre.
Mas agora, algumas semanas mais velha e mais sábia, entro na biblioteca
mais bonita que já vi. As janelas são pequenas e modestas para impedir que a
luz solar danifique os livros. Um globo de latão em proporções enormes está
pendurado no teto, suspenso por cabos e girando lentamente. Enormes
prateleiras de pau-rosa se erguem sobre nós, carregadas de todos os livros que
consigo imaginar – desde os épicos arrebatadores, as histórias de ninar das
crianças até a história escrita de todas as civilizações de Arathess – está tudo
aqui. Os princípios básicos da polímatemática, as famosas odes de um poeta-
geral durante a Guerra Helkyrisiana, os romances mais doces e de tirar o
fôlego já escritos por um nobre homem com muito tempo nas mãos e pouca
ação na cama – minhas mãos não conseguem folhear as páginas rápido o
suficiente.
Mas, é claro, não há livros na biblioteca do palácio sobre bruxas.
Cavanos os odeia, afinal. Sem dúvida, suas bibliotecas foram eliminadas
de toda a literatura relativa à magia e às bruxas. A única indicação de que as
bruxas existem são os livros infantis, nos quais (bruxa, eu sou terrivelmente
inteligente), um Sem Coração ou três caçam e comem os pais da criança-
herói, seus membros longos e dentes rangendo perfurando a página e
diretamente em meu coração.
Inclino um desses livros infantis quando olho para uma foto. — Eles
erraram os joelhos. E é isso... Não! — Eu assobio baixinho. — Nós não
temos barrigas peludas!
Com total desgosto, coloquei o livro de volta na estante, a coisa velha de
madeira balançando com raiva tanto quanto eu.
— Lá, lá. — Eu dou um tapinha para parar. — Eu sei. Esses humanos
nunca entendem direito a história, não é?
— Exceto quando alguém nos erra. — Olho para a voz no final do
corredor e vejo Fione parada lá. Finjo não perceber como a mão dela agarra
sua bengala com cabeça de valkerax como se sua vida dependesse disso ou
como a cabeça dela é mantida um pouco alta demais. A fome pode sentir o
cheiro de seu medo, mesmo através do casaco de montaria, e eu o aplico com
fervor extra. Sua nobre máscara é perfeita, impassível quando ela se
aproxima um mero passo. Eu tento me tornar pequeno, sem ameaças.
— Estamos com um clima agradável. — Começo com algo inofensivo e
passo o dedo sobre a lombada de um livro. Uma fina nuvem de partículas
cinzentas gira no ar. — Um pouco empoeirado, no entanto.
— Eu te dei o diário do meu tio. Então, o seu fim da barganha. O que
Varia está fazendo com você? — Fione não se distrai nem um pouco, sua voz
forte.
Limpo meu dedo no meu vestido simples de linho e sorrio. — Você
realmente se importa profundamente com ela.
Observo Fione se erguer até sua altura máxima de arquiduquesa, seus
cachos de rato brilhando ao sol da biblioteca. Dói meu coração vê-la tão
protetora de Varia, tão determinada a descobrir o que está acontecendo.
— Responda-me. — ela exige.
Não ouço calor nas palavras dela. Por que eu deveria? Estou ajudando a
amante dela a se matar.
— Você está certa. — Suspiro. — Suponho que não mereço gentilezas.
Devo alucinar, mas algo como a dor percorre a compostura de Fione. E
então, entre o pó rodopiante, ela diz baixinho: — Eu preciso saber. Isso é
tudo.
— Ultimamente, tenho tentado essa coisa chamada 'ficando mais sábio' e
decidi que há uma diferença entre esclarecer as pessoas e machucá-las com
conhecimento.
— Zera! — A voz de Fione é firme. — Eu imploro a você; em nome da
amizade que já tivemos, em nome da amizade que ainda podemos ter, por
favor, diga-me o que Varia está fazendo para você.
Eu me surpreendo, do fundo da minha alma. A amizade que ainda
podemos ter?
mentiras, a fome zomba. tudo isso. mentindo para te manipular como
ela nasceu, mentindo porque ela tem medo de você...
Tricoto meus lábios. Eu queimo para dizer a verdade – que Varia está
planejando forçar um cessar-fogo controlando todas as valkerax no Escuro
Abaixo. Mas que garota quer ouvir que sua amante está prestes a se tornar
efetivamente a pessoa mais poderosa – e mais temida – em todo o mundo? A
ilusão de felicidade de Fione seria destruída. Eu poderia dizer a verdade. Mas
não é melhor deixá-la viver o seu sonho feliz com Varia o máximo que puder,
aquele que ela queria durante todos esses cinco anos difíceis?
Não é mais gentil, no final, ser cruel?
Então eu rio. — Eu sinto Muito. Mas você não está convencendo o
suficiente.
Sua máscara desliza. Ela pisca uma dúzia de vezes, ferida. — Nossa
amizade não é convincente o suficiente?
— Não particularmente. — Eu acaricio a coluna de outro livro. — Tudo o
que fiz foi mentir para você por duas semanas, e tudo que você fez foi me
usar por duas semanas para obter as informações necessárias de seu tio.
— Fomos mais do que isso — insiste Fione. — Eu senti que poderia ser
eu mesma com você.
Eu quase sorrio e concordo com ela. Eu também.
Mas estou ajudando a matar a pessoa que ela mais ama. E eu não vou
parar. Vou continuar fazendo isso – tudo pelo meu coração.
Eu realmente sou o monstro.
— Oh, querida. — Eu sorrio para Fione. — Você se apaixonou pela
minha mentira, assim como Lucien.
Ela faz um movimento repentino surpreendente, estendendo a mão para se
segurar na estante de livros mais próxima. O vacilante.
Ele geme e range, e em um momento horrível eu percebo exatamente o
que vai acontecer.
se você tocá-la, haverá dor...
A voz da fome é tarde demais – a estante de livros se inclina para trás e
depois se lança para frente, uma Fione congelada pronta com olhos
arregalados entre ela e o chão. Minha mão pega seu ombro primeiro, e eu a
atiro o mais forte que posso na outra direção.
A prateleira aparece, a centímetros de distância, e eu me preparo contra o
impacto, contra a crescente demanda do comando que arranca o controle do
meu corpo, deixando-me entorpecida.
Você encontrará um lugar isolado e esfaqueará três vezes no estômago
com algo afiado...
A dor pesada da prateleira nunca vem. Algo mais me atinge, algo muito
menos denso, algo quente e que se move por conta própria. Uma pessoa. Eles
me jogam no chão, minha cabeça batendo na madeira e meu ouvido está
tocando, abafando o som da estante caindo no chão.
Cabelos escuros e desgrenhados, olhos escuros me olhando ferozmente.
Lucien.
Redemoinhos de poeira entre nós no rescaldo, seu rosto perto do meu. Um
raio de sol o esmaltou na luz branca-dourada, um olho escuro dourado
derretido, mechas vermelhas iluminando seus cabelos da meia-noite.
Vagamente, pela dormência do comando, sinto seu braço em volta dos meus
ombros, como se ele tivesse tentado amortecer minha queda.
tolo apaixonado.
Se eu pudesse ficar neste momento, olhando para sua expressão severa,
seus braços em volta de mim, eu ficaria. A garota da outra linha do tempo,
muitas vezes já saboreava sua presença de maneiras que nunca poderei.
Eu sorrio para mim mesma e para ele. Ela é muito sortuda, eu acho.
— Essa é a segunda vez que você me tira do caminho do perigo iminente.
— eu pio, e tenho certeza que meus olhos estão brilhando desonestamente. —
Mas pelo menos desta vez não tenho que fingir que estou impressionada com
isso.
Fracamente, atrás dele, vejo o contorno de outra pessoa – alguém com
cabelos loiros e uma mão sobre a boca delicada. Lady Tarroux. Eles estavam
andando na biblioteca? Deuses, eu arruinei o tempo deles juntos, não foi? Ela
está congelada e, antes que Lucien possa falar, o mundo real atravessa o
momento. O comando exige, e eu o empurro e me levanto. Eu posso ouvir
Fione se esforçando para se levantar, Lucien também e Lady Tarroux me
chamando, mas minha marcha rígida de comando já está na metade da
biblioteca. No momento em que eles se orientam, eu estou no corredor,
passando pelas guarnições que correm em direção à comoção da prateleira
caindo.
O comando me leva para as cozinhas sufocantes, pegando uma faca de
frutas da mesa suavemente enquanto eu vou. A chef e seus muitos assistentes
envolvidos em churrasco nem percebem que desapareceu quando saio da
cozinha e entrei na adega mais escura e fria.
O comando é assustadoramente inteligente, eficiente. Isso me coloca atrás
de uma fileira de barris, sobre um dos drenos que eles usam para lavar o
vinho velho e ruim. O sangue não será notado.
Nada rompe esse tempo. Os golpes são limpos e rápidos. Mordo o interior
da minha boca, suor frio escorrendo pela minha testa e minhas pernas
roçando no chão em alguma tentativa de aliviar a agonia. Gritar ou gemer não
é mais uma opção, não quando não posso me dar ao luxo de ser vista, ser
pega. Não posso mostrar a ninguém como realmente me sinto.
Talvez eu nunca pudesse, nesta cidade.
Espero que as feridas se curem com a magia de Varia, o sangue
escorrendo para o meu corpete, sobre o estômago e diminuindo a velocidade
do dreno já manchado pela escuridão.
não vale a pena, a fome rosna.
Enquanto os cortes se consertam, eu rio baixinho. — O que você
saberia...? — Eu estremeço quando me sento. — Sobre o que as pessoas
valem?
O som de madeira rangendo me faz cambalear para os meus pés grogue.
Um humano? Os deuses proíbem que um humano veja isso – Varia terá
tempo para encobri-lo. Mas não é apenas um humano ignorante. Lá, entre os
barris, nos degraus Lucien, seu belo rosto rígido e pálido, como se estivesse
vendo o mundo acabar.
Quanto ele viu? A facada? A fala comigo mesma?
Aperto meu estômago em alguma tentativa vã de esconder a enorme
mancha de sangue lá, minha voz nervosa enquanto movimento com a outra
mão. — E aqui eu pensei que o lugar onde eles escondem todos os líquidos
divertidos ficaria um pouco mais alegre.
Seu olhar não vacila, sua postura está imóvel. — Fione disse que Varia
ordenou que você se esfaqueie se você a tocar. Isso é verdade?
Dou de ombros levemente o quanto posso. — É para a paz de espírito de
Fione.
— Isso. É. Verdade? — Ele repete, mais difícil. Um último grão de
verdade, então. Um último pedaço de verdade, se ele quer tanto.
Ele é tão sério, tão drasticamente diferente do ladrão irreverente que me
ofereceu a rosa negra na casa em ruínas.
— Sim. — murmuro.
Ele está lá um momento e se foi no seguinte, e sigo o som de suas botas
sobre a pedra, para a cozinha. Onde ele está indo? Puxo um avental
descartado da pilha de roupas sujas, vestindo-o para esconder as manchas de
sangue e correndo atrás dele para alcançá-lo. Ele está tão à minha frente que
só consigo ouvir os passos dele, não vê-lo, mas eles levam direto para a ala
da serpente e para os únicos apartamentos que me permitem chegar perto – da
Varia. Ele dispensou os guardas reais de sempre do lado de fora da sala, com
a porta entreaberta.
— ...então, por que você faria isso? — A voz de Lucien canta o ar – não é
um grito, mas agora está quase baixo.
— Eu queria ter certeza de que Fione se sentia segura. — Varia suspira.
— E quanto a Zera? — Ele late. — E a segurança dela?
Ouço Varia fazer uma pausa e ela começa a rir, incrédula. — A segurança
dela? Ela é Sem Coração, Luc. Ela está segura, não importa o quê.
— Ela não está a salvo da dor. — ele retruca. — Ela sente isso tanto
quanto nós! Por que você infligiria isso a ela?
— Eu te disse. — Varia suspira mais fundo. — Porque eu me preocupo
com Fione.
— E você não liga para Zera. Porque ela me machucou. É isso aí, não é ?
Ela mentiu para mim, e então você está exigindo algum tipo de vingança
doentia por isso.
— Ela está partindo seu coração! — A voz de Varia subitamente aumenta,
meio histérica. — E eu estou vendo ela fazer isso todos os dias! Estou vendo
você deixar acontecer!
Lucien está quieto, e esse silêncio soa por toda a sala. Quanto mais
reverbera, mais me sinto enjoada.
— Ela é insensível, Luc — Varia repete finalmente, mais suave.
— Ela sempre valorizará seu coração acima do seu.
verdade, a fome ri. verdade da Filha Risonha, sempre...
— Você está errada. — Lucien rosna. Meu não-coração afunda nas
profundezas do Oceano Torcido.
não, querido Príncipe, ela está muito certa
— Estou? — Varia pergunta friamente.
— Ela me salvou. — diz ele. — Ela poderia ter deixado Gavik me matar
na clareira e levado meu coração então e conseguido o seu por isso. Mas ela
me defendeu. Ela matou aqueles homens para me proteger.
Não. Não não não. A injustiça rasteja sobre mim, beliscando minha pele.
Essa lembrança é só para mim e para mim. Essa memória é para mim
guardar, para sempre, sozinha, para que ninguém mais possa usá-la como
uma prova falsa de que vale a pena salvar. Assim como ele está fazendo
agora.
uma única ação não perdoa uma vida inteira de erros.
Os irmãos reais estão em silêncio e, em seguida. — Quando ela for
humana... — Lucien começa, a voz rouca.
— Quando ela finalmente for humana, ela partirá — Varia o interrompe
suavemente. — Porque é isso que qualquer pessoa que se preze que está
magicamente encantada por anos faria. Você está tentando segurar grãos de
areia, irmão.
Sua correção sobre mim dói mais do que as três facadas – muito pior,
como se tivessem explodido minha carne e deixado buracos abertos dez vezes
o seu tamanho. Eu vou deixar. Eu tenho que deixar; não há mais nada para
mim aqui, apenas pessoas que magoei e traí e deixei a confiança sangrando
por todo o chão.
Mas o Príncipe Herdeiro de Cavanos nunca soube quando desistir.
— O que você está fazendo com que ela faça? — Ele exige.
— Luc, eu te amo. — Varia diz, e eu posso ouvir o movimento de suas
saias duras enquanto ela se levanta. — Mas isso é entre ela e eu.
Há uma batida e, em seguida, Lucien diz: — Desfaça o comando dela
sobre Fione.
Varia ri. — Quando você ficou com problemas de audição? Foi enquanto
eu estava fora? Você sabe tão bem quanto eu que Fione tem pavor de Sem
Coração, e farei tudo o que estiver ao meu alcance para...
— Desfaça o comando dela sobre Fione, — Lucien diz novamente,
vestido com firmeza. — Ou direi ao pai o que você é.
Sinto meu rosto esfriar. Ele não... por mim? Varia pode ser sua irmã, mas
ela ainda é uma bruxa, a bruxa mais poderosa que eu já conheci. Ele está
fazendo dela um inimigo – sua amada irmã – só por minha causa! E eu não
terei.
Tropeço pelas portas. — Peitos esbugalhados do novo Deus! — Eu me
preparo para não cair nas costas de um sofá e pisco os olhos para Varia e
Lucien. — Oh meu! É um argumento interrompido que cheira ou dei um
passo no caminho de volta?
Enquanto os irmãos d'Malvane se encaram – Varia afiada e Lucien
ardente – vejo outra jarra de vinho e a pego com alegria.
— Princesa Varia. — Eu afundo no sofá e coloco um pouco de vinho na
boca desleixado. Nada como um bêbado desleixado para neutralizar uma
situação. — Estou começando a ficar sem os vestidos que você me deu.
Alguma chance de eu conseguir alguns novos?
Pare-me se você já ouviu isso antes: coberto de diamantes, feitos da mais
pura seda Avellish, e todo preto, para que eu possa sangrar sem entrar em
pânico em todo o palácio.
Ainda assim, os irmãos d'Malvane se entreolham, como dois gatos de rua
postando-se em desafio. Finalmente Lucien interrompe, saindo da sala com
passos cortados. Ele passa com vergonha de me tocar no sofá, e eu
permaneço fracamente no cheiro de água clara dele. Estou quase fraca o
suficiente para não sentir o cheiro de mercúrio branco que o segue. Quase.
Ele andava por aí com polígonos com frequência ou algo assim?
Quando o clique de suas botas no mármore desaparece, olho para Varia.
— Está tudo bem?
Varia volta para o seu boudoir de maquiagem calmamente. — Você
estava do lado de fora da porta. Diga-me você.
Eu zombei. — Você sempre sabe onde estou?
— Eu sei onde você está do jeito que sei onde está o meu próprio pé. —
Varia pega um lápis de cera, desenhando linhas cuidadosas em suas
bochechas.
— O que, então eu não posso nem brincar de esconde-esconde com você?
Boo. — Eu tiro o cabelo dos meus olhos. — De repente, decidi que mágica é
trapaça.
— Você e Gavik estão conversando, não é?
Minha coluna fica rígida. Se ela pode dizer onde seus Sem Coração estão
o tempo todo, então não adianta negar.
— Nós nos encontramos e decidimos tomar chá juntos. — eu digo.
Varia não responde, aplicando sua maquiagem com precisão e foco, mas
mesmo com os traços, posso ver como a mão dela treme.
Ela vai morrer. Ela vai se sacrificar para parar esta guerra. É tudo o que
consigo pensar. Há um grande vestido de baile em seu manequim, um
vermelho profundo com estrelas de prata bordadas no busto e na saia. Deve
haver um banquete hoje à noite, mas a ideia de banquetes soa oca no que eu
sei que ela planeja fazer.
Ela fala eventualmente. — Quero que você se vá o mais rápido possível,
Zera.
quanto mais tempo você fica, a fome diminui, mais ele se arrisca.
A frieza com que ela diz que é como o gelo mais profundo do inverno.
Tremo uma vez e respiro para me firmar. Eu rio e tomo um gole de vinho.
— É por isso que fiquei com você, minha querida Princesa. Em parte
porque não tenho escolha concebível no assunto, mas principalmente porque
você e eu estamos escritas na mesma página do mesmo livro ruim sobre
pessoas terríveis.
17

Moonskemp

Eu estava errada.
Eu sei, chocante. Eu, de todas as pessoas da Arathess verde dos dois
deuses, errada? Mas eu estou – não é um banquete que Varia está se
preparando para hoje à noite. É Moonskemp.
Eu quase tinha esquecido o Moonskemp com todos os sentimentos de
Valkerax e Lucien e os preparativos para a guerra.
Moonskemp vem a semana após o dia de Verdance. O Dia da Verdança
marca a mudança das estações, mas Moonskemp marca o dia mitológico em
que, há muito tempo, o Deus Antigo dividiu a lua muito brilhante – que não
permitia que ninguém em Arathess dormisse – em três luas. Vetris, é claro,
modificou a história, na medida em que celebram o Novo Deus separando as
luas.
Eu estava tão ocupada me preocupando na carruagem hoje de manhã que
não havia pensado nas guirlandas de fluxos de lua amarelos pálidos que
estavam penduradas na cidade ou nos pratos de sal marinho tingido de
vermelho e azul deixados de fora na porta.
Geralmente, há um banquete à meia-noite de finas panquecas de trigo
sarraceno, nas quais frutas e legumes frescos do verão são embrulhados, e um
pato assado de cauda vermelha para facilitar uma mudança para melhor, mas
com a guerra decretada e o racionamento já em vigor, as únicas pessoas que
concebivelmente, entram no pato tradicional são, é claro, os nobres.
As criadas que ajudam o vestido da Varia não param de tagarelar sobre a
dança hoje à noite, uma dança de Moonskemp no grande salão de baile.
Aparentemente, os nobres pretendem tornar este último feriado antes do
início da guerra decadente.
Varia veste o vestido – fica quieta o tempo todo – e sai ao pôr do sol,
pingando jóias de quartzo e deixando-me nos apartamentos vazios. Eu passo
meus dedos sobre o quarto dela, onde estão uma estranha pulseira e brincos –
feitos inteiramente de algum tipo de marfim, esculpidos com flores e
trepadeiras. Varia, obviamente, escolheu as gemas de quartzo sobre este par.
Sentimentos não são jóias. Mas também não são cicatrizes. Eles não são
fugazes, mas também não são permanentes. Penso em Y'shennria, nas
cicatrizes em seu pescoço e depois em seu sorriso gentil para mim.
Até cicatrizes podem desaparecer.
Ainda me sinto péssima por ser tão cruel com Fione, e a raiva de Lucien
em relação à irmã por causa de mim empurra ainda mais a culpa pela minha
garganta. Eles vão estar no baile – eles têm que estar, como nobres Primeiro
Sangue. Como uma Y'shennria, acho que deveria estar lá também. Pego o
último vestido que me resta das coisas antigas de Varia – um creme macio de
linho e renda. Percebo meu reflexo no espelho do quarto: finas olheiras,
lábios mais finos. O que Lucien vê em mim? Existe algo em mim que valha
mais do que ficar contra sua amada irmã? Existe uma luz no mundo forte o
suficiente para brilhar através das coisas escuras que eu fiz?
Eu não sei. Eu gostaria de saber, mas essas perguntas permanecem
invisíveis, sem resposta.
você nunca terá uma resposta. A fome ri. Tudo que você tem sou eu.
Toco as jóias de marfim, puxando lentamente a pulseira e prendendo os
brincos.
Nobres serpenteiam pelos corredores a caminho do salão de baile, e uma
voz gentil familiar rompe a multidão esparsa. — Lady Zera!
Eu me viro para ver Lady Tarroux correndo em minha direção, sem
fôlego, mas deslumbrante em um vestido rosa legal com uma saia em
camadas, a forma emulando um botão de rosa apenas se abrindo. Nobres
murmuram quando ela passa – correr não serve para uma dama. Mas agora
mais do que nunca, ela parece não se importar.
— Lady Tarroux. — Faço uma reverência. — Você parece que um
jardineiro acabou de pegar você de um arbusto!
Ela cora rosa o suficiente para combinar com seu vestido e me oferece seu
braço. — Obrigado. Você vai andar comigo?
É um gesto tão reminiscente de Fione, do modo como ela e eu andamos
no mundo, que faz meu não coração cantar com saudade.
Se ao menos ela fosse Fione. Se ela soubesse o que eu realmente era, ela
teria tanto medo de mim, como Fione. Suavemente, pego o braço dela e
juntas fazemos o nosso caminho para a dança.
— Por curiosidade e admiração, — começo. — ouvi dizer que correr é
bom para você, mas também ouvi os outros nobres odiarem.
— Oh. — Ela acena com a mão com desdém. — Não estou muito
preocupada com o que eles pensam.
Desta vez eu rio, e ela pisca.
— Algo engraçado?
— Desculpe. Passei duas semanas exaustivas treinando para me
preocupar extremamente com o que os outros nobres pensavam de mim, para
ouvi-la colocar dessa maneira... é como ouvir um célebre dizer que não pode
crescer cabelo.
É a vez de Lady Tarroux rir. — Perdoe-me, mas é porque você é uma
Primeiro Sangue. Como você se comporta é a sua moeda social. Mas o meu
é, bem, moeda.
Isso me atinge então. — A guerra! Seu pai está financiando uma boa
quantia, o que significa... — Eu sorrio para ela. — Você é a única de nós no
palácio que pode fazer o que quiser.
Ela fica hesitante, abaixando os cílios. — Eu nunca faria coisas
irresponsáveis aos olhos de Kavar, mas sim. Antes da declaração de guerra,
meu pai estava financiando a pesquisa de mercúrio branco do arquiduque
Gavik. Portanto, nunca me preocupei demais com a opinião pública.
— Bem. — Eu suspiro. — Isso tornará a rainha um pouquinho mais
difícil para você, não é?
Ela tropeça em seus sapatos rosa pálido. — R-rainha? O que você está
dizendo, Lady Zera?
Eu rio e puxo-a pelo braço de brincadeira. — Vamos. Há dança a ser feita.
O baile de Moonskemp não é de forma alguma um banquete – há muito
menos decoro nela. Ninguém é anunciado quando entram. O grande salão de
baile é menos extravagante que o salão de banquetes, menor e ainda assim
repleto de objetos. A Moonskemp proíbe o uso de qualquer luz, exceto velas,
coloridas com chamas azuis e vermelhas, graças aos pós de polímato, de
modo que o brilho usual das lâmpadas de óleo e mercúrio branco está
ausente. Milhares de velas cor de rubi e safira pingam e voam sobre colunas,
mesas e estátuas, como milhares de luas em miniatura – o Gigante Azul e os
Gêmeos Vermelhos. Uma varanda se estende além de uma parede de portas
de vidro abertas, o corrimão forrado com velas derretendo.
O baile está em pleno andamento quando chego, os aromas de perfumes e
vinhos pesados no ar.
Inclino-me para sussurrar no ouvido de Lady Tarroux. — Y'shennria
sempre me ensinou que os nobres fazem o possível para permanecer
razoavelmente sóbrios durante as festas, mas isso é claramente uma exceção.
Ela assente, seus olhos cor de canela se arregalam. Seja o estresse da
guerra ou qualquer outra coisa, vários nobres estão cambaleando, bebendo
suas bebidas e rindo muito mais alto do que o aceitável. Observo uma nobre
inclinando-se demais sobre algumas velas e ela grita quando um fogo azul
pega sua gola de seda. Ela bate com o lenço, rindo.
O Rei Sref e a Rainha Kolissa estão com Varia e Lucien, é claro,
brilhando de orgulho e se reuniram com os ministros e alguns outros nobres
de Sangue Dourado perto da mesa de punção. Há um nobre Sangue Dourado
muito atraente, e a rainha parece querer convencer ele e Varia a conversar.
Não vejo Fione, mas tenho certeza de que ela não pode ser feliz com isso. E
Varia sabe que não deve deixar seu descontentamento aparecer em seu rosto.
Ela sorri afável, mas por trás de seu olhar sorridente vejo punhais.
Eu assisto minha bruxa conversar com seus pais, seu sorriso tenso. Ela
não dirá a eles que é uma bruxa e, aparentemente, ela não dirá a eles que
também está em um relacionamento com Fione. Eles não se calaram
exatamente sobre o relacionamento – os guardas ordenados a seguir Varia
pelo Rei Sref, sem dúvida, conversaram em algum momento –, então tenho
certeza de que existem rumores que ainda não ouvi. Mas, sabendo quanto
barulho foi feito em torno de mim e de Noivas da Primavera para Lucien, não
tenho dúvida de que o casamento da Princesa será reforçado e comemorado
em igual medida por seus pais.
A menos que, é claro, ela apareça com um exército de valkerax.
Com tanto poder, ninguém ousaria dizer a ela com quem se casar
novamente.
Mas ela estaria morta logo depois, não? Um ano? Talvez dois?
Se Varia conseguir a Árvore dos Ossos, qualquer casamento com Fione
não durará para sempre, e isso destrói meus pulmões como vidro quebrado.
Lucien está ao lado de seus pais, vestido com algo vermelho-sangue, mas
meus olhos deslizam sobre ele com culpa. Ele fala com o Rei e a Rainha, mas
não conversa com o Varia. Ele nem olha para ela. Por minha causa.
Minha culpa dura pouco quando o pai de Lady Tarroux – um homem alto
com um bigode loiro brilhante – acena para ela da mesa de bebidas e ela
acena de volta.
— Estou com ciúmes — eu admito. — Eu sou órfão, então não consigo
me lembrar do meu pai.
— Oh. — O rosto de Tarroux cai. — Eu sinto muito.
— Está bem. Isso aconteceu há muito tempo. — Eu sorrio. — Você está
em bons termos com ele?
Ela suspira. — Geralmente sim. Mas ultimamente... — Ela me lança um
olhar. — Eu sinto muito. Você provavelmente não quer me ouvir reclamar.
— Você está de brincadeira? Eu reclamo o tempo todo para quem quiser
ouvir. O mínimo que posso fazer é retribuir. Eu prometo, seus segredos estão
seguros comigo.
— É... não é realmente um segredo — ela corrige. — É só que... o pai tem
medo da guerra. Ele quer mudar nós dois de volta para Helkyris antes que ela
comece completamente.
Meu não coração afunda. Se ela se mudar, meu plano para empurrá-la
para mais perto de Lucien falhará. As linhas tênues que estão estendendo a
mão para serem cortadas serão cortadas.
— Você quer se mudar? — Eu pergunto.
Ela balança a cabeça. — Absolutamente não. O templo está aqui e ali —
os olhos dela se voltam para o corpo de Lucien e suavizam. — as pessoas de
quem eu cuido.
Eu rio um pouco baixinho. Ela praticamente tem estrelas nos olhos sobre
ele.
— Espero que você fique. — eu digo, cutucando-a conscientemente. —
Eu acho que vocês dois formariam um casal muito fofo.
As palavras queimam saindo, mas uma parte de mim sabe que são
sinceras. Quero que Lucien tenha uma vida normal e pacífica, com uma
garota pacífica e normal. Tarroux apenas olha melancolicamente para Lucien.
Finalmente, seu pai faz um gesto para ela da mesa de refrescos, e ela me dá
um tímido adeus e trota.
Soltei um suspiro duro e pequeno. Há um estande musical completo no
canto, chifres de fogo e windlutes tocando lindamente na sala escura. A
música muda para algo mais otimista, aliviando uma fração da tensão no meu
peito, e de repente os nobres bêbados estão clamando para parear e encher a
pista de dança. Observo-os girando como flores coloridas sobre o mármore,
sua beleza eclipsada pelo fato de a varanda aberta mostrar as luzes de Vetris
abaixo e os milhares de fogos lotados além do muro onde o exército dorme.
Ainda assim, a fumaça das queimadas da floresta durante a guerra
permanece no céu noturno.
— Lady Zera?
Olho para cima e não vejo outra senão Fione. Ela parece pensativa, mas
linda em um vestido de organza cinza que faz seus olhos azuis parecerem
mais prateados. Ela não está perto de mim, embora esteja mais perto do que o
habitual. Mas isso significa pouco.
Eu sorrio para ela e aceno para onde Varia está de pé. — Ah, pais. Eles
são verdadeiramente sem noção, não são? Não que eu soubesse. Ou lembre-
me. Mas imagino que possam ser.
Não espero que ela fale comigo. Afinal, posso ver os punhos dela
apertando as saias.
— Suas jóias são muito bonitas. — Fione oferece finalmente, suas
palavras duras. — É osso valkerax, não é?
Eu pisco. — É isso?
Ela assente, estendendo a bengala com cabeça de valkerax para que eu
possa ver claramente além das mangas. — Você pode dizer pela maneira
como as coisas parecem mais sombrias. Os ossos de Valkerax sugam a luz.
Veja?
Olho para minha pulseira e sua bengala de marfim – eu não tinha notado
antes com tanta luz ao redor, mas apenas com a luz das velas, é fácil ver a
névoa de escuridão que envolve os ossos, como se a menor sombra estivesse
pendurada sobre eles e somente eles.
— É por isso que a escuridão no tubo em que o esqueleto da valkerax
parecia tão opressiva. — diz Fione.
— Oh! — Eu fico maravilhada. — Sempre posso contar com você para
ajudar as coisas a fazerem mais sentido, Sua Graça.
Um garçom passa com uma bandeja de frutas, e Fione pega uma figura de
neve delicada e a enrola nos dedos com toda sua energia nervosa. —
Obrigado. — Ela limpa a garganta depois de um momento. — Por me salvar,
mais cedo.
— Oh, psh. — Eu aceno para ela. — Não se preocupe com isso.
— Eu faço. Eu tenho estado. Você sabia que se esfaquearia por me tocar.
— Fione insiste. — Mas você me empurrou para fora do caminho de
qualquer maneira.
por razões egoístas, a fome rosna. para aliviar sua própria culpa.
Fione fala mais baixo. — Você disse que nossa amizade não significava
nada. Mas então você me salvou. Então, no que devo acreditar agora?
É difícil morder minha língua ao invés de responder a ela. Ela pode
acreditar no que quiser. Mas suas crenças são melhores sem mim nelas.
— Oh! Lorde Grat. — Eu me curvo para o enorme garoto nobre quando
ele passa, seus ombros tão largos que mal cabem em seu casaco. Ele é a
distração perfeita. Ele participou do duelo quase duas semanas antes, onde
prometeu vencer por mim e não parece menos ansioso para me ver agora.
— Lady Zera! — Ele sorri. — Eu não tinha ideia de que você era uma
tendência.
— Nem eu, até meia hora atrás. — Eu rio, entrelaçando seu braço no meu.
— Você gostaria de dançar comigo?
Usando Lord Grat como uma desculpa, eu me despeço de Fione
rigidamente e vou para a pista de dança. O corpo de lorde Grat é tão grande e
distinto que é fácil conseguir espaço na pista de dança, de modo que o único
par de pés que tenho que me preocupar em pisar é dele. A música é tão alta
que quase abafa a fome. É como ouvir alguém gritar comigo de outra sala –
sei que há hostilidade, mas não consigo distinguir as palavras exatas.
Não dancei desde aquelas lições desajeitadas na mansão de Y'shennria,
com Reginall me adiando. Mas meu corpo se lembra um pouco melhor do
que eu, e logo Lord Grat e eu estamos nos movendo suavemente pelo chão.
— Eu sei que é rude da minha parte. — Lorde Grat me lança um sorriso
tímido. — Mas todo mundo está morrendo de vontade de saber... — Ele para,
esperando que eu aprove, e eu aceno.
— Me pergunte qualquer coisa. Contanto que não sejam minhas medidas.
Eu preciso de compensação na forma de grandes quantidades de ouro para
aqueles.
Ele ri, me rodopiando e, quando eu o encaro de novo, ele deixa escapar:
— Você ainda é a Noiva da Primavera do Príncipe Lucien ?
— Simplicidade, aqui na corte? Lorde Grat, você deve estar terrivelmente
curioso.
As bochechas de Lorde Grat ficam vermelhas e ele me vira novamente.
Há uma pausa na dança em que temos que trocar de parceiro com as pessoas
na diagonal para nós, e isso acontece apenas então, então Lord Grat me deixa
ir. Entro em espiral nos braços de outro nobre, agradecido pelo tempo para
pensar em minha resposta e pronta com um sorriso desarmante para o
estranho. Até eu olhar em seu rosto.
Lucien.
Ele coloca uma figura impressionante em um casaco de gola alta, o cabelo
liso para trás e as maçãs do rosto altas em exibição intimidadora, como duas
lâminas projetando-se contra a escuridão.
Sua postura é perfeita, seus olhos gelados em sua quietude. Ele é lindo. E
eu não suporto desviar meu olhar. Não importa o quanto eu saiba que devo,
não importa o quanto eu saiba que preciso afastá-lo, não consigo me
convencer.
Nenhum de nós fala.
Sua mão repousa nas minhas costas, sentindo como se estivesse
queimando um buraco no meu vestido. Parte de mim estremece com a
pressão de nossas mãos pressionadas juntas, tão perto de algo parecido
naquela noite na caça em sua barraca, quando ele me beijou.
O beijo. De repente, é tudo que consigo pensar, minha memória latejando.
Eu conheço aqueles lábios severos e severos que franzem a testa para mim
agora. Eu sei como eles são gentis e intoxicantes.
— Eu tenho uma confissão. — Lucien diz suavemente, sua voz estridente
no meu peito.
Eu componho meu rosto, deixo o mais afetado possível enquanto olho
para ele. — Há alguém que eu gostaria que você conhecesse, Alteza. Você
viu Lady Ania Tarroux ultimamente, tenho certeza...
— Você se lembra — ele me interrompe, — na noite em que paramos o
ataque de Gavik, e você protegeu essas pessoas?
É claro que eu me lembro. Lembro-me de cada centímetro dos gritos
aterrorizados, da crueldade de Gavik. Eu sou do norte. — Um sacrifício
vazio, considerando que eu não teria morrido se tivesse levado um tiro.
Ele me puxa para mais perto, então, nossos peitos ficam vermelhos de
uma maneira totalmente inapropriada para a corte. Sua boca está
perigosamente perto e acima da minha orelha.
— Estou começando a me cansar do jeito que você menospreza as coisas
altruístas que você faz.
Uma dor aguda percorre meu coração.
altruísta? A fome finalmente chega até mim, rosnando. somos incapazes
de abnegação.
— Se você morreu ou não, estava disposta a sofrer por eles.— continua
Lucien. – Pela primeira vez, Lady Zera, peço a você: seja tão misericordiosa
consigo mesmo quanto com todos os outros.
A dança exige uma virada, mas é abrupta e incrivelmente difícil respirar
fundo. Lucien me gira, e eu me movo com firmeza com o movimento,
voltando para seus braços.
— Lady Tarroux — faço minha voz forte. — é uma garota adorável.
Normalmente não digo nada de positivo sobre os nobres, pelas razões óbvias,
mas ela é muito diferente deles. E eu sei o quanto você aprecia a diferença.
Ela é honesta, doce e não é nada difícil de olhar...
— Eu não vou deixar Varia mais machucá-la. — diz ele, me ignorando
sem rodeios.
— Lady Tarroux nunca matou ninguém. — eu digo, suave e ainda alto o
suficiente para ele ouvir. — Ela é muito franca para mentir para você. E,
acima de tudo, tenho quase certeza de que ela nunca tentaria matá-lo e tomar
seu coração pelas próprias necessidades egoístas...
Nós paramos. No meio do salão de baile, todas as cores imagináveis
passando por nós, ele inclina a cabeça, a mandíbula afiada iluminada pela luz
das velas. Eu sei o que está por vir, como um cão de caça conhece uma
trincheira, como o galo sabe que o sol está chegando, como um peixe
conhece as marés. Alguma parte profunda e velha de mim – com mais de
dezenove anos – sabe que ele vai me beijar.
Os raios atraem nossos corpos juntos – dedos invisíveis de raios
entrelaçados entre si e nos prendendo no lugar, quadris a quadris, peito a
peito. O calor de seus lábios, a insistência suave de suas mãos enquanto
seguram minha cintura – eu posso sentir uma febre estranha crescendo em
mim enquanto seus lábios pressionam os meus. Ele se move para o meu
ouvido, o buraco embaixo dele, e o beija suavemente, e eu sei que esse não é
o beijo da Caçada. Aquele beijo foi uma lua, saudade e doce. Esse beijo é o
sol, ardendo quente e mais brilhante que o ápice do nascer do sol, formigando
minha pele com o suor, nada de doce ou sutil. A onda de calor quase dobra
meus joelhos, e eu seguro o casaco dele para ficar de pé.
Metade de mim está gritando para se afastar – esse beijo de fogo solar o
manterá correndo atrás de mim, sem seguir em frente.
Metade de mim não quer nada além de ficar aqui, neste momento,
abraçada e desejada, a dúvida e a solidão em minha alma queimando.
Ele se separa de mim primeiro, seus olhos escuros penetrando em mim.
— Eu não vou beijar você pela terceira vez, Lady Zera, sem você me beijar
de volta. Meu orgulho não vai permitir isso.
Um gosto agridoce permanece na minha boca, e a cortina aquecida se
eleva do meu corpo. Eu posso ver – pelo canto dos meus olhos – as pessoas
assistindo. Fione, Varia, Lady Tarroux, o Rei furioso e Rainha chocada.
Ele não está desistindo. Maldito seja, ele não está desistindo!
Não fui suficientemente óbvia? O que é preciso para ele perceber que está
melhor sem mim? Ele é um Príncipe; Eu sou uma Sem Coração.
Ele tem o mundo esperando por ele, e só tenho meus arrependimentos
esperando por mim. Eu só vou puxá-lo para baixo.
Me ocorre lentamente – eu sei exatamente o que tenho que fazer.
a menos que você mostre a ele a escuridão, ele nunca entenderá, ele
nunca terá medo, ele nunca fugirá.
O som do tapa reverberando é a única coisa que me faz perceber que
realmente o fiz. A dormência na minha mão arde, e eu a aperto. A cabeça de
Lucien gira lentamente de volta para mim, a marca da mão vermelha
brilhando em sua bochecha, mas seus olhos escuros brilham mais do que
nunca na luz de velas. Sua expressão é firme, imóvel.
É então que percebo que os windlutes e firehorns pararam de tocar. A
pista de dança parou de se mover, os nobres olhando horrorizados para o
rosto de Lucien. A sala inteira está olhando para o nosso lado, mas não paro
para ver nenhuma expressão. Meus pés, mais sábios e menos perturbados do
que eu, me tiram do salão de baile o mais rápido que podem.

O quarto de Varia está, de alguma maneira doentia, se tornando o único lugar


seguro para mim no palácio. Minhas mãos tremem descontroladamente
quando entro, derramo as jóias de osso de valkerax e as jogo de lado.
A raiva fervilha sob minha superfície. Que tipo de pessoa beija alguém
que mentiu para ela e matou pessoas diante de seus olhos?
E quanto a mim vale a pena ignorar essas coisas?
Pela primeira vez, Lady Zera, peço a você: seja tão misericordiosa
consigo mesma quanto com todos os outros.
— Cale a boca! — Eu rosno com o eco. — Cale a boca, cale a boca!
quem ele pensa que é, nos dizendo quem somos? nos dizendo o que
pensar de nós mesmos? arrogante!
Eu posso sentir meus dentes começando a crescer longos e afiados e ouvir
minha respiração ofegante, sangue correndo pelos meus ouvidos. A vontade
de pegar a garrafa de vinho me atinge, mas eu me afasto. Isso não vai ajudar.
Nunca realmente ajudou. Eu posso sentir uma dor horrível brotando no meu
peito, crescendo como uma bolha de gás sob um pântano, a pressão
esmagando meus pulmões.
A fome surge como uma oportunidade.
ele está arruinando a vida com a irmã por sua causa. ele está
arruinando seu futuro por sua causa.
Eu colapso no sofá, minha cabeça em minhas mãos. As palavras da fome
são de clareza cristalina – pura, lógica e inegável.
Há uma batida repentina nas portas que me deixa de pé. Um dos guardas
entra, segurando um pedaço de pergaminho na mão.
— Ah, desculpe-me, senhora, pensei que Sua Alteza também tivesse
retornado. — diz ele. — Ela recebeu uma carta marcada como extremamente
urgente.
Uma mensagem urgente? Algo tão normal e rotineiro rompe minha mente
em espiral.
— Eu posso trazer para ela. — eu digo.
— Obrigado, milady. — Ele guarda arcos e me entrega o pergaminho. Eu
pego, e ele se vê fora. Quando tenho certeza que ele se foi, eu viro o
pergaminho – é uma carta sem lacre de cera. Não de outro nobre, então. A
curiosidade é uma distração bem-vinda, e por isso abro completamente a
carta care.
A caligrafia é instantaneamente reconhecível – eu a vejo todos os dias. Ou
as sombras disso, pelo menos. Yorl. É fino e pequeno, toda letra perfeita.
Varia, lê-se. Houve uma brecha perto do canil do cachorro. Sua presença
é necessária.
O cachorro – ele significa Evlorasin, obviamente. Mas que tipo de
brecha? Eu pensei que Yorl continha a valkerax? Há outra carta nessa carta –
o watertell deve ter enviado os dois, um após o outro em rápida sucessão.
O próximo diz simplesmente: O cachorro escapou. Traga ajuda.
Meus olhos se arregalam. Escapou? Evlorasin escapou?
Meu interior cai com uma velocidade doentia. Está cavando abaixo da
cidade agora? Poderia colapsar a cidade em si mesma. As pessoas poderiam
morrer. E todas as chances de recuperar meu coração ficam com Evlorasin.
Se ele voltar para o Escuro Abaixo... meu acordo com Varia não será
cancelado, mas quem sabe quanto tempo levará até que ela encontre outra
valkerax para eu ensinar?
Ao mesmo tempo, parte de mim pensa, calmamente, que seria melhor se
Evlorasin escapasse. Se Varia nunca encontrar a Árvore dos Ossos e nunca
morrerá por ela.
Mas eu sei que ela nunca vai parar. Deixar Evlorasin escapar agora só a
atrasaria.
Eu saio do sofá. Traga ajuda, dizia a carta. Aparentemente, Yorl acha que
uma bruxa não é suficiente. O que significa que um Sem Coração também
não será suficiente. Varia está entrincheirada com o pai e a mãe – puxá-la
para longe da Rainha e do Rei discretamente não será fácil, especialmente
considerando que eu dei um tapa no Príncipe. E quando eu lhe entregar a
carta e ela conseguir se afastar deles, Evlorasin já pode ter ido embora para
sempre.
Preciso de alguém que possa ajudar e rápido.
Há apenas uma outra pessoa na cidade que conhece Valkerax melhor que
Varia, melhor que Yorl até e certamente melhor que eu.
Saio pela porta e olho para os guardas. — Onde está Malachite?
— A guarda do Príncipe disse que estaria patrulhando do lado de fora do
partido Moonskemp, milady.
Corro de volta para o último lugar que quero estar, subindo minhas saias
para correr. Com certeza, eu encontrei Malachite andando do lado de fora do
salão com sua habitual atenção preguiçosa.
Quando ele me vê correndo em sua direção, ele estreita os olhos
vermelhos. — Você não. Não essa noite.
— Eu. — afirmo. — Definitivamente hoje à noite. Preciso da sua ajuda. E
rapidamente.
Suas sobrancelhas brancas se uniram. — Por que eu te ajudaria? Você
acabou de dar um tapa em Luc. Eu podia ouvir tudo isso aqui fora, pelo bem
do espírito.
— Você é o único que consigo pensar que pode parar uma valkerax.
A expressão de Malachite detona, sua raiva explodiu em pedacinhos de
choque. — Uma valkerax? Mentir uma vez espetacularmente não foi
suficiente para você?
Não há tempo para discutir com ele. — Há uma valkerax abaixo desta
cidade. Você vai me ajudar a parar com isso ou não?
Há uma longa batida de silêncio. Malachite franziu o cenho. — Você está
falando sério?
— Não frequente. Mas agora? Sim.
O beneather lança seus olhos para a festa à luz de velas. Ele olha para
mim e assente. — Bem. Mas se isso for algum truque, estou prendendo você.
— Sim, sim, você é muito importante. — Pego sua mão fria de mármore
branco e o puxo pelo corredor, para fora do palácio e em uma carruagem. Eu
bato no teto da carruagem o tempo todo, exigindo que o motorista vá mais
rápido e, felizmente, ele obriga, as rodas guinchando sobre os paralelepípedos
e os próprios paralelepípedos balançando Malachite e eu violentamente.
— Uma valkerax foi mantida embaixo do Portão Sul. — admito trêmula
para Malachite, a empolgação do passeio fazendo meus dentes morderem
minha língua. Cura muito rapidamente para ter conseqüências. — Mas
escapou. Temos que recuperá-lo.
— Escuro Abaixo. — ele jura, a voz cortada pelas vibrações. — Agora
provavelmente não é o melhor momento para admitir que nunca completei
minha prática de abate, então?
— Está tudo bem – você fez pelo menos, certo?
— O suficiente para distinguir a crina da cauda. — afirma.
— Você é a maior ameaça da cidade em que consigo pensar além de mim.
— digo. — Vai ficar tudo bem. Tem que estar bem. — Ele zomba e eu
pergunto: — O quê? O que é isso?
— Você tem tanta fé em mim, e nenhuma em Luc.
Lucien. Porra – ele vai saber que há uma valkerax abaixo da cidade
quando Malachite me ajudar. Seu melhor amigo certamente dirá a ele. Eles
inevitavelmente começarão a suspeitar que o que estou fazendo para Varia
envolve a valkerax, e com o talento de Fione em obter informações – e toda a
pesquisa de Gavik na ponta dos dedos – eles certamente descobrirão que ela
quer a Árvore dos Ossos e o que que significa.
Mas não, não importa agora. A primeira prioridade é impedir que o
Evlorasin funcione antes que machuque alguém, não importa quem aprenda
sobre sua existência.
O Portão Sul aparece mais cedo do que eu pensava ser possível, e pulo da
carruagem antes que ela comece a desacelerar ao longo da calçada. Malachite
cai atrás de mim, recuperando o pé muito mais rápido. Aponto para a porta na
alta parede branca e, juntos, corremos para ela. Os guardas ainda estão aqui,
mas eles parecem agitados, seus olhares sob os capacetes, e mesmo quando
eu dou a senha, eles não relaxam nem um centímetro. Yorl está esperando por
nós lá dentro, perto da porta da arena, suas garras estalando sobre a grade
enquanto ele anda ansiosamente, seu rabo batendo. Ele olha para cima
quando nos ouve chegando, seus olhos verdes passando de frenéticos e
procurando a chatos e irritados.
— Onde está Varia? — Ele retruca.
— Segura. — Não perco tempo oferecendo minha mão para Malachite. —
Esse é Malachite. Para onde Evlorasin fugiu?
Yorl olha Malachite de cima a baixo e, obviamente, percebendo que é um
beneather, o golpe desagradável de sua cauda morre levemente. Mas apenas
um pouco. Malachite apenas dá uma piscadela atrevida para Yorl enquanto o
cônjuge o encara, e eu passo pelos dois garotos e vou para a porta.
— Você vai fazer uma dama capturar uma valkerax escapada sozinha? —
Eu chamo. Yorl e Malaquite seguem rápida e facilmente, sua visão sombria
impecável. Yorl me oferece sua mão, e eu a pego.
Eu posso sentir Malachite olhando fixamente para ela.
— Desistiu de seus amigos lá em cima e fez alguns aqui embaixo no
escuro, hein? — Eu recuo, minha mão apertando mais forte o de Yorl.
Surpreendentemente, o célebre rosna. — Você fala muito para alguém
cujo trabalho é apenas guardar.
— E você usa palavras grandes demais para alguém que cheira a mijo de
gato. — retruca Malachite.
— Vocês podem ser desagradáveis um com o outro quando a valkerax
estiver segura. Yorl — insisto. — o que aconteceu? Como saiu? Eu pensei
que você tinha este lugar sob controle?
— Eu fiz. — argumenta Yorl. — Mas, alguns minutos atrás, houve um
terremoto localizado – quebrou todas as runas de beneather nas paredes da
arena.
Malachite assobia. — E runas rachadas não podem mais segurar uma
valkerax dentro ou fora.
Yorl pressiona. — A valkerax sentiu uma fissura causada pelo terremoto
atrás da parede da arena e explodiu.
— Parece que sua segurança fede. — fala Malachite. — Eu ofereço
minhas consultas de graça, você sabe.
— Eu verifiquei com a Dama Carmesim. — Yorl o ignora com um
rosnado em sua voz. — E as leituras confirmam – houve atividade mágica
suspeita no exato momento antes do tremor.
— Uma bruxa? — Pergunto.
Sinto Yorl acenar ao meu lado. — Eu assumi isso no momento em que fui
à superfície. O terremoto foi suficiente para fraturar as paredes da arena e não
atingiu a cidade. Se eu fosse adivinhar, quem lançou o feitiço estava tentando
nos expulsar sabendo aproximadamente onde estamos, mas sem saber nada
sobre o que realmente está aqui embaixo.
— Então não foi Varia?
Yorl responde minha pergunta com silêncio e depois: — Não.
— Algo errado, célebre? — Malaquite gorjeia. — Você parece suspeito.
— É só que... — Yorl exala. — Os dados sobre o feitiço que coletamos da
Crimson Lady – não foram intencionais.
— Do que você está falando? — Eu franzo a testa.
— A mágica tem um padrão. — diz Yorl. — E esse padrão pode ser
detectado pela Dama Carmesim. Eu já vi muitos desses padrões.
Mas este não era apertado. Não foi bem construído. É quase como se
tivesse sido... involuntariamente feito. Instintivamente. Alimentado pela
emoção, não pela concentração.
— Para que sua bruxa desonesta possa escapar do controle. — zomba
Malachite. — E daí? Ainda temos que limpar a bagunça deles.
Lembrados da emergência imediata de valkerax, mais uma vez, damos os
passos o mais rápido possível, mas, na metade do caminho, ouvimos o
choque de armaduras e a horrível cacofonia de dezenas de célebres rugindo
de dor e raiva.
A respiração profunda e alta – noto friamente – se foi.
Yorl começa a andar mais rápido, me arrastando pela mão com sua
urgência. Chegamos ao pé da escada e fico chocada ao ver lanternas a óleo
acesas nas paredes. As luzes iluminam algo muito mais sinistro – sangue
manchando em faixas vermelhas vivas por muito mais tempo do que o
sangue tem direito. O cheiro de pêlo queimado invade o ar, marcas de
queimadura enegrecidas envolvendo o que parecem os esqueletos fumegantes
de célebre.
Meu estômago se revolta, e eu seguro o punho da espada do meu pai com
força suficiente para morder a pele.
A expressão irritada de Malachite se dissolve instantaneamente quando
ele se vira para Yorl. — Quantos já perdemos?
— Seis. — A vacilada de Yorl está tão bem disfarçada por ele pegar uma
lanterna próxima que quase não a vejo. Um verdadeiro profissional – ou um
jovem que mal consegue se apegar ao seu fracasso. Ele me entrega. — A
brecha é óbvia. Quero que vocês sigam e parem com isso.
Ele puxa uma pesada arma de bronze de suas costas, entregando-a para
mim. É uma besta de mola de algum tipo, carregada não com parafusos, mas
com frascos de vidro que brilham com uma substância clara, suas pontas
terminando em agulhas afiadas.
— Tire essas fotos o mais perto possível da garganta. Não é o peito ou a
coluna – o osso é muito grosso lá. A garganta. No interior, se você pode, de
alguma forma, gerenciá-lo, é o mais eficaz. Cinco devem ser suficientes para
acabar com isso.
Eu aceno e me viro para ver Malachite já correndo em direção à enorme
porta da arena, erguido e esperando. Começo a segui-lo quando sinto garras
beliscando na minha mão. Yorl me detém, as pupilas de seus olhos verdes
cortados pela luz da lâmpada. Há algo suave em suas feições, uma coisa
estranha e estranha vindo do polímato frio.
— Por favor — ele implora. — Não deixe mais ninguém morrer.
Eu me vejo nele, parada ali, pálida e refletida em seus olhos de esfera.
Vejo a garota que não suporta pensar em quatorze homens, ou mais mortos
por causa dela. A culpa o tem. Mas não é culpa dele – como poderia querer
tornar conhecido o nome de seu amado avô ser culpa dele? Como se esperava
que ele mantivesse o controle perfeito sobre uma das bestas mais cruéis e
poderosas do mundo?
Aperto sua pata e sorrio tranquilizadoramente para ele. — Vou demorar
apenas um segundo, querida. Prepare meu chá.
Corro para alcançar Malachite, vendo a arena com uma visão clara pela
primeira vez: profundas marcas de arranhões no chão, velhas manchas de
sangue e carcaças de animais em decomposição espalhadas e empilhadas.
Dentes maçantes e lascados perdem muito tempo e grandes aglomerados de
peles de marfim. O terremoto localizado sobre o qual Yorl falou é claro nas
paredes – pequenas fissuras separando o ferro, insinuando-se entre as
palavras esculpidas de conhecidas runas de beneather e tornando-as inertes.
Há crateras de impacto nas paredes da arena, a partir da sacudida da
valkerax, tão profunda que posso ver onde a própria terra do teto se esforçou
para permanecer junta.
Como era de esperar que eu mantivesse o controle perfeito sobre uma
fome implacável e sedenta de sangue que atacava todas as minhas fraquezas?
Isso me conhecia melhor do que eu mesma?
você é apenas humana, afinal, as provocações da fome, um estranho
toque de piedade à sua voz.
— Apenas humana, afinal. — eu sussurro.
A brecha se abre diante de mim – metal dobrado, perfurando uma fenda,
afundando profunda e escura na terra. Eu seguro minha lanterna alta e
pressiono nela. É um absurdo, apenas realizar certas coisas muito mais tarde
do que elas precisam ser realizadas. Eu pensei que tinha meio cérebro. Eu
pensei que sabia coisas, coisas importantes. Mas existem fragmentos de
pensamento que caem da vida, e nós os recolhemos e tentamos
desesperadamente fazer uma imagem inteira deles, às vezes muito antes de
estarmos prontos para ver qual é essa imagem.
Empurrando para dentro do túnel escuro, deslizo a última peça para
dentro da ranhura. Yorl não é a valkerax. E agora, pela primeira vez em
minha vida sem coração, começo a pensar, sólida, total e claramente: Eu não
sou a fome.
18

A Serpente
eo
Bene’thar

Quando finalmente alcanço Malachite, ele está tão longe no túnel que sinto o
cheiro da idade do pó no ar. Estou ofegando com o esforço de tanto correr e
tão pouco oxigênio, mas o beneather não está fazendo barulho, agachado,
mesmo que a cicatriz que a valkerax tenha feito seja larga e alta o suficiente
para acomodá-lo.
— Então — eu começo devagar. — Tem alguma dica? Você sabe, de toda
a sua cultura de matança profissional com valkerax?
Por um momento, acho que ele não me ouviu e depois fala baixo e rouco.
— Se você sentir o ar esquentar, poderá morrer.
— Bom. — Eu puxo a espada do pai, minha mão apenas tremendo
levemente. — Eu esperava que você dissesse algo doce e sensual como esse.
Ele não ri. Ele nem olha para mim. Mas eu posso ver seus olhos
brilhando, as íris vermelhas derramando uma névoa sangrenta de luz na
escuridão absoluta na frente dele.
— Eu pensei que você disse que seus olhos brilhavam apenas em luas
cheias?
— Ou se sentirmos o cheiro de valkerax. — ele administra, cada palavra
soando como se estivesse tentando manter a mente unida no local. De
repente, ele levanta a mão pálida e eu congelo. — A luz — ele exige. —
Coloque para fora.
Eu mexo com a lâmpada de óleo, extinguindo a pequena chama.
Instantaneamente somos mergulhados na escuridão perfeita. A respiração
de Malachite está subitamente perto do meu ouvido.
— Deve haver onze outros da minha espécie aqui de pé comigo. — diz
ele. — Mas tudo o que tenho é você.
— Farei o que você quiser.
Ele está calado.
— Vou colocar um chapéu engraçado e dançar uma maldita valsa
Helkyris na boca, se você precisar. — insisto. — Qualquer coisa. Nada
mesmo. Mas temos que recuperar o Evlorasin.
— Você disse essa palavra antes. — A voz de Malaquite franze a testa. —
Esse é o seu nome verdadeiro?
Eu me amaldiçoo. — Olha, apenas me diga o que fazer. Eu vou fazer isso.
Eu sou imortal. O que você precisar, eu posso fazer isso.
— Você está falando com isso. — ele reflete. — Essa é a única maneira
de saber o nome dele. Por quê? Eles são mais loucos do que um velho bêbado
na Noite de Novo Deus. Eles falam apenas não...
— Só precisamos encontrá-lo. — Faço minha voz dura. — Agora.
Para meu alívio, Malachite recua com as perguntas e corre à minha frente.
O chão do túnel cavado às pressas não está nivelado, mas mesmo quando
deslizo e caio na rocha e na terra, pulo de pé novamente. Sangue quente em
meus joelhos de pele de cascalho e canelas cortadas em pedra dura apenas um
segundo enquanto a magia de Varia me cura. A dor não é nada.
já passamos por muito pior, a fome desliza alto. nós somos muito piores.
— Você. — eu corrijo silenciosamente, segurando a espada enferrujada
do pai mais apertada ao meu lado. — Você é muito pior.
— Temos visitantes pela frente. — Malachite me adverte. Com certeza,
em alguns espaços, ofegando e gemendo que não é meu ou os ruídos de
Malachite do túnel. Não posso vê-los, mas eles parecem célebres. Eu ouço
Malachite falando com eles humildemente, e me situo contra a parede do
túnel até que sua voz apareça no meu ouvido novamente.
— Dez deles e dois de nós têm chances muito melhores.
— Normalmente, eu concordo com você, mas devemos enviá-los de volta.
— Eu franzo a testa e acendo a lâmpada novamente. — Eles já passaram por
bastante...
— Com todos os ossos do corpo em meu corpo, posso dizer agora que
você e eu sozinhos não seremos suficientes para retomar essa valkerax. Isso
vai nos ignorar completamente. Precisamos de calor corporal suficiente para
atraí-lo, tentar seu instinto predatório.
Eu errei. — Esses guardas não são brinquedos, Malachite.
— E também não são crianças para serem mimadas. — ele retruca. —
Todo mundo aqui fez suas próprias escolhas. Deseja que ele corra? Ou você
quer capturá-lo? — Ele joga a mão para cima. — Você toma a decisão – eu
sou apenas o músculo. Estou lhe dizendo como é; duas pessoas não serão
suficientes para fazê-lo parar de funcionar. E no ritmo que está cavando...
Ele para. De repente, a espada do pai parece gelada nas minhas mãos,
meus olhos deslizando sobre os rostos peludos do apreensivo célebre no
túnel. Eles são guardas reais. Eles servem a família real infalivelmente, até
morrerem. Varia os ordenou aqui, para guardar a valkerax. Eu posso sentir as
cordas que ligam minhas esperanças ao meu coração ficando mais magro,
frágil e instável quanto mais longe Evlorasin está cavando. O rosto da mãe é
um borrão, mas tinha sido tão claro. Tão perfeitamente claro, melhor do que
uma pintura.
Aperto o punho e olho para Malachite. — No momento em que digo para
você correr, você os pega e corre.
Ele revira os olhos. — E, claro, deixar você para trás, certo?
— Vou entender de alguma forma. — Mudo de assunto rapidamente. —
O que você falou com eles lá atrás?
Malachite para por um momento, e eu apenas vejo fracamente suas
orelhas compridas e pontudas tremendo na luz que emana de seus olhos
vermelhos. — Eles estavam dizendo que a valkerax cavou em várias direções
diferentes tentando encontrar uma saída, para que todos os túneis pareçam
iguais. Eles perderam a trilha. O aroma do sistema de águas residuais da
Vetris é forte aqui. Corta tudo. Mas eu tenho melhores condições do que um
célebre. É longe para o oeste. Está cavando e machucada.
Penso nos seis corpos dos célebres – com sua força, seu sacrifício, há uma
boa chance de que eles tenham ferido Evlorasin.
Malachite ordena que o combo saia da nossa frente, silenciosamente, e
nos movemos como um grupo furtivo, meu passo humano o mais alto contra
a pedra de longe.
— Meus companheiros guardas. — A voz de Malaquite é fina e ainda
audível em todo o silêncio. — Você vai assediar a coisa. Acenda qualquer
lanterna que possa ter, tochas – seus olhos não se dão bem com a luz
brilhante. Facada entre as correias dos pés, se puder – é um ponto fraco. Vou
tentar ficar de costas na confusão e seguir em frente.
Um murmúrio de assentimento percorre o grupo de célebres, e eles
preparam suas lanternas e alabardas.
— Precisamos disso vivo! — Eu sibilo em frente ao beneather. A risada
de Malachite é como seu antigo eu, antes que ele soubesse da minha traição –
dourada e atrevida.
— E eu claramente preciso de um aumento. Mas aqui estamos nós.
— Mal...
— Se você acha que algumas facadas no pescoço vão matá-lo, então eu
sou o espirituoso imperador de Pendron. — Ele suspira. – Estou ciente de que
matar o animal de estimação de Varia seria a melhor maneira de reservar um
bilhete de caravana para Pala Amna e longe de Lucien. Então relaxe.
Eu não consigo relaxar. Não quando Evlorasin está cada vez mais longe
de mim. Não quando meu coração está amarrado com o destino da valkerax.
— Então, o que eu faço? — Pergunto. — Ficar lá e parecer gostosa?
— Yorl disse para tirar as fotos o mais perto possível da garganta, certo?
— Malachite inclina a cabeça. — Dentro dele? Se eu puder criar uma
abertura, você deve fazer isso.
Um suor frio gruda no meu pescoço, e começa a escorrer em riachos
quando capto o som da respiração profunda, sonora e fragmentada. Eu
conheceria esse som em qualquer lugar – Evlorasin.
Da escuridão completa à nossa frente, uma picada de luz laranja começa a
crescer, e uma onda crepitante de calor evapora meu suor em um flash.
O ar está ficando quente. Mas isso significa Malachite se vira, com os
olhos em um vermelho ardente e grita no topo de seus pulmões: — Desça!
O célebre rabiscou em frenesi, passando por mim e descendo a encosta do
túnel enquanto o cheiro de ar em chamas fica mais forte.
O célebre atingiu o chão, enrolando-se em uma posição protetora. O ruído
revelador do fogo, quando rasga o túnel, rapidamente se torna ensurdecedor.
Eu me jogo no chão diante do aglomerado de célebres, uma parte do meu
cérebro entorpecida por pânico, sabendo que eu poderia aguentar o peso e
amolecê-lo para todos atrás de mim, mas sinto alguém se bater ao meu lado e
me puxar para eles, embalando meu corpo dentro do deles.
O fogo grita sobre nós como uma pluma irregular, amarelo brilhante e
ardendo tão quente no meio que parece branco. O calor raspa nossa pele –
chamuscando o que parece ser a própria carne do meu rosto – e ainda assim
desapareceu em um instante. Eu ouço o côncavo se levantando, e então uma
voz ecoa no meu ouvido.
— Como se eu deixasse você tomar toda a glória.
Rolo e vejo Malaquite sentado, limpando o cascalho da cota de malha.
Ele... me protegeu?
Ele se endireita e chama o célebre: — Levante e levante os braços; a
valkerax está aqui!
Eu pulo de pé, e o combo se aperta em volta de mim, puxando suas
espadas e segurando suas alabardas no ar. Todos nós olhamos para o túnel de
onde o fogo veio, a tensão tornando o ar mofo sufocantemente espesso. Eu já
tinha visto as mandíbulas de Evlorasin, e a imagem delas me assombra agora
– que a boca podia descer pelo túnel a qualquer momento, bem aberta, os
dentes em espiral prontos para consumir todos nós. Quase não havia espaço
para correr ou manobrar.
O nó apertado dos mortais e suas respirações assustadas são ofuscados
pela respiração estrondosa de Evlorasin, e um som que reconheço começa a
se tornar conhecido – o som de garras de valkerax rastejando freneticamente
sobre pedra e sujeira.
Fora da escuridão, Evlorasin vem.
É apenas um borrão branco no começo, mas a cada piscar de olhos meu
fica rapidamente maior. O célebre rosna, seus grilhões subindo à medida que
se aproxima a uma velocidade vertiginosa. A luz da lanterna pega a crina
emplumada em volta da cabeça, ocupando toda a largura do túnel. Os seis
olhos brancos de Evlorasin captam a luz, um deles gravemente sangrando,
mas suas feridas não impedem sua velocidade, pois arranha loucamente por
nós. Sua boca está aberta, sua longa espiral de dentes de canela brilhando.
Malachite puxa sua espada das costas e a eleva alto, esperando sem
vacilar. O pensamento do célebre mortal atrás de mim me faz avançar
também, a besta pesada de bronze levantada em meus braços.
Não consigo entender as palavras de Evlorasin porque não bebi muito,
mas posso ouvir sua voz, gritando e sibilando na mesma medida que ela se
aproxima. Oro para que pare, para que o Velho e o Novo Deus ouçam pela
primeira vez. Nervosamente, verifico a besta de Yorl. Mesmo que não seja
uma arma que eu conheça, acho que posso lidar com...
Meu dedo aperta o gatilho na parte inferior e um único frasco dispara,
quebrando no chão de pedra.
— Vachiayis! — Eu cuspi o palavrão. Eu tenho apenas cinco deles! Yorl
disse que seriam necessários todos os cinco.
— Tragya! — Malachite grita ao meu lado, começando a frente e
apontando sua pesada lâmina para Evlorasin com uma mão aranha.
— O quê? — Não consigo desviar os olhos da valkerax que se aproxima,
mas posso vê-lo sorrir pelo canto do olho.
— É um juramento que os penas usam quando deixam cair algo caro.
Significa 'danar o chão'. Muito mais adequado do que 'bolas de boi' neste
caso, você não acha?
Ele é tão calmo, mesmo aqui. Especialmente aqui. Nosso vaivém alivia
apenas uma fração dos meus nervos; a valkerax está tão perto agora que
podemos sentir seu hálito podre, a força dela vibrando a sujeira livre do teto
em grandes aglomerados. Nós encaramos a morte, entrando e saindo da luz
do lampião. É enorme.
Eu sabia que era enorme esse tempo todo, mas vendo isso agora, à luz... é
tão incrivelmente enorme que parece dez vezes um gigante. É da cor do velho
marfim, misturado com sangue. E não vai parar.
Nesse momento, Evlorasin é o que mais derrubou o mundo há mil anos.
Mas neste momento, Malachite é a coisa que caça Evlorasin há mil anos.
Malachite me empurra para fora do caminho e dá um grande salto na
valkerax que se aproxima, afundando sua lâmina na boca aberta de Evlorasin.
Evlorasin eleva sua metade superior, repentinamente dolorida, penas brancas
de sua juba voando, o momento jogando o resto de seu corpo comprido para
frente. Eu mal consigo evitar as grossas bobinas de músculo branco quando
elas passam por mim. Uma enxurrada de escamas brancas colide com os
guardas célebres, que felizmente todos têm os reflexos incríveis para se
esquivar rapidamente. Mais rápido do que qualquer ser humano, eles se
espalham no túnel aparentemente impossivelmente pequeno e descem na
valkerax, competindo com suas partes do corpo que se agitam antes mesmo
que eu esteja de pé novamente.
Vejo Malachite empoleirado no topo das costas de Evlorasin, enormes
movimentos duplos de sua espada cortando a espessa espinha blindada do
valkerax. Eu miro no alvo da besta, diretamente na garganta de Evlorasin,
enquanto ela tenta tirar Malachite, mas de repente sinto o ar esquentar
novamente, e consigo ficar atrás da boca de Evlorasin, assim como a valkerax
expele outra gota de chama branca-quente, queimando as paredes que eu
estava parada na frente há pouco tempo para cinzas. O calor não tem para
onde correr, assando a sujeira, e vejo as paredes secas desabarem sobre si
mesmas, enterrando completamente um, dois – muitos célebres.
— Mexa-se! — Eu grito para um célebre perto de mim, mas ele está
muito ocupado esfaqueando os pés de Evlorasin para ver a terra atrás de seu
turno, avançar para a frente e enterrá-lo inteiro.
Isso me atinge então: Evlorasin não está preso aqui conosco – estamos
presos aqui com ele.
Este túnel é muito mais fraco do que parece. A terra deslocada na debulha
da valkerax nos matará antes que suas presas o façam.
Malachite também vê isso – nossos olhos se encontram em um momento
incrivelmente rápido. Não basta apenas um lapso de concentração, e
Evlorasin bate de volta na terra, Malachite descasca como uma mosca. Ele
bate no chão com força e não se move, e parece que todo o meu sangue
escorre pelos meus pés ao mesmo tempo.
Eu corro para ele, mas como se o tempo estivesse diminuindo em um
relógio de areia, Evlorasin ergue sua pata enorme, garras afiadas e paira logo
acima de Malachite antes de bater nele.
Agarro a espada do pai, sabendo que não é para ser jogada, sabendo que é
tudo o que me resta dele, e dou um puxão poderoso, a lâmina espiralando
sobre si mesma. Meu objetivo é apenas meio verdadeiro, a lâmina grudada na
articulação de Evlorasin, mas é o suficiente. É o suficiente, e a valkerax dá
um grito estridente, recuando para longe de Malachite. O beneather ainda é
um momento e depois tropeça no outro. Ele olha para mim de maneira turva,
o brilho vermelho diminui e depois ele se recupera.
— A boca! — Seu grito perfura, simples e direto e me deixando fazer
palpites. Ele se vira, com a espada na mão, e eu só entendo quando ele chama
a atenção de Evlorasin esfaqueando-a no peito. O metal de sua lâmina mal
afunda além das escamas, mas fica preso, irritante, e a valkerax dá uma volta
completa instantaneamente sobre ele e ruge, sua juba se abrindo ao redor do
rosto em seu espetáculo intimidador e branco perolado. milhões de penas. O
beneather se enfia, primeiro no ombro, na boca da valkerax, os incontáveis
dentes de barbear parados por sua força absoluta. Eu segurei o mesmo mês
aberto, uma vez, o melhor que pude, com toda a minha desesperada força de
fome, e eu mal conseguia segurá-la no ar alguns centímetros.
Malachite segura-o acima da cabeça, totalmente aberto.
— Agora! — Ele grita comigo, todos os músculos de seu corpo magro
batendo contra sua pele de papel.
Eu não sou Fione. Não consigo atirar com precisão, especialmente não em
um alvo que se contorce com uma dor incrível, e Malaquite sabe disso. Ele
mantém aberta a boca da valkerax, a garganta rosada e macia madura logo
depois dele, abaixo dele. Mas se eu sentir falta...
Ele está contando comigo para não perder.
Ele está confiando em mim.
Os cinco olhos brancos de Evlorasin piscam para mim, o inferior
esquerdo ensanguentado e estourou, e naquele momento nunca ficou mais
claro para mim que estamos acorrentados pela mesma coisa.
Fome.
Aponto a besta e atiro, quatro vezes, o mais rápido que meu dedo
pressiona o gatilho. Um deles roça a orelha de Malachite, alojando-se nas
gengivas da valkerax, mas o segundo, o terceiro e o quarto pousam
diretamente na garganta, desaparecendo na escuridão salivante.
A besta de Malachite pica no quarto tiro, e ele cai para trás, com a mão
perfurada e os dois pés sangrando através de suas botas de aço e manoplas.
Evlorasin dá um suspiro, seu surto de repente assume uma qualidade aleatória
e estremecida, espasmos correndo por seu corpo enquanto as poderosas
misturas de Yorl se tornam conhecidas. Eu corro para o lado de Malachite,
mas ele apenas bagunça meu cabelo com sua mão sangrenta, rindo sem
fôlego.
— Você fez isso. Você realmente fez isso, seu filhotinho!
Eu sorrio de volta. Parece bom vindo dele, mas não dura muito – ele se
recupera, lembrando-se de quem eu sou e onde estamos, e o riso dele
desaparece. Nós dois assistimos cautelosamente enquanto a respiração de
Evlorasin diminui. Perdi um dos frascos, mas felizmente, apenas quatro
parecem estar afetando. Esses cinco enormes olhos brancos caem, rolando de
volta para o crânio e mostrando o preto da esclera. Finalmente, finalmente,
seu corpo gigantesco cai no chão, sangrando suavemente por suas feridas, seu
nariz aveludado aos pés de Malachite.
O beneather, parecendo exausto demais para se mover, de repente se senta
com uma postura perfeita, ajoelha-se embaixo dele e faz um gesto com as
duas mãos – reverente, cuidadoso, preciso.
— Af-balfera, ansenme kei-inora. — diz ele.
Desenterramos os guardas reais enterrados – algumas pernas quebradas,
mas nenhum deles morreu, e agradeço aos deuses com promessas de excessos
beijos espirituais – e enfaixamos os ferimentos. Malachite não me deixa
enfaixar o dele, em vez de se vestir. Eventualmente, ajudamos os feridos a
descer o túnel, dois célebres apoiados em Malachite e um em mim.
— O que foi isso que você disse? — Eu pergunto entre os intervalos. —
Em beneather?
Ele encolhe os ombros levemente, seus olhos não brilhando mais
vermelhos. — É algo que os líderes de abate costumam dizer às valkerax que
escapam – a valkerax que eles não podem matar.
— O que isso significa?
Ele respira fundo. — 'A próxima vez que nos encontrarmos será uma
reunião mais feliz.'
19

A Memória
de uma Lâmina

Antes de deixarmos o inconsciente Evlorasin no túnel para que Yorl e seu


cônjuge recuperem, vou até o pé da valkerax e retiro a espada do meu pai.
Está quebrada.
A lâmina está deformada, dobrada quase plana e ao meio com a força do
carimbo de Evlorasin, e quando eu puxo, o metal enferrujado finalmente
cede. Eu seguro o punho quebrado na minha mão, a luz do lampião a óleo
dançando nas pontas afiadas da ponta da adaga que agora é a lâmina. Dói vê-
la tão quebrada depois de tudo o que fiz para mantê-la bem – a afiar, a afiar
constantemente. Estava lá para mim quando me senti terrível no corte; era
uma âncora entre toda a tristeza na floresta de Nightsinger. Eu lutei com Crav
tantos momentos maravilhosos com ela, nossas risadas ecoando na floresta.
Assustei tantos caçadores com ela e usei ela para duelar com Lucien.
Mesmo que eu não tenha lembranças do meu pai, eu já fiz tantas
lembranças minhas, envolvendo-as ao redor do punho como uma fita. Minhas
memórias antigas estão nessa espada, mas novas também são feridas. De
certa forma, segurá-la agora parece ver meu coração novamente. Meu
coração está cheio de memórias antigas.
Mas no meu coração, no vazio no meu peito, colecionei tantos novos – de
Lucien, de Malachite e Fione, de Vetris e de todo o mundo novo em que me
meti.
— Isso... — Malachite manca até mim. — Essa foi a espada do seu pai,
não foi?
— Não se preocupe com isso. — Afasto o punho e enxugo minhas
lágrimas das bochechas. Ele não diz nada, e sou grata por isso.
Yorl está tão incrivelmente aliviado ao ver nós e o outro célebre vivo
quando saímos da brecha. Ele não mostra, seus olhos verdes plácidos atrás
dos óculos, mas depois de quase uma semana com ele, eu posso dizer.
— Querido! — Eu sorrio para ele, lançando meus braços e me
aproximando dele com um abraço insistente e um beijo na bochecha.
— Você não teve que esperar por mim.
Isso tira Yorl de seu alívio, e ele me empurra enquanto olha
poderosamente, seu bigode se contorcendo. — Quem disse que eu estava
preocupado? Eu sabia que vocês todos iriam fazer o trabalho. É por isso que
Varia paga a você.
— Espere um minuto, vocês são pagos por isso? — Malaquite finge
choque e olha de volta para o combo, e um estrondo de risada corre até
mesmo para os feridos.
— Vou pedir aos polímatas que reparem a lágrima e uma nova equipe
traga a valkerax de volta aqui. — diz Yorl, sua expressão caindo. — E
enterraremos nosso bem caído.
Eu conheço essa expressão. Eu coloquei minha mão em seu ombro. — Ei,
não foi sua culpa.
Ele me tira bruscamente. — Eu vou dizer isso apenas uma vez, Zera,
então ouça com atenção. — Ele limpa a garganta, começando e parando
algumas vezes. — Obrigado. Por sua ajuda.
— Isso é o que os amigos fazem. — Faço uma pausa. — Você já teve
amigos antes, certo?
— É claro que sim. — ele retruca, mas é muito rápido, e eu rio, embora
eu pare rapidamente.
— Então uma bruxa fez tudo isso hoje à noite? Um emocional?
Yorl assente. — Sem dúvida. Forte, também, se a capacidade de isolar a
cidade do terremoto inconscientemente é alguma indicação. Eu checava os
contatos de Varia na Dama Carmesim e examinava os dados com eles, mas
eles me desprezam.
— Inteligente demais para eles, não é? — Malaquite gorjeia.
— Célebre demais. — Yorl diz como se tivesse sido usado como um
insulto contra ele mais de uma vez.
— Ah, — Malaquite assente. — Eu conheço esse sentimento.
— Eles podem ter desdém por mim, mas não são totalmente inúteis em
seus empregos. Com alguma sorte, eles poderão identificar de onde veio a
mágica em alguns dias. Enquanto isso, você... — Ele olha para mim e depois
para Malachite. — Você pode tirar um dia de folga enquanto eu coloco tudo
de volta no seu devido lugar.
Recebo a mensagem para não divulgar nenhum detalhe do que estamos
fazendo aqui em frente ao guarda-costas do Príncipe, mas posso sentir os
olhos vermelhos de Malachite perfurando os dois.
Malachite e eu nos despedimos de Yorl, deixando-o para enfaixar seus
companheiros mais adequadamente e começar a subir os degraus. Andamos
devagar pelas cinzas do Portão Sul, as feridas de Malachite ainda afetam sua
marcha, embora suas mãos estejam posicionadas casualmente atrás da
cabeça.
— Não sei por que ele continua tentando, — Malachite admite as estrelas.
— Se eu fosse ele, eu teria largado você no segundo em que você tentou me
matar.
Ele. Lucien. Eu rio, meio desesperada. A lembrança do beijo desta noite
envia pequenas chamas lambendo a parte de baixo da minha barriga, mas eu
as apago com raiva. — Sim. Eu também.
— O Rei não está muito feliz com isso, — continua Malachite. —
Quando Varia disse a ele que você era insensível, ele queria fazer um anúncio
formal de que você não era mais a Noiva da Primavera de Lucien, mas Luc
recusou. Ele jogou um ataque, arruinou toda a 'feliz reunião de família' e tudo
mais.
Eu chuto uma pilha de cinzas de madeira, lascada pelo vento. — A última
coisa que quero é que ele perca a família por mim. Para ele perder alguma
coisa sobre mim.
— Você sabe. — Malachite diz depois de uma batida, — Na verdade,
estou inclinado a acreditar em você, – você, a maior vigarista que Vetris já
viu – desta vez.
— Esse é um título que soa muito impressionante por apenas ter colocado
alguns vestidos e conversado sobre batatas. — eu resmungo. Isso dá uma
risada dele.
Percorremos o char e voltamos para as ruas mais intocadas, onde pessoas
e carruagens vagam. Os gêmeos vermelhos estão no alto do céu, ambos com
fendas crescentes de ferrugem. É quase toque de recolher, que entrou em
vigor no mesmo dia em que a guerra foi declarada, e as pessoas estão
correndo para chegar em casa. Um grupo de guardas da lei grita para que
também nos apressemos para casa, mas Malachite levanta uma mão
ensanguentada. Não pode haver muitos beneathers em Vetris que não sejam
os guarda-costas do Príncipe e, com certeza, eles nos deixam em paz depois
disso.
— Como faço para que ele siga em frente? — Pergunto depois de
atravessarmos a ponte para o bairro nobre. — Ele não vai desistir.
— Esse é o problema com Luc. Ele é tão teimoso quanto um pedaço de
granito. Ele também nunca desistiu de Varia – lendo seus jornais antigos o
tempo todo, perseguindo a Árvore que ela continuava mencionando. Não até
você aparecer. Você ajudou.
— Eu fiz? — Eu sussurro. — Parece que tudo que fiz foi feri-lo.
— Escute. — Malachite suspira. — Eu não sou o melhor apaixonado.
Tive uma vez, quando eu era uma espécie de meia-consciência no Escuro
Abaixo, com um garoto que corria pelas cercas de musgo comigo. Nós
rolamos muito no barro. Não foi muito romântico. — Eu olho para ele e ele
limpa a garganta. — Só... você gosta dele?
— Sim. — a fome e eu respondemos instantaneamente como uma só, e
ela desaparece, deixando-me me defender. — Eu gosto dele. Mas alguém
retribuindo esse carinho, quando sou assim — passo para as roupas sujas,
para o peito vazio, para o assassino, para todos os homens... — Não é justo
com ele. Ou comigo.
Malachite ri de novo, o máximo que eu ouvi dele desde a revelação da
minha traição. — O amor não é justo, nunca.
— Você machucou as pessoas para protegê-lo. — eu pressiono.
— Matou pessoas para protegê-lo.
Malachite assente.
— Então você sabe como é. — eu digo. — E se alguém que nunca matou
quisesse te amar? Alguém que não sabe como é acordar no meio da noite
com suores frios? Alguém que não sabe agora o que significa cometer um
erro que nunca pode voltar atrás?
— Eu respiro, olhando para as estrelas. — Lucien merece alguém que não
conhece essas coisas. Alguém como ele. Inocente.
O beneather está quieto, seus olhos brilhando sob a carícia gentil do luar.
— E se você fosse feito para a guerra, — continuo, com lágrimas quentes
irritando os cantos dos meus olhos. — e essa guerra é agora?
Eu posso ver o braço embaçado que Malachite está estendendo para mim,
mas apenas por pouco. — Zera...
— Eu tenho que fazer alguma coisa. — Eu me afasto, e minha mão treme
quando eu alcanço uma flor que passa em um arbusto, enterrando meu rosto
em suas pétalas macias para que Malachite não me veja chorando. — Eu
tenho que fazer algo que ele vai odiar para que eu possa recuperar meu
coração. E quando o fizer, terei que descobrir quem realmente sou. Eu nem
sei... — Eu paro. — Eu nem sei o que vou querer depois disso. A fome se foi.
Não terei mais nada me levando adiante. Não terei imortalidade. Vou ter que
ter medo da morte novamente. Eu pensei que era isso que eu queria, mas... É
por isso que sou especial, não é? É por isso que Varia me mantém por perto.
É toda a razão pela qual as bruxas me enviaram aqui, toda a razão pela qual
conheci Fione, Lucien e você. É por isso que eu poderia matar Gavik e
proteger Lucien. É o que me faz forte. Caso contrário, sou apenas uma garota
com uma espada.
juntos, mais fortes que sozinhos.
Minha risada soa fria e louca até para meus ouvidos.
— Mas quando recuperar meu coração, ficarei sozinha na minha cabeça.
Sozinha. Fraca.
Moonskemp ilumina apenas uma parte do palácio, a luz das velas
brilhando suavemente pelas janelas altas, o ninho de luminescência pousado
acima de nós na colina.
Eu olho para ele com saudade. — Eu apenas me aproximei do coração
todo esse tempo, não pensei muito no que vem depois. E eu tenho pavor
disso. Tenho todas essas ideias vagas e nebulosas de paz, mas... se Varia
conseguir o que quer, a paz será apenas temporária.
A Malachite congela. — O que você quer dizer?
É muito difícil dizer a verdade – que Varia morrerá se ela pegar a Árvore.
Isso levaria Lucien a nos parar, eu sei. E se ele fez, há uma chance de que ele
possa ter sucesso.
Estou sendo forçada a escolher novamente. Entre o meu coração e ele.
Mas desta vez... desta vez eu farei a escolha certa.
Eu seco meus olhos, acelerando meu ritmo. — Eu odeio chorar, não é?
Malachite agarra meu braço então, me puxando para trás. Seu rosto está
mais sério do que nunca, as sobrancelhas brancas franzidas. — Zera, vamos
lá. Você tem que me dizer. Luc está preocupado com o que está acontecendo
com Varia e você lá embaixo – ele mal dormia com toda a sua galope nas
ruas tentando descobrir o que é. Se ele continuar assim...
É daí que vêm todas as olheiras de Lucien. Eu franzi a testa. — Você é o
guarda-costas dele, não o corpo dele... corpo-não-guarda. Faça alguma coisa!
Drogue a água dele, se for necessário.
— Você acha que eu não tentei? — Malaquite insiste. — Estamos juntos
há cinco anos. Ele conhece todos os meus truques. Ele não vai parar até
descobrir o que você e Varia estão fazendo lá em baixo. Se é algo perigoso...
— Você pode dizer a ele exatamente como é perigoso, — insisto. — Diga
a verdade, é uma valkerax.
— Isso não será suficiente para ele, e você sabe disso. Não faz sentido, —
argumenta Malachite. — O que Yorl está fazendo com isso? Por que você
está falando com isso? Entendi – você não tem coração, então eles estão
usando você. Você bebe o sangue e depois pode entendê-lo. Mas do que você
está falando?
Eu pisco. É sangue ?
Malachite vê minha confusão e franze a testa. — Eles não te contaram?
Se você receber sangue valkerax suficiente em seu sistema digestivo, poderá
entendê-los. Mas isso mata você quase imediatamente depois de ingeri-lo.
Então é nisso que o soro se baseia. Eu não tinha ideia de que o sangue
valkerax poderia fazer isso com alguém.
— Obrigado. — Eu ofereço a ele a flor. — Pela sua sabedoria.
Ele joga a flor de lado, a flor atingindo os paralelepípedos. — Você pode
me agradecer me dizendo sobre o que na vida após a morte você está falando
com uma valkerax.
Eu começo a me afastar, o aperto de Malaquite se quebra quando eu
finalmente arranco minha mão do punho dele.
— Zera, por favor! — Ele agarra meu ombro e vejo algo que nunca vi em
seus olhos antes. Medo. — Lucien está... passando por isso agora. Por favor,
apenas facilite a vida dele desta vez.
Por que ele está assustado? Do que ele tem medo? Lucien ele mesmo?
Eles são como irmãos. Por que ele temeria Lucien?
— Desculpe, Mal. — Eu forço um sorriso. — Eu não posso.
— Ele e Fione nunca vão desistir!
— Então isso faz de nós três. — eu digo. Ele está quieto, me deixando ir
devagar, uma dureza se materializando em seu rosto.

O que é um Sem Coração, com seu coração retornado? Um humano? Não –


não inteiramente. Eles provaram a fome. Ainda conseguem lembrar como é
morrer, ser cortada e queimada.
Um Sem Coração com o coração é um humano que foi ferido e que sofreu
um retorno. E embora as feridas tenham sido curadas magicamente, as
lembranças ainda permanecem, esfaqueando e cortando melhor do que os
instrumentos da dor.
Sem Coração é um instrumento de dor.
Quem serei quando meu coração voltar? Considero isso como um pulmão
de cordeiro e tomo uma caneca de bebida de chocolate para cobrir o gosto
repugnante do amanhecer, na varanda fechada de Varia.
um assassino, um mentiroso.
Serei uma garota que não pode fazer nada além de balançar uma espada e
brincar impetuosamente. Uma garota que não tem mais ideia do que significa
ser mortal. Uma garota que não tem ideia de como é ficar sozinha em sua
própria cabeça. Na próxima vez em que ela se jogar na frente do fogo de
valkerax para dez guardas célebres, ela não viverá para contar a história.
A fome me deixou infeliz. Mas isso também me deixou ousada.
Isso me deixou irreverente e corajosa. Isso me permitiu proteger os outros
e a mim mesma. Mesmo nos meus momentos mais baixos, isso me deu um
tipo distorcido de confiança, pois eu sempre soube que viveria não importa o
que acontecesse. Não importa o que acontecesse, eu sempre podia confiar na
fome de estar lá. Firme.
Constante.
tudo o que você é, é meu.
Eu não sou a fome. Mas isso me fez à sua própria imagem.
Se eu deixar para trás, o que resta para se apoiar?
20

O Estilhaço

Quando Varia retorna do Moonskemp, digo a ela o que aconteceu com a


valkerax antes de suas criadas entrarem. A Princesa Herdeira fica em silêncio
por uma boa metade. Ela tira todas as suas jóias, colocando-as
cuidadosamente em seu armário, antes de finalmente falar.
— Lucien pediu sua presença em seu café da manhã.
— Eu não vou. — eu respondo automaticamente.
— Você me ouviu mal, Lady Y'shennria. — Ela se refere a mim com o
nome da minha família intencionalmente. — Sua Alteza Real, Lucien
d'Malvane, solicitou sua presença no café da manhã.
É uma exibição não tão sutil do poder da família real sobre as outras
famílias nobres. O Príncipe está chamando. E assim, se ainda pretendo ser
uma Y'shennria, devo ir. Ela chama as empregadas, e elas entram pela porta.
Ela se levanta do armário, vai até o armário e pega um simples vestido de
musselina cor de pêssego. Ela pressiona no meu peito sujo de sujeira.
— Ele sabe, — eu digo. — Malachite deve ter contado a ele agora. Lucien
sabe que eu estou falando com... — Eu olho para as empregadas. — Com
Evlorasin.
— Mas ele não sabe o porquê. — diz Varia friamente. Ela acena para as
criadas, e elas aceitam a deixa instantaneamente, me despindo com dedos
rápidos e seguros. Afasto-me do vestido sujo, apenas meio ofendida quando
elas gentilmente me levam a uma banheira de prata com água fumegante no
banheiro e me esfregam.
Varia pega a carta de Yorl que eu deixei na mesa, lendo enquanto ela fala.
— Você ainda tem sentimentos por ele, não é?
Abro a boca, mas ela interrompe muito rapidamente.
— Vi ontem à noite. Toda a nobre corte viu. — Ela faz uma pausa,
soltando a carta e pegando um pincel. Ela pacientemente penteia seus
próprios cabelos escuros, os fios brilhando como ônix polido. — Vou lhe dar
uma palavra de aviso – ele não é quem você pensa que é.
A água quente do banho na minha pele queima como ácido. O que ela
quer dizer? Ele é Lucien. Ele é Lucien d'Malvane, Príncipe de Cavanos e o
maior alcance. Eu afundei minha cabeça debaixo da água, esfregando meu
cabelo sem sabão. Eu venho limpando a água dos meus olhos.
— Seja cautelosa, Zera. Meu irmão me ama, — diz Varia. — E ele deseja
você. Mas há algo que ele valoriza mais do que qualquer um de nós. E esse é
o seu povo.
A Princesa deixa isso demorar, como um corte no tecido da realidade. É
claro que ele valoriza seu povo mais do que qualquer outra coisa. Eu já vi
isso inúmeras vezes. Ele se cansou durante o incêndio das bruxas. Fico de pé,
gesticulando para uma empregada me dar uma toalha. Ela obriga, e
lentamente eu me seco e visto o vestido de musselina macia, muito mais
suave do que o mundo esperando lá fora.
— Quanto ele sabe? — Pergunto.
— Não basta, — diz Varia. — E ainda mais do que suficiente.
— Ele vai atrapalhar, não é? — Eu pergunto, o pensamento de Lucien
parado entre meu coração e eu me rasgando nas bordas.
— Não se nos movermos rapidamente. Yorl me informou que hoje não
haverá visitas. — responde Varia. — Mas amanhã espero seu melhor esforço.
Especialmente considerando que Lucien está ciente de tais esforços agora.
O significado não está perdido para mim. Ela ficou confiante de que ele
não seria capaz de fazer nada sobre ela deixar a Árvore dos Ossos cautelosa.
Algo mudou, e não a nosso favor. Teria a ver com a fuga da valkerax, talvez?
Ou ela está finalmente percebendo o quão determinado seu irmão se tornou
em seus anos fora da corte?
— Você, — eu começo, depois perco a coragem. Mas ela volta por lá. —
Você vai morrer, não é?
Os olhos de Varia piscam na minha direção e eu continuo.
— A Árvore dos Ossos. Vai se alimentar da sua magia e matá-la.
Varia ainda está, e então ela joga o cabelo por cima do ombro.
— Sim. Mas eu te disse isso desde o começo.
Ela fez. A passagem que ela recitou de um de seus livros favoritos, The
Midnight Gifter. Minha carne alimentará sua fornalha.
Eu não sabia o quão fiel à vida essas palavras eram. Mas agora sim, com o
impacto total e frio.
Observo Varia sair para o quarto dela. A realidade surge de novo – tenho
um dia inteiro de nada pela frente. Sem obrigações, sem visitar Evlorasin.
Tudo o que eu quero é terminar de ensinar a valkerax o mais rápido possível.
Para acabar com toda essa ansiedade e tristeza o mais rápido possível.
Eu esperei três anos. Um dia não é nada em comparação.
Já fiquei com Gavik tempo demais – ele já deveria ter decodificado seu
diário e os detalhes do Hino da Floresta. Mas se eu for encontrá-lo na cidade,
Varia saberá. Eu suspiro. O que isso importa? Se ela realmente não queria
que a gente conversasse, ela ordenaria que eu ficasse longe dele. E ela não
fez.
Mas primeiro, café da manhã.
Primeiro, Lucien quer falar comigo. Sobre o valkerax, sem dúvida.
A caminhada para os apartamentos de Lucien não fica longe da de Varia,
mas ele está muito mais perto dos aposentos do Rei, o que significa que a
segurança é dez vezes maior aqui. Lucien deve ter informado a minha vinda,
porque todos acenam quando eu passo, abrindo as portas no momento em que
me aproximo.
Os suportes dourados da sala revelam-na primeiro como uma câmara real.
Uma cama generosa e fofa de ganso, com quatro pôsteres e cobertores
escuros, fica no meio. Mas são os livros que chamam minha atenção. Eles
dominam a sala – pilhas deles empilhados ordenadamente no tapete felpudo,
torres cuidadosas construídas sobre as mesas de sequóia e pequenos blocos
formados em imponentes cadeiras e sofás pretos. Nenhuma polegada da sala
fica sem pelo menos um pergaminho ou um livro aberto em uma superfície.
Lucien deve amar ler; os livros Midnight Gifter foram algo que nos
aproximou duas semanas atrás. Varia também ama esses livros. A série é tão
importante para as duas infâncias. Vejo versões em relevo de ouro de todos
os livros da série em sua prateleira.
À minha frente, situado exatamente para que qualquer pessoa que a visse,
há uma pequena mesa e um belo vaso de cerâmica iful.
Dentro do vaso, repousa um buquê de rosas negras, tão frescas e vibrantes
que parecem ter sido colhidas dos arbustos da mansão de Y'shennria nesta
manhã.
— É a minha tentativa de pedir desculpas sinceras. — A voz vem do
canto, e vejo Lucien em pé em uma mesa. Ele está vestido de maneira
simples – uma camisa branca e calça preta, o sol da manhã beijando sua pele
dourada acordada. — Malachite chamou isso de brega.
A beleza das rosas me puxa. Estendo um dedo para eles e depois recuo.
Não... não posso aceitar um presente. Não depois do que eu fiz com ele. Eu
procuro Malachite, mas ele não está em lugar algum. Somos apenas nós.
— Você me chamou, Alteza? — Eu abaixo meu olhar como qualquer
nobre. Sua bochecha não tem nenhum sinal residual do meu massacre, e por
isso estou feliz. Ele faz uma pausa por um momento, e não ouso olhar para
cima, mas sei que ele está surpreso com o meu comportamento. Fiquei
furiosa o suficiente para dar um tapa na noite passada e, no entanto, aqui
estou eu, dócil como um cordeiro.
Não característico da minha parte, com certeza.
— Ouvi dizer que você salvou Malachite, — diz ele. — À custa da espada
de seu pai. Eu sei o quanto isso significou para você.
O cabo quebrado da espada está pendurado no meu quadril agora, mais
pesado que o vazio no meu peito. Ele e eu conversamos sobre a importância
de segurar as espadas de membros da família mortos naquela taberna tantas
noites atrás, nossos rostos fechados e corados. Uma doce lembrança, que já se
foi.
— Não é nada, Alteza, — eu digo. — O metal é substituível. As pessoas
não são.
Há uma pausa, como se ele estivesse debatendo, mas ele deixa para lá e
muda de assunto rapidamente.
— Você descobriu com Gavik o que a música que discutimos significa?
— Ele pergunta.
Inclino minha cabeça. — Não, Alteza. Espero hoje.
Estamos calados, e isso não é dito; ele quer saber o que isso significa
também. Talvez desesperadamente. É para isso que servem todos os livros?
Ele está tentando encontrar informações por conta própria?
— Eu tenho estudado. — diz ele, o som de suas botas se aproximando.
Seu corpo corta o ar como uma faca quente novamente, meu próprio
conhecimento de cada movimento que ele faz, mesmo sem poder vê-lo.
Observo as botas dele pararem em uma mesa próxima, cheia de pergaminhos.
— E considerando que você sabe mais sobre o Sem Coração do que eu,
gostaria de fazer algumas perguntas. Se você me deixar.
Varia me avisou muito claramente sobre ele. Isso é uma armadilha? O
fato de eu ter que duvidar dele, examiná-lo de alguma forma – faz meus ossos
doerem.
— Claro, Alteza. — Eu me curvo. — Meu conhecimento está à sua
disposição.
— O mercúrio branco das quatro espadas que o polímata fez na Guerra
Sem Sol, — Lucien diz instantaneamente. — E o punhal de mercúrio branco
de Gavik. Essas armas vão cortar a conexão entre uma bruxa e um Sem
Coração, correto?
Ele saberá se eu mentir. Os livros à sua volta – ele estava lendo esse tipo
de coisa? Esse tipo de coisa é registrado nos livros vetrisianos ou os humanos
se livraram de todos eles? Ele já sabia a resposta e está apenas me pedindo
para mostrar. Para me testar – e minha honestidade em relação a ele.
Uma honestidade que nunca lhe dei.
Até agora.
— Não, Alteza. — eu digo. — O mercúrio simplesmente enfraquece toda
a magia no corpo dos aflitos. A única mágica em um Sem Coração é a
conexão entre eles e sua bruxa. O mercúrio branco o enfraquece. Não o corta.
Cortar não é possível, a menos que...
— A menos que a bruxa quebre o coração dos Sem Coração, sim, —
Lucien termina para mim. — Eu conheço essa parte.
Sinto uma das minhas sobrancelhas se erguer. Ele conhece?
Onde ele teria aprendido isso? Certamente não de nenhum dos livros da
biblioteca do palácio, ou, devo dizer, de qualquer livro de Cavanos.
Não é exatamente um conhecimento comum, mas também não é um
segredo. Alguém poderia ter dito a ele, suponho. Alguém com conhecimento
de como as bruxas funcionam.
Ele pega um pergaminho, inspecionando as plantas lá. — E uma conexão
enfraquecida entre uma bruxa e um coração deixa a fome dentro de você
vagar livremente. Você pode usar isso para desobedecer ao comando de uma
bruxa. Isso está correto?
Minha cabeça se levanta, meus olhos vagam por sua postura lânguida
enquanto ele lê o pergaminho em suas mãos. Ele sabe muito mais do que eu
jamais pensei ser possível. Como ele leu tudo isso? Não – não há como as
coisas que Reginall falou comigo, as coisas que apenas ele, eu e os mortos
chorando sabemos, alguma vez foram escritas. E mesmo que estivessem,
certamente foram queimados – se não pelas bruxas que odeiam Chorar, e
pelos humildes que odeiam bruxas.
Lucien vê o choque nu no meu rosto e ri baixinho. — Ironicamente,
quanto mais tentamos desenvolver armas de mercúrio branco e usá-las na
guerra, mais libertamos os Sem Coração. Um efeito colateral não intencional,
mas não indesejável. Menos Sem Coração seguindo os comandos de suas
bruxas significa menos problemas para os soldados humanos no campo.
Ele coloca o pergaminho no chão e se aproxima de mim, tão perto que
posso ver as manchas marrons em seus olhos escuros. Ele se inclina
casualmente nas costas de um sofá de veludo.
— Mas você... — Ele engole, garganta forte balançando. — Naquela
noite na clareira. O monstro em você assumiu e matou aqueles homens. Mas
não era apenas o monstro, era? Seus olhos... eles ainda eram seus.
Meu sangue está escorregadio, gelado e vermelho quente de uma vez e
zumbindo sob a minha pele. Ele estende um braço e eu fico parada,
esperando. Assistindo. Não ousando respirar. As pontas dos dedos roçam
minha bochecha, e meu corpo clama por mais, aprimorando a sensação de
sua pele com um frenesi magnético.
Observo os olhos do gabinete mudarem quando ele me toca – seu olhar
paciente ficando sombrio, amargo. É só por um momento, e então ele volta
ao normal.
— Chorando. — diz ele, quebrando o silêncio. A palavra me afasta de seu
toque instantaneamente. Como ele...? — O que você fez na clareira foi
chamado de Choro.
Como ele sabe disso? É impossível – as bruxas sabem disso, certamente,
mas os humanos têm muito menos consciência. Como ele sabe o nome exato
para isso? Ele falou com uma bruxa em Vetris? Quem iniciou o incêndio de
bruxas, quem sabe, quem causou o terremoto ontem à noite? Varia nunca lhe
contou sobre o choro – é a chave do plano dela com Evlorasin, e ela me
garantiu que tinha certeza de que nenhum de seus associados falaria sobre
isso. Ele não poderia ter falado com um Sem Coração que sabe chorar – eu
sou a única que resta.
Eu sou a única que sabe. E eu não disse uma palavra sobre isso. Ele leu.
Ele deve ter lido em algum lugar, em um desses livros.
Alguém deve ter anotado isso durante a Guerra sem Sol, o tomo sumiu
um pouco.
Ele sabe demais, e seu toque é intoxicante para o meu corpo traidor,
ainda. Eu tenho que me afastar dele.
— Há mais alguma coisa? — Luto para acalmar minha voz. — Sua
Alteza deseja me pedir?
Lucien está quieto, seus olhos pegando o sol da manhã e fraturando com
um marrom quente. — Apenas uma. Você vai me perdoar?
— Pelo quê, Alteza?
— O beijo na noite passada — diz ele. — Eu agi fora de hora.
Eu levanto minha cabeça um pouco, apenas o suficiente para olhar em
seus olhos. — Não há nada a perdoar. Eu já consegui.
Minha mentira parece suave e testa os limites da minha capacidade de
girar uma teia. Estou apavorada que a verdade esteja brilhando na minha
expressão vazia – que eu gostei. Que eu me lembro de cada segundo disso.
Que eu desejo por outro, e outro, e até lá...
Seus olhos brilham com alguma emoção que não consigo ler – descrença?
Ele se recupera, virando-se para uma mesa e pegando nela um pequeno livro
encadernado em couro. Ele me entrega.
— Então, pelo menos, permita-me lhe dar um presente.
Olho para o livro e o pego, tomando cuidado para não tocar nossos dedos
juntos. Eu faço uma reverência adequada.
— Eu vou me despedir, então.
Cada osso do meu corpo quer que Lucien me pare enquanto eu me afasto.
Eu quero que ele me puxe de volta, me beije sem sentido.
Eu quero me sentir não tão sozinha neste momento, para estar com ele
como se aquela outra versão da minha linha do tempo estivesse certa agora.
Rigidamente, eu ando até a porta e saio. Quando estou fora de vista e por
outro corredor ensolarado, abro o livro. É um livro de figuras. Inspiro
profundamente – lá, na página, uma cena agitada é esboçada. Uma vila fica
em uma colina tranquila, mas a colina está fraturada, a prateleira deslizando
em um enorme abismo rasgado diretamente na terra. E desse abismo
emergem formas familiares – escamas serpentinas e brilhantes de branco-
marfim. Valkerax.
Eles emergem do chão como fios de neve saindo de uma cesta, torcendo
um ao outro, enrolando-se nos prédios da vila. O fogo branco-quente sai de
suas bocas, queimando as pessoas que fogem de suas casas que rapidamente
deslizam para o abismo.
Viro a página e a próxima foto é igualmente horrível: as pastagens planas
de Vetris, completamente carbonizadas. A terra está nua, não há uma árvore
ou folha de grama à vista. Deveria haver vegetação verdejante e, no entanto,
as únicas coisas que crescem do chão são ossos brancos – milhares deles.
Centenas de milhares de esqueletos humanos vasculham o carvão preto até
onde os olhos podem ver, congelados em suas poses de morte, até os pés das
montanhas Tollmount-Kilstead. Segurando a cabeça, rolando no chão para se
livrar da fogueira, enrolando-se impotentes.
— Olho de Kavar. — eu assobio. O livro está cheio desses esboços
terríveis e, de acordo com as poucas páginas com palavras, esses são os
desenhos de um artista do Velho Vetris que viajou pelo Continente da Névoa
para cobrir a devastação do tumulto de valkerax há mil anos. Seus desenhos
foram supostamente usados como uma evidência para incentivar a aliança
Vetrisiana Antiga a se formar em primeiro lugar. Uma evidência eficaz,
mesmo agora – não consigo desviar os olhos, um arrepio percorre minha
espinha.
Lucien me deu isso porque ele sabe sobre minha conversa com Evlorasin
– Malachite definitivamente o contou sobre a fuga de valkerax na noite
passada. Mas não há como Lucien saber sobre a Árvore dos Ossos e como
Varia está planejando assumir o controle dela, então ele está apenas tentando
me avisar em geral? Eu sei que Valkerax é perigoso – todo mundo sabe. É
por isso que eles estão trancados no Escuro Abaixo. Mas não vou parar de
falar com Evlorasin, com imagens históricas horríveis ou não. Meu coração
está esperando – por mais aterradora que seja a idéia de viver sem a fome, a
idéia de continuar vivendo como um monstro é ainda pior.
Gavik está esperando. Eu saio do palácio, uma capa enrolada firmemente
em volta de mim. Desta vez, eu o encontro sozinho – um vislumbre de uma
túnica cinza no West Gate me puxa para um beco.
— Kreld! — Eu chamo seu nome falso, e ele se vira. Desta vez, o cesto de
pão em seu braço está quase vazio, sua barba ficando desgrenhada e branca
sobre o queixo. Seus olhos lacrimejantes não estão, pela primeira vez,
totalmente furiosos ao me ver. Não é raiva em seu rosto, mas algo mais
perturbador: emoção. Ele se afasta de um homem e se aproxima de mim.
— Eu já fiz. — Gavik puxa o diário do bolso do casaco. — Descobri os
vários códigos que usei. Alguns deles eram incrivelmente complexos, mas
com um pouco de esforço...
— Pare de tocar sua própria buzina e me diga o que disse. — eu estalo. A
boca de Gavik se torce. Ele se aproxima de mim e eu me preparo para tolerar
sua presença oleosa.
— O Hino da Floresta – não é um hino religioso.
— Então o que é isso? — Eu pressiono.
— Era originalmente uma música bardic do Velho Vetris. — diz ele. —
Na cultura Vetrisiana antiga, os bardos eram responsáveis por pastorear
informações entre as cidades enquanto vagavam pelo reino, cantando por
moedas. Eles receberam essa música cerca de quatrocentos anos atrás, por
volta do colapso do Velho Vetris. — Gavik respira fundo. — É uma música
de aviso. Ela detalha como e por que o reino desmoronou.
Eu franzir a testa. — Nós sabemos por que isso se desfez – a religião
emergente do Novo Deus a desfez. O velho Vetris caiu por causa da crença.
Os crentes do Deus Antigo e do Novo Deus começaram a guerra, e esse foi o
fim deles. Todo mundo sabe disso.
— Sim. — Gavik sorri, mas não é um sorriso agradável. — Mas onde
começou a divisão entre o Deus Novo e o Velho Deus? E porque?
— Eu não tenho idéia. — Eu bufo. — Como isso tem alguma coisa a ver
com o hino?
— Dez anos atrás, conheci um historiador da cultura vetrisiana antiga.
Um célebre, com o nome de Muro...
— Muro Farspear-Ashwalker. — termino por ele, engolindo em seco.
Parece que eu já deixei esse nome tantas vezes. O avô de Yorl está no centro
de tudo de alguma forma.
Gavik estreita os olhos, mas assente. — Sref e Kolissa pediram sua
opinião sobre uma doença de Varia.
— Os sonhos dela sobre a Árvore, certo?
Gavik pisca desta vez. — Você está investigando por conta própria.
Minha inteligente sobrinha ajudou você?
— Como você conheceu Muro? — Ignoro a surpresa condescendente em
sua voz.
Gavik se recompõe como um arquiduque, imperiosamente. — Muro deu
uma explicação para Sref e Kolissa. Mas eles não acreditaram nele. Eu o vi
como um homem de aprendizado e, quando ele estava saindo do palácio,
convenci-o a me contar sua teoria.
Gavik passa a me contar sobre a Árvore dos Ossos que precisa se
alimentar de magia de uma bruxa e atrair uma bruxa poderosa através de seus
sonhos quando fica com fome. A certa altura, soltei um suspiro impaciente.
— Eu parei por um dia para você me dizer coisas que eu já sei?
Ele puxa o diário de repente e aponta para as passagens codificadas com
um dedo nodoso. — Muro me disse que não há apenas uma velha árvore
vetrisiana. Existem duas.
Tricotei minhas sobrancelhas, meu pesadelo ressurgiu daqueles dois
rosários de árvores nuas. — Duas?
— A Árvore dos Ossos foi criada para subjugar a ameaça da valkerax. —
insiste Gavik. — Mas Muro diz que, nos anos seguintes, houve uma pequena
subseção dos Vetrisianos Velhos que queriam usar a tecnologia que fez a
Árvore dos Ossos para empurrar o envelope da criação. A Árvore dos Ossos
comandou a valkerax para o Escuro Abaixo. Mas eles queriam fazer outra
árvore. Uma que poderia comandar as pessoas a permanecerem imortais.
Uma árvore feita de vidro.
Minhas mãos começam a tremer. Imortalidade. Ele não pode estar falando
sobre... Insensibilidade ?
— A árvore dos ossos e a árvore do vidro. — Repito a frase do Hino da
Floresta. O fragmento de vidro na minha bolsa Sem Coração – os frascos de
vidro na maioria dos corações Sem Coração entram.
Os jarros que as bruxas fazem, as sacolas que as bruxas fazem.
Varia me disse que eles trabalham apenas por causa dos cacos de vidro
incluídos neles. Esses fragmentos nos dão a nossa imortalidade, disse ela.
seu coração,
a fome zomba.
amarrado para sempre para mim.
Gavik assente febrilmente. — Os Vetrisianos Velhos criaram a Árvore de
Vidro. Mas outros vetrisianos pensavam que a idéia de imortalidade estava
errada. Imoral. Contra os ensinamentos de Deus. Eles expulsaram aqueles
que fizeram a Árvore de Vidro. Eles se autodenominavam adoradores do
Novo Deus – abrindo um novo caminho, sem a imortalidade. E aqueles que
foram expulsos do Velho Vetris foram chamados de seguidores do Velho
Deus.
— As bruxas? — Eu sussurro.
Ele faz uma careta. — A maioria das bruxas se tornaram seguidores do
Deus Antigo; dando apenas algumas gotas de sua magia à Árvore de Vidro,
eles poderiam vincular seus entes queridos a eles para sempre. Foi uma
perspectiva tentadora. — Gavik faz uma pausa e depois olha para o céu. — E
rasgou o velho Vetris em dois. Muro me disse: foi assim que começou o
velho ódio em Cavanos. Foi assim que as guerras entre humanos e bruxas
começaram.
— Como? — Eu engulo, minha garganta tão seca que parece areia. —
Como Muro foi a única pessoa que sabia disso?
— As guerras foram difíceis na história de Cavanos. — admite Gavik. —
Livros foram queimados. Os historiadores escreveram sobre os vencedores,
não sobre a verdade. Até os Arquivos Negros não têm muito sobre a queda do
Velho Vetris. Muro teve que ir para as velhas e arruinadas Palas – cidades
beneather, infestadas de valkerax – pelo que descobriu.
Isso explicaria por que Yorl sabe tanto sobre valkerax. Muro deve ter
visto tudo sobre eles, observou o valkerax de perto em suas viagens para o
Escuro Abaixo, em um esforço para não ser morto por eles. E ele passou esse
conhecimento para Yorl.
Gavik de repente se inclina mais, sua voz baixa. — Isso não é o pior de
tudo. Os Vetrisianos Velhos – eles fizeram a Árvore de Vidro pegando um
pedaço da Árvore Óssea e transplantando-a. Toda a magia dentro da Árvore
dos Ossos, toda a sensibilidade que desenvolveu, se replicou na Árvore de
Vidro.
Senciência. Como a voz na minha cabeça? Como e a fome?
Como a música que Evlorasin fala? É sobre essa mente própria que Yorl
fala?
— A Árvore de Vidro, — eu consigo dizer. — Ainda está por aí?
— Sim. Estamos de pé aqui. — diz Gavik, batendo no peito vazio. —
Como prova inabalável de sua existência.
— E o Hino da Floresta fala sobre tudo isso? — Pergunto.
— Sim. O templo de Kavar tem a única cópia restante que conhecemos.
Eu tinha medo que as pessoas o encontrassem, então pedi que mudassem a
letra e selassem o original em sua biblioteca.
— Por que você não queria que as pessoas soubessem disso?
Ele solta um suspiro. — Eu não queria que a notícia se espalhasse e, de
alguma forma, encontrasse o caminho para Varia. Muro me disse que a
Árvore dos Ossos a escolheu para se alimentar, e ele me disse que se ela se
alimentasse dela, ela controlaria a valkerax por sua vez. Eu não poderia ter
isso.
— Então você tentou matá-la também. — eu penso.
— Não se engane. — ele diz em breve. — Eu a odiava. Eu odiava Lucien.
Eu queria muito a espada de Varia, para armar meu país adequadamente
contra a ameaça de bruxa. Queria que o sangue de bruxa d'Malvane se fosse,
porque sabia que eles arruinariam o país. E eles vão. Varia terá sucesso, se
você ajudá-la a conseguir a Árvore dos Ossos.
— É um exército de valkerax sob seu controle. — eu argumento.
— E a Árvore dos Ossos pegará toda a sua magia e a matará
eventualmente, e então a valkerax retornará à clandestinidade. Não é tão
perigoso quanto você...
— Pense com esse seu cérebro confuso de seda e renda. — cospe Gavik.
— A paisagem de Cavanos não é a única coisa que vai mudar. Um exército
de valkerax desestabilizará a política mundial como a conhecemos. Cavanos
se tornará simultaneamente o inimigo do mundo e o árbitro do mundo. O
resto do Continente da Névoa – o imperador Pendronic, os sábios-duques
helkyrisianos e a Rainha dos Avellish – se unirão para a sua própria
segurança e para nós. E em outros continentes, alianças se formarão e cairão
em todo o mundo por nossa causa. Toda lança será lançada contra Cavanos
em legítima defesa.
A areia na minha garganta se transforma em chumbo derretido.
— Varia acha que ela está pronta para esse nível de poder. — eu sussurro.
— Ninguém está pronto para esse nível de poder, — insiste Gavik. —
Está além de qualquer imaginação.
De repente, vejo algo pelo canto do olho – uma sombra que permanece na
boca do beco atrás de uma pilha de ferro-gusa descartado. Eles estão muito
perto de nós, e muito escondidos, para fazer qualquer coisa, menos ouvir.
Gavik começa a falar novamente, mas eu seguro uma mão na cara dele, e ele
faz uma pausa. A pausa é muito longa e assusta a sombra. Antes que eu possa
piscar, a sombra gira e desaparece, e corro para o corredor da estrada bem a
tempo de ver um pedaço de escuridão desaparecer na esquina.
Corro em volta e me deparo com o muro do Portão Oeste, tão alto e alto
que nada poderia pular, ladeado de ambos os lados por paredes de tijolos
semelhantes, lisas e livres de esconderijos. A sombra se foi. Mas onde? Não
há lugares para se esconder, nem buracos para desaparecer.
É como se simplesmente... desaparecesse.
Qualquer um poderia ter me seguido. Mas apenas uma pessoa iria querer.
Apenas uma pessoa sabia que eu iria falar com a Gavik hoje.
— Lucien? — Eu sussurro na parede branca iminente.
Mas não recebo resposta.

Quando volto para Gavik, ele tenta me convencer, mais uma vez, a recusar
ajudar Varia a encontrar a Árvore dos Ossos. Mas seus pedidos caem em
ouvidos há muito fechados para ele. Volto para o local, parando em frente à
mansão de Y'shennria. As roseiras negras puxam meu coração quando
acenam sob o céu imaculadamente azul de verão, as nuvens brancas e macias
tão inocentes e doces.
Mesmo sob um céu que parece pacífico, a guerra está acontecendo.
Varia tem me jogado na valkerax. Eu morri repetidamente, e ninguém
lamentou. As bruxas jogam seus Sem Coração no exército humano agora,
mas não as lamentam. Guerra significa apenas algo porque a morte significa.
A morte significa apenas algo porque a vida faz.
Vida – aquela coisa tênue e brilhante que os humanos dão como certa.
Cada momento, uma possibilidade. A cada dia, um novo começo.
Tudo isso, parado apenas pela morte.
Os Vetrisianos Velhos naquela época estavam certos em ter medo da
Árvore de Vidro. O verdadeiro homem não é a morte. É imortalidade. Não é
nada mudando, sempre. É aquela névoa cinza sufocante. Ele permanece o
mesmo por três anos, preso em uma floresta. É a morte sendo reduzida a uma
piada. É a morte que não significa nada, porque a vida também não significa
nada.
Eu quero ser humana.
Eu quero dizer algo novamente.
— Lady Zera?
Eu começo e olho para a voz e vejo Lady Tarroux espreitando o rosto
redondo para fora de uma carruagem decadente, envolta nas laterais com os
olhos dourados de Kavar. Uma longa caravana a precede, cada cama cheia de
baús, malas e móveis. Guardas flanqueiam a procissão, com as espadas
prontas e o rosto sombrio.
Deve haver cinquenta deles – suas fileiras reforçadas por mercenários
fortemente blindados.
— Boa tarde, Lady Tarroux. — Eu sorrio. — Para onde você vai com
todas as suas coisas?
Os olhos dela são castanhos. Helkyris. — Papai não podia esperar mais
um dia para sair.
Meus pulmões esvaziam. — Entendo. — Há uma pausa e depois: — Você
quer que eu a sequestre? Eu sou muito boa em crime.
A preocupação em seu olhar vacila com sua risada suave. — Isso seria tão
adorável. Mas receio que meu pai sentiria minha falta se eu fosse embora.
— Ele não está preocupado com ataques na estrada? — Pergunto. — A
guerra está em pleno andamento.
Ela faz um gesto ao seu redor para os mercenários. — O pai não poupou
despesas. Nós vamos ficar bem, eu acho.
— Certamente. — eu concordo com uma pequena risada. — Pelo que
parece, ele contratou um pequeno exército.
Ela ri também, embora pareça triste. — Lamento, Lady Zera. Sinto como
se tivéssemos acabado de ser amigas e estou abandonando você.
Eu sorrio brilhantemente para ela. — Você voltará. A guerra pode acabar
mais cedo do que você pensa, e você volta aqui e se casa com Lucien.
Não dói mais dizer isso. Talvez eu esteja me acostumando com a ideia.
Finalmente.
— Como... — ela chia, suas bochechas ficando vermelhas. — Como você
sabe disso?
— Chame de... visão. — Eu sorrio. — Entende-me do Novo Deus.
Seu rubor desaparece, e então seu rosto se ilumina. — Oh! Acabei de me
lembrar.
Eu a vejo remexer dentro de sua carruagem em busca de alguma coisa,
antes que ela se incline pela janela e a entregue para mim. — Aqui. Por favor,
entregue isso ao príncipe Lucien. Ele estava perguntando, e eu odiaria ir
embora sem dar a ele.
Olho para a palma da mão e vejo um papel cuidadosamente dobrado. —
Você se importa?
Tarroux balança a cabeça. — De modo nenhum.
Desdobro e leio: é um guia de figuras para uma certa técnica de costura.
Eu levanto uma sobrancelha para ela. — O que é isso?
— Oh, bem. — Tarroux fica vermelho novamente. — O Príncipe me
pediu para ensiná-lo a costurar.
Eu pisco. — De costura? Ele pediu que você o ensinasse?
Seu rubor desaparece apenas marginalmente quando ela olha para cima.
— Sim. Ele disse que queria fazer um presente para alguém, e por isso eu o
obriguei. — De repente, ela inclina a cabeça, o cabelo cortado por cima do
ombro enquanto deixa escapar: — Sinto muito, Lady Zera! Eu sei que você é
a noiva da primavera! Eu não pretendia ter tais sentimentos enquanto houver
uma conexão entre você e a Sua Bondade!
Estou impressionada novamente com o quão direta e gentil ela é. Garota
boba, eu acho. Não se desculpe. Você está fazendo exatamente o que eu
preciso que você faça.
Estendo a mão e aperto a mãozinha dela na minha sobre o parapeito da
carruagem e sorrio mais. — Posso te contar um segredo? — Pergunto. Ela
assente, de olhos arregalados.
— Eu vou embora em breve. A corte não é um lugar para mim, eu decidi.
Seus olhos ficam ainda maiores, e eu luto contra a neblina quente atrás
dos meus que ameaça lágrimas. Ela não pode me ver chorar, me ver mostrar
outra emoção que não seja reluzente. Devo parecer sincera, mortalmente. As
palavras vêm facilmente, mesmo que minha expressão não.
— Ele pode ser muito espinhoso, — eu digo. — E teimoso. E ele está
convencido... Eu rio. — Ele está convencido de que é o único que pode salvar
alguém. Talvez seja por isso que tenhamos ficado muito tempo em primeiro
lugar, ele com seu complexo salvador e eu com meu complexo mártir.
— Lady Zera... — Tarroux começa gentilmente, mas eu a corto.
— Diga o que pensa sempre que puder – ele odeia banalidades acima de
tudo. Não tente fazê-lo beber. Ah, e ele gosta muito mais da cidade do que do
palácio.
Minhas mãos começam a tremer enquanto tudo passa pela minha mente –
toda vez que eu o vejo, o toco, ri com ele. Apenas duas semanas. Foram
apenas duas semanas, então eu realmente não tenho o direito de ficar tão
triste. Duas pequeninas semanas não são nada. Uma paixão frágil – luxúria e
luxúria apenas. Duas semanas não significam nada.
Soltei a mão de Tarroux para não me trair, minhas palavras se derramando
mais rapidamente.
— Lady Tarroux, por favor. Quando você voltar para Vetris, observe-o.
Proteja seu princípio como não posso mais.


Lady Tarroux nunca consegue me responder. Sua caravana começa a se
mover novamente, puxando-a em direção ao Portão Sul.
Eu aceno e aceno, até que a carruagem dela não passa de um ponto
dourado no horizonte. Então me arrasto de volta aos equipamentos de Varia
em um rastejamento lento. Eu deveria estar feliz – o que eu queria se uniu.
Empurrei Tarroux em direção a Lucien, e a mim mesma.
Ela é inocente. Ela está livre de sangue. Ela é humana.
Eu influencio meu eu miserável na sala de estar de Varia, surpresa por
encontrá-la já lá. A essa hora da noite, ela costumava sair para jantar na
propriedade de Fione. Mas ela está sentada em um sofá de madeira de ferro
com um grande roupão de penas, olhando para um copo não do conhaque
importado da Avel que é tão popular entre os nobres vetrisianos, mas com um
líquido mais claro. É estranho ver alguém tão controlado relaxando pela
primeira vez.
Ela olha com olhos suaves quando eu entro e me vê olhando para sua
xícara. Ela acena para mim com um floreio. — Não suporto o material
Avellish.
— O que é, então? — Eu pergunto, ansiosamente acolhendo qualquer
mudança de discussão. — Eu diria pântano mas sei que você não é esse tipo
de bruxa.
Ela me dá um olhar meio assustador e meio divertido. — Yolshil. Licor
Célebre. Tem mais queimadura, mas menos picada.
— O que o torna perfeito para você, porque você já tem dentes
suficientes.
É uma alusão vaga à valkerax, mas mesmo um pouco zumbida ela
entende, e para minha surpresa ela joga a cabeça para trás e ri.
Quando ela se acalma, ela bebe o resto da bebida.
— O pai realmente perdeu a oportunidade de fazer de você a garota
risonha dele.
— Por que você ainda está acordada? — Eu pergunto cautelosamente.
A princesa encolhe os ombros. — Dormir é difícil para mim, como você
viu. — Em uma tentativa de mudar de assunto, ela aponta para uma mesa ao
lado dela. — Você recebeu presentes.
Vou até a mesa cheia de duas coisas: uma carta e um pacote comprido
embrulhado em papel pardo. Abro uma sobrancelha e me aproximo
desconfiada, abrindo a carta. Não é selado com cera, o que significa que não
é uma carta de um nobre em Vetris. A caligrafia me parece familiar, mas não
consigo identificá-la.

Zera,
Espero que isso te encontre bem. Considerando que estou enviando esta
carta para a Vetris assim que terminar, espero também que você esteja
praticando e executando suas maneiras dentro da corte o suficiente.
Meu não-coração cresce. É muito mais do que uma frase fria. Sei
instantaneamente quem escreveu isso – Y'shennria. De repente, o papel que
estou segurando e cada palavra nele se torna mais preciosa do que ouro.
Você deve saber que eu e os outros que vieram comigo estão seguros, e
estamos desde a nossa partida. Eu gostaria que você pudesse estar aqui
conosco, para que eu não desperdice o que resta da minha vida me
preocupando com você durante a noite.
Ela está preocupada comigo? Meu peito parece que está brilhando por
dentro. Reginall, seu motorista Fisher, sua cozinheira Maeve e seu cavalariço
Pierrot – todos eles estão seguros. Todas as pessoas que me ajudaram
imensamente, que foram gentis comigo de maneiras diferentes. É um grande
alívio saber que estão fora de perigo.
Nossa amiga em comum que enviou você para mim originalmente me disse
que algo valioso para você agora pertence a outra pessoa em Vetris.
A frase é vaga intencionalmente, sem menções a bruxas ou Sem Coração.
Ela quer dizer Nightsinger e meu coração.
Se você vir uma chance de partir de Vetris algum dia e se encontrar sozinha,
deixarei uma direção para você no lugar que você viu, onde os pássaros
voam.
Onde os pássaros voam? Ravenshaunt – é claro, seu lar ancestral que foi
praticamente destruído pelo fogo das bruxas. Ela apontou para mim quando
nos conhecemos, na carruagem para Vetris. Um fardo profundo que eu não
sabia que estava carregando repentinamente se levanta dos meus ombros, e
um sorriso verdadeiro puxa meu rosto. Ela está dizendo que se eu conseguir
recuperar meu coração, devo ir às ruínas de Ravenshaunt para encontrá-la.
Eu quero isso mais do que quase tudo.
Finalmente, uma âncora. Um ponto em um mapa para caminhar.
A carta é muito curta.

O que você fez tomou muita força. Saiba que tenho orgulho de você.
Estou aguardando, firmemente.
A menor das frases dela soa com grande impacto na minha cabeça. Suas
palavras são um pequeno vislumbre de esperança na lama pela qual passei, e
o desejo de recuperar meu coração explode, mais brilhante do que nunca.
Crav e Peligli estão me esperando. E agora uma terceira pessoa. Eu tenho um
lugar para ir além dos muros, além da guerra. Um lar. Uma verdadeira casa.
Varia está me observando, mas em algum momento ela se vira para
encher o copo. Sem dúvida, ela já leu, mas ainda espero que ela não esteja
prestando atenção para dobrar a carta de Y'shennria sobre os fragmentos de
seu pôster de procurado que mantenho no bolso do peito.
Pego o pacote embrulhado em papel. É longo e fino, e eu abro
rapidamente. Minha ansiedade murcha no momento em que vejo o que está
aninhado no embrulho.
Uma lâmina. A lâmina de uma espada sem punho. E não apenas qualquer
lâmina. Quase não o reconheço por causa da falta de ferrugem até ver o
sangue escorrendo pelo centro, levando a um feixe de hera distintivo
esculpido no fundo.
A lâmina do meu pai. Uma réplica perfeita, nova e brilhante.
Mas quem iria? Apenas algumas pessoas sabem que minha espada
quebrou. Menos sabem o que parece de perto. Malachite.
Ele...?
Varia faz um barulho descontente por cima do meu ombro enquanto olha
para a lâmina. — Idiota.
Eu olho para ela. — Quem?
Ela engole mais do seu fresco yolshil, suspirando cansada. — Aço
prateado pendrônico. O mesmo material de que são feitas as espadas
cerimoniais d'Malvane.
d'Malvane. Isso significa... Lucien fez isso? Ele tinha visto a espada do
pai mais de uma vez, mas eu não tinha ideia de que ele prestara tanta atenção
a ela. Pego a lâmina, combinando-a hesitante com o punho enferrujado do
pai. Ver a espada inteira novamente, sentir seu peso exato em minhas mãos –
corro meus polegares sobre o punho, a lâmina. É tão familiar, reconfortante.
Nesta cidade onde sou o inimigo, de repente o ar não parece mais tão frio.
Enfio a lâmina e o iludo na caixa e viro para Varia.
— Amanhã de manhã estou ensinando a valkerax novamente, certo?
Ela assente, apertando o cinto de sua grande túnica de penas.
— Obviamente.
Eu assisto seu lindo rosto. Eu sei que ela sabe que fui ver Gavik hoje. Eu
poderia muito bem ficar limpo.
— Você sabe? — Pergunto. — Sobre o Hino da Floresta?
Varia sorri fracamente para o copo de yolshil cor de jade. — Como você
acha que eu encontrei a valkerax de estimação de Gavik no cano abaixo da
Torre do Rio Leste? Vasculhei cada centímetro desta cidade antes de morrer,
procurando maneiras de sair. Claro que sei da biblioteca do templo e do
pequeno hino deles.
— Ele me disse, — eu pressiono. — Sobre a Árvore dos Ossos e a Árvore
de Vidro.
Há uma batida, e por um momento eu juro que o único barulho é o som
dos três momentos se pondo sobre as sebes do jardim do lado de fora de suas
janelas.
Finalmente, Varia olha para mim, seu sorriso desapareceu, seus olhos
cansados. — Não se preocupe com o passado, Zera. O futuro é onde você
encontrará sua liberdade.
Com isso, ela se levanta, drena o copo e desaparece no quarto.
21

Sangue Dourado

O sol da manhã não perdoa, deslizando pelas janelas altas enquanto eu ando
pelos corredores do palácio até minha carruagem.
Nem a multidão está reunida nos grandes degraus da frente.
Ao ver Evlorasin em minha mente, tenho pouco cuidado com os nobres e
criados atados em um degrau de mármore até ver uma mulher desmaiar, suas
grandes saias ondulando enquanto ela solta um grito estrangulado em seu
lenço. Seus amigos se reúnem ao seu redor, sussurrando conforto e ajudando-
a a se levantar.
Com a ausência dela, posso ver o centro da multidão. Ali, de pé, com
roupas enegrecidas e meio chamuscadas, está um menino. Ele treme da
cabeça aos pés, algo agarrado em sua mão. A multidão oferece a ele um
cobertor para cobrir suas roupas arruinadas, para saciar a língua imóvel e
aliviar a exaustão manchada de suor. A pena preta arruinada em seu chapéu o
marca como o garoto estável de uma família nobre. Os sussurros da multidão
ressoam.
— Está tudo bem, jovem. Você está seguro agora.
— Ele realmente fugiu de Hardetting? São quase dezessete milhas!
— Alguém pegue os guardas!
Trico as sobrancelhas e olho mais atentamente para o garoto – seus olhos
estão tão cansados que parecem amortecidos, cheios de chumbo, como se ele
não pudesse ouvir as palavras ou ver a realidade ao seu redor. A única vez
que ele faz um movimento por sua própria vontade é quando alguém tenta
tocá-lo; ele recua instantaneamente, olhos brilhando com puro terror.
Um guarda de repente pede espaço e empurra a multidão, a armadura
brilhando ao sol. O guarda se ajoelha, com a voz baixa enquanto fala com o
garoto, que simplesmente o encara com aqueles olhos mortos. Depois de um
longo momento, o garoto é persuadido a abrir o punho bem fechado. Em seus
dedos, um símbolo de ouro cai em cascata.
Um olho banhado a ouro de Kavar.
Meus pulmões colapsam. Os sussurros são instantâneos.
— Essa não é uma daquelas decorações na carruagem de Tarroux?
— Por que ele trouxe aqui? Aconteceu alguma coisa?
O guarda tira os olhos do garoto cautelosamente e com uma expressão
sombria. A resposta do garoto é uma palavra, mais alta que o guarda, sua voz
embargada e rouca.
— Bruxa.
A multidão de repente se desfaz, pessoas tocando suas pálpebras e
invocando o nome de Kavar, outras ficando verdes nas bordas e mais do que
algumas cambaleando para trás.
— Bruxas? As bruxas os mataram?
— Eles foram embora ontem à noite. Isso não pode estar acontecendo!
— As estradas devem ser fortemente vigiadas!
— A guerra, oh Deus Novo, a guerra realmente chegou.
Minha garganta balança. Não. Lady Tarroux... Acabei de falar com ela
ontem. Horas atrás. A multidão está tão ocupada temendo a si mesma que
deixa um espaço entre eles apenas grande o suficiente para eu passar. Eu me
aproximo do garoto enquanto o guarda tenta tranquilizar a todos, manter a
paz.
— Por favor, acalme-se! Não temos informações...
— De quanto mais você precisa? — Alguém na multidão grita de volta.
— Olhe para as roupas dele! Olhe nos olhos!
Meus próprios olhos se voltam para os olhos de Kavar na mão do guarda,
o revestimento de ouro amassado, arranhado profundamente e violentamente.
O ouro é um metal macio – não é preciso muito para bater nele, mas o padrão
irregular dos arranhões é familiar. Eu já vi esses arranhões antes, mas na
carne. Muito pequeno para ser um gato selvagem. Grande demais para ser
lobo.
Marcas de garras Sem Coração.
O rosto pálido do garoto me encara e, agora, mais perto, finalmente
consigo discernir em sua mandíbula a fina rajada de sangue. Não é dele.
Alguém mais. Alguém a quem ele estava muito perto quando suas artérias
foram cortadas. Meu coração torce por alguém tão jovem passando por algo
tão traumático. Mas a preocupação queima nos meus lábios.
— Todos eles? — Eu pergunto, meu gelo quebrando. Os olhos verdes do
garoto do estábulo embaçam, mas tirar os olhos dele parece ter soltado um
pouco de seu choque nele. Ele está quieto, mas então, devagar e com grande
esforço, ele engole e assente.
Meus ouvidos zumbem com meus pensamentos enquanto afasto a madeira
do garoto, da multidão histérica.
Todos eles. Lady Ania Tarroux. Ela está morta.
Acabamos de falar no mesmo local em que estou agora, enquanto aponto
a carruagem para o Portão Sul. Eu a observei partir, seu cabelo loiro claro
brilhando em um monte de nada. Eu a vi corar quando eu trouxe Lucien. Sua
mão estava quente sob a minha.
Nada neste momento parece real. O calor do sol, o cheiro da grama fresca
– tudo muda para um nada monótono.
Eu disse a ela que a guerra terminaria. Eu disse a ela que voltaria logo e se
casaria com um Príncipe. Ela foi gentil. Ela era pura.
Mas a morte não se importa com nenhum deles.
Minha carruagem passa pelo Templo de Kavar, o grande símbolo de olho
de metal no topo da torre mais alta, pintando meu rosto nas sombras.
Essa guerra irracional entre bruxas e humanos – lutou por seus deuses, por
suas crenças, por suas diferenças – a matou. O ódio que começou com a
Árvore de Vidro – a lasca dentro da bolsa do meu coração lascou mais do que
apenas minha própria vida. Ela fragmentou Cavanos, firmado profundamente
abaixo e entre eles, por mil anos.
A religião a matou.
E ainda assim, ela a adorou.
Inclino a cabeça e coloco os dedos nos olhos como ela me mostrou. Rezo
como ela me mostrou, naquele dia do lado de fora do quarto de Lucien, nós
duas iluminados pelo sol atravessando as janelas, sorrindo uma para a outra
sobre uma bandeja de pão e frutas.
— Que seus olhos a observem, sempre.

Sou grata por estar de volta à arena sombria com Evlorasin.


Grata por voltar minha atenção para algo que não seja o desespero
entorpecido da morte. Eu sou grata para ver a valkerax – ouvi-la realmente –
viva e respirando normalmente. Não vejo a ruptura na parede da arena, mas
se o cheiro de serragem e metal fresco é alguma indicação, a equipe de Yorl o
consertou admiravelmente.
— As runas de beneather na parede também foram refeitas. — explica
Yorl.
— Tão rápido? Porra — eu fico maravilhada. — Como você faz tudo tão
rapidamente?
— Varia está despejando todos os recursos do reino neste laboratório. —
Ele franze a testa. — Somos capazes de contratar alguém e adquirir quase
tudo.
— Exceto, você sabe, um professor para chorar. — Eu dou uma baforada
no peito.
— Sim — Yorl diz. — Você certamente é o recurso importado mais raro
aqui.
Ele me entrega a espada branca de mercúrio, o cabo distinto cutucando
meus dedos, e eu a levo devagar. — Não acho que o Evlorasin esteja pronto
para isso — admito. — Especialmente depois da fuga.
— Ordens da Varia. — diz Yorl simplesmente. — Temos que cortá-lo
hoje.
— Mas... — eu começo. — Está muito fraco agora, não é? Está
machucado – Malachite estava balançando sua espinha com toda a sua
espada. Precisa ser tão saudável quanto...
— Sua saúde só vai diminuir — insiste Yorl. — Eu deixei isso claro.
— Não podemos esperar? — Eu deixo escapar. — Apenas dê outro dia ou
dois para curar, e para praticarmos o silêncio juntos... prometo que será
melhor do que forçá-lo a...
— Eu sei. — ele admite, um tom mais suave em sua voz. — Eu também
gostaria que você e a valkerax estivessem totalmente preparadas. Mas as
ordens são claras. Progresso deve ser feito. E rapidamente. Nosso tempo está
passando muito mais rápido, muito mais curto do que o previsto.
Eu expiro, ansiedade vibrando minhas mãos. — Isso é por causa de
Lucien? Varia realmente tem tanto medo dele? Ele não sabe muito...
Eu congelo, minhas palavras cristalizando em suas trilhas como eu me
lembro de ontem. Ele sabe sobre Weep. E estou convencido de que a sombra
ouvindo Gavik e eu era ele. Ele sabe muito mais do que eu jamais pensei ser
possível.
— Venha — Yorl exige. — Não temos tempo para poupar o pensamento.
Eu resmungo. — Nunca pensei que fosse ouvir isso de você, mestre
Polímata.
— Parece que adquiri seu hábito curioso. — admite Yorl. — De pular
primeiro e refletir depois. Não é a melhor estratégia, mas você me mostrou
que às vezes pode ser eficaz.
Eu zombo, minha ansiedade diminuída apenas por um grão de orgulho.
Evlorasin está bem acordado quando Yorl e eu entramos na arena, a cauda
batendo tão violentamente que sinto uma pequena pedra sacudida do teto
arrancar do meu crânio.
— Lobo faminto — diz, a voz de alguma maneira mais rouca do que antes.
Mais fraca. Está sob uma carga de caravanas de misturas de analgésicos, mas
ainda sofre com os ferimentos, apesar de Yorl insistir em corrigi-las.
— Bom dia, Ev. — eu aceno, talvez na direção errada. — Sentindo-se
melhor?
O valkerax faz uma pausa, então. — Ev?
— Sim. Decidi lhe dar um apelido.
— Nome de apelido? — Eu ouço a goleada confusa de sua cauda
novamente, sentir o ar deslocado por ele dizimar o meu penteado Eu trabalhei
tão duro esta manhã.
— É um nome mais curto que você dá a alguém que você gosta. Alguém
que está perto de você. E considerando que eu vi sua garganta em detalhes
perfeitos, eu diria que estamos bem próximos neste momento.
— Somos um rio de arrependimento depois das chuvas.
— admite. — Transbordando. Lamentamos a morte de muitos. Nós
tivemos que correr.
Sinto um calor enorme perto de mim e estendo a mão cegamente, minha
mão voltando ao quadril de Evlorasin.
— Eu sei. Às vezes, também sinto vontade de correr. — Puxo a espada de
mercúrio branca de Varia do meu quadril. Eu corro meus dedos sobre a alça
delicadamente tecida da cesta. — Mas está quase no fim. Hoje, vamos cortar
você com o mercúrio branco de que falei.
— A lâmina de metal na garganta da música! Esperamos eternamente! —
A voz de Evlorasin soa ansioso, e de repente ele mal consegue ficar parado,
enrolando em torno de mim em vários loops.
Eu rio – é quase fofo. Mas minha alegria é curta, pois me lembro
exatamente de como ela se agitou no túnel, a boca aberta e pronta para
devorar o que parecia ser o mundo inteiro.
Evlorasin já é instável o suficiente – as feridas que Yorl causou nela, as
feridas que Malachite e eu causamos nela e sua força minguante a cada dia
que fica longe do Escuro Abaixo – todo Evlorasin é mantido pelas misturas
de Yorl e as partes que ele tirou da valkerax e jogou no escuro abaixo para
diminuir sua loucura. Se enfraquecermos ainda mais o domínio da Árvore
dos Ossos na valkerax, não há como dizer o que vai acontecer, como as
coisas desesperadas e terríveis podem se tornar. Poderia correr um pouco
mais rápido e mais furioso do que antes, e eu ficaria sem nada. Varia está nos
pressionando demais, de repente.
É um risco. Um risco para o meu coração.
— Escute, Ev. — eu começo. — Você tem que lembrar o que eu te
mostrei...
— O silêncio. É vital. — interroga Evlorasin. — A música vai crescendo
desde os picos das montanhas dentro de nós, e devemos ecoá-la em perfeita
quietude. Há pedra, e também devemos ser pedra. Esta história é entendida.
Concordo, mudando para segurar a lâmina branca de mercúrio em um
ângulo longe de mim. Uma massa pesada empurra contra meu corpo
abruptamente – a suavidade do pêlo e a suavidade das escamas. Eu sinto ao
redor – é o peito de Evlorasin, subindo e descendo rapidamente com sua
respiração excitada.
— A música não vai mais nos implorar. — diz. — Voaremos acima da
escuridão, como não fizemos por muitas luas. Vamos espalhar nosso orgulho
no céu azul.
Eu posso ouvir suas enormes garras estalando enquanto pisam na terra
com antecipação incontida.
— Vamos voar — diz. — Abaixo do sol e das luas. Sentiremos os
sussurros soprando e conheceremos a cor da luz novamente.
Eu aliso minha mão pelo pescoço, sentindo o sangue vibrar sob as
escamas mais finas da garganta. A respiração rançosa de Evlorasin toma
conta de mim enquanto seu nariz aveludado cutuca meu cotovelo.
— Nossos pneus estão cansados de cantar. Não podemos esperar mais. É
necessário um corte.
— Você tem que ficar em silêncio! — eu repreemdo. — Lembra? Se você
se envolver demais com suas emoções, tudo desmoronará.
Isso aconteceu comigo na clareira há muitos meses atrás – no momento
em que repousava no rosto aterrorizado de Lucien, no que eu havia feito, e
não no que tinha que fazer, fiquei em pedaços.
— Chorar é controlar — diz Evlorasin. — Excitação não é controle.
— Exatamente.
De repente, o portão se abre. Eu começo – apenas Yorl e eu somos
autorizados a entrar aqui, e os guardas estão todos petrificados com a
valkerax. Então, quem em sã consciência se atreveria a entrar?
Um ponto de luz brota contra a escuridão, um brilho roxo pálido apertado
em uma mão vestida. O musgo acima do muro que eu acordo quase sempre –
é o mesmo aglomerado. A luz revela uma pessoa alta em uma túnica. Eles
sustentam o musgo, avançando na escuridão e em direção à valkerax e a mim
sem hesitação.
— Quem é...
— Varia — ouço Yorl dizer trêmulo. — Você não me informou que
estava vindo.
— Eu não sou obrigada a informá-lo de tudo, Yorl, apenas a maioria das
coisas. — A voz de Varia ecoa calmamente pela arena. A Princesa Herdeira
para em frente à valkerax, nem um centímetro de medo em sua postura real.
A grande serpente branca estremece de volta ao brilho nebuloso do musgo.
É a primeira vez que vejo a valkerax parada e acesa – a luz do musgo
brilhando sobre sua gigantesca cabeça de lobo mais brilhante e ficando mais
escura no pescoço serpentino traçado por sua espessa juba branca. Os dois
aparentemente infinitos batedores de Evlorasin ondulam como rios suaves,
suas presas serrilhadas e beliscando seus lábios. Suas escamas são
endurecidas pela batalha, cicatrizadas e amassadas com mil anos – mais? –
digno de vida. Com a luz do musgo, eu posso até ver cílios grossos e brancos,
como os de um veado, ao redor de seus cinco olhos de lua pálida, está
machucado o sexto encaixe, ferido e marcado.
Varia olha para mim, a escuridão em seu capuz fazendo sua expressão
ilegível. — Você traduzirá o seguinte para mim, Zera.
Eu começo, limpando minha garganta. — Tudo bem.
A Princesa de Cavanos olha de volta para a valkerax e começa, minha
boca movendo uma batida atrás da dela.
— Evlorasin — diz Varia. — Eu sou a Filha Risonha.
— Sim. — Evlorasin balança a cabeça. — Nós sabemos disso.
Repito suas palavras, minha própria voz parecendo algo pequena de
repente.
— Eu fiz isso. — Varia diz, gesticulando na arena. — Eu orquestrei tudo
isso para libertar você.
Vejo Evlorasin enrolar os lábios sobre os dentes, mas não diz nada.
— Você vai chorar — Varia continua. — E você vai me dizer onde está a
Árvore dos Ossos.
— A Árvore dos Ossos. — Evlorasin assobia. — Grandes galhos cantando
em muitos lugares ao mesmo tempo. As raízes de todo mal. O começo do fim
para os velhos vetrisianos.
O começo do fim. Eu sei o que isso significa com isso agora.
— Sim — Varia diz, a impaciência rastejando levemente em sua voz. —
Quando a música for monótona, você me dirá de onde vem. Eu terei a árvore.
Pela primeira vez, ouço Evlorasin explodir em resposta. É uma explosão,
com certeza – um ar estridente e violento saindo de sua boca, seus lábios
curvados para trás e mostrando todas as suas múltiplas fileiras de dentes
afiados. Sua língua sai da boca, longa e bifurcada, e faz um movimento
ofegante. Risos.
— A Filha Risonha não sabe o que quer.
— Isso não é da sua conta! — Varia rosna no momento em que traduzo a
frase. — Eu sei o que isso significa. Eu sei o que será preciso. E eu estou
disposta.
— Os outros carrilhões estavam igualmente dispostos. — Risos de
Evlorasin, baba formando uma poça no chão de sua língua. — Eles soltaram
barulhos tão doces antes de dormirem o último.
— Não é seu lugar determinar do que eu sou capaz, fera. — A voz de
Varia fica quieta novamente, cada centímetro apoiado em aço.
– Você vai me dizer onde fica a Árvore dos Ossos, ou você não será
cortado hoje. E você nunca chorará. Você vai me dar uma promessa de
sangue...
— A Filha Risonha invoca caminhos que há muito se perdem na
escuridão. — Evlorasin fecha a boca, finalmente, clicar em suas garras como
ela circula Varia ameaçadoramente com a sua massa titânica. — Somos nós
que rimos dela.
Evlorasin para de circundá-la e passa a se enrolar ao redor e atrás de mim,
colocando a cabeça nas patas bem aos meus pés, seus cinco olhos piscando
preguiçosamente para Varia enquanto ela se instala como um cão diante do
fogo do inverno.
— VOCÊS estão morrendo de fome e ela está rindo — Evlorasin diz para
mim. — Por que você a ajuda a procurar a Árvore?
A vergonha queima quente em minhas brânquias, e eu mantenho meus
olhos longe dos de Varia enquanto digo: — Ela me prometeu meu coração.
Evlorasin está quieta, assim como Varia, observando nós dois
bruscamente com seus olhos de obsidiana, como se ela estivesse tensa,
esperando que algo acontecesse.
— Ah. É por isso que você é o lobo faminto. — O valkerax finalmente
exala um sopro de ar lento aos meus pés. — Porque sua fome consumirá o
mundo.
— Diga. — Varia aponta para o meu eu confuso de repente, seu dedo de
madeira brilhando forte à luz do musgo. — Diga que eu não vou permitir...
De repente, a valkerax explode perto de mim, lânguida por um momento e
pulando para a frente num piscar de olhos, boca aberta e dentes à mostra em
Varia. Yorl grita e eu me arremesso em direção a ela (não ela, se ela morrer,
eu morro), mas há um flash de luz negra e o cheiro de pêlo chamuscado.
Acontece tão rápido que mal vejo, mas Evlorasin está cambaleando para trás,
arrancando o cigarro e choramingando. Varia está ofegando, seu roupão
arfando enquanto a escuridão vazia que antecede o lançamento de feitiços
para bruxas desaparece de seus olhos e da pele de suas mãos.
— Seus deuses o despedaçaram. — Evlorasin assobia entre as patas. — A
Árvore rasgou um deus em dois, e você não os tornará inteiros novamente,
agarrando seus galhos.
Suas divagações não são mais bobagens. A Árvore dividiu um deus em
dois. Evlorasin significa o Deus Antigo e o Novo. Sabe que a invenção das
Árvores foi o que provocou o velho Vetris, exatamente como eu.
Varia grita comigo, com o cabelo despenteado e os olhos ardendo
furiosamente. — Traduzir! Agora!
Sim, mas a expressão dela não muda nem um pouco, sua raiva brilhando.
Sua boca se move sucintamente, suas palavras cortadas.
— Você vai me dizer se a Árvore dos Ossos é, fera. E eu lhe darei sua
mente sem nuvens. Esta é a promessa de sangue. Se você recusar, você
morrerá.
Meu estômago se contrai com o pensamento de matar Evlorasin depois de
tudo o que passamos. Por favor aceite, eu imploro silenciosamente. Por favor
diga sim.
O rosto de Evlorasin desaparece do musgo em um instante, uma massa
ondulante de branco, tudo o que posso ver enquanto a valkerax gira em torno
de si como uma cobra, repetidas vezes, as bobinas nevadas se apertando,
afrouxando e apertando novamente.
Agarro a espada de mercúrio branco, esperando que ele atinja Varia mais
uma vez. O barulho longo e contínuo de escamas sobre a terra e, de repente, a
boca de Evlorasin retorna à luz, volta a pairar bem na frente de Varia, os
cinco olhos piscando rapidamente para ela em momentos diferentes.
— Haverá uma guerra.
— Sempre há uma guerra. — a Princesa Herdeira afirma, sua voz
ecoando na escuridão.
O ar fica mais denso do que nunca, poeira e o cheiro de fumaça flutuando
entre nós. Ninguém ousa se mexer; Mal ouso respirar.
— A vida é um jardim que deve florescer, — evlorasin assobia, então: —
E nós regaremos seu solo.
Mal pego as palavras traduzidas antes que meus ouvidos comecem a
tocar, meus dedos esfriam e a luz do musgo escurece quando meus olhos – e
todas as outras partes de mim – morrem.

Yorl não vai me contar o que aconteceu depois que eu morri, mas posso
adivinhar pela expressão dele quando volto ao mundo dos vivos novamente:
Varia não está satisfeita.
— É estranho. — eu penso. — Ela estava tão confiante sobre tudo isso no
começo. Ela nunca desceu e exigiu promessas da valkerax antes. Então
porque agora? Ela realmente se importava com o terremoto?
Yorl ajusta os óculos mais alto no nariz, rabiscando em seu pergaminho
sem dizer uma palavra.
— Yorl — eu pressiono. — Vamos lá. Eu salvei seu rabo muitas vezes
para você me ignorar assim. Deve haver uma razão para que ela de repente
fique ansiosa.
Seus enormes olhos verdes estreitos, orelhas achatadas. Ele abaixa a voz e
finalmente se inclina. — Percebemos que pode haver um vazamento em
nossa unidade.
Eu engulo. — Tipo, um espião?
— Alguém está vazando informações. — ele corrige com tato.
— Ok, sim, eu admito; Eu tive que dizer a Malachite que havia uma
valkerax...
— Não é esse tipo de informação — interrompe Yorl. — Mais detalhado
do que apenas a existência de uma valkerax abaixo do Portão Sul.
Mais detalhado? Prendo meus lábios antes de começar: — Para quem eles
estão vazando informações ?
Yorl não encontra meu olhar, mas ele cheira e enrola seu pergaminho
acabado. — Não temos certeza. Mas estamos tão perto de ter a valkerax
chorando, que pouco importa. Se nos movermos com pressa, esse incômodo
se tornará inexistente. É por isso que Varia está nos mostrando isso.
Ele está sendo evasivo. — Eu ajudei você a trazer Ev de volta, Yorl! —
Eu bato meu pé. — Eu acho que mereço um pouco mais do que um aceno de
mão! Onda de pata. Tanto faz!
O célebre cutuca os óculos no nariz. — Temos um trabalho a fazer. Varia
quer que cortemos a valkerax hoje e terminemos com isso.
Quando ele me passa um segundo frasco, ele se levanta e se dirige para o
portão. Olho para o frasco transparente na palma da mão, a luz do musgo da
parede refletindo no líquido como uma violeta doentia. Yorl está sendo
evasivo. Ele acha que… eles pensam que eu poderia ser um dos possíveis
vazamentos, não é? Eu seria evasiva com a pessoa que pensei que fosse um
vazamento também. Mas eu não contei nada a ninguém. Fui fiel à minha
palavra – todos os meus comandos – com e contra minha própria vontade. Eu
fiquei forte, mesmo quando Lucien, Fione e Malachite estavam me
questionando.
Sim, Lucien de alguma forma sabia sobre o choro, mas ele não descobriu
isso de mim. Eu nunca disse uma única palavra sobre isso em voz alta. Contei
a Fione sobre a valkerax, mas não sobre o que estávamos fazendo aqui em
baixo. Eu tenho Lucien na página do diário, mas isso foi depois que ele já
sabia sobre o Hino da Floresta e, portanto, sobre a Árvore dos Ossos.
Ninguém sabe que Varia está me fazendo ensinar a valkerax a chorar
especificamente para encontrá-la. Ninguém.
Levanto-me devagar, puxando a espada branca de mercúrio do chão onde
Yorl a colocou ao meu lado.
Os outros carrilhões estavam igualmente dispostos. As palavras de
Evlorasin giram na minha cabeça. Estou me chutando agora por não
perguntar a Varia o que isso significava, mas se ela acha que eu sou um
vazamento, não há como ela me dizer. Sou simultaneamente o cerne da
operação dela e uma ameaça em potencial, mesmo que ainda não entenda
como.
Yorl ordena que o portão seja aberto e nós nos escondemos. A respiração
pesada de Evlorasin é audível no segundo em que entramos, e sua respiração
rançosa anuncia sua abordagem. Minhas mãos estão tremendo em torno da
espada de mercúrio branco e sinto tonturas.
Minha pele formiga quente com o calor de Evlorasin atrás de mim, e eu
me viro para ele.
— Onde você quer o corte? — Pergunto. — Deveria ser em algum lugar
que penetre facilmente na corrente sanguínea. — A garganta do rio é a parte
mais fraca, — diz Evlorasin. — Onde a terra e a água se misturam.
Sinto-me cegamente, Evlorasin me guiando com o empurrão ocasional de
um bigode ondulado nas minhas costas. Apalpei a pele da garganta – muito
mais fina e mais lisa que suas escamas.
— Evlorasin precisará comer muito mais vezes — eu anuncio para a
escuridão, para Yorl. — E se perder completamente o controle...
— Temos falhas no lugar. — Yorl me interrompe. Falhas. Ele quer
maneiras de matá-lo se tudo der errado.
— Vamos controlar a música. — Evlorasin insiste, como se estivesse me
tranquilizando. Eu estou quieta, meus pensamentos altos o suficiente para nós
dois.
Evlorasin não está pronta. Eu não estou preparada. Mas temos que estar.
Coloco uma mão no peito da valkerax, segurando a lâmina ali.
Depois de fazer isso, Evlorasin pode chorar e pode dar a A Árvore dos
Ossos para Varia. Ela controlará todo o valkerax no Escuro Abaixo. O livro
que Lucien me deu – suas fotos passam através dos meus olhos, milhares de
esqueletos, carbonizados. Não haverá volta.
Estou apenas enviando Ev para um novo e horrível mestre?
Estou apenas enviando Varia à morte que ela parece querer tanto ?
— O lobo faminto está triste, — Evlorasin murmura. — Não chore. Carne
sempre encontrará osso. — Quando eu não disse nada, ele sussurra. —
Quando estamos chorando, gosto de nosso sangue vivo.
Isso me tira da minha cabeça e eu pisco. — Por quê?
— Você nos deu um 'apelido'. Nós lhe daremos a promessa de sangue.
Não o daremos à Filha Risonha. Ela não é a chuva para a nossa seca. Mas
você, Lobo faminto, provou nossa seca, nossa escuridão. Em você, a
promessa de sangue permanecerá verdadeira.
Varia falou sobre uma promessa de sangue e esse foi o ponto de discórdia
deles antes, mas ainda não sei o que é ou o que significa. Parece importante.
— Você deveria dar a Varia — eu insisto. — Ela é quem...
As faces de Evlorasin se chocam umas contra as outras. — É o lobo
faminto ou nada.
Eu inspiro, afiada. Eu não posso ter nada. Quão ruim pode ser?
É só um pouco de sangue – não vai me matar. Nada pode me matar.
Faço um aceno lento e inquieto, e Evlorasin parece relaxar, o
desbotamento estridente.
— Comece, Zera. — ouço Yorl dizer. — Nós estamos prontos.
22

O Fim da Música

Eu me preparo contra a valkerax e pressiono, com uma lâmina branca


primeiro, a pele de Evlorasin. Sinto as escamas mais finas e flexíveis se
separarem sob a espada enquanto ela se move. A valkerax não solta um
gemido, permanecendo forte enquanto o metal corta sua carne. Algo tão
pequeno deve ser como uma picada de mosca para algo tão grande. O calor
escorre pelo meu pulso e, quando me afasto, a voz de Evlorasin retumba.
— Agora estamos prometidos. Sentimos um tremor na terra antes que ele
chegue. — Há uma pausa. — A música está se tornando mais alta e mais
forte.
— Você não pode deixar isso sobrecarregar você. — Eu me agarro à crina
de Evlorasin, como se eu tivesse algum controle sobre a enorme serpente. —
Eles vão te dar muita comida, e isso ajuda, mas você precisa praticar. Agora,
antes que fique muito alto. Você é do silêncio.
— Estamos no silêncio. — A valkerax termina as palavras que já
praticamos. Há um rosnado profundo na garganta que emerge das
profundezas, fraco e só fica mais forte.
— Foco! — Eu apoio. — Apenas a escuridão, nada mais. Sem
pensamentos, sem sentimentos, apenas o silêncio.
— Silêncio. — A valkerax vibra suas presas estranhamente novamente,
respirando crescente dificuldade. De repente, sou empurrada por trás por uma
espiral maciça de algo - sua cauda? Caio no chão, minhas costelas gritando
de agonia. Eu posso ouvir Evlorasin logo acima de mim, ofegando.
— Fome. — A valkerax rosna. — Anseia por tudo neste mundo!
— Você tem que lutar contra isso! — Eu grito, cada palavra tirando o
fôlego dos meus pulmões doloridos novamente.
— Zera! — Eu ouço Yorl gritar. — Está indo para o portão! Você precisa
parar com isso, ou eu terei que...
— Você quer ser livre, não é? — Grito para Evlorasin, levantando-me e
cambaleando pela arena para onde eu posso ouvi-la se mover. — Você não
pode deixar a música vencer! Você é o silêncio!
— É... tão alto. — rosna Evlorasin, e um terremoto repentino me deixa de
joelhos quando a valkerax se joga contra o portão, balança encontrando metal
em um poderoso impacto. Outro terremoto, e o portão de metal dá um grito
poderoso.
— Vai quebrar! — Yorl chama freneticamente. — Pronto a lance!
Não – não, eles não podem matá-lo.
Eu me arrasto para frente, seguindo o cheiro de coisas podres e me
jogando no corpo da valkerax. Pego a perna de trás, agarrando-me ao
tornozelo enquanto ele se move - dando um passo para trás, como se
estivesse me preparando para bater o portão novamente.
Minha mente pisca; o que me parou? De volta à clareira, o que eu estava
pensando pouco antes de chorar pela primeira vez? Eu tive que proteger
Lucien. Essa é a única coisa que eu queria. Tudo se resumia a uma coisa, um
momento; aquele que eu mais queria do que qualquer coisa no mundo.
— Evlorasin! Você quer voar! — Eu grito. A perna de trás para de se
mover e eu solto: — Acima do Escuro Abaixo, no céu! Mas você precisa ficar
em silêncio!
A perna de trás gira de repente, meu cérebro subindo no meu pescoço
enquanto o momento quase me lança. Eu cavo com minhas garras e seguro
firme.
Nós não somos a fome.
Eu sou tudo que você tem,
a voz sombria fervilha.
— A música só quer consumir! — Meus gritos estão roucos agora. — Ele
quer que você o alimente, se concentre nele, fique obcecado com isso! Mas
não é você! O verdadeiro que você quer voar!
— Dói. — Evlorasin rouca. — A música é o oceano na maré cheia e dói.
Nos machucará infinitamente se ficarmos em silêncio!
Dúvida. Medo. Ameaças. A fome está tentando arrastar até esse animal
majestoso para o fundo.
— Você pode ver as árvores novamente, e – e a cor do pôr do sol, e sentir
o vento em seu rosto! É isso que você quer, não é? Mais do que nada? Você
me disse! Você me disse que é isso que você quer!
Os tensos das pernas traseiras, os músculos titânicos condensando-se para
um salto para a frente, uma estocada que certamente perfurará o portão como
uma flecha no pergaminho.
— Nós somos... do silêncio. — Evlorasin arfa, soando cada centímetro
como se estivesse lutando com um peso de ferro no peito.
— Você está no silêncio! — Eu encorajo. — Você está no controle. Você
não é a música! Você é Evlorasin!
— A música... não somos nós. — Uma pausa e, em seguida, uma frase
estrangulada. — Está indo… é possível?
— Sim! — Eu grito na escuridão. — Ir é possível!
Eu me agarro ao traseiro de Evlorasin, por exemplo, orando.
Deus antigo, Deus novo, Deus ou não Deus – ajude este. Ajude-nos.
De repente, há um movimento, a perna traseira avançando quando o som
de algo enorme cortando o ar segue. Luz branca. Eu posso ver uma luz
branca brilhando fracamente por trás do meu ombro. Como se eu fosse uma
marionete enferrujada, viro minha cabeça para olhar.
Lá, a centímetros do meu rosto, há cinco olhos brancos fixos em mim.
Cinco olhos brancos, cada um maior que minha cabeça e cada um brilhando
fracamente, as veias cinza e aranha. E na penumbra que eles emitem, eu
posso ver os rios abaixo de cada olho. Cinco rios de sangue, caindo e se
curvando um ao outro enquanto serpenteiam pelo rosto escamado da
valkerax.
Evlorasin está chorando.
— Lobo faminto. — Sua voz ecoa calmamente, nenhum dos assobios
rosnados aos quais me acostumei. A voz é suave e uniforme, clara em suas
reverberações em forma de sino e quase musical. — Eu estou livre.
Não nós, como sempre diz, não nós. Eu.
Lágrimas esquentam nos meus olhos, e a onda de alívio é tão intensa que
eu rio. Está chorando. Toda a dor, toda a morte, toda a tristeza – acabou.
Evlorasin consegue Chorar, e isso significa que estou livre. Isso significa que
meu coração é meu novamente.
— Ev. — eu respiro. — Você fez isso.
De repente, a escuridão na arena evapora, substituída por um brilho etéreo
no arco-íris que preenche a sala. Meus olhos se ajustam e eu admiro a luz
brilhando em fitas enquanto ela serpenteia através da arena de pedra. Ele
paira como uma névoa boreal, iluminando suavemente tudo – o rosto
atordoado de Yorl, o portão amassado, um enorme mecanismo de ponta de
lança embutido no teto pronto para nos empurrar, os horrorosos guardas
beneathers empoleirados nos mais altos lugares da arena, arcos e sedativos
flechas com ponta começando a cair para os lados.
Minha respiração pára quando percebo que a luz está irradiando da
própria Evlorasin, concentrada em sua grande juba branca de penas agora em
pé, como uma auréola branca brilhante em torno de seu rosto. Eu posso ver o
comprimento da valkerax corretamente agora, em toda a sua glória – por
tanto tempo que pudesse circular o Templo de Kavar, tão forte e poderoso
que poderia quebrar qualquer ser humano em dois com um único golpe. É o
poder encarnado – a beleza encarnada.
Garras grossas como lâminas de alabardas rasparam o chão enquanto ele
olha para mim. — Beba do meu sangue. Eu lhe dou esse presente para que o
Lobo nunca mais fique sozinho novamente.
Abalada, eu me forço a piscar novamente, me mover novamente. As
palavras são carinhosas e macabras, e a valkerax acena com a cabeça em
direção à lâmina branca de mercúrio na minha mão. Eu levanto meu dedo
timidamente para a espada, enxugando meus dedos no sangue e depois nos
meus lábios. Cheira a ácido e mel ao mesmo tempo. Eu tento na minha língua
e cheira a latão e sal descendo – muito mais forte do que os soros que Yorl
me deu. Os longos bigodes de Evlorasin agitam o ar no que penso ser
felicidade.
— Eu sou você. — diz Evlorasin. — Cantamos o mesmo e choramos o
mesmo. Meu sangue é seu sangue. Isso nunca é um adeus.
O repentino entorpecimento da morte do soro rasteja em minhas pernas e
braços enquanto sorrio mais largo e sussurro: — Nunca desista.
A dormência força meu aperto a se retrair, e caio da espessa perna traseira
de Ev, caindo de costas no chão da arena, com a poeira flutuando ao meu
redor. Eu posso ouvir Yorl gritando fracamente, meus olhos começando a
falhar e borrando incontrolavelmente. Com um pesado sopro de ar no ouvido,
algo acima de mim – longo e branco e brilhando como um cristal refrescante
da luz do arco-íris – começa a subir no teto da arena.
Gritando. O som de pedra estalando estrondosamente e metal batendo. E
então, escuridão.

Eu acordo com um subterrâneo iluminado – no mesmo saco de dormir que eu


sempre faço. As lâmpadas a óleo estão acesas novamente, o subsolo todo
bem visível. Yorl está sentado ao meu lado, a cauda enrolada nos pés e me
olhando como um falcão. Atrás dele, os guardas célebres passam enormes
pedaços de pedra um para o outro, uma corrente trabalhando metodicamente
para limpar a arena desabada. Meu corpo está um pouco empoeirado, mas
inteiro, curado.
Eu me inclino contra a parede. Yorl começa, suas patas me ajudando a
levantar, enquanto suas sobrancelhas franzem.
— Escapou. — ele diz, um tom de maravilha em sua voz. — Mas você...
eu vi você lamber o sangue dele. Ofereceu a você a promessa de sangue, não
é?
— Eu não… — Eu massageio minha testa latejante. — Eu nem sei o que
é isso.
— Onde fica a árvore dos ossos? — Yorl pergunta.
A árvore? Como devo saber onde fica? Eu não sou o valkerax.
Estou prestes a rir na cara dele quando o latejar na minha testa se
transforma repentinamente em uma dor trêmula, como um sino gigantesco
tocou uma vez, mas depois se apaga, e consigo ver algo em minha mente –
em minhas memórias. Não é uma novidade. É um pensamento que parece
que sempre esteve aqui na minha cabeça.
Uma curva enorme e plácida em um rio comprido, uma selva densa de
palmeiras verdejantes e árvores de madeira macia pesadas com frutas
douradas. Em uma pedra ensolarada junto ao rio rangem os galhos de uma
árvore branca e brilhante.
A árvore dos ossos.
É constituída por milhares de comprimentos suaves e branqueados, o
tronco formado por ossos gigantes entrelaçados de todas as formas –
articulações, ossos longos das pernas, maxilares que se encaixam
perfeitamente um no outro como um quebra-cabeça.
Ela continua subindo e subindo, brilhando como neve sob o sol alto.
Suas raízes ósseas caem sobre a rocha em que se assenta, ondulando
suavemente com uma vida própria. Os galhos salgueiros são altos e se
projetam em todas as direções do tronco, como cordas soltas e caídas, feitas
de enormes vértebras, canelas e nas extremidades de cada galho – como uma
fruta demente – um osso de dedo de valkerax, com a ponta de um garra
gigante e perversa que balança na brisa.
Não é apenas o que eu posso ver. Eu estou lá. Eu lembro – eu sei disso.
Eu sinto que sempre soube disso.
Eu posso sentir o calor do sol no meu rosto, o ar úmido na minha pele, os
gritos dos animais chorando quando eles emanam da selva próxima. E eu
conheço a árvore. Eu entendo sua intenção. Vai ficar aqui até o sol chegar ao
meio-dia e depois desaparecer.
Esta é a Árvore dos Ossos. E eu sei onde é.
Minha boca se abre para dizer a Yorl, seus grandes olhos esmeralda
esperando. Seus bigodes vibram com antecipação – o culminar de todos os
seus esforços descansando comigo.
Eu poderia mentir. Eu poderia. Isso pouparia Varia – a menos que ela
pudesse me mandar contar. Isso poderia poupar a morte de Varia e a dor
futura de Lucien e Fione. Poderia poupar a agitação política drástica que o
mundo está prestes a experimentar nas mãos de Varia e seu exército de
valkerax.
Mas mentir não parava a guerra. Manter a Árvore dos Ossos na minha
cabeça não iria manter Crav, Peligli, e Nightsinger em segurança; não
colocaria Y'shennria ou os milhões de pessoas de Cavanos – humanos e
bruxas – fora de perigo.
E isso não me traria meu coração de volta.
Mentir não me traria mãe e pai, nem minha humanidade, de volta.
— Há uma selva densa, quente e úmida. — digo finalmente. — Dez
extensões ao leste da maior curva de um rio comprido. Está sentada em uma
pedra. Esperando. Esperando até o meio dia.
Yorl se recosta na parede, seu rosto felino iluminado pela luz do musgo
por fora e com facilidade por dentro. Eu o vejo sorrir. Sorrir,
verdadeiramente, pela primeira vez.
Ele coloca a pata nos olhos e massageia-os cansadamente. — Está feito.
— ele sussurra, parecendo exausto. — Avô... eu fiz. Está feito.
— Por que… — Estendo a mão para Yorl e agarro seu ombro.
— O que é isso? O que Ev fez comigo?
Yorl não diz nada, seu corpo mole e macio. Eu o sacudo.
— Yorl! Yorl diga-me, maldito seja!
Ele olha para mim lentamente, seus olhos verdes se abrindo. Eu nunca o
vi tão relaxado, tão suave. Ele sempre tinha um pouco de metal na bunda,
mas agora...
— Os valkerax sabem onde fica a Árvore dos Ossos o tempo todo. — diz
Yorl.
— Eu sei disso! — Eu falo. — Varia deveria – ela deveria perguntar à
valkerax sã – a valkerax chorou, então como eu...
— As valkerax, antes de serem acorrentadas pelos velhos vetrisianos, não
se comunicavam com palavras como nós — diz Yorl suavemente. — mas
com sangue. A mistura que te dei, que foi derivada do sangue de valkerax.
Você bebeu; isso permite que você entenda o Evlorasin. E então isso te
matou.
— Eu sei disso — eu começo. — Malachite me disse...
O célebre me interrompe, não bruscamente como de costume, mas com
paciência. — Isso é o que a ingestão de sangue que foi retirada de má
vontade de uma valkerax fará a um mortal.
Eu engulo o que parece agulhas. — De má vontade?
— Mas quando uma valkerax dá seu sangue por vontade própria… —
Yorl faz uma pausa. — Isso é chamado de promessa de sangue. Nós
chamaríamos isso de conversa. Mas para uma valkerax, é um pacto – entre a
valkerax e a quem está sendo dado o sangue – para se comunicar de maneira
aberta e confiante. Mas desde a época do Velho Vetris, nenhuma valkerax foi
capaz de fazer uma promessa de sangue, nem mesmo entre si. Suas mentes
estão muito submersas na loucura da Árvore dos Ossos para voluntariamente,
claramente escolherem dar o seu sangue. É por isso que Varia e eu
precisamos de você.
Eu afundo no chão, incrédula. A fria clareza que senti na clareira
enquanto matava todos aqueles homens e Gavik – o Choro me deu isso. Deu
para Evlorasin também. E agora eu – agora eu posso – se eu pensar na Árvore
dos Ossos, a imagem floresce brilhante e direto no meu cérebro. Eu sei onde
é.
Eu fiz isso. Meu coração está esperando.
— Envie um watertell para Varia, então! — Eu falo. — Temos que nos
mudar. Só estará lá até o meio dia!
A risada de Yorl – uma risada dele – é repleta de um ressoar parecido
com um ronronar. Seus bigodes se contraem com um sorriso que ele está se
esforçando para não mostrar em seu rosto.
— É compreensível que você ache que as conversas sobre valkerax
terminam. Afinal, as conversas mortais terminam.
Eu começo. — O que? O que você…?
— É chamado de promessa de sangue, Zera. — ele diz. — Não é um
momento de sangue.
Eu pulo de pé e o alcanço novamente, desta vez determinada a tirar
informações de sua bunda intencionalmente enigmática, mas ele me
interrompe com outra risada, seus olhos esmeralda olhando para o teto.
— Você sabe onde está a Árvore dos Ossos. Você sempre saberá. Agora e
sempre. Até o momento em que seu corpo humano morre pela última vez.
23

A Promessa
de Sangue

Meus joelhos fazem o possível para virar gelatina, mas eu os mantenho


fortes. Concentro meus olhos na linha da guarda real dos célebres enquanto
eles passam mais pedras umas para as outras, limpando a arena que é
completamente desabada por escombros. O portão – aquele em que passei
tantas vezes para ensinar Ev – foi destruído em nada mais que um pedaço de
metal retorcido pelo colapso. As rachaduras na avalanche de rochas mostram
traços fracos de luz solar espreitando.
Fecho os olhos e imagino Evlorasin voando pelo céu, uma faixa de
branco-arco-íris pérola contra o azul.
Yorl envia uma mensagem para Varia, e esperamos a resposta.
Enquanto isso, o repentino sorriso eternamente sorridente começa a
escrever, sua pena arranhando ocupadamente o pergaminho, deixando-me
ferver em meu novo choque.
— A promessa de sangue deveria ser para Varia. — eu digo lentamente.
Yorl nem sequer olha para cima, mas ele assente. — Sim. Mas vamos nos
adaptar, como sempre.
Eu paro. — Isso significa... eu tenho que ir com ela, não tenho?
Para encontrar a árvore.
— Sem dúvida — Yorl concorda. — A promessa de sangue permanecerá
com você, seja você uma Sem Coração ou humana. Então Varia não tem
motivos para não devolver seu coração, como ela prometeu.
— Mas ela poderia me mandar dizer a ela onde está a Árvore dos Ossos,
certo?
Yorl abre a boca, depois a fecha e, finalmente, murmura: — Para os
deuses com isso – eu dei a ela o que ela quer. — Ele olha para mim. — A
promessa de sangue foi dada a você sob os efeitos do choro, lembra?
Qualquer coisa que envolva choro diretamente não pode ser controlada.
Meu fardo aumenta um pouco ao ouvir isso. Se isso é verdade, ele está
certo. De repente, o preceito da coroa tem ainda mais motivos para cumprir
sua promessa que era tão tênue antes.
— Onde Ev foi, você acha? — Eu pergunto.
— Os guardas da lei disseram que ele se levantou e partiu para o oeste. —
diz ele. — Aparentemente, a cidade inteira entrou em pânico – alguns
inchaços e contusões – mas ninguém ficou gravemente ferido.
Eu rio, deitada no colchonete. — Essas pessoas pobres. Eu acho que uma
serpente brilhante e gigante que explodiu no chão também significou o fim
do mundo. Será que você sabe que eles pudessem brilhar?
Yorl balança a cabeça. — Eu não tinha pistas. Estudei-os por dez anos em
Pala Amna com o avô. Eu sei talvez mais sobre eles do que qualquer pessoa
no mundo e, mesmo assim, depois de hoje, sinto que não sei nada.
— Bem-vindo à minha não-vida. — eu falo.


A resposta de watertell de Varia nos diz para encontrá-la em seus
apartamentos no palácio imediatamente.
Yorl não precisa me escoltar para a superfície dessa vez, todas as luzes
zumbindo intensamente contra as paredes de pedra em espiral enquanto
subimos para cima e para cima. Finalmente pude ver o estrago quando
chegamos à saída e à superfície do Portão Sul – ali, fora do muro e ao pé
dele, perto de onde o exército está acampado e no centro de uma área plácida
de pastagem verde, um enorme buraco rasgado diretamente da terra.
Evlorasin deve ter surgido dela – terra e rochas espalhadas como detritos
explosivos, guardas da lei e soldados formando um círculo de barricadas ao
redor para impedir que alguém caia.
— Você ouvirá nada além disso pelos próximos dez anos dos bardos. —
Yorl suspira.
— Queixo para cima. — Eu o cutuco nas costelas. — Se você pensar
sobre isso, é como ser famoso.
Ele apenas geme.
— Eu pensei que você queria ser famoso!
— Eu quero ser um polímata, — ele corrige. — Quero tornar o nome do
meu avô justamente famoso pelo trabalho que ele fez. Minha própria fama é
opcional.
— Ser tão altruísta não é divertido. — Eu clico na minha língua.
Ele me segue através da multidão do Portão Sul – um zumbido meio
aterrorizado e meio preocupado zumbindo entre as pessoas.
— Foram as bruxas? Eles podem convocar as serpentes agora?
— Primeiro o fogo de bruxa, agora isso – Kavar nos ajude!
— Era enorme, brilhante e longo! — Grita uma criança animadamente
para um grupo de colegas que se apega a cada palavra. — Como uma lagarta
da lua!
— Eles definitivamente não são lagartas da lua. — Yorl murmura
amargamente. Eu rio e fico quieta, nós dois voltando ao palácio juntos pela
primeira vez.
Varia está esperando. Quanto mais cedo chego a ela, mais cedo recebo
meu coração.
— O que acontece com você agora? — Pergunto a Yorl.
— Agora eu compilo minhas descobertas e as envio aos Arquivos Negros.
Varia apresentará minha recomendação de se tornar um polímata perante o
conselho dos Arquivos Negros, e eles serão praticamente forçados a me
deixar entrar.
— Então não vamos nos ver novamente?
O focinho dele faz uma careta. — Com toda a probabilidade, não.
— Você estará seguro, sim? Você ficará nos arquivos fazendo pesquisas e
outras coisas e não será morto na guerra, certo?
— Não haverá guerra. — diz Yorl, confiante. — Não por muito mais
tempo.
Ele tem razão. Todo o motivo pelo qual Varia está atrás da Árvore dos
Ossos é para parar a guerra. E, no entanto, Evlorasin disse que haveria uma, e
Varia concordou com isso. Até eu estou convencida de que a paz iminente
não vai durar muito. Estou prestes a trazer isso à tona quando vejo alguém
muito familiar cortado no meio da multidão – os olhos de falcão de Lucien
encarando da fenda do capuz para mim.
— A valkerax escapou – foi isso que você fez? — Ele exige.
Quando ele se aproxima, eu posso ver suas mãos apertadas ao seu lado.
Yorl pisca seus enormes globos verdes para o príncipe. — Quem é você?
O capuz torna difícil ver o rosto de Lucien corretamente, mas se ele não
estivesse com ele, Yorl saberia instantaneamente quem ele é, pela aparência
semelhante a Varia.
Lucien se vira para ele. — Quem sou eu? Quem é você?
Minha irmã contratou você?
Yorl zomba. — A não ser que sua irmã seja a Princesa Herdeira.
De repente, Lucien é um borrão preto e Yorl um borrão amarelo quando o
Príncipe fixa o combo em uma parede próxima. — Minha paciência é fina,
polímata. Uma das minhas famílias Sangue de Ouro foi morta hoje, e acabei
de ver uma valkerax sair de baixo da minha cidade e aterrorizar meu povo.
Quem é Você?
Lucien está no limite de uma maneira que eu nunca tinha visto antes, nem
mesmo quando revelei minha forma de monstro na clareira, e começo
nervosamente atrás dos dois. Uma de suas famílias Sangue de Ouro, morta.
Então ele descobriu sobre Tarroux.
Ele nunca teve amor pelos nobres, mas também não é do tipo que ignora a
justiça da morte. E Tarroux – a última vez que os vi caminhando juntos pelo
jardim, ele conseguiu dar um pequeno sorriso divertido para ela. Meu não
coração afunda. Não é à toa que ele parece tão tenso.
Yorl esforça-se para se desvencilhar da braçadeira, seus membros de
cônjuge com seus ossos extras e tendões manobrando como água corrente das
mãos de Lucien. Yorl achatou as orelhas amarelas na cabeça, puxando as
gengivas para mostrar todos os dentes.
— Meu nome é meu. Cruze-me novamente e veremos quem sangra mais
facilmente.
— Pare com isso! — Eu agito meus braços entre eles. — Vocês dois.
Lucien, este é Yorl. Yorl, este é o Príncipe Lucien.
Yorl congela quando Lucien estreita os olhos para ele. — Sua Alteza?
Naquele traje berrante? — Ele faz uma pausa, olhando para baixo. — Com
calças tão apertadas?
— É melhor do que nenhuma calça. — Lucien rosna. Yorl se mexe no
roupão, as hastes mal formadas erguendo-se do pescoço em uma crista
dourada.
— Eu não sou um macaco nu. — Yorl responde. — Quem precisa delas
para começar!
O orgulho competitivo é tão forte que eu praticamente sinto o cheiro dele.
As pessoas estão olhando. Bato palmas o mais alto que posso, como se
estivesse tentando terminar uma briga de cães selvagens.
— Isso é o suficiente. — eu respondo. — Se vocês dois vão agir como
bebês furiosos com fraldas cheias, o mínimo que você pode fazer é considerar
isso.
Lucien se encolhe, os olhos vagando pela multidão. As orelhas de Yorl
ficam ainda mais achatadas em sua cabeça, seu rabo se debatendo sobre os
paralelepípedos. Solto os dois e eles se endireitam, ainda encarando os
punhais.
— Havia uma valkerax sob a cidade! — Lucien exige. — Por quê? O que
você estava fazendo com isso?
Yorl me lança um olhar e as palavras não são ditas; não importa o quê,
Lucien não pode mais interferir. A promessa de sangue está comigo. Não há
mais nenhum benefício em mentir ou enganar, e esse pensamento por si só
tira um peso do meu peito.
Yorl espanou seus ombros de má vontade. — Eu estava estudando a
valkerax por aproximadamente oito dias. — O célebre encolhe os ombros. —
Mas você não precisa mais se preocupar com isso. Foi para sempre.
A multidão lentamente começa a desviar sua atenção de nós e,
determinada a seguir em direção ao palácio e ao meu coração, eu giro e
continuo andando, certificando-me de que meu ritmo é quase impossível de
acompanhar. Os meninos me perseguem fervorosamente.
— Você é um polímata de verdade? — Lucien finalmente pergunta a
Yorl.
— Eu gostaria de ser. — zomba Yorl, suas pernas felinas ágeis me
acompanhando mais facilmente do que as de Lucien. — Mas parece que você
esqueceu as políticas de seu pai, impedindo que os célebres se tornem
polímatas em primeiro lugar.
Lucien torce as sobrancelhas de uma maneira bastante justa, enquanto ele
gira em torno de um poste de luz para virar a esquina comigo.
— A valkerax se foi, então? — Ele pressiona. — De vez? Você tem
certeza disso?
— Suavemente. — diz Yorl secamente.
— E eu tenho certeza que você não vai me dizer o que minha irmã tirou
de você estudando. — continua o príncipe.
— Dificilmente. — Yorl concorda.
Nós três andamos perto da ponte para o bairro nobre, Lucien me
acompanhando facilmente. Eu posso senti-lo ao meu lado, mesmo que eu não
possa vê-lo – sua presença como a pressão espessa e respirável antes de uma
tempestade de verão.
Esta pode ser a última vez que o vejo.
Esse passeio pode ser o último passo que eu dou a seu redor. O último ar
que respiro perto dele.
Algo macio e quente de repente desliza na minha mão - a pele deslizando
pela pele. Firmando. Gentil. Dedos se prendem à minha e eu olho para ver a
mão de Lucien entrelaçada na minha palma, seus olhos suaves atrás do capuz.
O desejo de apertar sua mão com força, para ter certeza de que é realmente
real, me enche até a borda, mas eu resisto.
Por quê? Por que ele está fazendo isso comigo? Ele não sabe que é cruel?
Ele não sabe que eu vou abandoná-lo no momento em que eu subir os
degraus do palácio e entrar no quarto de Varia? O momento em que meu
coração está no meu peito novamente significa o momento em que sua irmã
herda sua destruição.
Seu polegar traça as costas dos meus dedos, pensativo, devagar, e parte de
mim cede. Esse momento é tudo que eu poderia pedir. É tudo o que eu já
terei, e eu tatuo em todas as partes da minha carne dolorida.
Quando esiver velha e cinzenta, esquecida e sozinha, tenho certeza de que
essa será a única lembrança que resta.
Atrevo-me a olhar para o rosto dele, apenas para descobrir que a gentileza
em seus olhos se foi. Seu rosto está pálido. Não apenas pálido, não apenas
verde nas bordas, mas também cinza, completamente e totalmente drenado de
todo sangue e cor. Sua mão em volta da minha aperta lentamente, mas de
forma inoportuna. Algo está errado.
— Lucien? — Eu murmuro. — O que... — Eu tento puxar minha mão,
mas seu aperto é muito forte. E Lucien não reage às minhas tentativas de
fugir – seus olhos olhando para longe, como se estivesse vendo algo
acontecer longe.
— Lucien, me deixe ir. — Eu puxo minha mão com força, mas ele não se
mexe. — Eu disse deixe-me ir!
Meu grito o tira de seu estranho transe, e consigo libertar minha mão no
momento em que ele solta seu aperto. Seus olhos voltam ao presente, para
mim, e eles oscilam por cima do ombro para um Yorl em pausa. Então de
volta para mim. Então para Yorl novamente. Ele gagueja entre nós, e o frio
em suas esferas de obsidiana não é raiva.
É... medo. Do que ele tem tanto medo de me tocar? Mas está lá por apenas
um segundo, e então seu comportamento principesco o interrompe. Lucien se
eleva a toda a sua altura.
— Algo está errado? — Yorl pergunta languidamente. Não consigo tirar
os olhos de Lucien, e ele também não olha para mim. O combo limpa a
garganta. — Temos lugares para estar, Zera.
nosso coração, a fome queima. podemos sentir ele batendo tão perto...
A fome me atinge através do olhar de Lucien, onde as palavras de Yorl
não podem. Meu coração. Meu coração está esperando. Não importa o quão
bom seja segurar sua mão, não importa que estranheza esteja acontecendo
com ele, não, não importa se esta é a última vez que o vejo ou não, tenho que
ir. Rasgo meus olhos dos de Lucien e corro atrás de Yorl, atravessando a
ponte para o bairro nobre, mas os guardas da lei seguram suas alabardas em
Lucien, vestidos mais como um fora da lei do que como um príncipe, e ele
não o segue.
— Zera!
O grito de Lucien me fez girar nos paralelepípedos. Ele está lá, atrás das
alabardas, seus olhos escuros queimando agora. Toda a frieza do medo
desapareceu de seu rosto, substituída por chamas escuras, rugindo com
determinação.
O príncipe estende a mão para mim.
— Diga o nome da minha irmã. — ele diz simplesmente.
— Princesa Varia? — Eu franzo a testa. — Aí está. Feliz?
Os olhos de Lucien me penetraram. — O verdadeiro nome dela.
Todo o cabelo na parte de trás do meu pescoço fica arrepiado.
Ficamos em lados opostos da ponte, o vento assobiando entre nós
enquanto a multidão se move, ignorando a gravidade do momento.
O verdadeiro nome dela. O nome dela. Por quê? Por que ele quer que eu
diga isso em voz alta assim?
— Você sabia... — as palavras de Varia soam na minha cabeça — ...que
um Sem Coração nunca é capaz de dizer o nome da bruxa em voz alta para
outra bruxa?
Meus olhos começam pelas botas de Lucien e, lentamente, aterrorizados,
sobem suas pernas, quadris, peito, pescoço forte e rosto, as palavras de sua
irmã ecoando o tempo todo.
— Se um Sem Coração diz o nome da bruxa em voz alta, você está
essencialmente dando permissão a outras bruxas para roubá-lo. Podemos
usar o som para criar um feitiço para transferir a propriedade.
Não. Eu dou um passo atrás. Não, isso é impossível. Ele é de uma família
de sangue de bruxa, mas... uma bruxa tem que descobrir seu nome
verdadeiro. Evlorasin disse isso. Ele tem…? Não. Teria alguma indicação.
Ele teria me dito
por que ele iria? ele mal pode confiar em você.
Ele está me pedindo para abandonar Varia para ficar com ele.
Para escolhê-lo acima da minha liberdade.
Parte de mim se recusa a acreditar. Mas parte de mim sabe, no fundo. Ele
está me pedindo para abandonar Varia para me tornar sua Sem Coração. Sua
escrava.
De novo não.
nunca mais seremos acorrentados, a fome cuspa.
Os beijos, a dança, aqueles momentos ternos compartilhados entre nós –
todos caem sobre mim. A garota da outra linha do tempo que o ama e a quem
ele ama de volta, aberta e lindamente, está se aproximando. Eu poderia ser
ela. Eu poderia fazer a escolha de ser ela, aqui e agora.
Eu poderia desistir do meu fascínio, apenas para ser presa novamente. Ele
me daria meu coração de volta? Ele me libertaria? Posso confiar nele para
fazer isso?
confiar em um humano? depois do que você fez com eles?
A fome ri. para ele?
O medo toma conta de mim, frio, invernal e absoluto.
— Nós podemos ajudar. — Lucien insiste. — Fione, Malachite e eu –
estamos trabalhando para encontrar uma maneira de libertar você da minha
irmã. E nos deparamos com isso. Se você disser o nome verdadeiro dela, eu
posso libertá-la.
Eles estão... trabalhando? Para mim? Esforçando-se para tentar me
libertar de um vínculo que não pode ser quebrado? Insano. Sem sentido.
Eu forço um sorriso não afetado para Lucien. — Você é tão inteligente.
— Eu rio. — Por que você faria algo tão ilógico quanto desperdiçar seu
tempo comigo?
— Zera...
O som do meu nome na língua dele é envenenado, querida.
— Eu te trai. — eu respondo. — Traí todos vocês! Como você pode me
oferecer alguma coisa, quando eu menti tanto? Tão terrivelmente? Nenhum
de vocês ainda deve se importar... — Eu engulo e giro nos calcanhares.
Chega. Eu os fiz de errado. Eu me provei indigna. Eles precisam seguir
em frente.
covarde, a fome zomba. uma covarde que não engana
ninguém, que não faz o trabalho duro de expiar, uma garota covarde
que quer apenas fugir, onde as coisas são fáceis -
Os olhos verdes de Yorl se estreitam diretamente em Lucien. Ele olha
para mim e depois murmura: — Precisamos ir.
Estou tão perto do meu coração que posso senti-lo batendo no peito,
vestigial e ansioso. Lucien de repente se vira para frente, aterrissando
graciosamente no parapeito da ponte e escalando-o para contornar os guardas.
Eu começo – ele está bravo. É tão alto! Ele quebrará sua coluna se cair! Onde
está o Príncipe cuidadosamente calculista de Cavanos, aquele que se
certificou de nunca fazer ondas como Whisper, para ficar baixo e quieto e
sempre nas sombras? Os guardas clamam, gritando e brandindo espadas e se
juntando embaixo do parapeito, apenas esperando que ele desça para que
possam prendê-lo. No topo de um pilar de bronze da ponte, Lucien fica de pé,
olhando para Yorl e para mim, seu olhar fixo no meu rosto.
— Você não precisa mais ficar sozinha, Zera. — diz ele claramente, suas
palavras ecoando como chuva. Meu coração palpita com uma lança de dor.
sempre sozinha, a fome rosna. confiar nos outros é uma fantasia. uma
mentira. inseguro.
Yorl ajusta os óculos e começa a se afastar, desafiando a comoção, em
direção à estrada para o palácio. Dou um passo atrás dele e o grito de Lucien
é ferro fundido.
— Se você sair com ele, não há como voltar atrás. Não importa o quanto
eu despreze a ideia, se você sair com ele agora, você se tornará meuinimigo.
Inimigo. Não apenas um traidor, mas um inimigo?
nós sempre fomos seus inimigos, pequeno príncipe. A fome ri como se
fosse a coisa mais engraçada do mundo, mesmo quando meu coração está se
partindo. Um inimigo de Lucien, de uma vez por todas. É a última coisa que
eu sempre quis, mas aqui, agora, percebo que é o que deve ser feito. É o que
eu deveria ter feito naquela noite na clareira.
Meu não coração grita por confiar nele. Eu quero mais do que qualquer
coisa. Aceitar sua oferta tentadora, acreditar na ideia de que ele quer me
ajudar. Que Fione e Malachite me perdoaram. Mas eu sei melhor. O perdão
não é tão rápido. Não é assim tão fácil. Eu nem me perdoei por matar catorze
homens, pelos cinco homens quando me tornei três anos atrás. Mas o perdão
parece tão pequeno diante da realidade.
Nunca mais serei escravo de ninguém. Não dele. De ninguém.
Tenho tanto medo de perder a fome, mas tenho mais medo de ser um
monstro novamente. O monstro de outra pessoa. Dois lados da minha cruel
guerra entre si no espaço de um segundo.
Ele é Lucien – o garoto mais gentil e nobre que eu conheço.
Ele é um bruxo.
Ele poderia ser meu bruxo. Ele poderia me devolver meu coração de uma
vez por todas se eu me tornasse dele. Se eu sou dele, ele poderia me mandar
fazer o que quisesse. Ele poderia me mandar ficar com ele quando eu não
quisesse. Ele poderia me mandar acreditar em todas as suas palavras. Para
sorrir, para beijá-lo. Ele poderia me fazer passar fome, me forçar a lutar.
ele é um bruxo, a fome ri. e magia é uma tentação terrível.
Meu coração. Meu coração.
Eu quero confiar nele. Mas eu não posso.
Aprendi da maneira mais difícil que não posso confiar em ninguém além
de mim mesma com minha liberdade.
Eu olho para ele, o vento chicoteando meu cabelo em volta do meu rosto,
e sorrio com as últimas lágrimas que derramarei por ele.
Por mim.
— Af-balfera — eu digo. — Ansenme kei-inora.
24

O Coração
e os Ossos

Afastar-me da ponte naquele momento é a coisa mais difícil que já fiz. Mais
difícil do que deixar Crav e Peligli. Mais difícil do que entrar no palácio
quando fui apresentada à corte pela primeira vez.
Mais difícil do que me separar de Y'shennria pela última vez. Minhas
pernas estão lascadas com granito, mármore, as pedras mais pesadas do
mundo me atrasando, me puxando para trás.
Coloquei uma bota na frente da outra até que a calçada da ponte se
desvanecesse e o cascalho do palácio a substituísse.
Uma garota normal, uma garota inocente, choraria inconsolavelmente
depois de deixar para trás a única pessoa que ela já amou. Mas eu? Meus
olhos estão secos depois de apenas duas lágrimas.
Estou acostumada a deixar as pessoas para trás agora.
você está melhor sozinha.
Subo os degraus do palácio e desço o corredor até os apartamentos de
Varia, meu queixo erguido. O palácio está em desordem, os guardas
espalhados por todos os cantos em alguma tentativa de preparar o palácio
para um ataque de valkerax. Yorl e eu nos aproximamos da Ala Serpente no
momento em que alguém está saindo – alguém em um vestido de veludo
vermelho com espaldar alto e seus cachos de rato em uma única trança.
Fione se vira de fechar as portas e nossos olhos se encontram.
Ela se aproxima como uma verdadeira arquiduquesa de Cavanos – as
costas retas e o rosto perfeitamente neutro.
— Lady Zera. — Ela inclina a cabeça. Não há medo nela, nem na
valkerax, nem em mim – ou pelo menos nenhum que eu possa ver. Ela está
aprendendo a esconder ou a ignorar. Faço uma reverência completa – a
última que provavelmente terei que fazer, a qualquer nobre, de novo, sob esse
belo teto de mármore branco.
Todo o treinamento de Y'shennria entra nele.
— Sua Graça, — eu digo. — Você parece deslumbrante, como sempre.
Você ganhou uma maquiagem nova ou é todo esse amor incondicional? Devo
admitir que estou com um pouco de inveja.
Fione não me responde, preferindo acenar para Yorl. O célebre, por sua
vez, faz um arco superficial apropriado como plebeu. Ela finalmente focaliza
seus olhos azuis de centáurea de volta para mim.
— Você está aqui. — ela diz suavemente. — O que significa que você
recusou a oferta de Lucien.
Meu coração está do outro lado da porta, atrás dela, tão perto que eu juro
que posso senti-lo afundar na bolsa.
— Queremos ajudá-la, Lady Zera — ela insiste, murmurando baixinho.
— Ser o que você é, é uma coisa difícil; Eu percebo isso agora. Nós três,
Lucien, Malachite e eu, queremos ajudá-la.
Eu rio baixinho. — E o que, por favor, diga, você pode fazer para me
ajudar? — Eu ando até ela, sussurrando por cima do ombro para que os
guardas não possam ouvir. Minha negação borbulha, quente e forte. — Você
não é bruxa. Uma bruxa é a única pessoa que pode me ajudar agora. Uma
bruxa específica, para ser exata. E você está cortejando ela.
— Existe uma maneira, — insiste Fione. — Lucien é...
— Lucien — eu a interrompo, — é um tolo iludido. Vamos, Fione. Nós
duas sabemos que você é mais esperta do que seguir tolos.
Fione puls longe de mim, seu rosto cheio de choque. — Ele não fez nada
além de pensar em você o tempo todo, e você o chama de tolo? O que... —
Ela me olha de cima a baixo. — O que aconteceu com você?
Eu sorrio para ela. — Você não ouviu? Eu sou insensível.
A ironia me faz rir de desespero. Fione parece congelada, imóvel até o
menor piscar de olhos, e uma mecha de culpa se espalha pela minha parede
de gelo duro. Ela estava com tanto medo de mim e, apesar de tudo, está
oferecendo sua ajuda.
Uma última vez não vai doer.
Eu sei que Varia não levantou o comando, mesmo por insistência de
Lucien. Ela ama muito Fione para fazer isso. Aproximo-me lentamente da
arquiduquesa, e ela não se afasta. O mais gentilmente possível, envolvo meus
braços em volta dos ombros dela.
Um abraço. Uma última vez. Ela cheira a cem flores de trevo de molho ao
sol. Mas por baixo disso há outro perfume – quase imperceptível, mas
metálico o suficiente. Mercúrio branco. Balanço a cabeça – não importa.
— Obrigado — eu sussurro em seus cabelos. — Por tentar.
Seu corpo está rígido, mas quando ela ouve as palavras, ela relaxa um
pouco. Eu me afasto e passo por ela, Yorl me levando para os apartamentos
de Varia. O comando sobre Fione está começando a se firmar, mas eu o
controlo o máximo que posso.
— Zera!
Faço uma pausa ao som da voz de Fione chamando meu nome.
Mas ela está atrás de mim. Tudo isso está atrás de mim agora.
— Você tem certeza, — digo sem olhar para trás, — que deseja chamar
seu inimigo pelo primeiro nome?
O silêncio é estrondoso. Quando fica muito tempo, empurro as portas do
quarto de Varia e as fecho atrás de mim.


Varia fica do sofá instantaneamente quando entramos, seu vestido de seda
prateado em volta dela como uma cachoeira. — Você está atrasada.
— Ou talvez você esteja apenas cinco anos cedo demais. — Eu sorrio
para ela, o comando torcendo meus membros em um rigor. — Retome o
comando sobre Fione.
Sua sobrancelha se levanta. — Desculpe?
— Você não pode comandar a localização da Árvore dos Ossos para fora
de mim. — Eu levanto minha voz. — Então pegue de volta. O comando em
mim. Sobre a Fione.
Seus olhos se voltam para Yorl e, se eu não soubesse melhor, acho que ela
parece traída. Yorl apenas mantém sua expressão fria habitual atrás dos
óculos, e assim que meus pés começam a marchar para um lugar isolado, eu
lati para ela.
— Agora!
A princesa não se assusta, mas ela instantaneamente quebra seus dedos de
madeira, as pontas deles ficando pretas e escuras.
Como um cão que se esforça para soltar uma corrente, o comando foge,
dissipando-se em nada além de ar quando a fome desaparece por trás dele,
meus membros ficando mais macios novamente quando meu corpo se torna
meu. É uma vitória vazia, mas quando comi a derrota por tanto tempo, tem o
mesmo gosto da coisa real.
— Lá. — diz ela. — Agora, desperdiçando tempo suficiente. Está feito,
Yorl? Verdadeiramente?
Ele concorda. — Sem dúvida. Eu mesmo vi Evlorasin dar a ela o
juramento de sangue.
Varia se aproxima de mim, seus calcanhares estalando ferozmente no
mármore. Ela para a alguns centímetros do meu rosto, sua própria expressão
muito séria. Tudo sobre sua expressão soa tão verdadeiro para Lucien que eu
estou quase sem fôlego.
Eu a chamei. Sobre ele. Eu escolhi meu coração acima de tudo.
Isso me faz um monstro?
— Onde fica a Árvore dos Ossos? — Ela pergunta, suave e ainda
decisiva. Não tenho motivos para me segurar nela, não se quiser meu
coração. Suas palavras trazem um dilúvio de pensamentos correndo pela
minha mente sem ser solicitada; Eu posso ver a Árvore novamente,
instantânea e inteira, seus arredores brilhando em verde ao redor.
— Uma selva, — eu digo. — Quente, úmida e densa. Há um longo rio, o
mais longo que eu já vi. Na maior curva do rio, dez extensões para leste. Está
sentada em uma pedra, esperando o meio dia.
Por alguma razão, Yorl ri um pouco ao me ouvir dizer de novo –
incrédulo, talvez. Varia apenas olha para mim, como se estivesse
investigando meus olhos pela verdade, e quando ela encontra o que está
procurando, ela jura.
— Deus todo-poderoso.
Observo a Princesa de Cavanos balança pela primeira vez, incerta e
instável. Ela tropeça, segurando as costas do sofá para se preparar. O choque
de realizar o que ela tem sido depois de todos esses anos – pelo que ela fingiu
sua morte, pelo que ela tem pesadelos, pelo que matou seus guarda-costas,
pelo que torturou uma valkerax, pelo que se tornou uma bruxa – deve ser
esmagador.
— Provavelmente as selvas de Gutroth, — Yorl oferece a partir do canto
da janela que ele está saindo. — E o rio dourado.
— Não podemos ir lá hoje. — Varia se recupera admiravelmente
rapidamente e se vira bruscamente para ele.
— Não. — ele concorda. — É muito longe uma jornada para fazer ao
meio-dia, mesmo para um feitiço de teletransporte.
— Então eu espero. — ela afirma. — Quero que a Árvore vá para algum
lugar perto de Cavanos e saio no instante em que ela chega lá.
— Concordo. — Yorl assente. — A papelada que você me prometeu...
— Paciência, Yorl. — ela insiste. — Você está esperando há cinco anos.
Certamente você pode esperar por mais algumas horas.
— Eu aproveitei nosso tempo juntos tanto quanto você. — Yorl rosna. —
Mas o legado do meu avô esperou cinquenta anos – não pode esperar mais
um momento.
— Quando eu receber a Árvore dos Ossos. — recita Varia. — Esse foi o
nosso acordo. Nem mais cedo nem mais tarde.
Yorl solta um rosnado feroz. — Eu te dei o que você queria! Eu te dei
tudo o que prometi, até a letra. Fiz o impossível – fiz o que nenhum polímato
em mil anos foi capaz de fazer e mereço o que é meu!
— Sossegue. Abaixo. — A voz de Varia é fria. — Ou terei Zera aqui para
acalmar você por mim.
Ela poderia fazer isso – e eu sei disso melhor do que ninguém.
Eu não teria escolha a não ser atacá-lo. Eu lanço um sorriso de desculpas
para Yorl, que de repente está me olhando com cautela.
Ele cospe o que soa como um palavrão e cruza os braços sobre o peito.
A espera é sempre a pior parte.
Aprendi isso na floresta de Nightsinger, esperando que algo aconteça por
três anos. O nada deixa você louco, eventualmente, do jeito que me fez –
conversando com animais e árvores e constantemente fazendo piadas para me
divertir no ar morto da floresta. Varia passa o tempo arrumando algumas
roupas e outros itens essenciais em sacolas: pergaminho, penas, velas,
alimentos secos. Onde ela mantinha esses suprimentos escondidos em seu
quarto? Ela está fazendo as malas como se nunca mais voltasse.
— Sua esposa não está se juntando a nós quando partimos? — Eu
pergunto levemente.
Varia olha bruscamente para mim e depois bufa. — Não. Ela fica aqui em
Vetris, onde é seguro.
— E seu pai? — Corro meu dedo ao longo de um vaso empoeirado. —
Como ele se sente sobre você se tornar a pessoa mais poderosa do mundo?
Você já perguntou a ele? Ou é apenas um dado que ele não se importará,
desde que você esteja viva? Ele sabe quanto tempo você estará viva?
Alguém?
Isso chega a ela. Eu posso ver o ponto em sua boca, não importa o quão
desesperadamente ela tente esconder. Ela está perto de seu objetivo – aquele
sobre o qual ela teve pesadelos desde que era pequena – e isso a está
deixando desleixada. Isso deixaria alguém desleixado.
Ela puxa meu coração, ainda dentro da bolsa, para fora do casaco e sorri
como uma raposa faminta para mim. Meu corpo continua no ponto em uma
fração de segundo, todos os cabelos em pé nos meus braços, minha pele
vibrando com calor e antecipação.
Meus músculos se contraem em direção à bolsa, puxados como uma de
suas estranhas bonecas em uma corda. Eu nunca fiquei tão feliz em ver a
palavra traidor na minha vida. Meus olhos percorrem a costura da bolsa, a
maneira como ela bate suavemente enquanto meu coração bate sob o pano.
Mãe. Pai. Vida humana. Está tudo descansando naquela pequena bolsa.
— Eu ainda tenho isso. — a Princesa coroa me lembra. — Então seja
legal, você faria?
Eu encaro, mas não digo nada. Ela pode não ser capaz de me mandar
contar sobre a Árvore dos Ossos, mas também não posso recusá-la. Estamos
em um impasse perigoso, nós duas de pé na mesma borda da vida.
É uma hora que dura mais de três dias. Pacotes variados, ela e Yorl
examinando detalhes e minúcias. Sento-me na única cadeira móvel da sala –
uma coisa simples de madeira – posicionando-a em frente ao relógio de areia
sobre a lareira, sobre a lareira. Espero mais uma hora depois de esperar três
anos, vendo os grãos de areia do relógio caírem, cada ponto dourado me
empurrando para mais longe de Lucien e mais perto do meu coração.
— Vamos ser seguidos? — Ouço Yorl perguntar fracamente.
— Existe uma possibilidade. — concorda Vari. — Mas apenas por uma
bruxa, e somente se eles estiverem familiarizados com a minha magia.
— O ladino da cidade que iniciou o incêndio de bruxas. — diz Yorl. —
Eles podem saber.
— Não. Tem que ser um conhecimento mais íntimo, repetidamente
exposto a ele...
Eu os sintonizo, meus olhos totalmente focados no relógio, mas meus
ouvidos vagando. Do lado de fora, pelas janelas abertas, posso ouvir o
palácio em um tumulto silencioso. A palavra valkerax surge, dita com um
nervosismo medroso, como se as pessoas não tivessem certeza se apenas
dizer a palavra convocaria à sua porta.
A realidade começa a desmoronar à minha volta quando a areia do relógio
enche a fenda do meio-dia. Para onde irei? Não, eu sempre soube onde – de
volta a Nightsinger, Crav e Peligli. Sua floresta se foi, arrasada pelo exército
humano, o que significa que ele tem que estar em Windonhigh – a cidade
bruxa que Varia mencionou.
Mas como chego a uma cidade bruxa, especialmente uma que Vetris
ainda não descobriu? Minha única esperança é seguir a carta de Y'shennria e
visitar Ravenshaunt. Se eu puder encontrá-la, a salvo com as bruxas que são
seus aliados, então certamente encontrarei um caminho para Windonhigh.
Vai ser difícil. Mas eu vivi e morri com os piores ferimentos, as piores
mortes. Eu sobrevivi – com a maior parte da minha sanidade mental intacta –
três anos sem meu coração. Encontrarei as pessoas que mais importam para
mim. Vou encontrá-los, não importa o quê.
— Zera.
Varia diz meu nome em breve, forte e afiada, e eu sei o que ela quer.
Desta vez, a Árvore dos Ossos vem à minha mente de maneira diferente,
como uma nuvem soprada pelo vento que se transforma no céu toda vez que
olho para ela. A Árvore dos Ossos range, iminente e branca e solitária, em
cima de mais branco. Neve. A Árvore dos Ossos está no pico de uma
montanha, o vento uivando amargamente.
Do pico, vejo todos os Cavanos – as suaves colinas verdes rolando,
interrompidas apenas pelas faixas pretas carbonizadas em que o exército
queima as florestas. E do outro lado do pico, do lado Helkyris, vejo uma
cidade mais abaixo, presa entre picos menores e construída quase
inteiramente de torres. Uma intrincada rede de pontes conecta todas as torres
da cidade, o abismo bocejando abaixo dela.
— As montanhas Tollmount-Kilstead. — eu digo. — Um dos picos. Há
neve, e eu posso ver Cavanos de um lado, onde o exército está queimando as
florestas, e do outro lado, bem abaixo, eu posso ver uma cidade feita de
torres. A árvore vai ficar lá por... — Faço uma pausa, olhando para a Árvore
em minha memória. De alguma forma, com a promessa de sangue pulsando
em mim, eu apenas sei. — Duas horas.
— Breych, — Yorl diz imediatamente. — A cidade acadêmica de
Helkyris. — Ele olha para Varia, olhos verdes arregalados. — Seus deuses te
favorecem.
— Eles nos favorecem. — insiste a princesa, puxando uma capa e
entregando uma para mim. — Vista-se calorosamente e rapidamente.
Ela caminha até uma caixa e a abre com uma pequena chave em uma
corrente em volta do pescoço. Por dentro, ela tira um rolo de pergaminho e o
entrega a um Yorl de olhos arregalados.
Suas patas pegam o pergaminho trêmulo e ele olha para ela.
Varia sorri. — Eu aprecio tudo o que você fez, Yorl. Nunca esqueça isso.
Seus ouvidos se animam e, guardando o pergaminho rapidamente em seu
roupão, ele olha para mim e assente. — Boa sorte, lobo faminto.
— Você também. — Eu sorrio. — Alto-falante.
Nossos verdadeiros nomes tocam na sala quando ele sai, os únicos
fragmentos restantes do que passamos juntos. A última vez que o vejo é seu
rabo de tufo amarelo desaparecendo pela porta.
Coloco a capa e Varia faz um gesto para eu segui-la. Ela para na frente de
uma lanterna a óleo no banheiro; para meu choque total, ela o inclina para a
frente e o som de algo batendo no lugar ressoa.
Um alçapão escuro se abre nos ladrilhos de ardósia do chão, grande o
suficiente para deixar uma pessoa passar de cada vez. A rigidez da passagem
secreta me lembra aquela que encontrei na mansão de Y'shennria. Varia não
perde tempo em descer a escada do lado, e eu sigo.
— Por acaso é obra deste lorde Y'shennria? — pergunto.
— De fato. O pai achou tão inteligente que mandou lorde Y'shennria
construir um em cada apartamento da Serpente Alada. Todos eles levam a
várias partes da cidade – a minha é a única que leva para fora do muro, e
somente a família real sabe disso.
Tarde, percebo que essas passagens devem ser como Lucien escapa do
palácio e entra no bairro comum como Whisper. Espinhos se enrolam em
volta do meu coração ao pensar nele. Eu nunca vou vê-lo novamente, não é?
Minhas mãos começam a tremer com o pensamento. A árvore dos ossos. Eu
deixei a visão na minha memória – tão solitária no topo da montanha –
crescer enorme e consumir toda a ideia de Lucien.
Nós dois atingimos o fundo do poço do alçapão, e Varia me leva por um
túnel fino, pouco largo o suficiente para meus ombros. Para iluminar, ela
acende o dedo de madeira com fogo, e sigo a chama dançante na escuridão. A
princesa está tão perto de mim que praticamente posso ouvir meu coração
batendo na bolsa debaixo da capa.
— As bruxas sabem sobre a Árvore dos Ossos? — Pergunto.
— Apenas as bruxas altas, — ela responde. — E eles acham que é melhor
deixar isso em paz.
— Eu sei que pode ser um pouco tarde para propor isso, mas eles podem
estar pensando em alguma coisa.
Varia dá uma zombaria de humor e continua em frente. Minha voz é a
única coisa que quebra o nosso silêncio.
— Lucien não vai te perdoar, você sabe.
Ela não fala, mas seus passos começam a se mover mais rápido no túnel.
— Ele me disse que sou seu inimigo agora. Isso significa que você
também é?
Isso, e somente isso, faz com que ela pare. Ela gira em mim, a luz do fogo
iluminando seus olhos de vidro preto. Ela olha para mim com firmeza e
depois se vira e começa a andar a uma velocidade escaldante, suas palavras
ecoando entre pedras.
— Passei cinco anos me preparando para ser seu inimigo.

O túnel eventualmente ilumina naturalmente quando se inclina para cima, e
Varia finalmente abre um alçapão. Sujeira, seixos e grama caem sobre nossas
cabeças quando saímos para um céu azul brilhante. Quando eu emergi, Varia
empurra a porta atrás de mim com um clique forte – a porta coberta de grama
tão perfeitamente que parece uma curva no lado da colina.
— Finalmente, — Varia respira. Ela se vira para mim. — Me dê sua mão.
E faça o que fizer, não se mexa.
Coloquei minha mão na dela. Está frio e suave onde estão os dedos de
madeira, em desacordo com a palma da mão humana quente. Assim como
Nightsinger, seus olhos ficam pretos de canto a canto, a madeira de seus
dedos manchada de escura e vazia, completamente incolor quando ela lança o
jogo. Sua boca se move, mas nenhum som sai, naquela oração silenciosa de
sempre ao Deus Antigo que acompanha a magia.
Em um momento, nós dois estamos cercados por pastagens e um céu azul
impecável, e na próxima vez que piscar, o ar quente fica incrivelmente frio. O
branco aparece em toda parte – neve fresca e intocada – e sombreio meus
olhos para bloquear o sol refletindo ofuscante. Faz tanto tempo desde que
experimentei mágica real para mim que quase ri de como é incrível. Olho em
volta apenas para ver Cavanos bem abaixo de nós agora, verde e distante.
Estamos no pico das montanhas Tollmount-Kilstead, a milhares de
quilômetros de Vetris.
Varia parece confusa. A neve tritura sob suas botas quando ela
imediatamente começa a andar, embora muito mais devagar do que ela estava
entrando no túnel. Eu tento acompanhar.
— Isso é o mais próximo que eu pude chegar. — diz ela. — Fique perto
de mim, e se você ver alguma vida selvagem, estou confiando em você para
matá-la.
— Por quê? Você ficou sem bolas de fogo? — pergunto levemente,
caminhando à frente dela.
— Estou economizando energia, — ela responde. — Pela árvore.
Sem a espada do pai no meu quadril, me sinto nua. Eu guardei a lâmina
nova e o cabo velho em uma bolsa em volta da minha cintura, mas
desmontada, eles são praticamente inúteis. Condores gigantes, bonemoths:
esses são os únicos dois animais que ouvi falar de morar tão alto aqui. Eu
poderia usar meus dentes para matar um ou mais condores gigantes, mas um
bonemoth é outra história. Eu mantenho minha cabeça giratória e minha
audição aguda.
O sol bate sobre nós incansavelmente – não há alívio em quilômetros por
quilômetros, pois não existem árvores e poucas formações rochosas altas o
suficiente para projetar sombras. Eu posso sentir a queimadura solar começar
a rastejar sobre meus ombros, e eu posso ver isso acontecendo no nariz de
Varia como uma ponte vermelha. Mas, além da descoloração, nenhum perigo
real se apresenta. Estou totalmente despreparada para a neve, mas botas
molhadas não podem mais me incomodar – não com meu coração tão perto.
Varia gagueja uma vez, seu pé preso na neve profunda em uma inclinação
acentuada, e eu dobrei meu joelho e movimento para minhas costas. — Pule,
Sua Alteza. — Eu sorrio. — O serviço de transporte de Zera, ao seu, bem,
serviço.
— Eu posso chegar lá sozinha. — ela retruca, seu orgulho d'Malvane
elevando suas penas em defesa.
— Com toda a sua energia intacta? — Eu me inclino. Suas sobrancelhas
franzem, e depois de um olhar dela, sinto sua pressão na minha bunda e
enlaço meus braços em torno de seus joelhos.
Apesar de ser fisicamente mais velha que eu, ela não é nem de longe tão
pesada quanto eu. Poderia ser a perspectiva de a Árvore estar tão perto, ou
poderia ser a maneira que eu posso sentir o coração dela – ou é o meu na
bolsa? – batendo na minha espinha, mas, por mais cansativo que seja, eu
consigo puxá-la pela inclinação. Minhas pernas doem, meus dedos das mãos
e pés começam a perder todo o sentimento, mas instantaneamente sinto a
magia de Varia me curando do congelamento.
— Ei. — eu exijo. — Pare com isso. Salve sua energia.
— Como se eu tivesse uma escolha. — ela zomba de mim.
— Por que você trouxe apenas a mim? — Eu pergunto. — E
Gavik? Ele poderia protegê-la também. Você está tão longe dele – ele
provavelmente está gritando no meio de Vetris em algum lugar agora.
— Gavik é supérfluo, — diz ela. — Eu preciso apenas de você para
encontrar a Árvore.
— Estou lisonjeada. — eu resmungo. O suor escorrendo pelo meu
pescoço parece uma trilha de gelo, minha pele formiga quando o vento uiva
mais alto e rasga mais rápido na neve, quanto mais alto vamos. Meus ouvidos
estão abertos para qualquer som condor ou bonemoth, então, quando o
estilhaço de gelo acontece, eu me preparo imediatamente e viro a cabeça. No
entanto, não há nada – nem no céu, nem no chão. Nós somos as únicas neste
espaço branco e solitário. Mas juro que ouvi...
— Por que estamos parando? — Varia pressiona, me cutucando com os
joelhos. — Apresse-se – é apenas sobre esse aumento.
Eu posso sentir seus cinco anos de desejo queimando através de seu
sangue e no meu. Olho pela beira pedregosa do pico e para o abismo abaixo
de nós – ali, de pé contra a neve, está a rede de torres conectadas a pontes. A
cidade erudita de Breych, Yorl a chamara.
Mas com a maneira como vi a Árvore dos Ossos em minha memória, eu
estava olhando a cidade de um ângulo muito mais alto.
Fortalecendo minhas coxas, rasgo e atravesso a neve da montanha o mais
rápido que posso sem desalojar Varia.
Quanto mais eu subo, mais forte o vento uiva. A neve voadora vai de
beijar minhas bochechas para picá-las ferozmente, cada lasca como uma
lâmina de gelo. E então, de repente, meus pés encontram uma extensão plana
de pedra e pisco a geada dos meus cílios.
Algo branco aparece diante de mim, balançando suavemente em total
anátema ao vento furioso.
A árvore dos ossos.
Parece muito mais assustadora de perto – muito mais massiva, tão alta que
mal consigo ver o topo. As garras perversas nas extremidades dos galhos
cortam o ar à toa, como se estivessem apenas esperando alguém passar com
carne. Varia se mexe nas minhas costas, descendo e cambaleando pela neve
em direção à Árvore com um olhar extasiado.
— A Árvore. — ela sussurra, o branco dos ossos brilhando em seus olhos
ardentes de ônix. Cada osso é tão grande, o marfim misterioso em sua
perfeição. Há uma aura fraca e escura ao redor da Árvore – visivelmente mais
fraca do que a luz do sol do meio-dia nos batendo lá de cima. Os ossos de
Valkerax sugam a luz, dissera Fione. Esta não é uma árvore desleixada – todo
osso tem seu lugar; todos se encaixam para tornar a árvore um todo titânico.
Sua sombra fina se estende até o pico e o ar ao seu redor – quanto mais
me aproximo das raízes ósseas ondulantes da árvore enquanto elas se juntam,
mais pesado o ar fica. É o mesmo tipo de sentimento que eu costumava
caminhar até o quarto de Nightsinger, um peso inegável para a atmosfera ao
meu redor.
Mas isso... esse peso não é um lembrete leve e ameaçador.
Está esmagando. Parece que está tentando me transformar em nada.
A Princesa Herdeira sobe o pico rochoso, com as mãos estendidas à sua
frente enquanto caminha sob os galhos maciços da Árvore. Mal consigo me
ouvir ofegando com o uivo do vento, então subo atrás dela, o ar batendo no
meu peito vazio.
— Sua Alteza. — eu grito. — Eu te trouxe para a árvore. Está na hora de
você entregar meu coração!
Ela não se move nem um centímetro, o olhar fixo nos ossos do tronco, a
mão erguendo-se logo acima, como se tivesse medo de tocá-lo.
— Varia! — Eu grito, puxando seu braço. Há um som crepitante imediato
no ar, e logo acima do meu ombro explode um flash de luz e um calor
intenso. Eu me arremesso para trás, mas a queima não desaparece, e meus
olhos encontram minha capa. Uma lambida de fogo de bruxa negra arde nele,
queimando lentamente sobre a lã molhada. Ela tentou me queimar?
Estendo a mão e agarro seu braço novamente.
— Meu coração. — eu insisto, preparando minha mente para outro
choque de chamas. Mas nada vem. Os galhos da Árvore dos Ossos
simplesmente oscilam acima de nós, o som rangendo idêntico ao rangido da
madeira antiga. Meu ombro queima, o fogo roendo minhas camadas e
descendo para a minha pele, mas eu seguro firme a princesa.

O meu coração!
Isso chama sua atenção e ela se vira. Mas seus olhos não olham para mim
– ela espia a tempestade de neve atrás de mim, seu olhar esperando e atento,
mais coruja do que nunca, enquanto procura algo no horizonte que eu não
consigo ver.
E então ela agarra meu braço, seus dedos cavando como punhais de gelo.
— Eu ainda preciso que você me proteja. — ela murmura, o rosto tenso.
Medo? Por que a Filha Risonha temeria aqui, no precipício de todos os seus
objetivos realizados? À beira do precipício de se tornar a pessoa mais
poderosa do mundo, do que se tem medo? Eu me viro e olho para onde ela
está olhando.
Três sombras cortadas do gelo e da neve, suas mantas chicoteando ao
vento. Humanos. Eu esperava ligas de ossos ósseos, milhares de condores
gigantes.
— Apenas três? — Dou um passo à frente e quebrei meu pescoço
vagarosamente. — Isso vai demorar apenas uma meia, Princesa. Mantenha
meu coração quente e pronto.
Varia não diz nada, todo o corpo rígido. Por um momento, acho que ela
está congelada e, à medida que as sombras se aproximam, ela grita: — Você
ainda pode voltar. — Suas palavras são quase engolidas pela neve. As três
figuras não mostram sinais de desaceleração e ela levanta a voz. — Volte
agora e eu vou te perdoar.
Minhas sobrancelhas se torcem. Quem é ela...?
Não sei quem ou o que faz. Pode ser a Árvore, ou a própria Varia, ou as
pessoas que se aproximam, ou talvez até a natureza misericordiosa.
Independentemente disso, o vento morre repentinamente. Ele não para
simplesmente – tomba morto, a neve caindo em tufos suaves mais uma vez e
o silêncio ecoando na esteira de tantos uivos.
Sem a tempestade, no meio do pico em paz, é fácil ver os rostos dos três.
Uma garota com cachos de rato à esquerda, nariz e bochechas como
botões de rosa, a mão segurando uma bengala com cabeça de valkerax. Um
beneather alto, de cabelos brancos e esbelto, à direita, os olhos brilhando
vermelho, como duas pontadas de sangue no meio da neve.
E lá, no meio.
Couro preto. Cabelo preto. Olhos pretos. Um falcão, envolto em sombras.
Príncipe Lucien Drevenis d'Malvane.
25

Os Seis Olhos
do Lobo
e da Serpente

A tempestade de neve se moveu dentro de mim.


Ela rasga minhas entranhas com gelo, estupor me congelando no lugar e
me fazendo um alvo fácil.
Lucien? Aqui? Ele nos seguiu até aqui tão rápido? Mas isso significa...
Os três param diante de mim, não perto o suficiente para tocar, mas perto
o suficiente para ouvir. Fione olha em frente, para Varia, Malachite olhando
para a Árvore. E Lucien olha diretamente para mim.
— Não — o Príncipe chama, seu olhar nunca se movendo para o meu
rosto. — coloque sua mão nessa árvore, Varia.
— Eu disse para você voltar, irmão! — Ouço Varia gritar, sua voz
vacilante. — Esta é minha responsabilidade, não sua!
Observo Malachite lentamente encolher a espada nas costas, assumindo a
baixa postura de batalha que vi com a valkerax. Mas desta vez, ele não está
olhando para uma serpente branca correndo por um túnel. Ele está me
olhando.
Lucien não diz nada, seu olhar se enterra diretamente no meu núcleo.
Fione é a primeiro a se mudar. Ela dá um passo à frente, a voz clara. —
Ninguém foi capaz de controlar a Árvore para sempre, Varia.
— Oh, Fione. — Varia ri, mas o som é desconfortável. — Os Vetrisianos
Velhos fizeram muito!
— Uma bruxa nova, todo mês. — Fione segura um pergaminho de
aparência antiga. — Eles os pedalaram porque a magia da Árvore dos Ossos
era muito forte! Seria... — ela para de falar. — A Árvore comerá a magia de
uma bruxa – até que a mate, Varia!
Suas palavras estão desesperadas nas extremidades, e a culpa envolve
suas cordas em volta de mim e se aperta, tentando me cortar pela metade.
Não ouso olhar por cima do ombro para ver o rosto de Varia – não com
Malachite e Lucien me derrubando assim. O olhar nos olhos deles me faz
sentir como um coelho parado no meio de uma armadilha, cercado por todos
os lados por uma corda.
Eu procuro no rosto de Lucien qualquer sinal de força, de misericórdia,
mas ele é pedra. Eu sou seu inimigo. Ajudei a irmã dele a encontrar a árvore
que a mataria. Eu o traí de novo. Mas ele...? Ele é mesmo?
— Eu sei. — Varia finalmente responde Fione. — Eu sei o que vai levar
por cinco anos agora. Não sou ignorante, Fi.
— Então você está brava! — Fione fala. — Se você pegar a Árvore, você
vai... — Ela engasga com suas palavras, lágrimas as separando. — Você
morrerá!
A voz de Varia é quase inaudível. — Eu sei.
— Tudo isso... — Fione joga as mãos para fora, implorando. — Tudo isso
para reforçar uma paz temporária.
— Não, — Varia a interrompe. — Não é temporário. Você está certa –
terei apenas alguns meses com a Árvore. Mas farei cada segundo valer. Vou
remodelar o mundo. Não apenas Cavanos, Fi. O mundo. Farei crateras em
uma Arathess que não pode ser preenchida com terra e coberta de novo, ou
esquecida. Farei crateras. Arathess será forçada a construir cidades e estradas
ao redor.
O olhar de Lucien se afasta de mim por um segundo, seus olhos se
estreitando imperceptivelmente para sua irmã no pico.
— É fácil o suficiente para destruir — ele a chama. — Você pode
construir quase nada em poucos meses de poder absoluto.
— Não. — Eu ouço o sorriso na voz de Varia. — Mas não estou
preocupada com a construção, Luc. Destruirei o que estiver em nosso
caminho, e Arathess construirá no rescaldo. Eles vão construir para mim, nos
sulcos exatos que me restam no mundo, como uma criança traçando suas
cartas pela primeira vez.
morte, ela trará. A fome ri. tanta morte deliciosa.
Malachite balança a cabeça, que tch som de toque em descrença.
— O que você quer que eu faça, Luc? — Varia rosna para ele.
— O que você planeja fazer? Assumir o trono e realizar tarefas
domésticas até morrer? Ajudar os pobres de Vetris realmente os salvará de
morrer em outro lugar? Os ministros, os nobres, aquele maldito Olho de
Kavar, profundamente arraigado, e seus sacerdotes – todos eles querem
guerra. Eles nos empurram à beira disso, de novo e de novo, e nunca vão
parar.
uma roda que gira ETERNAMENTE, a fome insiste. Eu posso sentir
minhas garras descarrilando para pressionar a pele dos meus dedos enquanto
o medo aperta meu cérebro. Varia está aliviando a fome dentro de mim?
— Segurando o maior poder do mundo na palma da sua mão não é a
solução! — Lucien grita de volta.
— Mas é, Luc! — Ela insiste. — A valkerax fez exatamente isso! Por
causa deles, o Velho Vetris foi formado! Humanos e bruxas, finalmente se
reúnem, trabalhando juntos de maneiras nunca antes vistas. Você conhece as
músicas – criamos o Vetris em três dias com nosso poder combinado.
Fizemos esta árvore, pelo amor de Deus! Vou fazer o velho Vetris novamente
– forçarei as bruxas e os humanos a trabalharem juntos mais uma vez!
Os ossos dos galhos estalam juntos placidamente. Enquanto ela fala, a
fome em mim tem aumentado cada vez mais. Agora chega a um ponto febril
e luto contra tudo o que tenho em mim. Não lutarei com Malachite, Lucien,
Fione. Não eles.
Não eles.
INIMIGO! a fome grita. TRAIDORES. SEUS ÓRGÃOS derreterão o
gelo...
Do silêncio. Do silêncio! Eu imploro comigo mesma, fechando os olhos e
afundando no vazio do meu peito. Eu já pratiquei, muito mais prática agora,
mas a fome acende um fogo de óleo inconsolável que assola minha mente. É
mais forte do que qualquer coisa que eu já senti antes – mais forte do que era
na clareira. Esse desejo de fazer o sangue escorrer, consumir carne quente e
tendão apertado, rasgar e rasgar e deixar o caos da morte em meu caminho –
não é apenas uma nuvem de frenesi que me rodeia como era a noite da
Caçada. É uma flecha, apontada diretamente para mim e acertada.
Meus dentes se arregalam, minha respiração está inchada como um ar
branco irregular.
A Filha Risonha está me pedindo para matar. E Lucien está assistindo isso
acontecer. Ele está me vendo me tornar o monstro novamente. Ele não. Não
eles. Quatorze homens, mas não eles, também, de novo não, de novo não, DE
NOVO NÃO...
Eu me agacho – por favor, não se agache, não se mexa nem um
centímetro – meus músculos se contraem quando a mão de Malachite em sua
espada se aperta.
MATE. A fome se torna meus pensamentos, minha própria respiração.
Uma a uma, suas gargantas serão nossas...
— Eu não faria isso se fosse você. — A voz de Lucien corta através da
minha sede de sangue, mas por pouco. Eu golpeio minhas garras, a fome
inclinando minha cabeça com uma curiosidade sedenta de sangue enquanto
eu observava o príncipe se mover ao lado de Fione, com os olhos fixos na
irmã.
— E por que não? — Varia ri. — Alguém tem que mostrar que ela não é
boa para você.
Sem palavras, Lucien olha para Fione. Algo passa entre eles, e ela acena
com a cabeça para trás. Ela afasta a capa, o subpêlo, para revelar a fina
musselina branca de suas roupas de baixo, logo acima do coração.
SUA ARTE, a fome grita, e eu não posso evitar o lamber dos meus lábios.
O QUE AMAMOS MAIS – NOSSOS OU NÓS?
O fraco lado humano de mim assiste horrorizado quando Lucien levanta a
mão e a coloca gentilmente contra o peito de Fione. Ela está tremendo, mas
sua expressão é inquebrável, seu olhar desafiador e cheio de lágrimas atrai
Varia.
— Desça da árvore. — Lucien diz claramente. As pontas dos dedos ficam
negras, a escuridão se espalhando e cobrindo o branco dos olhos.
Minha mente gagueja, mas meu corpo e a fome controlando apenas se
abaixam mais perto da neve, prontos para atacar.
— Desista. — Lucien diz novamente, desta vez com mais força, nem um
pouco de pena ou suavidade em seu rosto, em seus dois olhos escuros. — Ou
Fione se tornará minha Sem Coração.


Um bruxo.
Lucien é um bruxo.
ELE MORRERÁ DO MESMO JEITO. A fome não se importa com o
que ele é, mas os fragmentos de mim que ainda restam me importam.
Quando? Quão? Qual é o seu verdadeiro nome? Ele está chantageando
Varia com a segurança de Fione. Insensibilidade é dor.
Insensibilidade é fome, interminável. Ela sofreria muito. Ela não tem ideia
do quanto, e ainda assim ela está lá, segurando suas roupas de lado com
determinação para tornar mais fácil para ele tomar seu coração. Ela tem pavor
de Sem Coração.
E ainda assim ela está disposta.
Ele está fazendo o que eu quase fiz com ele.
Com a outra mão, Lucien tira uma bolsa do casaco. Uma bolsa de seda.
Ali, costurada com bordado desajeitado, está a palavra amigo. A fúria de
Varia – eu posso sentir no instante em que ela põe os olhos na bolsa, no
instante em que ela entende o que está acontecendo. É como se alguma
mudança terrível tivesse sido ativada em minha mente.
Como se atrevem a nos ameaçar, a fome troveja, um eco de sua raiva. O
SANGUE CHOVERÁ. O SANGUE VAI CHOVER. SEU
FÍGADO FOI DELE, SEUS OLHOS DESAPARECERAM ATRAVÉS
DE SUAS SOQUETES – SERÁ O PÁSSARO QUE CAIU SOBRE
Varia o faz de maneira diferente – rindo intensamente, sem mais
nervosismo em sua voz, cada palavra marcada por uma fúria aguda.
— É isso que aconteceu, irmão? — Eu ouço suas botas triturando na neve.
— Devemos lutar um contra o outro como clichês de livros de histórias?
AGORA. A caminhada me empurra. Eu corro para frente, minhas garras
estendidas e apontamos para a mão de Lucien contra o peito de Fione.
Rasgue-a, afaste a ameaça em duas.
De repente, o aço largo bloqueia minha visão, minhas garras duras
raspando e gritando contra a lâmina de uma espada larga. Do outro lado do
aço, os olhos vermelhos de Malaquite me encaram.
Me desculpe, eu quero dizer.
MOLHADO NO SEU SANGUE, a fome grita.
— Finalmente, — a fome e eu nos fundimos e dizemos juntos.
— Nós encontramos um verdadeiro desafio.
— Não tenha muitas esperanças, filhote, — Malaquite me puxa de volta
para mim, me olhando de cima a baixo como se não estivesse impressionada
com o que eu me tornei. — Eu sei que não sou.
— Foi você então? — Varia pressiona. — Quem começou o fogo de
bruxa? Eu tinha minhas suspeitas. Mas parecia um fogo forte demais para
uma bruxa mal nomeada como você. Foi uma bagunça, e impulsionado
inteiramente por uma terrível onda de emoção. Eu estava quase preocupada
que você queimasse a cidade inteira. Mas o pai ficou tão aliviado quando seu
guarda-costas o trouxe de volta – suponho que você finalmente desmaiou de
toda a fumaça. A inconsciência conserta o fogo de bruxa tão bem quanto a
morte.
Lucien simplesmente a olha silenciosamente, com as pontas dos dedos
ainda no peito de Fione.
— E o terremoto que ocorreu abaixo do Portão Sul? — Pressiona a
princesa. — Era você também? Uma peça magistral de magia, se assim posso
dizer. Era tão forte e localizado que quase me enganei ao acreditar que era
uma bruxa muito mais velha e mais experiente. No entanto, você se escondeu
de mim? Eu tinha todos os polímatas na Dama Carmesim procurando por
você.
— Como mais? — Lucien diz. — Gavik sabia melhor, neste caso.
Mercúrio branco, ingerido diretamente.
Varia ri. — Você bebeu? Direto? Por dias e dias? Oh, seu coitado, idiota.
Você deve ter sentido muita dor. Mas você veio preparado para me ameaçar
com o bem-estar de Fione e tudo. Então alguém deve ter lhe contado o que eu
estava planejando com a valkerax. Com esta árvore óssea. E, no entanto,
assegurei-me de que meu povo ficasse de boca fechada. Eu me certifiquei
disso mais do que qualquer coisa. Eu constantemente os verificava, e me
certificava de cortar laços frouxos e línguas mais frouxas.
Fione repentinamente afasta os olhos de mim e Lucien fixa os dele em
mim. Há uma fração de segundo em que aparece uma rachadura em sua
pedra, nua, macia e aberta. O olhar de Varia pisca para mim, seu rosto se
iluminando por dentro com uma alegria contorcida.
— Não. Irmão, você não fez.
Minhas sobrancelhas se franzem, e eu faço a pergunta sobre a nossa fome
e eu queimo.
— O que você fez conosco?
O medo corre através de mim quando ele abre a boca, aqueles lábios
suaves se movendo. — Eu...
A risada de Varia o interrompe. — Toda bruxa é única, Zera. Mas alguns
padrões reaparecem em poderes. Meu irmão é um leitor de pele. Ele pode
tocar alguém para ver suas experiências mais recentes. Não é, Luc? Você
descobriu seu poder por acidente, mas usou-o intencionalmente em Zera.
O frio do pico congela meu sólido insensível. — O beijo... nossas mãos
entrelaçadas... Você nos usou?
EU TE DISSE; Eu te disse. TODOS TRAÇARÃO VOCÊ. SEU
DESEJO PARA VOCÊ, SANGUE
A fome me contorce, minhas mãos segurando minha cabeça tremendo tão
violentamente que cortei meu couro cabeludo com minhas próprias garras, o
sangue escorrendo. Por quê? Para todo mundo, eu era uma coisa – ser
temida, ser usada. Para ele também.
Ele nunca se importou. O beijo, esses toques gentis me dando esperança...
Eu estava sozinha, sempre.
— Acredito que isso se chama 'ironia', minha querida Sem Coração. —
Varia ri. — Não é simplesmente perfeito?
— BASTANTE! — Lucien grita, mais profundo e mais sacudido do que
qualquer terremoto.
— Não! Não é o suficiente! — Varia dispara instantaneamente.
— Eu fiz isso por você, Lucien. Para te proteger! Eu fiz tudo isso por
você, Fione! Fiz isso porque ninguém mais o fará. — Ela ri amargamente
novamente. — Você me escuta? Ninguém mais vai! Essas bruxas são
covardes – poderiam terminar a guerra, promulgar a paz, mas acham isso
muito perigoso. Elas são egoístas! EU! — Ela faz uma pausa, o som de um
baque batendo. — Eu sou altruísta.
— Você está convencida, irmã — diz Lucien, com a voz bruta. — com
ilusões de grandeza.
— Faço isso porque é dever de uma Rainha proteger seu povo! — Ela
continua. — Faço isso porque é dever da Rainha mudar o mundo para
melhor! Não vou perpetuar o problema, Lucien. Eu serei a resposta. E se eu
devo fazer isso sozinha... — sua voz suavemente se suaviza. — Se eu devo
fazer isso sozinha...
SEMPRE SOZINHA, a fome se apodera, ressoa sua fraqueza com a
minha. Afasto-me da espada de Malachite, e ele dá um soco em mim, mas me
esquivo embaixo de sua lâmina e subo na frente dele, minhas garras
arranhando carne macia quando encontram seu rosto – não. Não! Pare com
isso!
Malachite olha para cima, com o rosto vazando sangue em três fatias
irregulares na sobrancelha, na bochecha e na orelha esquerda, com o lobo
aberto. Silêncio. Eu devo ser o silêncio. Eu tenho que chorar, parar antes que
eu o machuque, antes que eu o mate, antes que ela me faça ligar Lucien de
uma vez por todas -
— Como é a sensação? — A fome provoca comigo. — Diga-
me, sua dor está rasgando você também?
Eu não posso chorar. Eu não fui cortado por uma lâmina de mercúrio
branco. Não importa quanto silêncio eu chame, a imagem daquele beijo no
salão de Moonskemp, a sensação da palma de Lucien na minha palma – a
fome apenas grita e grita, uma constante câmara de eco de tormento sem fim.
Ele nos usou. ELES MORRERÃO POR OUSAR USAR, FICAR
CONTRA NÓS,
NÓS, ELES SE ENCONTRARAM NÓS COMO EU
DISSE QUE SERIAM SUJOS, VOCÊ ESTÁ SUJO POR TODOS OS
QUE CONFIAM – VOCÊ É DONO POR NADA, MAS A MORTE
PAGARÁ O SEU PREÇO EM VEZ…
Eu lambo o sangue de Malachite dos meus dedos, sorrindo para ele com
todos os meus dentes afiados. Uma força maciça de repente me cega,
varrendo minhas pernas debaixo de mim e me jogando na neve. Eu tento sair
do porão, mas os braços finos de Malachite são incrivelmente fortes – seu
aperto de aço e infinitamente pesado. Mal posso me mover, mas sob as mãos
dele sinto o pior por vir. Meus membros estão se alongando.
O monstro está chegando.
Por um breve momento, tremo na escuridão. Superfundo acima do
interminável lago de desespero em que a fome me arrastou, olhando para o
rosto de Malachite pairando acima de mim, sangrando em mim.
— C-corra, — eu engasgo. — Pegue-os e corra.
O beneather sorri para mim. — Não é uma chance na vida após a morte.
— Desça da Árvore, Varia ou Fione não tem coração. — Lucien grita ao
nosso lado, seus dedos escuros cavando o peito de Fione.
Fione fica tensa, a boca aberta em um grito mudo enquanto o sangue
escorre dos pontos de entrada. Tento me esticar para ela, puxar a mão de
Lucien, mas a fome me puxa para baixo mais uma vez, enfurecida com meus
esforços para me libertar.
PACIÊNCIA. SEU TEMPO ESTÁ CHEGANDO
— Fione, — Varia diz, sua voz repentinamente suave. — Afaste-se dele e
venha aqui.
— Não! — Fione deixa escapar. — Eu já fiz minha escolha. Isso é seu!
— Então até você... — A voz de Varia racha no meio. — Até você se
voltaria contra mim, amada?
Do meu lugar presa na neve pelos joelhos de Malachite, posso ver o rosto
de Fione se contorcer, fraturando com um tipo diferente de dor nos lugares
delicados – sua boca, os cantos dos olhos. Mas ela não se move nem um
centímetro de seu lugar ao lado de Lucien. Ela é tão forte. Tão triste.
Há uma batida, a Árvore dos Ossos rangendo entre nós. E então a vontade
de Varia incinerará minha mente.
DESMONTE-OS
O mundo fica vermelho. Seis vezes.
Minha visão fratura – seis pontos embaçados em um pouco além do meu
nariz. Calor. Calor acima de mim, frio abaixo de mim, meus membros
repentinamente mais longos e fortes, mais rápidos, rápidos e fortes o
suficiente para jogar o tempo fora de mim.
Beneather. Mal. Mal… o que? Qual é o nome dele?
Um cadáver, a fome responde, e eu arremesso meu corpo – garras
primeiro – nas duas baterias que estão conectadas, aquelas que minha bruxa
quer destruída. Luc... o Príncipe. Lucien. Lembro-me dele, seu nome tocando
como um sino. Este lembramos brasa, este não queremos matar...
Metal. Metal pisca na frente do meu rosto, cortando minha mão.
O sangue se espalha sobre a neve, um belo calor carmesim. Um belo
incômodo. Com um rosnado baixo, pego o metal com a outra mão e o dobrei
para trás, o estridente de sua resistência ensurdecedor enquanto se enrola em
si mesmo em uma espiral inútil. O beneather segurando a arma arruinada abre
seus olhos de rubi no meu rosto, na sua espada, e eu o corto com minha mão
semi-curada, as garras de osso voltando a crescer pelo toco do meu pulso
antes de qualquer outra coisa. O cheiro de fogo, e algo quente e ardente,
colide com o meu rosto, o cheiro de carne chiando e o som do meu próprio
rugido de dor quando me viro para encarar a bruxa que o jogou – Lucien, a
palma da mão enegrecida no pulso e estendeu para mim, seus olhos orbes da
meia-noite.
Corre.
FUNCIONE, PEQUENAS OVELHAS, O LOBO COM fome
chegou a brincar...
Corra, por favor.
Estendo a mão para arrancar Lucien do outro calor, a garota.
Gritando. Lucien grita, uma vez, e a garota segura algo na minha frente –
uma adaga, brilhando com jóias, a lâmina de metal brilhando em um branco
puro e a apunhala no meu peito. Muito alto para alcançar meu coração,
esquerda demais para alcançar meus pulmões, exatamente para a direita.
Fogo branco-quente coça meu sangue, dormência se espalhando do meu
cérebro para os dedos dos pés e vice-versa. O toco da minha mão para de
curar rapidamente, a pele se reconstruindo agora com lentidão quase
invisível.
O cheiro.
ELES SÃO OS TRANSFORMADORES
Mercúrio branco.
Olho para a lâmina no meu peito – o metal é certamente branco.
Não é um frasco de mercúrio, mas o contém, como as quatro espadas
perdidas na guerra. Como a espada presa ao quadril de Varia, mesmo agora, a
única que restou no mundo. A fome começa a desmoronar, o silêncio que eu
estava segurando tão forte rugindo para me cumprimentar, me envolvendo
como uma mãe há muito perdida em seu abraço frio. A raiva não é mais
minha, meu desespero não é meu, e eles se afastam de mim, deixando-me
leve. Silencioso.
A fome parou de cantar.
— Não! — Ouço Varia gritar, indignado e furioso. — Fione!
Querido coração, o que você fez?
— Fiz o que meu tio não conseguiu. — diz Fione suavemente.
Os olhos escuros de Lucien permanecem nos meus, e eu me vejo neles –
minha forma monstruosa mostrou à vista de todos. Meu rosto é estranho; seis
olhos brancos onde dois deveriam estar. Como uma valkerax. Palavras e
desespero circulam entre nós enquanto eu pairava sobre ele. Aquele beijo não
foi real. Seu toque – irreal, manipulador. Ele é uma bruxa. Mas tudo isso
pode esperar. Esperará três anos como eu esperei, se for necessário. Eu estou
no silêncio. As lágrimas quentes escorrem dos meus seis olhos. Lagrimas de
sangue. Viro minha cabeça lentamente por cima do ombro, o sol jogando
minha sombra alongada sobre a neve manchada de sangue enquanto passo em
direção a Varia, abrindo a palma da mão.
— Meu coração. — eu rosno, minha voz ainda sombria e bestial.
— Agora.

Fique aí!
— Varia exige, o comando deslizante e através de cada sílaba. Mas o
Choro me tem ainda em seus braços. Está tão quieto dentro de mim. Nada se
move para me impedir – nem culpa, nem mágica, nem fome. Eu estou livre.
Eu ando na direção dela, mais rápido agora, e seus olhos se arregalam. Ela
move a mão para mais perto da Árvore dos Ossos e, atrás de mim, Lucien
grita.
— Você primeiro, irmã. Fique na sua mão, ou Fione é minha Sem
Coração.
Certamente ela se preocupa mais com Fione do que com a Árvore dos
Ossos. Eu as vi tão felizes juntas – sorridentes e douradas.
— Certamente, Alteza, — eu digo, minha voz monstruosa destruindo o ar,
— seu próprio coração querido é mais importante que o poder.
Os dedos da princesa estão pairando logo acima do branco liso do tronco.
Eu sei que a Árvore a chama há anos, infectando seus sonhos. Mas a escolha
agora é dela e só dela. Atrás de mim, eu sei que Lucien está apertando seu
aperto no coração de Fione – eu posso sentir o cheiro do sangue escorrendo
dela. O ar parece tão denso para mim, mesmo como um monstro, a magia ao
nosso redor tentando espremer a vida de mim, a partir do momento, do
próprio tempo.
— O poder não é tudo. — digo à princesa.
Todo som desaparece. Todo movimento para, exceto o movimento da
mão dela tremendo acima do tronco da Árvore Óssea.
O rosto orgulhoso de Varia oscila, preso na borda entre as linhas do
tempo. Ela, feliz com Fione. Ela, tomando um poder que a destruirá.
Duas de si brigam entre si neste momento.
Ela estava pronta por cinco anos. Eu estava pronta para as três.
Um floco de neve cai no meu cílio. O vento move suavemente a árvore,
os ramos dos ossos batendo juntos. A princesa olha para mim, nenhum traço
de expressão em seu rosto.
— Não. — ela concorda. — Mas é a única coisa que importa.
A mão de Varia toca a casca.
A próxima coisa que vejo – céu azul. Estou voando pelo ar, para trás e
para longe da Árvore dos Ossos, empurrada por uma força inacreditável, as
garras e vértebras dos galhos em espiral em minha visão enquanto rolo
inúmeras vezes na neve como uma boneca jogada.
— Não! — O grito de Fione perfura o isolamento do momento, e o tempo
é resumido.
— Varia! — Lucien chama, seu tom estremecendo de preocupação. —
Varia! Varia!!
Ela escolheu.
Eu cambaleio para os meus pés, apertando os olhos quando uma luz
abrasadora na base da Árvore dos Ossos, onde Varia estava, cresce cada vez
mais. Seu contorno é levemente visível – uma forma humanóide engolida por
luz branca, a mão apoiada no tronco. Ela levanta a cabeça, a boca se abre e a
luz sai dela em um feixe concentrado. Corro para ficar diante de Lucien,
Fione e Malachite, enquanto o poder do velho vetrisiano embaça a neve, o
céu, drenando todas as cores do mundo, de nossos rostos e roupas. Está
sugando, como se estivesse se preparando para expulsar, os galhos da Árvore
dos Ossos agora tremendo descontroladamente, sem sentido – uma imagem
espelhada da maneira como Evlorasin se contorcia de dor todos aqueles dias
abaixo da cidade.
— Algo vai explodir! — Fione grita. Eu também posso sentir isso – o
peso do ar está se comprimindo naquele único ponto de Varia embaixo da
Árvore. Algo tem que dar, e em breve.
— Varia! — A voz de Lucien fica áspera, deslizando através da neve para
alcançar sua irmã. — Varia!
— Luc, não! — Malachite cambaleia atrás dele.
O momento diminui novamente. Eu, de pé com uma adaga branca de
mercúrio no meu peito, meus seis olhos brancos se estreitaram e choravam
sangue. Malachite, estendendo a mão longa e pálida para Lucien, seu rosto
ferido gravado de preocupação. Fione, lágrimas escorrendo por seu rosto,
cinco pontos de sangue manchados na pele sobre seu coração, seu coração
que deve estar completamente quebrado. Varia, cheia de luz, derramando-a,
quase consumida por ela agora. E Lucien.
Lucien, estendendo a mão para a irmã, a mão estendida, as pernas
congeladas em um longo passo e sua expressão – tão rígida até agora –
oscilando à beira de desmoronar.
Perder alguém uma vez – devastador.
Perdê-los novamente – o fim do mundo.
Lucien está mais perto da luz do que qualquer um; ele não vai sobreviver
à explosão. Mas Fione e Malachite também não. Esse poder – é como nada
que eu já senti – não é mágico, não é máquina, mas algo maior do que
qualquer um poderia estar sozinho.
Silêncio. No silêncio. Tudo o que importa é o próximo momento.
Não é o que Lucien me usou, não o que Varia traiu seu amor. Não é o que
eu me tornei, com meus seis olhos. Apenas o próximo momento.
No perfeito silêncio de minha concentração, posso ver tudo, todo o calor e
nesta montanha, toda a frieza nela – até onde as montanhas vão, quão perto o
abismo boceja em todo o pico.
— Eu sou Zera Y'shennria, o lobo faminto. — eu sussurro. — E isso
nunca é um adeus.
Cada momento – um após o outro – é a única coisa que importa, enquanto
eu corro com toda a minha velocidade, toda minha força, em direção ao Treo
Osso, em direção ao nexo de luz que Varia se tornou...
Algo pega meu pulso. Não é forte, mas está queimando quente, ardendo
de uma maneira que exige minha atenção. Olho para ver Lucien, seus olhos
negros brilhando para mim.
— Não! Não vou deixar você se sacrificar novamente por mim.
Estou atordoada, sem palavras, quando Lucien se coloca na minha frente,
seus dedos ficando escuros enquanto os levanta, palmas para cima. Um vento
estranho e não natural brinca com seu cabelo curto, enrolando-o em seu rosto.
— Desta vez. — sua voz soa — Eu vou protegê-la.
Meu não-coração aperta dolorosamente enquanto seus lábios se movem
com palavras inéditas – suas orações ao Deus Antigo. Varia fica cada vez
mais brilhante, tão brilhante que mal consigo ver seu contorno escuro contra
a luz. Mas ele ainda está de pé, e eu tenho que lutar contra todos os desejos
de sacrifício em mim para não correr a toda velocidade em Varia e levá-la
para fora do pico da montanha comigo. Mas vence – não posso deixar Lucien
morrer.
Eu começo a frente, e Lucien late: – Confie em mim, Zera. Por favor.
— Você tem uma vida para viver. — eu cuspi.
— Essa vida não vale a pena viver. — Sua voz é dura. — Se não estiver
com você.
Todo o ar em meus pulmões implode, e eu viro minha cabeça lentamente
para olhar para ele. Seu olhar é mortalmente sério, mas um sorriso puxa seus
lábios largos quando a escuridão rasteja em seus olhos.
— Eu sou a Rosa Negra. — diz ele. — E eu tenho o poder de protegê-la
agora.
A fogueira brota do nada – uma parede rugindo dela tão alta que mal
consigo ver onde termina no céu. As chamas negras se estendem em todas as
direções, obscurecendo a luz que Varia está emitindo e a enorme Árvore dos
Ossos. A luz luta para atravessar a parede de fogo negro, ainda mais brilhante
em um terrível crescimento de luminescência. Lucien agarra os dedos, a
escuridão esticando os pulsos e os antebraços, os bíceps, sobre os ombros e
subindo até o pescoço, suor escorrendo pela testa.
— Não posso desviar, apenas redirecionar. Você tem que voltar – ele late.
— Para onde Malachite e Fione estão.
— Mas você... — Eu observo sua postura endurecer quando ele levanta as
mãos, as chamas ficando mais densas e rugindo mais alto.
— Estou confiando em você com eles! — Ele grita.
Confiar. Confiando em mim, depois de tudo? Confiando em mim depois
que me recusei a confiar nele? Engolindo o que parece ser vidro, luto pela
neve de volta ao tempo e sangro. A Árvore dos Ossos está fazendo um
barulho horrível agora, um grito agudo, como um gato selvagem chorando
misturado com um cervo moribundo, e abro os braços, arrastando Malachite e
Fione na neve para proteção.
— Luc... — Malachite começa.
— Ele vai ficar bem! — Eu grito.
— Mas esse fogo não vai...
— Temos que confiar nele!
Malachite olha nos meus seis olhos e depois assente, uma vez e com
propósito. Ao meu lado na neve, sinto Fione deslizar sua mão na minha e
apertar, apesar de quão monstruosa eu devo parecer.
Confiar.
Aqui, no silêncio, é muito mais fácil confiar.
Eu podia morrer. A explosão centralizada em Varia poderia destruí-la, e
meu coração. Ela poderia morrer. Lucien poderia desmoronar sob a força
contra ele. Fecho os olhos e rezo – para quem, não tenho mais certeza.
Apenas alguém, alguém que pode ouvir. Alguém que pode ouvir minhas
palavras agora mesmo quando elas vazam do meu coração, do meu coração.
Por favor. Por favor, mantenha-nos todos seguros.
A parede negra de fogo de bruxa bloqueia o céu, espiralando para cima e
para cima e ao nosso redor, como uma bolha protetora de fogo puro. A neve
derrete nas chamas, a água se acumula no chão e absorve nossas roupas. A
luz branca começa a vencer, sugando até as chamas negras da fogueira.
Lucien não se mexe, com o corpo imóvel e a parte superior do corpo agora se
contorcendo com animada meia-noite, desprovida de todas as cores.
O Príncipe de Cavanos, o ladrão Whisper, o garoto por quem me
apaixonei na noite da caça, o bruxo chamado Rosa Negra – todos se reúnem
enquanto observo os ombros dele, suas costas arfando. Ele solta um rugido
irregular para envergonhar até o barulho da fogueira, e as chamas voltam à
vida, mais fortes do que nunca, dançando com novo vigor e irradiando uma
luz negra profana.
A explosão da luz branca sacode o chão. Mesmo através do fogo, a luz
queima nas costas das minhas seis pálpebras. Eu ouço a montanha rachar com
um estrondo pesado, o chão desmoronando do lado de fora do nosso escudo
de bolhas de fogo.
Fione grita, e eu cubro suas orelhas e a abraço. O fogo negro e a luz
branca se misturam, lutando no ar, até que cada pedaço de calor e energia se
esgote, fracassando no nada.
Quando minha visão clareia, o fogo de bruxa se foi.
Estamos no meio de um círculo perfeito da terra – tudo o que resta do
pico da montanha.
Lucien fica parado, dobrado, apoiando-se em um ponto ao lado e
ofegando incontrolavelmente.
Malachite e eu saltamos imediatamente, correndo para ele, a lama
lamacenta que antes era neve profunda espirrando freneticamente em nossas
botas.
— Luc! — Malaquite olha para ele. — Você está bem?
Meu pânico se esvai quando vejo que ele parece inteiro, mas seus olhos
estão fixos – olhando diretamente para alguma coisa.
Fione nos alcança, com a voz baixa. — V-Varia.
Eu olho para onde a Princesa está, para a Árvore dos Ossos.
Senta-se na extremidade do círculo da terra, agarrando-se às suas raízes
oscilantes. Não mudou nada – nenhuma marca da explosão visível. Os ossos
são inteiros, intocados.
E ali, de pé sob seus galhos com uma calma facilidade, está Varia. Sua
cortina de cabelos escuros brilha, seu sorriso discernível até da nossa
distância. Ela parece inteira também, normal, como se nada tivesse
acontecido – exceto as presas saindo do pescoço.
Como uma macabra peça de joalheria, como uma gargantilha que deu
errado, uma linha de presas afiadas e esbeltas se espalha por seu pescoço em
um anel perfeito, fundido à sua carne. Não é grande o suficiente para ser
presa de valkerax, mas idêntica em forma e serrilha.
Ela inclina os dedos para o céu e, horrivelmente, algo sobe. Um assobio
baixo incha como uma onda, quando centenas de coisas sobem da montanha.
Não – milhares. Milhares de corpos brancos e sinuosos, semelhantes a lobos,
erguem-se lentamente no éter, crinas emplumadas brilhando e caudas
chicoteando, bigodes ondulando no céu sem nuvens.
A valkerax.
Um pilar de valkerax, contorcendo-se.
— Bem, agora. — Varia sorri para todos nós. — Acredito que é aí que o
seu trabalho termina. E o meu começa.

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