A Teoria Moral de Kant
A Teoria Moral de Kant
A Teoria Moral de Kant
David Hume expôs esta ideia acerca da contribuição da razão para as acções
que realizamos. No Tratado da Natureza Humana (1738), diz que "a razão é e
deve ser escrava das paixões". Hume expressa a mesma ideia na passagem
seguinte:
Não é contrário à razão preferir a destruição do mundo a arranhar o meu dedo.
. . . É tão pouco contrário à razão preferir mesmo o meu próprio bem menor
ao maior, e ter uma afeição mais ardente pelo primeiro que pelo segundo
O ponto mais importante da ideia de Hume é que as acções nunca derivam
apenas da razão; têm de ter sempre uma origem não racional.
É óbvio que, como Hume disse, a razão pode mostrar-nos que meios usar
dados os fins que temos. Se quero ser saudável, a razão pode dizer-me que
devo deixar de fumar. Neste caso a razão fornece um imperativo que tem a
forma de um imperativo hipotético: diz que devo deixar de fumar se quero
proteger a minha saúde. Hume pensava que a razão não pode fazer mais do
que isto. Kant, contudo, sustenta que as regras morais têm uma forma
categórica e não hipotética. Um acto que é errado, é errado ― ponto. As
regras morais dizem "Não faças X." Não dizem "Não faças X se o teu objectivo
é G". Kant tentou mostrar que estas regras ― imperativos categóricos ― são
derivadas da razão com tanta certeza quanto o são os imperativos hipotéticos.
As regras morais que tomam a forma de imperativos categóricos descrevem o
que devemos fazer quer queiramos quer não. Têm uma autoridade muito
diferente das nossas inclinações. Por isso, quando agimos moralmente,
pensava Kant, somos guiados pela razão e não pela inclinação. Neste caso, a
razão tem algo mais do que um papel meramente instrumental.
A lei moral
Fg = Gm1m2/r2
Isto é, a lei diz que se as massas são m1 e m2 e se a distância é r, então a
força gravitacional tem de ter o valor Gm1m2/r2, onde G é a constante
gravitacional. Há claramente uma diferença entre leis científicas e regras
morais (como "Não causes sofrimento gratuito!"). A lei de Newton não diz o
que os planetas devem fazer; diz o que necessariamente fazem. Se uma lei
científica é verdadeira, então nada no universo lhe desobedece. Por outro lado,
às vezes as pessoas violam as leis morais. As leis morais dizem como as
pessoas devem comportar-se; não dizem o que as pessoas farão de facto. Para
usar vocabulário já introduzido, as leis morais são normativas, enquanto as leis
científicas são descritivas.
Apesar desta diferença, Kant pensava que há uma semelhança profunda entre
elas. As leis científicas são universais ― envolvem todos os fenómenos de um
dado género. Não estão limitadas a certos lugares ou a certos momentos. Além
disso, uma proposição que afirma uma lei não menciona qualquer pessoa,
lugar ou coisa particular. "Todos os amigos de Napoleão falam francês" pode
ser uma generalização verdadeira, mas não pode ser uma lei, uma vez que
menciona um indivíduo específico ― Napoleão. Assinalarei esta característica
das leis científicas dizendo que são "impessoais".
Kant pensava que as leis morais também têm de ser universais e impessoais.
Se é correcto que eu faça uma coisa, então é correcto que, em circunstâncias
similares, qualquer pessoa faça a mesma coisa. Não é possível que Napoleão
tenha o direito de fazer algo apenas porque é Napoleão. As leis morais, como
as científicas, não mencionam pessoas específicas.
Antes de poder descrever a forma como Kant pensava que a razão por si
mesma estipula quais devem ser os nossos princípios morais, preciso de
mencionar mais um elemento da sua filosofia moral. Recorda da lição anterior
que o utilitarismo declara que as características morais de uma acção são
determinadas pelas consequências que a acção teria para a felicidade ou para
a satisfação das preferências das pessoas. Kant não pensa que a moralidade
consista na maximização da felicidade. Em particular, Kant não pensa que as
consequências de uma acção sejam o verdadeiro teste das suas características
morais. Em vez disso, aquilo que Kant considerava central era a "máxima que
a acção encarna".
Kant: O valor moral de um acto deriva da sua máxima, não das suas
consequências
Cada acção pode ser descrita como uma acção de um certo tipo. Se ajudas
alguém, podes pensar nisso como um acto de caridade. Neste caso, podes
estar a agir segundo a máxima de que deves ajudar outros. Em alternativa,
talvez penses que quando ajudas isso é uma forma de fazer com que o
receptor se sinta em dívida para contigo. Aqui a máxima da tua acção pode ser
a de que deves colocar os outros em dívida para contigo. Para veres que valor
moral tem a tua acção, olha para a máxima que tens em mente e que te leva a
fazer o que fazes.
A razão pela qual precisamos de olhar para os motivos do agente, e não para
as consequências das acções, não são difíceis de perceber. Kant descreve um
comerciante que nunca engana os seus clientes. A razão é que receia que se
os enganar, eles deixem de comprar na sua loja. Kant diz que o comerciante
faz o que é correcto, mas não pelas razões correctas. Ele age de acordo com a
moralidade, mas não pela moralidade. Kant diz que para descobrir o valor
moral de uma acção devemos ver por que razão o agente a realiza; as
consequências de uma acção não o revelam.
Se o comerciante age aplicando a máxima "Sê sempre honesto", a sua acção
tem valor moral. Se, contudo, a sua acção é o resultado da máxima "Não
enganes as pessoas se isso te prejudicar financeiramente", a sua acção é
apenas prudencial, não moral. O valor moral deriva dos motivos e os motivos
são dados pela máxima que o agente aplica ao decidir o que fazer.
Kant tem seguramente razão quando diz que conhecer os motivos de uma
pessoa é importante para avaliar algumas das propriedades morais de uma
acção. Se desejamos avaliar o carácter moral de um agente, as consequências
da acção podem ser um guia imperfeito. Afinal, uma boa pessoa pode fazer
mal a outras de forma não intencional; e uma pessoa malévola pode beneficiar
outras sem querer. Contudo, é importante ver que isto não implica que as
consequências de uma acção sejam irrelevantes para decidir se se deve
realizá-la. Kant sustenta esta tese: o que torna uma acção certa ou errada não
é as consequências serem prejudiciais ou benéficas. Kant rejeita o
consequencialismo em ética.
O critério de universalizabilidade
Quatro exemplos
Questões de Revisão
1. Por que razão sustenta Hume que toda a acção tem uma causa "não
racional"? E por que rejeita isto Kant?
2. Kant acreditava em que há semelhanças importantes entre as leis científicas
e as leis morais. Quais são estas semelhanças?
3. O que significa dizer que o utilitarismo é uma teoria consequencialista,
enquanto a teoria de Kant não?
4. O que afirma o critério da universalizabilidade de Kant? Diz que não deves
realizar uma acção se o mundo fosse um lugar pior se toda a gente fizesse o
mesmo?
5. Como tenta Kant mostrar que a obrigação de cumprir as promessas se
segue do critério de universalizabilidade? É bem sucedido?
6. Estás num barco que se inclina perigosamente para um dos lados por que
todos os passageiros estão do lado direito. Ponderas se será boa ideia
moveres-te para a esquerda. Perguntas a ti mesmo, "o que aconteceria se
todos fizessem isto?" Esta questão contém uma ambiguidade. Qual é? Como é
que esta ambiguidade é relevante para avaliar o critério de universalizabilidade
de Kant?
1. Kant acredita que o dever de tratar os outros como fins em si mesmos, não
como meios, se segue do critério de universalizabilidade. Tenta construir um
argumento que mostre como isto pode ser verdade. Kant tem razão ao pensar
que estes dois princípios estão estreitamente relacionados?
2. Kant pensava que a lei moral constrange a forma como as pessoas vivem,
mas que não determina cada um e todos os seus detalhes. Isto é, para Kant,
uma pessoa é livre de procurar os seus objectivos e projectos privados desde
que estes não violem qualquer imperativo categórico. Estes projectos
particulares são moralmente permissíveis, não moralmente obrigatórios.
O utilitarismo, por oposição, entende que a moralidade determina cada e todos
os aspectos da vida de uma pessoa. Cada acção que uma pessoa realize tem
de ser avaliada em termos do Princípio da Maior Felicidade. Um projecto
privado é permissível apenas se promove o maior bem para o maior número
de pessoas. Estes actos não são meramente permissíveis, mas obrigatórios.
Constrói um exemplo concreto em que estas características das duas teorias as
levem a fazer juízos opostos sobre se um acto é moralmente permissível. Aos
teus olhos, qual é a teoria mais plausível naquilo que diz sobre o teu exemplo?
33. A ética de Kant teve uma influência poderosa na filosofia política de John
Rawls. Em Uma Teoria da Justiça (Editorial Presença, 2001), Rawls defende
que as regras de justiça correctas para uma sociedade são as que todas as
pessoas escolheriam se 1) tivessem interesse próprio, e 2) não conhecessem
vários detalhes (como as suas capacidades, sexo, raça e os projectos que
desejam levar a cabo). Os únicos factos que as pessoas conhecem nesta
situação hipotética são factos gerais acerca da psicologia e da vida humanas. A
ideia de Rawls é em parte uma tentativa de captar a ideia de Kant de que as
inclinações pessoais devem ser postas de lado se queremos ver o que são as
nossas obrigações. Que princípios de conduta pensas que as pessoas
escolheriam nesta situação hipotética?