Terra de Almas Perdidas
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Sobre este e-book
Ao se deparar com o moribundo Fausto, um velho que aparenta ter mais de cem de anos, Jonas se vê envolvido com a crença ao redor de uma antiga garrafa na qual vive uma entidade capaz de realizar todo e qualquer desejo de uma pessoa, dos mais simples aos mais fantásticos. Mas o preço... o preço cobrado pelo famaliá, o diabo da garrafa, é a alma eterna de quem se aventurar a tocá-la.
Enquanto se envolve com a intrigante Luiza, uma mulher que aparenta ter 30 anos, embora insista em ter vivido o dobro disso, Jonas mergulha na busca pela misteriosa garrafa, primeiro com curiosidade e, depois, para salvar a própria alma.
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Terra de Almas Perdidas - Jefferson Sarmento
Primeira Parte
A Enseada
"O ritual cantado não era o segredo —
este jamais era cantando em voz alta,
sendo apenas sussurrado.
O cântico significava apenas isso:
Em sua casa, em R’lyeh, Cthulhu, morto,
aguarda sonhando."
(O chamado de Cthulhu, de H. P. Lovecraft)
"O que houve então —
quando o mágico, tendo hipnotizado o tigre enjaulado,
puxou o cordão ornado com borlas que liberava
uma dezena de espadas sobre sua cabeça..."
(Os livros de sangue: A última ilusão, de Clive Barker)
03Ilustracao2A cidade dos pescadores...
I
... duas semanas antes.
Eu estava fugindo havia algumas semanas quando cheguei à Enseada dos Novenos no meio daquele dia. Fugindo de ser preso pela morte de Beatriz e de seu irmão.
Ah, sim...
Não falei sobre Beatriz ainda. Não sei se posso agora.
II
Pelo meio da quinta-feira as caronas rarearam e eu havia chegado a um posto de gasolina praticamente abandonado no quilômetro 40 duma estrada sinuosa e deserta, escondida por hectares e hectares de coqueiros inférteis, meio apodrecidos num labirinto que se estendia até o começo de uma serra.
Parada 44, dizia o letreiro do posto. Lixo e óleo espalhados por todo lado. Latões amontoados, caixas destroçadas, terra seca dançando no vento, um animal morto, apodrecendo no relento ao lado da estrada. Eu estava com fome, sede e cansado. As costas doíam muito, o ânimo era praticamente uma pequena fresta escura perdida no nevoeiro de confusão e desespero em que se havia tornado meu futuro possível, depois de matar o irmão de Beatriz e... bem...
Eu também a matei.
E estava fugindo para não ser preso.
Olhei para as únicas duas bombas do posto: diesel e gasolina. Estavam sujas de terra e a parte de baixo estava incrustada de uma mistura preta de óleo e poeira. A loja de conveniência não estava melhor.
Entrei. A porta de vidro rangeu, voltando para o batente. O ar ali dentro estava empesteado de maresia, meio mofado, embora a beira-mar ainda estivesse a alguns quilômetros de distância. Um balcão torto e arriado de cupins servia de encosto para um homem magro e de olhos estreitos com um avental surrado, debruçado pela parte de dentro e resmungando alguma coisa com seu único freguês, bem à sua frente. O dono do posto tinha esse nariz disforme, grande, aquilino. Os cabelos eram compridos, ensebados. Quando passei pela porta, um pouco cego de poeira e da claridade acinzentada lá de fora, ele me encarou de cima a baixo.
O cliente solitário era um velho de pele escura, metido num casaco verde oliva. Tinha a cabeça raspada e um porte esguio, digno. Ele acompanhou o olhar do proprietário, virando-se para mim.
— Bom dia — eu disse. A voz saiu embargada, rouca. Devia ser da noite úmida na beira da estrada. Eu havia me abrigado num ponto de ônibus abandonado, alguns quilômetros acima, tremendo de frio e me assustando com os ruídos guturais na mata atrás da varandinha arruinada. O banco de concreto meio destruído e gelado, a neurose de que alguma coisa vigiava do meio dos coqueiros mortos e me atacaria...
O velho com o casaco do exército sorriu e devolveu o cumprimento. Já o homem atrás do balcão não pareceu muito receptivo.
— Estou na estrada há algum tempo e... estou morto de fome. Não tenho...
— Eu não tenho nada para você — disse o dono do posto. — Pode voltar por essa porta mesmo.
— Posso trabalhar, lavar alguma coisa ou...
— Se manda, cara. Não preciso que limpe nada. Já tenho problemas suficientes com aquela gente da Zona Oeste. Não tenho que tratar de nenhum andarilho vagabundo.
— Escute, eu só...
— Eu conheço bem o seu tipo. Assim que eu virar as costas, vai vender minha gasolina na encolha e embolsar o troco. Vá embora!
— Eu...
— Não me ouviu?
O estômago dava socos nas paredes, tentando me convencer de que ainda existia. Eu o ignorei, porque era o que podia fazer. O velho sentado na banqueta de clientes me acompanhou com os olhos enquanto eu saía pela porta de vidro. Cruzei o posto na direção da estrada. Tive a impressão do peso daqueles olhos às minhas costas. Se eu me virasse, ele estaria vigiando, acompanhando meus passos através da janela suja de poeira fossilizada.
Não tinha um lugar certo para ir, então continuei na mesma direção em que seguia antes. Uma placa a cerca de cem metros do posto anunciava a entrada para a Enseada dos Novenos a dois quilômetros.
Tenho medo de não ter para onde ir — eu me ouvi pensando. Era um eco do passado. Tanto que a voz na minha mente era de uma criança. Quantos anos eu tinha quando me percebi chorando essa frase para aquele padre fajuto? Sete? Oito?
Dentro dessa lembrança, o falso padre me encarava com os olhos ternos de quem compreende. Eu havia perdido meus pais. Meus tios me enviaram para a igreja, para as aulas de catecismo. Eles queriam que eu perdesse aquela insolência de criança raivosa, abandonada, perdida. Só não sabiam que estavam me enviando para um padre que nem era padre. De qualquer forma, só o vi uma vez.
Pelo menos até alguns dias depois de chegar à Enseada dos Novenos.
Não, ele não me tocou. Mesmo assim, era uma memória ruim. Afastei-a e me peguei de volta na estrada, caminhando à margem, o céu cinza berrando lá de cima.
Depois de dez minutos que havia saído do posto, ouvi o barulho rouco da caminhonete se arrastar às minhas costas. Dei uma olhada, descansando as pernas. O veículo diminuiu a marcha e parou. Era uma antiga D20 bege, com a cabine estendida, caixotes de frutas e legumes na carroceria e uma faixa desbotada nas laterais. Andei até a janela do carona e lancei os olhos para a cabine escura. Era o velho com o casaco verde oliva que vira no boteco do posto. Sorriu.
— Pegue alguma fruta na carroceria. As bananas estão maduras.
Agradeci com um meneio. Peguei três.
— Entre aí — ele chamou de novo. — Está indo para a cidade?
Empurrou gentilmente a alavanca da marcha e começou a acelerar quando me ajeitei no banco. Assenti, mas se ele tivesse perguntado se eu estava indo para a lua, talvez tivesse feito o mesmo. Descasquei a primeira banana e comecei a mastigar. A sensação de estar ingerindo alguma coisa foi um pouco dolorosa, mas revigorante.
— Tem parentes por lá?
— Não — respondi com a boca cheia.
O velho me fitou com aqueles grandes olhos de quando estamos espantados e curiosos, uma sobrancelha meio erguida e os lábios grossos arqueados para baixo.
— Suas roupas estão um pouco sujas, mas você não se parece com um mendigo. Perdeu o emprego e está procurando uma cidade nova? É a história de todo mundo, com essa crise louca.
Assenti de novo, sem parar de mastigar esfomeadamente.
Entramos por essa via mais estreita e seguimos por alguns quilômetros. Passamos por propriedades esparsas, com casas pobres, de lajotas nuas. À medida que nos aproximávamos da costa, elas aumentaram. Quando contornamos o pequeno monumento que marcava o ponto onde começava a área urbana, o velho parou a caminhonete numa beira de precipício e eu pude dar uma olhada na Enseada dos Novenos. Fiquei ali dentro, o braço tombando para fora da porta e os olhos estreitados na direção do mar.
Lá embaixo havia um tapete de construções baixas — casas de um pavimento e sobrados, também alguns poucos prédios de três ou quatro andares, se tanto. Seguia rasteira até a borda do oceano e era cortada por ele como se um açougueiro lhe retalhasse as carnes mal e mal. Havia dois promontórios altos, como torres de vigia, dos dois lados do centro urbano — que parecia uma enorme ferradura afundada abaixo de onde estávamos, formando um anfiteatro disforme. As partes altas nas duas pontas antes do oceano, no nível onde estávamos agora, terminavam em falésias com trinta ou quarenta metros de altura, despencando para precipícios como aquele em que se mirou o anjo preferido do Senhor — amém-amém.
— Lá — o velho apontou. Segui seu dedo. Estava indicando a colina mais alta à nossa esquerda, mais para dentro do continente e fora da Ferradura. Devia estar a uns três quilômetros. Um mar de casas baixas subia até o topo.
— O que tem lá? — perguntei.
— É a Zona Oeste. No mapa você vai ver escrito Fio do Condado, talvez Condado de Fora. Não importa. É gente ruim. Não se engane com a conversa religiosa deles. Evite se aproximar. Evite como se o seu cu dependesse disso. Porque depende.
Eu ri, estranhando a frase vinda de uma voz tão doce.
— Condado? — perguntei, estranhando o título.
— A Enseada dos Novenos foi parte das terras de um conde. Ele morava exatamente naquele ponto do Promontório Norte, na ponta mesmo. Ainda existem alguns resquícios de ruínas por lá, mas o penhasco despencou para o mar há quase duzentos anos. Acho que duzentos. As terras que saem daquele ponto e avançam para o continente são o Fio do Condado, porque passava um riacho magro vindo da antiga área rural que havia por lá, era chamado de Fio. A área rural era chamada de Condado de Fora. Com o tempo, os loteamentos ilegais tomaram conta de tudo de norte a oeste, de Fio a Fora. E tudo virou Zona Oeste.
Perto da faixa de penhasco à beira mar, o terreno ficava acidentado demais. Uma fileira de casinhas e pequenos prédios começava a cerca de duzentos metros da borda. As construções escorriam para dentro do continente, desviando para o oeste e subindo o declive lento da topografia da cidade alta.
Ao sul, do outro lado do centro urbano abaixo de nós, ficava a outra ponta da ferradura, o outro promontório. Havia uma igreja neste. Parecia imensa, ao longe. Atrás dela, um tapete de coqueiros acinzentados se estendia. Seria a mesma plantação que margeava a estrada por quilômetros atrás de nós?
— E lá, o que tem? — apontei para a igreja solitária no outro penhasco.
O velho me acompanhou.
— É a Catedral — ele respondeu, meio seco. — Não tem nada lá.
E calou-se, ligeiramente contrariado. Mudou de assunto rapidamente.
— A Enseada dos Novenos foi uma cidade de pescadores — disse isso com uma voz cansada e um sorriso murcho nos lábios grossos. Nós não havíamos conversado tanto, desde que ele me apanhara como carona. Agora, parecia me apresentar à cidade como se eu fosse um novo morador. — Ainda existem alguns deles, cuidando da Cooperativa lá perto do parque, mas agora estamos tomados por traficantezinhos a serviço de facções das capitais. O dinheiro das drogas não para aqui, porque nem desce dos barcos e lanchas que cruzam a baía. Metade dos moleques da Zona Oeste diz que trabalha para esses grupos de criminosos, mas são uns babões, só isso, tudo morto de fome. Não fosse a Nicole do Fausto, que é outra com quem não deve se meter, eles iriam saquear casas e lojas e transformar o resto de nós, que ainda trabalhamos decentemente, em comida pro verme. E, o que é pior, em nome de Jesus!
Como eu fizesse um ar de desentendido, ele explicou:
— A Zona Oeste é salpicada de igrejinhas de meia porta, velhos botequins que fecham e viram cultos picaretas. Alguns deles são feitos da coisa verdadeira; fé de verdade, quero dizer. Mas você não vai saber de que tipo de Jesus eles estão falando até que um deles coloque uma pistola na sua fuça e te apresente A Palavra. Eles se reúnem numa espécie de congregação maior comandada por um bispo cheio de dogmas e pregações, mas o idiota não controla sequer o que as irmãzinhas doam nas esquinas da rua da procissão. Ou o que vendem os Fiéis de Nicole nas cercas do parque.
— Fiéis de Nicole?
— São os marginaizinhos que trabalham para a dona daquela ilha lá.
Apontou para a baía. A Ilha do Francês dormia sob o céu de chumbo como se fosse um monstro jurássico aproveitando a sesta.
Abruptamente, o velho interrompeu-se e esticou a mão para mim.
— Abdias Moce — ele disse.
— O quê?
— Meu nome. Abdias Moce.
— Jonas. Jonas Almozart — respondi.
Ele esticou o polegar na direção da carroceria.
— Vou deixar o carreto lá no centro. Pode me dar uma ajuda. Isso pagaria o café e talvez alguma comida.
Olhei para a carroceria. Achei que o velho pudesse dar conta sozinho, sem muito esforço. Entendi que ele estava tentando me ajudar.
— Os caminhões de entrega não gostam de vir à Enseada. Cansaram de ser assaltados. Então eu me ofereço pra ir buscar alguma encomenda quando preciso ir ao Porto de Reis receber minha aposentadoria. Ganho alguns trocados de frete e melhoro a minha renda.
— Não tem banco na Enseada?
— O último foi explodido três vezes. Está em obras, mas eu aposto que não vão abrir nunca mais.
Abdias Moce engatou a marcha outra vez e seguimos pela rua de asfalto surrado descendo pela barriga da Ferradura.
III
Aceitei sua proposta para ajudá-lo. Claro que aceitaria. Descarregamos as caixas com laranjas, repolhos, tomates, batatas e bananas. Tomei o café numa cozinha suja, perto do galpão onde funcionava um mercadinho. Recebi alguns trocados pelo trabalho e ouvi a primeira recomendação de ir embora. Veio do próprio Abdias Moce, enquanto descansávamos numa banqueta na lateral da loja. Dava para uma praça realmente grande, semicircular, pouco cuidada e com árvores esparsas. No fim dela, um inusitado parque de diversões fincava-se no cais. Parecia o remanescente de um velho filme de horror em que uma cidade abandonada envelhece solitária no fim do mundo.
— Se eu fosse você, fingia que não tinha entrado nesta cidade e seguiria em frente. Não é um bom lugar.
Ficou um tempo em silêncio, como se matutasse. Depois, continuou:
— Sabe, a gente desta cidade não é muito... hospitaleira. Nunca foi, desde que uma caravela de franceses afundou bem ali no meio da baía.
Depois de três os quatro quilômetros de mar escuro de fundo de baía, a ilha se erguia com algumas montanhas, formando um recorte verde escuro, meio embaçado pela distância. Alguns barcos pesqueiros salpicavam a enseada que dava nome à cidade, flutuando abandonados naquele mesmo filme antigo sobre o apocalipse.
— Caravela? — perguntei com a testa franzida, voltando ao assunto do barco afundado. Ele assentiu. — De... franceses? — insisti.
— É. O timoneiro se meteu num recife que tem bem ao sul da baía e afundou. Estavam tentando fugir de dois outros navios e resolveram se esconder entre a Ilha e o continente. Acontece que a Enseada já era uma vila, presente da Coroa para o nobre que virou o conde. Conde Bacetino, o que tinha um casarão colonial no alto do Fio do Condado.
Ele apontou, para nos localizar em relação ao Promontório Norte. Assenti. Dava para ver uma parte dali, embora estivesse bem distante. O paredão rochoso naquele lado da cidade se erguia ao fundo dos telhados escurecidos pela maresia e pelo tempo.
— Aqui embaixo já tinha uma vila. E o povo recebeu os náufragos com festa — disse isso rindo. — Festa de espadas e tiros de mosquete. Mataram a metade enquanto eles ainda estavam tentando sair do mar. A outra metade foi decapitada. Os sobreviventes foram acusados da morte do conde de Fora. O que se conta é que eles haviam assassinado Guilhermo de Bacetino e foram condenados à morte. A execução foi bem ali — apontou para o meio da praça. Havia um Cristo barroco, crucificado e descascado sobre uma pedra angular escurecida, manchada da cera de milhares de velas queimadas. — Chamam essa área do centro de Praça do Redentor, por causa daquela imagem bem ali no meio, bem no local onde um dia ficou um patíbulo feito com madeira da própria caravela naufragada. Parte dela, pelo menos. Vinte e oito marinheiros tiveram os pescoços cortados a machadadas. Os pedaços esquartejados foram jogados no mar.
Fiquei olhando para o velho, meu rosto entre cansado e levemente espantado. Acho que o espanto era mais uma maneira de agradecer por ele ter me contado aquela história sem pé nem cabeça (com o perdão do trocadilho), certamente meio inventada ou aumentada — franceses não navegavam em caravelas.
O velho olhou para mim e abriu a boca, como se quisesse me falar mais coisas, mas acho que desistiu de continuar a história. Gingou ligeiramente a cabeça, como se achasse que aquilo era o bastante.
— Não sei de onde você veio — Abdias Moce continuou. — Mas imagino que já deve ter passado por outras cidades, então... essa é apenas mais uma. Escute o que eu digo: pega a sua mochila e segue para a próxima. Ou a outra, só pra garantir que tá bem longe daqui.
Balancei a cabeça concordando.
— Acho difícil conseguir uma carona a essa hora — acabei dizendo.
Passava das quatro da tarde. Dei uma olhada ao redor, vistoriando as construções circundando a praça. Dava para ver o fórum, um prédio municipal que parecia ser a prefeitura, alguns bares, vendas e igrejas. Contei doze delas. Uma para cada apóstolo — mesmo o traidor.
Um grupo de pessoas saiu cantando da Igreja de São Pedro — a maior, entre a prefeitura e o Fórum. O sino soou alguns segundos depois e as pessoas na praça se voltaram todas para um desfile de cortejo. Eu e Abdias Moce ficamos ali observando meia dúzia de senhoras cantando, jogando pétalas de rosas pelo caminho e marchando em procissão. Atrás delas, um séquito de chorosos foi acompanhando pela ruazinha, escapando da porta grande da igreja como se água de uma bica minando sem parar. O caixão veio pelo meio deles, carregado por homens sisudos e vestindo seu luto em ternos surrados, gravatas meio tortas e cabelos e rostos suados. Mas também alguns fardados.
Seguiram lentamente, cruzando a praça debaixo daquele mormaço, para uma das vielas entre duas capelas menores, no lado sul. A serpente formada pelo cortejo foi desaparecer na esquina depois de quase vinte minutos, tempo que levei observando-os com curiosidade mórbida.
— Quem morreu? — perguntei.
— Foi o delegado — Abdias devolveu.
Esperei que ele continuasse.
— Morreu foi tresontonti. Tão enterrando hoje.
Com um meneio na direção do parque, apontou o queixo para além, onde ficava o píer. Segui seu rosto meio quadrado na base do maxilar. A roda gigante destoava do resto, mas podia ver os carrinhos bate-bate, o carrossel, os barracões de tiro-ao-alvo, bilheteria, outro que era a casa fantasma. Uma lona de circo, não muito grande, estava fincada no lado esquerdo.
— Acharam debaixo do deque, perto de onde desemboca a galeria do meio. Esta parte toda da Enseada foi construída em cima de uns tantos córregos estreitos como o Fio. Passam por baixo de nós, alguns vindos das duas pontas, ao norte e ao sul. Precisa ver como as bocas de bueiro esguicham na época das chuvas. Parecem chafarizes.
— O que houve com o delegado?
— Passou pelo Cadafalso, que é um cabaré que fica no fim da rua da Procissão, indo naquela direção até o paredão debaixo das ruínas do casarão do conde. Comprou uma garrafa de vinho, conversou com a Antônia por uns minutos e foi embora. A Antônia é a cafetina — ele riu ao falar dela, insinuando alguma familiaridade que ficou nas entrelinhas. — Uma quarentona matreira, mas digna. Já o delegado, depois não viram mais. Isso foi há uns três dias. Acharam o corpo ontem só. Atirou com a própria arma de serviço. Aqui no peito. Nem acabou de tomar a garrafa de vinho.
O velho de cabeça raspada esfregou o indicador no tórax. Depois fez um gesto com a mão esquerda, espalhando os dedos na direção do ombro, simulando o tiro explodindo as costas.
De novo tive a impressão de que ele queria falar mais sobre aquilo, que havia outras coisas sobre a morte do delegado, mas Abdias se calou.
— Vai precisar de um lugar para passar a noite — emendou, antes que eu me atrevesse a fazer perguntas que ele não ia querer responder. — Tem uma pensão logo depois que termina o parque. Lá. É na rua atrás dos armazéns da Associação. Não tem nome. A gente só chama de Casario.
— Quem eu procuro lá? — perguntei.
— Lá não. Você vai até o Rendez-vous e procura... — ele deu outra risadinha, antes de completar — ... procura o Gigante. Pode dizer que eu mandei você.
— Vou conseguir pagar?
— Ah, tem isso. Mas o Gigante e a Elza, uma cigana velha que lê a sorte no parque, estão sempre querendo gente para ajudar no serviço. Se for esperto, vai recusar e sair da Enseada amanhã cedo.
Esse era um conselho que, eu percebi de repente, não estava propenso a seguir. Os motivos se embolavam na minha cabeça, eu ainda tentava racionalizá-los. A Enseada dos Novenos parecia uma cidade pequena e esquecida o bastante para um sujeito fugindo da polícia se abrigar. E havia toda aquela carga histórica no lugar, o que assanhava o professor de História em mim. Achei que houvesse alguma coisa errada com aquela coisa de franceses terem afundado com uma caravela na baía, mas a aura do lugar me seduzia: casas antigas, igrejas coloniais, um conde de verdade que poderia ter despencado para o mar com seu palacete...
— Onde fica esse... Rendez-vous?
— Lá. É o circo. Rendez-vous Cirque. Só funciona aos sábados. Durante a semana, o Gigante tenta arrumar alguns trocados nesses brinquedos velhos do parque. Eu nem sei como conseguem sobreviver, porque ainda têm que pagar metade do lucro para a Nicole do Fausto. Ela é dona de tudo isso aqui.
— Do parque e do circo?
— Não. De tudo. Das terras onde estamos caminhando, da Ilha do Francês, daquela floresta de coqueiros mortos na estrada. Herdou do Fausto, quando ele...
Calou-se. Esperei que dissesse que o sujeito, esse Fausto, estivesse morto. Na verdade, foi isso que contou a seguir, mas pareceu contrariado em confirmar.
— Quando ele morreu. Já te falei dela, não foi? Da Nicole. Mas vou repetir. Anda por aí vestida de cocotinha...
Que termo mais antiquado.
— ... e vive escoltada por um tipo mal-encarado chamado Bernardo Bi. É um ex-PM, desses que você não quer encontrar na ronda, numa madrugada fria. Aí vai a recomendação repetida: não se meta com ela. E outra nova: nem com ele. Se estiver em algum lugar em que esses nomes forem falados, cochichados ou pensados, peça para ir mijar e desapareça.
IV
Abdias Moce foi embora. Ainda permaneci naquele banco por um tempo. Depois disso, ajeitei a mochila nas costas e fui dar um passeio pela rua ao redor da praça. A pavimentação era de pedras irregulares e bem mais baixa que os canteiros. Tive a impressão de que era assim para acomodar a maré alta ou as cheias. De tanto em tanto havia uma boca de lobo nas sarjetas, com barras grossas que trancafiavam uma escuridão ruidosa lá embaixo. Deviam ser as galerias com seus córregos e uma boa porção de esgoto de toda a cidade.
A tarde já estava descambando para o lusco-fusco quando decidi caminhar para a tenda grande no final do parque. Passei pelo meio de alguns brinquedos e barracões de zinco, todos fechados. Ganhei a beira-mar e passei a andar por sobre um píer de madeira pesada. O mar cinzento chiava levemente com suas ondas fracas. Da beirada do deque dava para ver a praia de lodo, pedras e sujeita que havia ali embaixo. A água era escura e oleosa. Os barcos pequenos ficavam ancorados ao longo de um cais de concreto que se estendia como um braço por quase cem metros, apontando para a Ilha do Francês.
Logo depois da roda-gigante, passei por uma montanha-russa pequena em que dois sujeitos trabalhavam aos berros para remendar tubos de metal. As bases das vigas que sustentavam os trilhos pareciam comidas por ferrugem e o trabalho deles, usando máscaras escuras para proteger os olhos da solda, era repará-los. Não achei que faziam um bom trabalho. Anotei mentalmente que não tentasse passear naqueles carrinhos.
A tenda do circo ficava logo depois. De tamanho regular, em algum momento intercalara azuis e amarelos em gomos alegres e resplandecentes; hoje era uma mistura de remendos e os gomos estavam sujos como minhas roupas ainda levariam semanas para parecer. Lodo de maresia subia pelas bases como cancros tomando conta de um corpo doente. Fui dando a volta pela parte de trás, seguindo a indicação de Abdias Moce. Acabei em um cercado baixo que havia depois de outro barracão de zinco. Passei os olhos pela parede de cartazes numa das laterais metálicas. A maioria eram cópias ruins de impressos sobre pessoas desaparecidas. Mais de uma dúzia diferentes.
O cartaz maior, no entanto, o que estava no meio, era diferente. Desbotava abaixo da chamada em letras bordadas para UMA AVENTURA SURREAL NO RENDEZ-VOUS CIRQUE! Figuras impossíveis estampavam, meio amarrotadas, o seu centro. Um esquálido gigante cobria quase toda a altura do papel, equilibrando-se sobre um monociclo que, pelo desenho, devia ter a minha altura. Havia outros personagens bizarros: um homem cuja silhueta se parecia com a de um projétil, parado ao lado de um canhão; uma mulher nua com uma juba e garras; um palhaço com um sorriso de mil dentes carregando um apresentador nanico nos ombros — este com cartola numa mão e um balão de respeitável público
chamando a audiência para uma nova apresentação da trupe de malditos e degenerados no maior espetáculo da Terra!
Os outros cartazes, folhas de copiadora mostrando rostos de homens, mulheres e crianças, pareciam mais recentes, numa escala de (talvez) alguns meses.
Fiquei alguns segundos parado na frente desse mural de esquisitos e desaparecidos. Desisti e passei pela lateral do barracão, ganhando um pátio na parte de trás da lona principal. E os estranhos personagens do cartaz ganharam vida, carne e ossos diante dos meus olhos. Pelo menos uma boa parte deles. Mas havia outro sujeito. Berrava como se fosse atacá-los.
O Rendez-vous Cirque...
I
... ou parte dele, dos personagens estranhos que compunham a trupe, estava naquela área depois do barracão de zinco pintado de vermelho e azul. Esse pequeno pátio, imediatamente atrás da lona do circo, era flanqueado do outro lado por um enorme trailer motorizado que parecia enraizado no solo arenoso, enviesado no caminho. Essa disposição meio caótica e aleatória afunilava a passagem por onde eu viera na direção para a baía acinzentada.
À minha frente, um sujeito de cabelos grisalhos, cortados à escovinha, e um bigode bem aparado, pele curtida de sol, esticava um dedo na direção dos artistas; todos em roupas comuns, destoando das caricaturas do cartaz.
— Eu não vou embora enquanto não me der conta da porra do faxineiro — ele dizia. A voz era baixa e sibilante.
Olhei para as pessoas (as estranhas pessoas) perto da entrada para a tenda. Havia um homem magro e impressionantemente alto sentado no chão, ao lado de onde a tampa do motor do trailer estava agora levantada. Olhava diretamente para o sujeito entre mim e o restante da trupe. Aquele devia ser o Gigante — tinha que ser. Era o mesmo que andava no monociclo do cartaz. Calculei que tivesse por volta de dois metros e vinte de altura, talvez uns cinquenta anos, cabelos ralos e esbranquiçados nas laterais. O rosto era uma máscara esquálida. As pernas se dobravam angulares e impossivelmente a seu lado, enquanto ele pousava o traseiro no chão e mexia numa peça de motor. Mãos sujas de graxa, olhos severos e enormes, levantou ligeiramente a cabeça. Contudo, notei que não era com ele que o visitante esbravejava.
De uma banqueta de criança, o verdadeiro Gigante empertigou-se e depois se levantou irritado. Tinha pouco mais de um metro de altura — algo assim. Claro que tinha. Claro que, num circo, chamariam o sujeito de Gigante. Era o apresentador de circo que aparecia sentado nos ombros do palhaço, no cartaz colado na parte de fora do barracão.
Considerei minhas saídas — era um mal momento para estar ali. Atrás do apresentador de circo, uma mulher, com seus quarenta anos e os cabelos armados, tingidos de amarelo escuro, levantou-se apreensiva. Usava roupas curtas e tinha pelos dourados nas pernas, vastos e algo animalescos, como se os deixasse crescer para compor a personagem. Tinha um queloide fino, amorenado, abaixo do nariz, um resquício de lábio leporino. O rosto era bonito, numa face arredondada e triste.
— Eu não quero mais que você entre aqui deste jeito — o pequenino grunhiu. — Você nem é bem-vindo e se eu tiver que ir até a Nicole para falar de você, não vai entrar é em lugar nenhum mais nesta vida, está ouvindo?
O visitante balançou a cabeça lentamente, contrariado.
— Eu só quero saber o que você fez com o muquirana que eu...
— Eu não vou dar conta dessa gente drogada que você traz — o anão gritou. Tinha uma voz fina, mas potente, rasgada. — Meu acordo com a Nicole é bem claro.
— Eu num tô falando de acordo com Nicole nenhuma. Eu te pedi um favor. Um favor simplesinho assim. Você num quis fazer. Agora eu só quero saber onde é que o faxineiro foi com meu dinheiro. Você não tá me sacaneando, né?
— E eu gostaria de saber o que a Nicole de Albuquerque vai fazer quando eu disser que o lacaio dela entregou o movimento de caixa dos doces dela pra um tipo de gente igual a esse daí, que não tem nada de santo. Será que o todo poderoso Bernardo Bi, o sargento de milícia, vai continuar com essa banca toda?
Então aquele era o Bernardo Bi de que me falara Abdias Moce. Eu devia ter seguido seu conselho e me retirado ao ouvir seu nome, mas estava paralisado, sem saber exatamente como poderia simplesmente me virar e ir embora, prestes a assistir a uma cena que não tinha como acabar bem. Principalmente porque agora o ex-policial levantava o braço de novo e eu conseguia ver uma arma enfiada no cós da calça.
— Não. Você não vai me sacanear assim — o capanga armado grunhiu. — Eu quero saber onde tá o cara da faxina. Olhei todo o parque e não vi em lugar nenhum.
— Ele passou aqui mais cedo — a moça com o lábio leporino disse de um jeito submisso e trêmulo, sem encarar o Bi. O pequenino enviesou os olhos furiosos para ela. Estendeu a mão para que se calasse.
— O cretino disse que tinha terminado o trabalho e pegou o pagamento — o apresentador de circo sentenciou.
— Essa parte você já me contou.
— Sinal de que você não é surdo — o baixinho era duro de roer. Não baixou aquele queixo uma vez sequer, nem desviou os olhos. — Só é estúpido.
Olhei para a abertura da tenda que dava na lona principal. Uma mulher de cabelos pintados de preto surgiu. O rosto enrugado denunciava uns cinquenta anos, mas tinha o corpo atlético e bem cuidado de uma contorcionista, trapezista ou outra dessas atrações. Acho que havia visto seu desenho no cartaz, enrolada numa corda e esticando o corpo no vazio, as mãos espalmadas como se finalizasse o ato. Por trás dela veio um homem de pele muito escura, bigode afilado e grandes olhos avermelhados. Lembrei dele no lado esquerdo do desenho, tirando um gato alaranjado de uma cartola.
O gato de verdade veio por entre suas pernas agora, miando baixinho.
— Eu disse que era pra pagar quando ele terminasse — Bernardo Bi argumentou de volta, entre os dentes, perdendo a paciência.
Segurei a alça da mochila com mais força. Se havia um momento para ir embora, era aquele.
A mulher que se parecia com um leão me analisou de soslaio. Acho que tentava avaliar se eu estava com o ex-policial. Quando percebeu que eu a olhava, desviou o rosto novamente, entre envergonhada e temerosa. O corpo estava enrijecido, tenso, ombros encurvados.
— Não. Você disse que eu pagasse quando ele viesse buscar o dinheiro. Que ele ia terminar o serviço e só viria quando terminasse. Eu avisei pra você e pra Nicole que não cuidaria dessa sujeira. E ela aceitou o acordo.
— Mas eu não estou falando de acordo com Nicole nenhuma! — o policial repetiu mais alto agora. A discussão estava prestes a passar para um nível mais complicado.
— Mas podemos discutir com ela agora mesmo onde diabos termina o meu trabalho e começa o seu. E o que é que o santo do pau oco que você contratou estava fazendo no parque.
Vi o queixo de Bernardo Bi tremer um pouco. Ele olhou para os lados, ciente de que estava perdendo aquela discussão e que precisava de um bom argumento para sair por cima. Previ que ele faria uma besteira. Caras assim fazem isso. Quando não conseguem sustentar sua posição (e, geralmente, não conseguem), eles fazem algum tipo de besteira violenta.
— Eu não vou atormentar uma velha grávida com um problema pequeno desses. Além disso, é você que fica com a porra do dinheiro. Você que tem que...
O Gigante Heleno Pagu, o pequenino apresentador de circo, baixou a cabeça lentamente e eu vi um sorriso nascer no canto de seus lábios. Não entendi direito o que aquilo queria dizer, mas havia maldade ali. Nem consegui prestar atenção no que Bernardo Bi resmungava ao meu lado. Ainda estava tentando decidir se voltava nos próprios pés e tentava a sorte na estrada quando notei as outras pessoas atrás do apresentador de circo. Elas levantaram a cabeça e olharam para algum ponto atrás de mim. Ato contínuo, baixaram os olhares meio segundo depois.
Senti a presença antes mesmo de me virar. Ouvi o ruído dos passos esmagando a poeira e os pedriscos. Bernardo Bi agora desfiava um novelo de intempéries, acusações e perdigotos. E eu me virei para encarar Nicole de Albuquerque, a que eles chamavam simplesmente de Nicole do Fausto.
Era uma mulher imponente. Os cabelos eram pintados de um castanho avermelhado, escorridos ao redor do rosto maquiado, mal ocultando as rugas em bases e rímel pesado, batom vermelho reluzente. Vestia-se de uma maneira exuberante e exagerada, uma blusa apertada, imitando um espartilho de renda preto e vinho. A armação forçava os seios no decote, mas a peça era aberta na barriga proeminente de grávida, um fio escuro se desenhando verticalmente sob a pele e descendo do vale sob os seios, escalando o umbigo e mergulhando no cós da saia. Um colar de pérolas (poderia ser uma imitação, mas achei que eram verdadeiras) acentuava a beleza do colo. A saia apertada descia até os joelhos, mas abria-se na lateral e subia de volta até a cintura. Parecia nua por baixo. Parecia impassível em seu andar. Parecia (parecia!) uma sessentona maquiada, mas estar grávida era esdrúxulo e anormal.
Parou a três passos de mim e do capanga.
— Meu querido sargento — ela disse com uma voz suave, de veludo, levemente roufenha. Disse sem pressa, mas havia poder debaixo do solfejar. As palavras flutuaram acima da raiva de Bernardo Bi.
Atrás de Nicole, dois sujeitos em ternos puídos de igreja-botequim postaram-se como seguranças, mas de cabeça baixa e lábios ligeiramente trêmulos, como se murmurassem orações. Um deles desviou os olhos para mim, de soslaio. Forte, alto, um rosto entre o infantil e o ameaçador. Tive a impressão de que estava sendo observado por um animal avaliando o gosto que a presa teria.
À nossa frente, o ex-sargento Bernardo Bi se virou apressadamente e eu vi seus olhos se arregalando como se encarasse o diabo. O corpo dele pareceu encolher — como o da mulher-leoa ao vê-lo gritando com o Gigante dois minutos antes.
— Dona Nicole — ele devolveu, a voz saindo de abrupto pelos lábios ressecados de susto. O policial ficou lívido. Era medo. Como isso era possível?
— Então, enquanto a velha grávida cuidava da saúde de seu bebê — ela pousou a mão na barriga; calculei uns seis meses — você capitulava seu trabalho.
— Não, não foi isso...
O baixinho apresentador de circo cruzou os pequenos braços e exibiu um ar de soberba. A maioria da trupe passou de nervosa a cinicamente interessada na conversa, exceto pela trapezista na entrada da tenda, ao lado do mágico. Ela olhou para a barriga de Nicole de Albuquerque com olhos intrigados, levemente temerosos.
— Bem... — ela continuou. — De quem era mesmo a responsabilidade pelo vagabundo que você mesmo insistiu em colocar pra trabalhar no parque?
O ex-PM engoliu em seco, mas estava recobrando o controle.
Logo atrás, o Gigante franziu a testa.
— E Bernardo Bi é gente de assumir responsabilidade por alguém? — alfinetou.
Nicole espremeu os olhos, encarando o policial com um meio sorriso de quem acaba de ter certeza de alguma coisa, de que pegou em flagrante um meliante menor.
— O que ele sabe de você, meu sargento? — a mulher perguntou. — O que um traste vagabundo como aquele faxineiro de pocilga tem com você, afinal de contas?
Bernardo Bi olhou meio de soslaio para o Gigante. Um cisco de ódio cruzou o ar entre os dois, mas o baixinho não desfez sua máscara de altivez.
— Eu vou atrás dele — o policial grunhiu. — Eu vou trazer ele de volta e fazer ele pagar cada centavinho! O serviço do parque e o que me deve.
Não havia respondido à pergunta, mas não negou que tinha negócios com o tal faxineiro. Mesmo assim, Nicole balançou levemente a cabeça, como se concordasse. Aquilo não dizia que estava satisfeita, apenas que tinha anotado a promessa cuspida.
— Não vai não — a mulher disse. — O João vai.
Bernardo Bi, que estivera fitando as pontas dos coturnos rotos que usava, remoendo ódio e desgosto feito bile gosmenta, olhou de volta para ela. A seguir, encarou o sujeito alto que orava em murmúrios, um pouco atrás de onde eu estava.
Eu ainda não sabia, mas estava vendo o momento em que o estafe de Nicole de Albuquerque estava sendo alterado. Ou, pelo menos, a hierarquia sendo revolvida.
— Não tinha outro trabalho que mandei você fazer? — ela desafiou.
O Bi franziu a testa. Parecia não se lembrar. Meio segundo depois sua expressão se abriu. Olhou para mim. Foi a primeira vez que fui notado naquela conversa.
— Não tinha a porra de outro trabalho que MANDEI você fazer?! — Nicole gritou.
Ele se encolheu de novo. Quase deu um passo para trás. Ficou sem ação, titubeou. O corpo meio que gingou, como se ele tivesse decidido se mover, mas tivesse medo disso. Por fim, desviou de Nicole e saiu pela lateral do pátio. Foi quando ela virou o pescoço na minha direção. E todo o resto da trupe.
II
— E você? — a mulher perguntou.
Voltei os olhos em sua direção, pensando que, se tivesse sorte, teria que arrumar um beco para dormir naquela noite. Olhei ao redor, mas não vi qualquer saída entre os estranhos do circo.
— Antônia o mandou aqui para arranjarmos algum trabalho para ele — veio essa voz magra e envelhecida de algum lugar além da abertura na tenda para o circo. Uma velha passou por trás da trapezista e do mágico, que se afastou dela com um certo receio e asco. O bigode fino chegou a crispar nas pontas perfiladas.
Nicole franziu a testa.
— Viramos um albergue para andarilhos? — disse isso de uma maneira divertida, lambendo os lábios. Eu me senti uma sobremesa. — De onde você é?
— Do Sul — respondi meio perdido naquela história toda. Aliás, completamente perdido. Quem era Antônia mesmo? Quem era a velha na entrada da tenda?
Nicole franziu mais a testa com minha resposta vaga.
— Dê um prato de sopa e um bom banho nele — disse por fim. Virou-se para o apresentador de circo. — Enquanto isso, nós dois temos um assunto para tratar.
— Você já tem a minha resposta — o pequenino Gigante Heleno Pagu respondeu. Não tinha mais aquele ar de superioridade, mas olhava, ainda que de baixo, de igual para igual para a patroa.
— Não estaria aqui se não tivesse argumentos para mudar sua decisão.
Ele expressou descontentamento calado e alguma irritação. Por fim, estendeu os braços curtos na direção do trailer, mostrando o caminho. Nicole se virou para os dois capangas de igreja e fez um meneio com a cabeça. Eles se foram. Caminharam apressados sobre os pedriscos. Tive a impressão de que estavam indo atrás de Bernardo Bi.
A seguir, ela e o Gigante dirigiram-se para a porta estreita do motorhome. Fecharam-se lá. Olhei ao redor e percebi que o estranho, esquisito e deslocado, no meio de todos aqueles personagens, era eu. Olhavam-me com curiosidade e desconfiança.
III
— Jonas Almozart — disse a velha, ainda sob a sombra da abertura da tenda. Franzi a testa. Olhei para os outros.
— Como sabe meu nome?
Ela se moveu em minha direção e eu vi seu rosto completamente enrugado. Andava arqueando, com a ajuda de uma bengala torta. E, o principal, era cega. Os olhos brancos fitavam o nada e havia um sorriso murcho em seus lábios.
— Ela adivinha as coisas — a mulher-leoa disse perto de mim. A voz era suave e melancólica. Quando me virei para ela, desviou os olhos de novo.
— Cheguei na cidade hoje — comecei.
— Está fugindo de alguma coisa, senhor Almozart? — foi o mágico quem disse isso. Afastou-se da velha vidente de um jeito sutil, mas notável. Tinha um sorriso nos lábios que fazia a pergunta parecer apenas curiosidade, mas eu saberia mais tarde que não era bem isso. Não era nada disso.
— Quem não está? — a mulher-leoa o interrompeu. E finalmente adiantou-se na minha direção. Estendeu a mão num cumprimento. Notei unhas grandes, como garras, pintadas para se destacarem. — Leona Ferina, a mulher-leoa.
Eu segurei sua mão e sorri, enquanto ela fazia uma mesura afetada, como se estivesse num picadeiro, mas meus olhos curiosos e desconfiados estavam acima de qualquer demonstração de simpatia. Como a velha cega sabia quem eu era e o que estava fazendo ali?
— O grandão naquele canto é o Pascal Debrucci, o Nanico — era o sujeito enorme, com pernas de louva-deus e ainda mexendo na peça de motor. Ele acenou para mim. A seguir, Leona foi estendendo seu braço para cada um dos outros. — Nossa trapezista Eleonora, a mulher voadora. Nosso mágico de araque, o Maravilhoso Roudinho!
O sujeito deu uma gargalhada e fez outra mesura.
— Um seu criado! — e esticou o braço, segurando um buquê de flores artificiais que devia ter saído da manga. Exceto que ele estava de camiseta.
— E a Cigana Elza.
A velha cega veio andando na minha direção, cutucando o chão arenoso com aquela bengala torta. Seus olhos brancos pareciam mirar em mim.
— Tenho uma ideia melhor para você — ela disse. — Nada de ficar catando sacos de pipoca vazios pelo parque.
— Do que está falando? — devolvi, incerto. Mas uma parte minha acendia luzes de emergência, alertando que ela sabia que eu também estava ali procurando algum trabalho, a despeito do que Abdias Moce havia dito.
— O filho de Leona precisa de ajuda com os estudos. Que tal isso, professor?
Meu sorriso de cortesia, ainda impresso no canto dos lábios depois de cumprimentar Leona e os outros, desapareceu. A pergunta se repetia em ecos na minha mente: Como ela sabia?!, insistia no fundo dos pensamentos, agora num tom mais incisivo.
Eu não havia dito a ninguém minha profissão.
— Você é professor? — Leona perguntou curiosa. Mas já sabia a resposta.
— De História. Mas...
— Em troca de uma cama para dormir e alguma comida — a velha continuou. — Também pode ajudar o Pascal no trabalho de reparo. É ele quem vistoria a tenda, faz os remendos, mantém os suportes seguros no lugar, as arquibancadas sem pregos velhos espetando o traseiro das crianças.
— E-eu...
— Não pode?
Balancei a cabeça, afirmando, mas sem qualquer convicção. E então percebi que ela não podia ver meu gesto.
— Eu... acho que posso.
A velha sorriu. Achei que fosse um sorriso simpático, de concordância.
— Ela gostou de você — Leona disse a meu lado.
— Claro que gostei. Tanto que vamos dar a ele o Quarto do Sol Nascente.
— Meu Deus! Eu tô pedindo aquele sótão há mais de ano, Elza! — o mágico reclamou lá atrás. Abriu os braços descontente.
Ela abanou a mão. Meu ar de surpresa e espanto devia ser uma máscara para todos eles.
— Você já revistou e revirou aquele lugar dezenas de vezes. Sim, sei muito bem disso. Não precisa tentar negar.
O mágico pareceu constrangido, fingindo uma pose contrariada.
— Leona, pode levar o senhor Almozart até o Casario? — Elza emendou.
— Com certeza.
— E dê a ele uma das mudas do varal. Não tem roupas limpas nessa mochila.
Lá atrás, o mágico chacoalhou as mãos irritado. Virou-se e sumiu pela abertura da tenda.
Olhei a mochila no chão. Ela não tinha como ter visto. Olhei as pessoas ao redor, tentando descobrir qual era a brincadeira, como ela poderia saber. Como sabia meu nome? Como sabia que eu estava atrás de um lugar para dormir e, talvez, algum trabalho? Como sabia que eu não tinha nada para vestir? Os outros podiam dar uma olhada nas minhas roupas e perceber, mas ela?
Bem, talvez eu estivesse cheirando como um mendigo.
Eles sorriram de volta, de um jeito que queria dizer: acredite se quiser, ela sabe das coisas.
Abdias Moce poderia ter ligado para a velha e alertado que tinha mandado um estranho procurar abrigo no circo. Eu disse a ele meu nome — o que parte de mim, do fugitivo tentando se esconder na vastidão do mundo, insistia ter sido um erro. Mas eu não disse a ele o que fazia da vida, pelo menos o que fazia antes de Beatriz morrer.
— Vai — Elza mandou. — Faz o que estou dizendo.
Leona pegou meu braço. Resgatei minha bolsa do chão. Virei-me para a saída do pátio, quase arrastado pela mulher-leoa. Quando fiquei de costas, a velha cigana me deu um tapa na bunda.
IV
Leona, a mulher-leoa, me levou por uma rua estreita logo depois que o parque terminava. Ficava entre a igreja de São Simão e um pátio pavimentado de paralelepípedos que fazia vezes de estacionamento de caminhões para os armazéns dos pescadores. Não havia movimento nos atracadouros dos galpões àquela hora. Estavam vazios e uns poucos marinheiros fumavam e bebiam no início do píer de pedra que se estendia como um braço na direção do mar. Uma fila esparsa de barquinhos, como os dentes de uma dentadura velha e falhada, flutuava ancorada nesse passadiço.
Quando entramos na rua por trás dos galpões, os comércios de gelo, de peixe e de produtos de pesca iniciavam a contabilização de fim de dia. Os vendeiros brincavam uns com os outros, falavam bobagens alegres, quase todas escarnecendo do dia improdutivo. Alguns assoviaram para a mulher que me guiava pela rua curva e ela pareceu se requebrar mais. Eu me diverti com aquilo, mas notei os olhos curiosos na minha direção. Depois de semanas tentando me esconder do mundo, estar perto do centro das atenções me deixava inseguro.
Chegamos ao Casario. Era uma antiga construção colonial, como todos os prédios e casas naquela parte da cidade. Este aqui parecia funcionar como uma pensão.
O vai e vem de pessoas na rua de pedras irregulares aumentava daquele ponto em diante. Pouco mais além, na mesma rua, um colorido luzidio de bares e inferninhos anunciava a noite que se aproximava depressa. Os estabelecimentos preparavam-se para seu horário comercial distinto, enquanto o céu sobre nós tendia para o azul turquesa.
— É a melhor rua da cidade — Leona disse, parada na porta dupla do Casario, notando meu interesse pelos inferninhos arqueando na direção do Promontório Norte. — É a Procissão. Se for um homem de verdade, começa suas orações no Inácio e termina no Cadafalso Arruinado.
Riu enquanto entrava.
Mais tarde soube que o Inácio era o primeiro botequim da rua da Procissão, onde funcionavam os bares, restaurante menos respeitáveis, os inferninhos, puteiros, antros de jogatina e outros perdidouros de dinheiro e dignidade — ao diabo, eu já não tinha nenhum dos dois. Já o Cadafalso, Abdias Moce me contara, era aquele prostíbulo à beira-mar — rudemente luxuoso, conhecido em toda a região.
Segui Leona para dentro do Casario. A entrada era uma sala grande, vazia, aberta para três corredores. Nos dois, à esquerda e à direita, havia quartos de portas enormes, enfileirando-se, fechando cômodos dos dois lados. O terceiro corredor seguia pela porta de entrada até uma janela para o mar, mirando a Ilha do Francês. Ali, uma escada larga subia para o segundo andar também cheio de quartos.
No fim do corredor da direita, já no segundo pavimento, havia outra escada, esta bem estreita, com degraus meio soltos. Levava ao sótão que não se via da rua. Leona subiu primeiro, os quadris esbarrando na passagem apertada — ela fazia de propósito. Onde estava aquela mulher tímida e assustadiça de agora há pouco?
Entendi que eram Bernardo Bi e Nicole que a deixavam daquele jeito.
Chegamos a uma porta estreita que fechava a passagem depois do último degrau. O cômodo se abriu e era grande demais para ser o quarto uma pessoa apenas. Estava empoeirado, com cheiro de maresia e mofo, habitado por aranhas e baratas — algumas mortas pelo chão, junto com cocô de camundongos.
— Exceto pelo Roudinho, ninguém quer dormir aqui — Leona disse, dando-me passagem.
Olhei para o telhado nu, vigas e telhas manchadas de limo, e notei um mezanino com uma portinhola no lado que dava para os armazéns.
— É um dos acessos para a caixa d’água. Dá pra ver lá do parque, mas ela fica em cima do último galpão dos pescadores. Abastece todo este lado da rua. Antigamente, só tinha passagem por aqui, mas a prefeitura construiu uma escada pelo píer; ou seja, não vai ter ninguém te incomodando aqui para ir tirar os pombos mortos na cisterna.
Franzi a testa, gracejando uma expressão de nojo.
— Por que ninguém quer dormir aqui?
— A Enseada é cheia de histórias de mortes, traições, tragédias. Neste quarto, dizem, a mulher do conde de Bacetino encontrou seu... destino, digamos assim.
— E que destino foi esse?
— Fodeu com o diabo, teve um filho e depois o pai da criança veio buscar ela.
— O diabo?
— Sim. Essa é a melhor história! E chega até os dias de hoje com a família de Nicole. Dizem que o pai dela, o Fausto, encontrou a garrafinha com o demônio que o conde de Bacetino usava para ter poder, riqueza e luxúria com um estalar de dedos.
Ela contava isso sorrindo, como se desfiasse uma anedota.
— O pai daquela senhora que expulsou o... o cara armado...
— O Bernardo Bi.
— Esse. Ela é Nicole? — emendei, meio perguntando e meio afirmando. — O pai dela tinha uma garrafa com um diabinho dentro?
Leona assentiu. Eu ri.
— Algumas pessoas que já pernoitaram aqui disseram ter pesadelos constantes — ela franziu a testa. Ainda gracejava, mas um ar intrigado lhe surgia. — Engraçado como algumas tiveram sonhos muito parecidos: sonham com uma criatura com pés e cabeça de bode, chifres em caracol e uma estrela invertida cortando a carne do peito. Tinha fogo nos olhos e uma calda que se transformava numa serpente. E garras. Garras de abutre no lugar dos dedos.
Meu riso se alargou. Ela me acompanhou.
— E por que o mágico quer este quarto?
Ela deu de ombros.
— O Roudinho é meio alcoviteiro, sabe? A gente tenta evitar as fofoquinhas dele. A Elza e o Gigante por certo que já sacaram porque ele quer este quarto. É a garrafinha do diabo. Dizem que o Fausto encontrou ela depois de ter passado uma noite aqui, quando ainda era um forasteiro como você.
Tornei a vistoriar o sótão. Havia alguns poucos móveis, todos antigos. O mais pesado ficava no fundo. Uma cama com dossel. A madeira envelhecera mal e estava rachada em vários lugares. Devia ter sido uma peça linda.
— Você acredita no diabo, Jonas? Posso te chamar de Jonas?
— É o meu nome, fique à vontade. E não, não acredito. Nem no diabo e nem no outro cara.
Agora seu rosto tomou uma expressão surpresa e ligeiramente consternada.
— Em Deus? Não acredita em Deus?
Dei de ombros. Mantive meu sorriso, seguindo de ponta a ponta o quarto do sótão. Debaixo do mezanino que levava à caixa d’água, havia um cercado de meia altura com uma ducha.
— Como a cigana sabia meu nome?
— Eu lhe disse: ela adivinha as coisas.
— Também não acredito nessas coisas.
— Claro que não. Mas não tem problema. Porque mesmo assim essas coisas estão por aí. Como Deus e o diabo, quer você acredite neles ou não.
— Ela acertou sobre eu estar procurando trabalho e um lugar para dormir. E acertou meu nome e o que... o que fazia antes para viver.
— Que você é mesmo professor?
Afirmei com a cabeça, um pouco contrariado.
— Mas ela errou o nome da pessoa que me mandou procurar ajuda no circo.
— Porque se ela dissesse o nome de Abdias Moce, Nicole teria arrancado suas tripas na nossa frente.
V
Leona Ferina me deixou sozinho depois