A Canção de Eva

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A canção de Eva

June Strong
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Capítulo 1
O Presente

A luz solar da tardinha como que brincava por entre paredes de marfim
e plantas tropicais de um verde forte, espreguiçando-se em meio a elas. A
água, murmurando sobre as pedras num dos cantos, fazia com que a
grande e arejada sala quase parecesse uma extensão do frondoso mundo
que se estendia para além da janela aberta. Um pássaro tão azul quanto
um pedacinho do céu, esvoejava em torno de uma garota; esta, com os
joelhos erguidos, achava-se sentada sobre um sofá de macia lã cardada.
Sem prestar atenção ao que fazia, estendeu ela a mão ao pássaro; era,
porém, muito fácil perceber-se, através de seus sonhadores olhos verdes-
marinho, que seus pensamentos vagueavam bem longe dali.

“Bem, pequena Safira”, disse ela finalmente, acariciando


afetuosamente as penas lisas e macias do pássaro, “você perturbou meu
devaneio, de modo que agora deve ouvir-me. Papai prometeu-me uma
surpresa para esta noite, e não se trata de uma surpresa qualquer. Algo
muito especial. E mamãe está desnorteada por causa disso. Posso vê-lo
através do modo como ela caminha.” A mocinha sorriu enquanto, com os
olhos da mente, podia ver uma vez mais o porte ereto e desaprovador de
sua mãe. Mas ela não dissera não. “Muito misterioso tudo isso, não é
assim que você diria, minha pequena amiga?”

O pássaro ergueu sua pequenina cabeça, como se efetivamente


estivesse meditando sobre a questão. Não creio que ele esteja pensando
em comprar-me algo, pois sabe muito bem que não desejo nenhuma
daquelas coisas que são vendidas no mercado. Todas as pulseiras de prata
que causam tanto deleite à mamãe, a mim tão-somente atrapalham
quando quero correr por entre as árvores ou trabalhar no jardim. Talvez
ele esteja pensando em fazer algo para mim. Sim, deve ser isso mesmo!”

Ela aconchegou o pássaro sob o queixo, deixando que seu espesso


cabelo castanho, com algumas manchas cor de cobre, caíssem em torno
da ave como se fossem um ninho. “Talvez um pássaro esculpido, tão lindo

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quanto você. Mas mamãe não faria objeções a isto. De fato, tudo está
muito misterioso!”

Colocando o pássaro de volta no grande aviário que enchia um dos


cantos da sala com música e cores, ela escapuliu por entre uma área de
flores, arbustos e relva muito verde, dirigindo-se a uma estrutura longa e
baixa que se achava na parte dos fundos da propriedade. A visão que
obteve ao entrar era-lhe muito familiar, mas ainda assim jamais se
cansava dela. O local de trabalho de seu pai era um lugar de paz, a
despeito da constante presença de um ou dois artesãos, demasiado
ocupados com o aquecimento e alimentação dos fornos, ou com o
preparo do barro. Sabendo que seu pai não era um oleiro comum,
caminhou por entre as obras que ali se encontravam. Tudo era azul.
Pedaços rejeitados de barro azul jaziam no solo, grandes vasos azuis em
vários estágios do processo de fabricação, urnas azuis e adoráveis tigelas.
Mais do que tudo, porém, ela apreciava as esculturas; sempre voltava a
contemplar vagarosamente e com apreço a coleção, percebendo a
ausência de alguma peça que havia sido vendida ou a presença de uma
nova peça de arte, recém-saída das habilidosas mãos de papai.

Hoje ela reconheceu um pavão, cuja cauda abria-se em sutis


graduações de barro azul. Durante quanto tempo teria seu pai trabalhado
nos detalhes? Um sentimento de orgulho subiu-lhe à cabeça, e era muito
parecido com o pomposo andar do pavão, em sua própria colônia, por
entre as tamarguciras. Como podia ele captar tão bem as mínimas
nuances de posição ou expressão? Ainda sorrindo satisfeita, ela dirigiu-se
até onde papai moldava uma tigela profunda mediante seguros toques de
seus dedos. Como criança, ela aprendera que teria sempre a liberdade de
vir e sair desse lugar sem qualquer problema, desde que se abstivesse de
fazer perguntas enquanto papai estivesse trabalhando. Tão arraigado
achava-se o hábito que, agora, já aos quinze anos de idade, ela não fez
qualquer ruído enquanto contemplava a habilidade artística de seu pai.
Quando a tigela foi completada, ele indicou as suas bordas e com hábeis
movimentos formou utilizando pequenos restos de barro úmido — uma
grinalda de folhas e flores para o adorno da margem. A garota deixou
escapar um suave som de deleite. Natã ergueu a cabeça e surpreendeu-se
com a presença da filha, tão absorto estivera em seu trabalho. “Então
você gostou?” perguntou ele. “Eu também. Agora, minha pequena,
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deixemos todo este barro para trás e vamos à procura de sua mãe.” Pôs-
se de pé e esticou-se vagarosamente — um homem de excelente
constituição física, surpreendente estatura, cabelos cor de areia e olhos
negros e gentis.

Ele traz em si as próprias tonalidades da terra, pensou Shaina enquanto


o examinava detidamente. Seu manto de tecido grosseiro, sua pele, seus
olhos, seu cabelo. Ele tem trabalhado com a terra por tanto tempo, que
até mesmo já se tornou parte dela. Somente a terra de trabalho de Natã
era azul, o belo barro azul do rio Havilá, cuja região ficava no escondido
vale de sua infância. Era com esse barro inanimado que ele preparava as
peças raras, cujo preço alcançava cifras extravagantes no mercado. As
criações cerâmicas de outros homens podiam servir muito bem para
carregar água ou cozinhar ao fogo, mas Natã, o filho de Sepp, combinava
seu gênio criativo com um meio único de produção artística, raro entre os
homens. Isto conduzira sua família a ocupar um lugar entre os ricos, e,
enquanto Natã e Shaina andavam despreocupadamente por entre os
jardins que circundavam a casa, ele se sentia agradecido e, como sempre,
um pouco surpreso pelo fato de que um trabalho que tanto apreciava,
tivesse se demonstrado tão lucrativo.

— O que você esteve fazendo durante o dia? — perguntou o pai,


volvendo-se à garota que andava a seu lado.

— Trabalhei com Ira em meu jardim até ao meio-dia — respondeu ela.


— Estivemos semeando durante horas ao sol quente, e isto não foi muito
confortável, mas os resultados são realmente dignos do esforço. Você
verá as belas roseiras cobrirem-se de rosas brancas, e os novos arbustos
trazidos das montanhas encontraram um lugar perfeitamente adequado
sobre as rochas, logo atrás. Ira é um gênio, papai. Estou aprendendo
muito com ele.

— Não há necessidade de você trabalhar tanto admoestou Natã. —


Caso estejamos com poucos servos, peçamos a Ira que contrate outros.
Você não precisa crescer com terra debaixo das unhas, tal como ocorreu
comigo. Você é uma gentil mocinha, cheia de boas maneiras, meu amor.
— Sorriu afetuosamente enquanto contemplava sua única filha. Ela
estendeu diante do pai suas mãos tostadas pelo sol e apresentou-lhe os
dedos delgados.
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— Papai, não existe sujeira debaixo de minhas unhas. Escovei-as
longamente durante o banho, e você deve admitir que pareço tão viçosa e
amimalhada quanto uma princesa. Durante o calor do dia, enquanto
mamãe descansava, estive passeando ociosamente e brincando com
Safira. E tentei adivinhar qual é a sua surpresa. — Shaina espiou com o
canto dos olhos em direção ao pai que caminhava a seu lado.

— Oh, você o fez mesmo? Pois bem, em breve sua curiosidade terá fim,
pois tudo indica que o jantar está posto, e sua mãe já nos aguarda. No
sombreado quintal, uma mulher esbelta, de tez morena, colocou sobre a
mesa uma bandeja com uvas e fatias de melão; com um gesto manual,
despediu duas servas que estavam por perto. Natã abraçou-a
calorosamente e Shaina ficou pensando, pela centésima vez, quão ardente
e obviamente ele amava sua mãe. Com boas razões, por certo, já que sua
opressiva beleza só parecia aumentar com a idade. Ela era vivaz e
engenhosa — uma companheira sábia, sem dúvida. Shaina herdara os
olhos verdes-marinho da mãe, embora noutros aspectos revelasse os
traços característicos do lado paterno, tais corno a aparência dourada,
como que beijada do sol.

Depois que Natã havia tomado banho e vestido um roupão limpo, a


família pôs-se à vontade e desfrutou dos pães achatados de cevada e
fritas, que em conjunto compunham a refeição vespertina. Era a
alimentação simples da terra natal de Natã, e ele ainda a preferia às
demais. Enquanto comiam, Shaina aguardou impacientemente que ele
mencionasse o trato de revelar-lhe a surpresa, porém o pai dava
indicações de haver esquecido o assunto. A mocinha percebeu a
relutância dele em quebrar a serenidade do momento, mas não mais lhe
era possível refrear a curiosidade típica da adolescência.

— Papai, você prometeu que minha inquietação logo seria resolvida.

Natã hesitou por um momento e então lançou- se em frente.

- Dentro de duas semanas estarei indo à terra do rio Havilá a fim de


visitar meus pais e refazer meu estoque de barro; antes, porém, de
retornar, quero viajar até o Jardim do Éden e tentarei encontrar-me com o
velho patriarca Adão. Dizem que ele está envelhecendo rapidamente e
talvez não viva por muito tempo mais. O lugar fica muitos quilômetros
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além de minha terra natal, de modo que será uma viagem extenuante,
mas isto é algo que assentei em meu coração fazer.

Natã caiu então em silêncio, como que perdido em pensamentos, e


Shaina ficou a perguntar-se o que tudo aquilo teria a ver com ela. Agora
ela desejava que o pai completasse os pensamentos ainda retidos na
mente. Será que ele estaria pensando trazer-lhe alguma planta rara lá do
Jardim? O que estaria ele planejando? A garota olhou rápida e
furtivamente em direção à mãe, mas foi capaz de ver unicamente o
desdém estampado no impassível rosto materno. Então, rapidamente,
como que para encerrar o assunto, Natã disse:

— Meu plano é levar você comigo.

Shaina não se teria sentido mais aturdida se ele houvesse dito que
planejava fechar sua oficina de artes em cerâmica. Nem mesmo mamãe
jamais o acompanhara nessas viagens realizadas duas vezes ao ano com o
objetivo de adquirir novos suprimentos de barro, pois a viagem era longa
e cansativa. Cautelosa excitação começou a produzir-se no íntimo da
jovenzinha. Aquele era um presente situado além da mais desenfreada
imaginação. Cavalgar por entre os arredondados outeiros que
circundavam a cidade e ir ainda para muito além, em direção à misteriosa
terra que havia sido o lar de seu pai antes que ele encontrasse sua mãe e
desta forma pusesse a perder seu coração e sua herança! Muitas vezes ele
falara à filha a respeito do calmo vale povoado de árvores gigantescas que
estendiam seus galhos qual frondoso teto por sobre os habitantes. Um
lugar em que os raios solares se infiltravam por entre os caminhos e por
vezes flamejavam sobre as cores de pedras preciosas que jaziam soltas ao
longo dos regatos e acima do solo, em lugares secretos, onde os homens
não as haviam tornado objeto de sua cobiça.

Certa vez trouxera para a esposa uma água-marinha, emoldurada por


uma estrutura de prata. Mamãe arrumara seu espesso e escuro cabelo
para um lado e colocara a jóia em torno do penteado negro e brilhante. A
jóia era exatamente da cor dos olhos de mamãe e sua figura apresentara-
se simplesmente maravilhosa enquanto ela ria com prazer no quarto de
obras de arte. Shaina pudera ler a satisfação estampada no rosto de papai
enquanto ele contemplava a esposa.

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E dizer que agora ela própria iria visitar essa terra! Encontrar seus avós,
tios e primos! Ver as barrancas do rio, das quais os servos de papai
arrancavam o barro que depois se convertia em esculturas e bacias, aqui
em sua oficina! Repentinamente ela se deu conta de que não pronunciara
uma única palavra e que papai olhava em sua direção com um ar
estranho.

-A idéia assustou você, querida? Claro que, não a obrigarei a me


acompanhar. Foi apenas uma fantasia minha. – Então ele adquiriu um ar
solene. — Não, Shaina, não apenas uma fantasia. Um ardente desejo. Eu
gostaria muitíssimo de compartilhar tudo com você. Desejo que você me
acompanhe na peregrinação ao Éden. Eu gostaria muitíssimo!

Shaina escolheu carinhosamente as palavras. Papai lhe atribuíra grande


honra, e queria que ele percebesse que ela entendera muito bem o gesto.

- Não tenho palavras para expressar meus sentimentos. Este é um


presente além de qualquer compreensão. — Seus olhos lampejaram e
toda formalidade desapareceu. — Sinto-me como nunca dantes. Nem sei
como poderei esperar pelo momento de montar Hadesh e dirigir-me para
as montanhas!

— Você não faz idéia daquilo em que se está metendo — vociferou sua
mãe — e seu pai não tem direito de levá-la consigo.

Shaina teve a sensação de que uma feroz batalha fora travada por
detrás dos bastidores. Raramente seu pai negava algo à esposa; ao
contrário, sentia o maior prazer em atendê-la. Desta vez, porém, a
vontade dele prevalecera. Shaina mal tentava adivinhar qual teria sido o
custo.

— Sou jovem e forte, mamãe, e estou acostumada ao trabalho no


jardim. Nada há a temer!

— E se você for atacada por ladrões ou animais selvagens, suponho que


pretenderá usar seus frágeis braços a fim de mantê-los no devido lugar!

Natã falou antes que a filha tivesse tempo de responder.

— Os servos viajam sempre armados, Ona. Você sabe disto. Shaina


seria, em qualquer eventualidade, nossa primeira preocupação. E você
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sabe igualmente que meus pais têm o direito de conhecer sua neta.
Tornemos feliz esta oportunidade. Não há lugar para irritação diante deste
assunto, querida. Pensei que havíamos concordado quanto a isto.

Mas a mãe foi incapaz de silenciar.

- Não é para apresentá-la à sua família que você a estará arrastando


através desses desertos. Sei muito bem que você quer levá-la a ver o
jardim com espadas flamejantes e um velho caduco que afirma haver
vivido lá dentro alguma vez. E para isso que você a exporá a toda sorte de
perigos e desconfortos. Não tente enganar-me, Natã. Você nutre a
esperança de fazer de sua filha uma seguidora, uma discípula de Adão. Um
fanático que opta por levar uma vida solitária em tendas e que almeja
retornar à inocência! Como você é devoto, meu esposo! Quando os ricos
vêm e desejam ter suas imagens sagradas esculpidas pelas habilidosas
mãos que você tem, não lhe é possível ceder. Oh, não, você se sente
obrigado a manter sua estúpida lealdade a esse Deus invisível que nunca
ouve, nunca ajuda e jamais responde. Que é incapaz de perdoar. Que nos
lançou para fora de nosso verdadeiro lar. Ele Se foi, Natã. Você é incapaz
de compreender? Ele Se foi. É bem melhor orar às árvores, ao Sol e aos
espíritos. — Os olhos de Ona estavam umedecidos por lágrimas. Shaina
tentou adivinhar se eram de cólera ou de desespero.

Natã ergueu-se, assomando por sobre a esposa quando dela se


aproximou. Muito gentilmente, tomou-a nos braços e conduziu-a para
dentro. Shaina pôde ouvir suas murmurantes vozes durante muito depois
que a escuridão envolvera o frondoso caramanchão em que ela
permanecera sentada. Porventura mamãe conseguiria convencê-lo a
deixar a filha em casa? Fosse como fosse, ela sentiu que isto não iria
acontecer. Desta vez papai se conservaria firme. Sem dúvida, mamãe
tinha razão: ele realmente a estaria levando para adorar o Deus
verdadeiro e vivo, junto aos portões do Jardim do Éden. E, se chegassem a
tempo, poderiam ouvir a voz de Adão e contemplar sua face — a mesma
que, no passado, havia visto diretamente a face de Deus. Seu pai não
mencionara Eva. Por ventura viveria ainda a esposa de Adão? Ela
apreciaria muito observar a legendária beleza da primeira mulher!

Shaina caminhou um pouco pelo jardim, numa tentativa de acalmar-se


antes de ir para o leito. A fragrância das madressilvas impregnava o ar
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morno e ondas flutuantes de bocas de leão reluziam a luz da Lua. Ao
chegar ao seu próprio jardim, aquele que Ira a ajudara a desenvolver num
cantinho separado, espremido entre duas paredes de pedra natural, ela
ajoelhou-se sobre a relva umedecida e ergueu a face em direção ao céu.
Não sabia como aproximar-se do grande Deus dos céus, nem mesmo sabia
o que dizer-Lhe, mas ali, em meio à noite, teve consciência de Sua
presença. E — estranho aquilo! — sentiu um almejo, um anseio por Ele!

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Capítulo 2
A Viagem

Era estranho estar de pé e vestida tão cedo. Shaina acompanhou os


últimos preparativos da viagem a partir de um pequeno terraço situado
abaixo de seu quarto. Ela se perguntava, impaciente, se algum dia a
caravana iria pôr-se em movimento. Presentemente tudo parecia
confusão: vozes em tom alto misturavam-se com o ocasional lamento de
algum cavalo fortemente carregado, que se rebelava contra as cutucadas
do servo que o tinha sob seus cuidados. Tudo aquilo mais parecia um
sonho. Homens e animais começaram a movimentar-se na semi-
escuridão, sem poderem ver muito bem em meio ao orvalho que nessa
hora se erguia a fim de umedecer a terra. Ela jamais esqueceria esse
momento. Foi aquele um ponto decisivo em sua vida, um ponto de
mudança e de despedida dos quinze anos de infância amimalhada. Seu pai
considerara que ela estava pronta. Um novo vínculo unia-os agora. Desta
vez ele tomara posição firme em favor da filha. Ela o ouvira chamá-la do
interior da casa, onde ele havia ido para despedir-se da esposa. Aquele era
sempre um momento difícil, e agora duplamente, em vista da situação
desagradável que se criara entre ambos.

No momento em que adentrou ao dormitório dos pais, ela pôde ver


lágrimas caindo dos negros olhos de papai. Ele roçou levemente um
último beijo no cabelo da esposa e deixou rapidamente o quarto. A frieza
que circundava sua mãe, ereta como uma rainha à luz esvoaçante dos
lampiões de cerâmica, fez com que Shaina soubesse que ela não perdoara
o esposo. Durante um breve momento a garota sentiu o desejo de liquidar
com aquela tensão — ela diria ao pai que não iria acompanhá-lo. Mas uma
aguda consciência interior advertiu-a de que aquilo era uma experiência
de sofrimento que ela e o pai teriam de atravessar, e que nenhum deles
deveria fraquejar.

Envolta pelos braços da mãe, a garota uma vez mais maravilhou-se


diante daquela cativante e perfumosa essência. Será que alguma vez ela
própria viria a tornar-se uma mulher tão feminina, tão poderosa em
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amabilidade? Começava a compreender quanta saudade sentiria da mãe.
Nem mesmo Fenice, sua ama desde os primeiros dias de vida, seria capaz
de suprir a segurança que ela sentia, nos braços de Ona.

- Estarei pensando todos os dias em você, mamãe, e isto me confortará


quando o caminho for difícil.

— E ele será difícil, Shaina. Você pode estar certa disso. Mas Fenice
estará a seu lado. Isto me traz um pouco de alívio à mente. E seu pai não
hesitaria em dar a vida em favor de você. Fale francamente com ele a
respeito de todas as suas necessidades. Ele estará ocupado e terá muitas
preocupações, mas é seu desejo transformar esta viagem num verdadeiro
deleite para você. — Ela suspirou —Shaina, Natã alimenta estranhos de
desejos secretos que eu não pretendo compreender. — Nunca dantes ela
se referira ao esposo, diante da filha, como Natã, e a garota compreendeu
que esta era uma nova forma de falarem entre si, de mulher para mulher.
— Eu o amo e muitas vezes o torno extremamente feliz, mas também lhe
roubei algo que é por demais vital ao seu ser. Sinto-me irritada por não
conseguir satisfazê-lo completamente. Um sorriso distorcido permeou sua
face. A maioria dos homens julgariam que eu sou suficiente, mas não
Natã. Por vezes temo que ele me odeie pelo fato de ser meu prisioneiro.
Mas tudo isto é demasiado para a sua jovem cabecinha. Vá, minha
querida, e descubra o mundo. Aqui estarei esperando por você. Caso
chegue a ver a “rainha da beleza”, diga-lhe que espero que seu pedaço de
fruta tenha valido o quanto custou. — Sua risada sarcástica acompanhou
Shaina quando esta se dirigiu para fora, rumo à luz matinal. A garota
almejou muito que a despedida houvesse ocorrido sob um clima
diferente.

Enquanto cavalgava Hadesh, seu coração batia excitadamente. Fenice,


agora cavalgando a seu lado, demonstrou estranho tremor na voz ao falar.

— Será que alguma vez tornaremos, minha querida, a ver esta civilizada
cidade e nosso bonito lar?

— Fenice, você está esquecendo que esta cidade está longe de ser
civilizada. Não nos arriscamos a deixar nosso lar à noite, e por vezes os
malvados golpeiam nossas próprias portas. Francamente, qualquer dia
tomarei o rumo do deserto. Dizem que a maioria dos animais se mantêm
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distanciados, desde que não sofram ataque. Além do mais, acredito que o
Deus dos Céus estará conosco.

Fenice, mulher forte e cheia de vitalidade, avançando já em muito para


além dos 500 anos de idade, bufou indignadamente e acariciou uma
pequena figura de prata que trazia pendurada ao pescoço através de um
cordão de couro. Shaina possuía suas próprias opiniões a respeito dos
vários deuses que as pessoas adoravam. Suas representações e imagens
não pareciam de muita ajuda diante de sua mente prática; sabia, porém,
que os servos atribuíam grande poder às mesmas. Até mesmo sua mãe
ajoelhava-se diariamente diante de uma primorosa deusa de prata que se
erguia por entre a folhagem, num canto de seu aposento de dormir.

Natã cavalgou para junto da filha, roçando-lhe levemente o ombro.

— Estamos prontos para partir, Shaina. Quero ter a certeza de que Deus
nos acompanhará nesta viagem. Para mim, isto representa muito mais
que uma simples expedição à busca de barro. Vamos orar ao Deus
Altíssimo?

Shaina inclinou a cabeça e ali, diante dos servos expectantes, surpresos


e impacientes, Natã ergueu sua voz ao Céu, suplicando pela presença e
proteção de Deus. A garota ouviu uma praga e uma tendência à
desaprovação, mas Natã era um patrão bondoso e amável, e ela sabia
muito bem que os homens pensariam muito antes de abandoná-lo.

— É este seu costume, papai? — perguntou ela no momento em que


ele começava a retornar a algum ponto posterior da caravana, composta
de carroças, jumentos pesadamente carregados e homens montados.

— Não. — Ele balançou a cabeça, esboçando um sorriso pesaroso. —


Normalmente não sou lá muito corajoso.

Aquela noite eles armaram suas tendas nas montanhas que


circundavam a cidade. Durante todo o dia haviam percorrido urna estrada
montanhosa, que seguia por um aclive suave mas constante. Shaina e
Fenice haviam olhado para trás, maravilhadas, ao verem a cidade que lhes
ficava bem abaixo. Agora, em sua tenda armada sob um pinheiro solitário,
olhavam em direção às esmaecidas luzes do vale. Shaina pensou em sua
mãe, tão sozinha. O dia fora agradável e a viagem rendera bastante. Os
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homens achavam-se muito animados. Viagens como esta representavam
uma quebra da rotina, e eles as aguardavam com ardente expectativa.

Em certo momento, durante a noite, Shaina despertou com um terrível


rugido que provinha do meio dos arbustos e, erguendo a ponta da tenda,
pôde ver três homens da equipe de vigilância tomarem tochas da fogueira
e arremessarem-nas em direção ao ponto de onde viera o barulho — e
este avançava agora noite a dentro. Então é verdade. Realmente existem
animais temíveis aqui nas florestas. Ela tremeu um pouco e tratou de
aproximar seu colchão ainda mais do de Fenice.

Os dias seguintes simplesmente a deixaram atônita. Ela imaginava


haver visto muita beleza quando, em companhia de Ira, havia preparado
os jardins, mas nada a preparara mentalmente para compreender as
árvores que pareciam estender-se até às nuvens, ou as flores que se
espalhavam por toda parte à volta do caminho salpicado de luz solar.
Havia ali uma flor de alfazema em forma de taça, tão grande quanto as
tigelas fabricadas por papai; seus estames eram longos e de cor púrpura
intensa, e terminavam em rendilhados discos escuros que balouçavam
ante a mais leve brisa. Shaina teve que desmontar e enterrar sua face
naquela profunda garganta purpúrea. Pediu ao pai que escavasse uma
daquelas plantas a fim de levá-la para seu jardim, mas ele lhe fez lembrar
que a planta não suportaria a longa viagem; prometeu-lhe, também, que
durante o regresso atenderia o desejo da filha. Parecia-lhes encontrar
maravilhas a cada nova curva, e ela a todo momento ficava retida a
contemplar essas belezas, tendo logo depois que correr a fim de alcançar
o restante da comitiva. Sempre que parava, dois servos faziam o mesmo,
aguardando enquanto ela levava uma flor ao nariz ou examinava um novo
arbusto brotando de uma fenda rochosa. Percebeu, então, que seu pai
antecipara sua curiosidade e tomara providências para que ela pudesse
ser satisfeita em segurança.

Cerca de seis dias mais tarde eles atingiram o alto de uma cordilheira;
avançava a tardinha e, enquanto contemplava a terra do rio Havilá, ela
sentiu-se embriagada pela descoberta. Havia visto cores inimagináveis e
respirara ar tão puro quanto cristal. A fragrância de milhares de flores
castigara suas narinas.

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Depois de haverem acampado e feito a refeição, reuniram-se todos ao
redor do fogo e Natã tomou a harpa. Os homens encostaram-se nas
árvores ou se espreguiçaram sobre o solo, em relaxante expectativa. Seus
dedos extraíram das cordas uma doce e melancólica melodia, com a qual
Shaina se achava familiarizada desde a infância. Aquele era um cântico de
sua terra natal, e ele o executou ali, naquela noite, enquanto repousava
junto às próprias fronteiras de seu amado vale. Havia naquela música um
caráter misterioso que se acentuava face às luzes do acampamento,
faíscas que flutuavam em direção ascendente por entre a espessa
escuridão. Certa vez ele dissera à filha que o cântico possuía letra —
palavras que falavam a respeito da tristeza de Adão diante de seu
banimento do Éden, e nessa noite ela sentiu a melancolia como que
invadindo seus próprios ossos. Até mesmo a jovial Fenice sentou
quietamente e suspirou quando os últimos acordes foram executados.

Os homens pediram então que fossem executados tons mais alegres, e


Natã concordou, afastando assim a nostalgia. Eles riram e cantaram,
turbulentos face à liberdade, antecipando com prazer o dia seguinte.
Usualmente Shaina apreciava suas ásperas vozes em contraste com o
suave tanger da harpa de seu pai; mais que tudo, ela gostava de ver a loira
cabeça de papai inclinar-se sobre o instrumento, enquanto seus dedos
fortes e seguros extraiam carinhosamente os tons das cordas. Nessa noite,
porém, ela não conseguiu libertar-se da sensação que lhe causara a velha
melodia. Esta ainda tremia em seu coração, tal como as primeiras lágrimas
alguma vez derramadas. Como era possível que umas poucas notas
musicais despertassem a estranha dor da perda? Ela perguntou-se a
respeito de quem teria criado a canção e por que teria essa pessoa
evocado tal intensidade de sofrimento.

Amanhã ela encontraria seu avô e mais tarde, talvez, Adão. Oh, se eles
tão-somente conseguissem chegar a tempo!

Enquanto desciam a encosta da montanha na manhã seguinte, Natã


cavalgou ao lado da filha, chamando a atenção para os pontos notáveis de
sua infância. Um aglomerado de tendas estendia-se numa clareira, para
além da qual grandes áreas cercadas continham porções dos vastos
rebanhos do avô. Campos semeados, verdes e luxuriantes sob o sol
matutino, espraiavam-se em direção ao sudeste.
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— Vovô deve ser rico — exclamou Shaina, — Você nunca me falou
sobre isto, papai.

— A sua moda, sim, creio que ele é rico, embora aqui a riqueza seja de
pouca importância. Ele aprecia o que faz, e fá-lo muito bem. Deus o leva à
prosperidade.

O rio não carecia de identificação. Ele serpenteava, sereno e reluzente,


através de meandros enflorescidos; logo depois, rugia por entre rochas e
através de cascatas, tão-somente para desaparecer nas espessas florestas
e bem mais adiante apresentar-se outra vez. O vale parecia, de fato,
apenas um local adequado a essa jóia aquosa, e Shaina esboçou a cena em
sua mente, detalhe por detalhe, de modo a poder gravá-la para sempre. O
vale não a surpreendeu. Dentro de si mesma, sempre sentira a sua
essência.

- Também estou chegando em casa, papai — disse ela quase com


reverência, esperando que ele compreendesse.

- Eu sei — respondeu ele, estendendo sua mão à procura da filha. —


Você é filha deste lugar. E por esta razão que eu tinha de trazê-la até aqui,
sem me importar com o que sua mãe pensasse a respeito. Era minha
obrigação fazê-lo.

Sem mais palavras, eles cavalgaram a descida da montanha, mais


unidos em espírito do que em qualquer ocasião anterior. Quando a
caravana parou diante do acampamento, uma senhora saiu da tenda
maior. Com mais de 400 anos de idade e quase tão alta quanto Natã, ela
ficou de pé, loira como uma estátua de sol, sorrindo para o filho à moda
de boas-vindas. Seus cabelos, da cor de trigo maduro, possuíam quase a
mesma tez que sua pele e deixavam a face a descoberto, pois fixavam-se
num amplo coque logo acima da nuca. Tudo naquela mulher transcendia a
saúde e vitalidade, e a isto somava-se um olhar tão pacífico quanto Shaina
jamais pudera ver antes numa face humana.

— Natã, meu filho, estivemos esperando a sua chegada durante vários


dias. Sabíamos que o barro traria você de volta, mais cedo ou mais tarde.
Apeie, garoto. Estou precisando de um bom abraço!

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Natã desmontou e segurou a mãe nos braços durante longos
momentos; e Shaina pôde ver, por sobre os ombros de seu pai, que os
negros olhos da avó estavam rasos de lágrimas. Curiosamente ela nunca
dantes pensara em seu pai como sendo filho de alguém! Agora pôde
reconhecer os fortes laços que existiam entre mãe e filho, e compreendeu
então que Ona, sua formosa mãe, deveria ter trazido incrível sofrimento a
esta mulher dourada de Havilá.

Finalmente Natã volveu-se e, chamando Shaina com um gesto da mão,


falou a sua mãe:

— Mamãe, trouxe-lhe uma surpresa. Esta é minha filha, meu tesouro,


minha única descendente. Shaina, cumprimente Abigail, sua avó.

A garota deslizou do lombo do cavalo e olhou para dentro daqueles


olhos agudos e avaliadores, sabendo que a avó a estava “medindo”. Ela
não vacilou, antes devolveu o gesto através dos olhos verdes-marinho
herdados da mãe. Abigail por fim apanhou as mãos bronzeadas de Shaina
e disse:

— Estas são mãos laboriosas, e não as mãos de uma indolente garota


de cidade.

— Shaina é uma jardineira decidida que se recusa a ficar sentada à


sombra, tecendo roupas finas. Parece-me que sua mãe é mais tolerante
com sua atividade na terra do que eu. Estou sempre dizendo que supro
tudo que é necessário, e que minha filha não precisa ficar preparando
canteiros com o jardineiro, mas Ona responde: “Deixe que ela o faça, se
isto a satisfaz.” Assim, enquanto as outras garotas se divertem nas
piscinas ou riem à-toa nos vinhedos, ela fica cuidando das plantas ao lado
de Ira, tal como uma filha de Havilá.

Shaina nem prestou atenção às palavras do pai. Sentiu o orgulho de sua


voz, O mesmo ocorreu com a mãe dele. Abigail estendeu os braços em
torno da neta e abraçou-a com tanta firmeza quanto o fizera com o filho.

- Bem-vinda ao lar, doçura. Sempre temi não ter a oportunidade de pôr


os olhos sobre a filha de Natã, mas aqui está você agora, tão adorável
quanto um lírio do rio. Jamais permitirei que você a leve de volta, sabe —

17
avisou ela, lançando um olhar inquiridor em direção ao filho. — Nunca tive
uma filha, e pode estar certo de que apreciarei ter uma.

Prometi a Ona que ela voltará conosco — precaveu-se Natã; e Shaina


teve a certeza de que o pai rememorava os difíceis momentos que tivera
em casa nos últimos dias. — Mas permaneceremos aqui por alguns dias, e
isto permitirá que você, mamãe, se familiarize bem com a Shaina.

- Uns poucos dias? Os homens demorarão pelo menos duas semanas


para escavar e secar o barro. Depois ainda será necessário carregar as
carroças. Que bobagem é esta de “uns poucos dias”?

-- Tenho outros planos, mamãe, e deles falarei à hora do jantar. Creio


que isto será de seu interesse. Onde está papai?

— Ele está trazendo as ovelhas das pastagens que estão junto ao rio.
Por que você não vai a cavalo ao seu encontro? Mas tome o cuidado de
não espantar as ovelhas.

- Você está falando com um antigo garoto-pastor. Você realmente


acredita que eu pudesse espantar as ovelhas?

Abigail encolheu os ombros com indiferença.

— Você já está fora há muito tempo. Quem é capaz de saber o que a


vida na cidade fez com você?

— Ela tão-somente tem feito crescer meu desejo pela simplicidade e


paz desta terra. Você nem é capaz de imaginar quanta maldade é
praticada noutras partes do mundo!

— As pessoas não temem a Deus? — quis saber Abigail.

O filho resfolegou.

— Deus é apenas a vítima de sua zombaria e ridículo. Eles riem de Sua


face e a cada momento inventam novas formas para exibir a
desconsideração que sentem por Sua ira.

— Certamente você O defende, Natã, e fala acerca de Seu amor. — Os


olhos da mãe repousaram sobre o filho enquanto ela aguardava sua
resposta, mas ele não devolveu o olhar.

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— Não, mamãe, eu não o faço — disse ele após uma pausa. — Isto
significaria perder meu negócio, minha esposa e talvez até mesmo a vida,
e de fato não estou numa situação que me permita sair em defesa de
Deus a qualquer custo.

Shaina preferiu não ter ouvido a resposta do pai, e que a avó não
houvesse feito a pergunta. O pai montou seu cavalo e dirigiu-se
abruptamente à estrada. Entrando na tenda, Abigail começou os
preparativos para a ceia, com o auxílio de duas servas. Enquanto ela
colocava arroz numa panela, Shaina observava com curiosidade.
Ocasionalmente sua mãe servia uma bandeja de bebidas ou frutas, mas o
preparo, em si, ficava sempre sob os cuidados das servas.

— Shaina, você poderia colher um pouco de tempero para mim na


horta que fica atrás da tenda? — Abigail estendeu-lhe um instrumento
cortante e uma cesta. Relutando em admitir sua ignorância, a garota
hesitou.

— Temo que eu venha a cortar as folhas erradas, vovó. Sempre me


ocupei tão-somente do cultivo de flores.

Abigail deixou a panela a cargo de uma serva e disse à neta que a


seguisse. Atrás da tenda entraram numa grande horta, onde havia
surpreendente número de vegetais e frutas. A boca de Shaina encheu-se
de água tão-só mediante o caminhar por entre as fileiras cultivadas. Em
sua casa os servos compravam todos os alimentos no mercado, e ela nada
sabia a respeito dos segredos envolvidos no cultivo de framboesas ou
cenouras. Mas sua vocação para a agricultura despertou dentro dela
enquanto ouvia atentamente e com encanto as explicações da avó quanto
às necessidades e hábitos das mais variadas plantas. Juntas, encheram a
cesta com grandes, onduladas e verdes folhas, e Abigail ergueu a barra de
seu avental a fim de nele colocar pêras maduras. Gastaram bastante
tempo na horta, e foi tão-somente porque as fiéis servas cuidaram do
caldeirão sobre o fogo, a ele acrescentando vegetais, que a refeição
estava pronta quando Natã e Sepp apareceram em meio a uma nuvem de
pó, tangendo as ovelhas.

Mais tarde, assentados diante de uma farta mesa, conversaram


enquanto o sol desaparecia atrás das montanhas. A comida pareceu
19
maravilhosa a Shaina. O arroz silvestre marrom, enriquecido com
cenouras e cebolas da horta de Abigail, estava delicioso. Ela vira enquanto
uma serva cortava pequenos pedaços de tempero verde dentro da panela
borbulhante, e Abigail lhe explicara que aqueles temperos cresciam num
canto especial da horta; no dia seguinte ela lhe mostraria onde ficavam.
Havia tanto a aprender em tão poucos dias! Ela mordiscou um escuro e
cascudo pedaço de pão de centeio enquanto tentava decidir qual a sua
opinião a respeito do leite de cabra. Sepp contemplou- a astutamente e
apenas disse:

— Você é bem-vinda a este lugar, filha de Natã. Nenhum abraço, Nem


mesmo um toque. Mesmo assim, Shaina sentiu que ele se alegrava com
sua presença. Ele era alguém a ser aguardado, saboreado vagarosamente,
conquistado.

Enquanto bebiam o suco de pêras acompanhado de queijo suave e


macio, Abigail volveu-se para o filho:

- Vejamos qual é o seu tão importante plano, que o levará a afastar de


mim a minha neta antes mesmo que eu a conheça.

Natã parou um momento, procurando retirar com os dentes as últimas


porções de fruta que estavam em torno do caroço, pesando bem as
palavras. Shaina percebeu que ele se sentia tão desconfortável como
quando tivera de expor o assunto à esposa, só que por razões muito
diferentes. Diante de Ona ele era o puro, sempre acusando-a de
indiferença face ao desejo que ele sentia de buscar a Deus. Aqui, ele era o
pecador, aquele que se desgarrara, que se havia vendido, que rejeitara a
Deus. Ona zombava de seu desejo de conhecer as origens do mundo, ao
passo que os que se encontravam à volta dessa mesa não conseguiriam
compreender sua ambígua lealdade. Seu coração bateu forte em favor do
pai. Pela primeira vez ela compreendeu, na qualidade de sua filha, que
também ela teria de tomar decisões. O pensamento fê-la sentir-se
desconfortável.

— Durante muito tempo tenho desejado conhecer com meus próprios


olhos o Jardim do Éden e, se possível, o patriarca Adão. De algumas
caravanas que passaram pela cidade, ouvi dizer que ele está envelhecendo
rapidamente, e talvez não viva por muito tempo mais. Quem sabe, após
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sua morte, o grande Deus dos Céus arrebatará o Jardim, e desta forma
não mais teremos lembrança de como tudo começou. — Uma insinuação
de gracejo mascarava a terrível fome de seu coração.

— Trata-se de uma longa viagem — disse Sepp — e cidades existem


onde raramente alguém se atreve a acampar, dentro ou fora de seus
muros. Por que não deixar Shaina aqui conosco, se você insiste em ir até
lá? Esta não é uma experiência para crianças.

A garota suspendeu a respiração. Ela desejava muito ir, mas não se


atreveria a declará-lo perante este gigante de homem, ele próprio
parecendo muito um patriarca.

Antes que Nata pudesse responder, Abigail falou:

— Irei com você, meu filho, e tomarei conta da garota. Este sempre foi
também o meu sonho. Estou ainda nos primórdios da vida e não sinto
temores. Levaremos conosco uns poucos e fortes servos, dignos de
confiança; nossa caravana será, pois, pequena, e assim viajaremos rápido.

Shaina lançou um olhar cauteloso ao avô, procurando ver como ele


reagiria à sugestão, porém sua amadurecida face mostrou-se inescrutável.

— Sua presença é necessária aqui, mamãe — disse Natã. — Durante o


dia existem centenas de tarefas que exigem seu tempo e habilidades,
embora Deus saiba que isto removeria um grande fardo de minha mente,
e assim muito agradeço a sua oferta.

— Deixe-a ir. — A voz do esposo era firme e final. — Ela tem trabalhado
arduamente e merece muito bem um descanso.

— Mas se alguma coisa viesse a acontecer-lhe, se eu não a trouxesse de


volta a este lugar, jamais seria capaz de perdoar-me.

— Se ela tiver de morrer, será isto manifestação da vontade de Deus,


quer seja aqui ou ali; de todos os modos, garanto-lhe que sua mãe não
morrerá facilmente. — Sepp riu disfarçadamente e repousou a mão sobre
a da esposa. — Esta é uma mulher de muitos recursos.

Shaina não conseguiu permanecer quieta por mais tempo.

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— Então está tudo acertado? Você irá conosco, vovó? Oh, isto é melhor
do que eu seria capaz de imaginar. Poderemos deixar Fenice aqui. Ela não
se sente bem longe da cidade e teme prosseguir viajando.

Abigail sorriu diante do entusiasmo da neta.

- Haverá dias, minha filha, em que você muito gostaria de tê-la a seu
lado. Se não levarmos servas conosco, você terá de ajudar no preparo da
comida e na lavagem das roupas. Aprenderá um pouco a respeito da vida
das servas e talvez nunca mais dispense com tanta facilidade a fiel Fenice.

— Desejo pensar cuidadosamente a este respeito, mamãe. — Natã


ergueu-se da mesa. — É suficiente que eu ponha em risco a vida de minha
filha, sem colocar a senhora sob perigo.

— Você é incapaz de imaginar quantas vezes suspirei por ver o lugar em


que Adão andou em perfeita união com seu Criador e, se esta for a
vontade de Deus, de ver o próprio patriarca. Ouvi dizer que eles têm sido
ridicularizados, acusados e atormentados ao longo de todos esses anos.
Quão grande o preço que tiveram de pagar!

— Quão grande o preço que todos nós temos pago — disse Shaina
docemente, ecoando a amargura sempre manifestada por sua mãe. Suas
palavras não escaparam ao ouvido atento de Abigail.

— Andar com Deus é um privilégio que todos nós temos, Shaina, e


quando tudo houver passado, esqueceremos o sofrimento e nos
lembraremos apenas de quanto isto custou para Ele.

— Não consigo compreender tudo, vovó.

— Tampouco eu. Simplesmente confio nEle. Nosso ancestral Sete,


terceiro filho de Adão, viajou por este vale e assim nos ensinou. Ele disse:
“Apenas confiem em Deus. Ele ama vocês e prometeu acertar tudo
novamente.” De modo que é isto que temos feito, Sepp e eu:
simplesmente confiamos nEle. Por vezes, enquanto trabalho na horta,
sinto a Sua presença tão perto de mim, que tenho a impressão de poder
estender a mão e tocá-Lo.

— Mas se todos somos pecadores, como poderão as coisas mudar


algum dia? Como poderá Deus aceitar-nos novamente?
22
— Sete afirmou que Deus fez uma promessa lá no jardim, no próprio dia
em que Eva comeu do fruto proibido, e ainda que ninguém compreenda
plenamente a promessa, ela nos traz esperança. Deus jurou que enviará
um Libertador. Penso que toda mulher que acredita nessa promessa olha
a seu filho primogênito e fica a pensar se, porventura, não será ele o
prometido.

— Você pensou isto a respeito de meu pai?

— Ele foi um bebê querido e bom menino. O tipo de filho que toda mãe
gostaria de ter, especialmente depois de criar alguns marotos. De todos os
meus filhos, Shaina, ele parecia o mais indicado para tornar-se um
libertador. Todos eles, os marotos, são agora filhos de Deus, e apenas
Natã, o meu precioso Nata, anda apartado dEle. — Lágrimas invadiram os
olhos de Abigail e ela não conseguiu prosseguir falando.

Shaina inclinou-se e estalou um beijo no brilhante cabelo de sua avó,


enquanto esta permanecia sentada à mesa.

— Vamos entrar, pois está ficando frio. E não se entristeça por causa de
papai. Certamente ele não estaria fazendo esta peregrinação se houvesse
abandonado a Deus. Muitas vezes ele me fala a respeito do Senhor.
Existem imagens espalhadas por toda a nossa casa, mas papai sempre me
ensinou que elas são inúteis pedaços de metal —embora bonitas — e que
existe apenas um Deus verdadeiro, que mora além dos céus e que
conhece nossos pensamentos e almeja receber nosso amor e obediência.

— Você está certa. Uma centelha ainda arde em seu coração. Temos
três dias para empreender os preparativos para a viagem, de modo que
devemos trabalhar com afinco. Depois repousaremos e adoraremos no
sábado, iniciando a jornada no primeiro dia. Shaina nem mesmo nutria a
idéia do que fosse o sábado, mas decidiu que, para aquele dia, já havia
feito perguntas em número suficiente.

Quando Abigail se referiu a “trabalho”, tinha ela em mente um


torvelinho de atividades que ultrapassava em muito a experiência de
Shaina. As duas lavaram roupas e estenderam-nas a secar sobre arbustos;
prepararam pães bem tostados e empacotaram suprimentos de legumes e
frutas secas em vasilhas feitas com pele de cabra. Shaina arrancou e lavou
vegetais de raízes e amarrou cevada em pequenos saquinhos.
23
Aproximando-se o entardecer do sexto dia, os preparativos cessaram
completamente, e no momento em que o Sol se achava acima da linha do
horizonte, como se fosse um dos damascos de Abigail, todo o clã reunira-
se ao redor de mesas, por entre as árvores frutíferas, tendo diante de si
uma refeição simples. Durante os poucos dias passados, Shaina
encontrara ocasionalmente um tio ou primo, mas sua preocupação com a
viagem fora tamanha, que nem mesmo tivera tempo para relacionar-se
com os parentes. Agora todos estavam reunidos aqui, bem mais de 400
em número, manifestando um estado de espírito que ela situaria entre a
comemoração e a adoração. Shaina, sentada ao lado de Natã, sentiu que
todos esperavam por alguma coisa. Quando a última criança se
acomodou, Sepp pôs-se em pé. Esperou mais um pouco, até que todo
ruído cessasse. Então ele falou aos homens, mulheres, crianças e servos
assentados em sua presença.

- “Chegou mais um sábado. Deus seja louvado por Sua bondade e


proteção. Pela chegada de Natã, em segurança. E pelo Prometido.” Ainda
maior que seu pai, o avô mais parecia um gigante em meio a seus
familiares e amigos; ainda assim, ela percebeu uma reverente humildade
em seu avô.

— Que é sábado? — cochichou ela em direção ao pai; mas este,


colocando o dedo sobre os lábios, advertiu-a de que deveria permanecer
em silêncio. Não percebera até então a pilha de pedras cuidadosamente
arranjadas, ao lado do avô. Sua mente fervilhava de perguntas.
Subitamente um servo apanhou um gracioso cordeiro e colocou-o nas
mãos de Sepp; ato contínuo, com um hábil golpe, o avô matou-o. Tudo
acontecera tão rápido que a garota apenas conseguiu respirar
nervosamente, horrorizada. Nem mesmo foi capaz de soltar um grito.
Teria o avô enlouquecido? Com olhos suplicantes buscou uma resposta de
papai, mas seus lábios apenas sussurraram a palavra espere.

Com as mãos ainda escorrendo sangue, Sepp colocou o cordeiro sobre


o altar de pedras e ateou-lhe fogo mediante o uso de uma tocha que um
servo segurava, solícito. O odor de carne queimada espalhou-se por entre
as mesas, e Shaina pensou que iria sentir náuseas. Seu avô inclinou a
enorme cabeça e orou, mas ela mal conseguia pensar nas palavras que
iam sendo pronunciadas — embora tivesse certeza de que ele pronunciara
24
uma vez mais o Prometido. Mesmo depois que ele terminara sua oração,
todos continuaram com a cabeça inclinada, orando silenciosamente.
Apenas aos poucos a conversação sussurrada voltou a ocorrer entre eles.
Enquanto comiam, ela cochichou ao pai:

— Por que ele fez aquilo? Foi terrível. Estragou tudo que de bom
ocorreu durante estes dias. Por que todas as pessoas pareciam tão à
vontade, como se não tivessem mais nada a fazer na Terra?

Natã suspirou, percebendo agora que deveria ter preparado a filha.

— Shaina, tudo isto possui profundo significado, mas não é o momento


de discutir o que está ocorrendo. Enquanto estivermos viajando em
direção ao Eden, sua avó responderá as perguntas que você tiver. A partir
deste momento, até amanhã à noite, nenhum trabalho será feito neste
lugar. O tempo será reservado à adoração de Deus, à comunhão com Ele.
Este é o Seu mandamento. Mais tarde falaremos ainda a esse respeito.
Agora, meu bem, coma e deixe de lado os pensamentos desagradáveis. —
Natã enterrou os fortes e alvos dentes em uma maçã, cujo suco espirrou
num esguicho fino. Shaina percebeu que nessa noite não haveria mais
respostas.

***

Durante seis dias eles haviam viajado através da espessa floresta,


havendo há muito deixado para trás as pradarias de Havilá. Sepp decidira
que seria excessivamente perigoso que tomassem a estrada que passava
pelas cidades, nas planícies. Nestas os homens espreitavam o corpo e os
bens dos viajantes, e raras eram as caravanas que as cruzavam sem
registrar perdas de vidas ou de bens. Em vez de seguir por esse caminho,
ele esboçou em sua esplêndida memória uma trilha que cruzava pelas
montanhas, e que fora utilizada há muitos anos por seus antepassados.
Enviou com eles Rúben, seu melhor batedor. Mesmo assim, aquela viagem
representaria um desafio, e agora Natã e Rúben viajavam sempre à frente,
atentos, pesquisando a floresta com olhos perscrutadores e cautelosos.
Abigail e Shaina vinham logo depois, e após elas seguiam quatro servos,
fortes e grandes como carvalhos, a fim de protegê-las. Uns poucos animais
de carga, abarrotados de suprimentos, completavam a caravana.

25
— Somente oito de nós contra todo o perigo — dissera Shaina ao
montar seu animal na manhã da partida.

— Nove — corrigiu Abigail. — Deus vai à frente e em nosso meio.


Jamais esqueça isto.

Todo o clã se reunira em torno deles, e Sepp orara fervorosamente em


favor de sua segurança e do êxito de sua missão.

Agora, as enormes árvores haviam cedido lugar pelo menos a algumas


clareiras, e eles acompanharam as arenosas praias de um comprido lago.
Raios solares tremeluziam através das águas límpidas e esverdeadas, indo
refletir-se em seixos de ouro muito abaixo. Shaina implorou ao pai que
montassem o acampamento nesse lugar de luz e maravilhas. Eles haviam
mantido um passo acelerado, de modo que Natã, sabendo que sua mãe
necessitava de tempo para os preparativos sabáticos, ordenou a parada.
Um grande e gracioso leão apareceu andando a passos largos ao longo da
praia; seus músculos agitando-se por debaixo do couro. O coração de
Shaina disparou dentro do peito, mas a fera desviou-se deles e penetrou
por entre os arbustos. Natã, enquanto erguia a pequena tenda ocupada
por Shaina e Abigail, percebeu o temor no olhar da filha.

— Aqui, onde os homens raramente aparecem, os animais


simplesmente mantêm distância. Somente nos lugares em que eles foram
caçados e mortos, é que eles se tornaram perigosos.

Depois de haverem todos desfrutado de um refrescante banho a nado,


os homens estiraram-se sobre a areia, deixando que o sol aquecesse seus
cansados corpos. Shaina e Abigail sentaram sobre uma rocha achatada,
balançando os pés na água e tentando identificar as flores exóticas que
cresciam ao redor. Fazendo girar uma felpuda flor amarela numa das
mãos, a garota reuniu a coragem necessária e deixou escapar:

— Por que vovô queimou o cordeiro?

A mulher sorriu enquanto os raios do sol iluminavam suas feições


coradas e fortes.

— Pensei que seu pai lhe houvesse explicado. É sem dúvida um ato
estranho para aqueles que não lhe conhecem o significado. Lembre-se que
lhe falei do Prometido. Pois bem, Sete nos disse: “Ele terá de morrer. Terá
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de derramar Seu sangue em favor de nossos pecados.” Tudo isto é um
grande mistério, mas Deus quer que o levemos a sério a fim de termos
consciência do terrível preço do pecado; portanto, instruiu-nos a
matarmos um cordeiro perfeito, que representa Aquele que deverá
morrer; assim, queimamos o cordeiro sobre o altar. Cada vez que
participamos da cerimônia, tomamos consciência de que nossos pecados é
que ocasionam a morte do inocente cordeiro e — ainda muito pior —
causarão a morte dAquele que há de vir.

Seu avô oferece um cordeiro em favor de nosso acampamento ao pôr-


do-sol de cada sexta-feira, quando inicia o sábado. Embora eu já o tenha
visto fazer isto centenas de vezes, meu coração ainda queda silente diante
do solene ato e de seu significado.

— Será que a morte do cordeiro sacrificado por vovô também cobre os


meus pecados, ou apenas os de vocês, os seguidores de Deus?

— Quando vier o Prometido, Shaina, Ele morrerá por todos. Alguns


aceitarão Seu sacrifício, ao passo que outros zombarão e O negarão. Se
você crer e obedecer, o sacrifício será também em seu favor.

— Quero fazer-lhe outra pergunta, vovó. — Shaina afundou


vagarosamente os pés na água clara e morna. — Não compreendo bem o
sábado. Em que sentido é o sétimo dia diferente de todos os demais?

— Seu pai não lhe falou nada? Em seu lar não existe reverência pelo
sábado? — Abigail contemplou a neta, e seu olhar denotava completa
perplexidade.

Apercebendo-se da dor que causara à avó, a garota sacudiu a cabeça.

Abigail suspirou profundamente.

— Quando Deus terminou a criação da Terra, querida — toda esta


beleza que temos diante de nós — apreciou muito a obra de Suas mãos.
Exatamente do modo como você e eu olhamos nossa horta ou jardim
depois de um dia de atividade e nos sentimos contentes. Ele havia gasto
seis dias em Sua extraordinária atividade, de modo que declarou ser o
sétimo dia um período de regozijo e repouso. A oportunidade para
desfrutar Suas novas obras criadas e para alegrar-Se. Deus chamou o
sétimo dia de sábado e deixou uma regra bem simples — que todos nós
27
devemos repousar e alegrar-nos nesse dia. Nada de trabalhos. Apenas
comunhão com Ele.

— Isto é muito lindo. Muito lindo — disse Shaina em voz baixa. — Oh,
quanto eu gostaria de haver conhecido tudo antes. Por que papai nunca
me falou sobre isto?

A avó tomou a mão da garota e ali permaneceram sentadas no


ensolarado silêncio, satisfeitas com a nova proximidade que sentiam entre
si; por fim Abigail ergueu-se e pediu a um dos servos que preparasse fogo.

— Devemos cozinhar algo para amanhã, Shaina, e celebraremos o


sábado aqui, neste maravilhoso lugar. Chego a pensar que o Eden não
poderia ser mais belo.

Mais tarde, junto ao fogo que mal apagava a escuridão, Shaina


perguntou ao pai:

— Por que você nunca me falou sobre o sábado e a forma de observá-


lo?

O pai sorriu amargamente.

— Sua mãe não tem paciência com tais atos de adoração, e suas
sagradas imagens bateriam com violência suas cabeças umas contra as
outras diante do simples pensamento da presença de Deus em nossa casa.
São dois mundos completamente separados, minha pequena, e ao casar
com sua mãe eu fiz a minha escolha. Trouxe você até aqui para que
também possa fazer a sua.

As palavras do pai fizeram brotar dentro dela, urna vez mais, aquele
importuno sentimento de mal-estar.

Duas semanas mais tarde a pequena caravana seguiu um grande e


voraz curso d’água, que se apartava das montanhas e adentrava o vale do
Eden. Eles haviam cautelosamente contornado uma área habitada por
gigantes, perderam a trilha durante três dias e viram estranhas e
gigantescas bestas que poderiam havê-los apanhado facilmente no
coração da floresta, se assim o desejassem. Os homens deram vivas ao
deixarem a floresta para trás.

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— Em vez de fazer todo este barulho, Natã, seria bem melhor se
agradecêssemos ao Deus do Céu por nos haver trazido em segurança ao
nosso destino. — Abigail repreendeu o filho enquanto cavalgava a seu
lado.

— Você está certa, mamãe.

Natã reuniu o pequeno grupo em torno de si e então orou calmamente


na verde encosta da montanha, enquanto os cavalos tinham o pasto de
agradável odor à altura dos joelhos. A partir do ponto em que a margem
das montanhas se encurvava para baixo, em direção ao vale, grandes
penhascos brancos davam forma de copo a uma extensão de terra,
ocultando-a completamente da vista.

— Ali — disse Rúben reverentemente — está o Jardim.

— É enorme. — Shaina ouviu a surpresa da voz da avó. -- Sempre o


imaginei como tendo aproximadamente a extensão de nossas terras, em
volta de casa.

— Dizem que são necessários três dias de caminhada para percorrer


toda a sua extensão. E em todos os pontos os penhascos impedem a
entrada, exceto nos portões. Em minha infância papai contou-me muitas
coisas a respeito deste vale. — Os olhos de Rúben acompanharam as
brancas paredes. — Jamais sonhei que chegaria a vê-lo com meus próprios
olhos!

— Tampouco eu — Abigail fez coro com voz suave.

Um grande acampamento, cerca de uns dois ou três quilômetros


adiante, estendia-se em direção às montanhas de outra região elevada, e
Shaina adivinhou que aquele era o lar do patriarca Adão, o pai de todos
eles. Fizeram a refeição na encosta da montanha, saboreando o momento,
mal se dando conta dos grãos tostados e figo que consumiam. Cada viajor
achava-se ocupado com seus próprios pensamentos, de modo que as
palavras eram escassas.

Quando, afinal, o grupo se pôs em movimento, Shaina cavalgou ao lado


do pai, desejando compartilhar com ele daquela experiência.
Acompanharam os penhascos por várias horas, chegando finalmente a
uma trilha que conduzia ao fundo do vale. No crescente crepúsculo uma
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estranha luz bruxuleava sobre o empoeirado caminho, embora o sol há
bastante tempo já houvesse mergulhado atrás das árvores.

— Que é isto? — Shaina perguntou constrangida, mas ninguém


respondeu, pois que nenhum membro do grupo sabia a resposta.
Somente quando alcançaram o nível do solo, ao pé do penhasco, é que
puderam ver, justamente adiante deles, a mais extraordinária vista que
qualquer um poderia imaginar. Diante da entrada do Eden dois seres
achavam-se de pé — eram espantosamente grandes e belos. Suas asas
formavam um arco sobre determinado ponto entre ambos. Dali procedia
uma luz faiscante e viva, sendo a própria glória de Deus; assemelhava-se a
compridos dedos de fogo vermelho-ouro que atravessavam o escuro céu,
a terra ensombreada e os trementes corações do pequeno grupo de Natã.
Todos apearam de suas cavalgaduras e caíram em terra, prostrados pelo
terror. Coisa alguma os havia preparado para aquela vista. Porventura
estaria Deus irado com a presença deles? Estariam eles violando espaço
sagrado? Morreriam todos? Com toda aquela glória irradiando sobre ela,
com seus mais íntimos pensamentos sendo expostos, Shaina subitamente
recuou do egoísmo que sentira ali. Todas as palavras petulantes ou
desonestas que alguma vez proferira, agora ecoavam em sua memória.
Pela primeira vez percebeu todo erro de que era capaz. Ela era o próprio
pecado. Durante um período que lhe pareceu a eternidade ela chorou
sobre o solo do vale do Éden, até sentir uma mão sobre o ombro, e esta
gentilmente a ergueu, afastando-a da Luz.

— Venha, minha filha, pois você não morrerá, aos menos por ora, e em
virtude desta Luz. —- A voz fez com que os outros também se erguessem e
os conduziu — tropeçando como se cegos fossem — a alguma distância
dos anjos e daquela glória que queimava a própria alma.

— Que é isto? — Shaina colocou novamente a pergunta que fizera


antes, no caminho.

— E a presença de Deus guardando o portão — declarou a mulher


calmamente, como se já houvesse respondido a mesma pergunta milhares
de vezes. Somente então Shaina contemplou-a e percebeu
instantaneamente que se tratava de Eva, a mãe da humanidade — ou a
traidora da humanidade, conforme Ona preferia chamá-la. Shaina havia
imaginado uma anciã encarquilhada e cheia de rugas. Viu, porém, diante
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de si uma face em que a idade parecera não haver exercido efeitos: sua
beleza era extraordinária, sua tristeza faria quebrantar qualquer coração,
e ao mesmo tempo uma incandescente e firme paz irradiava de seu ser. A
garota sentiu que poderia ficar a contemplá-la para sempre.

Natã falou com aquele seu modo gentil. — Muito obrigado por ter
vindo até nós. E uma experiência amedrontadora cambalear sob este
esplendor. Você deve ser Eva. Viajamos muitos e muitos quilômetros para
ver o jardim e nos encontrarmos com você e Adão. De modo nenhum
pretendíamos causar-lhe transtornos.

Eva só riu, e o som produzido foi argênteo, tal como o murmúrio de


uma pequena cascata à luz da Lua.

- Vocês são capazes de imaginar quantas pessoas amedrontadas nós


removemos daqui? Não são muitas. Os zombadores acham-se todos
muito ocupados com seus esquemas satânicos, e os adoradores têm-se
tornado poucos. Sintam-se à vontade para passar a noite em qualquer
lugar do vale. Aqui vocês estão em segurança. Eu lhes trouxe comida.

Assim dizendo, depositou um pão ainda morno nas mãos de Abigail e


uma tigela de guisado de lentilhas nas de Shaina.

- Adão e eu os observamos enquanto, à tardinha, vocês margeavam os


muros do jardim.

Antes que o grupo pudesse expressar seu agradecimento, ela havia


desaparecido na escuridão. Quase sem palavras, eles acamparam e
comeram, como se aquela sagrada Luz os houvesse deixado mudos.
Mesmo agora ela faiscava e penetrava pelas paredes da barraca de
Shaina, a despeito de se encontrarem eles a alguma distância da entrada
do Éden.

- Vovó - sussurrou ela suavemente — este é um lugar sagrado. — Mas


Abigail já dormia, de modo que não houve resposta. Shaina escapuliu em
silêncio da tenda e ajoelhou-se, rosto voltado para a luz. Não seria capaz
de explicar por que o fazia, e ainda no dia anterior o simples pensamento
de assim proceder tê-la ia surpreendido. Agora, porém, parecia a única
coisa correta a se fazer. As palavras brotaram de seus lábios. “Oh Deus
Altíssimo”, disse ela, “sou uma pecadora — compreendo-o agora.
31
Compartilho da rebelião de toda a raça humana. Creio, porém, no
Prometido. Sei que, de alguma forma, falarás comigo. Mostra-me qual a
Tua vontade em relação a mim.”

***

Quando o sol matutino banhou o vale, estendendo-se por sobre as


pastagens e campos das vastas propriedades de Adão e Sete, a Luz
pareceu menos ameaçadora. Logo depois do desjejum, Shaina insistiu em
visitar Adão no acampamento.

- Você não pode simplesmente querer ir vê-los, como se fossem


curiosidades, meu bem - advertiu Natã. — Será um pouco deselegante ali
comparecer, a menos que eles nos convidem.

Mas ela suplicou de modo tão ardente que o pai sucumbiu, de modo
que ela foi sozinha em direção aos sons de balidos de ovelhas e vozes
humanas que se misturavam. Alcançou um caminho margeado de
arbustos e brilhantes moitas de flores escarlata, obviamente todos muito
bem cultivados. Enquanto seus olhos se deleitavam na beleza do conjunto,
uma figura humana dela se aproximou.

- Então você as aprecia? São as favoritas de Adão — disse a mulher,


denotando evidente regozijo na voz.

Surpresa, Shaina contemplou novamente aquela face de beleza jamais


igualada, onde a bondade era calorosa e que, neste instante, revelava
uma pontinha de humor. Antes que a garota pudesse responder, Eva
prosseguiu.

— Imaginei que você viria cedo, de modo que saí para encontrá-la. Você
possui a impaciência característica da juventude e — pude senti-lo — um
coração que muito anela por Deus. Venha, quero mostrar-lhe os jardins de
Adão. Meu esposo quer ansiosamente encontrá-la. De todos os modos,
ele já não se dirige aos campos com muita freqüência. Existem pessoas
mais jovens para fazê-lo. Mas ele ama intensamente as flores.

— Não sou capaz de acreditar que estou aqui, com vocês. — A garota
contemplou sua companheira com profundo respeito.

32
— Lembre-se, Shaina — pois não é assim que seu pai a chama? — Adão
e eu somos pecadores e necessitamos do sangue do Prometido. De fato,
somos os principais dentre os pecadores, pois nós andamos e
conversamos pessoalmente com Deus, e ainda assim duvidamos dEle. Eu,
pelo menos, assim procedi. Não me olhe com admiração. Gostaria que
você compreendesse, antes de ir-se deste lugar, a tragédia que aqui
aconteceu.

Elas deixaram o caminho ensombreado e adentraram aos mais


extraordinários jardins jamais vistos pelos olhos de Shaina. Rosas,
habilidosamente podadas e cultivadas, floresciam em toda parte contra o
pano de fundo de arbustos intensamente lustrosos e eternamente verdes.
Áreas de grama verde e macia acrescentavam à profusão de cores, e
fontes jorravam para dentro de claras piscinas. Shaina tomou fôlego e
reteve a respiração. Ela sentia um forte e impossível desejo de que Ira
estivesse agora a seu lado a fim de testemunhar igualmente dessas
indescritíveis maravilhas.

Uma voz vigorosa proveio daquela massa de homem, muito maior que
Sepp, seu avô:

— Você ama a beleza. Isso está escrito em sua face, minha filha. Muito
bem-vinda. Vou mostrar-lhe os arredores.

Sou sua filha, pensou Shaina, maravilhada. Carne de sua carne, osso de
seus ossos. Impulsivamente ela encostou sua jovem face no vigoroso
braço de Adão, e ele devolveu-lhe o gesto com um deleitoso sorriso e um
forte abraço. Ele não parecia tão idoso, mas seus passos eram lentos e
calculados — e ela bem sabia que no passado eles haviam sido rápidos e
seguros. A medida que ele lhe explicava sobre os hábitos e necessidades
de cada planta, ela não percebeu na voz do grande homem nenhuma
indicação de idade — apenas interesse e entusiasmo.

— Você reproduziu aqui o jardim e toda a sua glória, não é verdade? —


perguntou Shaina ansiosamente, por fim.

— Oh, filha — falou Adão rapidamente, como que para desfazer sem
demora o erro de avaliação da garota — você está enganada. É bem
verdade que tentei fazê-lo, mas diante de ervas daninhas e insetos
destruindo estas plantas, não há ponto de comparação. Lembre-se
33
também — e em sua face apareceu um esboço de sorriso amargo — que
foi Deus quem criou aquele jardim. O homem jamais será capaz de
produzir outro igual.

Sentaram-se num banco junto a uma das piscinas, onde touceiras de


brancas íris se encontravam acima de seu próprio reflexo na água. Uma
borboleta, púrpura e azul, tão grande quanto a imensa mão do idoso
homem, esvoejava de flor em flor. Uma pergunta ardia na mente de
Shaina, e coisa alguma seria capaz de restringir sua curiosidade.

— Ontem à noite, quando eu estava deitada diante da Luz, tive


profundo senso de toda a minha — como você a chamaria? — sim,
pecaminosidade. Foi algo terrível. Senti-me impura e imperfeita diante
daquela Luz — como se estivesse na presença de Deus. Senti a minha total
incapacidade de algum dia chegar a ser suficientemente pura como para
andar com Ele, na qualidade de sua amiga, tal como vocês dois fizeram no
Éden. Mesmo que o Prometido venha e morra, de que maneira
poderemos tornar-nos puros, e assim aparecermos como dignos de Sua
presença?

— Nós próprios não entendemos isto perfeitamente bem, Shaina —


respondeu Adão pensativamente. — Em algum grau, os caminhos de Deus
sempre nos serão misteriosos, mas tudo indica que o sangue do
Prometido pagará o débito. Sempre que houver pecado, faz-se necessária
a morte. Morte eterna, uma terrível e total separação de Deus. O
Prometido experimentará essa morte em nosso lugar. Entretanto, se Lhe
permitirmos, Ele fará ainda mais por nós. Ele Se tornará parte de nossa
própria carne e natureza, até que Sua pureza se torne a nossa pureza, e
assim mais uma vez seremos limpos. Este processo de modo algum é fácil
e requer cooperação e submissão de nossa parte, assim como uma
espécie de fome — um profundo anelo — por Ele. A experiência é longa e
dolorosa, e ao mesmo tempo cheia de deleite. Num só momento de
fraqueza poderemos lançar fora todo o progresso feito anteriormente,
mas vez após outra poderemos colocar-nos, vencidos e desesperados, em
Suas mãos, suplicando por misericórdia. Você é corajosa, suficientemente
corajosa para isto, minha filha?

34
— Não sei — admitiu Shaina honestamente. — Minha mãe é uma
adoradora de imagens e meu pai — bem, meu pai crê no Deus verdadeiro,
mas não é suficientemente corajoso.

— Oraremos por você — assegurou Eva amavelmente enquanto fazia


repousar sua mão sobre o ombro de Shaina. — Sempre que oferecermos o
sacrifício na presença da Luz, oraremos por você.

Mais tarde, conduziu novamente todo o grupo na visita aos jardins e


escavou bulbos que Shaina e Abigail poderiam levar para suas casas. À
tarde sentaram-se em volta da mesa abastecida com as generosidades dos
campos de Adão e das provisões de Abigail. Esta havia guardado
cuidadosamente as frutas secas e nozes que embrulhara como presente.
Enquanto comiam, Adão falou dos primeiros anos que haviam
experimentado, logo após sua saída do Jardim. Não possuíam ferramentas
e nem experiência, e fora tão-somente através de tentativa e erro que
haviam logrado domar o solo hostil.

— E isso não foi tudo — acrescentou Eva, recorrendo à memória. —


Tivemos de enfrentar os insultos de outros, nossa carne e sangue, e sua
ira diante de nosso fracasso. Nossos filhos e netos nos ridicularizavam e
ameaçavam. Por vezes tememos pelo que pudesse acontecer a nossa vida.
Eles odiavam a Deus. Talvez tenha sido por isso que começaram a adorar
os ídolos construídos por sua própria imaginação — deuses aos quais nem
odiavam, nem temiam.

— Tudo isso ainda não foi o pior — disse Adão calmamente. — A morte
de Abel, isto foi o pior, mas ela não é capaz de falar sobre isto.

Todas essas centenas de anos, pensou Shaina enquanto examinava de


soslaio os espantados olhos de Eva, e a dor ainda se conserva bem vívida
em sua mente. Talvez a pessoa jamais se recupere do primeiro encontro
com a morte.

— Mas estamos aqui falando de tristezas, quando existem tantas outras


coisas com as quais nos podemos regozijar. — Adão conduziu alegremente
a conversa rumo à preciosa promessa divina de um Libertador. “Não
importa quanto tenhamos de esperar, Ele virá. Lembrem-se disto, meus
amigos, depois que eu estiver repousando na boa terra. Não temo o fim.
Temos conhecido terrível dor ao longo desses anos, ao vermos a morte
35
invadir nosso planeta. O pecado engolfou nossos filhos e os filhos de
nossos filhos, e temos bebido o copo da culpa até suas mais amargas
gotas. Vez após outra, temos suplicado a nossos descendentes que se
humilhem diante de Deus, tão-somente para vê-los zombarem diante de
nossa face e nos lançarem acusações. Não, a morte não nos enche de
medo. Estou falando a verdade, querida?

Eva, sorrindo melancolicamente em direção ao esposo, tomou-lhe a


mão e concordou com a cabeça. Shaina entendeu então que nenhum
jardim, não importava quão belo, seria capaz algum dia de apagar a agonia
que eles haviam suportado, e nesse momento seu próprio coração sentiu
dor profunda em simpatia por seus ancestrais.

— Temos procurado ajudar nossos descendentes a compreenderem —


explicou Eva com um triste sussurro — que a tristeza de Deus é ainda
muito maior que a nossa.

— Poderiam vocês imaginar — prosseguiu ela enquanto seus olhos se


iluminavam — o que significava estar com Ele, descobri-Lo subitamente a
seu lado durante a tarde, sentir o poder de Sua presença ardendo no
fundo de sua alma antes mesmo que Ele pudesse ser visto? Ele Se sentia
muito feliz diante de nosso contentamento ao descobrirmos cada nova
maravilha de Sua criação. Volvendo-me por vezes para a Sua face, fui
capaz de captar a pura satisfação de Seus olhos enquanto nos
contemplava, e isto me fazia sentir segura, amada e contente. Sei quanta
dor Lhe tenho causado durante todos esses anos. — A voz de Eva falhou.
— E o preço que isto Lhe custará. Sinto falta dEle. Sempre sinto-Lhe
grande falta. E ouvir enquanto Ele é amaldiçoado e zombado, meu
Precioso Amigo, por aqueles que são minha própria carne e sangue — isto
quase ultrapassa aquilo que posso suportar.

— Uns poucos têm atendido nossas palavras — confortou Adão,


colocando o braço em torno dela; em sua face, porém, Shaina pôde
vislumbrar tanta dor quanto jamais testemunhara num rosto humano. —
O homem nascido em pecado não encontra prazer nas coisas de Deus.
Requer-se uma longa e miraculosa conversão para trazê-lo uma vez mais
de volta a seu Criador, e poucos estarão dispostos a submeter-se a esse
processo, já que é muito mais fácil desfrutar das recompensas terrestres e
satisfazer todos os impulsos. E sobre nós dois repousa o fardo deste
36
conhecimento — a sordidez do homem, sua crueldade, sua ganância.
Tudo isto é o nosso legado àqueles para os quais Deus tinha tão grandes
planos.

Natã apanhou a harpa e suavemente, em meio à escuridão e com a Luz


lançando alguns raios sobre a mesa e sobre os solenes rostos que lhe
estavam à volta, arrancou de suas cordas aquela triste e estranha melodia.
Para surpresa de todos, Eva começou a cantar — e a história de perda e
sofrimento fluiu sem qualquer esforço de seus lábios. Sua voz clara e doce
— ainda que tremendo aqui e ali — combinou com a música qual uma
grinalda de flores. Quando Natã colocou de lado sua harpa, restava
apenas o som de pranto, e Shaina não teve dúvida de que Eva era a
própria fonte de onde emanara aquela canção.

37
Capítulo 3
O Pregador

Shaina, mergulhada em pensamentos, escavou cuidadosamente em


torno dos brotos de narcisos silvestres. Como é lindo o suave amarelo
contrastando com a rocha cinzenta, pensou ela. Durante doze anos ela
estivera a cultivar as plantas trazidas do vale do Eden, e sempre que estas
desabrochavam em novas flores, ela renovava seus votos de lealdade ao
Deus de Adão. Esse pequeno jardim isolado havia-se convertido no seu
retiro quando o mundo, aos berros, ridicularizava sua lealdade e criticava
sua simples fé. A princípio ela nutrira a esperança de que seu pai se uniria
a ela na adoração a Deus sábado após sábado, mas depois de haverem
retornado do Eden ele parecera preocupado, raramente tomando
consciência do novo regozijo que ela descobrira. Ona de modo algum
tentava disfarçar sua zombaria e, não fosse a presença do jardineiro Ira,
Shaina teria enfrentado solidão ainda mais severa. Entretanto, à medida
que trabalhavam nos jardins, ela contara ao amigo acerca da firme fé e
esperança de seus avós e das experiências vividas no vale do Eden. Ira
confidenciou que ele sempre crera, embora não soubesse exatamente
como adorar a Deus. Juntos oraram e comprometeram-se a aguardar
pacientemente pelo Prometido.

Algo aconteceu, entretanto, e que perturbou o invariável ritmo dos dias


de Shaina. A porta da casa de seus pais chegara um estranho — um primo
da terra do rio Havilá, homem robusto e possuidor da graciosa coloração
amarelo-tostada do povo do pai da moça. Sendo fabricante de
instrumentos musicais, era plano do rapaz estabelecer seu negócio na
cidade. Natã, contente por ter agora um parente próximo junto a si,
insistiu em que o moço permanecesse com eles até que se estabelecesse
bem. Deste modo, Ben tornou-se membro da comunidade familiar, e
desde o primeiro dia Shaina sentiu que os olhos do rapaz a
acompanhavam, admirados, por onde quer que ela fosse.

Ira, no momento em que podava uma impetuosa sempre-viva que se


espalhava profusamente por sobre a parede rochosa, perguntou:
38
— O jovem que chegou, ele obviamente considera você encantadora. O
que você pensa a respeito?

Enrubescendo, Shaina impeliu sua ferramenta em direção ao solo com


mais força que o necessário.

— Sou muito inexperiente nesse tipo de coisa. Pelo fato de serem


criaturas profanas e violentas, que nada sabem a respeito de Deus,
sempre ignorei os jovens que mamãe trouxe até nossa casa. Prefiro
permanecer solteira até ao fim da vida do que casar-me com um deles e
ter de prostrar-me diante de seus horrorosos ídolos. Mas este homem de
Havilá, por certo ele adora o Deus verdadeiro. Ele cresceu nos campos de
Sepp. Como poderia ser de outra forma?

- E você o considera interessante? — inquiriu o velho jardineiro.

— Bem — replicou a jovem, erguendo timidamente os olhos do


pequeno canteiro de flores — sinto-me absolutamente incapaz de proferir
palavras em sua presença, e meu coração salta no peito à semelhança de
um acrobata do mercado.

Ira riu gostosamente e prosseguiu com seu trabalho, percebendo que a


jovem mais sonhava acordada do que semeava plantas.

Naquela tarde, enquanto a família se punha à vontade na sala de obras


de arte, em torno de uma fogueira aberta que se preparara como refúgio
contra o frio ar da primavera, Ona falou, envolvida por um grosso cobertor
de peles que compartilhava com Natã:

- Creio que devemos preparar uma festa em homenagem a Ben,


apresentado-o às demais pessoas da cidade. Sua vida necessita de algo
mais, além do trabalho e das calmas tardinhas que passa aqui conosco. Ela
sorriu em direção ao vigoroso homem que ainda revelava alguns traços de
sua herança natal, Shaina ficou a interrogar-se se porventura o rapaz
lembraria à sua mãe o próprio Natã, quando este chegara à cidade muitos
anos antes, ainda bronzeado e barbudo, proveniente do escondido vale de
Havilá.

— Teremos festa e danças, e esta sala se encherá de risos e música, e


tratarei de esquecer que não mais sou uma garota. — Os olhos de Ona

39
lampejaram à luz do fogo. — O que você tem a dizer sobre isso, Ben? Não
lhe parece que isto tornaria mais brilhante a sua vida?

O jovem barbudo ergueu os olhos do instrumento que dedilhava e


sorriu, apresentando os alvos dentes que interromperam o contínuo de
pele e cabelo marrom-dourados.

- Você faz com que a idéia pareça muito excitante, Ona. Mas a verdade
é que não sei dançar.

— Você toma um pouco de vinho e se torna tão proficiente quanto os


demais — disse Natã obliquamente. — De todos os modos, são as
mulheres que melhor s adaptam à dança.

— Eu me sentiria honrado em conhecer seus amigos. — Ben arrastou os


dedos ao longo das cordas, manifestando uma expressão carrancuda ao se
concentrar. — Shaina, o que você tem a dizer sobre isto?

— Ela não aprecia nossas diversões — respondeu a mãe em lugar da


filha. — Pensa que somos todos um bando de ateus.

Ona sempre fazia com que a moça se sentisse desajeitada e, nessa


noite, tendo sobre si os olhos de Ben, mais que nunca ela tateou à busca
de palavras.

— Não estou certa de que você viesse a apreciar o tipo de


comemorações que se praticam aqui na cidade, Ben, embora minha mãe
tenha tão-somente a felicidade de você em seu coração. Sim, é verdade
que eu não gosto desses divertimentos.

— Seus olhos verdes-marinho eram sérios e intensos, e ela parecia um


tanto constrangida dentro de seu vestido simples, tendo os cabelos cor de
cobre espalhados sobre os ombros.

- Mas você participará para agradar-me? — Ben contemplou-a com


olhos joviais e audaciosos e no coração de Shaina começou novamente
aquele saltitar estouvado.

Zombeteiramente a mulher mais velha interrompeu uma vez mais.

40
— Ben, você jamais a seduzirá, pois a festa ocorrerá na tarde e na
manhã do dia sétimo, e Shaina de modo algum colocará seus sagrados pés
em nosso turbulento ambiente durante aquelas suas horas santas.

Natã repousou a mão sobre o braço da esposa.

— Por bondade, Ona. Chega. Shaina tem o direito de conservar suas


convicções.

Ela estava muito bem até que você a arrastou ao Eden. Depois disso ela
retornou mais parecendo filha de Abigail do que minha. E os anos em
nada têm contribuído. Apresente-me qualquer outra garota de 27 anos de
idade que despreza a dança e a companhia de outros jovens. Em breve
contratarei seu casamento com o filho de Zimri, e assim ela será forçada a
assumir seu lugar na vida social da cidade e a deixar estes modos de
campesina, nos jardins, ao lado de Ira.

O coração de Shaina quase parou. Ela conhecia bem o filho de Zimri, um


elegante e rico vigarista, dono de olhos cruéis.

Natã falou, e em sua voz havia uma impetuosidade que a filha jamais
ouvira antes.

- Nossa filha jamais será noiva de alguém contra a sua vontade, Ona.

Ben ergueu-se do banco e acenou a Shaina para que ela o


acompanhasse. Ele tomou o longo cachecol de lã da moça e acomodou-o
sobre os ombros dela enquanto entravam nos jardins.

— Lamento haver-lhe causado esse transtorno. Parece que estão se


manifestando algumas emoções fortes por lá. De minha parte, não
esperava encontrar aqui alguém que conservasse o velho estilo de vida.
Lembro-me da ocasião em que você visitou Havilá. Pensei que você fosse a
mais bonita garota jamais vista por mim e agora, sendo você uma mulher,
sua graça é ainda muito maior.

— Obrigada, Ben. Flavia tantos primos durante aqueles breves dias que
passei com nossos avós que não tive tempo de destacar você dentre os
demais, mas aprecio muito a sua presença conosco. Conforme você pôde
ver, minha mãe se impacienta diante de minhas crenças, mas eu a amo
profundamente, e tenho certeza de que ela também me ama. Ela não
41
compreende minha necessidade quanto a sentir o Deus de Adão. O que
você pretende fazer face aos planos de mamãe para a sexta-feira à noite?

— Pretendo comparecer — disse Ben claramente.

— Você não santifica as horas do sábado? Você não viu o cordeiro


sendo queimado sobre o altar, e por acaso você não percebe o solene
significado da cerimônia? Você não deseja encontrar-se com Deus e com
Ele comungar durante as horas em que Se coloca à nossa disposição de
modo especial? Creia-me, Ben, a festa de mamãe de modo algum será
lugar adequado para um seguidor do Prometido, nem na noite de sexta
feira, nem em qualquer outra ocasião.

— Estou farto do velho estilo campesino.Você esteve lá apenas por


pouco tempo. Portanto, tudo lhe pareceu novidade, mas de minha parte
desejo ver a forma como vivem outros homens.

— Você o verá, e do modo mais completo, nesta cidade. — Sua voz


denotava certa mordacidade, provocada pelo desapontamento. - Você
verá os bebês sendo oferecidos sobre altares enquanto suas mães
seminuas saltitam e (lançam à luz do fogo, como se seu coração não
experimentasse qualquer sentimento. Você verá a depravação em todos
os seus imundos detalhes. Homens abordarão você nas ruas e em seu
local de trabalho, a pro cura de seu corpo para a satisfação de seus vis
desejos sensuais. Seu melhor amigo poderá desaparecer, jamais
retornando, porque um ladrão poderá atacá-lo, matá-lo e repartir seu
corpo com os cachorros, e tudo isso em troca do conteúdo de sua bolsa,
qualquer que seja. Chegará o dia, Ben, em que você desejará ver os
cordeiros em suas pastagens rias encostas das montanhas, lá no seu
pacífico vale, e atacar-lhe-á a saudade da voz de Sepp erguendo-se em
oração.

Repentinamente ele a trouxe para junto de si, na fria e calma noite, e a


beijou gentilmente,

- Não pretendia desagradá-la, Shaina. Se você houvesse permanecido


em Havilá, eu jamais teria partido. Sei que você está certa, mas lá eu me
sentia confinado, ansioso por ver algo além de montanhas. Talvez após a
iniciação propiciada por sua mãe, eu me sinta contente em voltar. Você
me acompanhará?
42
Cada fibra do ser de Shaina clamava por dizer SIM àquele homem que
ela conhecia tão pouco, mas uma voz íntima insistiu em que ela se
precavesse.

— Pensarei a este respeito — replicou ela, sua voz ainda trêmula em


virtude daquele primeiro beijo inesperado.

Na noite da comemoração a casa achava-se inundada de luz, lampiões


de barro ardiam em toda parte, até mesmo ao longo dos caminhos que
atravessavam os jardins. A harpa de Natã e a flauta de Ben enviavam sua
música através das janelas abertas, e o riso e os cânticos enchiam os
aposentos. Estando de pé no pequeno terraço que ficava uns poucos
degraus abaixo de seu quarto, Shaina podia ver o folguedo, e seu coração
doeu em virtude de Ben — copo em punho, atrevidamente media as
mulheres de alto a baixo enquanto a dança destas se tornava mais e mais
sugestiva.

Foi para isto que ele veio, pensou ela tristemente. Excitamento. O
tentador que Eva encontrou no Jardim possui mil maneiras diferentes para
convencer as pessoas a se apartarem de Deus, e Ben já se encontra
ofuscado. Mas o que havia ele dito? Que após essa noite ele talvez
retornasse ao lar, e então a levaria consigo? Ela sabia que iria com ele. De
volta a Havilá. De encontro às quietas noites ao longo do grande e
brilhante rio, sob o seguro retiro do carinhoso cuidado de Ben — para
sempre. Ali ela daria à luz filhos que se assentariam à mesa de Sepp, e
nunca mais ela se sentiria diferente e solitária. Decidiu dirigir-se a seu
próprio jardim com muros de pedra, afastando-se dos risos rouquenhos e
das canções que denotavam embriaguez, afim de poder orar. Entretanto,
ao adentrar àquele sítio fresco e solitário, não lhe foi possível penetrar na
calma presença de Deus. Algo dentro dela, firmemente entretecido e
prometedor, rejeitou, pela primeira vez, a paz daquele seu pacífico
recanto. De alguma forma ela sentiu que aquilo que ela entretinha ali com
seu Deus, poderia custar-lhe elevado preço. Não foi capaz de orar aquela
noite; em vez disso, sentou sobre uma grande pedra arredondada, ao lado
do pequeno regato que murmurejava por sobre e em torno das rochas.
Contemplando grandes e errantes nuvens se fragmentarem em vestígios
espumosos e brancos, ela aguardou — embora duvidando — que se

43
aproximassem os passos de Ben. Quando ele apareceu, ela não ficou
muito surpresa.

— Pensei que a encontraria aqui.

Ele parecia tão grande à luz da Lua, mais vigoroso e mais forte que os
homens da cidade que ela conhecia, vestido de uma curta túnica
afivelada, sandálias com tiras de couro que se enlaçavam até um ponto
elevado de suas pernas musculosas.

— Venha comigo à festa. Eles estão a ponto de começar a comer. Você


não precisa ficar muito tempo.

Ele hesitou, depois aproximou-se mais. Ela pôde sentir o odor de vinho
em sua respiração, e durante um fugaz momento pensou em como Abigail
lamentaria essa perda de inocência.

— Eu queria apenas que eles vissem a sua beleza. E desta forma não me
sentirei tão solitário.

Sua determinação rompeu-se em pedaços. Solitário? Ben, este gracioso


homem de Havilá? Será que ele efetivamente se sentia desconfortável em
companhia dos sofisticados amigos de Ona? A necessidade que ele dela
sentia fez com que o coração de Shaina fosse tocado com mais
intensidade do que o teria produzido qualquer outro argumento, de modo
que ela se colocou ao lado dele, indicando assim sua disposição em
acompanhá-lo.

— Somente por uns poucos minutos, Ben. Apenas até que você tenha
encontrado algumas pessoas e se sinta mais confortável. Não estou
vestida de modo apropriado para uma tal ocasião. Você está certo de que
deseja ser visto em minha companhia?

Ben observou o vestido verde pálido acomodado graciosamente sobre


seus ombros e teve certeza de que ela, em sua simplicidade, seria a mais
encantadora mulher naquele evento.

— Você será um sucesso — replicou ele, sorrindo gentilmente. — Você


é uma verdadeira garota de Havilá. E a beleza sob a mulher de suas
formas.

44
Ela preferiria que ele não houvesse dito aquilo. O pensamento fê-la
lembrar de Abigail, e esta noite não era apropriada para pensar na avó.
Não na sexta-feira à noite, quando Sepp oferecia o cordeiro em favor dos
pecados de toda a família.

Quando eles entraram na sala cor de marfim, todos os hóspedes


reunidos em torno da grande mesa silenciaram instantaneamente. Todos
sabiam que Natã e Ona possuíam uma filha, mas nos anos recentes ela
havia sido vista cada vez menos. Agora ela se achava de pé diante deles,
dependurada ao braço de um jovem bárbaro proveniente da terra natal
de Natã, e um murmúrio de deleite ergueu-se à vista do elegante par.
Shaina, olhando de soslaio em direção aos pais, notou o triunfo nos olhos
da mãe e uma alarmante tristeza nos de seu pai. Pela primeira vez ela
compreendeu o modo pelo qual ele vendera a alma em favor de Ona. Mas
ela não seria tão tola. Esta noite ela ajudaria Ben a obter aceitação entre
os astuciosos habitantes da cidade, e no dia seguinte ele já teria visto o
suficiente — e então ele pediria permissão aos pais dela a fim de levá-la
de volta a Havilá. Com a mãe as coisas seriam difíceis, mas o pai se
regozijaria e, por fim, permitiriam que ela fosse.

O dia seguinte, todavia, não produziu semelhante milagre. Ben


considerou a festa em andamento como um estrondoso sucesso. Ona
conservou as mesas apinhadas de quitutes. Natã participou da festa
apenas na medida em que isto significava um gesto de cortesia, e Shaina
escapou em direção a seu quarto logo depois que cessara o banquete da
meia-noite.

Quando, ao amanhecer do primeiro dia, os últimos hóspedes se


desgarravam em direção a suas casas, Natã observou ceticamente os
restos espalhados.

— Você tem certeza, Ona, de que valeu a pena?

Sua esposa jazia pesadamente sobre um sofá, com profundas olheiras.

— Oh, Natã, você é sempre tão austero. Existem servos para recolocar a
casa em ordem. E os hóspedes lembrarão por muito tempo dessa
comemoração em favor de seu parente. Você será rotulado como um
hospedeiro generoso, com uma linda esposa e filha. O que mais poderia
você desejar?
45
— Um jardim do qual todos os recessos não houvessem sido atingidos
pelas maldades do ser humano. E uma filha que mantivesse seu amor
singelo por Deus.

— Do que você está falando? Shaina ficou apenas umas poucas horas
na noite de sexta-feira, e ainda assim a fim de agradar Ben, estou certa.
De todos os modos, é tempo de ela assumir seu lugar na sociedade. Entre
os hóspedes, ouvi muitos comentários acerca de sua beleza. Com algumas
jóias e um pouco de trato com cosméticos, ela será capaz de destacar-se
entre os jovens, espero. Você não sente orgulho de sua filha, Natã?

— Sinto-me orgulhoso de sua lealdade a Deus, Ona. Não quero que ela
jamais a comprometa.

— Você é irrealista, meu amor. Ela não poderá viver todos os dias de
sua vida sem mais do que o velho Ira como amigo e um jardim murado
como objeto de seu amor. Será que você ainda não observou como ela se
sente feliz junto a Ben? Ele será, talvez, a resposta do seu Deus à solidão
de sua filha. Além do mais, ele cresceu em Havilá, conhece o modo de
adoração que lá se pratica, e certamente poderá tolerar as peculiaridades
de Shaina.

— Suas peculiaridades? — O tom da voz de Natã elevou-se


perigosamente. — Tolerá-las? Ona, não quero saber de um homem para
Shaina, que apenas tolere a sua pureza. Quero alguém que a valorize. Ben
não é este homem. No devido tempo Deus proverá tal pessoa, desde que
Shaina tenha paciência.

Ona deixou a mão repousar sobre o braço do marido.

— Acalme-se, Natã — disse ela candidamente.

— Você está reagindo movido por sua própria amargura diante do fato
de haver casado comigo, e isto o faz sentir-se doente. Talvez ao final da
história Shaina se demonstre mais sábia que seu pai, e Ben tenha de
procurar uma esposa em outra parte. Mas, quer no sentido positivo, quer
no negativo, você não pode forçar a decisão de sua filha. Seu Deus é um
Deus de liberdade — foi você mesmo que me disse isto. Foi por esta razão
que Ele permitiu a Eva comer do fruto. Você deve outorgar a Shaina esta
mesma liberdade, meu amor!
46
Ele sentou no piso, ao lado do sofá, e deixou sua cabeça repousando no
colo de Ona. Esta afagou os cabelos do marido, e nenhum dos dois falou.
Ambos conheciam muito bem os pensamentos um do outro.

***

As semanas e meses seguintes trouxeram a Shaina alguns instantes de


verdadeiro êxtase de felicidade, ao passo que noutras oportunidades ela
sentia um temor torturante. Percebia-se a si própria como alguém que
lentamente se afastava de Deus, a despeito das horas gastas no jardim em
busca dEle. Ira observava a batalha da moça com profunda preocupação,
orando devotamente em seu favor.

Shaina apreciava muito caminhar no mercado com Ben. Os habitantes


da cidade nutriam um curioso respeito por ele — por seu tamanho e força,
mas também por algo mais. Havia nele um poder latente, que atraía
mulheres e fazia com que os homens se sentissem cautelosamente
restringidos. Havia nele uma ousadia capaz de abrir portas, e também
uma gentileza enraizada em seu próprio ser, herdada de uma longa
linhagem de ancestrais tementes a Deus. Ao encontrar-se ao lado dele,
Shaina nem queria pensar em outra coisa senão andar com ele, ter a
certeza de seu amor e fazê-lo feliz. Outras vezes, porém, ao ajoelhar- se
sozinha no jardim, reconhecia que Ben estava se interpondo lenta e quase
imperceptivelmente entre ela e Deus. O sonho de um retorno a Havilá em
breve desvaneceu. O negócio de Ben prosperou e ele não parava de falar
em construir uma casa para eles — um lar onde ela pudesse cultivar os
mais graciosos jardins da cidade. Todos entendiam que os dois iriam
casar-se. Tornou-se cada vez mais difícil reservar o sétimo dia como
tempo sagrado e cada vez mais fácil viver à semelhança dos demais.
Desistir de sua solitária vigília. Por vezes lhe parecia poder ouvir a voz de
Adão: “Você é corajosa, suficientemente corajosa, minha filha?” Mas ela
imediatamente procurava desviar o pensamento daquela ocasião, fixando-
o em Ben, o loiro Ben, cuja risada fazia com que todos os assuntos sérios
parecessem ridiculamente sombrios.

Em certo dia ventoso e apenas pontilhado de sol, Shaina e Ben desciam


pelas ruas da cidade, depois de haverem gasto a tarde explorando as
montanhas dos arredores. Cabelos desgrenhados e cobertos de pó
vermelho, sem dúvida ofereciam um espetáculo surpreendente enquanto
47
tentavam abrir caminho por entre os pedestres, montados em seus
vigorosos cavalos ao longo das ruas empoeiradas. Em breve perceberam
uma vasta multidão reunida numa área aberta, junto ao poço
comunitário; chamando a moça a que o seguisse, Ben conduziu seu cavalo
para junto do limite exterior do círculo de pessoas. A partir de suas
posições elevadas, eles puderam ver ao centro um homem, de pé sobre a
base do poço, falando ao povo que a seu redor se acotovelava. Alguns
ouviam atentamente, ao passo que outros galhofavam ou se retiravam do
local em meio a uma praga. A despeito do barulho, não era difícil ouvir o
homem. Sua voz, poderosa e penetrante, caía nos ouvidos de Shaina como
se ela fosse a única pessoa ali presente, pois ele falava de Deus — não de
forma negligente e especulativa, mas como Alguém que ele muito bem
conhecia. Falou do juízo, e a autoridade presente em sua voz não permitia
que qualquer ouvinte sério deixasse de sentir temor. Shaina compreendia
os que se retiravam dali com um gracejo nervoso. Desejou muito
acompanhá-los, colocar um bom espaço entre si própria e aquele homem
estranho, cavalgar ao lado de Ben à luz do sol e viver apenas o dia de hoje
— este dia alegre e jovial.

Entretanto, alguma coisa presente naquele homem a deteve: havia em


sua face um brilho, uma propensão à amorável e profunda preocupação
com os outros, que fez despertar dentro dela antigas lealdades.

— Quem é ele? — perguntou Ben a alguém que por ali se achava.

— Seu nome é Enoque — replicou o homem.

— Já passou por aqui uma ou duas vezes antes. Usualmente leva


consigo um ou dois conversos, de volta a seu refúgio nas montanhas, caso
não seja expulso da cidade logo no começo. Nem sei por que estou
ouvindo. Depois disto fico tendo pesadelos durante uma semana. Poder-
se-ia imaginar que o Altíssimo o ouve e, a julgar pelo aspecto de sua face,
bem pode ser que isto realmente aconteça.

— Vamo-nos daqui — Ben resmungou.

— Não, Ben. Tenho de ouvir este homem. Cada palavra.

48
Ben sabia que Shaina, habitualmente muito complacente, desta vez não
cederia; reconhecendo, por outro lado, que seria demasiado perigoso
deixá-la sozinha ali, com um ar de resignação preparou-se para esperar.

Enoque falava agora com mais suavidade. Seus ouvintes haviam-se


reduzido a 15 ou 20. Shaina percebeu que Ira era um dos presentes e
sorriu afetuosamente em direção ao velho amigo.

- “Falei de julgamento e do plano de Deus em destruir esta má e


descrente geração; entretanto, meus amigos, esta é uma obra estranha e
triste para o nosso Criador. Aquele que pôs nossos primeiros pais no Éden
ainda nos ama. Suas poucas exigências têm em vista nossa segurança e
felicidade. Apenas que confiemos nEle e Lhe obedeçamos, aceitando Seu
amor — amor de dimensões tão grandes, que O levará a sacrificar o
Prometido para que possamos ser novamente incorporados a Sua divina
família. Amigos — e sua voz alcançou cada coração com uma intensidade
de súplica quase tangível — saiam desta cidade. Venham para as
montanhas, onde adoramos com simplicidade, fazendo-O o nosso
primeiro interesse. Olhem à volta. Aqui existe assassínio e roubo,
embriaguez, falsa adoração, e todas as perversões sexuais imagináveis. A
vida de vocês está sempre correndo perigo, e mesmo que algum de vocês
seja rico e poderoso, a sua alma se encontra em perigo. Pensem, meus
irmãos e irmãs. Pensem. Não se deixem arrastar à eterna perdição.
Amanhã cedo deixarei este lugar. Aqueles, dentre vocês, que quiserem
dedicar sua vida ao Deus vivo e verdadeiro, encontrem-se comigo ao
alvorecer, e juntos viajaremos para um lugar onde as vozes de oração e
louvor se erguem todas as manhãs em direção Aquele que nos ama e nos
redime.” O homem desceu da plataforma e desapareceu numa rua
secundária.

Sem proferir palavra, Shaina pôs em movimento seu cavalo e dirigiu-se


para casa. Ben, ainda a seu lado, finalmente falou:

— Ele perturbou você. Melhor se não houvéssemos parado.

— Este é o problema, Ben. Sempre almejamos não ser perturbados. Em


vez disso, queremos levar nossa vida à base de festas e indolência,
esperando que a maldade do mundo jamais nos atinja. Ignorando a morte,
pretendendo que ela jamais nos sobrevirá ou, se ela acontecer, o grande,
49
bondoso e misericordioso Deus fechará os olhos diante de nossos muitos
anos de atitude desafiadora e nos transportará depressa para algum lugar
mágico onde poderemos prosseguir com nossos caminhos pecaminosos.
Porventura as palavras desse homem não caíram em seu coração qual
uma espada, Ben?

— De fato, pareceram-se um pouco com o sermão que Abigail me


ensinou antes que eu deixasse Havilá — admitiu ele pesarosamente. —
Senti-me aliviado por não ouvir esta espécie de coisas durante algum
tempo.

— Você está lembrado do que ele falou, Ben? Pensem. Em vez de fugir
da realidade, é isto que devemos fazer. Pensar. Oh, meu amado, estamos
percorrendo uma longa estrada descendente.

Em silêncio, ambos cavalgaram através da avenida arborizada que dava


acesso à casa de Natã. As palavras de Enoque haviam sacudido a moça. Ela
podia ver claramente — como se o próprio Deus lhe houvesse falado —
que ao casar com Ben, ela estaria se separando do Deus do Universo.

A noite, junto à mesa da ceia, ela falou da experiência vivida durante a


tarde.

— Qual era a aparência deste pregador de fatalidade? — perguntou


Ona enquanto enrolava indolentemente um longo fio de cabelo negro em
volta do dedo.

Shaina pensou durante um momento e então encolheu os ombros. —


Honestamente, não sei dizer-lhe, mamãe. Penso que na verdade eu não o
estava vendo, apenas ouvindo.

— Sua face revelava um brilho sobrenatural — Ben lutava por


reconstruir a cena. — E tudo que ele falou é verdade. Creio que o homem
mais ímpio dentre a multidão seria capaz de reconhecer tudo como sendo
verdade. A mensagem desse Enoque traz consigo uma espécie de selo
sagrado. Eu preferia não tê-la ouvido.

— Oh, Ben, não leve as coisas tão a sério. — Ona falara novamente. —
Esses fanáticos que ficam nas esquinas das ruas e usam linguagem
bombástica a respeito do Deus de Adão, em geral são indivíduos
mentalmente perturbados, incapazes de desfrutar das delícias da Terra —
50
e tampouco desejam que outros delas desfrutem. Venha, coma e relaxe, e
falemos sobre a casa que você e Shaina construirão. Natã contou-me
apenas hoje pela manhã que, ao vocês casarem, Ira os seguirá, para ajudá-
los a tornar a casa um lugar de muita beleza. Esta minha filha é muito
engenhosa e você terá um lar capaz de chamar a atenção de qualquer
transeunte. — Ona encheu um copo de vinho e colocou-o diante de Ben,
dando-lhe leves tapinhas na cabeça, à moda de calmante.

— Ele falará novamente amanhã? perguntou Natã. — Lamento muito


não tê-lo ouvido.

Sua esposa suspirou. — Vocês são todos iguais. O sangue de Abigail


corre grosso em suas veias, e jamais lhes é possível livrar-se da obsessão
com esse seu Deus. Tenho pena de vocês.

— Você poderia recapitular as suas bênçãos, — repreendeu Shaina. —


Papai é um dos poucos homens da cidade que possui apenas uma esposa.
Certamente pode você dar graças ao sangue de Abigail e ao temor de
Deus por isto. Não é, porventura, algo pelo que você deveria sentir- se
grata?

Ona sorriu — aquele sufocante e opressivo sorriso de lábios cheios que


encantara e seduzira Natã muitos anos antes.

— Este pensamento me passou pela mente, querida.

Natã volveu-se para a filha.

— Nenhuma outra me tenta, Shaina. Eu gostaria de crer que é grande


virtude de minha parte, mas a pura verdade é que amo perdidamente sua
mãe. Olhe para ela. Onde mais poderíamos encontrar tamanha beleza?

— Somente em sua filha — Ben contrapôs, leal.

— E tenho de concordar, Natã. Eu também seria incapaz de amar outra.

Ona, satisfeita com a declaração do esposo, disse à filha:

— Quer você saiba ou não, tal lealdade acha-se impregnada nos


próprios ossos deles. E parte de sua herança. Isto também, Shaina, é algo
que devemos a Abigail.

51
— Respondendo sua pergunta, papai, Enoque deixará a cidade amanhã
cedo, rumo a seu retiro. Ele convidou a todos os que quisessem
acompanhá-lo.

— Ben, será melhor que você a vigie durante a noite — advertiu Ona. —
Shaina tem uma tendência no sentido de levar muito a sério esta espécie
de coisas. — As maneiras de Ona pareciam naturais, mas todos captaram
a apreensão de sua voz.

— Não tenha medo, mamãe. Papai disse certa vez que se comportava
como covarde a maior parte do tempo, e sinto que não sou muito
diferente dele. — Imediatamente ela percebeu que havia ferido o coração
do pai, e assim passou a recriminar- se duplamente — tanto pela não-
planejada crueldade quanto pela mútua fraqueza.

52
Capítulo 4
A Decisão

Um ano decorrera desde que a poderosa mensagem de Enoque agitara


momentaneamente a paz da cidade. Sobre uma pequena elevação,
próximo aos muros ocidentais, um belo edifício de luxuoso cedro ganhava
forma, preparando-se para o casamento de Ben e Shaina. Todos os dias
Shaina e Ira caminhavam na sombreada propriedade, planejando a
paisagem; haviam vagueado por todas as redondezas, tentando descobrir
as mais raras e exóticas plantas. Pois aqueles dois eram capazes de ver
tudo com os olhos da mente — o inclinado trecho de grama, entremeado
de graciosas árvores, muros de pedra e arbustos em profusão, fontes de
água e regatos desviados desde as montanhas circundantes — e as mais
variadas cores por toda parte. Por vezes, enquanto trabalhavam, Ira falava
sobriamente a Shaina a respeito de sua sempre descendente fé, mas
bastava um vislumbre de Ben para que todos aqueles pensamentos
fossem varridos de sua mente. Ele a amava com uma exuberante
obsessão, à qual ela era incapaz de resistir. Se era o caso de ele estar
apreciando cada vez mais a vida da cidade, ela optou por ignorar o fato.
Quando a casa estivesse pronta, eles se casariam — e desde já Ona
planejava uma festa como seus amigos jamais haviam visto. Ela
presentearia a sua filha com os mais ricos materiais que as caravanas
ambulantes tinham a oferecer, e a lenda sobre a beleza da moça viajaria
até lugares distantes. Natã sentir-se-ia orgulhoso e esqueceria os infantis
anseios que nutria em direção a suas origens campesinas. Ele veria, afinal,
que a mãe planejara corretamente em favor de Shaina, que ela havia sido
uma boa mãe.

Em determinada tarde achavam-se eles sentados — os quatro — em


relaxante expectativa daquilo que Ben identificava como sua refeição de
Havilá — pão simples e frutas — quando um servo entrou para anunciar a
chegada de um visitante. Este, porém, nem sequer esperou que o
chamassem, pois seguia nos calcanhares do servo. Natã pôs-se de pé num
salto, atônito.

53
— Adriel! O que você está fazendo aqui? — O dono da casa envolveu o
visitante num grande abraço.

Shaina reconheceu-o como um dos irmãos mais jovens de seu pai, e ela
teve imediatamente uma agourenta premonição de que o jovem tio era
portador de más notícias. Depois dos primeiros momentos de emoção e
da apresentação a Ona, Adriel sentou-se à mesa, mas recusou o alimento
que lhe foi oferecido. Antes que pudesse falar, o irmão Natã percebeu-lhe
a palidez e as desfiguradas feições.

— Você parece exausto, meu irmão. Está necessitando de um bom


descanso. Venha, vou tomar providências para que você se banhe e vá
repousar. Poderemos conversar mais tarde.

Shaina ficou pensando em quão parecidos eram entre si estes homens


de Havilá. Apenas seu pai era de compleição maior, mais estética. Ela
amava a força de Ben. Ele a fazia lembrar do leão que haviam visto junto
ao lago, com este seu magnetismo vigoroso e envolvente.

Adriel quebrou os devaneios de Shaina com palavras que lançaram a


todos no mais terrível silêncio.

— Não serei capaz de dormir, Natã. Venho como portador da mais


terrível de todas as mensagens. Nossa família, o povo de Havilá, foram
todos mortos. Nosso lar foi destruído. O vale, para nós, está perdido para
sempre.

— O que você está dizendo, Adriel? — interrompeu Ben. — Você está


ficando louco?

— Não, Ben, estou em meu mais perfeito juízo. Uma tribo do norte, o
povo de Yadin, tomou nossa terra e as crianças, e matou os adultos. —
Falhou-lhe a voz, de modo que não pôde prosseguir.

Natã, sentado ao lado do irmão, colocou um braço em torno de seus


ombros e acompanhou-o no choro. Shaina espiou a face de Ben, mas nela
percebeu apenas traços controlados, se não desinteressados.

Quando lhe foi possível falar novamente, Adriel resumiu a história.

— Eu estivera durante semanas com as ovelhas numa campina mais


elevada, distante vários quilômetros do acampamento principal. A cada
54
sexta-feira, o jovem Dur, filho de Elrad, trazia-me alimento e passava o
sábado comigo. Quando ele não apareceu em determinada semana,
pensei apenas que talvez ele tivesse sido necessário no acampamento. Eu
dispunha ainda de provisões razoáveis e suplementei-as com frutas e
bagas silvestres. Mas quando ele deixou de aparecer na semana seguinte,
temi que algum animal selvagem o houvesse atacado no caminho. Decidi
que deveria deixar as ovelhas e ir à sua procura, de modo que conduzi o
rebanho para o interior de uma garganta e rolei sobre a entrada da
mesma várias pedras de bom tamanho, de modo que as ovelhas
pudessem ficar ali em segurança. Saí então à procura do garoto. A medida
que eu me aproximava do vale, percebi um estranho silêncio nos campos
— nenhum hino de louvor, nenhuma canção de nossos parentes enquanto
trabalhavam. Andei até a encosta da montanha e abri caminho
cautelosamente por entre as árvores, procurando de todos os modos
permanecer fora do alcance de alguma vista.

— Você lembra, Natã, onde o rio faz uma forte curva, deixando o
acampamento justamente a seu lado? Bem, neste ponto eu contemplei
uma cena que aterrorizou meu coração, pois guardas armados rondavam
o acampamento enquanto centenas, talvez milhares, estavam construindo
— construindo, Natã — em nosso vale. Eles erigiam uma cidade.

E nos jardins de mamãe, os belos jardins por entre rochas que ela
erigira na encosta do monte em honra a Yahweh, eles preparavam um
bosque. Uma grande imagem dourada encontrava-se no centro da criação
de mamãe, e as papoulas vermelhas espalhavam-se entre as rochas, como
se fossem lágrimas de sangue derramadas diante do sacrilégio. — Adriel
inclinou a cabeça e soluçou, enquanto Shaina sentiu as lágrimas
derramando- se por sobre suas próprias faces.

Foi Ona que finalmente rompeu o silêncio.

— Esta narrativa é terrível, Adriel. Você poderia prosseguir?

Shaina estendeu a mão a fim de tomar a de Ben, enquanto o tio


prosseguia. Natã continuava sentado, pálido como a própria morte.

— Havia ali crianças pequenas, as nossas crianças, trabalhando como


escravas nos campos próximos à casa, mas não restara um único adulto de

55
Havilá, quer homem, quer mulher. Apenas um amontoado fumegante,
bem mais abaixo do vale, onde seus corpos haviam sido queimados.

— Os servos? Eles não pouparam nem mesmo os servos? — perguntou


Ben.

Adriel esboçou um sorriso amargo.

— Os invasores sabiam muito bem que os servos tornariam a erguer-se


tão logo surgisse a oportunidade. Eles eram seguidores do Deus
verdadeiro — todos eles — e constituíam um segmento muito amado da
família de nosso pai, pois recebiam o tratamento de filhos e filhas. Embora
os inimigos pudessem haver desejado muito os serviços desses servos,
sabiam que o melhor seria não poupá-los.

Shaina tentou imaginar o vale privado de Sepp e seu sagrado altar assim
como de Abigail, bronzeada e sorridente em sua sagrada esperança. Bem,
todos eles dormiriam com Adão até que o Prometido consertasse outra
vez todas as coisas. Ela só não sabia exatamente como. Abigail e Adão
haviam falado do Vindouro e de Sua morte. Mas o que ocorreria depois?
O que seria daqueles que haviam repousado no pó da terra? Tornariam
eles a viver?

— Nada mais pude fazer. — Adriel obrigou-se a si próprio a concluir a


história. — Nem mesmo em favor das crianças.

Shaina pôde sentir a profunda agonia que grassava na alma do tio.

— Decidi que seria melhor avisar você e a Ben, Natã, não seja o caso de
vocês irem até lá à busca de barro, e se defrontarem com o terrível
pesadelo.

Shaina ouviu quando a mãe reteve fortemente a respiração.

— E o que você fará sem barro, Natã?

Natã fitou a esposa com indignada estupefação.

— Num momento como este você vem falar de barro, Ona? Meus pais
estão mortos. Meus irmãos estão mortos. Meu povo desapareceu. E você
consegue pensar em barro?

Ela o olhou friamente.


56
— É o seu meio de vida, Natã. E nada há que possamos fazer em favor
dos mortos.

— Acredito que ele poderá adquirir o barro por determinado preço.


Afinal de contas, ele não é um verdadeiro seguidor de Deus, de modo que
os invasores poderão considerá-lo como alguém semelhante a eles. —
Enquanto as palavras do irmão queimavam no íntimo de Natã, Shaina
pôde registrar nos olhos do pai uma dor tão profunda que a levou a
desviar os olhos.

Bem tarde nessa noite, quando todos já se haviam recolhido aos


respectivos dormitórios, Shaina escapuliu para seu jardim. Fazia bastante
tempo que ela não mais ali comparecia, já que seus interesses haviam se
desviado para os preparativos de sua nova casa. O jardim parecia
exatamente como dantes, e ela não teve dúvida de que a amorável mão
de Ira era a responsável por todo aquele cuidado. Repentinamente, em
meio à escuridão, ela viu-se chorando convulsivamente em virtude da avó
que jamais tornaria a ver, e pelo vale que havia representado o seu lar
espiritual. Estaria seu pai a chorar como ela? Ou teria ele de conter seu
lamento diante da esposa que jamais seria capaz de compreendê-lo?
Teriam as lágrimas de ficar para sempre represadas em seu dolorido
coração? De todos os modos ela compreendeu que havia reservado suas
próprias lágrimas para esse lugar. Não havia buscado conforto nos braços
de Ben, percebendo que ele, da mesma forma que a mãe, também não
compreenderia. O vale de Havilá havia sido o lar dele na infância, muito
mais que dela. A fumaça resultante da queima dos corpos de seus pais
havia-se espalhado sobre o brilhante rio de sua meninice. Mesmo assim,
nessa noite ele deixara o recinto sem derramar uma única lágrima, como
que irritado porque as más notícias haviam quebrado a rotina da cidade.
Sem fazer qualquer pergunta quanto a seus irmãos e irmãs mais jovens,
ele rejeitara suas raízes de um modo como jamais teria sido possível a
Natã fazê-lo.

A reação de Ben deixara-a perturbada. Será que ela de fato conhecia o


homem que em breve se tornaria o seu esposo? Ela havia apreciado muito
o seu sorriso, seu corpo esbelto, sua alegria, a adoração que ele nutria por
ela — e tudo isto a deixara satisfeita. Mas ... o que jazeria abaixo da
superfície?
57
Quem conservaria a fé de Sepp e Abigail? Apenas Adriel sobrevivera, e
onde encontraria ele outra esposa temente a Deus? Enquanto ela pensava
no tio, agora deitado debaixo dos macios cobertores de lã, no quarto de
hóspedes de sua mãe, tentou imaginar a amarga tristeza daquele homem
diante da perda de sua esposa e da filha de 13 anos de idade.

Impulsivamente, ela decidiu procurá-lo.

— Adriel, meu parente — cochichou ela junto à janela aberta — é


Shaina. Posso entrar?

Ele lhe disse que sim, e quando ela entrou, viu-o à luz embaçada do
lampião de barro — sentado na cama, olhos vermelhos, face intumescida.
Ela sentou-se ao lado dele, tomando entre as suas a grande e calejada
mão do tio.

— Vim para sentir com você a sua dor, Adriel. Para carregar um
pouquinho de seu pesar. Eu também os amava, especialmente a vovó.

Ali permaneceram eles quietamente, chorando à gentil semi-escuridão;


mais tarde ela o deixou ali, sem dizer palavra.

Natã não compareceu ao seu local de trabalho por vários dias, dizendo
que não tinha ânimo para isso. Tanto ele quanto Adriel apenas beliscavam
o alimento, vindo a emagrecer bastante. Ona censurou e bajulou, sem
qualquer proveito.

— Realmente, papai, você precisa comer — insistiu Shaina em certa


manhã ensolarada, enquanto colocava diante deles uns bons melões e
tigelas de fumegante cevada adoçada com mel.

Cortando a fruta fria sem qualquer disposição, o pai sorriu com


amargura.

— É estranho. Eu ia para casa apenas duas vezes ao ano. Via-os tão


pouco. Ainda assim, pensar em Havilá sem a presença de minha mãe, sem
seu sorriso e alegre saudação, faz-me sentir muito mal. Não consigo
pensar em alimento. Ele revolve meu estômago. E a dor de Adriel é ainda
pior. O sangue de sua esposa e de sua filha ainda está fresco no solo que
ele tanto ama. Você realmente pretende que tenhamos disposição para
comer?
58
Ben, sentado à direita de Natã, comia com satisfação.

— Coisa alguma devolverá a terra de Havilá à nossa família. Vovô Sepp


temia essa invasão. Várias vezes ele nos mencionou essa possibilidade.
Orientou-nos de que não deveríamos lutar. Não queria ele que houvesse
derramamento de sangue. Dizia sempre que a terra e nossa vida não eram
importantes — somente a obediência a Deus. Esta foi uma das razões
pelas quais deixei meu lar. Não sentia qualquer desejo de ver-me
apanhado, como numa armadilha, no vale, vindo a tornar-me vítima de
qualquer inimigo que por ali passasse.

— Mesmo que tivéssemos lutado, Ben, não teríamos sido capazes de


enfrentar seu número e suas armas. E papai tinha razão. A guerra é de
origem maligna. É melhor morrer em paz com Deus do que debater-se e
matar em troca de mais uns poucos anos de vida.

— E fácil para você dizer isto — retrucou o homem mais jovem,


impacientemente. — Você está vivo e bem. Você pensa que aqueles que
jazem no montão encarvoado poderiam concordar?

Adriel olhou diretamente nos olhos de seu arrogante sobrinho.

— Eu preferiria que Deus me houvesse permitido morrer com eles, pois


sem eles a minha vida é muito amarga. Mas você nada conhece a respeito
de tal tristeza. Que o Senhor o perdoe diante de suas néscias palavras e
pela deslealdade que você está manifestando para com Ele e com sua
própria família.

Erguendo-se abruptamente da cadeira — num esforço por dominar sua


ira — Ben deixou o aposento e dirigiu-se a seu local de trabalho.

— Por bondade, desculpe-o, Adriel — suplicou Shaina gentilmente. —


Ultimamente ele se mostra muito irritado. Não é a mesma pessoa.

— Ele se ressente de minha presença aqui — declarou o fugitivo,


procurando não ser descortês. — Eu lhe trago à lembrança tudo aquilo
que ele procurou deixar para trás. Meu pesar o aborrece. Já é tempo de
eu ir andando, Natã. Pretendi discutir meus planos com você, e este
momento é tão bom para isto quanto qualquer outro. Você precisa
retornar a seu barro e eu tenho de retomar outra vez minha vida. Nossa
mãe sentir-se-ia impaciente diante de nossa indolência e lágrimas.
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Shaina deu uma gargalhada de alívio diante das palavras do tio.

— Você está certo, Adriel. Ela diria: Estou com vergonha de vocês dois.
Depositem sua confiança no Prometido e vivam de modo responsável
sobre a face da Terra. Parem de lamentar por nós. Nós dormimos firmes
na fé.

— Você consegue imitá-la perfeitamente, filha — Natã olhou


afetuosamente em direção à filha.

— Então, quais são os seus planos, meu irmão? Eu gostaria que você
ficasse em segurança aqui, conosco.

— Não posso fazê-lo, ainda que sinta relutância em deixá-los. Mas —


perdoe-me, Natã — não posso permanecer numa casa em que os ídolos
ocupam todos os cantos e não é praticada a adoração do Deus verdadeiro.
Natã, você tem sido muito amável, e Ona tem-se revelado graciosa e
compreensiva. Vocês me concederam este precioso tempo, em que pude
dar vazão à minha dor. Tenho pensado muito acerca do futuro. O profeta
Enoque — certamente você já ouviu falar dele — prediz um julgamento
que deverá sobrevir à Terra, destruindo toda a humanidade, exceto os que
se comprometerem com Deus. Não me atrevo a viver nesta cidade, Natã.
Posso ver o que aconteceu com você e com Ben. O mal invade a vida de
modo tão sutil, e por outro lado não sou menos susceptível que você, meu
irmão. Tenho de dirigir-me ao lugar em que Deus é adorado e onde toda a
Natureza fala dEle diariamente, nos pores-do-sol, nas montanhas e nos
lagos. Enoque ensinou a papai como encontrar esse vale, e por sua vez
papai ensinou o caminho a nós, seus filhos. Exatamente para uma
oportunidade como esta. No primeiro dia após o sábado, pretendo partir à
procura desse vale, pois ele é hoje um dos poucos lugares em que o povo
de Deus pode adorá-Lo em paz e segurança. Trata-se de uma longa
jornada, mas de todos os modos anseio por seguir meu caminho.

— Você não poderá ir sozinho, Adriel — a voz de Natã denotava


profunda preocupação.

— Ele não terá de fazê-lo sozinho, papai — disse Shaina calmamente. —


Eu o acompanharei. Ira também deseja ir. Há muito tempo ele o tem
almejado — desde que Enoque pregou aqui na cidade — mas relutou até
agora em pedir a você a sua libertação.
60
— Shaina, você não compreendeu. Adriel não retornará. Ele está
falando de estabelecer ali o seu lar.

— Compreendi plenamente, papai. Eu também estou falando de


estabelecer ali o meu lar.

— Mas ... o que dizer de Ben? E do seu casamento com ele? E de sua
nova casa? E de sua mãe? Shaina, temos de conversar a este respeito.
Você está agindo por impulso.

Ela percebeu o temor na voz do pai, e robusteceu-se contra o mesmo —


Papai, estou com quase 30 anos. Não se trata de nenhum sonho infantil.

Ao perceber que sua mãe estava de pé no vão da porta, perguntou-se


por quanto tempo teria ela acompanhado a conversa.

— Praticamente desde o início tive consciência de que teria de optar


entre Deus e Ben. Ben endureceu seu coração contra os divinos
ensinamentos que aprendeu na infância. Por isto que ele é incapaz de
demonstrar dor pela perda de sua família. Ao deixar Havilá, em sua mente
ele teve de destruí-la, com tudo que a compunha. Em breve ele percebeu
que, para ser popular e bem-sucedido aqui, teria também que
desvencilhar-se de Deus. Ele percebeu que, com o tempo, eu chegaria a
fazer o mesmo. Adriel está certo. Este mundo encontra-se em crescente
rebelião contra Deus. A pessoa terá de fugir do pecado, caso contrário
será engolfada por ele. No começo, quando Ben se enamorou de mim,
pensei que poderia conservar a ambos — a ele e a Deus. Em breve,
porém, pude observar sua lenta desintegração e senti-me em trajetória
descendente junto com ele — mas mesmo isto não me levou a tomar
cuidado. Eu o queria muito. Para mim, ele era Havilá, e eu amo Havilá.

Quando Enoque falou, aquilo agitou meu coração. Desde então tem
sido mais difícil aplacar minha consciência, mas não tive coragem de
deixar Ben. Amo-o verdadeiramente. — A voz da moça tremeu, mas ainda
assim ela prosseguiu. — Agora Havilá não mais existe. Pude compreender,
então, que meu anseio é pelo amor de Deus que ali senti, e não pelo lugar
em si. Este amor se encontrava nas pessoas, e ele vive ainda em Adriel, em
Ira e em Enoque, e nuns poucos corações de genuínos seguidores de Deus.
Mas não em Ben.

61
— Tampouco em nós — disse a mãe amargamente, no momento em
que uma torrente de lágrimas descia por suas faces.

Semi-enlouquecido diante do pensamento de perder a filha, Natã


explodiu:

— Shaina, eu a proíbo de ir!

Ona calmamente escorregou para o lado do esposo, sustentando a


cabeça dele contra a sua própria, enquanto lhe afagava os cabelos.

— Natã, meu querido, lembre-se de que ela é livre. Livre para escolher
adorar a Deus ou esses pedaços de prata. — Ela cutucou com o artelho
uma imagem próxima. — Foi você quem a levou a Abigail e ao Éden. Foi
você quem a conduziu a este momento. Não torne as coisas ainda mais
difíceis para ela. — Apegaram-se um ao outro, pálidos e silentes.

Shaina procurou os olhos de Adriel à busca de forças e as encontrou. Ele


compreendia a decisão da sobrinha e o tremendo custo nela envolvido.
No momento em que ela passou perto dele, a fim de consolar os
angustiados pais, ele tocou levemente o ombro de Shaina.

Nessa noite ela pediu a Ben que caminhasse a seu lado nos jardins e ali,
com o coração golpeando vividamente e lutando intensamente a fim de
controlar as emoções, Shaina lhe falou da decisão de deixar a cidade em
companhia de Adriel.

Ben permaneceu em silêncio até que ela concluísse e então agarrou-a


fortemente pelos ombros.

— Shaina, não me abandone — disse ele com voz entrecortada. — Se


você for embora, nada restará neste lugar para atrair-me. Jamais serei
capaz de amar as mulheres superficiais desta cidade. Tenho ainda muito
do vale de Havilá dentro de mim. Nunca poderei amar outra pessoa que
não você. Prometo-lhe que não trarei imagens para dentro de nossa casa.
Você terá liberdade para adorar o seu Deus — ou nenhum deus, se assim
preferir. Tão-somente não me abandone!

— Por que você não vem conosco ao vale de Enoque? — perguntou ela,
desejando intensamente que ele dissesse sim.

62
— Não posso. Há muito tempo cheguei ao ponto de odiar a adoração a
Deus com todas as suas restrições. Mesmo sendo por amor a você, Shaina,
não posso ir. — Ele afastou-se de Shaina e nervosamente abria e fechava o
punho. — Desejo poder. É por isso que estou aqui. Este povo respeita o
poder. Nós somos capazes de nos entender.

— Adão disse que foi isto que o maligno desejou — poder. É um desejo
perigoso, Ben. Melhor é deixar o poder nas mãos de Deus.

Ela não prosseguiu insistindo com ele. Para Shaina tornara-se claro que,
se Ben fosse até o vale de Enoque, tão-somente levaria dissensão àquele
lugar.

— Por que Adriel teve de vir até aqui? Dentro de pouco tempo
estaríamos casados e ocupando nossa nova casa. Você se sentia
suficientemente feliz até então.

— Nós experimentaríamos as mesmas amargas tristezas que meus pais


têm vivido. No fundo da alma, eu tinha conhecimento disto desde o início,
mas eu amava tanto você, que não me permitia pensar no assunto. E
tenho certeza, Ben, que você também o sabia.

Ele a segurou nos braços, e enquanto as lágrimas de Shaina manchavam


a túnica de Ben, ela sentiu que sua inocência juvenil e sua felicidade se
esvaíam. Adriel não mais poderia dizer que Ben nada conhecia a respeito
do sofrimento, pois os sons de sua angústia dilaceraram-na cruelmente na
agradável noite de verão.

***

Chegara o momento da partida e Shaina tratou de manter-se firme


contra as ondas de terror e amarga tristeza que pareciam querer arrebatá-
la. O que estava ela a ponto de fazer, ao dirigir-se para o deserto em
companhia de Ira e Adriel? Para onde estaria indo? Tornaria algum dia a
ver as faces de seus pais? Quem era esse Deus que os demandava tão
grande sacrifício? Não poderia Ele algum dia falar-lhe diretamente, ou
pelo menos revelar-lhe a Sua face? Ainda assim, lá no fundo de seu ser,
algo entoava uma doce e clara melodia, uma delicada e segura bênção
sobre a sua viagem. Foi a isto que ela se apegou quando a agonizante face
do pai sacudiu violentamente sua resolução.
63
Ben havia-se mudado imediatamente para a nova casa semi-concluída,
de modo que ela não mais o vira desde a noite no jardim. Surpreendeu-se,
portanto, ao vê-lo surgir à bruxuleante luz matinal.

Adriel dirigiu-se a ele, num gesto de boas-vindas.

— Ben, estou contente por você ter vindo. Desejo falar-lhe. Nós somos
filhos de Sepp, homens de Havilá. Venha conosco. Você é um homem
orgulhoso e desassossegado, faminto por autoridade. Não se irrite — disse
ele, percebendo o súbito enrubescimento do outro. — Reconheço estes
traços de caráter em você porque, à sua idade, eu era mais ou menos a
mesma pessoa. Abigail poderia confirmar-lhe que eu era o mais cabeçudo
dentre seus filhos. Ela temia muito por mim, e com justa razão.

Certa vez, enquanto pastoreávamos as ovelhas, mamãe e eu, expressei


minha forte insatisfação diante das humildes tarefas pastoris. Ela me disse
então: “Adriel, você se parece com um jovem leão que pisa
orgulhosamente a terra, faminto por aventura, buscando sempre algo
sobre que possa exercer controle. Mas, meu filho, não existe qualquer
poder digno de ser cobiçado, exceto o poder sobre as próprias fraquezas,
e unicamente Yahweh pode outorgá-lo.“

“Não sou capaz de mudar meus sentimentos”, disse eu, mal-humorado.

“Mas Deus é capaz de mudar tudo isto”, disse ela. “Você precisa orar.”

Eu lhe disse que nem mesmo gostava de orar. Ela me respondeu:


“Ajoelhe-se, Adriel.” Ainda hoje posso vê-la, segurando um cordeirinho
preto nos braços — o restante era tudo dourado contra a azul abóbada
celeste sobre a terra de Havilá. E pelo fato de eu amá-la intensamente,
ajoeIhei-me.

“Você precisa dizer quatro palavras, Adriel. Apenas quatro palavras:


‘Senhor, quero ser humilde.’ Repita-as, filho.”

Assim, ajoelhado sobre a grama do reservado superior, sentindo-me


quase um tolo, pronunciei aquelas quatro palavras. Ela colocou as mãos
sobre meus ombros e olhou-me com muita firmeza. ‘Agora, conserve-se
orando todos os dias, o trabalho do Senhor em seu íntimo não será de
modo algum fácil.”

64
Por alguma razão inexplicável eu prossegui pronunciando aquela oração
simples, quase que numa atitude de desafio. A fim de provar que não era
possível ocorrer a mudança de caráter que ela predissera.

Entretanto, Ben, os caminhos de Deus excedem toda compreensão.


Lentamente senti que meu íntimo se modificava. Já não me dispunha tão
prontamente a lutar, a abrir a cotoveladas o meu próprio caminho.
Comecei a perceber a verdade das palavras de minha mãe, que o poder
sobre nossas fraquezas é todo o poder de que necessitamos neste mundo.
Passei a clamar por esse poder. Já não me incomodava vigiar as ovelhas,
pois naquele recanto excelente aprendi a conversar com Deus e a
desfrutar de uma felicidade que jamais acreditara ser possível.

— Venha conosco, Ben, e aprenda a pronunciar a oração de minha mãe.

Shaina imaginou que ninguém seria capaz de resistir ao terno apelo da


voz de Adriel. Pôde perceber uma tremenda luta refletindo-se na face de
Ben, e todas as fibras em seu próprio ser clamavam para que ele se
rendesse; ao final, entretanto, ele lhes volveu as costas, desaparecendo na
semi-escuridão sem proferir qualquer palavra.

Natã e Ona, profundamente comovidos diante das palavras de Adriel,


permaneceram quietos e resignados quando Shaina os abraçou e a seguir
montou Hadesh. Ela volveu uma vez o olhar para trás enquanto desciam a
rua, e pôde contemplar o lar e os jardins que tanto amara, contrastando
com o pano de fundo das primeiras gotas douradas do alvorecer. Sua mãe
ergueu o braço em despedida, e Shaina gravou o quadro em sua mente
para sempre.

65
Capítulo 5
O Vale

Os primeiros dias de viagem foram extenuantes tanto para Ira quanto


para Shaina. Os 600 anos do jardineiro faziam com que seu passo fosse
agora um pouco mais lento, embora a atividade diária nos jardins lhe
conservasse a saúde em perfeita ordem. A vida de Shaina havia sido fácil
— excessivamente fácil — mas ela sempre fora uma boa amazona, de
modo que surpreendeu Adriel pela resistência que demonstrava. O tio
estabelecera um ritmo forte de viagem, avançando incansavelmente pelo
deserto, fazendo apenas breves paradas para repouso e alimentação.
Raramente conversavam, pois cada um nutria seu próprio pesar. Ira
procurava atender prestimosamente as necessidades de Shaina, até que
ela, por fim, protestou com energia:

— Ira, você não é mais um servo. Meu pai declarou-o livre. Agora somos
amigos, e isto é tudo.

— Cuido de você como se fosse minha filha — respondeu ele, sorrindo.


— Não tenho outro parente.

Ela o abraçou impulsivamente.

— E você é o meu pai espiritual. Cuidaremos do outro.

— E quem cuidará de mim? — perguntou Adriel, enquanto um lampejo


de travessura brilhou em seus tristes olhos.

— Nós dois! — exclamaram Ira e Shaina em uníssono, com suas vozes


ecoando estranhamente através da vasta e calma floresta. E riram com
bastante gosto, todos juntos. Pela primeira vez.

Os três achavam-se completamente ligados entre si, ali onde as


enormes árvores mal deixavam penetrar algum raio de sol para realçar,
aqui e acolá, as claras cores de brilhantes minerais e pedras preciosas
espalhadas sobre o chão da floresta.

66
Certa noite, enquanto Ira e Adriel estavam assentados diante do fogo,
discutindo o rumo que deveriam seguir na viagem do dia seguinte e
Shaina se preparava para dormir em sua pequena tenda, ela percebeu
algo duro no fundo da sacola de couro em que carregava seus objetos de
uso pessoal. Retirando-o, ergueu-o com curiosidade contra a bruxuleante
luz da fogueira, que penetrava pela abertura da tenda, e reconheceu-o
imediatamente. Tratava-se de um prendedor de cabelos de barro azul que
seu pai preparara para a esposa há vários anos. Ona apenas o usara em
ocasiões muito especiais. Um delicado arranjo de flores era tudo que
podia ser visto depois de colocado o prendedor — eram rosas,
margaridas, folhas finas e compridas e uma pequena vinha, que pendia
frágil e graciosa de entre o arranjo de flores. As três margaridas tinham
em seu centro minúsculos diamantes, que agora reluziam ao clarão do
fogo.

Shaina lembrou-se então das oportunidades em que, ainda garota


pequena, pedira a mamãe que lhe permitisse usar o prendedor. Ona o
colocara em seus cabelos e tomara todas as precauções para que ela não
balançasse a cabeça, deixando-o ali apenas por breves momentos. Ela
compreendera, naqueles idos dias, que o prendedor simbolizava o mais
agridoce amor existente entre seus pais, de modo que valorizara aquele
objeto com a mesma intensidade com que o fizera sua própria mãe.

Agora, enquanto o segurava diante da fraca luz do fogo, ela sentiu um


terrível desejo de estar com aqueles que a haviam gerado. Deixou correr
os dedos por sobre o delicado acabamento, imaginando a clara cabeça de
papai encurvada sobre o objeto, dedicando-lhe o mais intenso e carinhoso
acabamento, tão-somente para ver Ona regozijar-se depois com o
presente. E sob uma torrente de lágrimas, ela pôde ver também sua mãe
acomodando o acariciado tesouro na sacola da filha, entregando-lhe o
melhor que ela possuía, a fim de que Shaina pudesse compreender — não
importava quão longe estivesse -— a medida de seu amor materno!
Envolvendo-o cuidadosamente na mais macia de suas roupas íntimas, foi
dormir segurando- o na mão, estranhamente confortada.

Todas as manhãs eles comiam grãos cozidos ao vapor, sobre as brasas


do fogo durante toda a noite; ajoelhavam-se depois sobre o úmido e
aromático piso da floresta a fim de orar, e então prosseguiam, confiando
67
em Deus e no mapa esboçado na mente de Adriel. Atravessaram grandes
rios, viajaram longos dias através de florestas tão escuras e densas, que
eram envolvidos por intenso e opressivo silêncio, tão-somente para verem
repentinamente romper-se o deserto e aparecer diante de Seus olhos um
recanto montanhoso cheio de luz solar e flores e animais muito mansos,
que saltavam em torno dos viajantes como se fossem cordeiros de
estimação.

— Assim deve ter sido o Éden — disse Shaina reverentemente no


momento em que descarregavam os cavalos e deixavam-nos pastar em
liberdade.

Quando Shaina havia colocado sobre a improvisada mesa alguns pães


endurecidos e as últimas passas, Ira retornou com um grande galho
repleto de bagas de cor carmesim.

— Muito bem, uma oferta é o que teremos hoje — sorriu Adriel,


enquanto arrancava do galho nozes pecãs tão grandes quanto um ovo de
galinha e estendia os carnudos frutos ao lado das passas. — E a ocasião é
sem dúvida muito apropriada, pois tenho um esplêndido anúncio para
vocês, digno de semelhante comemoração. Enquanto eu subia o curso do
rio à procura de algum alimento, descobri que justamente depois daquela
curva esta pastagem conduz a outra, na qual se encontra a entrada no
vale de Enoque. Conforme vocês podem perceber, daqui não se vê a
menor indicação da entrada. Alguém poderia viajar por estas paragens e
nem mesmo Suspeitar da existência do vale. Se meus cálculos estiverem
corretos, isto significa que chegamos. Portanto, descansemos e comamos.
Banhar-nos-emos e lavaremos nossas roupas que a viagem sujou, e
amanhã nos apresentaremos aos santos habitantes do vale de Enoque.

— Sinto-me um pouco temerosa — admitiu Shaina, relutantemente. —


Talvez eu não seja suficientemente santa.

— Tampouco eu — disse Adriel com calma. — Oremos para que não


venhamos a trazer discórdia a este lugar que tem sido um refúgio para os
filhos de Deus.

Os três ajoelharam no gramado coberto de flores e agradeceram a Deus


pela segurança em que transcorrera a viagem, suplicando ainda por
purificação espiritual ao se unirem a Enoque e seus conversos. Em torno
68
deles um bando de passarinhos, brilhantes como pedras preciosas,
entoavam melodias que a Shaina mais pareceram humanas, tão precisas e
claras eram.

Na manhã seguinte eles prosseguiram seu caminho através da leve


subida à qual os conduzia a campina na qual haviam dormido,
acompanhando o rio em direção a outro campo de pastagens, flores e
graciosos animais selvagens que se encontravam além do primeiro. Ira e
Shaina, na tentativa de descobrir o vale do qual Adriel falara, olharam em
direção ao líder, com ares de interrogação.

Adriel sorriu diante da confusão dos outros dois.

— Enoque planejou bem e sabiamente, meus amigos. Papai nos contou


que, ao sairmos da floresta e penetrarmos nas duas campinas, ligadas
entre si por uma indômita correnteza do rio, teríamos chegado. Ele disse
que na segunda campina, que não ofereceria qualquer indicação aparente
da entrada do vale, haveria um pé de parreira silvestre crescendo sobre
um pé de cerejeira silvestre. A partir deste ponto a pessoa deverá abrir
caminho por entre um grupo de arbustos, chegando então a uma estreita
abertura no penhasco. Ontem descobri a parreira e a cerejeira silvestres,
assim como a fenda no penhasco, mas não quis prosseguir, desejando
compartilhar totalmente o momento da descoberta com vocês, que a meu
lado suportaram as vicissitudes da viagem. — Ele hesitou. — Também
necessito do conforto da presença de vocês. Espero que tenhamos uma
boa acolhida.

Eles caminharam sem proferir palavras por debaixo da árvore em forma


de grinalda, a qual, com sua imensa profusão de vinhas, escondia qualquer
indicação de que ali existisse um caminho. Adriel desmontou e afastou um
pouco os arbustos; através da passagem improvisada, Shaina e Ira
cavalgaram cuidadosamente, procurando não deixar qualquer sinal de
presença por ali. Um pouco à esquerda, num penhasco rochoso, apareceu
uma passagem tão estreita que Shaina se viu obrigada a falar
energicamente com Hadesh a fim de convencer o animal a prosseguir.
Uma vez do outro lado, os três viram-se diante de um cenário de
indescritível beleza. Não era parecido com o vale de Havilá, pensou
Shaina, lembrando-se daquele pedaço de terra aberto e fértil. Aqui
parecia um paraíso fechado, um pequeno mundo com vida própria. As
69
poucas habitações que pontilhavam o círculo de montanhas
identificavam-se de modo tão perfeito com o cenário mais amplo, que a
pessoa necessitava prestar cuidados a atenção para poder comprovar a
presença das moradias. A água jorrava e espumejava sobre a encosta de
uma montanha, espalhando a luz do Sol enquanto se lançava sobre rochas
e pedras, indo formar, finalmente, um estreito regato que terminava num
espelhado lago no piso do vale. Cereais e verduras cresciam em pequenos
terraços ao longo das encostas montanhosas, enquanto cavalos, gado e
ovelhas pastavam placidamente ao sol matutino.

— Você se desempenhou muito bem, Adriel. Muitas vezes me perguntei


se seríamos capazes de encontrar um local tão distante e escondido. — A
admiração aquecia a voz de Ira enquanto ele colocava a mão sobre o
ombro do homem mais jovem.

— Certamente Deus foi o nosso Guia — respondeu Adriel.

Dirigiram-se hesitantemente em direção a uma construção de bastante


idade, maior que as demais, situada num suave outeiro, imaginando
tratar-se da casa de Enoque. Uma mulher alta, de cabelos escuros, volveu-
se em direção aos três, surpresa diante de seu aparecimento. Ela moía
grãos sobre uma pedra achatada diante da porta de sua habitação.

— Somos seguidores do Deus verdadeiro. Não tenha medo — disse


Adriel rápida e gentilmente ao perceber o temor estampado nos doces
olhos castanhos da senhora.

Ela ergueu-se e caminhou com passos firmes, sorrindo e dizendo:

— Sou Rimona, esposa de Enoque. Bem-vindos. Perdoem-me por eu


não os haver saudado calorosamente. Aqui vivemos sob alguma
apreensão, pois sabemos que o maligno sempre procurará destruir-nos.

— Gostaríamos de estabelecer aqui nosso lar. Ser-nos-ia possível


conversar com seu marido? — Adriel abordou diretamente o ponto.

Bem a seu estilo, pensou Shaina, sorrindo intimamente.

— Ele virá da horta dentro de pouco tempo para tomar a refeição do


meio-dia. Por bondade, deixem os cavalos pastando e procurem um lugar
à sombra, enquanto eu preparo algo para lhes saciar a sede.
70
A mulher correu para dentro de casa e em breve retornou com um
cântaro de suco, do qual lhes serviu. Sorriu timidamente em direção a
Shaina, enquanto o líquido escuro borbulhava na taça da moça.

— Talvez, enquanto seu esposo estiver trabaIhando nos campos, você


trará seus grãos para moê-los aqui, e então poderemos conversar sobre a
sua viagem.

Shaina enrubesceu fortemente, aquela cor rosa escuro que lhe tingiu a
pele dourada das bochechas.

— Não sou esposa de Adriel, e sim sua sobrinha. Ele é o irmão mais
moço de meu pai. Viajamos ao longo de muitos quilômetros, e sem dúvida
será uma alegria conversar com outra mulher.

— Ela pôde perceber o olhar divertido do tio em sua direção, de modo


que corou novamente.

Quando Enoque chegou, assentaram-se em torno de uma mesa diante


da casa, de onde podiam contemplar a amplitude do vale. Ali, enquanto se
serviam dos alimentos simples colocados diante deles, Adriel contou a
história da destruição de Havilá, sua estada com Natã e a subseqüente
viagem. A face forte e angulosa do patriarca denotava crescente
perturbação, enquanto Adriel relatava a história, e quando esta terminou,
ele disse:

— Sepp e Abigail encontravam-se entre os mais valorosos do povo de


Deus, e Havilá sempre foi uma fortaleza do Senhor. Lamento muito o seu
desaparecimento. Vocês fizeram muito bem ao virem até aqui. Até hoje
não temos sido molestados. Talvez os malvados ainda não nos tenham
descoberto. Ou, talvez, estejam apenas esperando o que lhes parece a
oportunidade adequada. Creio que isto pouca diferença faz, exceto que
nos permite mais um pouco de tempo para advertirmos os que poderiam
atender nosso clamor.

Mas vamos falar agora de coisas mais alegres — Enoque ergueu a


cabeça e sorriu. O calor daquele sorriso fez tanto bem a Shaina quanto o
conforto que ela sentia, quando menina, nos braços da mãe. Foi como se
ele interrompesse a sombria tristeza que ela sentira durante os longos

71
quilômetros de viagem através da floresta e acendesse uma chama de
esperança em seu coração.

— Shaina deixou seu noivo, seus pais e sua da tranqüila e próspera a


fim de tornar-se uma filha de Deus. Aceitou todas as adversidades com
paciência e coragem. Sinto genuíno orgulho por ser seu parente — disse
Adriel, olhando em direção à moça.

Por um momento Shaina sentiu que iria chorar em virtude da bondade


refletida nas palavras de Adriel, mas ao olhar para Enoque, foi capaz de
controlar suas emoções.

— Muito obrigada por receber-nos neste lugar de refúgio por você


preparado. Sou uma das mais inexperientes filhas do grande Deus do Céu,
mas desejo ser fiel e andar nos passos de minha avó Abigail.

Enoque dirigiu-lhe um olhar sóbrio e perscrutador.

— Muitos aqui chegaram com o mesmo desejo, filha. Somente uns


poucos restam. Para você, que foi criada lá no mundo exterior, é ainda
mais difícil. Queira Deus ajudá-la.

Toda a ardorosa expectativa esvaziou-se e uma desolação pior que a


morte inundou-lhe o coração. Como se Enoque houvesse lido seu
pensamento, o bondoso patriarca acrescentou, em tom amável:

— Orarei muito por você.

Ele permaneceu sentado em silêncio, pensativo, enquanto Rimona


retirava da mesa as sobras da refeição. Finalmente, indicando em direção
a uma saliência de rocha que se projetava por detrás e acima deles,
volveu-se para Adriel.

— Existe uma caverna acima daquela saliência, a partir da qual se pode


ver todo o vale. Pelo fato de sua frente estar voltada para o sul, ela é
quente e iluminada — um lugar muito agradável. Ela se encontra vaga há
poucos dias, pois o homem que nela morava se aborreceu com a vida
simples que levamos aqui. Eu sugeriria que a caverna poderá ser um lar
confortável para Shaina.

— Agora seus olhos se desviaram para Ira — Percebi que você nutre
terno carinho pela jovem. Arme sua tenda ao lado da habitação dela, e em
72
breve você poderá construir algo bem sólido. Confio-a a seus cuidados.
Adriel, filho de Sepp, você fará seu lar entre meus filhos. Poderei utilizar
um homem que tem coragem suficiente para lançar-se ao deserto, tendo
apenas a Deus como seu guia. Talvez você viaje comigo vez por outra
quando eu for pregar nas cidades dos filhos dos homens.

— Sentir-me-ei muito honrado. — Os tristes olhos de Adriel


responderam ao convite. — A vida pouco significa agora para mim, exceto
quanto ao amor que tenho pelo Prometido. Nunca mais verei os meus
queridos.

— Oh, meu irmão, você suportou esta desesperançada tristeza durante


todos esses quilômetros? — Enoque observou a desfigurada face de Adriel
com profunda piedade. — Pois então deixe- me contar-lhe a respeito de
boas novas. O Prometido virá não apenas uma vez, e sim duas. Na
primeira vez Ele virá para morrer por nós, ao passo que na segunda Ele
aparecerá em glória como poderoso Senhor, a fim de ressuscitar os
mortos e conduzir Seu povo ao lar. Os seus amados dormem em paz, tal
como ocorrerá com você e comigo, se formos fiéis, até que Sua bendita
voz nos faça sair de nossas sepulturas.

— Como você aprendeu tudo isso? — perguntou Ira calmamente. —


Esta mensagem é totalmente nova para nós.

Humilde e reverentemente Enoque explicou, e sua forte voz revelava a


mesma segurança que ele demonstrara aquele dia na cidade, junto ao
poço.

— Ele me mostrou. Ele me revelou a grande e radiante glória de Sua


segunda vinda. Muitas vezes também me senti perturbado ao pensar nos
mortos, de modo que supliquei a Deus que me concedesse respostas. Bem
cedo, certo dia, enquanto eu me debatia com esses temores, Ele me
revelou a Sua solução para o pecado, e tive imediata certeza de que ela é
justa, amorável e sábia. Com toda segurança podemos confiar nEle.
Embora não possa tolerar o mal, Ele nos ama e não nos deixará entregues
aos resultados últimos e inevitáveis da rebelião humana e do mal. Através
do Prometido, Ele proverá um escape a todos que o desejarem. É difícil de
crer, mas tão forte é a força magnética do mal, que apenas uns poucos
desejarão ser objeto de resgate; para estes poucos, entretanto, o gozo
73
será inexcedível, pois aquilo que Ele oferece satisfaz as mais arraigadas
necessidades de nosso ser, e com tal intensidade que nem mesmo os
prazeres do pecado poderiam jamais produzir. Oh, se eu pudesse tornar
isto claro àqueles que se estão condenando à destruição nas cidades!
Parece que eles apenas vêem meus lábios se movendo enquanto falo, mas
nada ouvem. Por vezes, enquanto viajo de um a outro lugar, fico me
perguntando se porventura eu estou fora de meu bom juízo, já que a
minha mensagem cai em seus ouvidos como se fosse algo totalmente
inútil. Depois, porém, quando viajo de volta para o lar e atravesso as
densas florestas, sinto a Sua presença, e por vezes os Seus mensageiros
viajam a meu lado a fim de instruir-me e me animar. Reconheço então que
as palavras da verdade sempre parecerão tolice para aqueles que
decidiram separar-se dEle. Sinto tristeza por meus companheiros
humanos e decido retornar mais e mais vezes, à procura de corações
humildes e dispostos a serem ensinados.

— Você é um homem corajoso. Sua missão é muito perigosa.

Shaina percebeu o respeito na voz de Ira.

— Não é tão terrível, meu amigo. Fosse eu rico, eles poderiam cobiçar
minhas posses, mas eu levo apenas uma mensagem, que à percepção
deles nem é perigosa, nem desejável. Na melhor das hipóteses, consigo
apenas um converso ocasional, que ainda assim muitas vezes retorna mais
tarde ao mundo. Este vale ainda se encontra muito distante da civilização
para que represente uma tentação a esta, mas chegará o dia em que a
humanidade, multiplicada, fará com que todos nós venhamos a temer por
nossa vida.

Separaram-se então, com Enoque retornando a suas plantações e os


viajantes procurando acomodar-se em seus novos lares. Shaina examinou
sua caverna e pensou no horror que sua mãe sentiria caso pudesse ver o
destino último da filha. Ainda assim, a jovem reconheceu-o como
desejável e acolhedor — um lugar para si própria depois de semanas de
viagem, sob os inconvenientes da falta de privacidade. Ela quebrou um
longo galho de sempre-viva e com ele removeu o lixo que ali deixara o
ocupante anterior. Rimona estendeu-lhe braçadas de capim seco das
campinas, o qual ela espalhou sobre o piso. Num dos cantos ela estendeu

74
um luxuoso tapete de peles que seu pai amarrara sobre Hadesh na triste
manhã da partida. Sobre este ela dormiria.

A caverna fazia uma curva de volta à encosta da montanha, de modo


que ela ficava em total privacidade em seu aposento de dormir; começou
agora a sentir a satisfação de uma dona de casa a medida que arrumava
seus pertences. Numa das pequenas prateleiras naturais de pedra que se
projetavam da parede da caverna, ela depositou o prendedor de barro
azul adornado de delicadas flores. Sua mãe lhe prometera, certa vez, que
ela usaria o prendedor no dia de seu casamento.

Pensamentos a respeito de Ben inundaram-lhe a mente, e a caverna e


seus arredores subitamente pareceram tão frios e escuros quanto todas as
florestas não esboçadas nos mapas da Terra. O vale era para ela uma
armadilha, da qual jamais conseguiria sair sozinha. Ben estava perdido
para sempre. Um forte desejo de lançar-se sobre o tapete que
representava sua cama e ali deixar-se esvair em lágrimas parecia a ponto
de esmagá-la. Lágrimas escorriam copiosamente por suas faces, enquanto
ela se dirigia para uma abertura existente na porção posterior da caverna.
Seguindo um estreito túnel que em certo ponto fazia uma curva bem
angulada, veio ela a encontrar um pequeno trecho gramado e cheio de
sol, cercado por muros de pedra por todos os lados. Por entre as lágrimas,
Shaina avaliou as possibilidades que estavam diante de si.
Instantaneamente descobriu por que razão Enoque lhe havia designado a
caverna. Aqui, nesse lugar tão escondido, ela poderia encontrar o Deus de
Adão e Abigail. Este Deus que lhe custara tudo quanto ela possuía. Caindo
sobre os joelhos, ela permitiu que o sol lhe aquecesse o corpo cansado e
pesaroso. Mais tarde ela falaria com Deus. Agora desejava simplesmente
ficar quieta e sentir-se bem, permitindo que sua postura Lhe assegurasse
que seu momento de pesar havia passado, que ela Lhe pertenceria,
custasse o que custasse. Contudo, no momento em que se ajoelhou,
extraordinária paz encheu-lhe todo o ser, e ela experimentou um amor
que em muito ultrapassava o mais intenso amor humano. Era o divino
amor, que sempre parecia deixar algo mais a ser explorado, mas que ao
mesmo tempo satisfazia plenamente. Um amor que nutria e jamais
destruía. Pôde então perceber que o amor se achava presente no vale de
modo marcante. Em vez de ter-se tornado prisioneira, de fato encontrara
a liberdade. O amor ensinou-lhe tudo isto naquele pequeno e quieto
75
recanto. Finalmente ela adormeceu, enrolada no capim macio e morno,
até que o sol desceu no poente, o que a fez acordar com frio.

Mais tarde ela trouxe Ira para que este visse a sua descoberta; o velho e
fiel companheiro lhe disse:

— É aqui que plantaremos os narcisos silvestres que Adão nos deu.

— Você os trouxe? — exclamou Shaina, olhos arregalados e descrentes.

Ele acenou positivamente com a cabeça, contente com a surpresa que


ela tivera.

— Evidentemente, além de muitas outras sementes e bulbos.


Tornaremos este vale algo parecido com o jardim do Senhor.

A tardinha, enquanto Shaina e Ira se encontravam assentados na


entrada da caverna, conversando, Adriel subiu a encosta da montanha e
juntou-se a eles.

— Todos foram muito cordiais e me deram as boas-vindas, mas ao cair


da escuridão, necessito de meus velhos amigos — declarou ele,
assentando- se com as pernas cruzadas, ao lado de Ira.

O luar revelou algo brilhante em suas mãos, e Shaina gracejou um


pouquinho:

— Qual o presente que você nos traz logo nesta primeira visita?

— É apenas a minha flauta, e o presente que lhes trago é somente o


humilde dom da música.

— Porventura todos em Havilá tocam algum instrumento? — perguntou


Shaina

- Exatamente. Papai foi um verdadeiro músico, de modo que insistiu em


que todos os seus filhos aprendessem ao menos as noções básicas. Talvez
Natã e eu tenhamos chegado a apreciar a música mais do que os outros.
Sepp ensinou a Ben e a mim a tocarmos flauta durante as longas horas em
que guardávamos os rebanhos.

76
Pela primeira vez Shaina ouviu-o falar de queridos que haviam ficado
para trás, de modo que ela se sentiu algo confortada ao ouvir uma vez
mais aqueles nomes familiares.

No momento em que Adriel levou a flauta aos lábios, Shaina não se


sentiu surpresa ao ouvir as lamentosas notas da canção de Eva, pois ela
era tambem a canção de Havilá. Sua anelante mensagem espalhou-se por
sobre o vale que escurecia, qual choro solitário, e na avaliação de Shaina o
cântico representava a destilada tristeza de toda a humanidade que
aguardava a restauração provida pelo Prometido.

***

Durante os dias seguintes os três se envolveram com as rotinas do vale.


Plantaram uma grande horta e a cultivaram cuidadosamente. Quando não
se encontravam na horta, participavam dos trabalhos nos campos
comunitários de cereais e ao mesmo tempo iam fazendo preparativos
para suas próprias casas. Adriel construiu uma habitação de madeira, mas
Ira preferiu erguer um abrigo de pedra que se identificava tão bem com a
encosta da montanha, que mais parecia já haver estado ali desde sempre.
Internamente, preparou ele dois quartos, pois sabia que a caverna viria a
tornar-se fria, e seu desejo era que, ao chegar a época adequada, Shaina
vivesse de modo mais confortável dentro de casa. Na porção posterior ele
ergueu uma lareira para obter aquecimento no tempo frio, e os demais
habitantes do vale apareceram e subiram a encosta da montanha a fim de
verem a notável arquitetura. Aos poucos Shaina chegou a conhecer todos
eles.

O velho Amós, que brincara com Sete quando menino; a bela Mahira e
seu esposo, que haviam ouvido Enoque enquanto pregava nas ruas de
uma cidade, e haviam deixado tudo para trás; os filhos e filhas de Enoque
e Rimona — alguns tementes a Deus e amáveis, como Matusalém, outros
rebeldes e desassossegados. Alguns já eram casados, outros permaneciam
solteiros e amargurados, pois o vale oferecia poucas chances em termos
de cônjuges. Não era o Éden. Pecado e tristeza mesclavam-se com
verdadeira santidade. Somente o justo Enoque seria capaz de mantê-los
unidos através de sua vida pura e seu amorável conselho. Com certa
freqüência ele deixava o acampamento durante bom número de dias, tão-
somente para retornar com a face brilhante e tal senso de paz e regozijo
77
dela emanando, que os demais mal conseguiam olhar para ele. Todos
sabiam imediatamente que ele havia roçado nas próprias vestes de Deus,
e uma sagrada reverência perdurava no vale durante dias, como se ele
houvesse trazido a cada pessoa um presente de santidade. Shaina
admirava no patriarca esse relacionamento com a divindade e procurava,
ela própria, aproximar-se mais e mais de Deus. Em seu lugar de oração,
atrás da caverna, ela buscava ardentemente ao Senhor, e Ele muito Se
aproximava a fim de tocar a fiel descendente de Natã e Ona.

Quando, semanas mais tarde, Adriel sentou com Ira e Shaina diante do
esplêndido fogo da lareira, na confortável casa de pedras de Ira, os dois
últimos achavam-se totalmente despreparados para o anúncio do
primeiro:

— Amanhã partirei com Enoque para uma viagem às cidades da


planície. Ele deixará Matusalém aqui, como líder em seu lugar, de modo
que me escolheu para acompanhá-lo. Embora eu me sinta honrado, tenho
também um pouco de medo. Cresci num ritmo de vida semelhante ao
deste vale, à sua santa paz e isolamento. Deste modo, não estou muito
seguro de que venha a adaptar-me ao bombardeio do mal, que tanto se
alastra naqueles ajuntamentos humanos. E possível que eu veja Natã,
Shaina, e assim possa assegurar-lhes que você se encontra em segurança e
contente.

Conversaram até bem tarde aquela noite, enquanto ela procurava


imprimir na mente do tio as mensagens de amor que almejava ele fizesse
chegar aos parentes. Antes que ele retornasse a sua casa, ajoelharam-se
sobre a saliência de rocha, bem acima do vale, e oraram em favor da
segurança de Adriel e de Enoque, e por uma pureza de alma que os
preparasse para a vinda do Prometido.

Na manhã seguinte, experimentando um sentimento de inesperada


solidão, ela observou enquanto os dois viajantes desapareceram pela
fenda no penhasco. Enoque muitas vezes se encontrava fora, mas o vale
sem Adriel era uma nova experiência, e ela retornou à caverna sentindo
que as semanas à frente seriam bastante longas.

Ira, percebendo os sentimentos da moça, chamou de suas escadas:

78
- Shaina, tive uma idéia. — Ela caminhou por sobre o capim ainda
umedecido pelo orvalho matutino, em direção à casa de pedra do amigo,
tentando adivinhar o que este possivelmente teria inventado a fim de
distraí-la durante a ausência de Adriel. Ele tinha em mãos a velha sacola
de couro, imediatamente reconhecida por ela como sendo aquela em que
eram carregados, desde sua infância, os bulbos de flores.

— Chegou a hora de plantarmos um pouco. Os bulbos deverão estar na


terra durante a estação fria caso queiramos que eles floresçam na
primavera, e também existem sementes que precisam ser plantadas agora
se quisermos que as plantas nasçam na época aprazada. Nossa casa já foi
construída, nossas hortas colhidas. Agora temos que pensar no
embelezamento deste vale.

— Talvez a vida seja aqui demasiado séria para nós, e não deveríamos
preocupar-nos com frivolidades, tais como flores — respondeu ela, ainda
desalentada.

— Bobagem. O Senhor fez o Éden esplêndido, mesmo sabendo que em


breve Adão Lhe seria desleal e se rebelaria. Abigail plantou toda a encosta
de uma montanha em honra ao Senhor, e mesmo você sempre teve um
cantinho especial, primorosamente preparado, no qual adorava a Deus;
portanto, eu não mais gostaria de ouvir você falar estas impensadas
palavras quanto a “frivolidades”. Em primeiro lugar plantaremos os
narcisos silvestres do Éden em seu recanto escondido, e depois
caminharemos por toda a extensão do vale e prepararemos um plano de
longo alcance. Estive caminhando um pouco na direção do norte, onde
existem recantos, suspeito eu, em que os pés humanos ainda não pisaram.
Ali encontrei arbustos e flores que nos são desconhecidos. Amanhã você
precisa acompanhar-me, e começaremos a trazer alguns arbustos por vez,
assim como sementes daquelas novas e estranhas flores. Desde já sinto-
me animado e curioso — concluiu o velho jardineiro rindo gostosamente,
enquanto seus esmaecidos olhos azuis recuperavam um pouco do antigo
brilho.

— E seu entusiasmo é contagioso, tanto quanto seus planos — sorriu


Shaina. — Quando Adriel retornar, o vale estará banhado em cores, e meu
presente a Enoque será um ramalhete de narcisos do vale do Éden. Ele os
apreciará, você não acha?
79
Desta forma os dois, durante os meses frios, juntos exploraram as
redondezas, escavaram e plantaram. Removeram galhos quebrados,
repararam cercas de madeira, plantaram bulbos aleatoriamente em
terraços nas encostas ensolaradas das montanhas, construíram curvas de
nível com pedras e à noite dormiam pesadamente, já que seu corpo
sempre se encontrava saudavelmente cansado após os dias de intenso
labor. Lentamente os habitantes do vale começaram a nutrir interesse no
assunto, deixando de lado sua pontinha de ressentimento e passando a
colaborar com a empreitada.

Por vezes, durante as tardes, Shaina dirigia-se à casa de Rimona.


Chegara ao ponto de amar esta gentil mulher que se ocupava tão
quietamente dos cuidados do lar de Enoque, trazendo sempre os cabelos
presos num coque, na parte posterior da cabeça. Uns poucos fios sempre
escapavam e pendiam, encaracolados, sobre sua face oval cor de marfim.
Seus olhos escuros eram redondos e expressivos, seu corpo, delgado e
flexível. Ela jamais parecia afobada, ainda que seus movimentos fossem
rápidos e seguros.

— Você deve sentir-se muito sozinha quando Enoque parte para essas
viagens — falou Shaina com simpatia, enquanto descascava nozes diante
do fogo crepitante.

— No começo, quando as crianças eram pequenas, eu não apenas me


sentia sozinha, como ainda temerosa. Ficávamos sozinhos aqui no vale,
exceto pela presença de Amós, que chegou logo depois de nós. Foi
naquelas ocasiões que realmente aprendi a orar. Se eu não houvesse
experimentado o temor, talvez prosseguisse caminhando sempre à
sombra da experiência de Enoque; entretanto, aqueles dias negros e
noites quietas, depois que as crianças haviam adormecido, levaram-me a
buscar a Deus de joelhos junto ao fogo, e ali eu conversava com Ele até
que Sua presença me parecesse tão real quanto a de meu próprio pai
havia sido. Gradualmente vim a compreender que, aos Seus cuidados, eu
me encontrava sob a mais absoluta segurança. Não que jamais
pudéssemos enfrentar alguma perturbação; significava, isto sim, que
todos os pesares que tivéssemos de enfrentar, teriam antes passado sob
Seu escrutínio. Você consegue captar a diferença?

80
— Creio que sim - respondeu a jovem mulher — embora nunca tenha
me detido a pensar muito sobre isto. Você está querendo dizer que por
vezes temos de enfrentar problemas a fim de crescermos e que Deus
assim o permite?

— Não se trata de uma punição, Shaina. Muitas vezes as pessoas se


confundem com isto. Entretanto, se aceitarmos as provações com plena
confiança, Deus pode usá-las no sentido de nos ensinar mais a Seu próprio
respeito. Em alguma ocasião passada cheguei a pensar que a total
dedicação de Enoque ao serviço de Deus fosse um amargo fardo, mas
depois de parar de lutar contra tal pensamento, percebi que os meses em
que passava sozinha aqui no vale, eram justamente aqueles em que eu
mais me aproximava de Yahweh. A partir de então, em vez de separar-
nos, as viagens dele mais nos uniam, pois ele encontrara em mim alguém
capaz de compreender sua missão e de permitir-lhe a liberdade de
prosseguir servindo. Sempre que retorna, ele me conta a respeito das
alegrias e tristezas de suas viagens, e eu lhe falo sobre novas
profundidades de santo relacionamento. Por vezes ele me envolve pelos
ombros e diz: “Oh, Mona, que mulher é você! Com Deus como meu amigo
e você como esposa, sou o mais abençoado dentre os homens!”

Pondo-se de pé e esticando o corpo Shaina sacudiu para dentro do fogo


as cascas de nozes que tinha sobre o colo.

— Você se sente sozinha? — perguntou a mulher mais idosa assentada


na cadeira baixa, enquanto erguia os olhos em direção à alta jovem, de pé
a seu lado.

— Não exatamente sozinha — sorriu Shaina.

— É como se eu sempre estivesse esperando por algo. Mas também


aprendi a encontrar regozijo no Senhor, e geralmente sinto-me contente.
Procuro não ficar pensando em meu antigo estilo de vida. Dia a dia tenho
compreendido melhor que Ben jamais seria capaz de trazer-me felicidade.

— Temos filhos — insinuou Rimona — e eles pensam que você


efetivamente se encontra muito sozinha.

Shaina sorriu de modo malicioso diante do esforço casamenteiro de


Rimona.
81
— Querida amiga, quando Deus encontrar um companheiro para mim,
por certo me alertará. Desta vez esperarei por Seu sinal. Talvez isso nem
esteja em Seus planos. Talvez eu deva viver meus dias aqui em quietude,
fazendo o serviço que estiver a meu alcance.

Disseram boa noite uma à outra e Shaina caminhou alegremente sob o


revigorante ar noturno, ao longo do fundo do vale, e logo depois subia
abruptamente as encostas da montanha rumo à casa de pedra, incrustada
no pórtico rochoso.

***

Meses mais tarde, quando as cerejeiras floresciam nas encostas


montanhosas e tulipas e junquilhos tombavam ao longo de muros de
pedras, Enoque, Adriel e um estranho cavalgaram através da fenda e
desceram em direção ao vale. Shaina, que nesse momento estendia seu
tapete de couro sobre o pórtico de pedra, foi a primeira a vê-los. Adriel
ergueu a mão à moda de saudação, e somente então ela se deu conta de
quão frio havia sido o vale sem a sua robusta e segura presença. Quando
ela e Ira lograram descer ao fundo do vale, todos os demais habitantes já
se achavam ao lado dos cavaleiros, numa fala inintelegível de boas-vindas.
Enoque levantou Rimona para junto de si, sobre o cavalo, e sua face
brilhou de contentamento. Seus netos correram e se atropelaram à volta,
e seus filhos e filhas formaram um semicírculo, à moda de proteção, à sua
frente.

Adriel cavalgava quietarnente logo atrás, tendo Ira de um lado e Shaina


do outro. Shaina pensou na oportunidade em que inocentemente
segurara as mãos aflitas do tio; agora, porém, sentia certa timidez, que a
impedira de saudá-lo efusivamente. Entretanto, lera a felicidade em seus
olhos e sabia que ele se sentia muito contente por estar de volta.

Quando a algazarra decresceu um pouco, Enoque apresentou ao grupo


Tobias, seu único fruto naquela viagem. O homem parecia aflito e
terrivelmente sozinho. Shaina pensou em quão elevado é o preço para
alguém tornar-se filho de Deus, e determinou-se a convidá-lo para uma
refeição, ao lado de Ira, tão logo fosse possível.

82
— Nosso irmão deixou para trás sua cornpanheira e filhos, seu lar e as
propriedades — anunciou Enoque; um murmúrio de simpatia ergueu-se
de entre o grupo.

Imediatamente Amós ofereceu ao recém-che gado um quarto onde


pudesse dormir até que fosse capaz de construir sua própria habitação.
Tobias sorriu diante da calorosa recepção, mas o sorriso foi mais uma
espécie de trejeito expresso pela amargura das linhas de sua face.

— Oraremos para que o Senhor alivie o sofrimento de seu coração,


amigo — falou Shaina suavemente. — Todos nós conhecemos a dor.

O homem dirigiu-lhe um olhar agradecido, ma nada falou. Shaina


volveu-se agora para seu parente.

— Venha, Adriel, você precisa comer conosco esta noite e contar-nos


sobre a viagem.

— Deixe-me primeiro tomar banho no regato e vestir roupas limpas.


Tenho uma história para contar-lhe, Shaina. Uma solene história, mas ela
pode esperar até que tenhamos tomado a refeição.

Apreensiva, ela perguntou:

— Você viu meus pais? Está tudo bem com eles?

— Mais tarde falarei com você sobre isto — respondeu ele com voz
firme. Mas durante todo o tempo em que cozinhava nabos recém-
arrancados e cortava os cascudos pães de centeio que Rimona lhe
ensinara a preparar, a apreensão tão-somente foi crescendo no íntimo de
sua alma.

Enquanto comiam, Adriel admirou os vasos de flores que pendiam de


um canto da caverna. Maravilhou-se com a visão colorida que contemplou
nas encostas da montanha e disse que aquilo era como um remédio para
seus olhos, os quais nada hajam visto durante semanas senão a sombria
floresta. Essa demonstração de apreço fez compensar todo o trabalho, e
Ira e Shaina sentiram-se felizes diante das prazenteiras palavras de Adriel.
Dentro da moça, contudo, o temor foi crescendo até que mal lhe foi
possível engolir o alimento.

83
Quando haviam terminado a refeição e a luz do Sol alcançava apenas os
picos dos penhascos mais altos na extremidade distante do vale, Adriel
recostou-se contra a parede da caverna e começou sua história. Acima de
sua cabeça um beija-flor deslocava-se metodicamente de flor em flor,
daquelas que se achavam nos vasos dependurados.

— Nossa viagem, em certo momento, levou-nos cerca de um dia de


distância de Havilá. Supliquei a Enoque que reservássemos um pouco mais
de tempo e fôssemos até lá. Ele não fez objeções à maior demora, mas
considerou que para mim seria perigoso ali aparecer, pois eu seria
facilmente identificado como um dos homens de Havilá, de modo que me
cortariam a cabeça sem pensar duas vezes. Entretanto, convenci-o de que
poderíamos envolver nossas cabeças em cachecóis e fazer-nos passar por
mercadores provenientes de alguma área distante. Tínhamos conosco
amplo suprimento dessas grandes nozes-pecãs; desta forma, contrariando
o bom juízo de Enoque, entramos em Havilá na qualidade de vendedores
de nozes. Você seria incapaz de acreditar, Shaina, em quanto o vale se
modificou. Aquilo que no passado foram sossegados campos de
pastagens, agora é uma cidade que fervilha em pecado. Coisa alguma
permanece como dantes, exceto a florida encosta montanhosa preparada
por mamãe. Eles a conservaram como uma espécie de relíquia. De fato,
essa encosta florida tornou-se objeto de nossa atenção tao logo
chegamos. Pareceu-nos que metade da cidade se agrupara ali — uma
multidão rouquenha que se acotovelava junto ao grande ídolo que eles
erigiram entre as flores.

Por que tem ele de ficar indo e vindo em relação a Havilá? pensou
Shaina impacientemente. Não sabe ele que meu coração está sedento por
notícias a respeito de meus pais? Tratou de conter- se, porém; podia ver
que Ira mergulhara totalmente na história.

— Ninguém prestou a mínima atenção em nós— prosseguiu Adriel —


tão ocupados estavam todos com dois homens que, sob pontas de lanças,
se achavam junto ao ídolo. Algo na aparência dos dois, ainda que
estivessem de costas para nós, revelava um caráter familiar, e sobreveio-
me profundo mal-estar quando constatei que se tratava de Natã e Ben.
Não houvesse Enoque segurado meu braço com um forte aperto, eu teria
corrido em direção a eles, embora nada me fosse possível fazer diante
84
daquele mar de lanças. “Eles são meus parentes”, cochichei
desesperadamente a Enoque. “Temos que fazer algo.”

“Nada há que possamos fazer em favor deles — replicou ele


calmamente — exceto orar para que tenham a coragem de enfrentar a
morte dignamente, como convém aos filhos de Deus.”

Sei que ele estava certo, mas naquele momento quase cheguei a odiá-lo
face à sua resignação. Algum líder da cidade, usando um capacete de
ouro, falou a Natã e a Ben, dizendo-lhes que eles haviam sido
reconhecidos como homens de Havilá e como tal estariam sujeitos à
morte, a menos que se mostrassem dispostos a demonstrar sua rejeição
ao Deus dos antigos habitantes daquele lugar, ajoelhando-se e adorando a
imagem que diante deles se erguia. Profunda tristeza envolveu-me, pois
eu sabia que aqueles dois filhos de Sepp trairiam todos os que já haviam
sido mortos e se prostrariam diante do resplandecente ídolo. Ben
ajoelhou-se rapidamente, curvando a cabeça em atitude de reverência.
Tentando imaginar quais seriam os pensamentos daquele meu sobrinho,
chorei diante de sua fraqueza. Adriel volveu-se então e olhou plenamente
ao rosto de Shaina — rosto este que se achava tão branco quanto as
pombas que apanhavam migaIhas de comida sobre as saliências da
caverna. Ele estendeu o braço e apanhou a mão da moça ao prosseguir.

— Natã ficou ali de pé, hesitante, até que uma lança cutucou levemente
suas costas, provocando uma mancha vermelha em suas vestes. Pude ver
os lábios de Enoque moverem-se em oração, eu também clamei a Deus
em favor da vitória de Natã. Finalmente seu pai volveu-se para a multidão,
e sua face era naquele momento tão pálida quanto a sua agora, Shaina;
mas ele afirmou em tons claros e firmes: “Não posso ajoelhar-me diante
desta coisa inútil erguida no mesmo lugar que minha mãe dedicou ao
Criador de toda a humanidade. Até aqui não O servi com todas as minhas
forças — sinto-me triste em dizê-lo — mas hoje, diante de toda esta
multidão, declaro que Ele é o único Deus vivo e verdadeiro.”

As palavras mal lhe escaparam dos lábios antes que a turba o atacasse
com pedras e socos. Nem mesmo foi necessário erguer alguma lança.
Dentro de momentos a multidão se retirava, seus pensamentos por certo
já ocupando-se de outras coisas. Ali, junto ao ídolo, seu pai ficou a esvair-
se em sangue, derramando-o sobre o solo, vestido de seu manto marrom
85
de oleiro, enquanto ainda revolvia lentamente a cabeça dourada. Enoque
e eu não nos atrevemos a falar ou a demonstrar interesse pelo evento,
mas quando nossos olhos se encontraram, sentimos profundo regozijo, a
despeito de toda a nossa tristeza.

Shaina chorou quietamente, amparada no ombro de Ira.

— Oh, Adriel — disse ela — de algum modo sorrindo por entre as


lágrimas. — Esta é uma história gloriosa. Meu coração está estraçalhado,
mas ainda assim é uma história gloriosa. Quem me dera tê-lo ouvido falar
essas palavras. Muito obrigada — multo obrigada por ter-me contado
tudo.

Juntos choraram então os três, pelo pai, pelo irmão e pelo amo
estimado. Finalmente Shaina perguntou:

— Você sabe algo sobre mamãe, Adriel? O que fará ela sem papai? Você
a viu?

— Nesta viagem não fomos em direção a sua casa, Shaina, de modo que
não vimos Ona. Entretanto, quando Ben deixou a cena do martírio de
Natã, seguimo-lo a certa distância, até estarmos bem afastados da
multidão. Ele, Natã e os servos haviam se acampado num lugar alto, bem
acima da cidade. Haviam vindo para tentar comprar barro. Enquanto Ben
subia a montanha, nós o acompanhamos e estendemos diante dele nossos
suprimentos de nozes, como se quiséssemos negociar. Então eu removi o
disfarce de minha face e ele mostrou-se ofegante, descrente. Atrevemo-
nos a falar com ele por apenas uns instantes, mas Ben prometeu-nos que
tomaria sua mãe a seus cuidados. Ele aprecia muitíssimo Ona, e creio que
será como um filho para ela, de modo que você não precisa preocupar-se
pelo bem-estar de sua mãe. Transmitimos a ele todas as suas mensagens
de amor por sua mãe, e tenho certeza de que ele a confortará.

— Muito desejaria ir vê-la — suspirou Shaina — Ela se sentirá arrasada,


em parte pelo próprio fato da morte de papai, e também porque, em seus
últimos momentos, ele preferiu Deus a ela.

Adriel apanhou a flauta e, enquanto tocava doce e tristemente, Shaina


sentiu a música sob um novo e profundo significado.

86
Capítulo 6
A Partida

Rimona tornava possível a vida no remoto vale. Conhecia tudo que nele
crescia, assim como em vários quilômetros à volta; sabia quais as raízes e
plantas silvestres que curavam as raras enfermidades. Dos sedosos pêlos
dos bodes, assim como da macia lã das ovelhas ela tecia as roupas
necessárias, como também era capaz de formar um forte e durável
recipiente de barro. A medida que os anos passavam, Shaina demonstrou-
se uma ávida aluna — mas em nenhum outro aspecto notabilizou-se tanto
quanto no trabalho com barro. Desde a infância Shaina havia brincado
com ele no assoalho da oficina de artes de seu pai, mas nunca se
preocupara em trabalhar de modo sério com o barro. Agora, enquanto
aprendia as técnicas, muitas vezes volvendo a roda sobre a qual Rimona
formava suas criações, ela veio a tornar-se fascinada e em breve pediu a
Ira que revolvesse a roda para ela enquanto se ocupava de dar formas
úteis ao barro úmido. Mas não lhe foi possível parar com utensílios
simples, planos. Seus habilidosos dedos em breve estavam criando flores e
vinhetas como decorações às peças de utilidade prática; mais tarde
chegou a elaborar pássaros e veados, e até mesmo semelhanças de figuras
humanas — homens e mulheres. Com suas flores e barro ela conseguiu
trazer muita beleza, uma vez mais, àquelas vidas espartanas, e todo o vale
tornou-se melhor com sua presença.

Muitas vezes, ao cair a tarde de sexta-feira e estar se aproximando o dia


de sábado, Shaina convidava todos os habitantes do vale a subirem a
grande plataforma de rocha sobre a qual repousava a caverna, pois dali
podia-se contemplar um pôr-do-sol espetacular. Ira construiu um grande
altar junto à entrada da caverna, no qual Enoque pudesse oferecer
sacrifícios por todo o povo, semana após semana. Haviam desenvolvido o
hábito de confessar uns aos outros todo o erro cometido, e também o de
acertarem todo pecado particular numa sessão de solene e silente oração,
antes do sagrado rito. Somente então é que Enoque sacrificava o cordeiro.
Uma vez que o lugar era pequeno, as pessoas conheciam e amavam a

87
cada animal individualmente. Portanto, enquanto um cordeiro esperava
inocentemente ao lado do altar, muitas vezes este animaizinho havia sido
segurado no colo, como objeto de deleite, durante a semana — logo, o
momento de seu sacrifício, quando Enoque erguia o cutelo, representava
uma ocasião de amarga tristeza. Depois do sacrifício, por vezes Adriel
tocava a flauta e juntos cantavam; muitas outras vezes, porém, era tão
intenso o sentimento de santidade que todos se deixavam simplesmente
ficar quietos, relutantes em quebrar o silêncio.

No dia seguinte, o dia de sábado, reuniam-se todos junto à piscina


natural de claras águas que ficava ao sopé da montanha, com o objetivo
de juntos cantarem e orarem antes que Enoque lhes falasse. Shaina sentia
grande deleite em contemplar a face do patriarca. Por vezes ele contava
as histórias que Adão com ele compartilhara, quanto à Criação e aos
primeiros dias no Éden. Contava vez após outra do regozijo de Adão e Eva
enquanto exploravam as maravilhas que há pouco haviam saído das mãos
do Criador, assim como do temor e da tristeza que Adão sentira ao ver Eva
aproximando-se com o fruto proibido, parcialmente saboreado, em suas
mãos, enquanto se mostrava muito fluente na apresentação de
racionalizações.

Enquanto Enoque falava, Shaina podia visualizar o vale do Éden, e lhe


aparecia bem claro dentro da mente a bela e triste figura de Eva enquanto
cantava, ao som da harpa de Natã, a história de sua irreparável perda e
pungente dor.

Noutras ocasiões Enoque compartilhava a revelação que Deus lhe dera,


de que uma grande calamidade afligiria a Terra, depois do que o
Prometido viria para morrer. A história que todos mais apreciavam era a
da grande e gloriosa segunda vinda do Prometido de Deus. Não importava
quantas vezes ele expusesse esta revelação recebida diretamente de
Deus, o grupo jamais se cansava de ouvi-la, pois semana após semana ele
descerrava o imensurável amor de Deus de modo tão terno e único, que
todos almejavam conhecer mais a respeito do sábio e maravilhoso Deus
que tanto cuidado lhes tinha.

Parecia a todos que semana após semana o relacionamento de Enoque


com Deus se intensificava, até que, enquanto andava entre eles, a própria
presença de Deus como que era sentida no meio deles. Todos gostariam
88
que ele não fizesse sozinho suas breves incursões pelo deserto a fim de
orar — e muito menos, por certo, aquelas longas e perigosas viagens entre
os descendentes de Caim. Sabiam, todavia, que ele necessitava
empreendê-las, pois era o homem de Deus, e todos eram abençoados por
serem ovelhas de seu rebanho.

Shaina percebeu muitas vezes que Tobias jamais sorria, e não


importava quão calorosa fosse a maneira pela qual os outros procuravam
incluí-lo no círculo de amizade, ele jamais parecia realmente constituir
parte do grupo. Num dia de sábado, enquanto ela escalava altas
montanhas, repentinamente descobriu-o apertado numa fenda rochosa,
chorando. Surpresa, ela ficou indecisa entre fingir que não o havia visto,
ou então falar-lhe; decidiu, porém, pela última alternativa, pois só esta lhe
pareceu verdadeiramente honesta:

— Tobias, tenho observado a sua tristeza, o que podemos fazer para


ajudá-lo?

Ele sorriu amargamente.

— Levem-me embora deste lugar. Devolvam-me à civilização.

— Você teme que sua esposa e filhos estejam em necessidade?

— De todos os modos, minha esposa estava a ponto de abandonar-me.


Ela era filha de pais ricos e odiava minha adoração ao Deus verdadeiro,
embora isto não parecesse importuná-la quando começamos nosso
namoro. Ela estava empacotando suas coisas a fim de voltar ao lar de seus
pais quando Enoque apareceu, pregando sua mensagem de destruição.
Pareceu-me que não custaria acompanhá-lo. Uma vez que, de todos os
modos, eu estaria mesmo perdendo tudo, pensei em unir-me a ele.
Depois de haver viajado durante algumas semanas pela interminável
floresta, percebi que havia cometido um erro terrível. Odeio este lugar. E
também não pretendo viver o restante de minha vida sem uma esposa.

“Compreendo seus sentimentos.” Shaina pensou apreensivamente na


distância em que se encontrava do acampamento e tomou a
determinação de não mais envolver-se em situação semelhante.

— Por vezes eu também me sinto muito solitária, mas tento preencher


o tempo com atividades úteis, fixando em mente o pensamento de que
89
esta vida presente não é importante. Existirá posteriormente uma vida
eterna com Deus, em que todas as nossas necessidades serão satisfeitas.
Mas mesmo aqui e agora, Tobias, se você abrir seu coração a Deus, Ele o
encherá de tal modo com Sua sagrada presença, que você desfrutará de
regozijo até mesmo neste remoto lugar.

O atormentado e sorumbático homem não respondeu, parecendo até


mesmo afundar ainda mais em sua depressão. Shaina, incapaz de pensar
em algo mais para dizer-lhe, iniciou a lenta e cuidadosa descida pela
encosta da montanha, sempre consciente de que os olhos do homem
repousavam sobre ela. Ela sentiu-se, de alguma forma, poluída, e desejou
não havê-lo encontrado.

Aquela noite, ao perceber que Adriel escalava a encosta para dirigir-se


até à caverna, ela sentiu- se contente, pois reservara uma surpresa para
ele. Depois de haverem tagarelado um pouco, ela dirigiu-se ao interior da
caverna e retornou segurando algo atrás de si.

— Feche os olhos, Adriel. Durante todo o inverno estive preparando um


presente para você. Finalmente consegui completá-lo, e mal pude esperar
para mostrar-lho.

Adriel, sentado num banquinho à entrada da caverna, volveu o rosto


em direção à parede rochosa e estendeu as mãos. Shaina percebeu,
enquanto a cabeça dele repousava, relaxada, contra a parede de cor cinza,
olhos fechados, que as marcas de sofrimento e tristeza que por tanto
tempo haviam sulcado aquela face, agora já não eram tão intensas. Ele
parecia, à suave luz do crepúsculo, surpreendenternente jovem e
vulnerável. Ela sentiu uma onda de ternura invadi-la, mas afastou a rápida
e vigorosamente, colocando nas mãos dele um comprido objeto,
acomodado num invólucro de pele de veado.

Adriel puxou o laço do envoltório, sorridente, gentilmente deleitado e


mais comovido do que gostaria de admitir. O que ele retirou do invólucro
fê-lo bafejar, maravilhado. Shaina, utilizando várias tonalidades de barro,
havia preparado uma miniatura de Havilá. As tendas de Sepp e Abigail
espalhavam-se nos lugares adequados, pequenas ovelhas pontilhavam as
campinas junto às encostas montanhosas, e o rio mergulhava e emergia
por entre campos e árvores. Abigail trabalhava diligentemente em sua
90
horta de vegetais situada detrás da tenda-cozinha, e Shaina havia formado
uma figura tão perfeita de Sepp, em pé, um cordeiro em suas mãos, ao
lado do altar, com seu longo e espesso cabelo sendo levemente agitado
pelo vento, que Adriel acariciou a relíquia amável e pensativamente, com
seu dedo indicador.

Quando, finalmente, ele ergueu os olhos, estes se achavam rasos de


lágrimas. Não havia pronunciado uma única palavra, mas Shaina teve
certeza de que seu árduo trabalho fora plenamente recompensado.
Agora, porém, entrecortadas, suas palavras foram chegando aos ouvidos
dela.

— Oh, Shaina, que coisa linda você fez! Quando nossas memórias se
tornarem velhas e falharem, esta obra de suas mãos ainda nos recordará
de nossa herança. Havilá, conforme foi no passado, jamais morrerá. — Ele
golpeou levemente o banco a seu lado, convidando-a a sentar.
Gentilmente tomou a mão da moça e ali permaneceram sentados juntos
no lusco-fusco, sem proferirem palavra, mas sentindo ambos algo natural
e agradável, algo forte e eterno, que entre eles se afirmava. Finalmente,
naquele seu estilo simples e sem rodeios, ele falou:

— Shaina, com o tempo cheguei a amá-la profundamente, mas sempre


tive medo de dizer-lhe isto.

— Medo de quê? — perguntou a jovem, demasiado acanhada, nesse


momento, para olhar diretamente nos olhos dele.

— Ora, sou mais velho que você, e talvez não lhe fosse possível pensar
em mim como objeto de seu amor, e sim apenas como parente. Mais que
tudo, sempre pensei que, talvez, o seu coração ainda pertencesse a Ben.

— Sinto mais por você neste momento — disse ela docemente,


enquanto erguia os olhos tímidos em direção à face de Adriel — do que
em qualquer oportunidade senti por Ben. Meu amor por ele era
superficial e inexperiente. Você e eu, Adriel, estivemos juntos em meio à
tristeza, juntos defrontamos um estilo de vida totalmente novo, e juntos e
pacientemente aguardamos pelo amadurecimento de nosso amor.

91
— Não tão pacientemente quanto você poderia supor — confessou ele,
rindo francamente. — Milhares de vezes desejei tomá-la em meus braços
e ser confortado e aquecido por seu amor.

— Também senti a mesma necessidade — admitiu ela. — E agora não


mais se faz necessário negar esta necessidade. — Ela abriu os braços, nos
quais ele se acomodou. Enquanto ela o acolhia com carinho, as lágrimas
de ambos se misturaram e sua terrivel solidão se dissolveu, tal como se
deixa de lado uma roupa fora de moda.

***

Rimona e Shaina planejaram uma festa como o vale jamais havia visto.
Shaina desejava que a ocasião de seu casamento fosse um período de
regozijo, mas ainda assim sagrado — uma experiência santificadora,
enfim. Queria que todos os casais do vale fossem relembrados de seus
próprios votos de fidelidade e que o amor de todos fosse renovado.

Durante dias as mulheres dedicaram-se ao forno, preparando pães com


frutas e outras delícias com a abundância de suprimentos que cresciam à
volta. Rimona tomou seu melhor vestido, preparado com finos pêlos
cardados de bodes, e mergulhou-o em tintura de casca de cebola. Daí
resultou um lindo vestido amarelo-ouro, apenas levemente mais claro que
a bronzeada pele de Shaina. Quando ela o usou no dia do casamento,
tendo nos cabelos o prendedor azul de sua mãe, Rimona deixou escapar
um suspiro de satisfação. As crianças haviam tecido cadeias de pequenas
flores azuis para serem colocadas em seu pescoço, e a procissão nupcial
começou a descer pelo vale. Shaina fizera Adriel descer a um ponto bem
distante, a uma área desolada, de rochas íngremes.

— Somente quando você ouvir o som de nossos cânticos é que poderá


vir ao nosso encontro — advertiu ela, caçoando enquanto seus olhos
verdes dançavam.

A manhã ainda estava em seu começo quando eles vieram — e o sol


pontilhava o bem trilhado caminho, sob as grandes árvores. Shaina
caminhou vagarosamente, com santo orgulho, mais parecendo uma
rainha em sua felicidade. Enoque e Rimona, seus pais espirituais, andavam
um a cada lado. Em torno dos três as crianças saltitavam e arremessavam
flores. Atrás deste grupo vinham os demais, e seus cânticos de louvor e
92
gratidão a Deus ergueram-se triunfantemente no escondido vale, tão
distante dos grandes aglomerados humanos.

Fizeram então uma curva, e Adriel caminhou de encontro ao grupo,


tocando sua flauta. Todos pararam e permaneceram em silêncio,
permitindo que as jubilosas notas de sua canção de amor se espalhassem
claras e doces no ar matutino. Shaina pôde ver nos olhos do noivo toda a
sua lealdade, seu amor, seu profundo apreço diante da beleza da amada,
enquanto ele ali estava de pé, manuseando a flauta com arrebatadora
habilidade. Ele se volveu, então, e conduziu o grupo a um caminho lateral,
dirigindose a uma pequena clareira que haviam escolhido como o lugar
em que profeririam os votos de mútuo amor e fidelidade.

Ela pensou então que sempre recordaria aquele momento. A vigorosa


figura de Adriel à frente do grupo, a música de seu êxtase dançando após
ele ao longo do caminho margeado de árvores e penetrando nas mentes
dos fiéis filhos de Deus. Ela ficou a imaginar quantas tristezas estariam à
espera de todos, quantos perigos penderiam sobre a cabeça dele
enquanto viajasse em companhia de Enoque, à procura de corações
sinceros espalhados pela vasta superfície da Terra. Será que algum dia ela
teria de perdê-lo, a este forte e genuíno homem de Havilá? Nesse
instante, procurou deixar de lado todos estes pensamentos de apreensiva
expectativa, deixando-se absorver completamente pela felicidade do
momento.

Todos tomaram seus lugares debaixo de uma frondosa glicínia, que se


achava coberta de flores purpúreas. Ali, enquanto as abelhas zumbiam por
sobre suas cabeças, Enoque falou pausadamente ao casal a respeito da
santidade do matrimônio e quanto ao primeiro casamento, ocorrido no
Éden. Ajoelharam-se depois todos sobre o piso coberto de flores
intensamente azuis, as quais haviam sido plantadas por Shaina e Ira alguns
anos antes. O vestido de Shaina, mergulhado entre aquele tapete natural,
mais parecia uma chama viva. Enoque pôs uma mão sobre a cabeça de
um, repetindo o mesmo gesto em relação ao outro, e ali suplicou
solenemente a Deus que unisse os dois seres enquanto ambos vivessem.
Muitas orações vieram após, calmas e sinceras, todas buscando a
felicidade de Adriel e Shaina. Crianças pequenas também ergueram suas

93
preces, pois a amizade destas com Deus era tão natural quanto sua
própria respiração.

Por último orou Adriel, uma súplica de vigoroso amor por sua noiva
diante do Criador do mundo; e a seguir, erguendo-a nos braços, carregou-
a em direção à casa na rocha, enquanto ela enlaçava seus próprios braços
cru torno do pescoço do esposo, seu esbelto corpo tão leve quanto uma
pluma para os fortes braços dele, seu vestido dourado esvoaçando
brilhantemente sob a brisa matinal.

Eles festejaram, riram à vontade e cantaram. Shaina percebeu que


várias vezes Enoque parava a fim de trazer Rimona para junto de si,
beijando-a divertidamente diante dos convidados, levando-a a enrubescer
de satisfação. Quão complexo é este homem, pensou Shaina em seu
íntimo. Decidido profeta que adverte destemidamente os filhos de Caim,
radiante amigo de Deus, carinhoso e prestimoso companheiro e pai. Ela
ficou imaginando que Deus seria parecido com Enoque. Seria tão fácil
amá-Lo. Não, corrigiu ela a si própria, Deus é ainda maior que Enoque.

Quando o sol havia desaparecido completamente por detrás das


montanhas e nem mesmo os mais altos penhascos refletiam mais o seu
brilho, Shaina e Adriel caminharam de mãos dadas, subindo a trilha em
direção à caverna. Lá embaixo os amigos começaram a entoar uma canção
de amor tão antiga quanto o próprio Éden:

Ergo a minha amada e carrego-a gentilmente ao lugar de meu repouso.


Ela é maravilhosamente linda, a minha amada.
Meu coração bate forte ao seu toque.
E a escuridão nos encobre.

***

Poucos meses mais tarde, ao findarem os serviços religiosos do sábado,


Enoque convidou Shaina e Adriel a se unirem a ele numa breve viagem
pelo vale do norte, para certo tempo de oração solitária e meditação. Uma
vez que o patriarca raramente levava consigo alguém, a não ser Rimona e
Matusalém — e mesmo a estes, só em raras ocasiões — o casal sentiu-se
profundamente honrado. Correram para casa a fim de reunir algumas
coisas necessárias à viagem, e puseram-se a caminho a pé, através do
94
terreno agreste que Ira e Shaina haviam percorrido várias vezes à procura
de novas plantas.

Enoque lhes falou com maior intensidade que nunca das coisas que
haveriam de acontecer.

-- Adriel — advertiu o patriarca — os homens de Deus estão


escasseando sobre a Terra, embora Ele tenha alguns espalhados aqui e aIi.
Quando eu tiver ido, você e Matusalém e aqueles dentre meus filhos que
permanecem fiéis a Deus devem prosseguir advertindo os homens quanto
à aniquilação que está por sobrevir. Suplique-lhes que abandonem o mal e
se volvam para Deus. Prometa-me que o fará, Adriel.

O esposo de Shaina olhou ao amigo curiosamente.

- Você é ainda muito jovem, pois nem alcançou os 400 anos, Enoque. A
destruição poderá sobrevir muito antes de você ir repousar no pó da
terra. Duvido bastante que Matusalém ou eu tenhamos que assumir o
trabalho que você tem feito, embora seja certo que nós viajaremos a seu
lado, qualquer que seja o risco de fazê-lo.

— Mas você me promete? Matusalém já me prometeu solenemente


que levará avante a tarefa.

— Sim, prometo — assegurou Adriel comedidamente, reconhecendo


que aquilo, por alguma razão para ele desconhecida, era muito
importante para Enoque.

Shaina, caminhando após os dois, sobre o caminho rochoso,


surpreendia-se diante da conversação. Enoque ainda era muito forte e
revelava plena e poderosa capacidade.

Após um dia de jornada, ele os conduziu a uma desolada clareira em


meio a grandes rochas. A partir dali podiam-se ver montanhas e vales que
jamais haviam sido habitados.

— Por que você vem a um lugar tão abandonado a fim de orar? —


perguntou Shaina, sentindo a temerosa solidão do lugar.

— É porque aqui percebo de modo mais nítido a minha insignificância.


Nas cidades, e até mesmo em nosso vale, onde as pessoas se reúnem,
chegamos a pensar que somos vitais ao esquema de coisas, mas aqui,
95
sozinho, tomo consciência de que Deus poderia eliminar-me —- e mesmo
a todos nós — mediante um simples pensamento. Sinto-me subjugado por
Sua divina tolerância para com um povo rebelde. Tenho clara percepção
de minha própria indignidade e de Seu compassivo amor por mim. Penso
em minha vigorosa devoção paterna para com meus filhos e filhas, e de
quanto me custaria enviar um deles a uma missão semelhante àquela que
Deus designou ao Prometido aqui na Terra. Somente aqui, sozinho sobre
meus joelhos, começo a vislumbrar as incompreensíveis profundezas de
Seu amor. Bem, deixemos agora de falar e busquemos por Sua presença.

Eles se separaram, cada um buscando seu recanto particular. Shaina


sentia-se subjugada. O que sabia ela a respeito de buscar a Deus, quando
comparada com esse santo homem, ou mesmo com seu esposo? Muitas
noites, depois que Adriel julgava estar ela dormindo, podia ela ouvi-lo
escorregar da cama e dirigir-se, através do túnel, ao lugar secreto de
oração. Ela, porém, ajoelhava-se e aguardava quietamente. Talvez o
Senhor lhe falasse, tal como Ele manifestara sobre ela a Sua paz no
primeiro dia em que estivera no vale. A vasta quietude estendia-se diante
dela, de modo que pôs-se a imaginar o que seria estar aqui sozinha, tal
como ocorria freqüentemente com Enoque. Esforçou-se por esvaziar a
mente de todos os pensamentos, até que veio a perder a consciência do
que ocorria à sua volta, da dor dos joelhos que se comprimiam contra a
dura rocha, e até mesmo da preocupação por seus companheiros de
adoração. Embora não ouvisse qualquer voz divina, não contemplasse
qualquer glória, um calor restaurador inundou seu ser, o que foi por ela
reconhecido como a aceitação — a divina aceitação da oferta que ela fazia
de seu próprio ser. Era algo tão real quanto as pedras sobre as quais se
achava ajoelhada, e lágrimas lhe rolaram pelas faces em gratidão porque
Deus viera encontrar-Se com ela nesse lugar, comunicando-lhe Seu amor.
Um grande anseio por oferecer-Lhe algo melhor brotou dentro dela.

Ao cair a escuridão, Adriel veio para junto de Shaina e ergueu-a,


segurando-a bem junto de dentro das dobras de seu grosso cobertor de lã;
nada falaram, entretanto, tão forte era o poder de Deus sobre eles
repousando neste momento.

***

96
Quando a alvorada lançou seus mornos raios sobre o casal adormecido,
a encurvada e umedecida forma de Enoque ergueu-se da posição de
oração, junto a uma pedra cinzenta. Despertando, Shaina compreendeu
que ele por certo passara ali toda a noite, e ergueu-se rapidamente a fim
de preparar alimento para o santo homem. Percebeu então nele algo
bastante estranho: uma incandescência o circundava, não muito diferente
da flamejante glória do Éden. Shaina encobriu a face com o braço e
despertou o esposo, que rapidamente se assentou diante da
extraordinária vista. A medida que a glória aumentava, a forma de Enoque
começou a sumir de vista. Ele sorriu para o casal com aquele mesmo e
antigo, amável e radiante sorriso, e então falou firmemente com Adriel.

— A promessa, Adriel. Lembre-se da promessa.

O homem mais jovem avançou em direção a Enoque, como que para


detê-lo, mas a luz faiscava em esplendor; logo depois, tudo voltou a ficar
como antes, exceto que Enoque se fora.

Adriel e Shaina entrecruzaram seus olhares arregalados, possuídos que


estavam da mais absoluta perplexidade.

— Ele retornará — assegurou Shaina ao esposo. — Tenho de preparar


alimento para ele. Passou toda a noite em oração.

Seu esposo puxou-a novamente para junto de si.

— Não, meu amor, ele não retornará. Deus o tomou para Si. Sem
dúvida o mundo será um lugar muito escuro sem a sua presença, mas
teremos de levar avante o seu trabalho da melhor maneira que pudermos.

Ela contemplou a área de rocha seca, onde o orvalho caíra durante a


noite sobre Enoque, e tentou compreender que o amigo de carne e osso
adentrara a própria presença pessoal de Deus.

— Ali é terra santa, Adriel, e nesse dia vimos algo realmente sagrado.
Enoque sabia de tudo ao trazer-nos até aqui, não lhe parece? Estamos tão
perto do Céu que chego a sentir-me amedrontada. Por vezes pensamos
que estamos tão longe de Deus, que podemos viver nossas próprias vidas
e nutrir nossos próprios pensamentos, mas Ele está tão perto que Lhe
bastou estender a mão e levar Enoque de nosso mundo para o Seu!

97
— Nada há a temer, minha preciosa — Adriel estendeu o braço de
modo protetor sobre a esposa. — Os braços de Deus são mais seguros que
os meus. Chego a pensar que Deus queria exatamente que soubéssemos
quão perto Ele está; queria também que víssemos, através da experiência
de Enoque, que algum dia, quando o Prometido houver pago o terrível
preço, Ele retornará e levará consigo aqueles que O amam, exatamente
como fez com nosso amigo. Ele almeja que reconheçamos que esta fria e
desolada existência não perdurará para sempre, e que além da mesma
encontraremos outra vez as glórias do Éden.

Abraçaram-se, maravilhados e silentes, diante do que haviam acabado


de presenciar. Quando Adriel tornou a falar, sua voz era mais solene do
que Shaina jamais a havia ouvido antes.

— Agora temos de voltar para casa, Shaina, e falarei com Matusalém a


respeito de nosso comissionamento. Você e eu teremos de ficar longe um
do outro muito mais, agora, minha querida, e os perigos aumentarão.
Uma vez que os descendentes de Caim ouçam a notícia de que Enoque se
foi, por certo se tornarão mais ousados. A santidade de nosso amigo como
que representava um freio àqueles infiéis.

Enquanto caminhavam de mãos dadas, retornando ao lar através


daquelas áreas inóspitas, não conversaram muito, mas cada um sabia dos
pensamentos do outro. A tristeza da separação repousava pesadamente
sobre eles, o miraculoso evento ainda os fazia sentirem-se pasmados, e ao
mesmo tempo procuravam imaginar uma forma de relatar a Rimona o
sucedido.

— Ela o ama tanto — suspirou Shaina. — Será ela capaz de acreditar em


nossa história?

Entretanto, quando chegaram à trilha que conduzia ao acampamento,


Rimona e os filhos aguardavam por eles; estendendo as mãos em direção
ao casal, ela disse: “Eu sei, eu sei.” Enoque contara a sua família e dela se
despedira antes de partir. O pesar era forte em meio àquelas criaturas,
mas Rimona manteve-se de cabeça erguida. “Não é toda mulher que
possui um esposo que anda com Deus”, sorriu ela; e Shaina ficou então a
pensar que efetivamente a Divindade precisava entesourar um esposo
como aquele.
98
Naquela tarde, quando Matusalém se preparou para dirigir o culto no
acampamento, pediu a Adriel que lhe contasse a história do
arrebatamento de Enoque deste mundo. Alguns murmuraram em tom
descrente, outros sugeriram que aquilo era pura bobagem, mas Rimona
permaneceu ao lado de Adriel e confirmou a história. Ao final, todos se
ajoelharam sob a profunda sensação de necessidade, pedindo a Deus que
prosseguisse com Sua presença entre eles. E todos tinham plena
consciência de que nada voltaria a ser exatamente como dantes.

99
Capítulo 7
A Menina

Rimona colocou grãos na pedra de moagem enquanto Shaina, mediante


graciosos movimentos de inclinação, pilava os grãos em meio a uma
nuvem de pó, utilizando uma bem usada mão-de-pilão. Elas trabalhavam
conjuntamente, como se fossem uma só pessoa, e somente quando a
mulher mais jovem parou por um instante e afastou os brilhantes cabelos
da face cheia de transpiração, é que elas se dirigiram à sombra para um
breve descanso.

— Se Adriel pudesse vê-la agora! — exultou Rimona enquanto


examinava a face de Shaina, suja e umedecida por pequenos filetes de
suor.

— Ele me amaria de qualquer forma — retrucou Shaina, sentindo


subitamente em seu coração um anelo pela presença do marido.

Matusalém e o esposo de Shaina haviam viajado há alguns meses a fim


de prosseguir com a obra de Enoque, e Shaina, agora acostumada com a
viagens, aguardava esperançosa, sem jamais perder de vista que alguma
viagem seria a última. De Rimona obtinha ela forças e também aprendera
com a bondosa senhora a colocar suas preocupações nas mãos de Deus.
Mas jamais conseguia deixar de sentir falta de Adriel.

O vale se modificara bastante desde a partida de Enoque, ocorrida


havia 300 anos. Parecia a Shaina que os justos se haviam tomado mais
justos, ao mesmo tempo em que os ímpios mais e mais haviam crescido
em sua atitude desafiadora; logo, tanto o bem quanto o mal haviam sido
mais puramente destilados. Tobias partira havia muito tempo,
acompanhando Matusalém e Adriel, sentindo-se obviamente aliviado ao
abandonar o refúgio de Enoque. E ele não fora o único. Muitos dos filhos e
netos de Enoque haviam-se aventurado no mundo que ficava além do vale
— alguns com o objetivo de difundir a fé no Deus de seu pai, outros para
exemplificar a rebelião. Lameque, herdeiro do legado espiritual, não se
dedicava a idas e vindas, tal como faziam seu pai e Adriel, mas viajou para
100
longe, falando destemidamente de Deus, indo por fim estabelecer-se nas
próprias fronteiras da terra de Node.

Adriel e Shaina, saudáveis e vigorosos na primavera de suas vidas,


conheciam um único propósito — ampliar a adoração e a presença do
amor de Deus sobre a Terra. Ambos compartilhavam uma grande alegria.
Depois de anos de esterilidade, Shaina dera à luz uma menina de olhos
verdes, possuidora da escura e ardente beleza de sua avó Ona. Mas ela
nada possuía da caprichosa natureza de Ona — apenas uma firme ternura
que encantava continuamente a seus pais.

— Ela tem a face de minha mãe e a alma de Abigail — dizia Shaina


freqüentemente a Adriel.

— Poderia existir criança mais abençoada?

Eles lhe deram o nome de Navit (Nuh-veet), “a agradável”; e ela era


uma filha da Terra e do Deus da Criação.

Aquele dia ela se dirigira à casa de uma idosa mulher, que vivia na
extremidade distante do vale e agora encerrava sua vida terrestre, caindo
natural e pacificamente em seu último descanso, do qual seria
futuramente chamada pelo Prometido. Navit conhecia bem a morte e o
nascimento, pois acompanhara, desde pequenina, Shaina e Rimona
enquanto estas se dedicavam a esses dois misteres. Agora aos 22 anos de
idade, muitas vezes ela sob quaisquer circunstâncias, e quando os mais
idosos se sentiam enfermos ou não mais conseguiam ver, era a presença
de Navit que eles solicitavam. A moça os ajudava durante horas a fio
mediante seu toque gentil, sua risada fácil e, mais que por qualquer outro
meio, com a música que, através de cânticos, sempre se expressava em
seus lábios. A música de Havilá achava-se enraizada em sua alma,
habilitando-a a tocar os instrumentos que Adriel lhe trouxera da cidade e
a utilizar a voz de uma forma tal, que comovia os ouvintes, levando os às
lágrimas. Amós ensinou-lhe as primeiras e antigas canções, cantadas junto
aos portais do Éden, e que haviam sido transmitidas de geração a geração;
e o próprio Adriel ensinou-lhe a canção de Eva, com toda sua dor e
ternura.

Quando Matusalém e Adriel finalmente apareceram no vale,


cavalgando em fila indianas uma terceira pessoa os acompanhava.
101
Shaina e Navit, saltando as escadarias da encosta damontanha, mal
prestaram atenção na pessoa estranha, tão grande era o regozijo de
ambas por terem de volta o ser amado que há tanto tempo aguardavam.
Finalmente Shaina se volveu para a empoeirada pessoa estranha. Adriel
ficou olhando, tendo estampado um sorriso sobre sua cansada face, e um
divertido traço em seus olhos.

Quando Shaina ergueu a mão para saudá-Ia a mulher estranha afastou


o manto que lhe encobria o rosto e Shaina olhou diretamente para dentro
dos olhos de sua mãe. Com um grito de júbilo, lançou-s e aos braços
estendidos de Ona, e as lágrimas de ambas se misturaram profusamente.
Quando, finalmente, conseguiram falar, Shaina apresentou Navit a sua
avó. Ona contemplou longamente a neta e suspirou.

— Oh, se Natã pudesse vê-la, minha filha. Pois você é igualzinha a mim
quando ele me encontrou no mercado, vendendo sedas, há centenas de
anos. Venha, minha querida. — Tomou a face de Navit entre as mãos e
fixou seus olhos nos claros e verdes olhos da neta. — Deus me concedeu o
privilégio de ver você. Agora posso morrer em paz.

-Não fale em morrer, mamãe - interrompeu Shaina, enquanto conduzia


o cavalo da mãe encosta acima. - Teremos muitos anos de felicidade
juntas, aqui neste seguro retiro.

Ira havia-se mudado, vários anos antes para o fundo do vale, dizendo
que suas velhas e cansadas pernas não mais queriam que ele subisse a
encosta da montanha. Deste modo a casa de pedras tornara-se de Adriel e
Shaina, embora eles muitas vezes preferissem a caverna, com aquela sua
deslumbrante visão do vale. Foi para ali que agora conduziram Ona;
enquanto Shaina preparava alimentos, conversaram intensamente, as
palavras atropelando-se e sobrepondo-se umas às outras, pois
necessitavam relatar centenas de anos de existência.

- Você tem certeza de que poderá sentir-se feliz aqui, neste lugar? Tudo
é muito quieto — preocupou-se Shaina, lembrando-se de quanto a mãe
apreciava multidões e danças.

Ona e Adriel trocaram olhares, e Ona respondeu, ainda apresentando


em seus olhos um pouco daquela antiga sedução:

102
— Sou uma nova criatura e nutro novos desejos, minha filha. Depois
que seu pai foi assassinado, senti-me irada com Deus; ao mesmo tempo,
porém, lá em meu íntimo, respeitei a Natã porque no final de tudo ele
tivera coragem de defender suas convicções. Ben foi amável comigo e
construiu-me uma pequena casa nos fundos de sua propriedade, e com o
dinheiro que eu possuía, pude viver confortavelmente. Entretanto, com a
passagem dos anos, pude ver que ele mudava, do homem gentil e
educado que era quando chegou de Havilá, para um tirano cruel,
astucioso e enlouquecido por prazeres. Tive que admitir que, quanto mais
ele se afastava de suas origens, mais degradado se tornava. Creio que, por
fim, o longo braço de Abigail me alcançou e me tocou. Tentei recordar o
modo como você e Ira viviam, e fiz o melhor que pude, apesar de minha
ignorância, no sentido de seguir o Deus verdadeiro.

Quando ouvi falar que na cidade se encontrava um pregador de Deus,


fui até a praça a fim de dar-lhe uma olhadela; para a minha mais profunda
surpresa, era Adriel.

— Não me custou muito persuadi-la a vir conosco — sorriu o esposo de


Shaina arregaçando os dentes, ainda deleitado com a surpresa da esposa.

— Oh, mamãe — murmurou Shaina, tomando entre as suas as mãos da


idosa mulher. — Durante todos estes anos entesourei o prendedor azul e
a lembrança de você, naquela distante manhã, enquanto me acenava em
despedida. Jamais me atrevi a nutrir a esperança de tornar a vê-la outra
vez. E agora você está aqui, não mais o seu velho ser, mas uma nova
criatura, que conosco compartilha do amor de Deus. Eu gostaria muito de
contar isto a Enoque. Ele se sentiria muito feliz.

— Creio que ele o sabe — fê-la lembrar Adriel, estendendo-se sobre o


cobertor de lã, cabeça sobre o colo da esposa. — Oh, meu amor, é tão
bom estar em casa.

— O que Ben diz a respeito de tudo isto? — perguntou Shaina,


tentando ainda absorver o milagre da presença de sua mãe.

— Ele disse: “Desapareçam, e que eu nunca mais veja as faces de vocês.


Não sou mais seu parente, e sim seu inimigo. Lembrem-se disto! — Um
acento de tristeza tingiu a voz de Adriel diante da desagradável
lembrança.
103
— Ele não é mais o Ben que você chegou a amar Shaina— acrescentou
Ona. — Por vezes, depois de tornar-me seguidora de Deus, senti muito
medo dele.

Não mais falaram a respeito de Ben, pois cada um deles lamentava por
aquele que haviam amado.

Shaina jamais deixou de maravilhar-se diante da fidelidade de Ona ao


Deus que recentemente encontrara. Ela ainda era Ona, jovial e ágil de
língua, mas por debaixo do exterior aparentemente despreocupado,
existia uma rocha de sólido comprometimento.

- Mal posso esperar — disse Shaina a Navit certo dia — que o


Prometido nos chame a todos dos sepulcros e conduza mamãe pela mão
até onde estiver papai. Quero apenas contemplar a face dele. Poder estar
com seus amados por toda a eternidade!

— Não nos lance a todos na sepultura, mamãe— advertiu Navit. — É


bem verdade que eu própria muito desejo compartilhar deste momento.
Vovó trouxe algo especial ao vale, uma espécie de nova a esperança e
uma visão mais alegre da vida.

— Ela sempre foi muito especial. — Shaina fez sombra com a mão sobre
os olhos e fixou-os em direção ao norte, através do vale. Por entre as
montanhas, um cavaleiro solitário abria caminho.

- Corra até as pastagens e diga a seu pai que um estranho, vindo do


norte, está entrando no vale.

— Shaina já subia rapidamente a encosta da montanha, em direção à


casa de Matusalém, e fazia-o tão depressa que os pedregulhos
chocalhavam atrás de suas sandálias de couro. No momento em que o
estranho adentrara o vale, Adriel e Matusalém se haviam colocado
resolutamente no caminho, secundados pela maioria dos habitantes do
lugar.

— Paz — saudou-os ele, enquanto alvos dentes faiscavam em sua face


intensamente bronzeada do sol.

— Sou Noé, filho de Lameque, neto de Matusalém.

104
Com um grito de alegria, sua esposa Jonine e Rimona correram para
abraçá-lo — aquele neto e bisneto que não viam desde a mais tenra idade.

— Quais as novas que o trazem aqui, filho? — perguntou Matusalém,


caminhando ao lado do cavalo, radiante de alegria.

— Papai enviou-me para ver o bem-estar dos parentes que vivem aqui
no vale, e também por outras razões — informou ele, sorrindo como se
fosse um garoto, embora já se constituísse em homem maduro.

A chegada de um visitante excitou todo o vale, e as mulheres


prepararam uma refeição especial em sua homenagem. Antes de
comerem, todos inclinaram a cabeça à volta das mesas colocadas ao ar
livre, enquanto Matusalém elevava uma prece ao Deus dos Céus,
agradecendo-Lhe pela chegada, em paz, do neto Noé, ao mesmo tempo
que suplicava ao Pai celestial que se fizesse presente na comemoração.
Quando o crepúsculo cresceu, convertendo-se em agradável noite de
verão, as pessoas acenderam lampiões alimentados a óleo, e tendo o
brilho das estrelas acima de suas cabeças, deram as boas-vindas a Noé,
bisneto de Enoque, mediante músicas e muita amizade. Quando os mais
idosos começaram a sentir-se cansados, Rimona chamou Navit para junto
de uma mesa mais distante e lhe disse:

— Filha, cante-nos algo sobre a viagem para o lar.

Tendo a flauta de seu pai como suave acompanhamento, Navit pôs-se


de pé ao lado de uma das mesas e entoou uma antiga canção de louvor
que Amós lhe ensinara quando ela era ainda criança. Era um cântico de
triunfo, cheio de encorajamento e esperança no Prometido; enquanto os
habitantes do vale rumavam de volta a seus lares, os claros tons da voz da
moça ondulavam por entre a cálida noite, como se fossem o estandarte de
Deus. Noé volveu-se para olhar rapidamente a pessoa que cantava, e
suspendeu a respiração diante da esbelta beleza da garota de cabelos
escuros, cuja figura se recortava por entre os lampiões acesos.

O filho de Lameque envolveu-se com as rotinas da vida do vale, sem


aparente pressa em deixar o local. Em certa oportunidade viajou com
Adriel e seu próprio avô a fim de pregar nas cidades, o que levou os
habitantes do vale a esquecê-lo. Embora ele fosse rápido em reconhecer e
sensível em atender as necessidades dos outros, não era uma pessoa
105
jovial. Noé apresentava uma quietude que alguns identificavam como
sossego, outros julgavam ser algo intrigante, uns poucos se sentiam
aborrecidos com ela, e todos a identificavam como sensata.

Certa vez Navit, ao levar grãos até a pastagem das ovelhas, encontrou-o
vigiando os rebanhos. Antes quele se apercebesse da presença da moça,
teve ela a oportunidade de observar sua forte e angulosa face abaixo do
emaranhado de irrequietos cabelos negros. Um homem fora do comum,
pensou ela.

— Ao dar-se conta da presença de Navit, ele se volveu para ela e sorriu


— um sorriso rápido e deslumbrante, que transitoriamente iluminou sua
face sóbria.

— Sinto-me um tanto inútil enquanto aguardo o dia inteiro à luz do Sol,


esperando que apareça um lobo para apanhar uma das ovelhas —
confessou ele timidamente.

Ele não se sente confortável em presença de mulheres, concluiu Navit,


especialmente quando se trata de uma jovem mulher, sozinha em meio a
uma campina florida.

— Bem, esta é uma forma esplêndida de se gastar o dia, de modo que


você não deve perdê-lo sentindo-se culpado — aconselhou ela, enquanto
derramava os grãos num cocho escavado e afastava, com um dos joelhos,
as ovelhas que se comprimiam. — O que você estaria fazendo se estivesse
em casa?

— Nós trabalhamos com couros, fabricando sandálias, túnicas e muitos


outros objetos. Meu pai aprendeu o ofício aqui, quando ainda garoto, sob
ministração de minha bisavó, Rimona. Sempre que é possível, viajamos de
uma cidade a outra, levando a mensagem do Prometido, tal como faz seu
pai. Vendemos os artigos de couro e isto nos permite acesso às cidades,
pois eles apreciam nossos produtos e assim suportam que lhes
preguemos.

Navit, afastando uma mecha de cabelos escuros de sua face molhada


de suor, colocou-se sob a sombra da grande rocha sobre a qual Noé estava
sentado.

106
- Muitas vezes me pergunto se nossa existência, aqui, possui algum
significado. Levamos vida simples, de estilo campestre, enquanto o mundo
nem toma conhecimento de nossa presença. O que será que significamos
para Deus?

Noé analisou a jovem face que tinha diante de si e imaginou que jamais
vira antes tamanha pureza e inocência.

— Você conserva um estilo de vida que está desaparecendo


rapidamente — assegurou-lhe ele. -- Além deste vale, homens que uma
vez foram valentes defensores de Deus, agora servem-nO apenas
nominalmente. Não mais observam como sagrado o sétimo dia, e seus
jardins estão abarrotados de ídolos. É difícil permanecer puro em meio a
um mundo permeado de rebelião e pecado. Mas aqui, Navit, aqui nesta
Natureza simples, as pessoas vivem do modo como Deus planejou que
vivessem. Aqui o espírito de gratidão e louvor sempre está ascendendo ao
Céu, e a pessoa sente-se próxima ao Criador.

— Eu me sinto contente aqui — disse ela. Durante alguns momentos fez


uma pausa. — Sua esposa e filhos não sentem falta de sua presença
enquanto você está conosco?

— De modo algum, respondeu ele em tom sério, ainda que um traço


divertido pudesse ser observado em seus olhos negros. Ele permaneceu
quieto por alguns momentos, apreciando a expressão surpresa da moça.
— Veja, ainda nem sou casado.

Foi a vez de Navit mostrar-se acanhada. Subitamente ela se sentiu


demasiado jovem e insegura diante deste homem que conhecera o
mundo e agraciara brevemente o vale com sua presença. Deixando que os
olhos se desviassem para baixo, sentiu o sangue enrubescer-lhe as
bochechas, embora não tivesse idéia da razão de isto acontecer.

Noé prosseguiu calmamente.

— Embora eu tivesse procurado bastante, nunca encontrei uma jovem


que realmente fosse filha de Deus ou, pelo menos, uma que deveras me
agradasse. Preferi a solidão a um compromisso que não me satisfizesse
plenamente, de modo que aqui estou, com mais de 300 anos de idade, e
ainda sozinho no mundo. Já me encontro mais ou menos acostumado com
107
esse ritmo de vida, mas papai insistiu em que eu viesse até aqui, à procura
de uma verdadeira mulher de Deus.

— Bem, foi uma idéia pobre — disse Navit com franqueza. — Aqui
existe apenas um punhado de jovens, e nenhuma delas tem a sua idade.

— Foi o que descobri - concordou ele, humildemente.

Navit não conseguiu compreender por que falara de modo tão positivo,
pois não era de sua natureza mostrar-se rude. — Tenho de ir andando -
falou ela por sobre os ombros enquanto se volvia, apanhava os sacos de
grãos, agora vazios, e se dirigia para casa.

- Sentir-me-ei inútil outra vez se você for embora — respondeu ele de


bom humor, mas ela não se volveu para vê-lo. Tampouco - ainda que a ela
própria isto parecesse estranho — falou com seus pais a respeito da
conversa vespertina, enquanto tomavam a refeição da tarde.

Navit tomou a decisão de evitar Noé de todas as formas e preferiu não


haver descoberto que ele não tinha esposa. Mas o que importava isto?
Que diferença faria, afinal? Ele era um homem honrado e ela apenas uma
criança quando comparada com ele, sem dúvida. Ainda assim, tratou de
manter-se fora das vistas dele.

Poucas semanas mais tarde Matusalém subiu a encosta da montanha,


quando a tarde já avançava bastante. Seguiam-no Jonine e Rimona,
conduzindo grandes travessas de alimento fumegante e delícias
preparadas ao forno.

— Viemos repartir o pão com você, Adriel — anunciou Matusalém. —


Temos um assunto importante a discutir.

Em breve Ira e Ona também subiram, ofegantes, as escadarias, e Shaina


compreendeu que o assunto a ser discutido deveria mesmo ser muito
importante. A face de Adriel revelava-se impassível, de modo que aí ela
não encontrou qualquer resposta. Compartilharam dos alimentos
enquanto se ocupavam de assuntos triviais, mas a atmosfera parecia
carregada. Finalmente Ona, que não se preocupava muito com a tradição,
falou:

108
— Por quanto tempo teremos de aguardar sua mensagem, Matusalém?
Estas preciosas iguarias foram perdidas sob a tensão do momento, e de
minha parte eu preferia tê-las apreciado. Navit esboçou um sorriso. Sua
avó parecia a única capaz de quebrar a aura de reserva que circundava o
patriarca. Matusalém espiou desconfortavelmente em direção a sua
esposa. Nunca dantes Navit o percebera desta forma, como que não
confiando em si próprio, de modo que a curiosidade da moça cresceu.
Finalmente ele se volveu para Rimona.

— Você é melhor para esse tipo de coisas que eu, mamãe? Você
poderia ... ? — gaguejou ele, sentindo-se desconfortável.

Sorrindo, Rimona sacudiu a cabeça de modo compreensivo e maternal


diante do pedido de seu alto e amadurecido filho. Navit percebeu, porém,
que a idosa senhora tampouco se sentia muito à vontade. — Meus
queridos — disse ela enquanto olhava às faces do grupo que, assentado
em torna da mesa, comia uvas e lançava as sementes penhasco abaixo —
aquilo que viemos solicitar esta noite não tem feito parte da tradição de
nossos antepassados, mas a situação é bastante especial.

Nosso neto Noé, que todos vocês conhecem bem, não veio até este
vale apenas para cuidar de ovelhas e visitar seus parentes. Ele procura
uma companheira que seja pura à vista de Deus.

Será que ele já escolheu alguém? pensou Navit enquanto sua mente
percorria rapidamente a pequena galeria de jovens elegíveis, habitantes
do vale. Ela não o vira em companhia de nenhuma das moças mas, de
todos os modos, havia-o evitado.

- Há dois dias — prosseguiu Rimona — ele nos disse que encontrara a


mulher que havia feito se tornarem compensadores todos os seus longos
anos de espera.

Shaina percebeu que a cor desaparecia das faces de Adriel.

— Para a nossa mais absoluta surpresa, ele disse que se tratava de


Navit.

Rimona volveu os olhos para Shaina — sua estimada amiga de tantos


anos — esperando que ela compreendesse.

109
Ninguém proferiu qualquer palavra por vários momentos, e Navit sentiu
o coração quase explodindo no peito. Chegou a pensar que os demais
conseguiriam ouvi-lo. Finalmente Adriel falou, sua voz era firme:

— Sentimo-nos honrados, mas ela é demasiado jovem, meus amigos,


para deixar este vale.

Navit, sentada e com os olhos volvidos para baixo, sentiu-se algo


desolada com as palavras do pai. Ele estava certo, naturalmente; por que,
então, experimentava ela este senso de sombrio desapontamento?

— Certamente aceitarei a sua decisão, meu esposo; mas eu gostaria de


levá-lo a lembrar de um dia, há centenas de anos, quando tomei a decisão
de acompanhar você em direção a este vale, e meu pai recusou-se a
conceder-me a permissão. Minha mãe interveio. — Shaina olhou
rapidamente para Ona e sorriu. — Sempre fui agradecida a mamãe em
virtude de sua compreensão, e jamais me arrependi da decisão que tomei.
Talvez devamos perguntar a Navit como se sente diante do assunto.

Tendo os olhos de todo o grupo voltados para si, a jovem lutava por
controlar-se. Muitas emoções bombardeavam-na. Temor, confusão,
deslumbramento e algo mais — uma pequena chama de regozijo, que ela
tentou inultimente sufocar.

— Não posso responder tão rápido. -- Lágrimas lutaram por impor-se.


— Apreciaria que me concedessem tempo para pensar e orar. Eu também
gostaria de falar com Noé.

— Este não é o costume. — O olhar firme de Adriel desafiou-a a


submeter-se ao julgamento paterno. Ele não previa o menor interesse por
parte da filha.

Rimona fê-lo lembrar-se, falando calmamente.

— É muito difícil seguir a tradição aqui no vale, Adriel. Quão tradicional


foi o seu casamento com Shaina? Quem o arranjou? Não é melhor deixar
que Noé e Navit conversem a respeito de seus sentimentos e planos
futuros? Talvez eles decidam que, afinal de contas, esta união não seria
prática.

110
Prática! pensou Navit, rindo nervosamente em seu íntimo. Fosse o que
fosse que ela estivesse sentindo por Noé, aquilo nada tinha a ver com
praticidade. Era algo bonito como uma borboleta em pleno vôo, e tão
difícil quanto esta para se capturar. Embora aquilo fosse tão etéreo que
sua mente não era capaz de captar, seu coração o havia experimentado —
ela o admitiu relutantemente — desde aquele dia, lá na pastagem das
ovelhas.

Quando, na tarde seguinte, Noé subiu a encosta da montanha em


direção à caverna, Shaina tratou de ocupar-se com o barro e sugeriu que
ele e Navit atravessassem o túnel e buscassem o recanto secreto a fim de
orarem. Noé não conhecia o recanto reservado, e maravilhou-se diante de
sua beleza. Shaina enchera buracos na pedra com solo fértil, de modo que
agora delicadas flores de cor coral e em forma de sinos atapetavam
alegremente as paredes rochosas. Um pequeno filete de água formava um
lago, e o penetrante odor de hortelã invadia por completo o morno ar de
verão.

Por que insistira ela em falar com ele? Navit sentiu que o pânico quase a
dominava. O que diria ela, agora que Noé se encontrava a seu lado? Será
que os outros realmente esperavam que ela fosse embora em companhia
de um homem com o qual apenas falara umas poucas palavras? Por que
ele não dizia alguma coisa?

Noé permanecia de pé, olhando calmamente para ela, como que


esperando.

Ele está esperando o quê? Se ele me deseja em casamento, é seu dever


dizê-lo. Ele é que deve falar em primeiro lugar. Se ele é uma criatura tão
estranha e refratária, talvez seja melhor despachá-lo já.

Assim ficaram eles a olhar um para o outro naquele jardim fechado,


enquanto o sol lhes aquecia a cabeça. Após alguns momentos a irritação
de Navit cedeu, e ela passou a sentir uma espécie de paz, desejando
apenas ficar ali com ele em plena quietude.

Somente então ele falou.

— Navit, minha querida. — Ele a tocou nos cabelos suaves e


intensamente negros, maravilhosamente admirado. — Ajoelhemo-nos
111
neste lugar e busquemos o conselho de Deus. — Ele orou então de uma
forma como ela jamais ouvira antes. Uma prece cheia de amor por eIa,
que falava de seu desejo de levá-la para sua casa e entronizá-la em seu
coração; mas era também uma oração de completa submissão à vontade
de Deus. “Se ela for comigo, Senhor, prometo amá-la ternamente todos os
dias de minha vida; mas se ela decidir permanecer aqui no vale, aceitarei
isto como o Teu sinal de que devo trabalhar sozinho para Ti enquanto
viver, pois jamais serei capaz de amar outra.”

Ele caiu então em silêncio, embora permanecesse ajoelhado, cabeça


inclinada, lábios movendo- se em oração.

Navit estendeu o braço e gentilmente passou os dedos sobre os lábios


de Noé.

— Basta. Já é suficiente, meu amado. Deus ouviu e respondeu. Sou


pouco mais que uma criança, mas irei com você, e juntos faremos Sua
vontade e empreenderemos o Seu trabalho.

Noé contemplou-a e então seus olhos negros se encheram de lágrimas.


Ele nem mesmo a tocou, mas em seu olhar ela pôde perceber mais
promessas do que jamais havia sonhado pudessem existir.

***

Depois de haverem sido realizados o casamento e a festa, os dois


prepararam-se para deixar o vale. Pela primeira vez Shaina compreendeu
o que seus pais haviam suportado há muitos anos, quando ela saíra de
casa para nunca mais retornar. Enquanto ela e Adriel sofriam, foi Ona
quem os fez lembrar da grande reunião que ocorreria quando o
Prometido refizesse todas as coisas.

Os três ergueram-se, sorrindo por entre lágrimas, enquanto Noé e Navit


montavam seus animais e ainda conduziam outros dois cavalos de carga
através do caminho rochoso, pelo qual Noé entrara no vale. Na cabeça de
Navit achava-se o prendedor azul de Natã, afastando de sua face um
chumaço de cabelos negros. Fora a própria Shaina que o colocara ali com
toda a amabilidade, enquanto dizia:

- Algum dia, minha querida, talvez você também venha a ter uma filha,
e você lhe contará do extremo amor existente entre sua avó e seu esposo-
112
oleiro. E você lhe contará de como ele pereceu às mãos de uma turba, por
amor a seu Deus. E então você lhe colocará este prendedor nos cabelos,
tal como eu agora faço com você. Somos as mulheres de Havilá, Navit;
somos filhas de Abigail. Jamais o esqueça. Embora aquele vale esteja
perdido para nós, o mesmo não acontece com a sua herança. Devemos
sustentar o amor de Deus acima dos males deste mundo. Agora você se
dirigirá para além dos protetores muros deste vale, no qual nasceu. Pela
primeira vez verá o mal em seu insubordinado desafio ao Deus dos Céus.
Lute contra ele da mesma forma como Enoque lutou, andando em íntima
relação com Deus; reparta igualmente com outros este conhecimento do
Deus que você veio a conhecer e a amar.

Shaina chorara bastante naquele momento, enquanto estreitava nos


braços a preciosa filha, pensando que 22 anos não haviam representado
tempo suficiente para entesourar sua única descendente. Este homem,
Noé. Seria ele suficientemente delicado para com sua inocente filha de
olhos verdes, que tanto alegrara o vale com sua risada fácil, seu dedicado
amor e suas amáveis canções? Ela almejava que sim.

— Oh, minha pequena — sussurrara ela enquanto enxugava os olhos,


depois de bastante tempo.

— Eu amo tanto você. Deus a acompanhe.

E agora os dois eram apenas partículas que subiam mais e mais, em


direção à linha do horizonte; ela pôde sentir o intenso pesar de Adriel,
enquanto ele a segurava. Ele perdera tanto, toda a sua vida, compreendeu
Shaina. Suas duas filhas. Ela devotaria seu próprio ser, mais que nunca, à
felicidade do esposo. Lentamente ela o conduziu de volta ao lar, enquanto
enxugava as lágrimas do marido com as próprias mãos.

— Venha, meu amor. Em Navit corre firme o sangue de nosso povo. Nós
a entregamos a Deus. Não o façamos com lamentações.

Ela correu rapidamente para longe dele, sorrindo, olhando por sobre os
ombros, soltando gargalhadas. Uma vez mais era a garota que ele
trouxera ao vale depois de atravessarem densas florestas; agora ele
correu após ela, apanhando-a nos braços, quase sem respiração, e tentou
sorrir mais uma vez, mal sonhando com o destino ao qual Navit se dirigia,
cavalgando ao lado de seu sóbrio e devoto esposo.
113
***

Shaina, tendo-se posto cedo de pé a fim de conversar com Deus e


contemplar o aparecimento do sol, achava-se sentada sobre a borda de
rocha que pendia sobre o vale, perdida em meditação. A doce cor dourada
do alvorecer estendia-se por sobre o vale; foi então que ela os viu,
enquanto deslizavam um a um através da abertura no penhasco — mal
pareciam sombras em meio à semi-escuridão. Erguendo-se rapidamente,
ela correu até o canto em que Adriel ainda dormia e sacudiu-o com força.

— Acorde, querido, acorde! Pessoas estão entrando no vale, e são


muitas. Depressa!

Adriel vestiu-se num instante e juntos eles observaram enquanto uma


interminável fila de cavaleiros descia pela fenda do penhasco. Ele volveu-
se para a esposa, a tristeza estampada em sua face.

— Minha preciosa Shaina, nossa vida em comum aqui no vale terminou.


Morreremos tal como o nosso povo, firmes no Senhor. Seja corajosa.

Despertaram Ona que dormia na casa de pedras, e juntos os três


desceram para o piso do vale onde, com agourenta quietude, os invasores
já avançavam de casa em casa, efetuando sua obra mortal em relação às
pobres vítimas adormecidas.

Adriel avançou a fim de encontrar-se com a grande figura do líder


montado — as brilhantes tiras de sua arreadura esvoaçavam vistosamente
sob a brisa matinal. Em meio à penumbra, Shaina, que seguia após o
esposo, procurou ver a face do homem; ao chegar suficientemente perto,
não conseguiu evitar um grito de horror, pois aquela era a mesma face
que ela uma vez amara. Agora, porém, achava-se endurecida pela idade e
pelo mal. Atrás de Ben cavalgava Tobias, obviamente ocupando uma
posição de honra; então ela compreendeu que acontecera aquilo que
Matusalém há muito tempo temera. Enquanto a civilização avançava por
todos os lados, alguém que conhecia a entrada secreta do vale a revelara,
obviamente em troca de certo preço.

Como se estivesse em transe, ela ouviu a calma voz de Adriel:

— Ben, que traição de tudo aquilo que compartilhamos como parentes


traz você aqui neste momento?
114
O homem de Havilá olhou para baixo em direção aos três, como se
fossem estranhos. Shaina quase desmaiou ao ouvir os clamores
provenientes de todas as casas do vale, à medida que homens armados
assassinavam os adoradores do Deus verdadeiro. Ben dirigia-se a Adriel, e
suas palavras eram carregadas de ira fria.

— Você tomou todos eles de mim, Adriel. Um a um. Depois que você foi
embora, Natã nunca mais se sentiu contente na cidade. Ele sentia grande
falta dos velhos costumes de Havilá e da adoração a Deus. Perdi-o muito
antes que fosse morto, e isto por sua causa. Você me tomou Shaina, a
única mulher que cheguei a amar, e arrastou-a para este lugar escondido,
mas isto ainda não lhe pareceu suficiente. Você a tomou como esposa, a
ela que havia sido minha noiva. E mesmo isto ainda não o satisfez, Adriel.
Você voltou e também arrastou Ona a última que eu tinha. Não me fale de
traição.

Ona aproximou-se destemidamente e olhou diretamente nos olhos


daquele que ela acolhera em sua própria casa há muitos anos.

— Ben—disse ela com voz surpreendentemente controlada, de maneira


quase gentil — você sabe que isto não é verdade. Todos nós nos volvemos
para Deus por nossa própria e livre vontade. Adriel nada tem a ver com
isto, Ele suplicou a você que os acompanhasse quando ele e Shaina
partiram bem cedo naquela manhã. Você não pode lançar a culpa deste
morticínio sobre ele. E o poder do mal, que habita em você, que o trouxe a
este lugar. Você foi como um filho para mim durante muitos anos. Como
pode agora fazer uma coisa dessas?

Ben não proferiu palavra, e então seus homens caíram sobre Ona, e
logo depois sobre Adriel. Shaina ficou de pé como uma pedra, esperando a
arremetida, mas Ben interpôs seu cavalo entre ela e as lanças, dizendo
com voz áspera:

— Ela viverá. Tomem cuidado para que nenhum mal lhe suceda.

— Vá para sua caverna — ordenou ele — e que a sua dor seja tão
intensa quanto tem sido a minha. — Ele observou-a enquanto ela subia a
encosta montanhosa no momento em que os primeiros raios de sol faziam
brilhar seus cabelos dourados.

115
***

Os invasores jamais a molestaram enquanto construíam a pequena


cidade, embora os anos transcorressem. Tampouco jamais alguém
aventurou-se às proximidades de sua casa de pedras. Uma porção de cada
colheita era deixada junto a suas escadarias, e mediante o produto da
venda de suas peças de barro no mercado local, ela conseguiu sobreviver.
Vez por outra ela se defrontou com Ben ao longo de algum caminho
longamente trilhado, mas ele jamais lhe falou, desviando os olhos como se
fosse uma estranha. Ela procurou estabelecer amizade com as mulheres,
esperando poder falar-lhes do Deus verdadeiro, ou pelo menos mitigar
sua solidão, mas elas também a evitavam, demonstrando-se indispostas;
ela chegou a compreender que uma espécie de marca invisível havia sido
imposta a ela — que, ao final de tudo, o presente da vida que Ben lhe
outorgara era ainda pior que uma morte rápida, e que ele por certo
planejara as coisas exatamente desta forma.

Ali ficavam apenas ela e seu Deus, e no lugar secreto de oração ela se
aproximou mais e mais dEle, até que a solidão se converteu em paz, e esta
em regozijo.

Por vezes, em meio à escuridão da noite do sexto dia, os habitantes da


cidade podiam ouvi-la entoar as antigas canções do povo de Deus, e aqui e
ali alguns corações tremiam diante da lembrança das palavras de Enoque,
sentindo apreensões face ao futuro.

116
Capítulo 8
O Barco

Navit pôs-se de pé num momento, sacudindo migalhas de pão da toalha


que cobria a mesa, junto às escadas da longa e baixa casa de madeira de
carvalho que Noé lhe construíra logo depois de sua chegada a este lugar. A
casa se encaixava esmeradamente no ângulo formado pela encosta da
montanha e quase parecia uma parte da criação original, com seus bancos
de flores e arbustos espalhando-se à distância. Diante dela estendia-se
uma ampla campina de pastos verdejantes, fragrante pela presença de
trevos floridos, e pontilhada com os rebanhos de Noé e seus filhos. O
horizonte que lhe ficava à volta era constituído por um suave recorte de
graciosos outeiros arredondados. Pequenas cidades encontravam-se à
volta, a cerca de meio dia de viagem, e alguns viajores iam e vinham pela
velha estrada que cruzava a noroeste as pastagens da família, mas Noé era
respeitado e sua família vivia sossegadamente e à distância dos viajantes
enquanto estes se deslocavam de um lugar para outro.

Ou pelo menos havia sido esta a vida até que Noé começara a construir
o barco. Dobrando cuidadosamente a toalha, ela volveu-se para observar
a cena, não muito distante da estrada, que agora atraía muitos curiosos;
estes se acotovelavam em grande número por sobre a campina outrora
calma.

Por sobre um enorme e agora quase oculto esqueleto de madeira de


ciprestes, homens fervilhavam ocupados com as mais variadas tarefas.
Três daqueles homens eram seus filhos, Sem, Cão e Jafé. Outro era o velho
patriarca Matusalém, e havia ainda muitos dos tios e primos de Noé. Ela já
perdera a conta de todos eles, especialmente depois que seu marido
também passara a empregar muita mão-de-obra contratada.

O canteiro de obras continha igualmente várias casas destinadas a


abrigar os trabalhadores, uma grande estrutura sob a qual o grupo tomava
as refeições, bem como alojamentos nos quais os viajantes podiam parar e

117
observar e ouvir os apelos de Noé em favor de sua alma, por vezes ternos,
outras vezes severos.

A vida dos membros da família havia mudado grandemente desde a


noite em que Noé regressara de seu período de oração vespertina,
apresentando uma face pálida por debaixo da pele bronzeada do sol.
Chamando Matusalém, que vivia rio lar de Noé, este aproximara Navit de
si e a fizera sentar num banco próximo; enquanto os lampiões a óleo
lançavam longas sombras do grupo por sobre as paredes de madeira da
casa, ele lhes contou que um anjo do Senhor dele se aproximara. Eles não
questionaram aquilo que ele lhes dizia, sabendo que Noé sempre andara
nas santas pegadas de seu bisavô Enoque.

Obviamente abalado, Noé permanecera sentado em silêncio por alguns


momentos, procurando recompor-se. Navit apertou gentilmente o braço
do marido e ele se acalmou, como sempre sucedia diante do toque da
esposa.

Finalmente ele prosseguiu:

— Eu estava orando, mas mesmo com os olhos fechados, tive a


percepção de uma radiante luz que me atravessou como se fosse uma
lança, de modo que caí sobre o solo, aterrorizado.

Navit recordou a história da luz junto aos portões do Eden, que sua mãe
lhe contara.

— Porventura pecamos, Noé? — perguntou ela, denotando grave


temor na voz.

— Todos nós pecamos, minha querida — replicou Noé; — mas esta não
foi a mensagem. Os juízos preditos por Enoque estão a ponto de cair sobre
todos os que desafiam a Deus e se recusam a manifestar fé no Prometido.
— A magnitude do que ele havia experimentado, assim como a
terribilidade da mensagem de condenação que atingiria milhões, pareciam
querer esmagá-lo, de modo que chorou. — Oh, quão bom se alguma outra
pessoa houvesse sido escolhida para levar avante esta medonha tarefa—
gemeu ele.

Matusalém, sulcado e encanecido pela idade, de seu banco, junto à


janela, falou:
118
— Não é coisa de pouca monta haver encontrado o favor diante dos
olhos de Deus. Leve avante sua missão, manifestando confiança nAquele
que o chamou, e ponhamo-nos a advertir todos aqueles que estiverem ao
nosso alcance.

— O que fomos incumbidos de fazer? — Navit percebeu que havia mais


alguma coisa na história do esposo.

— Devemos construir um grande barco — ruminou Noé, ainda


aturdido.

— Um barco! — Ela riu vigorosamente, a despeito de si mesma. — Meu


querido, não existem águas maiores, a não ser um pequeno lago e alguns
regatos, ao longo de muitos quilômetros à nossa volta. O que iremos fazer
com um barco?

- Haverá um dilúvio, Navit, o qual sobrevirá a toda a Terra; somente


aqueles que estiverem no interior do barco poderão salvar-se.

— Dilúvio? — OS olhos de Matusalém fixaram- se, arregalados, na face


do neto. — Porventura Deus explicou o que é um dilúvio?

— A Terra será totalmente coberta por água - repetiu Noé


pacientemente. — Ela cobrirá até mesmo os cumes das mais altas
montanhas.

- E de onde procederá toda esta água? — insistiu o idoso homem.

Noé suspirou:

— Dos céus, e das profundezas da terra. E não me peça para explicar


como será isto, pois também não o sei, Somente posso falar daquilo que
me foi dito. O anjo utilizou o termo chuva ao falar das águas que cairão
dos céus. Navit pensou no orvalho que caía sobre a terra todas as manhãs,
antes do alvorecer, umedecendo gentilmente toda a vegetação. “Chuva.”
Ela experimentou a nova palavra sobre a língua não acostumada com a
mesma, e tentou imaginar a água caindo a partir da grande e azul
expansão que se arqueava sobre eles, dia após dia.

— De que modo nos desincumbiremos de semelhante façanha? — O


idoso homem estendeu pesadamente diante de si as pernas cansadas.

119
— Deus estabeleceu cuidadosamente Seu plano. Este requererá nosso
tempo e todos os nossos recursos. Nosso negócio de produtos de couro
terá de ser abandonado. Deus nos concedeu 120 anos para construirmos o
barco e advertirmos o mundo. Viveremos do produto de nossas hortas e
de nossos rebanhos. Também teremos de empregar muitos operários. Por
fim, o projeto requererá tudo aquilo que possuímos. — Ele olhou em
direção a Navit, assentada a seu lado — aquela sua pele cor de oliva
esboçando o brilho da saúde, seus cabelos negros encaracolando-se
livremente po sobre a face. Seus olhos verdes, claros e confiantes,
fixaram-se nos do marido.

— Está tudo certo, Noé — cochichou ela, enquanto um sorriso


desbotado lhe fazia encurvar os lábios. — O que quer que Deus lhe tenha
dito, está tudo certo.

***

Andamos um longo caminho, pensou ela agora, ainda em pé sobre as


escadarias, exposta à luz do Sol. Cento e dezoito anos de intenso labor e
amargo ridículo. A princípio alguns haviam ouvido, considerando com
seriedade a mensagem de Noé. Haviam até mesmo ajudado na
construção. Mas, à medida que os anos escoavam, o barco e seu esposo
vieram a tornar-se objeto de zombaria. As pessoas o consideravam como
um tolo, ou mesmo um débil mental. Multidões apareceram para ver e
ridicularizar. Somente no sétimo dia, quando a família repousava,
conheciam eles alguma paz, e mesmo assim os curiosos vagueavam
descaradamente em torno da arca, admirando-se da meticulosa
construção enquanto escarneciam da mensagem de Noé.

Exatamente agora ela podia ouvir a voz do esposo, erguendo-se acima


da confusão das marteladas e da conversa entrecruzada. Embora não
conseguisse distinguir perfeitamente bem as palavras , conhecia as
profusamente ‘O tempo está encerrando, meus amigos. Deus fará o ajuste
de contas. Vocês têm usado as riquezas da Terra sem qualquer
pensamento de obediência para com Aquele que as provê. Vocês se
colocam de joelhos diante de ídolos de prata e sacrificam seus próprios
filhos sobre altares de ouro. Vocês têm criado seus próprios deuses,
fazendo-os objeto de adoração. Recusam-se a demonstrar fé no

120
Prometido. Não têm demonstrado qualquer tristeza por seus pecados, e a
condenação jaz à sua porta.

— A água cobrirá a Terra. Somente aqueles que entrarem no barco se


salvarão. Vocês têm feito com que Deus Se arrependa de Sua própria
criação. Voltem-se, retornem de seus maus caminhos enquanto ainda há
tempo. Deus é misericordioso. Deus perdoa.

Ela ouvira o marido milhares de vezes, de modo que já nem prestava


atenção nos gritos de escárnio. — Deveremos trazer um cântaro de água
para este grande dia, Noé?

— Você tem apanhado muito sol na cabeça, Noé!

— O que faz você pensar que é mais santo que nós, Noé?

Vez por outra ela pudera perceber alguém, situado nas orlas da
multidão, verdadeiramente ouvindo, e ela se dirigira até essas pessoas,
insistindo em que levassem a sério as palavras de Noé. “Deus não está.
pedindo muito. Tão-somente entre no barco quando Noé o chamar.
Confie nas palavras dele. Ouça o que diz meu esposo. Ele é um homem de
Deus. Ele seria incapaz de mentir a vocês.” Ela nunca sabia se aquele seu
esforço era de alguma utilidade. mas sempre prosseguira tentando.

E seus filhos. Ela se sentia orgulhosa deles. Prosseguiam martelando,


serrando e aplicando betume às paredes do barco. Na mesma noite em
que Noé revelou a mensagem que recebera do Senhor, ele contara a
Navit, mais tarde, na privacidade do casal, que no concerto estabelecido
por Deus com ele, o Senhor mencionara filhos e até mesmo as esposas
destes.

- Não senti qualquer necessidade de lembrar ao Senhor que não ternos


filhos — acrescentara Noé, rindo com gosto.

- Isto significa que terei filhos, meu querido. — Navit respirou fundo e
com tal êxtase de regozijo, que seu esposo riu fortemente uma vez mais,
enquanto a trazia para junto de si.

— Espero que seja exatamente isto que Ele tenha querido dizer —
murmurou ele em meio aos macios cabelos escuros da esposa. — Os
campos de Noé encher-se-ão do riso de crianças e com a derrubada de
121
árvores. Oh, minha doce namorada, os anos que estão à nossa frente
serão muito solenes, mas . . . filhos, você é capaz de imaginar, Navit,
filhos?

Ouvindo a exultação do marido, Navit pôde compreender quão intenso


havia sido o seu anelo durante os anos em que ela se revelara infecunda.
Ele ocultara estes sentimentos a fim de poupá-Ia, mas agora, quando
havia uma segura promessa, ele podia dar-se ao luxo de explodir numa
selvagem alegria, que ela foi capaz de perceber em cada fibra de sua
musculosa constituição. Ela sentiu-se embriagada com a excitação do
marido, e ambos se abraçaram efusivamente, rindo e chorando ao mesmo
tempo, almejando que logo se cumprisse a promessa de fertilidade.

Tudo isto ocorrera vinte anos antes do nascimento de Jafé. Algumas


vezes, durante esse período, Navit ficara a interrogar-se se o marido
ouvira corretamente as palavras de Deus, mas ele jamais duvidara. Diante
da primeira indicação de gravidez da esposa ele construíra um novo altar e
oferecera um sacrifício em ação de graças. Os filhos tinham vindo — três,
na verdade — e um bem perto do outro, até que pareceu a Navit que ela
sempre teria de andar com as costas encurvadas e o ventre arredondado e
saliente, como se fosse uma roliça melancia. Mas ela desfrutara todos os
momentos daquela experiência. O movimento de vida dentro de si, as
intensas tarefas maternais que a sobrecarregavam, o maduro
intumescimento de seu corpo enquanto ela nutria a semente de Noé.
Mais depressa do que se dera conta, tudo havia passado, e em breve ela
readquirira o corpo esbelto enquanto corria atrás de três garotos
travessos, tratando de mantê-los sempre distantes da multidão e fora do
caminho dos operários.

A tardinha Noé conduzia os meninos pela estrutura, explicando-lhes o


trabalho, o propósito o a sagrada tarefa que recebera. Ali, em meio à
surpreendente velocidade com que a construção se desenvolvia, ele os
ensinou a dobrarem seus pequenos joelhos diante de Deus e a lhe
apresentarem singelas orações, repetindo as palavras que ele próprio
pronunciava. Eles cresceram e se tornaram jovens, fortes e vigorosos
homens — um deles loiro como seus antepassados de Havilá, os outros
dois morenos e meditativos como o pai. E eles nada conheciam a não ser o
barco. Conheciam o ruído produzido por grandes árvores que caíam
122
mediante um estrondo capaz de sacudir a terra por vários quilômetros ao
redor. Conheciam a dureza da tarefa que representava cortar a bonita
madeira, dura como pedra. Conheciam a tendência à perfeição expressa
na vontade do pai, enquanto ele executava a construção de acordo com o
projeto divino. Eles conheciam o calor do sol ardendo em suas costas
escuras, os calos das mãos e o ritmo de martelos que golpeavam
incessantemente em seus ouvidos.

Navit temia que as esposas de seus filhos não permanecessem fiéis à


missão. Noé encontrara para seus filhos primas distantes, descendentes
do Enoque. Tinham sido cuidadosamente escolhidas, mas as jovens já
haviam adquirido muitos costumes mundanos antes de se tornarem parte
da família de Noé. Com muito tato e amor, Navit falou- lhes do Deus
verdadeiro, mas ela teve a sensação de que, afinal de contas, fora a
humilde integridade de Noé que lhes cativara os corações.

Seu sogro, Lameque, morrera três anos antes, mas Matusalém ainda
vivia e desenvolvia atividades. Navit apreciava muito tê-lo com a família,
pois tão-somente ele compartilhara com ela os distantes dias do vale de
Enoque. Muitas vezes falavam a respeito daqueles delicados dias, assim
como de Rimona, Jonine, Shaina e Adriel. Matusalém estivera fora do vale
quando a invasão de Ben ocasionara a morte de todos, exceto de Shaina.
Quando ele retornou e percebeu a grande quantidade de rastos barrentos
na entrada, suspeitou que alguma catástrofe se houvesse abatido sobre os
habitantes. Cautelosamente contornou o vale até que, a partir da
extremidade norte, foi capaz de observar toda sua extensão; conforme
suspeitava, observou o frenesi de construções invadindo todo o lugar. Não
conseguindo reconhecer qualquer pessoa, tomou como certo que todos
os habitantes haviam sido mortos e sob a mais amarga tristeza tratou de
chegar a habitação de seu filho Lameque e seu neto Noé. Ele e Navit
haviam estado um ao lado do outro em sua mútua dor, e ele se mudara
prazerosamente para a casa dela, conseguindo gradativamente recuperar-
se sob seu terno cuidado.

Após o nascimento de seus filhos, Navit almejou dolorosamente pela


presença de sua mãe. Hoje ela suspirava por poder mostrar a Shaina a
fragrante campina com aquela estranha estrutura avolumando-se em sua
porção final. Queria sobretudo destacar as três figuras bronzeadas que
123
eram seus filhos, bem como sua fidelidade a Deus e ao encargo que sobre
eles pesava. Queria também que sua mãe soubesse do amor que reinava
entre ela e Noé — daquele selvagem e doce amor que os unira para
sempre. Percebera a dúvida nos olhos dos pais quando ela e Noé haviam
cavalgado para longe de casa. Desejava que soubessem agora que ela
agira corretamente — mais do que ela própria seria capaz dc sonhar ao
entregar-se a Noé. Que, a despeito de todas as pressões sobre ele
exercidas em virtude de seu trabalho para Deus, jamais deixara de
procurá-la à tardinha a fim de confortá-la e nutri-la, e para mostrar-lhe a
mais terna afeição imaginável. Era como se o fato de ele havê-la
descoberto jamais se houvesse apagado de sua mente, antes o fresco
sabor da descoberta exercida sobre o coração dele o enchesse
diaiiamente com o mais extraordinário regozijo. Se tão-somente sua mãe
pudesse tornar conhecimento de tudo isto!

Zoé, a esposa de Sem, chamou-a do curral das ovelhas, e Navit correu à


janela de madeira que oferecia visão para o lado leste da propriedade —
Você poderia trazer-nos algo para beber, mamãe? — solicitou a jovem
enquanto segurava uma ovelha entre os joelhos e habilmente tosquiava o
irrequieto animal. Zoé havia assumido gradualmente o encargo do gado e
das ovelhas pelo fato de a construção exigir mais e mais o tempo dos
homens. Navit maravilhou-se ante a forte e saudável figura da nora,
enquanto esta colocava mais um animal em submissão. Os rebanhos de
bovinos e ovelhas haviam prosperado sob seu cuidado, provendo agasalho
e alimento para a família. Navit e as outras duas, Malka e Nasya, cuidavam
dos campos e hortas. Haviam trabalhado arduamente, como se fossem
homens, mas o trabalho liberara nelas tal grau de vitalidade, que Noé e
seus filhos se maravilhavam da beleza de todas. Os oito era como que
uma só pessoa, enquanto pregavam, construíam, armazenavam — uma
unidade uniformemente concentrada em preparar as pessoas e o lugar
para o tempo da chuva.

Navit correu em direção à casa a fim de trazer algo refrescante para Zoé
e suas tosquiadoras.

Nessa noite, enquanto Noé falava da enorme quantidade de alimentos


que necessitavam começar agora a armazenar no barco, tanto para
pessoas quanto para animais, Matusalém parecia desinteressado, com
124
seus pensamentos povoando alguma região distante. Noé dependia
muitas vezes da magnífica memória do idoso senhor, e agora falou-lhe
com um certo traço de impaciência:

— Vovô, eu gostaria que você se encarregasse dos suprimentos que


deverão ir para o barco. Tenho de transferir estes números de minha
mente para a sua, de modo que eu não tenha de gastar tempo envolvido
em reunir grãos e frutas secas. Não haverá nisto trabalho extenuante, no
que diz respeito a você. Ombros mais jovens poderão empreender o
trabalho físico. Mas necessito de sua mente confiável no trabalho de
supervisão.

Matusalém contemplou o neto afetuosamente. Haviam juntos


conduzido o trabalho de Deus ao longo de muitos anos, e em meio a
severos perigos e pequenas vitórias.

— Meu filho - disse ele em tons amoráveis — você terá de armazenar


seus conselhos em outra mente, pois eu me dirigirei à minha última
viagem, da qual não haverá retorno.

Navit respirou ofegantemente. Estaria ele falando da morte? Ela pôde


vê-io enquanto subia com certa dificuldade a encosta da montanha, rumo
à caverna, há muitos anos — levava consigo alimentos e logo mais
procurava encontrar palavras que expressassem, diante de Adriel e
Shaina, o amor de Noé por ela. Sobre o que estaria ele falando agora, aqui
neste lugar que se tornara o seu lar?

— Quero empreender uma última viagem às cidades, advertindo-as da


chuva que virá — prosseguiu ele. — Milhares ouviram apenas rumores.
Eles se lembrarão de mim. Saberão que falo a verdade. Talvez uns poucos
atenderão a advertência. Se minha vida for poupada, eu gostaria de ir,
depois de tudo, até o vale de meu pai, onde certamente encontrarei a
morte; não antes, talvez, de haver apresentado minhas palavras e lhes
oferecido a última oportunidade.

Ele está falando daqueles que assassinaram sua amada Jonine e sua
preciosa mãe Rimona, pensou Navit enquanto se lhe enchiam de lágrimas
os olhos.

Noé começou a falar, mas Matusalém ergueu a mão.


125
— Não tente dissuadir-me, filho, pois esta é a vontade de Deus.

Na manhã seguinte o velho homem cavalgou para longe da vista de


todos, ao longo da estrada já ladeada de curiosos e zombadores. Em meio
às lágrimas, Noé e Navit observaram-no distanciar- se — aquele gigante
gentil e de cabelos brancos, cavalgando calmamente em direção à morte
certa que lhe destinava o desempenho da missão divinamente recebida.

— Eu queria tanto que ele estivesse conosco no barco — soluçou Navit


enquanto se agarrava a Noé.

Seu esposo suspirou, esfregando gentilmente a barba contra o rosto de


Navit.

- Sinto-me agora mais sozinho do que alguma vez julguei possível. Ele
era um grande conforto e fortaleza para mim, sempre que a turba
zombava e me lançava frutas podres.

- Agora Deus será a sua fortaleza, meu amor — disse ela mansamente.
— Talvez isto seja parte de Seu plano.

Depois disto, porém, ela passou a roubar de suas tarefas tanto tempo
quanto possível, a fim de estar ao lado do esposo enquanto este pregava,
permitindo que os insultos e os mísseis caíssem também sobre ela, até ao
ponto de chegar a experimentar a dor do esposo em todos os recessos de
seu próprio ser; e assim o amor de um pelo outro e de ambos por Deus
cresceu ainda mais.

Sem, Cão e Jafé trabalhavam com toda a intensidade de suas mentes,


por vezes avançando noite adentro, pois o luar invadia a campina e lhes
permitia ver razoavelmente bem. Isto ocorreu porque, à medida que o
desdém em torno do projeto aumentava, os trabalhadores contratados
escassearam. Zoé, Malka e Nasya, tendo sempre a ajuda e estímulo de
Navit, encheram mais e mais os grandes depósitos do barco com seus
grãos, feijões e pasto seco para os animais. Durante os últimos meses eles,
os sete, trabalharam quase sozinhos, pois Noé dedicou-se a pregar com
maior fervor do que nunca.

****

126
Matusalém penetrou no vale a partir do rochoso acesso do norte,
abrindo caminho por sobre um trilho raramente utilizado. Em várias
cidades ele contara a história das grandes águas que encobririam a Terra.
Da maioria delas ele mal conseguiu escapar com vida. Seu coração partira-
se de dor com as coisas que havia contemplado. A doença do pecado e da
rebelião grassava por toda parte, maligna, sobre a bela Terra, e a
humanidade abusava do precioso dom da vida sob todas as formas
imagináveis. Os homens lutavam nos lugares férteis da Terra, seu sangue
ensopando as verdejantes campinas e vales escondidos. Por toda parte
imagens erguiam se em meio a elaborados jardins, e suas faces benignas
disfarçavam suas cruéis demandas. Matusalém almejou muito o calmo lar
de Noé e Navit e os campos gentis onde um grande barco se erguia em
direção ao céu, mas ele tinha de si uma última missão — aquela que o
levaria ao lar de sua infância, e ali ele não esperava sobreviver.

Durante um momento ficou de pé, parado, medindo a profundidade do


vale, relembrando o distante passado. Pôde ver Navit, uma garotinha de
irrequietos olhos verdes e encaracolados cacho pretos que caíam sobre a
face, trotando após os passos de Shaina enquanto levavam uma cesta de
alimentos para alguma pessoa doente ou idosa. Seus olhos passearam
sobre as encostas montanhosas, cheias de cores, as quais Shaina e Ira
tinham cultivado havia centenas de anos. Não havia muito para ser
reconhecido. Os humildes lares do povo de Deus haviam desaparecido,
substituídos agora por estruturas tão magnificentes que o velho homem
as contemplou, olhos arregalados de surpresa

Lentamente ele abriu caminho descendo ao piso do vale, em direção ao


mercado público e encostou-se, muito cansado, a um dos pilares; ali,
aquecido pelo sol, começou a falar. Gradualmente o trânsito da rua foi-se
tornando mais lento e as pessoas foram-se acumulando em torno dele,
algumas ouvindo, outras soltando gargalhadas ou ainda proferindo um
motejo de quando em quando.

“Meus irmãos”, disse ele enquanto sua majestosa cabeça branca se


volvia de um lado a outro seus olhos brilhavam ao contemplá-los “Eu sou
Matusalém, e cresci neste vale.” Um murmúrio percorreu a multidão.
“Meu pai, Enoque, a quem Deus levou para Si, viajou de cidade em cidade,
advertindo quanto a um juízo vindouro. Estou certo que alguns de vocês
127
ainda se lembram dele. Ele suplicou que vocês retornassem a Deus. A hora
a respeito da qual falou, agora se encontra às portas.” Repentinamente
ele apanhou um vislumbre de uma face que jamais sonhara encontrar.
Shaina estava de pé diante dele, em meio à multidão. Sua face revelava a
idade avançada, mas permanecia serena como a de um anjo. Seus olhos
verdes brilharam sorrindo, quando encontraram os dele e ela pôde ler-lhe
nos olhos todo o espanto e deleite. Não deram nenhuma indicação de
haverem-se reconhecido — não se atreveram a fazê-lo — mas os olhos de
ambos como que se abraçaram e o regozijo dos dois era quase tangível.

Com voz tremente Matusalém prosseguiu, falando ao povo — mas


também a Shaina, dizendo-lhe tudo que lhe pareceu mais ou menos
seguro expor.

“Meu neto, Noé, está construindo um grande barco em sua


propriedade. Nele deverão embarcar todos os justos quando as águas
caírem dos céus e explodirem do meio da terra. Ele e seus três filhos têm
estado a trabalhar durante 120 anos. A qualquer dia destes Deus cobrirá a
Terra com água. Ninguém escapará, exceto aqueles que estiverem na
arca. É esta a palavra de Deus. Ide, Ide agora, enquanto é tempo. Creiam
nas advertências do Senhor. Encontrem segurança no barco. Abandonem
seus pecados ...

Diante da palavra pecados, um estrondo irado ergueu-se da multidão, e


aquela massa humana avançou em bloco contra o velho homem. Ele ainda
ouviu um grito emitido por Shaina e sentiu o corpo dela arremessar-se
contra o dele, à modo de escudo, enquanto ambos eram derrubados a
solo pelo peso de homens corpulentos e socos certeiros. Antes que tudo
escurecesse para ambos, Shaina ainda conseguiu cochichar uma pergunta:

— E Navit?

— Feliz e muito bem — respondeu Matusalém.

Ben sepultou-os no lugar secreto de oração de Shaina, onde os narcisos


de Adão ainda floresciam.

Depois ele ordenou que fortes homens rolassem uma enorme pedra
sobre a entrada do túnel, selando-o para sempre. Desceu então a encosta

128
montanhosa, sentindo já na boca o gosto amargo da condenação que se
aproximava.

*****

Navit permanecia quietamente em pé ao lado de seu esposo enquanto


este pregava; sua mente percorria a lista de suprimentos, seus olhos
penetravam as faces indiferentes que tinha diante de si. Logo deveria
preparar a refeição do meio-dia, mas sabia, por outro lado, que o esposo
encontrava forças em sua presença ali, de modo que não se afastava. Por
vezes Sem o substituia durante nas poucas horas, e Navit sentia-se
orgulhosa de seu corajoso filho, enquanto sua firme voz se erguia mais
alto que a mofa dos observadores. Ela pensava muitas vezes em
Matusalém, sabendo que algum mal lhe sucedera, pois demorava-se
tanto.

A esperança de que ele entrasse com eles no barco foi difícil de


extinguir. Seriam eles apenas oito? Cento e vinte anos de pregação — não
teriam eles sido capazes de produzir uma única alma convertida? Ter-se-ia
erguido em vão a voz de Noé todas essas milhares de vezes?

Uma pequena cidade crescera em torno deles. A princípio, haviam sido


apenas os oportunistas que procuravam satisfazer as necessidades das
multidões; outros haviam aparecido, entretanto, atraí- pela beleza do
lugar e pela agitação que ali sempre estava presente. Imagens douradas
erguiam-se rumo ao céu, e os sons de festas e orgias quebravam a
quietude das noites. Poucos ainda se dispunham a ouvir. Noé e seu
enorme barco eram tolerados meramente como objeto de divertimento.

Navit recém havia começado a afastar-se de onde se encontrava o


esposo quando percebeu estranho ruído e percebeu o repentino
ensombreamento da campina ensolarada. Seus olhos volveram-se para o
céu, e mais que surpresa ela pôde ver pássaros — milhares deles —-
deslocando-se numa onda escura em direção ao barco, e o bater de suas
asas mais parecia o rugir de fortes ventos.

— Noé — disse ela procurando recuperar o fôlego — veja o que está


acontecendo!

Ele parou em meio a uma sentença e perscrutou os céus.


129
— A palavra de Deus está sendo cumprida. Certamente agora eles
crerão.

Grande silêncio abateu-se sobre a campina, até ao ponto em que se


podia ouvir apenas o ruflar de asas; logo depois, à distância, o passo firme
de animais de todas as espécies.

Reuniram-se junto à rampa do barco, Noé e sua família, observando a


aproximação dos animais. Ursos, tigres, elefantes, leopardos, gansos,
bovinos, cavalos, camelos, pequenos ratos do campo, esquilos, raposas,
girafas. Animais que eles jamais haviam visto — animais domésticos,
bestas selvagens. Vinham todos em perfeita ordem. Várias vezes Navit se
perguntara de que modo conseguiriam eles encher todos os currais e
gaiolas, construídos com tanta precisão, segundo as especificações
divinas. Agora ela se indagava se eles poderiam de alguma forma revelar-
se suficientes para todos aqueles animais.

Os transeuntes, há pouco tão prontos em ridicularizar, agora


permaneciam mudos de espanto. Seus maiores intelectuais e eruditos
haviam afirmado que o Criador jamais atropelaria as leis da Natureza, mas
aqui o vigoroso leão montanhês caminhava pacificamente atrás de dois
lanudos cordeirinhos. Seria possível que, depois de tudo, Deus abriria o
ensolarado céu e através dele derramaria água em profusão? Ainda havia
tempo. A porta do barco encontrava-se aberta, estendendo as boas-
vindas.

O afluxo de animais parecia interminável. Hora após hora eles


avançaram para dentro da arca, até que a rampa quase se desfez pelo
intenso uso, coberta de dejetos. Noé e seus filhos conduziam-nos para o
interior de gaiolas e currais e prenderam chamarizes junto às portas, até
que todo barco se tornou uma grande cacofonia de rufos animais.
Quando, finalmente, dois coelhos saltaram por sobre o degrau da porta, a
longa fila que fluíra durante horas da floresta, repentinamente cessou.

Os últimos e compridos dedos de sol estendiam-se, dourados, por sobre


os campos, quando Noé falou do alto da rampa; sua família achava-se
reunida em torno dele e os trabalhadores cessaram, finalmente, suas
últimas atividades.

130
— Amigos, hoje vocês contemplaram o poder de Deus em operação. Já
não precisam mais confiar apenas em minha palavra. Vocês viram os
animais entrarem no barco, conduzidos por alguma invisível mão. Deus
tomou providências para que os animais sobrevivessem, e muito anseia
por fazer o mesmo com vocês. Venham. Venham e encontrem aqui a
salvação.

Navit, perscrutando as faces dos ouvintes, percebeu o temor e um novo


respeito pela mensagem de Noé. Viu quando uns poucos começaram a
deslocar-se em direção à rampa. Então alguém soltou uma gargalhada. E a
gargalhada tomou conta da multidão, crescente e dilatada, como que se
convertendo num selvagem troar de tensão liberada. O temor dissolveu-
se e desapareceu. De alguma forma o desfile de animais tornou-se mais
um motivo de escárnio, e tudo isso num instante. Navit sentiu a angústia
apoderar-se do esposo enquanto ele procurava elevar sua voz acima dos
risos, lutando por trazer aquela turba de volta à razão.

Alguns começaram a subir a rampa aos pares, de quatro pés, imitando


os animais — tão-somente para voltarem rapidamente logo depois,
criando assim mais um aspecto de hilaridade. Outros regressaram para
seus lares à agradável luz do entardecer, seguros de que nada alteraria o
eterno padrão do alvorecer/entardecer. Crianças pequenas perguntavam
por que os ursos haviam vindo, todos por sua própria vontade, até o barco
de Noé — tão-somente para serem silenciadas por pais e mães que
preferiam não pensar nos acontecimentos daquele dia. Adoradores
acenderam o fogo diante de suas imagens, e as elevadas chamas
refletiram-se sobre o ouro e radiantes gemas enquanto homens e
mulheres dançavam e cantavam, avançando pela noite perfumada de
flores.

Repentinamente o próprio ventre da campina de Noé pareceu explodir


com o vigor de uma luz que eclipsou todas aquelas fogueiras infames. Os
participantes das danças caíram sobre o gramado frio e tremeram
enquanto o fulgurante brilho deslocou para junto da porta do barco.
Muitos haviam especulado, com cruel humor, sobre como Noé seria capaz
de enclausurar-se a si próprio, pois a grande porta achava-se obviamente
além da capacidade humana, quanto a ser fechada. Agora, em meio a
relâmpagos de luz cegadora, viram enquanto ela girava lentamente sobre
131
seus gonzos até que, sob um baque surdo, veio a ocupar o lugar
apropriado.

Pela segunda vez, neste mesmo dia, o temor caiu sobre os que
observavam. Desta vez a porta não oferecia uma segunda oportunidade. A
voz de Noé não mais seria ouvida em comoventes apelos. Os campos
silenciaram, e sua própria quietude representou um agudo grito de
advertência.

***

Pela centésima vez Navit tratou de afastar uma torrente de terror que
parecia querer engolfá-la. Seis dias haviam decorrido, e nestes eles pouco
mais haviam feito, além de cuidar de animais. A princípio mal haviam
encontrado tempo para suas próprias refeições, mas com o passar dos
dias estabeleceram uma rotina segundo a qual cada um teria
determinadas tarefas a desempenhar; agora lhes sobrava um pouco de
tempo para descanso e lazer. Era o dia sétimo, doce presente de adoração
e comunhão com Deus, e ela tentou captar aquela doce paz sabática que
sempre representara uma fonte de renovação; mas esta pareceu evadir-
se. As paredes do barco hermeticamente fechadas à sua volta; ferozes
olhos luminosos de animais selvagens a amedrontá-la; e o constante ruído
de animais desassossegados, assaltavam seus ouvidos. Não era nada
parecido com o que ela imaginara. Tudo era tão ordenado e limpo
enquanto elas se haviam ocupado em encher os depósitos, a fragrância de
trevo seco misturando-se com o pungente aroma de madeira. Agora,
porém, o ar era abafado e fétido. Os oito ocupantes humanos quase não
falavam entre si, exceto quando necessário, pois eles próprios se sentiam
irritados, sob a tendência de se abocanharem uns aos outros. Eles se
moviam vagarosamente à semi-escuridão, aguardando. Quando a glória
de Deus fechara sobre eles a gigantesca porta, haviam-se ajoelhado em
profunda reverência, louvando-O por tão confortadora evidência de Sua
presença. Agora esperavam pelo início da chuva, mal conseguindo saber
se era dia ou noite. Do lado de fora provinham as zombarias dos que se
encontravam à volta do barco. Ocasionalmente um pedaço de pau ou
alguma pedra batiam de encontro à lateral da arca agitando todo um
setor de animais, numa reclamação do tipo reação em cadeia.

- Como é que você vai sair da agora, Noé?


132
— O sol está delicioso aqui fora, Noé. Nem uma gota de chuva à vista!

— Durante quanto tempo você pretende manter aí encerradas as belas


e jovens esposas de vocês, seu velho caduco?

- Estes são seus últimos dias. Pobres almas. No alimentemos qualquer


irritação contra elas. — Noé chamou, com um aceno de mão, a sua família
para demoro do quarto que ocupava com Navit e fechou a porta. Isto lhes
permitiu um momento de quietude.

— Meus queridos, têm sido horríveis para nós. Não estamos


preparados. - Seus olhos moveram-se ternamente em direção à esposa, a
seus filhos e às jovens mulheres que haviam trabalhado tanto, —
Estivemos tão ocupados com nossas muitas atividades, que não tivemos
tempo de pensar nas realidades, desta experiência. Eu gostaria de poder
dizer-lhes que em breve tudo será mais fácil, mas este não é o caso.
Quando a chuva começar e o barco

dancar sobre as ondas como se fosse uma pequenina casca de noz,


teremos de manifestar uma coragem que ainda não possuímos. Vocês
devem lembrar-se, entretanto, de que Deus prometeu livrar-nos - não
importa quão severos venham a ser nossos sofrimentos, certamente
sobreviveremos.

Nasya explodiu em lágrimas:

- Não tenho medo de sofrer. Mas a minha família – eles estão perdidos.
Jamais tornarei a ver meus pais, nem meus irmãos.

Navit dirigiu-se à jovem, a distante descendente de Enoque que Noé


escolhera para Jafé, e ajoelhou-se diante de seus pés, tomando entre suas
mãos as da moça.

Minha filha -- confortou ela — compreendo suas lágrimas. Mas é


possível que alguns dentre sua família tenham permanecido fiéis a Deus.
Talvez eles tenham dormido antes deste dia terrível e repousem
serenamente no pó da terra, aguardando a gloriosa hora da segunda vinda
do Prometido, quando Ele chamará Seus fiéis filhos para fora de suas
sepulturas.

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A jovem soluçou baixinho, e Navit pôde observar também uma terrível
tristeza nos olhos de Zoé e Malka.

Amando-as muito e recordando os longos e pacientes labores que elas


haviam desempenhado ao lado da sogra, esta dirigiu-se a todas elas:

- Minhas filhas, o seu chamado é muito notável. Deus viu vocês como
jovens puras, que Ele utilizará em Seu plano de purificação da Terra. Serão
seus filhos e filhas que repovoarão o mundo. Através de vocês e de nossos
filhos Ele tentará criar novamente um povo obediente e santo. Por tanto,
enxuguem suas lágrimas e tomem alento. Vocês são preciosas para nós,
assim como para nossos filhos. Vocês são as eleitas de Deus.

Noé reuniu então a todos em torno de si, conduzindo-os em oração, e


Navit maravilhou-se, uma vez mais, da notável amizade existente entre
seu esposo e Deus. Caso em alguma ocasião a sua fé vacilasse, bastaria
ouvi-lo quando em oração a fim compreender quão fino era o véu
existente entre a Terra e o Céu. Suas tristezas e temores se desvaneceram.
Entoaram os cânticos do culto da tarde com o coração aliviado. Agora
conseguiam até mo sorrir diante da excentricidade de algum animal, e
assim chegou ao fim o sexto dia de sua espera.

Na manhã seguinte, o brilho do sol invadiu os três pisos do barco,


realçando pequeninas partículas de pó em seus raios. A área central
aberta era sempre a mais iluminada, e uma vez que as tarefas haviam sido
cumpridas, os oito gravitavam em torno deste local. Os gracejos dos
zombadores, provindos do exterior, mesclavam-se com o fungar e outros
sons produzidos pelos animais, enquanto comiam.

Noé serviu uma travessa de damascos, uma bandeja de pães de painço


e xícaras de leite morno. Quando terminaram de comer, Noé sorriu para a
esposa, a quase-adoração amaciando as sulcadas linhas de sua face.

— Cante-nos algo, meu amor. Temos tido pouco tempo para a música,
e meus ouvidos estão famintos por sua voz.

Sem estendeu-lhe a harpa de Natã, que Ona trouxera consigo ao longo


de toda a viagem pela floresta escura, e Navit deixou correr os dedos por
sobre as cordas, pensando no grande avô que jamais chegara a conhecer.
Ela os perdera a todos por amor a Deus. Seus ancestrais de Havilá, seus
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pais, Ona, Rimona, Natã, Matusalém. Do mais profundo de sua tristeza,
ela começou a cantar a canção de Eva com todo o seu sentimento de
pesar e perda — e os doces acordes da harpa abraçavam sua voz clara e
melódica à medida que a luz do sol caía rica e macia em torno dela.

Repentinamente a escuridão ocultou a luz e uma torrente de água


desceu, qual cascata, por sobre a janela que ficava muito acima de onde
estavam. Os sons de deboche do lado de fora, converteram-se em gritos
de terror e súplicas para que fosse aberta a grande porta do barco. O
constante rufar da chuva misturou-se com os ventos ululantes, levando os
animais a gemer e se arremessar contra as barras de proteção.

Noé chorou pelos perdidos e todo o seu pranto como que foi
entretecido com um fio de prata pelo som da harpa e pela voz de sua
amada, enquanto cantava:

“Foram-se os lírios do Éden,


Foram-se as plumas da beleza.
Foi-se o nosso Amigo que no crepúsculo
Ali passeava com certeza.
Foram-se os inocentes prazeres
Que alegravam o dia ensolarado.
Meu coração, mesmo do mal manchado,
Eleva-se em louvor e gratos dizeres
Àquele que me fala de perdão,
Que Sua vida em meu lugar deporá
E sobre minha cabeça pecadora
O precioso sangue de Sua morte derramará...”

“Pois assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do
homem.

Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio, comiam, bebiam,


casavam e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca,
e não o perceberam, senão quando veio o dilúvio e os levou a todos, assim
será também a vinda do Filho do homem.” Mateus 24:37-39

“Tendo em conta, antes de tudo, que, nos últimos dias, virão


escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as próprias
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paixões, e dizendo: Onde está a promessa da Sua vinda? Porque desde
que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o
princípio da criação.

“Porque deliberadamente esquecem que, de longo tempo, houve céus


bem como terra, a qual surgiu da água e através da água pela palavra de
Deus, pelas quais veio a perecer o mundo daquele tempo, afogado em
água.

“Ora, os céus que agora existem, e a terra, pela mesma palavra têm
sido entesourados para fogo, estando reservados para o dia do juízo e
destruição dos homens ímpios.

“Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que, para
com o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia.

“Não retarda o Senhor a Sua promessa, como alguns a julgam


demorada; pelo contrário, Ele é longânimo para convosco, não querendo
que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento.

“Virá, entretanto, como ladrão, o dia do Senhor, no qual os céus


passarão com estrepitoso estrondo e os elementos se desfarão abrasados;
também a terra e as obras que nela existem serão atingidas.

“Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais
como os que vivem em santo procedimento e piedade; esperando e
apressando a vinda do dia de Deus, por causa do qual os céus incendiados
serão desfeitos e os elementos abrasados se derreterão.” II S. Pedro 3:3-
12.

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