Kant Versus Mill

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 11

1- A teoria deontológica de Kant.

(1724-1804)

Filósofo alemão nascido em Konigsberg, Kant é um dos filósofos mais influentes


de sempre. Aos 16 anos ingressou na universidade da sua cidade natal e, concluídos os
estudos, trabalhou como preceptor de várias famílias aristocráticas. Em 1755 tornou-se
professor sem salário fixo da sua universidade até que em 1770 foi nomeado professor de
lógica e de metafísica, cargo que manteve até à sua morte. A partir dos 54 anos começou a
escrever as obras que contribuíram para a sua extraordinária reputação. Destacam-se a Crítica
da Razão Pura (1781), Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Crítica da Razão
Prática (1788), Crítica da Faculdade de Julgar (1790) e A Religião nos Limites da Simples Razão
(1793). A sua ética revela alguns traços da educação pietista recebida. O pietismo era um
movimento religioso que valorizava a interioridade - o sentimento religioso e não os rituais e
práticas estabelecidos – negando a necessidade de submissão a organizações eclesiásticas.
Outra influência significativa é o racionalismo iluminista, a valorização da razão e a rejeição de
uma autoridade exterior a esta. Defendeu a liberdade de pensamento e de expressão contra
as arbitrariedades do despotismo. A sua moral lança também as bases de uma ética da pessoa
– nenhum homem é instrumento ou objeto – cujos princípios influenciaram as Declarações
dos Direitos Humanos de 1789 e de 1948. Respeito e dignidade pela pessoa humana são
expressões que se tornaram familiares e que Kant explicitou pela primeira vez

O que é uma ação moralmente boa ?

Uma ação moralmente boa é, para Kant, aquela em que a intenção de quem age é
desinteressada. Por intenção desinteressada entende Kant a intenção que não se baseia no
interesse particular do agente.
Para Kant, uma ação possui valor moral, quando o indivíduo obedece, não aos seus interesses
particulares, mas apenas e somente às ordens da sua razão.
É possível agir de acordo com este princípio kantiano?
Sim, é possível.
Pensemos no exemplo do juiz. O juiz na avaliação de uma determinada situação, procura avaliá-
la de forma objetiva e imparcial, sem qualquer tipo de interesse particular nessa avaliação. A
intenção com que o juiz age na avaliação de um determinado caso é puramente desinteressada.
Por que razão a ação cuja intenção é desinteressada é a única ação moralmente correta
para Kant? Porque é o único agir que obedece incondicionalmente às ordens da nossa razão,
ordens essas que são universais, as mesmas para todos os seres racionais. Por sua vez, a ação
motivada por interesses, é um agir particular, individualizado, que apenas serve os interesses
particulares de um certo indivíduo. Quererei eu que o princípio de ação do indivíduo que age
por interesse possa ser universalizado? Não. Imagina o caso de um indivíduo A que pede
dinheiro emprestado a um outro com a intenção de não devolver o dinheiro. Este indivíduo agiu
de acordo com a seguinte máxima: “Sempre que precisar de dinheiro, peço emprestado com a
intenção de não o devolver”. Imagina agora que todas as pessoas agiam de acordo com este
princípio. As pessoas iriam por deixar de acreditar umas nas outras, gerando-se um profundo
clima de desconfiança nas relações entre as pessoas. As promessas deixariam de fazer qualquer
sentido.
– Agir moralmente é agir por dever.
Temos na nossa sociedade um conjunto de normas morais que nos dizem aquilo que devemos
fazer, tais como “Não mentir”, “Não roubar”, “Não matar”, “Não agredir física e
psicologicamente o outro”,..., normas essas que a maioria das pessoas da sociedade cumpre.
Mas porque é que as cumprem? Ou melhor, de que modo é que as cumprem? Normalmente
cumprem-nas (cumprem o dever), não pela obediência a elas mesmas, mas por interesse, (o
que para Kant não serve). Diz-se então “Não vou mentir”, não porque não devo mentir, mas
porque temo as consequências desta minha falta, “Não vou roubar”, não porque não devo
roubar, mas porque receio ser preso. Kant apercebeu-se deste problema na forma como a
maioria das pessoas age (agir em conformidade com o dever) e enunciou-o da seguinte
maneira: a sociedade apenas me diz o que devo fazer, mas não como o devo fazer, com que
intenção devo cumprir o dever.
O que distingue os Imperativos hipotéticos e imperativo categórico
O que me diz como cumprir de forma correta o dever? Uma lei puramente racional que,
segundo Kant, está presente na consciência de todos os seres racionais. A essa lei dá Kant o
nome de lei moral. Essa lei diz-nos de forma muito geral o seguinte: «Deves em qualquer
circunstância cumprir o dever pelo dever». Pensa em normas morais como «Não deve mentir»;
«Não deve matar»; «Não deve roubar». A lei moral, segundo Kant, diz-nos como cumprir esses
deveres, qual a forma correta de os cumprir.
A lei moral exige um respeito absoluto pelo dever e apresenta – se sob a forma de imperativo
(«Deve !»). Que espécie de imperativo é a lei moral?
Pense nos seguintes imperativos:
a) «Deve ser honesto porque a honestidade compensa»
b) «Deve ser honesto!»
Em a) apresenta-se uma regra (deve ser honesto) e a razão pela qual ela deve ser seguida. O
cumprimento da regra está associado a uma condição. «Se quere ser compensado deve ser
honesto». Trata-se de um imperativo hipotético. Diz que só no caso de querermos ser
compensados devemos ser honestos.
O cumprimento do dever subordina-se a uma condição e por isso cumprindo o dever estamos,
contudo, a fazê-lo por interesse
. Em b) apresenta-se uma regra cujo cumprimento não depende de um interesse que assim
queiramos satisfazer. Diz-nos que devemos ser honestos porque esse é o nosso dever e não
porque é do nosso interesse. A esta regra incondicional que exige o cumprimento do dever sem
qualquer outro motivo a não ser o respeito pelo dever dá Kant o nome de imperativo
categórico. Este imperativo exige que ultrapassemos os nossos interesses e ajamos de forma
desinteressada. Como é isso mesmo que a lei moral exige, então a lei moral é um imperativo
categórico ou incondicional.
O imperativo categórico é o único imperativo moral
O imperativo hipotético é uma ordem condicionada, na medida em que se
submete a condições para que cumpramos o dever, dizendo-me o seguinte: “Tu
deves fazer isto, se queres obter aquilo”. Por exemplo, eu devo dizer a verdade, se
quero ficar bem visto perante os vizinhos do meu bairro. Ora, a expressão que temos
aqui tem a seguinte forma: Eu digo a verdade (cumpro o dever) para não ficar mal
visto perante os outros (não pelo próprio dever, mas por interesse). Cumpro o dever,
não pelo próprio dever, como um fim em si mesmo, mas como um meio para obter
um fim. (O imperativo hipotético é o princípio que norteia a acção do indivíduo que
age apenas em conformidade com o dever)
Pelo contrário, o imperativo categórico é uma ordem incondicionada, na
medida em que não se submete a qualquer condição para que realizemos uma certa
acção. Enuncia o seguinte: “Tu não deves mentir aos teus pais, porque esse é o teu
dever”. Não devo mentir aos meus pais, porque é meu dever não mentir em todas as
circunstâncias possíveis e, não por causa de qualquer outro interesse ou inclinação.
Neste caso, estou a cumprir o dever pelo próprio dever, não minto porque é meu
dever não mentir. Para Kant, mentir é sempre incorreto, sejam quais forem as
circunstâncias em que me encontro, porque para Kant as regras morais são
absolutas, não existem exceções para um eventual incumprimento dessas mesmas
regras. Cumpro o dever como um fim em si mesmo e não como um meio para obter
um outro fim.
(O imperativo categórico é o princípio que orienta a acção do indivíduo que age por
dever)

- Uma ação tem valor moral se a máxima que a orienta puder ser adotada por todos.
Vimos que agir moralmente é agir por dever, agir por respeito absoluto por uma lei – a lei
moral que se apresenta sob a forma de obrigação categórica ou incondicional. - LEI MORAL -
Lei da consciência do ser racional que lhe diz como se cumpre corretamente o dever.)
Dissemos que agir de modo moralmente correto é agir exclusivamente motivado pela
vontade de cumprir o dever. Para avaliar moralmente uma ação – para saber se é
moralmente correta ou incorreta – devemos dar especial atenção ao motivo do agente, ou
seja, de quem age. Ora, segundo Kant, o motivo do agente é indicado pela máxima segundo
a qual este age. Imagina que encontras uma pulseira de ouro. Se a devolves com a esperança
de obter uma recompensa, a máxima segundo a qual age será esta: «Vou devolver algo que
encontrei porque acredito que vou ser recompensado por o fazer.». Se a devolves porque
tens receio de ser descoberto e eventualmente punido, a máxima será esta: «Vou devolver
algo que encontrei porque acredito que posso ser descoberto e punido se não o fizer.» Como
podes ver, uma mesma ação – devolver algo encontrado – pode seguir máximas diferentes,
ou seja, haver diferentes motivos para a realizar. Por isso mesmo, conforme o motivo ou a
razão que nos leva a proceder de um certo modo assim a máxima terá valor moral ou não.

Como posso eu saber que a máxima da minha ação é moralmente correta ou incorreta?
Submetendo-a a uma prova que teste a possibilidade de a universalizar, isto é, de a fazer
valer não só para mim como para todos os seres racionais.
A fórmula da lei universal: como uma máxima se pode tornar lei universal
Kant apresentou várias fórmulas do imperativo categórico – o critério ético fundamental
para distinguir ações com valor moral de ações que não cumprem, em virtude das suas
máximas, esses requisitos. ( - Máxima - Quando um agente moral faz algo por alguma razão
está a seguir uma máxima. Uma máxima é pois uma regra de ação que nos indica o motivo
porque fazemos algo. Para Kant, a avaliação moral de um ato depende da máxima do
agente.
MÁXIMA E IMPERATIVO CATEGÓRICO – O imperativo categórico é o teste que permite
verificar se uma máxima pode ser uma norma moral universal, uma regra a que todos
devem obedecer. É moralmente errado agir segundo máximas que não podem ser
universalizadas, ou seja, é moralmente incorreto abrir uma exceção para nós próprios
quando sabemos que não podemos querer que todos ajam como nós.)

A primeira formulação é de especial importância. Diz:


“Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne
lei universal”
Uma máxima é moralmente aceitável se puder ser universalizada. O que quer isto dizer?
Que deve poder valer para todas as pessoas transformando-se em princípio universal de
conduta: «Todos devem agir assim».
Para esclarecer como a supracitada fórmula do imperativo categórico -conhecida por
fórmula da lei universal – serve para testar a correção moral das nossas máximas, o próprio
Kant apresenta um exemplo: imagina que uma pessoa com problemas financeiros decide
pedir dinheiro emprestado. Sabe que não pode devolver o dinheiro que lhe for emprestado
mas prometê-lo - mentir – é a única forma de obter aquilo de que precisa. A máxima da ação
poderia enunciar-se assim “Se isso servir os teus interesses, não devolvas dinheiro
emprestado ao seu dono.” Poderia essa pessoa querer que ela fosse universalmente aceite,
querer que todos fizessem o mesmo? Kant está a perguntar se é possível sem contradição
querer tal estado de coisas. Ora a obediência universal a tal regra criaria um estado de
coisas em que mesmo os seus interesses acabariam por ser lesados. A referida pessoa não
pode querer sem contradição universalizar a exceção que abriu para si própria porque se
tornará exceção para todos. Se todos nós fizéssemos promessas com a intenção de não as
cumprir todos desconfiaríamos delas e o empréstimo de dinheiro baseado em promessas
acabaria. A prática de fazer e de aceitar promessas desapareceria.
A fórmula da humanidade: ao cumprir corretamente o dever respeitar-nos – e
respeitamos os outros.
Continuando com o mesmo exemplo, pensa no modo como quem pede dinheiro
emprestado sem intenção de o devolver está a tratar a pessoa que lhe empresta dinheiro. É
evidente que está a tratá-la como um meio para resolver um problema e não como alguém
que merece respeito, consideração. Pensa unicamente em utilizá-la para resolver uma
situação financeira grave sem ter qualquer consideração pelos interesses próprios de quem
se dispõe a ajudá-lo.
Sempre que fazemos da satisfação dos nossos interesses a finalidade única da nossa ação,
não estamos a ser imparciais e a máxima que seguimos não pode ser universalizada. Assim
sendo, estamos a usar os outros apenas como meios, simples instrumentos que utilizamos
para nosso proveito.
Explicitando o conteúdo da primeira fórmula do imperativo categórico (a fórmula da lei
universal), Kant resumiu esta ideia numa outra fórmula conhecida por «fórmula da
humanidade»:
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem,
sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio.
Para Kant, a pessoa tem de ser tratada sempre como um fim em si mesma e nunca como
um meio, porque é o único ser de entre as várias espécies de seres vivos que pode agir
moralmente. Se não existissem os seres humanos, não poderia haver bondade moral no mundo
e, nesse sentido, o valor da pessoa é absoluto.
Segundo esta fórmula, cada ser humano é um fim em si e não um simples meio. Por isso, será
moralmente errado instrumentalizar um ser humano, usá-lo como simples meio para alcançar
um objetivo. Os seres humanos têm valor intrínseco, isto é, dignidade. Esta dignidade confere-
lhes um valor absoluto, não devendo ser tratados como coisas ou objetos. O respeito pela sua
dignidade é o respeito pela sua racionalidade. Devido à sua condição de ser racional o ser
humano tem um valor incomparável (não comparável com o valor das coisas e dos animais que
têm, para Kant, um valor meramente instrumental). Como ser racional nenhum ser humano
vale mais do que outro. Uma vida humana não é mais valiosa do que outra nem várias vidas
humanas valem mais do que uma. Devido a esta fórmula a ética kantiana é frequentemente
denominada ética do respeito pelas pessoas.
A autonomia da vontade
Já sabemos que, para Kant, são dois os critérios sem os quais não podemos atribuir
moralidade às nossas ações: 1 - agirmos de acordo com uma máxima universal e 2 – agirmos
encarando os outros como fins em si e não simplesmente como meios. Ao agir segundo uma
máxima universal, estou a encarar o outro como um fim em si mesmo e, por sua vez, ao encarar
o outro como um fim em si mesmo, estou a agir segundo uma máxima universal.
É isto o que a lei moral exige. Esta lei é a voz da razão no ser humano que em muitos casos ouve
a voz dos seus interesses. A lei moral exige que sejamos racionais. Supõe que pago os impostos
simplesmente porque considero ser esse o meu dever. Neste caso, a minha vontade sem ser
influenciada por outra coisa (o medo de ser penalizado, a opinião dos outros, etc.) decide fazer
o que deve fazer. Kant diz que esta vontade é autónoma. Cumpre o dever pelo dever. É uma
vontade boa. A vontade autónoma é a que age por dever.
A heteronomia da vontade é a característica de uma vontade para a qual o cumprimento do
dever não é motivo suficiente para agir. Tem de recorrer a outros motivos (o receio das
consequências, o temor a Deus, etc.), a vontade submete-se a autoridades que não a razão. Por
isso, a sua ação é heterónoma, incapaz de respeitar incondicionalmente o dever. A vontade
heterónoma não age por dever. Quando cumpre o dever, cumpre-o por interesse. No melhor
dos casos, age em conformidade com o dever. Todas as éticas de tipo consequencialista são,
para Kant, heterónomas, reduzem a moralidade a um conjunto de imperativos hipotéticos.

Críticas à teoria ética de Kant

1 – As regras morais não são absolutas.


Kant defende que para agirmos moralmente temos de respeitar de forma incondicional
um conjunto de regras morais (deveres ditados pela nossa razão). Para Kant, essas regras morais
são absolutas, são para serem respeitadas de forma incondicional, sem exceções, em todas as
situações do nosso quotidiano.
Uma dessas regras é o nosso “dever de não mentir”. Para Kant, não devemos nunca
mentir. Mas quererei eu que este princípio de ação se aplique universalmente a todos os casos
possíveis de ação? Vamos ver um caso em que é preferível mentir do que dizer a verdade, ou
seja, em que é moralmente mais correto mentir do que dizer a verdade. O caso é este: termos
de mentir com vista a salvarmos a vida de uma pessoa. (Para Kant tin não existiam exceções
para a violação ou desobediência a estas regras morais).
Imagine que vai na rua e de repente vê um rapaz a correr na sua direção, entrando, logo
de seguida, para uma casa abandonada que se encontrava ao seu lado. Poucos segundos
depois, quando retomava o seu percurso, avista um homem com uma pistola na mão que lhe
pergunta de relance se viu algum rapaz a correr, percebendo você de imediato que o homem
teria a intenção de disparar contra o rapaz e, provavelmente, a de matá-lo. O que é que diz ao
homem? Tem duas possibilidades de ação.
Uma das possibilidades é dizer a verdade ao homem, dizendo-lhe que o rapaz se
encontra mesmo ali ao lado no interior da casa abandonada, sabendo você que as
consequências do que disse poderão eventualmente resultar na morte do rapaz.
A outra possibilidade é a de mentir, dizendo ao homem que o rapaz seguiu em frente.
Mentir? Mas isso Kant não o permitiria, diria você. Exato, não o permitiria. Mas o que para si é
moralmente mais correto: dizer a verdade e pôr em causa a vida de uma pessoa ou mentir e
provavelmente salvar a vida de uma pessoa? De acordo com uma das formulações do
imperativo categórico de Kant, como iria você querer que todas as pessoas agissem quando
confrontadas com essa situação:
1 – Que mentissem e não colocassem em causa a vida de um jovem
2 – Que dissessem a verdade e colocassem em causa a vida de um jovem.
Vamos colocar as duas alternativas na balança da decisão ética. A maioria de nós
concordaria com a primeira das hipóteses.
É claro que Kant iria dizer que dizendo a verdade ou mentindo, as consequências são
imprevisíveis. Portanto, o melhor é sempre dizermos a verdade, aquilo que a nossa razão nos
ordena. Mas isto é pouco plausível, porque um caso como este coloca em causa a vida de uma
pessoa e, neste sentido, podemos dizer, que aquilo que decidimos poderá resultar na morte de
um jovem.
Ora, este exemplo revela que nem sempre é moralmente correto termos de respeitar de
forma incondicional as regras morais da nossa consciência racional, tal como Kant nos tinha
dito. Logo, concluímos que as regras morais não são absolutas.

2 – A situação dos casos de conflito


Uma certa pessoa tem de optar entre duas possibilidades de acção (fazer A ou fazer B).
Verifica-se que, fazer A é moralmente incorreto e fazer B é moralmente incorreto. O que faria o
defensor da teoria ética de Kant perante esta situação?
Considere a seguinte situação: “Durante a Segunda Guerra Mundial, os pescadores
holandeses transportavam, secretamente nos seus barcos, refugiados judeus para Inglaterra, e
os barcos de pesca com refugiados a bordo eram por vezes intercetados por barcos patrulha
nazis. O capitão nazi perguntava então ao capitão holandês qual o seu destino, quem estava a
bordo, e assim por diante. Os pescadores mentiam e obtinham permissão de passagem. Ora, é
claro que os pescadores tinham apenas duas alternativas, mentir ou permitir que os seus
passageiros (e eles mesmos) fossem apanhados e executados. Não havia terceira
alternativa.”[2]
Os pescadores holandeses encontravam-se então na seguinte situação: ou “mentimos”
ou “permitimos o homicídio de pessoas inocentes”. Os pescadores teriam de escolher uma
dessas opções. De acordo com Kant, qualquer uma delas é errada, na medida em que, as regras
morais “Não devemos mentir” e “Não devemos matar” (ou permitir o assassínio de inocentes,
no caso do exemplo dado) são absolutas. O que fazer então?
Verificamos que a teoria ética de Kant não saberia dizer – nos o que fazer nesta situação
de conflito, porque proíbe ambas as possibilidades de cção por estas se revelarem moralmente
incorretas. Mas a verdade é que perante uma situação destas, a qual por acaso se passou na
realidade, teríamos de optar por uma dessas duas possibilidades. Se a teoria ética de Kant nos
proíbe de optar por uma delas, mas na realidade somos forçados a optar por uma, a teoria ética
de Kant revela-se incoerente. Incoerente porque aquilo que concluímos (existem casos em que
temos de mentir) contradiz aquilo que Kant defende (não devemos mentir nunca e isto porque
para Kant as regras morais são absolutas).

A teoria utilitarista de John Stuart-Mill(1806-1873


Filósofo inglês foi uma criança extraordinariamente precoce que, educada nos primeiros anos
de vida pelo pai, já estudava grego aos 3 anos, latim aos 6 e lógica, filosofia, economia,
matemática e química por volta dos 8 anos. É o principal representante do empirismo inglês
do século XIX. A sua principal obra de ética intitula-se Utilitarismo e foi publicada em 1861.
Nela defende uma ética de tipo consequencialista e hedonista que considera que o critério
último da moralidade de uma ação é a sua utilidade, isto é, a felicidade - o prazer ou a
ausência de dor - que dela resulta para o maior número de pessoas envolvidas. Rejeitou o
cálculo hedonista do seu mestre Bentham distinguindo entre a qualidade e a quantidade dos
prazeres. Não reduz a felicidade ao prazer sensorial ou físico, considerando superiores os
prazeres que resultam das atividades intelectuais. A perspetiva de Mill, conhecida pelo nome
de utilitarismo clássico, continua a ser amplamente debatida no século XXI e desenvolvida e
retificada em alguns pontos deu origem a novas versões do utilitarismo. Os filósofos
utilitaristas mais representativos atualmente são Richard Hare e Peter Singer.
Mill envolveu-se vigorosamente em causas políticas e sociais consideradas radicais para a
época: era a favor da igualdade de direitos entre homens e mulheres defendendo
especialmente o direito das mulheres ao voto. Argumentou a favor dessas causas em vários
escritos e como membro do Parlamento.
Obras principais: Sistema de Lógica (1843); Utilitarismo (1861); Sobre a Liberdade (1859)
considerada pelo próprio a sua mais importante obra.

Qual o critério para verificar a moralidade da ação ?


Para Stuart Mill, o critério para verificar a moralidade das nossas ações encontra-se nas
consequências das mesmas, naquilo que resulta destas. É porque apenas dá atenção às
consequências das nossas ações, que se diz que a teoria de Mill é consequencialista. É uma
forma de consequencialismo chamada utilitarismo, no sentido em que a ação é boa ou má,
consoante seja útil ou não para o maior número possível de pessoas.
Mill enuncia o princípio utilitarista do seguinte modo: “A máxima felicidade possível
para o maior número possível de pessoas é a medida do bem e do mal.”
Vemos que o critério da moralidade de um ato é o princípio de utilidade. Este princípio é
o teste da moralidade das ações. Uma ação deve ser realizada se e só se dela resultar a máxima
felicidade possível para as pessoas ou as partes que por ela são afetadas. (Nota - PRINCÍPIO DE
UTILIDADE - Conhecido também como princípio da maior felicidade. A ideia central do
utilitarismo é a de que devemos agir de modo a que da nossa ação resulte a maior felicidade
possível para as pessoas por ela afetadas. Uma ação boa é a que é mais útil, ou seja, a que
produz mais felicidade global ou, dadas as circunstâncias, menos infelicidade. Quando não é
possível produzir felicidade ou prazer devemos tentar reduzir a infelicidade. Costuma-se resumir
o princípio de utilidade mediante a fórmula «A maior felicidade para o maior número».

Em que consiste essa felicidade ?


Para Mill, a felicidade geral é a única coisa desejável por si mesma, enquanto todas as
outras coisas são apenas encaradas como um meio para obter um fim, fim esse que é a
felicidade.
O argumento apresentado por Mill para justificar que a felicidade geral é algo de
desejável por si mesmo (por todos nós) é o seguinte:
Cada pessoa deseja a sua própria felicidade
A felicidade de cada pessoa é um bem para essa pessoa
Logo, a felicidade geral é um bem para o conjunto de todas as pessoas.

A partir deste argumento, de que a felicidade geral é a única coisa desejável por si
mesma, Mill vai defender que quando agimos devemos procurar visar essa mesma felicidade
geral. Assim, a partir do argumento anterior construímos o seguinte argumento:
A felicidade geral é um bem para o conjunto de todas as pessoas
Logo, cada pessoa deve agir de modo a promover a felicidade geral
Verificamos assim que, para Mill, o fim – a felicidade geral – justifica, em certa medida,
os meios. Significa isto que, para Mill, uma ação será boa desde que a quantidade de pessoas a
que a nossa ação causa felicidade ou bem – estar seja superior ao número de pessoas a que
causamos dor ou sofrimento. Ou seja, para Mill, é suficiente que a felicidade produzida com a
ação seja superior ao sofrimento eventualmente provocado com a sua realização para que a
ação seja boa e é neste sentido que há uma superioridade dos fins da ação (a maior felicidade
possível para o maior número possível) sobre os meios (mesmo que a ação cause sofrimento a
algumas pessoas).
Analisando este princípio moral fundamental destacam-se duas ideias importantes:
a)Ao contrário de Kant não testamos a correção moral de uma ação baseando-nos no
motivo ou intenção do agente mas sim nos resultados objetivos da ação. Muitas pessoas
pensam que por mais indesejáveis que sejam os resultados de um ato a boa intenção do
agente deve contar na avaliação do que fez. Mill discorda completamente: evitar que uma
pessoa se afogue é sempre bom independentemente da motivação de quem salva. A
motivação ou a intenção nada tem a ver com a moralidade da ação.
b)A ação correta é a que, nas circunstâncias em que ocorre, tem mais probabilidade de
produzir mais felicidade em termos globais do que outra ação. Se perguntasse a Mill «A
felicidade de que fala é a felicidade de quem?» a resposta seria aproximadamente esta:
«Quando se trata de decidir o que é moralmente correto fazer, não deve ter em conta
somente o seu bem-estar. Deve ponderar sobretudo que consequências a sua ação vai ter
no bem-estar de todas as pessoas por ela afetadas. A sua felicidade não conta mais do que a
felicidade dessas pessoas. E quando me refiro a outras pessoas não abro exceções para as
de que mais gosta, para familiares e amigos teus. Deve ser imparcial quando deliberas o que
vais fazer». – Para o utilitarismo o que conta é a quantidade total de felicidade que resulta
de um ato e não que tipo de pessoas são beneficiadas. É indiferente saber por quem se
distribui a felicidade, para quem ela vai. Critica-se o utilitarismo por ser demasiado
imparcial.)

O problema da previsão das consequências: não é o futuro incerto?

O utilitarismo de Mill apresenta um duplo aspeto: é uma teoria hedonista e


consequencialista. O aspeto hedonista corresponde ao princípio de utilidade (a maior
felicidade, prazer ou bem-estar para o maior número). O princípio consequencialista
determina que uma ação é correta se os seus efeitos ou resultados forem bons. Será
incorreta se os seus resultados forem maus ou não tão bons como poderiam ser.
Sintetizando estes dois princípios obtemos a caracterização de ação moralmente correta:
uma ação é correta se produz mais prazer do que dor e incorreta se dela resulta mais
sofrimento do que prazer para a maioria das pessoas envolvidas. (NOTA – As consequências
são os efeitos benéficos ou prejudiciais que resultam de uma ação e afetam as pessoas
envolvidas incluindo a pessoa que a realiza.)
Vimos como Mill teria respondido à objeção de que a procura imparcial da felicidade para o
maior número destruiria ou pelo menos ameaçaria seriamente a nossa integridade pessoal,
a dedicação a projetos e interesses pessoais.

E como responderia à objeção de que é impossível avaliar moralmente uma ação com
base no critério consequencialista porque não podemos prever ou calcular quais serão no
futuro as consequências do que decidimos fazer?
As ações têm consequências imediatas e consequências a longo prazo. Estas últimas são
muito difíceis de prever porque uma ação causa um certo estado de coisas, que por sua vez
produz outro e assim sucessivamente, escapando ao nosso controlo. Como decidir que uma
ação é boa se ainda não sabemos quais as suas consequências? Quanto tempo temos de
esperar para saber se as nossas ações são boas ou más, tiveram bons ou maus resultados?
A resposta de Mill seria aproximadamente esta:
1 – Não temos de calcular todos os efeitos das nossas ações porque podemos apoiar-nos na
experiência de séculos da humanidade. Se ao longo de milénios os seres humanos tiveram
de resolver problemas morais semelhantes aos nossos podemos aprender com os seus erros
e sucessos para enfrentar os nossos problemas.
2 – Quanto a esperar para saber se as consequências das nossas ações são boas devemos
somente esperar uma razoável quantidade de tempo, que será maior consoante a
complexidade das situações. Seja como for devemos saber conviver com a incerteza quanto
ao futuro e basearmo-nos em expectativas razoáveis. É verdade que não podemos prever
com certeza o futuro. Contudo, se temos boas razões para acreditar que de uma ação vão
resultar as melhores consequências entre as alternativas disponíveis, então devemos
realizá-la. Dadas as nossas limitações o que cada agente moral deve fazer é utilizar a melhor
informação disponível para obter os melhores resultados.

O Utilitarismo e a teoria kantiana.


Tal como em Kant, também em Mill há um princípio em que as nossas ações se devem basear
para terem valor moral. Enquanto em Kant esse princípio era o do “cumprimento do dever pelo próprio
dever”, em Mill esse princípio é o de “produzir a máxima felicidade possível para o maior número
possível de pessoas”.
A teoria utilitarista, segundo alguns dos seus defensores, dá melhor resposta do que a ética
kantiana a vários problemas: 1 - O problema das regras morais absolutas; 2 - O problema dos casos de
conflito moral e 3 - O problema da ausência de compaixão ou afetividade na realização de algumas das
nossas ações.
Em relação ao problema das regras morais absolutas, a que a teoria ética de Kant não deu uma
resposta satisfatória quando confrontada com a situação de ter de mentir para salvar a vida de uma
pessoa, a teoria utilitarista diria que é-nos permitido mentir desde que essa nossa decisão promova a
felicidade do maior número de pessoas possível.
Se bem se recorda da situação da pessoa que foi colocada perante o dilema de ter de mentir e
salvar a vida de uma pessoa, o utilitarista resolvia esta situação optando por mentir e provavelmente
salvar essa vida. Mentir e provavelmente salvar a vida de uma pessoa, causa menor dor ou sofrimento
(neste caso, à pessoa em fuga) do que dizer a verdade e colocar em causa a vida de uma pessoa.
Assim, confrontado com esta situação, o utilitarista mentiria, obedecendo desse modo ao
princípio da sua teoria que diz: “Deve procurar agir de modo a promover a felicidade ou bem-estar do
maior número de pessoas.”
A grande diferença na resolução desta situação entre a teoria ética de Kant e a de Mill, é que em
Kant as regras morais são absolutas (são para ser cumpridas em todas as circunstâncias da nossa
existência), enquanto em Mill não existem regras morais absolutas.
Em relação ao problema dos casos de conflito, dos casos em que estamos perante uma situação
em que temos duas possibilidades de ação e qualquer uma dessas alternativas é moralmente difícil, o
utilitarista escolheria aquela que promovesse a máxima felicidade para o maior número possível de
pessoas.
Se bem se lembra da situação que foi apresentada no livro , os pescadores holandeses apenas
tinham duas opções: ou mentiam ao chefe do barco patrulha nazi e salvavam a vida dos tripulantes
judeus e a sua ou diziam a verdade e originavam a morte dos tripulantes judeus e até a sua morte.
Perante esta situação, o defensor da teoria ética de Kant não sabia por qual das duas possibilidades de
ação se decidir, porque qualquer uma das duas opções “mentir” ou “permitir a morte de alguém” (ainda
que de forma indireta) são moralmente incorretas.
O utilitarista resolvia este problema optando por mentir ao chefe do barco patrulha nazi. Entre
mentir e salvar a vida dos tripulantes judeus e dizer a verdade e causar a mais que certa morte de todos
os tripulantes do barco, aquela opção que causa uma menor dor ou sofrimento ao maior número de
pessoas é certamente a primeira, a de mentir e salvar a vida dos tripulantes.
Em relação à situação de ajudar os outros por um sentimento de piedade ou compaixão, ação
que o defensor da ética kantiana considerava sem valor moral, o utilitarista diria que a ação teria valor
moral desde que promovesse a felicidade das pessoas que nós ajudamos, independentemente de ter
sido ou não provocada por um sentimento de compaixão.

Você também pode gostar