A Canção de Eva
A Canção de Eva
A Canção de Eva
June Strong
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Capítulo 1
O Presente
A luz solar da tardinha como que brincava por entre paredes de marfim
e plantas tropicais de um verde forte, espreguiçando-se em meio a elas. A
água, murmurando sobre as pedras num dos cantos, fazia com que a
grande e arejada sala quase parecesse uma extensão do frondoso mundo
que se estendia para além da janela aberta. Um pássaro tão azul quanto
um pedacinho do céu, esvoejava em torno de uma garota; esta, com os
joelhos erguidos, achava-se sentada sobre um sofá de macia lã cardada.
Sem prestar atenção ao que fazia, estendeu ela a mão ao pássaro; era,
porém, muito fácil perceber-se, através de seus sonhadores olhos verdes-
marinho, que seus pensamentos vagueavam bem longe dali.
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quanto você. Mas mamãe não faria objeções a isto. De fato, tudo está
muito misterioso!”
— Oh, você o fez mesmo? Pois bem, em breve sua curiosidade terá fim,
pois tudo indica que o jantar está posto, e sua mãe já nos aguarda. No
sombreado quintal, uma mulher esbelta, de tez morena, colocou sobre a
mesa uma bandeja com uvas e fatias de melão; com um gesto manual,
despediu duas servas que estavam por perto. Natã abraçou-a
calorosamente e Shaina ficou pensando, pela centésima vez, quão ardente
e obviamente ele amava sua mãe. Com boas razões, por certo, já que sua
opressiva beleza só parecia aumentar com a idade. Ela era vivaz e
engenhosa — uma companheira sábia, sem dúvida. Shaina herdara os
olhos verdes-marinho da mãe, embora noutros aspectos revelasse os
traços característicos do lado paterno, tais corno a aparência dourada,
como que beijada do sol.
Shaina não se teria sentido mais aturdida se ele houvesse dito que
planejava fechar sua oficina de artes em cerâmica. Nem mesmo mamãe
jamais o acompanhara nessas viagens realizadas duas vezes ao ano com o
objetivo de adquirir novos suprimentos de barro, pois a viagem era longa
e cansativa. Cautelosa excitação começou a produzir-se no íntimo da
jovenzinha. Aquele era um presente situado além da mais desenfreada
imaginação. Cavalgar por entre os arredondados outeiros que
circundavam a cidade e ir ainda para muito além, em direção à misteriosa
terra que havia sido o lar de seu pai antes que ele encontrasse sua mãe e
desta forma pusesse a perder seu coração e sua herança! Muitas vezes ele
falara à filha a respeito do calmo vale povoado de árvores gigantescas que
estendiam seus galhos qual frondoso teto por sobre os habitantes. Um
lugar em que os raios solares se infiltravam por entre os caminhos e por
vezes flamejavam sobre as cores de pedras preciosas que jaziam soltas ao
longo dos regatos e acima do solo, em lugares secretos, onde os homens
não as haviam tornado objeto de sua cobiça.
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E dizer que agora ela própria iria visitar essa terra! Encontrar seus avós,
tios e primos! Ver as barrancas do rio, das quais os servos de papai
arrancavam o barro que depois se convertia em esculturas e bacias, aqui
em sua oficina! Repentinamente ela se deu conta de que não pronunciara
uma única palavra e que papai olhava em sua direção com um ar
estranho.
— Você não faz idéia daquilo em que se está metendo — vociferou sua
mãe — e seu pai não tem direito de levá-la consigo.
Shaina teve a sensação de que uma feroz batalha fora travada por
detrás dos bastidores. Raramente seu pai negava algo à esposa; ao
contrário, sentia o maior prazer em atendê-la. Desta vez, porém, a
vontade dele prevalecera. Shaina mal tentava adivinhar qual teria sido o
custo.
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Capítulo 2
A Viagem
— E ele será difícil, Shaina. Você pode estar certa disso. Mas Fenice
estará a seu lado. Isto me traz um pouco de alívio à mente. E seu pai não
hesitaria em dar a vida em favor de você. Fale francamente com ele a
respeito de todas as suas necessidades. Ele estará ocupado e terá muitas
preocupações, mas é seu desejo transformar esta viagem num verdadeiro
deleite para você. — Ela suspirou —Shaina, Natã alimenta estranhos de
desejos secretos que eu não pretendo compreender. — Nunca dantes ela
se referira ao esposo, diante da filha, como Natã, e a garota compreendeu
que esta era uma nova forma de falarem entre si, de mulher para mulher.
— Eu o amo e muitas vezes o torno extremamente feliz, mas também lhe
roubei algo que é por demais vital ao seu ser. Sinto-me irritada por não
conseguir satisfazê-lo completamente. Um sorriso distorcido permeou sua
face. A maioria dos homens julgariam que eu sou suficiente, mas não
Natã. Por vezes temo que ele me odeie pelo fato de ser meu prisioneiro.
Mas tudo isto é demasiado para a sua jovem cabecinha. Vá, minha
querida, e descubra o mundo. Aqui estarei esperando por você. Caso
chegue a ver a “rainha da beleza”, diga-lhe que espero que seu pedaço de
fruta tenha valido o quanto custou. — Sua risada sarcástica acompanhou
Shaina quando esta se dirigiu para fora, rumo à luz matinal. A garota
almejou muito que a despedida houvesse ocorrido sob um clima
diferente.
— Será que alguma vez tornaremos, minha querida, a ver esta civilizada
cidade e nosso bonito lar?
— Fenice, você está esquecendo que esta cidade está longe de ser
civilizada. Não nos arriscamos a deixar nosso lar à noite, e por vezes os
malvados golpeiam nossas próprias portas. Francamente, qualquer dia
tomarei o rumo do deserto. Dizem que a maioria dos animais se mantêm
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distanciados, desde que não sofram ataque. Além do mais, acredito que o
Deus dos Céus estará conosco.
— Estamos prontos para partir, Shaina. Quero ter a certeza de que Deus
nos acompanhará nesta viagem. Para mim, isto representa muito mais
que uma simples expedição à busca de barro. Vamos orar ao Deus
Altíssimo?
Cerca de seis dias mais tarde eles atingiram o alto de uma cordilheira;
avançava a tardinha e, enquanto contemplava a terra do rio Havilá, ela
sentiu-se embriagada pela descoberta. Havia visto cores inimagináveis e
respirara ar tão puro quanto cristal. A fragrância de milhares de flores
castigara suas narinas.
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Depois de haverem acampado e feito a refeição, reuniram-se todos ao
redor do fogo e Natã tomou a harpa. Os homens encostaram-se nas
árvores ou se espreguiçaram sobre o solo, em relaxante expectativa. Seus
dedos extraíram das cordas uma doce e melancólica melodia, com a qual
Shaina se achava familiarizada desde a infância. Aquele era um cântico de
sua terra natal, e ele o executou ali, naquela noite, enquanto repousava
junto às próprias fronteiras de seu amado vale. Havia naquela música um
caráter misterioso que se acentuava face às luzes do acampamento,
faíscas que flutuavam em direção ascendente por entre a espessa
escuridão. Certa vez ele dissera à filha que o cântico possuía letra —
palavras que falavam a respeito da tristeza de Adão diante de seu
banimento do Éden, e nessa noite ela sentiu a melancolia como que
invadindo seus próprios ossos. Até mesmo a jovial Fenice sentou
quietamente e suspirou quando os últimos acordes foram executados.
Amanhã ela encontraria seu avô e mais tarde, talvez, Adão. Oh, se eles
tão-somente conseguissem chegar a tempo!
— A sua moda, sim, creio que ele é rico, embora aqui a riqueza seja de
pouca importância. Ele aprecia o que faz, e fá-lo muito bem. Deus o leva à
prosperidade.
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Natã desmontou e segurou a mãe nos braços durante longos
momentos; e Shaina pôde ver, por sobre os ombros de seu pai, que os
negros olhos da avó estavam rasos de lágrimas. Curiosamente ela nunca
dantes pensara em seu pai como sendo filho de alguém! Agora pôde
reconhecer os fortes laços que existiam entre mãe e filho, e compreendeu
então que Ona, sua formosa mãe, deveria ter trazido incrível sofrimento a
esta mulher dourada de Havilá.
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avisou ela, lançando um olhar inquiridor em direção ao filho. — Nunca tive
uma filha, e pode estar certo de que apreciarei ter uma.
— Ele está trazendo as ovelhas das pastagens que estão junto ao rio.
Por que você não vai a cavalo ao seu encontro? Mas tome o cuidado de
não espantar as ovelhas.
O filho resfolegou.
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— Não, mamãe, eu não o faço — disse ele após uma pausa. — Isto
significaria perder meu negócio, minha esposa e talvez até mesmo a vida,
e de fato não estou numa situação que me permita sair em defesa de
Deus a qualquer custo.
Shaina preferiu não ter ouvido a resposta do pai, e que a avó não
houvesse feito a pergunta. O pai montou seu cavalo e dirigiu-se
abruptamente à estrada. Entrando na tenda, Abigail começou os
preparativos para a ceia, com o auxílio de duas servas. Enquanto ela
colocava arroz numa panela, Shaina observava com curiosidade.
Ocasionalmente sua mãe servia uma bandeja de bebidas ou frutas, mas o
preparo, em si, ficava sempre sob os cuidados das servas.
— Irei com você, meu filho, e tomarei conta da garota. Este sempre foi
também o meu sonho. Estou ainda nos primórdios da vida e não sinto
temores. Levaremos conosco uns poucos e fortes servos, dignos de
confiança; nossa caravana será, pois, pequena, e assim viajaremos rápido.
— Deixe-a ir. — A voz do esposo era firme e final. — Ela tem trabalhado
arduamente e merece muito bem um descanso.
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— Então está tudo acertado? Você irá conosco, vovó? Oh, isto é melhor
do que eu seria capaz de imaginar. Poderemos deixar Fenice aqui. Ela não
se sente bem longe da cidade e teme prosseguir viajando.
- Haverá dias, minha filha, em que você muito gostaria de tê-la a seu
lado. Se não levarmos servas conosco, você terá de ajudar no preparo da
comida e na lavagem das roupas. Aprenderá um pouco a respeito da vida
das servas e talvez nunca mais dispense com tanta facilidade a fiel Fenice.
— Quão grande o preço que todos nós temos pago — disse Shaina
docemente, ecoando a amargura sempre manifestada por sua mãe. Suas
palavras não escaparam ao ouvido atento de Abigail.
— Ele foi um bebê querido e bom menino. O tipo de filho que toda mãe
gostaria de ter, especialmente depois de criar alguns marotos. De todos os
meus filhos, Shaina, ele parecia o mais indicado para tornar-se um
libertador. Todos eles, os marotos, são agora filhos de Deus, e apenas
Natã, o meu precioso Nata, anda apartado dEle. — Lágrimas invadiram os
olhos de Abigail e ela não conseguiu prosseguir falando.
— Vamos entrar, pois está ficando frio. E não se entristeça por causa de
papai. Certamente ele não estaria fazendo esta peregrinação se houvesse
abandonado a Deus. Muitas vezes ele me fala a respeito do Senhor.
Existem imagens espalhadas por toda a nossa casa, mas papai sempre me
ensinou que elas são inúteis pedaços de metal —embora bonitas — e que
existe apenas um Deus verdadeiro, que mora além dos céus e que
conhece nossos pensamentos e almeja receber nosso amor e obediência.
— Você está certa. Uma centelha ainda arde em seu coração. Temos
três dias para empreender os preparativos para a viagem, de modo que
devemos trabalhar com afinco. Depois repousaremos e adoraremos no
sábado, iniciando a jornada no primeiro dia. Shaina nem mesmo nutria a
idéia do que fosse o sábado, mas decidiu que, para aquele dia, já havia
feito perguntas em número suficiente.
— Por que ele fez aquilo? Foi terrível. Estragou tudo que de bom
ocorreu durante estes dias. Por que todas as pessoas pareciam tão à
vontade, como se não tivessem mais nada a fazer na Terra?
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— Somente oito de nós contra todo o perigo — dissera Shaina ao
montar seu animal na manhã da partida.
— Pensei que seu pai lhe houvesse explicado. É sem dúvida um ato
estranho para aqueles que não lhe conhecem o significado. Lembre-se que
lhe falei do Prometido. Pois bem, Sete nos disse: “Ele terá de morrer. Terá
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de derramar Seu sangue em favor de nossos pecados.” Tudo isto é um
grande mistério, mas Deus quer que o levemos a sério a fim de termos
consciência do terrível preço do pecado; portanto, instruiu-nos a
matarmos um cordeiro perfeito, que representa Aquele que deverá
morrer; assim, queimamos o cordeiro sobre o altar. Cada vez que
participamos da cerimônia, tomamos consciência de que nossos pecados é
que ocasionam a morte do inocente cordeiro e — ainda muito pior —
causarão a morte dAquele que há de vir.
— Seu pai não lhe falou nada? Em seu lar não existe reverência pelo
sábado? — Abigail contemplou a neta, e seu olhar denotava completa
perplexidade.
— Isto é muito lindo. Muito lindo — disse Shaina em voz baixa. — Oh,
quanto eu gostaria de haver conhecido tudo antes. Por que papai nunca
me falou sobre isto?
— Sua mãe não tem paciência com tais atos de adoração, e suas
sagradas imagens bateriam com violência suas cabeças umas contra as
outras diante do simples pensamento da presença de Deus em nossa casa.
São dois mundos completamente separados, minha pequena, e ao casar
com sua mãe eu fiz a minha escolha. Trouxe você até aqui para que
também possa fazer a sua.
As palavras do pai fizeram brotar dentro dela, urna vez mais, aquele
importuno sentimento de mal-estar.
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— Em vez de fazer todo este barulho, Natã, seria bem melhor se
agradecêssemos ao Deus do Céu por nos haver trazido em segurança ao
nosso destino. — Abigail repreendeu o filho enquanto cavalgava a seu
lado.
— Venha, minha filha, pois você não morrerá, aos menos por ora, e em
virtude desta Luz. —- A voz fez com que os outros também se erguessem e
os conduziu — tropeçando como se cegos fossem — a alguma distância
dos anjos e daquela glória que queimava a própria alma.
Natã falou com aquele seu modo gentil. — Muito obrigado por ter
vindo até nós. E uma experiência amedrontadora cambalear sob este
esplendor. Você deve ser Eva. Viajamos muitos e muitos quilômetros para
ver o jardim e nos encontrarmos com você e Adão. De modo nenhum
pretendíamos causar-lhe transtornos.
***
Mas ela suplicou de modo tão ardente que o pai sucumbiu, de modo
que ela foi sozinha em direção aos sons de balidos de ovelhas e vozes
humanas que se misturavam. Alcançou um caminho margeado de
arbustos e brilhantes moitas de flores escarlata, obviamente todos muito
bem cultivados. Enquanto seus olhos se deleitavam na beleza do conjunto,
uma figura humana dela se aproximou.
— Imaginei que você viria cedo, de modo que saí para encontrá-la. Você
possui a impaciência característica da juventude e — pude senti-lo — um
coração que muito anela por Deus. Venha, quero mostrar-lhe os jardins de
Adão. Meu esposo quer ansiosamente encontrá-la. De todos os modos,
ele já não se dirige aos campos com muita freqüência. Existem pessoas
mais jovens para fazê-lo. Mas ele ama intensamente as flores.
— Não sou capaz de acreditar que estou aqui, com vocês. — A garota
contemplou sua companheira com profundo respeito.
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— Lembre-se, Shaina — pois não é assim que seu pai a chama? — Adão
e eu somos pecadores e necessitamos do sangue do Prometido. De fato,
somos os principais dentre os pecadores, pois nós andamos e
conversamos pessoalmente com Deus, e ainda assim duvidamos dEle. Eu,
pelo menos, assim procedi. Não me olhe com admiração. Gostaria que
você compreendesse, antes de ir-se deste lugar, a tragédia que aqui
aconteceu.
Uma voz vigorosa proveio daquela massa de homem, muito maior que
Sepp, seu avô:
— Você ama a beleza. Isso está escrito em sua face, minha filha. Muito
bem-vinda. Vou mostrar-lhe os arredores.
Sou sua filha, pensou Shaina, maravilhada. Carne de sua carne, osso de
seus ossos. Impulsivamente ela encostou sua jovem face no vigoroso
braço de Adão, e ele devolveu-lhe o gesto com um deleitoso sorriso e um
forte abraço. Ele não parecia tão idoso, mas seus passos eram lentos e
calculados — e ela bem sabia que no passado eles haviam sido rápidos e
seguros. A medida que ele lhe explicava sobre os hábitos e necessidades
de cada planta, ela não percebeu na voz do grande homem nenhuma
indicação de idade — apenas interesse e entusiasmo.
— Oh, filha — falou Adão rapidamente, como que para desfazer sem
demora o erro de avaliação da garota — você está enganada. É bem
verdade que tentei fazê-lo, mas diante de ervas daninhas e insetos
destruindo estas plantas, não há ponto de comparação. Lembre-se
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também — e em sua face apareceu um esboço de sorriso amargo — que
foi Deus quem criou aquele jardim. O homem jamais será capaz de
produzir outro igual.
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— Não sei — admitiu Shaina honestamente. — Minha mãe é uma
adoradora de imagens e meu pai — bem, meu pai crê no Deus verdadeiro,
mas não é suficientemente corajoso.
— Tudo isso ainda não foi o pior — disse Adão calmamente. — A morte
de Abel, isto foi o pior, mas ela não é capaz de falar sobre isto.
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Capítulo 3
O Pregador
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lampejaram à luz do fogo. — O que você tem a dizer sobre isso, Ben? Não
lhe parece que isto tornaria mais brilhante a sua vida?
- Você faz com que a idéia pareça muito excitante, Ona. Mas a verdade
é que não sei dançar.
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— Ben, você jamais a seduzirá, pois a festa ocorrerá na tarde e na
manhã do dia sétimo, e Shaina de modo algum colocará seus sagrados pés
em nosso turbulento ambiente durante aquelas suas horas santas.
Ela estava muito bem até que você a arrastou ao Eden. Depois disso ela
retornou mais parecendo filha de Abigail do que minha. E os anos em
nada têm contribuído. Apresente-me qualquer outra garota de 27 anos de
idade que despreza a dança e a companhia de outros jovens. Em breve
contratarei seu casamento com o filho de Zimri, e assim ela será forçada a
assumir seu lugar na vida social da cidade e a deixar estes modos de
campesina, nos jardins, ao lado de Ira.
Natã falou, e em sua voz havia uma impetuosidade que a filha jamais
ouvira antes.
- Nossa filha jamais será noiva de alguém contra a sua vontade, Ona.
— Obrigada, Ben. Flavia tantos primos durante aqueles breves dias que
passei com nossos avós que não tive tempo de destacar você dentre os
demais, mas aprecio muito a sua presença conosco. Conforme você pôde
ver, minha mãe se impacienta diante de minhas crenças, mas eu a amo
profundamente, e tenho certeza de que ela também me ama. Ela não
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compreende minha necessidade quanto a sentir o Deus de Adão. O que
você pretende fazer face aos planos de mamãe para a sexta-feira à noite?
Foi para isto que ele veio, pensou ela tristemente. Excitamento. O
tentador que Eva encontrou no Jardim possui mil maneiras diferentes para
convencer as pessoas a se apartarem de Deus, e Ben já se encontra
ofuscado. Mas o que havia ele dito? Que após essa noite ele talvez
retornasse ao lar, e então a levaria consigo? Ela sabia que iria com ele. De
volta a Havilá. De encontro às quietas noites ao longo do grande e
brilhante rio, sob o seguro retiro do carinhoso cuidado de Ben — para
sempre. Ali ela daria à luz filhos que se assentariam à mesa de Sepp, e
nunca mais ela se sentiria diferente e solitária. Decidiu dirigir-se a seu
próprio jardim com muros de pedra, afastando-se dos risos rouquenhos e
das canções que denotavam embriaguez, afim de poder orar. Entretanto,
ao adentrar àquele sítio fresco e solitário, não lhe foi possível penetrar na
calma presença de Deus. Algo dentro dela, firmemente entretecido e
prometedor, rejeitou, pela primeira vez, a paz daquele seu pacífico
recanto. De alguma forma ela sentiu que aquilo que ela entretinha ali com
seu Deus, poderia custar-lhe elevado preço. Não foi capaz de orar aquela
noite; em vez disso, sentou sobre uma grande pedra arredondada, ao lado
do pequeno regato que murmurejava por sobre e em torno das rochas.
Contemplando grandes e errantes nuvens se fragmentarem em vestígios
espumosos e brancos, ela aguardou — embora duvidando — que se
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aproximassem os passos de Ben. Quando ele apareceu, ela não ficou
muito surpresa.
Ele parecia tão grande à luz da Lua, mais vigoroso e mais forte que os
homens da cidade que ela conhecia, vestido de uma curta túnica
afivelada, sandálias com tiras de couro que se enlaçavam até um ponto
elevado de suas pernas musculosas.
Ele hesitou, depois aproximou-se mais. Ela pôde sentir o odor de vinho
em sua respiração, e durante um fugaz momento pensou em como Abigail
lamentaria essa perda de inocência.
— Eu queria apenas que eles vissem a sua beleza. E desta forma não me
sentirei tão solitário.
— Somente por uns poucos minutos, Ben. Apenas até que você tenha
encontrado algumas pessoas e se sinta mais confortável. Não estou
vestida de modo apropriado para uma tal ocasião. Você está certo de que
deseja ser visto em minha companhia?
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Ela preferiria que ele não houvesse dito aquilo. O pensamento fê-la
lembrar de Abigail, e esta noite não era apropriada para pensar na avó.
Não na sexta-feira à noite, quando Sepp oferecia o cordeiro em favor dos
pecados de toda a família.
— Oh, Natã, você é sempre tão austero. Existem servos para recolocar a
casa em ordem. E os hóspedes lembrarão por muito tempo dessa
comemoração em favor de seu parente. Você será rotulado como um
hospedeiro generoso, com uma linda esposa e filha. O que mais poderia
você desejar?
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— Um jardim do qual todos os recessos não houvessem sido atingidos
pelas maldades do ser humano. E uma filha que mantivesse seu amor
singelo por Deus.
— Do que você está falando? Shaina ficou apenas umas poucas horas
na noite de sexta-feira, e ainda assim a fim de agradar Ben, estou certa.
De todos os modos, é tempo de ela assumir seu lugar na sociedade. Entre
os hóspedes, ouvi muitos comentários acerca de sua beleza. Com algumas
jóias e um pouco de trato com cosméticos, ela será capaz de destacar-se
entre os jovens, espero. Você não sente orgulho de sua filha, Natã?
— Sinto-me orgulhoso de sua lealdade a Deus, Ona. Não quero que ela
jamais a comprometa.
— Você é irrealista, meu amor. Ela não poderá viver todos os dias de
sua vida sem mais do que o velho Ira como amigo e um jardim murado
como objeto de seu amor. Será que você ainda não observou como ela se
sente feliz junto a Ben? Ele será, talvez, a resposta do seu Deus à solidão
de sua filha. Além do mais, ele cresceu em Havilá, conhece o modo de
adoração que lá se pratica, e certamente poderá tolerar as peculiaridades
de Shaina.
— Você está reagindo movido por sua própria amargura diante do fato
de haver casado comigo, e isto o faz sentir-se doente. Talvez ao final da
história Shaina se demonstre mais sábia que seu pai, e Ben tenha de
procurar uma esposa em outra parte. Mas, quer no sentido positivo, quer
no negativo, você não pode forçar a decisão de sua filha. Seu Deus é um
Deus de liberdade — foi você mesmo que me disse isto. Foi por esta razão
que Ele permitiu a Eva comer do fruto. Você deve outorgar a Shaina esta
mesma liberdade, meu amor!
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Ele sentou no piso, ao lado do sofá, e deixou sua cabeça repousando no
colo de Ona. Esta afagou os cabelos do marido, e nenhum dos dois falou.
Ambos conheciam muito bem os pensamentos um do outro.
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Ben sabia que Shaina, habitualmente muito complacente, desta vez não
cederia; reconhecendo, por outro lado, que seria demasiado perigoso
deixá-la sozinha ali, com um ar de resignação preparou-se para esperar.
— Você está lembrado do que ele falou, Ben? Pensem. Em vez de fugir
da realidade, é isto que devemos fazer. Pensar. Oh, meu amado, estamos
percorrendo uma longa estrada descendente.
— Oh, Ben, não leve as coisas tão a sério. — Ona falara novamente. —
Esses fanáticos que ficam nas esquinas das ruas e usam linguagem
bombástica a respeito do Deus de Adão, em geral são indivíduos
mentalmente perturbados, incapazes de desfrutar das delícias da Terra —
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e tampouco desejam que outros delas desfrutem. Venha, coma e relaxe, e
falemos sobre a casa que você e Shaina construirão. Natã contou-me
apenas hoje pela manhã que, ao vocês casarem, Ira os seguirá, para ajudá-
los a tornar a casa um lugar de muita beleza. Esta minha filha é muito
engenhosa e você terá um lar capaz de chamar a atenção de qualquer
transeunte. — Ona encheu um copo de vinho e colocou-o diante de Ben,
dando-lhe leves tapinhas na cabeça, à moda de calmante.
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— Respondendo sua pergunta, papai, Enoque deixará a cidade amanhã
cedo, rumo a seu retiro. Ele convidou a todos os que quisessem
acompanhá-lo.
— Ben, será melhor que você a vigie durante a noite — advertiu Ona. —
Shaina tem uma tendência no sentido de levar muito a sério esta espécie
de coisas. — As maneiras de Ona pareciam naturais, mas todos captaram
a apreensão de sua voz.
— Não tenha medo, mamãe. Papai disse certa vez que se comportava
como covarde a maior parte do tempo, e sinto que não sou muito
diferente dele. — Imediatamente ela percebeu que havia ferido o coração
do pai, e assim passou a recriminar- se duplamente — tanto pela não-
planejada crueldade quanto pela mútua fraqueza.
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Capítulo 4
A Decisão
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— Adriel! O que você está fazendo aqui? — O dono da casa envolveu o
visitante num grande abraço.
Shaina reconheceu-o como um dos irmãos mais jovens de seu pai, e ela
teve imediatamente uma agourenta premonição de que o jovem tio era
portador de más notícias. Depois dos primeiros momentos de emoção e
da apresentação a Ona, Adriel sentou-se à mesa, mas recusou o alimento
que lhe foi oferecido. Antes que pudesse falar, o irmão Natã percebeu-lhe
a palidez e as desfiguradas feições.
— Não, Ben, estou em meu mais perfeito juízo. Uma tribo do norte, o
povo de Yadin, tomou nossa terra e as crianças, e matou os adultos. —
Falhou-lhe a voz, de modo que não pôde prosseguir.
— Você lembra, Natã, onde o rio faz uma forte curva, deixando o
acampamento justamente a seu lado? Bem, neste ponto eu contemplei
uma cena que aterrorizou meu coração, pois guardas armados rondavam
o acampamento enquanto centenas, talvez milhares, estavam construindo
— construindo, Natã — em nosso vale. Eles erigiam uma cidade.
E nos jardins de mamãe, os belos jardins por entre rochas que ela
erigira na encosta do monte em honra a Yahweh, eles preparavam um
bosque. Uma grande imagem dourada encontrava-se no centro da criação
de mamãe, e as papoulas vermelhas espalhavam-se entre as rochas, como
se fossem lágrimas de sangue derramadas diante do sacrilégio. — Adriel
inclinou a cabeça e soluçou, enquanto Shaina sentiu as lágrimas
derramando- se por sobre suas próprias faces.
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Havilá, quer homem, quer mulher. Apenas um amontoado fumegante,
bem mais abaixo do vale, onde seus corpos haviam sido queimados.
Shaina tentou imaginar o vale privado de Sepp e seu sagrado altar assim
como de Abigail, bronzeada e sorridente em sua sagrada esperança. Bem,
todos eles dormiriam com Adão até que o Prometido consertasse outra
vez todas as coisas. Ela só não sabia exatamente como. Abigail e Adão
haviam falado do Vindouro e de Sua morte. Mas o que ocorreria depois?
O que seria daqueles que haviam repousado no pó da terra? Tornariam
eles a viver?
— Decidi que seria melhor avisar você e a Ben, Natã, não seja o caso de
vocês irem até lá à busca de barro, e se defrontarem com o terrível
pesadelo.
— Num momento como este você vem falar de barro, Ona? Meus pais
estão mortos. Meus irmãos estão mortos. Meu povo desapareceu. E você
consegue pensar em barro?
Ele lhe disse que sim, e quando ela entrou, viu-o à luz embaçada do
lampião de barro — sentado na cama, olhos vermelhos, face intumescida.
Ela sentou-se ao lado dele, tomando entre as suas a grande e calejada
mão do tio.
— Vim para sentir com você a sua dor, Adriel. Para carregar um
pouquinho de seu pesar. Eu também os amava, especialmente a vovó.
Natã não compareceu ao seu local de trabalho por vários dias, dizendo
que não tinha ânimo para isso. Tanto ele quanto Adriel apenas beliscavam
o alimento, vindo a emagrecer bastante. Ona censurou e bajulou, sem
qualquer proveito.
— Você está certo, Adriel. Ela diria: Estou com vergonha de vocês dois.
Depositem sua confiança no Prometido e vivam de modo responsável
sobre a face da Terra. Parem de lamentar por nós. Nós dormimos firmes
na fé.
— Então, quais são os seus planos, meu irmão? Eu gostaria que você
ficasse em segurança aqui, conosco.
— Mas ... o que dizer de Ben? E do seu casamento com ele? E de sua
nova casa? E de sua mãe? Shaina, temos de conversar a este respeito.
Você está agindo por impulso.
Quando Enoque falou, aquilo agitou meu coração. Desde então tem
sido mais difícil aplacar minha consciência, mas não tive coragem de
deixar Ben. Amo-o verdadeiramente. — A voz da moça tremeu, mas ainda
assim ela prosseguiu. — Agora Havilá não mais existe. Pude compreender,
então, que meu anseio é pelo amor de Deus que ali senti, e não pelo lugar
em si. Este amor se encontrava nas pessoas, e ele vive ainda em Adriel, em
Ira e em Enoque, e nuns poucos corações de genuínos seguidores de Deus.
Mas não em Ben.
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— Tampouco em nós — disse a mãe amargamente, no momento em
que uma torrente de lágrimas descia por suas faces.
— Natã, meu querido, lembre-se de que ela é livre. Livre para escolher
adorar a Deus ou esses pedaços de prata. — Ela cutucou com o artelho
uma imagem próxima. — Foi você quem a levou a Abigail e ao Éden. Foi
você quem a conduziu a este momento. Não torne as coisas ainda mais
difíceis para ela. — Apegaram-se um ao outro, pálidos e silentes.
Nessa noite ela pediu a Ben que caminhasse a seu lado nos jardins e ali,
com o coração golpeando vividamente e lutando intensamente a fim de
controlar as emoções, Shaina lhe falou da decisão de deixar a cidade em
companhia de Adriel.
— Por que você não vem conosco ao vale de Enoque? — perguntou ela,
desejando intensamente que ele dissesse sim.
62
— Não posso. Há muito tempo cheguei ao ponto de odiar a adoração a
Deus com todas as suas restrições. Mesmo sendo por amor a você, Shaina,
não posso ir. — Ele afastou-se de Shaina e nervosamente abria e fechava o
punho. — Desejo poder. É por isso que estou aqui. Este povo respeita o
poder. Nós somos capazes de nos entender.
— Adão disse que foi isto que o maligno desejou — poder. É um desejo
perigoso, Ben. Melhor é deixar o poder nas mãos de Deus.
Ela não prosseguiu insistindo com ele. Para Shaina tornara-se claro que,
se Ben fosse até o vale de Enoque, tão-somente levaria dissensão àquele
lugar.
— Por que Adriel teve de vir até aqui? Dentro de pouco tempo
estaríamos casados e ocupando nossa nova casa. Você se sentia
suficientemente feliz até então.
***
— Ben, estou contente por você ter vindo. Desejo falar-lhe. Nós somos
filhos de Sepp, homens de Havilá. Venha conosco. Você é um homem
orgulhoso e desassossegado, faminto por autoridade. Não se irrite — disse
ele, percebendo o súbito enrubescimento do outro. — Reconheço estes
traços de caráter em você porque, à sua idade, eu era mais ou menos a
mesma pessoa. Abigail poderia confirmar-lhe que eu era o mais cabeçudo
dentre seus filhos. Ela temia muito por mim, e com justa razão.
“Mas Deus é capaz de mudar tudo isto”, disse ela. “Você precisa orar.”
64
Por alguma razão inexplicável eu prossegui pronunciando aquela oração
simples, quase que numa atitude de desafio. A fim de provar que não era
possível ocorrer a mudança de caráter que ela predissera.
65
Capítulo 5
O Vale
— Ira, você não é mais um servo. Meu pai declarou-o livre. Agora somos
amigos, e isto é tudo.
66
Certa noite, enquanto Ira e Adriel estavam assentados diante do fogo,
discutindo o rumo que deveriam seguir na viagem do dia seguinte e
Shaina se preparava para dormir em sua pequena tenda, ela percebeu
algo duro no fundo da sacola de couro em que carregava seus objetos de
uso pessoal. Retirando-o, ergueu-o com curiosidade contra a bruxuleante
luz da fogueira, que penetrava pela abertura da tenda, e reconheceu-o
imediatamente. Tratava-se de um prendedor de cabelos de barro azul que
seu pai preparara para a esposa há vários anos. Ona apenas o usara em
ocasiões muito especiais. Um delicado arranjo de flores era tudo que
podia ser visto depois de colocado o prendedor — eram rosas,
margaridas, folhas finas e compridas e uma pequena vinha, que pendia
frágil e graciosa de entre o arranjo de flores. As três margaridas tinham
em seu centro minúsculos diamantes, que agora reluziam ao clarão do
fogo.
Shaina enrubesceu fortemente, aquela cor rosa escuro que lhe tingiu a
pele dourada das bochechas.
— Não sou esposa de Adriel, e sim sua sobrinha. Ele é o irmão mais
moço de meu pai. Viajamos ao longo de muitos quilômetros, e sem dúvida
será uma alegria conversar com outra mulher.
71
quilômetros de viagem através da floresta e acendesse uma chama de
esperança em seu coração.
— Agora seus olhos se desviaram para Ira — Percebi que você nutre
terno carinho pela jovem. Arme sua tenda ao lado da habitação dela, e em
72
breve você poderá construir algo bem sólido. Confio-a a seus cuidados.
Adriel, filho de Sepp, você fará seu lar entre meus filhos. Poderei utilizar
um homem que tem coragem suficiente para lançar-se ao deserto, tendo
apenas a Deus como seu guia. Talvez você viaje comigo vez por outra
quando eu for pregar nas cidades dos filhos dos homens.
— Não é tão terrível, meu amigo. Fosse eu rico, eles poderiam cobiçar
minhas posses, mas eu levo apenas uma mensagem, que à percepção
deles nem é perigosa, nem desejável. Na melhor das hipóteses, consigo
apenas um converso ocasional, que ainda assim muitas vezes retorna mais
tarde ao mundo. Este vale ainda se encontra muito distante da civilização
para que represente uma tentação a esta, mas chegará o dia em que a
humanidade, multiplicada, fará com que todos nós venhamos a temer por
nossa vida.
74
um luxuoso tapete de peles que seu pai amarrara sobre Hadesh na triste
manhã da partida. Sobre este ela dormiria.
Mais tarde ela trouxe Ira para que este visse a sua descoberta; o velho e
fiel companheiro lhe disse:
— Qual o presente que você nos traz logo nesta primeira visita?
76
Pela primeira vez Shaina ouviu-o falar de queridos que haviam ficado
para trás, de modo que ela se sentiu algo confortada ao ouvir uma vez
mais aqueles nomes familiares.
***
O velho Amós, que brincara com Sete quando menino; a bela Mahira e
seu esposo, que haviam ouvido Enoque enquanto pregava nas ruas de
uma cidade, e haviam deixado tudo para trás; os filhos e filhas de Enoque
e Rimona — alguns tementes a Deus e amáveis, como Matusalém, outros
rebeldes e desassossegados. Alguns já eram casados, outros permaneciam
solteiros e amargurados, pois o vale oferecia poucas chances em termos
de cônjuges. Não era o Éden. Pecado e tristeza mesclavam-se com
verdadeira santidade. Somente o justo Enoque seria capaz de mantê-los
unidos através de sua vida pura e seu amorável conselho. Com certa
freqüência ele deixava o acampamento durante bom número de dias, tão-
somente para retornar com a face brilhante e tal senso de paz e regozijo
77
dela emanando, que os demais mal conseguiam olhar para ele. Todos
sabiam imediatamente que ele havia roçado nas próprias vestes de Deus,
e uma sagrada reverência perdurava no vale durante dias, como se ele
houvesse trazido a cada pessoa um presente de santidade. Shaina
admirava no patriarca esse relacionamento com a divindade e procurava,
ela própria, aproximar-se mais e mais de Deus. Em seu lugar de oração,
atrás da caverna, ela buscava ardentemente ao Senhor, e Ele muito Se
aproximava a fim de tocar a fiel descendente de Natã e Ona.
Quando, semanas mais tarde, Adriel sentou com Ira e Shaina diante do
esplêndido fogo da lareira, na confortável casa de pedras de Ira, os dois
últimos achavam-se totalmente despreparados para o anúncio do
primeiro:
78
- Shaina, tive uma idéia. — Ela caminhou por sobre o capim ainda
umedecido pelo orvalho matutino, em direção à casa de pedra do amigo,
tentando adivinhar o que este possivelmente teria inventado a fim de
distraí-la durante a ausência de Adriel. Ele tinha em mãos a velha sacola
de couro, imediatamente reconhecida por ela como sendo aquela em que
eram carregados, desde sua infância, os bulbos de flores.
— Talvez a vida seja aqui demasiado séria para nós, e não deveríamos
preocupar-nos com frivolidades, tais como flores — respondeu ela, ainda
desalentada.
— Você deve sentir-se muito sozinha quando Enoque parte para essas
viagens — falou Shaina com simpatia, enquanto descascava nozes diante
do fogo crepitante.
80
— Creio que sim - respondeu a jovem mulher — embora nunca tenha
me detido a pensar muito sobre isto. Você está querendo dizer que por
vezes temos de enfrentar problemas a fim de crescermos e que Deus
assim o permite?
***
82
— Nosso irmão deixou para trás sua cornpanheira e filhos, seu lar e as
propriedades — anunciou Enoque; um murmúrio de simpatia ergueu-se
de entre o grupo.
— Mais tarde falarei com você sobre isto — respondeu ele com voz
firme. Mas durante todo o tempo em que cozinhava nabos recém-
arrancados e cortava os cascudos pães de centeio que Rimona lhe
ensinara a preparar, a apreensão tão-somente foi crescendo no íntimo de
sua alma.
83
Quando haviam terminado a refeição e a luz do Sol alcançava apenas os
picos dos penhascos mais altos na extremidade distante do vale, Adriel
recostou-se contra a parede da caverna e começou sua história. Acima de
sua cabeça um beija-flor deslocava-se metodicamente de flor em flor,
daquelas que se achavam nos vasos dependurados.
Por que tem ele de ficar indo e vindo em relação a Havilá? pensou
Shaina impacientemente. Não sabe ele que meu coração está sedento por
notícias a respeito de meus pais? Tratou de conter- se, porém; podia ver
que Ira mergulhara totalmente na história.
Sei que ele estava certo, mas naquele momento quase cheguei a odiá-lo
face à sua resignação. Algum líder da cidade, usando um capacete de
ouro, falou a Natã e a Ben, dizendo-lhes que eles haviam sido
reconhecidos como homens de Havilá e como tal estariam sujeitos à
morte, a menos que se mostrassem dispostos a demonstrar sua rejeição
ao Deus dos antigos habitantes daquele lugar, ajoelhando-se e adorando a
imagem que diante deles se erguia. Profunda tristeza envolveu-me, pois
eu sabia que aqueles dois filhos de Sepp trairiam todos os que já haviam
sido mortos e se prostrariam diante do resplandecente ídolo. Ben
ajoelhou-se rapidamente, curvando a cabeça em atitude de reverência.
Tentando imaginar quais seriam os pensamentos daquele meu sobrinho,
chorei diante de sua fraqueza. Adriel volveu-se então e olhou plenamente
ao rosto de Shaina — rosto este que se achava tão branco quanto as
pombas que apanhavam migaIhas de comida sobre as saliências da
caverna. Ele estendeu o braço e apanhou a mão da moça ao prosseguir.
— Natã ficou ali de pé, hesitante, até que uma lança cutucou levemente
suas costas, provocando uma mancha vermelha em suas vestes. Pude ver
os lábios de Enoque moverem-se em oração, eu também clamei a Deus
em favor da vitória de Natã. Finalmente seu pai volveu-se para a multidão,
e sua face era naquele momento tão pálida quanto a sua agora, Shaina;
mas ele afirmou em tons claros e firmes: “Não posso ajoelhar-me diante
desta coisa inútil erguida no mesmo lugar que minha mãe dedicou ao
Criador de toda a humanidade. Até aqui não O servi com todas as minhas
forças — sinto-me triste em dizê-lo — mas hoje, diante de toda esta
multidão, declaro que Ele é o único Deus vivo e verdadeiro.”
As palavras mal lhe escaparam dos lábios antes que a turba o atacasse
com pedras e socos. Nem mesmo foi necessário erguer alguma lança.
Dentro de momentos a multidão se retirava, seus pensamentos por certo
já ocupando-se de outras coisas. Ali, junto ao ídolo, seu pai ficou a esvair-
se em sangue, derramando-o sobre o solo, vestido de seu manto marrom
85
de oleiro, enquanto ainda revolvia lentamente a cabeça dourada. Enoque
e eu não nos atrevemos a falar ou a demonstrar interesse pelo evento,
mas quando nossos olhos se encontraram, sentimos profundo regozijo, a
despeito de toda a nossa tristeza.
Juntos choraram então os três, pelo pai, pelo irmão e pelo amo
estimado. Finalmente Shaina perguntou:
— Você sabe algo sobre mamãe, Adriel? O que fará ela sem papai? Você
a viu?
— Nesta viagem não fomos em direção a sua casa, Shaina, de modo que
não vimos Ona. Entretanto, quando Ben deixou a cena do martírio de
Natã, seguimo-lo a certa distância, até estarmos bem afastados da
multidão. Ele, Natã e os servos haviam se acampado num lugar alto, bem
acima da cidade. Haviam vindo para tentar comprar barro. Enquanto Ben
subia a montanha, nós o acompanhamos e estendemos diante dele nossos
suprimentos de nozes, como se quiséssemos negociar. Então eu removi o
disfarce de minha face e ele mostrou-se ofegante, descrente. Atrevemo-
nos a falar com ele por apenas uns instantes, mas Ben prometeu-nos que
tomaria sua mãe a seus cuidados. Ele aprecia muitíssimo Ona, e creio que
será como um filho para ela, de modo que você não precisa preocupar-se
pelo bem-estar de sua mãe. Transmitimos a ele todas as suas mensagens
de amor por sua mãe, e tenho certeza de que ele a confortará.
86
Capítulo 6
A Partida
Rimona tornava possível a vida no remoto vale. Conhecia tudo que nele
crescia, assim como em vários quilômetros à volta; sabia quais as raízes e
plantas silvestres que curavam as raras enfermidades. Dos sedosos pêlos
dos bodes, assim como da macia lã das ovelhas ela tecia as roupas
necessárias, como também era capaz de formar um forte e durável
recipiente de barro. A medida que os anos passavam, Shaina demonstrou-
se uma ávida aluna — mas em nenhum outro aspecto notabilizou-se tanto
quanto no trabalho com barro. Desde a infância Shaina havia brincado
com ele no assoalho da oficina de artes de seu pai, mas nunca se
preocupara em trabalhar de modo sério com o barro. Agora, enquanto
aprendia as técnicas, muitas vezes volvendo a roda sobre a qual Rimona
formava suas criações, ela veio a tornar-se fascinada e em breve pediu a
Ira que revolvesse a roda para ela enquanto se ocupava de dar formas
úteis ao barro úmido. Mas não lhe foi possível parar com utensílios
simples, planos. Seus habilidosos dedos em breve estavam criando flores e
vinhetas como decorações às peças de utilidade prática; mais tarde
chegou a elaborar pássaros e veados, e até mesmo semelhanças de figuras
humanas — homens e mulheres. Com suas flores e barro ela conseguiu
trazer muita beleza, uma vez mais, àquelas vidas espartanas, e todo o vale
tornou-se melhor com sua presença.
87
cada animal individualmente. Portanto, enquanto um cordeiro esperava
inocentemente ao lado do altar, muitas vezes este animaizinho havia sido
segurado no colo, como objeto de deleite, durante a semana — logo, o
momento de seu sacrifício, quando Enoque erguia o cutelo, representava
uma ocasião de amarga tristeza. Depois do sacrifício, por vezes Adriel
tocava a flauta e juntos cantavam; muitas outras vezes, porém, era tão
intenso o sentimento de santidade que todos se deixavam simplesmente
ficar quietos, relutantes em quebrar o silêncio.
— Oh, Shaina, que coisa linda você fez! Quando nossas memórias se
tornarem velhas e falharem, esta obra de suas mãos ainda nos recordará
de nossa herança. Havilá, conforme foi no passado, jamais morrerá. — Ele
golpeou levemente o banco a seu lado, convidando-a a sentar.
Gentilmente tomou a mão da moça e ali permaneceram sentados juntos
no lusco-fusco, sem proferirem palavra, mas sentindo ambos algo natural
e agradável, algo forte e eterno, que entre eles se afirmava. Finalmente,
naquele seu estilo simples e sem rodeios, ele falou:
— Ora, sou mais velho que você, e talvez não lhe fosse possível pensar
em mim como objeto de seu amor, e sim apenas como parente. Mais que
tudo, sempre pensei que, talvez, o seu coração ainda pertencesse a Ben.
91
— Não tão pacientemente quanto você poderia supor — confessou ele,
rindo francamente. — Milhares de vezes desejei tomá-la em meus braços
e ser confortado e aquecido por seu amor.
***
Rimona e Shaina planejaram uma festa como o vale jamais havia visto.
Shaina desejava que a ocasião de seu casamento fosse um período de
regozijo, mas ainda assim sagrado — uma experiência santificadora,
enfim. Queria que todos os casais do vale fossem relembrados de seus
próprios votos de fidelidade e que o amor de todos fosse renovado.
93
preces, pois a amizade destas com Deus era tão natural quanto sua
própria respiração.
Por último orou Adriel, uma súplica de vigoroso amor por sua noiva
diante do Criador do mundo; e a seguir, erguendo-a nos braços, carregou-
a em direção à casa na rocha, enquanto ela enlaçava seus próprios braços
cru torno do pescoço do esposo, seu esbelto corpo tão leve quanto uma
pluma para os fortes braços dele, seu vestido dourado esvoaçando
brilhantemente sob a brisa matinal.
***
Enoque lhes falou com maior intensidade que nunca das coisas que
haveriam de acontecer.
- Você é ainda muito jovem, pois nem alcançou os 400 anos, Enoque. A
destruição poderá sobrevir muito antes de você ir repousar no pó da
terra. Duvido bastante que Matusalém ou eu tenhamos que assumir o
trabalho que você tem feito, embora seja certo que nós viajaremos a seu
lado, qualquer que seja o risco de fazê-lo.
***
96
Quando a alvorada lançou seus mornos raios sobre o casal adormecido,
a encurvada e umedecida forma de Enoque ergueu-se da posição de
oração, junto a uma pedra cinzenta. Despertando, Shaina compreendeu
que ele por certo passara ali toda a noite, e ergueu-se rapidamente a fim
de preparar alimento para o santo homem. Percebeu então nele algo
bastante estranho: uma incandescência o circundava, não muito diferente
da flamejante glória do Éden. Shaina encobriu a face com o braço e
despertou o esposo, que rapidamente se assentou diante da
extraordinária vista. A medida que a glória aumentava, a forma de Enoque
começou a sumir de vista. Ele sorriu para o casal com aquele mesmo e
antigo, amável e radiante sorriso, e então falou firmemente com Adriel.
— Não, meu amor, ele não retornará. Deus o tomou para Si. Sem
dúvida o mundo será um lugar muito escuro sem a sua presença, mas
teremos de levar avante o seu trabalho da melhor maneira que pudermos.
— Ali é terra santa, Adriel, e nesse dia vimos algo realmente sagrado.
Enoque sabia de tudo ao trazer-nos até aqui, não lhe parece? Estamos tão
perto do Céu que chego a sentir-me amedrontada. Por vezes pensamos
que estamos tão longe de Deus, que podemos viver nossas próprias vidas
e nutrir nossos próprios pensamentos, mas Ele está tão perto que Lhe
bastou estender a mão e levar Enoque de nosso mundo para o Seu!
97
— Nada há a temer, minha preciosa — Adriel estendeu o braço de
modo protetor sobre a esposa. — Os braços de Deus são mais seguros que
os meus. Chego a pensar que Deus queria exatamente que soubéssemos
quão perto Ele está; queria também que víssemos, através da experiência
de Enoque, que algum dia, quando o Prometido houver pago o terrível
preço, Ele retornará e levará consigo aqueles que O amam, exatamente
como fez com nosso amigo. Ele almeja que reconheçamos que esta fria e
desolada existência não perdurará para sempre, e que além da mesma
encontraremos outra vez as glórias do Éden.
99
Capítulo 7
A Menina
Aquele dia ela se dirigira à casa de uma idosa mulher, que vivia na
extremidade distante do vale e agora encerrava sua vida terrestre, caindo
natural e pacificamente em seu último descanso, do qual seria
futuramente chamada pelo Prometido. Navit conhecia bem a morte e o
nascimento, pois acompanhara, desde pequenina, Shaina e Rimona
enquanto estas se dedicavam a esses dois misteres. Agora aos 22 anos de
idade, muitas vezes ela sob quaisquer circunstâncias, e quando os mais
idosos se sentiam enfermos ou não mais conseguiam ver, era a presença
de Navit que eles solicitavam. A moça os ajudava durante horas a fio
mediante seu toque gentil, sua risada fácil e, mais que por qualquer outro
meio, com a música que, através de cânticos, sempre se expressava em
seus lábios. A música de Havilá achava-se enraizada em sua alma,
habilitando-a a tocar os instrumentos que Adriel lhe trouxera da cidade e
a utilizar a voz de uma forma tal, que comovia os ouvintes, levando os às
lágrimas. Amós ensinou-lhe as primeiras e antigas canções, cantadas junto
aos portais do Éden, e que haviam sido transmitidas de geração a geração;
e o próprio Adriel ensinou-lhe a canção de Eva, com toda sua dor e
ternura.
— Oh, se Natã pudesse vê-la, minha filha. Pois você é igualzinha a mim
quando ele me encontrou no mercado, vendendo sedas, há centenas de
anos. Venha, minha querida. — Tomou a face de Navit entre as mãos e
fixou seus olhos nos claros e verdes olhos da neta. — Deus me concedeu o
privilégio de ver você. Agora posso morrer em paz.
Ira havia-se mudado, vários anos antes para o fundo do vale, dizendo
que suas velhas e cansadas pernas não mais queriam que ele subisse a
encosta da montanha. Deste modo a casa de pedras tornara-se de Adriel e
Shaina, embora eles muitas vezes preferissem a caverna, com aquela sua
deslumbrante visão do vale. Foi para ali que agora conduziram Ona;
enquanto Shaina preparava alimentos, conversaram intensamente, as
palavras atropelando-se e sobrepondo-se umas às outras, pois
necessitavam relatar centenas de anos de existência.
- Você tem certeza de que poderá sentir-se feliz aqui, neste lugar? Tudo
é muito quieto — preocupou-se Shaina, lembrando-se de quanto a mãe
apreciava multidões e danças.
102
— Sou uma nova criatura e nutro novos desejos, minha filha. Depois
que seu pai foi assassinado, senti-me irada com Deus; ao mesmo tempo,
porém, lá em meu íntimo, respeitei a Natã porque no final de tudo ele
tivera coragem de defender suas convicções. Ben foi amável comigo e
construiu-me uma pequena casa nos fundos de sua propriedade, e com o
dinheiro que eu possuía, pude viver confortavelmente. Entretanto, com a
passagem dos anos, pude ver que ele mudava, do homem gentil e
educado que era quando chegou de Havilá, para um tirano cruel,
astucioso e enlouquecido por prazeres. Tive que admitir que, quanto mais
ele se afastava de suas origens, mais degradado se tornava. Creio que, por
fim, o longo braço de Abigail me alcançou e me tocou. Tentei recordar o
modo como você e Ira viviam, e fiz o melhor que pude, apesar de minha
ignorância, no sentido de seguir o Deus verdadeiro.
Não mais falaram a respeito de Ben, pois cada um deles lamentava por
aquele que haviam amado.
— Ela sempre foi muito especial. — Shaina fez sombra com a mão sobre
os olhos e fixou-os em direção ao norte, através do vale. Por entre as
montanhas, um cavaleiro solitário abria caminho.
104
Com um grito de alegria, sua esposa Jonine e Rimona correram para
abraçá-lo — aquele neto e bisneto que não viam desde a mais tenra idade.
— Papai enviou-me para ver o bem-estar dos parentes que vivem aqui
no vale, e também por outras razões — informou ele, sorrindo como se
fosse um garoto, embora já se constituísse em homem maduro.
Certa vez Navit, ao levar grãos até a pastagem das ovelhas, encontrou-o
vigiando os rebanhos. Antes quele se apercebesse da presença da moça,
teve ela a oportunidade de observar sua forte e angulosa face abaixo do
emaranhado de irrequietos cabelos negros. Um homem fora do comum,
pensou ela.
106
- Muitas vezes me pergunto se nossa existência, aqui, possui algum
significado. Levamos vida simples, de estilo campestre, enquanto o mundo
nem toma conhecimento de nossa presença. O que será que significamos
para Deus?
Noé analisou a jovem face que tinha diante de si e imaginou que jamais
vira antes tamanha pureza e inocência.
— Bem, foi uma idéia pobre — disse Navit com franqueza. — Aqui
existe apenas um punhado de jovens, e nenhuma delas tem a sua idade.
Navit não conseguiu compreender por que falara de modo tão positivo,
pois não era de sua natureza mostrar-se rude. — Tenho de ir andando -
falou ela por sobre os ombros enquanto se volvia, apanhava os sacos de
grãos, agora vazios, e se dirigia para casa.
108
— Por quanto tempo teremos de aguardar sua mensagem, Matusalém?
Estas preciosas iguarias foram perdidas sob a tensão do momento, e de
minha parte eu preferia tê-las apreciado. Navit esboçou um sorriso. Sua
avó parecia a única capaz de quebrar a aura de reserva que circundava o
patriarca. Matusalém espiou desconfortavelmente em direção a sua
esposa. Nunca dantes Navit o percebera desta forma, como que não
confiando em si próprio, de modo que a curiosidade da moça cresceu.
Finalmente ele se volveu para Rimona.
— Você é melhor para esse tipo de coisas que eu, mamãe? Você
poderia ... ? — gaguejou ele, sentindo-se desconfortável.
Nosso neto Noé, que todos vocês conhecem bem, não veio até este
vale apenas para cuidar de ovelhas e visitar seus parentes. Ele procura
uma companheira que seja pura à vista de Deus.
Será que ele já escolheu alguém? pensou Navit enquanto sua mente
percorria rapidamente a pequena galeria de jovens elegíveis, habitantes
do vale. Ela não o vira em companhia de nenhuma das moças mas, de
todos os modos, havia-o evitado.
109
Ninguém proferiu qualquer palavra por vários momentos, e Navit sentiu
o coração quase explodindo no peito. Chegou a pensar que os demais
conseguiriam ouvi-lo. Finalmente Adriel falou, sua voz era firme:
Tendo os olhos de todo o grupo voltados para si, a jovem lutava por
controlar-se. Muitas emoções bombardeavam-na. Temor, confusão,
deslumbramento e algo mais — uma pequena chama de regozijo, que ela
tentou inultimente sufocar.
110
Prática! pensou Navit, rindo nervosamente em seu íntimo. Fosse o que
fosse que ela estivesse sentindo por Noé, aquilo nada tinha a ver com
praticidade. Era algo bonito como uma borboleta em pleno vôo, e tão
difícil quanto esta para se capturar. Embora aquilo fosse tão etéreo que
sua mente não era capaz de captar, seu coração o havia experimentado —
ela o admitiu relutantemente — desde aquele dia, lá na pastagem das
ovelhas.
Por que insistira ela em falar com ele? Navit sentiu que o pânico quase a
dominava. O que diria ela, agora que Noé se encontrava a seu lado? Será
que os outros realmente esperavam que ela fosse embora em companhia
de um homem com o qual apenas falara umas poucas palavras? Por que
ele não dizia alguma coisa?
***
- Algum dia, minha querida, talvez você também venha a ter uma filha,
e você lhe contará do extremo amor existente entre sua avó e seu esposo-
112
oleiro. E você lhe contará de como ele pereceu às mãos de uma turba, por
amor a seu Deus. E então você lhe colocará este prendedor nos cabelos,
tal como eu agora faço com você. Somos as mulheres de Havilá, Navit;
somos filhas de Abigail. Jamais o esqueça. Embora aquele vale esteja
perdido para nós, o mesmo não acontece com a sua herança. Devemos
sustentar o amor de Deus acima dos males deste mundo. Agora você se
dirigirá para além dos protetores muros deste vale, no qual nasceu. Pela
primeira vez verá o mal em seu insubordinado desafio ao Deus dos Céus.
Lute contra ele da mesma forma como Enoque lutou, andando em íntima
relação com Deus; reparta igualmente com outros este conhecimento do
Deus que você veio a conhecer e a amar.
— Venha, meu amor. Em Navit corre firme o sangue de nosso povo. Nós
a entregamos a Deus. Não o façamos com lamentações.
Ela correu rapidamente para longe dele, sorrindo, olhando por sobre os
ombros, soltando gargalhadas. Uma vez mais era a garota que ele
trouxera ao vale depois de atravessarem densas florestas; agora ele
correu após ela, apanhando-a nos braços, quase sem respiração, e tentou
sorrir mais uma vez, mal sonhando com o destino ao qual Navit se dirigia,
cavalgando ao lado de seu sóbrio e devoto esposo.
113
***
— Você tomou todos eles de mim, Adriel. Um a um. Depois que você foi
embora, Natã nunca mais se sentiu contente na cidade. Ele sentia grande
falta dos velhos costumes de Havilá e da adoração a Deus. Perdi-o muito
antes que fosse morto, e isto por sua causa. Você me tomou Shaina, a
única mulher que cheguei a amar, e arrastou-a para este lugar escondido,
mas isto ainda não lhe pareceu suficiente. Você a tomou como esposa, a
ela que havia sido minha noiva. E mesmo isto ainda não o satisfez, Adriel.
Você voltou e também arrastou Ona a última que eu tinha. Não me fale de
traição.
Ben não proferiu palavra, e então seus homens caíram sobre Ona, e
logo depois sobre Adriel. Shaina ficou de pé como uma pedra, esperando a
arremetida, mas Ben interpôs seu cavalo entre ela e as lanças, dizendo
com voz áspera:
— Ela viverá. Tomem cuidado para que nenhum mal lhe suceda.
— Vá para sua caverna — ordenou ele — e que a sua dor seja tão
intensa quanto tem sido a minha. — Ele observou-a enquanto ela subia a
encosta montanhosa no momento em que os primeiros raios de sol faziam
brilhar seus cabelos dourados.
115
***
Ali ficavam apenas ela e seu Deus, e no lugar secreto de oração ela se
aproximou mais e mais dEle, até que a solidão se converteu em paz, e esta
em regozijo.
116
Capítulo 8
O Barco
Ou pelo menos havia sido esta a vida até que Noé começara a construir
o barco. Dobrando cuidadosamente a toalha, ela volveu-se para observar
a cena, não muito distante da estrada, que agora atraía muitos curiosos;
estes se acotovelavam em grande número por sobre a campina outrora
calma.
117
observar e ouvir os apelos de Noé em favor de sua alma, por vezes ternos,
outras vezes severos.
Navit recordou a história da luz junto aos portões do Eden, que sua mãe
lhe contara.
— Todos nós pecamos, minha querida — replicou Noé; — mas esta não
foi a mensagem. Os juízos preditos por Enoque estão a ponto de cair sobre
todos os que desafiam a Deus e se recusam a manifestar fé no Prometido.
— A magnitude do que ele havia experimentado, assim como a
terribilidade da mensagem de condenação que atingiria milhões, pareciam
querer esmagá-lo, de modo que chorou. — Oh, quão bom se alguma outra
pessoa houvesse sido escolhida para levar avante esta medonha tarefa—
gemeu ele.
Noé suspirou:
119
— Deus estabeleceu cuidadosamente Seu plano. Este requererá nosso
tempo e todos os nossos recursos. Nosso negócio de produtos de couro
terá de ser abandonado. Deus nos concedeu 120 anos para construirmos o
barco e advertirmos o mundo. Viveremos do produto de nossas hortas e
de nossos rebanhos. Também teremos de empregar muitos operários. Por
fim, o projeto requererá tudo aquilo que possuímos. — Ele olhou em
direção a Navit, assentada a seu lado — aquela sua pele cor de oliva
esboçando o brilho da saúde, seus cabelos negros encaracolando-se
livremente po sobre a face. Seus olhos verdes, claros e confiantes,
fixaram-se nos do marido.
***
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Prometido. Não têm demonstrado qualquer tristeza por seus pecados, e a
condenação jaz à sua porta.
— O que faz você pensar que é mais santo que nós, Noé?
Vez por outra ela pudera perceber alguém, situado nas orlas da
multidão, verdadeiramente ouvindo, e ela se dirigira até essas pessoas,
insistindo em que levassem a sério as palavras de Noé. “Deus não está.
pedindo muito. Tão-somente entre no barco quando Noé o chamar.
Confie nas palavras dele. Ouça o que diz meu esposo. Ele é um homem de
Deus. Ele seria incapaz de mentir a vocês.” Ela nunca sabia se aquele seu
esforço era de alguma utilidade. mas sempre prosseguira tentando.
- Isto significa que terei filhos, meu querido. — Navit respirou fundo e
com tal êxtase de regozijo, que seu esposo riu fortemente uma vez mais,
enquanto a trazia para junto de si.
— Espero que seja exatamente isto que Ele tenha querido dizer —
murmurou ele em meio aos macios cabelos escuros da esposa. — Os
campos de Noé encher-se-ão do riso de crianças e com a derrubada de
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árvores. Oh, minha doce namorada, os anos que estão à nossa frente
serão muito solenes, mas . . . filhos, você é capaz de imaginar, Navit,
filhos?
Seu sogro, Lameque, morrera três anos antes, mas Matusalém ainda
vivia e desenvolvia atividades. Navit apreciava muito tê-lo com a família,
pois tão-somente ele compartilhara com ela os distantes dias do vale de
Enoque. Muitas vezes falavam a respeito daqueles delicados dias, assim
como de Rimona, Jonine, Shaina e Adriel. Matusalém estivera fora do vale
quando a invasão de Ben ocasionara a morte de todos, exceto de Shaina.
Quando ele retornou e percebeu a grande quantidade de rastos barrentos
na entrada, suspeitou que alguma catástrofe se houvesse abatido sobre os
habitantes. Cautelosamente contornou o vale até que, a partir da
extremidade norte, foi capaz de observar toda sua extensão; conforme
suspeitava, observou o frenesi de construções invadindo todo o lugar. Não
conseguindo reconhecer qualquer pessoa, tomou como certo que todos
os habitantes haviam sido mortos e sob a mais amarga tristeza tratou de
chegar a habitação de seu filho Lameque e seu neto Noé. Ele e Navit
haviam estado um ao lado do outro em sua mútua dor, e ele se mudara
prazerosamente para a casa dela, conseguindo gradativamente recuperar-
se sob seu terno cuidado.
Navit correu em direção à casa a fim de trazer algo refrescante para Zoé
e suas tosquiadoras.
Ele está falando daqueles que assassinaram sua amada Jonine e sua
preciosa mãe Rimona, pensou Navit enquanto se lhe enchiam de lágrimas
os olhos.
- Sinto-me agora mais sozinho do que alguma vez julguei possível. Ele
era um grande conforto e fortaleza para mim, sempre que a turba
zombava e me lançava frutas podres.
- Agora Deus será a sua fortaleza, meu amor — disse ela mansamente.
— Talvez isto seja parte de Seu plano.
Depois disto, porém, ela passou a roubar de suas tarefas tanto tempo
quanto possível, a fim de estar ao lado do esposo enquanto este pregava,
permitindo que os insultos e os mísseis caíssem também sobre ela, até ao
ponto de chegar a experimentar a dor do esposo em todos os recessos de
seu próprio ser; e assim o amor de um pelo outro e de ambos por Deus
cresceu ainda mais.
****
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Matusalém penetrou no vale a partir do rochoso acesso do norte,
abrindo caminho por sobre um trilho raramente utilizado. Em várias
cidades ele contara a história das grandes águas que encobririam a Terra.
Da maioria delas ele mal conseguiu escapar com vida. Seu coração partira-
se de dor com as coisas que havia contemplado. A doença do pecado e da
rebelião grassava por toda parte, maligna, sobre a bela Terra, e a
humanidade abusava do precioso dom da vida sob todas as formas
imagináveis. Os homens lutavam nos lugares férteis da Terra, seu sangue
ensopando as verdejantes campinas e vales escondidos. Por toda parte
imagens erguiam se em meio a elaborados jardins, e suas faces benignas
disfarçavam suas cruéis demandas. Matusalém almejou muito o calmo lar
de Noé e Navit e os campos gentis onde um grande barco se erguia em
direção ao céu, mas ele tinha de si uma última missão — aquela que o
levaria ao lar de sua infância, e ali ele não esperava sobreviver.
— E Navit?
Depois ele ordenou que fortes homens rolassem uma enorme pedra
sobre a entrada do túnel, selando-o para sempre. Desceu então a encosta
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montanhosa, sentindo já na boca o gosto amargo da condenação que se
aproximava.
*****
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— Amigos, hoje vocês contemplaram o poder de Deus em operação. Já
não precisam mais confiar apenas em minha palavra. Vocês viram os
animais entrarem no barco, conduzidos por alguma invisível mão. Deus
tomou providências para que os animais sobrevivessem, e muito anseia
por fazer o mesmo com vocês. Venham. Venham e encontrem aqui a
salvação.
Pela segunda vez, neste mesmo dia, o temor caiu sobre os que
observavam. Desta vez a porta não oferecia uma segunda oportunidade. A
voz de Noé não mais seria ouvida em comoventes apelos. Os campos
silenciaram, e sua própria quietude representou um agudo grito de
advertência.
***
Pela centésima vez Navit tratou de afastar uma torrente de terror que
parecia querer engolfá-la. Seis dias haviam decorrido, e nestes eles pouco
mais haviam feito, além de cuidar de animais. A princípio mal haviam
encontrado tempo para suas próprias refeições, mas com o passar dos
dias estabeleceram uma rotina segundo a qual cada um teria
determinadas tarefas a desempenhar; agora lhes sobrava um pouco de
tempo para descanso e lazer. Era o dia sétimo, doce presente de adoração
e comunhão com Deus, e ela tentou captar aquela doce paz sabática que
sempre representara uma fonte de renovação; mas esta pareceu evadir-
se. As paredes do barco hermeticamente fechadas à sua volta; ferozes
olhos luminosos de animais selvagens a amedrontá-la; e o constante ruído
de animais desassossegados, assaltavam seus ouvidos. Não era nada
parecido com o que ela imaginara. Tudo era tão ordenado e limpo
enquanto elas se haviam ocupado em encher os depósitos, a fragrância de
trevo seco misturando-se com o pungente aroma de madeira. Agora,
porém, o ar era abafado e fétido. Os oito ocupantes humanos quase não
falavam entre si, exceto quando necessário, pois eles próprios se sentiam
irritados, sob a tendência de se abocanharem uns aos outros. Eles se
moviam vagarosamente à semi-escuridão, aguardando. Quando a glória
de Deus fechara sobre eles a gigantesca porta, haviam-se ajoelhado em
profunda reverência, louvando-O por tão confortadora evidência de Sua
presença. Agora esperavam pelo início da chuva, mal conseguindo saber
se era dia ou noite. Do lado de fora provinham as zombarias dos que se
encontravam à volta do barco. Ocasionalmente um pedaço de pau ou
alguma pedra batiam de encontro à lateral da arca agitando todo um
setor de animais, numa reclamação do tipo reação em cadeia.
- Não tenho medo de sofrer. Mas a minha família – eles estão perdidos.
Jamais tornarei a ver meus pais, nem meus irmãos.
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A jovem soluçou baixinho, e Navit pôde observar também uma terrível
tristeza nos olhos de Zoé e Malka.
- Minhas filhas, o seu chamado é muito notável. Deus viu vocês como
jovens puras, que Ele utilizará em Seu plano de purificação da Terra. Serão
seus filhos e filhas que repovoarão o mundo. Através de vocês e de nossos
filhos Ele tentará criar novamente um povo obediente e santo. Por tanto,
enxuguem suas lágrimas e tomem alento. Vocês são preciosas para nós,
assim como para nossos filhos. Vocês são as eleitas de Deus.
— Cante-nos algo, meu amor. Temos tido pouco tempo para a música,
e meus ouvidos estão famintos por sua voz.
Noé chorou pelos perdidos e todo o seu pranto como que foi
entretecido com um fio de prata pelo som da harpa e pela voz de sua
amada, enquanto cantava:
“Pois assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do
homem.
“Ora, os céus que agora existem, e a terra, pela mesma palavra têm
sido entesourados para fogo, estando reservados para o dia do juízo e
destruição dos homens ímpios.
“Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que, para
com o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia.
“Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais
como os que vivem em santo procedimento e piedade; esperando e
apressando a vinda do dia de Deus, por causa do qual os céus incendiados
serão desfeitos e os elementos abrasados se derreterão.” II S. Pedro 3:3-
12.
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