Dilemas - Cidadãos de Bem e Sujeitos Criminais
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Neste texto, será explorada a gênese da ideia de Law-abiding citizens and criminal subjects: the
“cidadão de bem” e seu uso peculiar no cenário de construction of oppositions in the social accumu-
acumulação social da violência no Rio de Janeiro. lation of violence in Rio de Janeiro This study will
A partir de uma análise dos comentários de leitores explore the genesis of the idea of the “law-abiding cit-
de reportagens sobre operações policiais de um izen” and its peculiar use in the social accumulation of
jornal on-line, destrinchamos os sentidos por meio violence in Rio de Janeiro. Its analysis of reader com-
dos quais os autointitulados “cidadãos de bem” de- ments on news articles about police operations from
finem um Outro que, por oposição, lhes dá forma an online newspaper unravels the meanings by which
e conteúdo central. Igualmente é feita uma análise self-proclaimed “law-abiding citizens” define an Other,
da noção de cidadania no Brasil e das distorções who, by contrast, shapes the core content of the for-
por que passa em um cenário de “violência urba- mer. Additionally, we analyze the notion of citizenship
na” em que há uma crença nativa em “portadores in Brazil and the distortions it has undergone in a con-
da sociabilidade violenta”. A categoria “cidadão de text of “urban violence” that includes a native belief in
bem” sustenta-se na diferenciação de seus por- the “bearers of violent sociability.” The category of the
tadores daqueles que não são “sujeitos direitos”, “law-abiding citizen” is supported by differentiating its
no limite, os “inimigos” da ordem societal almejada. holders from those who are not “righteous individuals”
Para uma análise fina sobre a noção e sua mobiliza- and ultimately, from the “enemies” of the desired soci-
ção recente, cruzamos uma Sociologia da Violência etal order. For a detailed analysis of the concept and
e uma Sociologia da Moral contemporânea para its recent mobilization, we intersect a Sociology of
depurar como são definidas essas concepções de Violence with a Contemporary Sociology of Morality
“Bem” no contexto do processo de acumulação so- to show how these conceptions of “Good” are defined
cial da violência. Por fim, apresentamos reflexões in the context of the social accumulation of violence.
preliminares a respeito de um “individualismo hie- Finally, we offer preliminary reflections on a “hierarchi-
rárquico” presente no contexto brasileiro. cal individualism” in Brazil.
Palavras-chave: cidadão de bem; acumulação Keywords: law-abiding citizen; social accumula-
social da violência; sujeitos criminais; moralidade; tion of violence; criminal subjects; morality; indi-
individualismo. vidualism.
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Introdução1
“‘operação [policial] desnecessária’? tá de sacanagem ou é defensor de bandido. O Rio todo é favela e está tomado de
bandidos, só a força letal vai dar jeito nisso… parabéns à polícia do Rio, façam mais em nome dos cidadãos de bem.”
“Até poderia ser razoável o seu argumento se pessoas inocentes não fossem mortas juntamente. Falta humanidade e
empatia. A monstruosidade não está apenas no bandido, está em indivíduos que se autointitulam ‘homens de bem’”.
A
s frases acima foram recolhidas nas caixas de comentários de reportagens do Jornal Extra
on-line a respeito de operações policiais no Rio de Janeiro. Elas expressam discussões
recorrentes que se dão a partir da cobertura da “violência urbana” carioca. Se, por um
lado, temos um trabalho jornalístico voltado às operações policiais, ao conflito entre policiais
e “traficantes de drogas”, às apreensões realizadas e às mortes registradas, e aos possíveis excessos e
desvios de condutas das forças do Estado; por outro lado, pessoas em contato com tais reportagens
manifestam suas visões de mundo a respeito de quem merece morrer ou não, em nome de qual
“ordem” isso será feito e sobre cidadania e direitos em termos gerais. Nesses espaços on-line, o uso
de expressões como “cidadão de bem”, “pessoas de bem”, “homem de bem” e “sociedade de bem”
pulula nas orações e nos embates argumentativos.
A mobilização do termo “cidadão de bem” – e de seus correlatos, mencionados acima –
tem um histórico específico no contexto brasileiro (KALIL, 2023) e, sobretudo, no Rio de Janeiro
(LEITE, 2000; RODRIGUES, 2012). Com um significado que pode remeter ao passado colonial
e autoritário brasileiro, o uso das expressões gera um paradoxo com a própria ideia de cidada-
nia (BENDIX, 1996). Como examinaremos neste artigo, a expressão “cidadão de bem” no seu
uso contemporâneo no Brasil (por aqueles que assim se definem) tem como cerne a crença
em um ente individual e coletivo hierarquicamente superior, exemplar do “individualismo hie-
rárquico” (MISSE, no prelo) e oposto a um grupo variado de indivíduos e agrupamentos de
pessoas normalmente posto sob sujeição criminal (MISSE, 2022[1999]) – tidos como sujeitos
perigosos, criminosos, irrecuperáveis e, no mínimo, como essencialmente propensos ao crime
(TEIXEIRA, 2012). No limite, são identidades que se deseja que “desapareçam”, identidades
para o extermínio (MISSE, 2018).
Hoje, o “outro” do “cidadão de bem” parece ter se ampliado. Se inicialmente tínhamos a
contraposição contra “criminosos”, “vagabundos” e “marginais”, o conteúdo moral atribuído
a esses atores se espraiou para aqueles igualmente representados como “ruins” e como sinônimos
de “desordem” – por parte dos autointitulados “cidadãos de bem”. O uso dessa categoria passa a
abarcar conservadores em costumes, religiosos, bolsonaristas etc. (BOAVENTURA, FREITAS,
2019; FIGUEIREDO, 2021; KALIL, 2023). A contraparte passa a ser simetrizada entre “bandidos”
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e direitos dos cidadãos. O “cidadão de bem” seria o não criminoso (ao menos de crimes enten-
didos como tais, em geral, de furto, roubo, baixa hierarquia do tráfico de drogas, usuário de
crack2; a sonegação de impostos, diferentemente, não entra no enquadramento), seria um tra-
balhador esforçado (ZALUAR, 1985; COSTA, 2021) e dotado de “bons costumes” (OLIVEIRA,
2016; COSTA, 2021) que, para viver adequadamente, precisa que o Estado ostente a força por
meio das forças policiais (como argumentamos no material recolhido, o “cidadão de bem”
paga impostos para esse intuito específico). O “cidadão de bem” conclama a força ostensiva
(WERNECK; TEIXEIRA; CAMINHAS; TALONE, 2024) e, inclusive, o seu uso “fora da lei”.
Vendo-se como o oposto dos sujeitos criminais (MISSE, 2022[1999]) e de sujeitos desordeiros
(TAVARES, 2016), entende-se que uma força de igual potência à do crime deve ser mobilizada
contra eles: se os primeiros agem fora da lei, agentes policiais devem igualmente agir fora da
lei para se contrapor com eficiência3. Aí se revela o caráter paradoxal da demanda que, no seu
limite, despreza todas as garantias civilizatórias. A morte de inocentes é permitida4, pois vive-
mos em “guerra” (LEITE, 2000); a intransigência moral e a firmeza dessa posição, por fim, é um
traço comum (TALONE, WERNECK, NEVES, 2024). No passado recente (e ainda hoje) muitos
policiais referem-se, na rotina de seu trabalho, aos que consideram como suspeitos de crime
como “elementos” e “indivíduos”, por oposição a pessoas e cidadãos. Do mesmo modo, atacam
os “direitos humanos” como se esses fossem responsáveis pela negligência, ineficiência e impu-
nidade que atribuem aos defensores das garantias constitucionais contra os abusos do Estado.
Assim, os tais “elementos” são postos em oposição aos “humanos direitos” (CALDEIRA, 2002),
isto é, aos “cidadãos de bem”.
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do outro grupo, nessa dimensão a oposição ainda não é declarada, já que se dirige ao enalteci-
mento do seu portador. A quarta dimensão é a que incorpora o sentido pleno da oposição, o seu
sentido limite: a demarcação do Outro do Cidadão de Bem.
Esse Outro é marcado como definitivamente não social ou antissocial, alheio à sociabilidade
normal – ele não é possível/adequado à ordem idealizada pelos “cidadãos de bem”. Portador ine-
lutável do Mal em sua própria subjetividade, é um sujeito que deve ser excluído da relação social
que assim o define – o que ele coletivamente conseguiria representar é uma “ordem às avessas”,
o que representa uma desordem para o “cidadão de bem”. No limite, a outra fronteira do “cida-
dão de bem” não pode produzir justificativa de si mesmo, nem de seu comportamento esperado
ou provável – ele é como o portador da “sociabilidade violenta” (MACHADO DA SILVA, 2004),
um lugar sem justificativa plausível, sua existência voltar-se-ia para a pura perversidade. Passemos
aos dados recolhidos para ilustrar a discussão proposta.
A mobilização do termo “cidadão de bem”, como mostra Costa (2021) a partir de jornais e de
artigos publicados em revistas científicas, teve uso crescente e renovado na última década. Os prin-
cipais debates em que toma forma são aqueles sobre redução da idade penal, posse de armas de
fogo, operações das Polícias Militares e banalização da violência contra parcelas específicas da
população (BRASIL; SANTIAGO; BRANDÃO, 2020), “polarização” política e atuação da mídia
(WERNECK, 2022a). Focamos aqui no entrecruzamento entre duas entradas que consideramos
privilegiadas para a pesquisa: o debate sobre ações policiais e a cobertura da mídia5.
Selecionamos o Jornal Extra por ser o segundo veículo de maior circulação no Rio de
Janeiro e por apresentar “uma linha editorial classificada habitualmente como popular, com um
perfil mais informal” (GUALANDE JUNIOR, 2019, p. 27), cuja produção é direcionada às clas-
ses de menor poder aquisitivo. Esse veículo pertence ao grupo O Globo, com que costuma
compartilhar material. A análise a seguir envolveu a tabulação de 110 matérias sobre operações
policiais em favelas cariocas de 2019 a 2022, no site do Jornal Extra, e na listagem de mais de
50 mil comentários a essas matérias tanto na área de comentários on-line de seu site, quanto em
sua página na rede social Facebook6.
Portanto, a composição do material e da teoria substantiva (GLASER; STRAUSS, 1967)
deste artigo voltou-se para a análise da cobertura jornalística, em meio digital – hoje o ambiente
comum de circulação de jornais e de notícias (Cf. BOLTANSKI, ESQUERRE, 2022; WERNECK;
TALONE; GUALANDE JÚNIOR, 2024.) –, a respeito das ações da PMERJ e para as reações
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geradas em seus leitores. A pesquisa demandou estratégias ligadas a uma sociologia digital
(MARRES, 2017) e à saturação de dados com auxílio de softwares como Microsoft Excel e
RStudio (AQUINO, 2014). Foi mapeado como os próprios atores mobilizam e analisam signos,
índices, ícones, sentidos e significados e, a partir disso, operamos com uma matriz analítica para
analisar a grande base de dados reunida.
As reportagens selecionadas cobrem ocorrências diversas, como operações na Vila
Cruzeiro e no Jacarezinho (favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro); investigações a respeito
dessas ações devido ao alto número de mortes em que resultaram e às suspeitas de execução/
chacina/mega chacina (GENI, 2023; GENI, FOGO CRUZADO, 2024); apreensão de armas
e drogas ilícitas em favelas; a implementação do projeto Cidade Integrada etc. Analisamos
reportagens veiculadas a partir de 2019, o ano do fim da ocupação do Exército no comando
das polícias militar e civil da cidade, quando houve intervenção federal na Segurança Pública
do Estado do Rio de Janeiro (Morellato; Santo, 2020).
Notícias de jornal têm sido fontes de pesquisa para a sociologia voltada às dinâmicas de
crime, violência e segurança pública (DUARTE; RIBEIRO, 2020; AQUINO, 2020; WERNECK,
2022b), inclusive por seu papel fundamental na acumulação social da violência (MISSE,
2022[1999]), uma vez que jornais e portais de notícia podem servir de orientação para os
atores sociais (PORTO, 2006, 2021). Em geral, a análise de comentários em notícias do Portal
de Notícias do Extra sobre operações policiais em favelas cariocas dá conta de exposições e
de discussões a respeito de signos da “violência urbana”. Registramos os tipos e as formas de
comunicação (como são construídas, moduladas e compartilhadas) e as acusações efetivadas.
Dentre as codificações criadas, interessaram-nos, sobretudo: a quem se dirige a crítica/ofensa
do comentário; a ideia ampla nele contida/implicada; a visão de mundo defendida por meio
da crítica/ofensa; e a força argumentativa empregada (a forma como a pessoa efetiva seu
posicionamento moralista, como por ofensas, ironia e insinuação [WERNECK, TEIXEIRA,
CAMINHAS, TALONE, 2024]). Os registros de comentários feitos nas publicações das
reportagens na página oficial do Extra no Facebook7 incluem réplicas, tréplicas e assim por
diante a partir de um único comentário, i.e., há pessoas que comentam mais de uma vez,
engajando-se em discussões longas.
Vejamos agora uma amostra aleatória, mas saturada (GLASER; STRAUSS, 1967) e paradig-
mática das dimensões destacadas – deve-se destacar que o uso de caixa alta é empregado pelos
próprios leitores e a grafia de seus textos foi preservada, somente o uso de itálico foi um artifício
que acrescentamos para destacar passagens de interesse:
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- “todos os dias esses VERMES matam PESSOAS de bem e não aparece um FFDDPP desses para se manifestar em
favor da VÍTIMA, VÃO se FU.....!!!”
- “Pode até parecer frieza, mas é necessário acabar com essa matança gratuita e destruição de famílias inteiras de bem!!!!”.
- “Acho que a população votou para que a polícia fosse fortalecida, reestruturada, que a lei e a ordem fossem cumpridas.
Deveríamos fazer um ato pelo policial que lutou bravamente e heroicamente na defesa das pessoas de bem. Porque
ir até o miolo da favela, em ambiente totalmente hostil, sem suporte imediato, esse policial agiu no calor da guerra!!!”.
- “Instancias altas da Polícia Militar: ‘Vamos afastar esse policial, sua conduta não está correta’. Cidadão de bem:
‘Precisamos de mais policiais assim’. Amanhã toma um tiro no trânsito, no bar ou tem um familiar vítima de bala
perdida aí vai reclamar da violência”.
- “Viu o desarmamento no que deu? Marginais fortemente armados matando Gente de bem … Aplaudam, safados!”.
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- “Ação mais letal são as que os criminosos cometem com o cidadão de bem. Todos os dias eles subtraem bens e,
principalmente, a vida de pessoas inocentes, sem um mínimo de compaixão”.
Outro conteúdo constante nos comentários: defende-se que não existe chacina ou mega cha-
cina (GENI, 2023) se estamos falando de criminosos ou suspeitos de crime. Uma ação só poderia
ser considerada como “violenta” ou “letal” caso praticada contra o “cidadão de bem” ou um “traba-
lhador honesto”. Como veremos, os leitores defendem ironicamente que esse tipo de chacina deve
ser entendido como “faxina”, ou seja, uma “limpeza” social e moral de seres indesejáveis. Eles ainda
apontam para essa retórica e para a quantidade de pessoas que a mobilizam como símbolos da
legitimação das operações policiais violentas em favelas.
[5] Comentários à reportagem: “Especialistas em Segurança Pública criticam operação poli-
cial com dezenas de mortos na Vila Cruzeiro” (2022).
Comentário no Extra Online:
- “Não é de hoje que a Defensoria Pública e o MP têm se comportado como partidos políticos e atuado com uma
agenda ideológica de esquerda. E não basta ter quase toda a imprensa a lhes puxar o saco. Agora eles querem
impedir o poder público de exercer suas obrigações legais. Querem governar a cidade, mesmo sem terem
sido eleitos para isso. E não hesitam em se alinhar com os que afrontam a lei. E os cidadãos de bem, que são
reféns da bandidagem, que se virem. É um escárnio!”.
Mais uma vez, as instituições que se propõem a investigar possíveis abusos e desvios da
força policial, na forma de execuções, são tidas como contrárias aos valores dos “cidadãos de
bem”, pois incomodam a polícia com a “proteção de criminosos”. Nesse comentário, vemos
algo que costuma se repetir: a localização dos críticos das operações policiais no espectro
político da esquerda. Isso acontece com as instituições retratadas nas notícias, com os leitores
críticos às ações policiais e com o próprio Jornal Extra, caso entendam que o jornal tomou
partido contra a polícia.
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- “A mídia poderia parar de apoiar a criminalidade. Foram 27 traficantes mortos em confronto com a polícia, a única
vítima foi o policial civil, que foi morto fazendo o seu trabalho. Parem de destorcer os fatos, procurem saber do
cidadão de bem, anonimamente, sobre a opinião deles, sobre esses 27 traficantes mortos.”.
Aqui temos um exemplo de localização da própria mídia como alvo de crítica. Destaca-se
que os criminosos e suspeitos mortos são retirados da categoria “vítima”8. Apenas o policial morto
mereceria essa classificação por ser cidadão de bem.
[7] Comentários à reportagem: “Familiares enterram, neste domingo, vítimas de operação
policial no Fallet Fogueteiro” (2019).
Comentários no Extra Online:
- “Agora vem a ‘família’ querer fazer gracinha pra chamar a atenção da imprensa com faixas pedindo justiça,
sabendo que tem apoio da bancada derrotada do PSOL .!! Um “dimenor” de 15 anos nunca era pra ter entrado no
tráfico e sim [estar] estudando e fazendo algum curso pra ser um cidadão de bem e não tentar contra a vida de
ninguém! Esses favelados não conhecem o ECA e o que diz cada artigo!”.
- “Parentes só se preocupam depois que as pragas morrem, e só para fazer média contra a polícia! Foram exterminados
porque eram Criminosos e só serviam para fazer o mal… tiveram o fim certo! Antes ver esses lixos mortos do que de
bem inocentes que são assassinadas por esses lixos covardes! Morte aos Micróbios!”.
- “todo pai ou mãe de um TRABALHADOR ou pessoa de bem, quando tem um parente assassinado, quase sempre
mostra o rosto, agora de Criminosos NÃO!!!”.
- “Parabéns PMERJ, vítimas são os cidadãos de bem”.
Esses comentários estão no grupo daqueles que estendem o potencial criminoso e desor-
deiro (TAVARES, 2016) de “criminosos” e suspeitos para os seus familiares. O “sujeito criminal”
(MISSE, 2022[1999]; TEIXEIRA, 2012) assim emergiria também por causa de seus parentes e de
seu entorno. Essas famílias (que reclamam justiça ao Estado) são retratadas como interesseiras,
por quererem recompensas financeiras do Estado, ou como maus-caracteres, por serem contrárias
às ações policiais contra seus “filhos criminosos” – que, logo, não seriam “cidadãos de bem”. Há um
comparativo, inclusive, comum quanto à morte: “antes eles do que um cidadão de bem”. O outro
violento é tido como lixo, micróbio, bicho, animal etc.
[8] Comentários à reportagem: “‘Resgatamos os [oito] corpos e não achamos nenhuma arma.
Fizeram uma chacina’, diz morador do Complexo do Salgueiro” (2021).
Comentário no Extra Online:
- “8 foi pouco, pelo que eles fazem todos os dias com a população de bem!”.
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- “É só puxar os antecedentes criminais pra ver se era gente de bem ou não, se não for gente de bem é só esfregar o
documento na cara dos parentes”.
Vemos, mais uma vez, a defesa do homicídio de pessoas caso não sejam “de bem” – o que
poderia ser confirmado pelos antecedentes criminais.
[10] Comentários à reportagem: “Bolsonaro parabeniza ação policial que deixou 23 mortos
na Vila Cruzeiro” (2022).
Comentário no Extra Online:
- “A criminalidade tem que temer o poder publico, vivemos em uma guerra urbana, mas os lacradores de plantão vem
falar b o s t a querendo argumentar que a operação foi errada, a operação foi um sucesso retiraram pelo menos 13
fuzis das mãos dos marginais que poderiam vitimar diversas pessoas de bem, PARABÉNS POLIÇADA!”.
Grande parte dos leitores defende o uso desmedido da força por parte da polícia, assim como
a morte de suspeitos em favelas, pois seria a única forma de “botar medo” nos criminosos.
Werneck, Teixeira, Caminhas e Talone (2024) defendem que isso se traduz em uma conclamação
da força policial. O termo “lacrador” é usado, normalmente, para se referir àqueles que defendem
o respeito aos direitos humanos, colocando-se como críticos das operações policiais. Lacradores,
esquerdistas, mortadelas e psolistas são alguns dos termos mobilizados com o mesmo sentido para
os autointitulados “cidadãos de bem”: seriam pessoas que permitem ou defendem a existência de
“criminosos” e que, portanto, são tão danosas a “sociedades de bem” quanto esses.
[11] Comentários à reportagem: “Policial envolvido na morte de caseiro é preso; PM diz que
disparo foi acidental” (2022).
Comentário:
- “Coitado do PM. Se meter em confusão de f.a..v.e.l..a.d.o só dá m.e..r.d..a. a atitude certa do PM seria, deixar os
p.u.t..o.s se matarem, aí seria um v.a..g.a.b.u.n..d.o a menos e a sociedade de bem, agradeceria”.
Mais uma vez, moradores de favelas são interpretados como vagabundos estranhos à socie-
dade de bem – e, a partir desse enquadramento moral, podem morrer (ARAUJO, TALONE, 2021).
A seguir, destacamos brevemente algumas reportagens do Jornal Extra do Facebook,
no mesmo período, e comentários de interesse:
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- “operação desnecessária? tá de Sacanagem ou é defensor de bandido. O Rio todo é favela e está tomado de bandi-
dos só a força letal vai dar geito nisso... parabéns a polícia do Rio façam mais em nome dos cidadãos de bem”.
- “O mais importante foi que a polícia civil economizou 48 doses da vacina, assim as pessoas de bem tomará mais
rápido as doses devidas”.
- “[em resposta a outra pessoa] leva para sua casa então! Aí ficam na cadeia à toa custeado pelos nossos impostos
e depois saem e voltam a traficar, roubar e matar gente de bem. Ah não fode o retardada!”.
Comentário 2:
“mas o bandido tem direito de tirar a vida de pessoas de bem né, engraçado que só os marginais tem defesa,
me poupe, é fácil defender quando nunca teve uma arma apontada pra sua cabeça por causa de um celular!
Vítima somos nós que perdemos nosso direito de ir e vir por causa da bandidagem que nos aterrorizam a qualquer hora do
dia! Parabéns aos policiais que fizeram seu trabalho!”.
[15] Comentários à reportagem: “Policial morto no Jacarezinho era conhecido pelo gosto por
operações e o conhecimento sobre armas de fogo” (2021).
Comentário:
- “Tem que ter muitas operações é muito bandido ir para o inferno. O policial está ao lado de Deus. Infelizmente
uma pessoa de bem foi vítima”.
- “Direitos humanos é só pra marginais, pessoas de bem não têm nenhum direito”.
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As “pessoas de bem”, a “sociedade de bem”, assim, diz defender a “boa ordem” – avessa não apenas
à desordem, mas à ordem da criminalidade e à distopia violenta que representa (TALONE, 2023a).
Reproduz-se, nos comentários, a ideia de que o tecido social não pode ser “manchado” por
essa alteridade imprevisível, desordeira (TAVARES, 2016; RODRIGUES, 2012) – que cobre de
“criminosos” aos “lacradores”. Por fim, há uma exploração consciente da oposição entre direita
e esquerda nessas postagens, traduzindo-se na ideia de uma esquerda “sem valores morais”,
que impede o trabalho de uma direita dos “cidadãos de bem”. É um mecanismo da movimentação
política do Brasil na contemporaneidade (FIGUEIREDO, 2021) que reflete um movimento mais
amplo de politização múltipla das “atualidades políticas” (BOLTANSKI, ESQUERRE, 2022).
O outro na sociologia
Tais relações sociais não estão sempre no limite e, em última análise, são ponderadas por
negociações e escalas valorativas relativamente fixadas, cujo uso pelas pessoas têm certo grau de
arbitrariedade sem perder a legitimidade moral de sentido. Como é também o caso no uso da
linguagem de expressões que carregam atributos desacreditadores sem que a intenção moral do
locutor no contexto vise o sentido oculto estabilizado, mas outro. Essas ambiguidades decorrem
de duplos sentidos de escalas diversas, a matéria prima do humor e da matéria moral dos jogos
de duplo sentido (WERNECK, 2022a). É o caso da variação de gravidade moral dos rótulos
(GOFFMAN, 2008[1963]; BECKER, 2008[1963]), cujos usos podem ou não se estabilizar na lin-
guagem por períodos de tempos distintos. Assim, o uso da categoria “cidadão de bem” se dá em
um contexto social em que um mesmo enunciado pode usar de diferentes outros, com diferentes
significados de rejeição ou de suspeição social.
Na sociologia, temos como casos ilustrados do Outro o estrangeiro de Simmel; o marginal de
Stonequist; o forasteiro do Schutz; o outsider de Becker; “os outsiders” de Elias; o “outro self ” de
Mead; e “o Outro” de Honneth. Definições com diferentes graus de propriedade, mas que carre-
gam em comum o sentido relativamente atenuado de que o outro não é inteiramente assimilável
aos seus comportamentos esperados. São apenas estranhos à cultura que os recepciona, portanto,
pouco conhecidos quanto aos comportamentos que podem desempenhar, problemáticos ou
detentores de comportamentos estranhos à cultura que os recebe. Quanto a eles, os outros ficam
em uma zona cinzenta e intermediária entre a manutenção de sua própria cultura e a assimilação
da cultura que os recepciona. Evidentemente há graus de diferença que podem aguçar para maior
gravidade condutas que também são percebidas por sua maior estranheza, já a partir de valores
parcialmente assimilados por visitantes ou hóspedes.
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Nesses casos citados acima há implícita uma demanda de aceitação por parte do visitante/
hóspede em relação ao anfitrião/hospedeiro. Essa demanda de aceitação mais ou menos implícita
é uma marca relevante no que poderá ser aceito no comportamento do outro, mesmo quando
esse comportamento é culturalmente muito diferente – mas aceitável por parte do grupo receptor.
Ao contrário, quando a demanda de aceitação é mínima por parte do hóspede, ou quando ele é
relativamente indiferente quanto a ser aceito ou reconhecido, levantam-se suspeitas. Conflitos de
significação moral, como analisados por Becker, quando não ocorrem dentro da mesma cultura,
mas entre normas culturais provenientes de povos distintos, podem produzir mal-entendidos que
podem ser compreendidos e resolvidos quando a demanda de aceitação do hóspede efetiva a busca
por compreensão. Entretanto, quando isso não acontece ou quando a suspeita prevalece a respeito
da indiferença do hóspede em ser aceito ou assimilado, constitui-se uma situação que ganha maior
gravidade na escala dos julgamentos morais. Estabilizações de sentido quanto a julgamentos cons-
tituem estereótipos, preconceitos de diferentes naturezas, que atravessam os contextos locais em
que são negociadas, no cotidiano, as relações sociais.
Entretanto, o criminoso, o bandido, o violentador não podem, por sua própria posição
antagônica aos interesses de suas vítimas, ser comparado ao Outro sociológico. Eles não podem
pedir aceitação, no máximo podem buscar justificação ou demandar compreensão. Nesse aspecto,
no melhor dos casos, podem ser objeto de uma possível regeneração, seja pela ressocialização
penal, seja pela conversão religiosa (TEIXEIRA, 2012). Em geral, nessas condições, são postos
não apenas “fora da lei”, mas “fora da Sociedade”. A depender de como são representadas e inter-
pretadas as suas ações, são postos não como estrangeiros ou forasteiros, mas como absolutamente
indesejáveis e irrecuperáveis. É a sua morte, a sua eliminação física, que é demandada. Mas o
quanto a oposição ao bandido é capaz de construir o seu Outro absoluto, o “cidadão de bem”?
Esse não é apenas um homem “bom”, mas aquele que cultiva o Bem, aquele de quem não se pode
esperar qualquer dúvida quanto à sua integridade moral.
As ideias culturais estabilizadas constituem contextos de sentido que atravessam muitas
vezes temporalidades distintas e contextos locais variados. Mas como isso se expressa no contexto
de uma acumulação social da violência e em relação a uma ideia (que deveria ser) universal de
cidadão? Cidadão, simplesmente.
Para avançar na análise, é necessária uma pequena digressão para abordarmos o conceito de
“cidadania” e as particularidades de como vem sendo pensada e defendida no Brasil, sobretudo,
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Justamente nesse ponto, vemos como o debate sobre cidadania no Brasil ganha tonalidades
novas e peculiares (PERALVA, 1997; KALIL, 2023). Abordando o período de redemocratização
no Brasil no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, Angelina Peralva argumenta que a ideia
universal de “cidadão” passou a ser colocada em xeque por novas configurações da violência
(SOARES, 2019), tanto ao nível das representações sociais, quanto das práticas estatais, em con-
tinuidade aos procedimentos militares e policiais da Ditadura Militar brasileira (1964-1985).
Um universo de valorização da identidade por meio do trabalho e da conivência com ações repres-
sivas se desenvolve e passa a partilhar espaço com um universo de valorização de identidades a
partir do consumo. A “violência” que toma forma e que ganha atenção de jornais e de programas
televisivos (MISSE, 2022[1999]; DOS SANTOS, 1999) é sensível às características de uma socie-
dade em curso de mudanças sociais aceleradas sobre um terreno de desigualdades extremas e de
sobrevivência de práticas estatais de exceção. Com a ordem da “violência urbana” a disputar hege-
monia com outras formas de ordem (MACHADO DA SILVA, 1993), surgem novas percepções
sobre valores de igualdade e de cidadania, marcados pela transição de uma sociedade segmentária
e pela ruptura com hierarquias que antes constituíam um princípio de ordem.
Segundo Costa (2021), os anseios pela efetivação dos direitos de cidadania que foram pro-
metidos pela Constituição de 1988 retomaram a figura do sujeito de direitos, das pessoas como
cidadãs que podem reivindicar, no espaço público, tal reconhecimento. Mas esse processo foi con-
comitante com um outro processo: o da integração social via consumo, marcada pelo interesse nos
chamados “direitos difusos” (PERALVA, 1997). A categoria “cidadão de bem” passa a ser mobili-
zada, como foi ao longo da ditadura militar, para diferenciar seus apoiadores e os “subversivos”;
e para diferenciar as classes médias urbanas das populações pobres (Costa, 2021). Esse uso perma-
neceu na redemocratização e se popularizou com programas jornalísticos e televisivos que cobrem
operações policiais, criticando a necessidade de respeito aos direitos humanos dos “criminosos”
(MISSE, 2022[1999]; PEREIRA, 2017).
Temos um contexto de crise econômica marcada pela dinâmica inflacionária e pelos
problemas da dívida externa deixada pelo governo militar, e uma modernização do Estado
pela via da privatização das empresas estatais (PERALVA, 1997). A discussão desses pro-
blemas foi inteiramente tomada por um discurso formulado em termos de direitos huma-
nos e de cidadania. Nesse contexto, vai surgindo a ideia restrita de “cidadão” que vimos nos
comentários acima12. O “homem de bem”/“pessoa de bem”/“cidadão de bem” é um disposi-
tivo mobilizado historicamente por pessoas – inicialmente moradores de favelas e de peri-
ferias – para delinear gramáticas morais distintas daqueles dos “bandidos” (ZALUAR, 1985;
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MACHADO DA SILVA, 2008). Esse conteúdo moral gravitava (e ainda gravita) em torno
do trabalho honesto e da valorização da família nuclear tradicional. Uma série de frustra-
ções sociais e institucionais, como o sentimento de impunidade e a descrença na Justiça legal
(MELLO NETO, 2017) – que, inclusive, marcam o surgimento do “esquadrão da morte” e
suas modulações ao longo do século XX –, vão demarcando, no senso comum, uma cidada-
nia limitada, particularizada de acordo com práticas situadas e com valores partilhados em
comunidade. Aqueles tidos como “vagabundos”, criminosos, bandidos – em geral, marcados
pela percepção de serem altamente violentos (MACHADO DA SILVA, 2004; WERNECK;
TALONE, 2019) e, de certa forma, hedonistas – ficam de fora dessa noção de cidadão.
Para demarcar o recorte com a ideia universalista, toma um novo fôlego o “cidadão de bem”.
De acordo com Leite (2000), especificamente sobre o Rio de Janeiro, durante uma década de
1990 marcada por conflitos envolvendo quadrilhas de narcotraficantes e policiais e pela repercus-
são midiática desses eventos, houve a consolidação de uma imagem da cidade como uma “cidade
em guerra”. Nessa guerra, teríamos “bandidos violentos” versus os “cidadãos de bem” – as vítimas
dos bandidos –; núcleo da representação que ainda hoje vemos ser operada. As forças policiais
atuariam no combate aos “inimigos”. A cidadania torna-se algo restrito apenas àqueles que esta-
riam ao lado do Estado e das forças legais; e, dessa forma, os defensores de uma cidadania ampla
e universal (sejam nomeados como esquerdistas, mortadelas, lacradores, marmita de bandido,
como vimos nos comentários) também são retirados da possibilidade de reconhecimento como
cidadãos. O termo “pessoas de bem” se propõe como contraponto ao que usualmente se refere a
pessoas envolvidas com o “mal” ou que facilitam a sua existência:
As “pessoas de bem” seriam aquelas que se percebem como distantes desta violência, que não usam este artifício
em seu cotidiano e negam a presença deste “mal” na sua vida e de sua família. São pessoas pacíficas, que fazem
coisas percebidas como boas para aqueles que os cercam, onde valores percebidos como “bem” seriam a solida-
riedade, a amizade e a paz (RODRIGUES, 2012, p. 72).
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os comentários antes analisados, não são apenas “inimigos violentos”, mas um Outro que guia
sua conduta em uma “ordem para a desordem” – pelo menos, quanto à ordem da “sociedade
de bem”. Com isso, uma série de ações e fenômenos passam a ser lidos nativamente pela lente
de uma sociologia política da violência (WERNECK; TEIXEIRA; TALONE, 2020), em que se
entende a força como algo mobilizado legalmente pelos representantes do Estado e que assim deve
ser – inclusive, o abuso da força, para ser tolerável (o rompimento da própria ordem é tido como
normal para manter a ordem), sustenta-se na representação de uma grande potência violenta no
“inimigo”. Uma série de estudos recentes mostram como vem sendo desenvolvida, no cenário polí-
tico contemporâneo, uma contiguidade deste “sujeito criminal” – o Outro do “cidadão de bem” –
com radicais, usuários de drogas, esquerdistas, feministas etc. Eles formam um conjunto de atores
protagonistas no projeto de distopia realizada carioca (TALONE, 2023b).
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possível formular um programa de pesquisa que investigasse como esse processo, no Brasil,
equacionou – num “sujeito socialmente contraditório” – formalização com hierarquia e contin-
gência com individualismo. A esse tipo, cujas características principais são o fato de que não é
gregário nem legitimamente “socializável” – não tem “direitos” e não busca “reconhecimento”
e não se orienta por qualquer princípio de dignidade intrínseca à individualidade do “outro”,
nem supõe uma igualdade inata entre todos os indivíduos, propomos chamar de “individualismo
hierárquico” (MISSE, no prelo). Alguns “casos” poderão facilitar ao leitor a compreensão de sua
especificidade frente a outros tipos de individualismo (o utilitário ou possessivo, por exemplo).
A conhecida expressão, usada em campanha publicitária pelo ex-jogador Gerson, de que
“deve-se buscar levar vantagem em tudo”, embora possa ser assimilada ao individualismo
possessivo, terminou sendo interpretada, por muitos brasileiros, como amoral. Verdadeira,
mas amoral. Muitos a utilizam para criticar comportamentos como aqueles enquadráveis na
chamada “malandragem”: furar filas, dirigir no acostamento para ultrapassar congestionamen-
tos de trânsito, descontar o custo de um serviço em troca de não emissão de nota fiscal, buscar
privilégios em qualquer situação etc. A crença que acompanha esse tipo de individualismo e
o diferencia dos outros é de que é melhor agir racionalmente, quando isso for mais vantajoso,
do que seguir regras. Desse ponto de vista, quem segue regras age irracionalmente, mas a crença
só ganha validez, de um ponto de vista individual. Se todos deixarem de seguir as regras, ou se
todos a seguirem, então não haverá mais possibilidade de um agir individualmente mais van-
tajoso. Logo, a crença depende de uma perspectiva hierárquica e não-igualitária e põe todos
aqueles que continuam a seguir regras numa posição inferior e irracional, “otários”. Curiosa e
paradoxalmente, quem agiria assim, de seu próprio ponto de vista, seria um “cidadão de bem”,
vítima dos maus costumes individualistas dos outros.
Em qualquer caso, estamos longe de qualquer crença no individualismo possessivo
igualitário, contratual. Pois o “cidadão de bem” não pode acreditar que o seu Outro lhe seja
igual em direitos, mas moralmente inferior e “sem direitos”, uma identidade para ser conspur-
cada, vencida, até mesmo exterminada. Em seu lugar todos “seguiriam idealmente as regras”.
Como se vê, não se trata de impor regras a todos igualmente, com custos para quem não as
seguem, mas de diferenciar idealmente, ontologicamente, aqueles que as seguem daqueles que
não as seguem. Como não há critério para medir a generalidade dessa diferença que não seja a
igualdade de direitos, ficamos assim com um sujeito social contraditório, que exige dos outros
o que ele próprio não pode sempre dar. O efeito moral dessa situação no plano individual é
conhecido socialmente pela palavra “hipocrisia”. De lado a lado, apenas a hipocrisia poderá
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Considerações finais
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Notas
1
Este artigo traz resultados das pesquisas A Acumulação Social da Violência no Rio de Janeiro: Novos Desafios, financiada pela
Faperj, por meio de seu edital Temático (processo SEI-260003/001153/2020) e de sua bolsa Pós-Doutorado Nota 10 (processo
E-26/202.010/2020); e Moralismo Ostentatório e Violência: Um Estudo do Papel da Crítica Acusatorial na ‘Violentização’ dos Discursos no
Rio de Janeiro, financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
2
Ações que, normalmente, afetam de forma direta os deslocamentos urbanos rotineiros (MACHADO DA SILVA, 2004; GRILLO;
MARTINS, 2020).
3
Do material recolhido, destacamos ser esta uma percepção dos leitores das reportagens analisadas. Não cobrimos aqui a
percepção dos próprios policiais sobre este tema (CUBAS; ALVES; OLIVEIRA, 2020).
4
Neste diapasão, a própria categoria “inocentes” passa a ser objeto de ataques nos comentários.
5
Todo o trabalho empírico aqui mobilizado tomou forma em pesquisa coletiva conduzida no Núcleo de Estudos da Cidadania,
Conflito e Violência Urbana (NECVU-UFRJ). Para mais informações sobre o recolhimento dos dados e a análise operada,
ver Talone, Werneck e Neves (no prelo).
6
As caixas de comentários, como “rastros digitais” (Bruno, 2017) deixados por pessoas ou máquinas, variam em número, pois
os comentários podem ser deletados ao longo do tempo ou desaparecer, por exemplo, quando uma pessoa desfaz o seu
próprio perfil. Por outro lado, novos comentários podem ser adicionados, visto que os posts ficam, a princípio, por tempo
indeterminado na rede social – podendo gerar novos engajamentos e interações meses ou anos depois da publicação original
por motivos variados. Portanto, o número de comentários varia com o tempo.
7
A pesquisa com o Jornal Extra sobre sua cobertura a respeito da “violência” e das ações da PMERJ é acessada por muitos
usuários e fica registrada em acervos on-line, gerando engajamentos e sendo compartilhada mesmo anos após sua publi-
cação – tanto em seus sites próprios, quanto em seus perfis oficiais em redes socais. São fontes de avaliações e de críticas à
ação policial e/ou a cobertura dos jornais sobre as operações.
8
O termo “vítima” pode ser mobilizado ou rechaçado a depender das situações analisadas ou em que se encontram as pessoas.
O termo refere-se “[àqueles] que se consideram, em um dado momento, vítimas de infortúnios, violência ou injustiça, ou que
são confrontadas com dispositivos que as reconhecem como tal” (BARBOT, DODIER, 2015, p. 92). As pessoas ocupam a posição
ou localizam outras, em um dado momento, no “lugar da vítima” (BARBOT, DODIER, 2015, p. 92).
9
O que também é expressão de um cenário social mais amplo, hipercrítico, e marcado pelo tipo atual de interação nas redes,
ou seja, por uma internet voltada à atuação intensa dos usuários e à manifestação e troca de críticas como elemento central
(ESQUERRE, 2018; MASSUCHIN et al, 2022; FISHER, 2023).
10
Nessa visão de mundo, os mortos foram alvos de forma legítima. Como mostram Neitzel e Welzer (2014), certas definições
de morte são irrefutáveis, em cenários de “guerra aos inimigos”, porque são auto verificáveis. Ou seja, a própria “ação violenta”,
a execução, a situação de efetivação, atesta, posteriormente, sua própria correção: “se morreu nas mãos da polícia, era bandido”.
A operação policial, aos olhos dos “cidadãos de bem”, é instrumento de verificação, por si só, da correta avaliação da situação.
A “boa ordem” é estabelecida e, após a operação ter sido iniciada, os detalhes passam a ser vistos à luz da definição já empre-
gada pelas forças legitimadas de segurança.
11
Em alemão, tradicionalmente é uma mesma palavra a que designa burguês e cidadão.
12
Analisando diferentes arenas “em que são ‘problematizados’ os ‘direitos humanos’” (FREIRE, 2010, p. 121), a socióloga Jussara
Freire nota a operacionalização nativa de uma gramática da “violência urbana” no Rio de Janeiro caracterizada por atribuir
diferentes valores aos seres e aos tipos de sociabilidade na cidade. Nesse movimento, a autora evidencia a existência de um
regime de desumanização efetivado por essa gramática, em seu processo de justificação pública, que extrai determinados entes
de uma humanidade reconhecida e aceita. Se, idealmente, em uma sociedade ocidental, deveria ser efetivo um princípio de
humanidade comum generalizável (BOLTANSKI, THÉVENOT, 2020[1991]) – como no regime de justificação pública (Ibid.) –,
a premissa das justificações públicas na cidade do Rio de Janeiro se articula em torno do pertencimento a uma humanidade
comum que não inclui a dignidade de todos. Para Freire, trata-se de uma fragmentação da cidadania que se torna uma cidada-
nia de “geometria variável” (LAUTIER, 1997).
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