O Jogo Da Oralidade Na Prática Do Contador de Histórias

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O JOGO DA ORALIDADE NA PRÁTICA DO

CONTADOR DE HISTÓRIAS

Analisar estratégias de relação com a história (leituras, decupagem,


entendimento e apropriação), a memória (recordações, imaginações,
repertório pessoal e cultural) e a expressividade (uso do corpo, da voz, do
espaço, exposição, concentração e improvisação).

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RESUMO

O exercício da oralidade na formação do contador de histórias como um caminho


para a narração e promoção da literatura infantil juvenil. Por que alguns professores
que contam histórias, principalmente aqueles que estão começando, tem receio da
oralidade como recurso para suas narrativas e muitas vezes se escondem atrás dos
livros? Por que a mediação de leitura com o livro e a contação de histórias com a
oralidade não são muitas vezes separadas como possibilidades complementares
para o professor? Este trabalho tem por objetivo investigar esses questionamentos e
traçar um caminho para uma aproximação do professor-contador com o universo da
oralidade através de recursos como o despertar da memória, das emoções, do
repertório pessoal e cultural, a fluência verbal, o uso expressivo do corpo e da voz e
o jogo como recurso lúdico estimulando a palavra como consequência e não
imposição no ato de contar histórias. Oportunizando assim uma busca de
aprimoramento da expressividade cênica e da oralidade. O caminho se faz com
técnicas advindas das artes cênicas em busca deste ser contante e não somente de
um reprodutor de histórias. Baseado na tríade história, memória e expressividade, o
presente estudo analisa estratégias de aplicação prática cruzando pesquisas de
contadores de histórias e teóricos como Marie Schedlock, Ruth Sawyer, Regina
Machado, Celso Sisto, Maria de Lurdes Patrini e Luiz Abreu. Para esse traçado a
pesquisa encontra apontamentos na relação da história com seu contador
estabelecida desde os primórdios e muito anterior a literatura bem como na
explosão midiática do século XXI onde a busca por um olhar ritualístico e não digital
parece ser um viés de escape e sensibilidade. É a oralidade como recurso de
aprimoramento do profissional que promoverá a leitura e literatura.

Palavras chave: contação de histórias. Formação do professor. Oralidade.


Expressividade cênica. Memória.

A narrativa desde os primórdios estabelece uma relação do narrador/contador com


a história narrada. A história só existe no estabelecimento desta relação. Ela oferece
ao narrador toda a sua riqueza de detalhes, cheiros, cores e nuances e ele oferece
a ela sua voz, seu corpo, sua memória e suas emoções. Quando contamos, nos
apropriamos da historia, ela se torna nossa. Do encontro de cada contador com a
mesma história nasce uma nova autoria, novos gestos, novos olhares e todos estes,
sempre a serviço do conto e ao deleite do ouvinte/espectador.

Os contadores da tradição oral, aqueles das rodas de conversa, da fogueira, do


chimarrão, do fogão a lenha, da tribo, usam e abusam da expressividade natural e
da oralidade para contar. O berço da literatura infantil mundial está calcado na
narrativa oral. Perrault, os Grimm, Jacobs, foram coletores de histórias de fonte oral.
Andersen, o pai da nossa Literatura infantil, foi diretamente inspirado por uma mãe
contadora de histórias e analfabeta.

E hoje com esse universo de livros, e-books, redes sociais e possibilidades, onde
está a oralidade?

Muitos contadores de histórias atuais talham sua expressividade natural com o


discurso de favorecer a história, desprezando a criação e a autoria e investindo na
reprodução. Outros tantos, muitas vezes aqueles que possuem contato e formação
nas artes cênicas, separam o teatro do contar histórias, criando caixas e
engessando as formas, sem perceber as possibilidades dessa tênue ou até inexiste
fronteira. Caminhos estes que distanciam o narrar da expressividade cênica. Que
nada mais é do que reaprender a usar a expressividade natural colocando-se no
risco da exposição. Através de técnicas vocais e corporais que aproximam o
contador de si mesmo, do ouvinte e da história potencializando sua relação com a
oralidade.

O texto escrito não vem pronto para ser contado, a ditadura da palavra não pode
talhar a imaginação, a memória e as emoções. Entretanto é muitas vezes isso que
acontece, pois o professor/contador pensa que para contar uma boa história deverá
decora-la, palavra por palavra e reproduzi-la tal qual está no livro, para ser fiel a
obra. E acaba sendo tão radical nesta escolha que perde neste processo toda a
grandeza da experiência de desenvolvimento da oralidade através fluência verbal
natural encaminhada pela memória. O termo oratura, como nos traz Fabiano
Moraes, foi:
(...) proposto pelo linguista uganes Pio Zirimu nas universidades de Makerre em
Uganda, na década de 60(...). Oratura, ou oralitura, surge como alternativa á
expressão literatura oral por apresentar-se mais apropriada para o fim a que se
propõe- designar um conjunto de formas verbais orais, artísticas ou não.

E fala desta literatura oral, deste texto em construção que respeita a história, mas se
apropria dela para uma experiência completa e pessoal a cada narração. Pois afinal
estamos falando de um exercício de oralidade e não de literatura.

Unindo a oratura, a sensibilização da memória e das emoções, as técnicas


corporais e vocais das artes cênicas e o jogo teatral pretende-se através deste
estudo oportunizar ao professor/contador o aprimoramento da oralidade na
contação de histórias através da busca da expressividade cênica. Para tal será
necessário analisar estratégias de relação com a história (leituras, decupagem,
entendimento e apropriação), a memória (recordações, imaginações, repertório
pessoal e cultural) e a expressividade (uso do corpo, da voz, do espaço, exposição,
concentração e improvisação). Buscar nas técnicas corporais e vocais advindas das
artes cênicas, em caráter antropofágico (conhecer, se apropriar e descobrir seu
estilo) estimulo para a expressividade cênica do contador de histórias. E estabelecer
o conceito de jogo, que parte da troca e espontaneidade, presente no teatro, como
recurso principal para despertar a oralidade deixando a palavra surgir como
consequência e não imposição. Traçando assim um caminho sem amarras para que
todos possam cada vez mais se permitir contar, narrar e encantar através do lúdico,
da troca com o espectador e da conexão entre história e contador.

Buscando assim o desenvolvimento da oralização com recurso e técnica para o


aprimoramento do contador de histórias que não vem do teatro, mas sempre poderá
beber nesta fonte para a maior aventura de todas, descobrir mais de si mesmo para
ser um instrumento das histórias.

A ORALIDADE - CONEXÃO ENTRE O CONTO E O CONTADOR

Muitas vezes quando conversamos com alguém da terceira idade nos


surpreendemos com colocações como: “Vocês estudam pra contar histórias?” “Tem
que fazer exercício pra falar?” “E tem aula para contar um causo?”. E por assim vão
às exclamações que estão baseadas em uma verdade natural e primitiva: a
oralidade está inerente ao ser humano, dependemos dela para sobreviver e
conviver. Contamos histórias da hora que levantamos até a hora de dormir. É a
conexão entre memória, texto, estilo oral e comunidade que nos convidam a viver
em sociedade e transmitir mensagens.

E mesmo assim a cada dia contamos pouco e ouvimos menos ainda. Afinal temos a
escrita, a leitura, a literatura e assim “frequentemente, desprezou-se este especial
caudal expressivo [o da tradição oral], em virtude da letra impressa: é importante,
porém destacar o valor da voz.” (REYZÁBAL, 1993, p.259). Contar histórias é bem
menos frequente, principalmente nas escolas, do que ler histórias. E mais que isso a
importância dada à literatura ultrapassa em todas as instancias a importância da
oralidade como caminho de expressão e transmissão de conhecimento.

Esquecemos sim do conceito primitivo de sociedade oral, ou seja, o fato de


estarmos inseridos e um ou mais grupos orais que através de suas relações “(...)
define suas experiências, sua imaginação criadora e seus comentários para a
sociedade. (...) Cada gênero se caracteriza por um conjunto de relações entre seus
elementos formais, seus registros temáticos e seus usos sociais possíveis.”
(BenAmos,1974, p.275) e negligenciamos nossa capacidade expressiva de
comunicação, criatividade e memória. Afinal sociedades ágrafas, não letradas, não
fazem uso da escrita e mantem suas tradições e histórias de geração em geração
através da oralidade, algumas até os dias de hoje. Pode parecer inusitado, mas a
escrita enquanto forma de comunicação privilegiada pela humanidade é uma
invenção recente que data de apenas 5000 anos. Isso visto de forma
descontextualizada pode parecer muito tempo. Não é, no entanto, quando
comparamos o tempo de existência dos sistemas de escrita com o de nossa
espécie: o homo sapiens tem aproximadamente um milhão de anos, ou seja,
apenas 0,5% de nossa existência como espécie se dá em concomitância coma
escrita (GRAFF, 1990)

Olhamos para uma prática narrativa e nos sentimos impotentes, presos ao papel,
incapazes de nos jogarmos neste universo que flui e faz com que nós percamos
nossa zona de conforto e nos tornemos agentes da realização. E não estamos aqui
negligenciando a literatura ou comparando quem pode ser melhor. Longe disso.
Existem horas para se ler histórias e horas para conta-las. O importante é saber que
se tratam de estilos completamente diferentes e que nossa relação com o conto,
com a história também é diferente a cada um.

Mas e então como se estabelece essa relação diferenciada, que parece tão natural,
mas que anda cristalizada?

O espaço que se abre na prática da narração oral é o da arte da palavra falada. Assim
como a literatura não é apenas comunicação escrita, narração oral é aqui entendida
como “oratura”: um espaço de recriação simbólica e estética, que ganha sentido como
troca entre o artista e o público, a exemplo de outras artes, numa relação direta (...)
poderemos pensar talvez que a oratura estaria para a fala como a literatura está para a
escrita. (BELLO, Sergio, p.159, Baús e Chaves da Narrativa)

Uma história só passa realmente a existir no plano da oralidade quando quem


decide contá-la estabelece uma relação com ela. O contador de histórias descobre
por aptidão e sensibilidade as histórias que realmente são suas, aquelas que
querem sair de sua boca e serem contadas. Que passam a ser de sua “autoria” oral
visto que seu gesto, seu olhar, sua oralidade e oratura colorem este contar. È o ritual
de evocar, de dar voz a algo que já aconteceu.
E como naquele dia em que lemos um livro tão bom, assistimos a um filme
maravilhoso ou nos aconteceu um fato marcante e tudo que queremos é sair
contando para todo mundo. Pois o acontecido, a história está pulando da nossa
boca e pedindo para ser contada, compartilhada por ai. Estamos transbordados dela
e precisamos repartir. È o que podemos chamar de saturação de uma ideia. Mas
uma saturação positiva, afinal como nos diz Estella Ortiz “Os contos tradicionais
estão vivos, como as rochas e os rios evoluem lentamente (...)e se o caminho se faz
ao andar, as histórias se fazem ao contar.”(Baús e Chaves, pg.106). E é assim que
se estabelece um caminho diferente para o contar, vou procurar uma história que eu
goste, que transborde em mim para que assim eu esteja tão contaminado dela, que
possa transmiti-la ao outro exercitando com autenticidade e generosidade o
exercício da oralidade.

A ÂNSIA DE NARRAR E A SISTEMATIZAÇÃO DO PROCESSO

Um contador de histórias cubano chamado Aldo Méndez disse em uma de suas


palestras que o Re-cuento, a recriação, o recontar é passar duas vezes pelo
coração. Afinal a história sai do seu coração e chega ao coração do outro. Você é
apenas o instrumento da história.

Ao olhar por este ângulo, no momento em que se coloca a história antes do


contador, percebemos que nosso desejo de contar deve nos mover e não nossa
vaidade. Não há espaço para exibicionismos. E sim para trabalho, afinal o desejo de
narrar não se fortalece sozinho, precisamos de ferramentas que possam cultiva-lo e
nutri-lo até que esteja pronto para ser trazido à tona.

Marie Schedlock, pesquisadora inglesa, chamaria isso de planejamento de efeitos,


da arte de esconder a arte. De quando traduzimos nosso instinto em arte para que a
história se torne completa. Aquele efeito de aparente simplicidade que cativa o
público, porque a aparente falta de esforço do artista tem um efeito reconfortante
sobre quem ouve. (SCHEDLOCK, pg.23, Baús e chaves)

Este planejamento de efeitos seria primeiramente a preparação desta história


através de pesquisa, leitura de versões, fontes, registros, contexto social, histórico e
cultural, enfim ordenação de informações que possam fazer com que a história seja
aprofundada e compreendida em sua essência. Uma composição de fatores que
fortalece e fundamenta o desejo.

Ao conhecer a história o grau de intimidade desenvolvido facilita a aproximação e


apropriação levando o contador a desvendar o conto através de sua estrutura
básica. Devemos considerar sempre as informações essenciais ligadas à estrutura
deste conto como personagens, conflitos, superações, fatos e desfecho, atentando
para um olhar que se volta a oralidade e monta e adequa a história para ser
contada. Ou seja, um esqueleto deste conto. Pensando que esqueleto tem a ver
com sustentação, esse processo deve conseguir manter os elementos essências de
permanência da história e transcritos em fatos e situações alimentarão a memória
para a prática da oralidade de forma natural e gradativa. E assim o que era só
espontâneo vai sendo melhorado e dominado.

È este processo que traz ao contador o balsamo contra a mecanização de uma


história: a apropriação e autoria da história através da oralidade. Regina Machado
trata isso em seu artigo No tempo em que não havia tempo quando nos diz que o
que é ser fiel a história tem a ver com a cadencia, o ritmo, o respeito ao clima de
história. Que o que é essencial se expressa no corpo todo de quem conta, que
quem conta respira junto com a história. Afinal contar deve ser brincar com a
história, quebrar padrões rígidos, se entregar a ela. Não atropelar o tempo. A pressa
traz tempos prematuros, traz desencontros e a busca por uma autoria ao contar é
justamente a busca por um tempo nosso para essa história que passa a ser nossa.
E é a partir do estabelecimento deste tempo que vamos apreciando a história e
criando as imagens mentais, que nos dão maior sensação de posse e que levarão a
nossa narrativa à provocar novas imagens mentais em nossos ouvintes, como um
resultado em cadeia de uma experiência única e efêmera.

Até porque a ânsia de contar, o desejo e a oralidade em si tem a palavra como


consequência e não como imposição. Muitos contadores iniciantes e professores
fogem da contação de histórias por afirmarem veementemente que não conseguem
decorar as histórias e deste modo não poderão conta-las somente lê-las. E com
essa desculpa se escondem cada vez mais atrás do livro, utilizando-o não como
arma poderosa de mediação de leitura, mas como escudo que os protege da
oralidade e da exposição.

Sim, os maiores inimigos do desejo de contar são o medo da exposição e o


pré-julgamento social. São eles que afastam o individuo da oralidade. Afinal se eu
contar com as minhas palavras, vou me perder, ficar nervoso na frente das pessoas
e elas vão me achar ridículo. Entretanto, nós esquecemos que a experiência é a
maior aliada na luta contra o medo da exposição e a não mecanização e a liberdade
permite que o pré-julgamento dos outros não nos atinja sendo irrelevante frente ao
nosso desejo de contar histórias.

E se não for necessário decorar? Se não for obrigatório? Se existir um caminho


entre a estimulação da memória e sistematização que podem levar o contador a
uma performance segura e sem riscos de mecanização? Questões como essa nos
aproximam da oralidade e de um conceito muito difundido nas artes o da
Bricolagem. Flavio Ribeiro de Souza Carvalho associa o ator bricoleur e penso que
o mesmo conceito pode dar-se ao contador de histórias que busca esse caminho de
narração:

O conceito do bricoleur foi apresentado pelo antropólogo Lévi-Strauss, em seu livro


“O pensamento selvagem” (1989). Trabalhar com a bricolagem seria produzir um
objeto novo a partir de fragmentos de outros objetos, no qual se podem perceber as
partes ou pedaços dos objetos anteriores. A ideia de que “isso sempre pode servir”
percorre a prática da bricolagem. Agregamos a esta prática o exercício de
desenvolver “maneiras de lidar com”. Caracteriza-se, assim, o bricoleur como
aquele capaz de adaptar e de utilizar no seu trabalho quaisquer materiais
encontrados. Ele sempre consegue fazer com que determinado material sirva na
construção de outra categoria de objeto.(CARVALHO, Uni-Rio)

Este conceito aplica-se ao contador de histórias que quando ao não decorar, se


mune de ferramentas tais como a fluência verbal, a expressividade, a conexão com
o espectador, a criatividade e a imaginação para se envolver com a história a tal
ponto e criar sua própria história, sua autoria. E quando falamos de autoria, em
nada inclui desrespeitar ou desvalorizar a figura do autor da história registrada em
literatura e sim, lê-lo e transpô-lo para a oralidade buscando os caminhos
necessários.

O contador brocoleur é aquele que ativa sua percepção para chegar à história e ao
ouvinte, sua capacidade de observação, sua curiosidade e trava como diria Regina
Machado (...) uma conversa imaginativa entre o que vemos nas formas e nas
nossas imagens internas (...) e ao restaurar a capacidade de brincar recupera o que
há de artesanal na palavra (BAUS E CHAVES, PG.92) Porque é importante lembrar
sempre que contar uma história deve ter todo o engenho de contar um fato da vida
pessoal para alguém querido, com envolvimento, emoção, naturalidade e
vulnerabilidade e não se faz isso com receitas de bolo decoradas. Quando optamos
por não decorar e sim se apropriar da história damos espaço para a história se
expandir e chegar ao coração do ouvinte.

Para que esse caminho se efetive é necessário trabalho principalmente no estímulo


da memoria por fatos e através de estratégias de memorização que trazem a
história riquezas de detalhes e prática. Pois essa memorização incluirá contar
histórias para nós mesmos, para a parede, para o espelho, para o cachorro, para
alguém sentado conosco no ônibus, contar e contar, sem desistir na primeira
dezena de vezes. Somente a experiência trará a qualidade de realização.

È um caminho de imersão na história:

O que mais costuma apavora quem está começando neste oficio de contar histórias é a
memorização do texto. Se o texto tem um autor e sua construção revela uma forma pessoal
de escrita e uma “arquitetura” peculiar, a contação não pode ignorar isso. Decorar muitas
vezes, compromete a naturalidade da fala, mas é necessário, sobretudo nos textos mais
poéticos. (SISTO, pg.61, 2012)

Quando Cisto nos fala que decorar compromete a história, mas que é necessário em alguns
casos penso que não seja “necessário” a palavra mais adequada. Acredito que decorar
sempre será uma opção acompanhada de outros caminhos como a apropriação, que
mesmo em textos mais literários da uma mobilidade oral a história, que utilizada em recurso
de oralidade deve ser contação de histórias e não leitura dramática, uma arte relativamente
nova e impregnada de pontos como o da declamação, que na maioria das vezes,
principalmente em contadores iniciantes gera mecanização.
MEMÓRIA E EMOÇÃO: RECORDAR PARA NARRAR

“Para ser um contador de histórias é preciso estar gloriosamente vivo, não se


acende a chama com cinzas” (SAWYER, 1990). Deste modo ao optar se aventurar
pelo viés da oralidade, é impossível se profundar na história e na arte milenar de
contar histórias sem se voltar para si mesmo e se aprofundar em sua própria
memoria e suas próprias histórias. Afinal quem procurar conhecer suas causas e
seus efeitos consegue se permitir e estar disponível para o exercício da oralidade
através da história.

Descobrir então suas histórias descobrir-se como um ser contante para dai assim
descobrir e contar outras histórias. Afinal cada contador de histórias terá seu estilo
único e intransferível e a partir do seu perfil e preferencias vai desenvolver seu
estilo. Deste modo alguém que gosta de música pode utiliza-la nas histórias ou
alguém que gosta de objetos pode trazê-los para sua performance. O importante é
fazer essas escolhas sempre colocando a história em primeiro lugar. Faz-se parte
do meu gosto e estilo e cabe dentro da história, se faz necessário, então é válido.

E além de descobrir o contador que serei posso através deste mergulho pessoal nas
minhas próprias histórias recuperar e valorizar a minha memoria pessoal e a
memoria das sociedades orais onde estou inserido. Até porque “preservar a
memoria é ser revolucionário e sem memória não há pensamento, sem pensamento
não há ideias, sem ideias não há imaginação e sem imaginação não há futuro.”
(VELOSO, pg. 01)

A ativação da memoria faz o contador entender que é um ser que conta, que é
repleto de histórias e que já está inerente em si o poder de evocar as palavras
faladas. O poder da narrativa. A atualização de lembranças e a ativação de
memórias poéticas que nos libertam de amarras e pudores permitindo que a
narrativa seja intensa e que o contador possa ser conduzido por sua história abrindo
os olhos e o coração de quem ouve.

Quando escolhemos por contar histórias, optamos por uma série de resgates: recuperar
nossa infância, reencontrar nossos folguedos, medos, mitos e, assim, refazer nossa
trajetória afetiva; redefinir nossa imagem social diante daquilo que nos tornamos;
revisitar nossa noção de cidadania para redimensionar nossas crenças na palavra como
no gesto sonoro capaz de se propagar ao infinito, incitar mudanças e recompor o lugar
de seres criadores que todos ocupamos no mundo. (CISTO, PG.26)

E é nesse processo intenso e progressivo que o contador vai se munindo das


verdadeiras armas neste caminho, armas que fazem a história soar como canção e
permitir que todo o ser reaja a estas histórias com verdade, conceituado esta
verdade, como uma emoção sincera. Ou seja, não é possível contar histórias sem
se contaminar. E talvez esteja ai o que há de mais apaixonante nesta prática. Vou
precisar estar lá entregue, presente, intenso e exigir de forma velada e generosa
que meu ouvinte compartilhe da mesma ação e nesta ação dicotômica estarão em
pouco tempo os dois a serviço da história e de um movimento ritualístico que a
oralidade restaura através destas experimentações por meio do jogo.

A EXPRESSIVIDADE E O JOGO COMO FATORES DE POTENCIALIZAÇÃO

Ao pensar no uso expressivo de um corpo que contará histórias, sim porque mesmo
sentado em uma cadeira durante toda a narrativa, existe um corpo que se expressa
e que se foi nutrido pela apropriação, estimulação da memória e pela criatividade
deve conseguir exteriorizar estas descobertas. E é neste ponto que o teatro pode
ser muito útil á contação de histórias. Sua maior contribuição diz respeito às
potencialidades corporais e vocais que podem ser estimuladas.

Corporalmente este indivíduo deve primeiramente se despir de tensões e medos


que o impedem de experimentar. Olha para si novamente. Mas para o exterior, para
esse corpo. Expressão corporal nos traz a ideia de possibilidades diversas de
expressão através do corpo. Que corpo? O meu, com suas limitações, descobertas,
experiências, memórias e reações, único dotado de um discurso próprio. É a partir
desse corpo que são construídos os movimentos tanto os do dia a dia quanto
aqueles pensados e trabalhados para a contação de histórias.

O corpo através da construção das metáforas cotidianas como costumes e modos


culturalmente impostos, metáforas construídas através do pensamento e
corporificadas tal como regras de etiqueta, se torna condicionado a formas
estabelecidas e leva isso para suas performances muitas vezes. Esse
condicionamento faz com que o contador de histórias se acomode em suas
possibilidades e não reorganize seu corpo com novas dificuldades e desafios para a
criação. Se me acostumo a me abaixar daquele jeito para pegar o papel no chão,
meu corpo se condiciona e na hora de contar faço exatamente isso, sem buscar
outra possibilidade de realização do mesmo gesto.

Possibilidades é este o pedido da história que tem ânsia por ser contada. Ela deseja
que o corpo experimente. Experimente o pé que pode voar e ser uma borboleta, as
mãos que demonstram ódio de um jeito único ou os passos que andam na prancha
do pirata. E este corpo só irá experimentar se permitir a descoberta, se lidar com
exposição, se olhar o mundo com olhas de criança e voltar a jogar. A brincar.
Liberando as tensões socialmente impostas. Caminho este que vai sendo possível
neste processo de jogo da oralidade que encaminha o contador de dentro para fora.
Da experiência com a memoria vem agora a descoberta de um repertório pessoal
de movimentos e gestos, que possam ser vivenciados e experimentados assim
como a palavra, não reproduzidos nem mecanizados. Sem espaço então para
clichês e estereótipos.

È importante pensar que a partir do momento que me coloco frente a um grupo,


tudo que realizo gera leitura, desde a minha vestimenta até meus mais delicados
gestos. Deste modo tudo precisa ser pensado. E quando se fala pensado, não quer
dizer marcado e cristalizado e sim experimentando, pois um gesto pontual realizado
por um corpo envolvido na história a ser contada encaminhará ainda mais o
ouvinte/espectador. Afinal o ouvinte também é um espectador, pois recebe a história
com todos os seus sentidos. E é justamente essa força presencial e ritualística que
faz da arte da contação de histórias algo tão especial.

O mesmo caminho deve ser tomado pela voz. Do teatro podem vir técnicas de
auxiliem a voz a se destacar no grupo tendo força de emissão. Que auxiliem a
articulação, pronúncia das palavras e construção de uma fluência verbal que está
ligada a capacidade de falar bem sem tensões e amarras. Uma voz que brinque,
que descubra novas vozes a cada personagem evocado e que, sobretudo seja
canal de passagem de toda a emoção e memórias contidas em cada história. O
fator mais determinante nesta busca é o uso da respiração. Que ao ser trabalhada
diminui as tensões vocais e corporais, estimula o jogo e inibi a ansiedade e o
nervosismo que minam a experiência da exposição.

Ao perceber e considerar seus corpo e sua voz como instrumentos de criatividade


para a história o contador se coloca em posição disponível e descobre que são
grandiosos os voos que ele pode alçar.

È nesse encontro de disponibilidade que chegamos ao jogo que se encontra com a


oralidade e traz do teatro e da vida o ponto de estruturação mais efetiva nesta
pesquisa.

A existência da teatralidade no contador de histórias tradicional me parece evidente.


Podemos também falar neste sentido de um jogo teatral, no qual são produzidos
simultaneamente uma narrativa e um jogo. Trata-se de uma interpretação sempre
espontânea, menos autoritária, jamais submissa ao texto escrito e menos ainda ao
desejo de um diretor de cena. Para os contadores de histórias, essa forma de expressão
que podemos chamar de teatrais são especificamente orais: elas procedem de uma
improvisação verbal e gestual. (PATRINI, pg.108, 2005)

Ou seja, a linha que separa ou une o teatro e a contação de histórias é tênue ou até
inexistente, afinal a origem do teatro é tão primitiva e popular quanto a da contação
de histórias, e aqui o que nos interessa são os elementos de jogo e improvisação
presentes em ambos e essenciais para um bom contador de histórias.

O jogo provoca uma relação de dependência entre contador e ouvinte/espectador


afinal como nos diz Koudela: Como qualquer estrutura cognitiva (esquema) há dois
processos associados: o jogo assimila a nova experiência e, então prossegue pelo
mero prazer do domínio. (KOUDELA, pg.28, 1984). E essa dependência é essencial
para o sucesso da história. É uma parceria, onde um esconde, outro se interessa,
um mostra e o outro se surpreende. Entretanto essa troca só se estabelece quando
a experiência cognitiva do jogo não é taxada ou limitada pelo domínio crítico da
razão.
Ao jogar o contador de histórias descobre possibilidades criativas e soluções
expressivas para sugerir e potencializar suas narrativas e consegue uma
experiência oral muito mais completa. É este jogo que mantem a atenção do
ouvinte/espectador que permanece com o contador durante toda a história. Ele se
sente parte dela, sendo surpreendido a cada pausa, movimento e olhar que o
contador direciona e destacando uma imagem ou palavra presente na história. È um
momento de entrega de ambos e de conquista, conquista da história em suas vidas.

A ditadura da literatura e a supervalorização da palavra escrita fazem da oralidade


marginal na prática da contação de histórias, prevendo de forma muitas vezes
mecânica a relação do ouvinte/espectador com a história e impedindo que novos
contadores se permitam descobrir suas potencialidades ligadas ao ato de narrar.

Com este caminho traçado pelo jogo da oralidade na prática do contador de


histórias provoca o professor/contador a sair de sua zona de conforto, amparado
pelo livro e de despir-se de pré-julgamentos e medos mergulhando em uma
pesquisa a cerca de si mesmo. O mergulho consiste em uma retomada da oralidade
em equilíbrio com a literatura, uma apropriação da história sem a decoreba e sim
com artifícios de estimulação da memória e de pesquisa e envolvimento com a obra.
Esse envolvimento profundo faz com que o contador se aproxime de si mesmo,
olhando para suas memórias, suas comunidades orais e sua capacidade de ser
contante. Gerando predisposição para liberar tensões corporais e vocais, evocar
emoções e descobrir gestos e movimentos expressivos e naturais. Experimentando
o jogo e a improvisação, tão primitivos no fazer teatral e tão elementares na busca
desta linguagem e contação de histórias.

A aplicação prática destas experimentações vem possibilitando em cursos e


formações novos olhares e descobertas de contadores de histórias que aprendem a
cada dia a se permitir mais e em meio a uma sociedade cada vez mais midiática e
digital projetar suas almas para o rito mais ancestral de falar e ouvir. Contar e
encantar.

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crianças. Porto, Portugal: Editora Porto, 1992.

VELOZO, Rui Marques. A recuperação da oratura – disponível em


http://magnetesrvk.no-ip.org/casadaleitura/portalbeta/bo/documentos/ot_oratura_a_
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http://www.portalabrace.org/vcongresso/textos/processos/Flavio%20Ribeiro%20de%
20Souza%20Carvalho%20-%20O%20Ator%20Bricoleur.pdf – em 12/07/2014

Daniele Pamplona Soares é Pós-graduanda em Contação de Histórias e Literatura Infantil Juvenil. Atriz
formada em Artes Cênicas pela FAP-PR, diretora e produtora teatral. Contadora de histórias há 20 anos e
professora de teatro com mais de 25 anos de experiência na formação de crianças, jovens e adultos.

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