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Anais do VI Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina ISSN 2177-9503

“Imperialismo, neofascismo e socialismo no século 21” 13 a 17/09/2021

GT 4 - Gênero, raça e classe como sistemas interligados


de dominação e exploração

A invenção da heterossexualidade

Djonatan Kaic Ribeiro de Souza *

Resumo
O objetivo desse trabalho é apontar elementos históricos da invenção da heterossexualidade
a partir de uma crítica ao binário natureza x social, que impregna o sentido de sexualidade
posto pela lógica ocidental. A crítica caminha-se para compreender a sexualidade como parte
integrante da produção e reprodução das relações sociais capitalistas, e que a busca de uma
política radical de libertação sexual, não só das identidades, mas também das práticas sexuais
e do prazer, prescinde, a superação das desigualdades socioeconômicas, instituídas, pela
propriedade privada e as opressões sociais.
Palavras-chave: Heterossexualidade, Invenção, Natureza, Social

Introdução

O objetivo desse trabalho é contribuir com a crítica da sexualidade como


instrumento de dominação, e dialeticamente, como dimensão possível de elaborar
pautas emancipatórias. Compreende-se a sexualidade como parte integrante da
produção e reprodução das relações sociais capitalistas, e que a busca de uma política
radical de libertação sexual, não só das identidades, mas também das práticas sexuais
e do prazer, precinde, a superação das desigualdades socioeconômicas, instituídas,
pela propriedade privada e as opressões sociais. Nesse sentido, o foco, será uma
exposição teórica sobre a invenção da heterossexualidade (ÒSCAR, 2017; KATZ, 1996)
que determina um conjunto de práticas regulatórias sobre a identidade sexual,
identidade de gênero, o desejo e as práticas sexuais.

Dessa forma, destina-se também, uma crítica às lutas sociais, que


desconsideram as lutas por liberdade sexual, como pautas concretas de lutas
emancipatórias. Moschkovich (2020) provoca a pensar que “a grande tarefa do
marxismo é o sexo”. Reconhecer que a classe trabalhadora é composta por pessoas

*
Contato: [email protected].

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negras, mulheres, LGBTQIA+ e que o patriarcado e racismo incide na formação da


classe trabalhadora exige também um mergulho teórico-político-revolucionário em
pautas desses sujeitos para além das suas identidades, garantia de direitos e
introdução das pautas em reflexões. É preciso incorporar essas reflexões nas formas
de pensar uma práxis revolucionária e emancipatória. Assim, é constituinte da classe
trabalhadora: o sexo, as práticas sexuais, a sexualidade e suas formas de regulação e
dominação.

Desenvolvimento

A sexualidade, envolve, uma invariável conexão dos sentidos e funções que os


aparatos sexo-biológicos, desejos, práticas e noções de masculinidades e
feminilidades possuem em determinado tempo histórico-social e espaço geográfico-
cultura. A definição de Gayle Rubin, sistema sexo-gênero, enquanto uma “série de
arranjos por meio dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em
produtos da atividade humana, nos quais essas necessidades sexuais transformadas
são satisfeitas” (RUBIN, 2017, p. 11) problematiza junto a esse trabalho as modelações
sobre a regulação corporal e aparato genital como constituinte da sexualidade
humana, e o modo em que se amarram essas regulações à sexualidade
heterossexual, definindo-a como natureza-procriativa nas relações sociais
capitalistas.

Gianfranco Rebucini (2012) ao localizar tanto a “homossexualidade quanto a


heterossexualidade como categorias institucionais que foram constituídas em um
contexto socioeconômico particular, o das sociedades do capitalismo industrial” que
elaboram estratificações sociais, a nível cultural, material e simbólico, atrelado a raça,
classe, etnia, idade, identidade de gênero como marcadores de distinção social. Essas
relações se dão de forma a ultrapassar a distinção da identidade, cultura ou aspectos
de tolerância, mas, “de fato, das relações sociais pelas quais nossa sociedade distribui
vantagens e privilégios que não são apenas de ordem simbólica, mas também de
ordem material”. Para o autor, a confusão entre desejo sexual e a instituição
homo/hetero “que em nossas sociedades se fundiram em identidades, só pode

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funcionar porque deixamos de ver as sexualidades também como instituições sociais,


a heterossexualidade e a homossexualidade como relações sociais da sexualidade”.
A heterossexualidade enquanto regime normativo, resisde a regulação do próprio
binário de gênero. Compreendendo assim, que:

A heterossexualidade é um mito. Uma invenção. Um engano. É um produto


histórico e social: o resultado de um período e de certas condições sociais.
Porque a heterossexualidade não é universal. É algo nosso, ocidental,
cristão. É um acontecimento da cultura judaico-cristã que se sedimenta
com a Revolução Industrial e com o Romantismo, embora suas origens
estejam gestadas há muito tempo (OSCAR, 2017, p. 17 – Tradução Livre
(TL))

O trecho demarca que a heterossexualidade é um “ conhecimento sexual


hegemônico de nossa sociedade e contextualizá-lo no espaço e no tempo implica
localizá-lo no Ocidente judaico-cristão dos últimos 200 anos” (OSCAR, 2017, p. 115 –
(TL)). Percebe-se desde aí um modelo hegemônico sexual, que complexifica a
ordenação do desejo e das práticas sexuais, visto que “[têm] um caráter nitidamente
reprodutivo e uma longa tradição de perseguir e condenar sexualidades que não
buscam esse fim. Sexualidade e reprodução têm sido definidas como sinônimos”
(ÒSCAR, 2017, p. 35). Além do mais, sua associação tanto ao trabalho assalariado
quanto à sociedade industrial contribui para elaborar essa forma de desejo como
modelo hegemônico.

O binário natureza e social expresso no gênero e sexualidade

A sexualidade pode ser pensada enquanto “um fato somático criado por um
efeito cultural” (FAUSTO-STERLING, 2002, p. 60). Isso para que possamos falar de
sexualidade, considerando que existem:
“hormônios, genes, próstatas, úteros e outras partes e fisiologias do corpo
que usamos para diferenciar o macho da fêmea, que se tornam parte do
campo de que emergem variedades de experiências e de desejo sexual.
Além disso, variações em cada um desses aspectos da fisiologia afetam
profundamente a experiência individual do gênero e da sexualidade”
(FAUSTO-STERLING, 2002, p. 62).

A partir do trecho supracitado, trata-se, justamente, de dizer “que


simplesmente que a sexualidade humana não pode ser compreendida em termos

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puramente biológicos” (RUBIN, 2017, p. 79). O limite é quando nosso olhar sobre
essas dimensões fisiológicas já está demarcado por ideias “pré-existentes sobre a
diferença sexual” (FAUSTO-STERLING, 2002, p. 64), demarcando a noção de
natureza, biologia, imaginário e que afetam diretamente nossa capacidade de
transgressão e liberdade. Assim, para este trabalho, sexo não está para a natureza
como gênero está para a cultura. A leitura crítica é que a produção do entendimento
de natureza e cultura acompanha os processos sociais, econômicos e políticos e a
finalidade que essa dualidade pode proporcionar para o projeto societário em
desenvolvimento. Até por que objetiva-se entender essas dualidades
“natureza/cultura”, “normal/anormal”, “homo/hetero”, “cis/trans” enquanto
dialéticas.
A forma dicotômica do pensamento europeu e norte-americano é forjada
sobre o dualismo, isto é, “pares de conceitos, objetos ou sistemas de crenças
opostos. Este ensaio enquadra especialmente três deles: sexo/gênero,
natureza/criação e real/construído. Em geral usamos os dualismos em alguma forma
de argumento hierárquico” (FAUSTO-STERLING, 2002, p. 60). Nessa forma de pensar,
sexo é fruto da natureza e da diferença biológica, enquanto gênero é uma criação da
cultura, são os moldes nos quais as diferenças sexuais tornam-se práticas sociais.
Nessa imbricação, a atividade sexual precisa de uma coerência, tanto no âmbito do
binário natureza/cultura quanto sexo/gênero, o que implica numa naturalização de
um tipo de prazer como natureza, a heterossexualidade. Como destaca Haraway
(2004, p. 211 – 212), gênero é um conceito “intimamente ligado à distinção ocidental
entre natureza e sociedade ou natureza e história, via distinção entre sexo e gênero”,
onde sexo estaria intimamente ligado à natureza enquanto gênero à sociedade ou
história.
Haraway destaca que as disputas na agenda feminista da tensão entre
determinismo biológico versus construtivismo social, são marcadas tanto pelo
paradigma da “identidade de gênero”, elaborado pelo psicanalista Robert Stoller em
1958, em que esse conceito está marcado pela “distinção biologia/cultura, de tal
modo que sexo estava vinculado à biologia (hormônios, genes, sistema nervoso,
morfologia) e gênero à cultura (psicologia, sociologia)” (2004, p. 216), quanto nos

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marcos de um mundo pós-guerra, “no qual os fundamentos das vidas das mulheres
num sistema dominado pelos homens, num mundo capitalista, estavam passandopor
reformulações básicas” (Haraway, 2004, p. 216). Contexto esse que aprofunda as
disputas, as categorias e seus entendimentos, mas também demarca:

uma vasta reformulação liberal das ciências da vida e das ciências sociais
no desmentido do pós guerra, feito pelas elites governamentais e
profissionais do ocidente, das exibições de racismo biológico de antes da
Segunda Guerra. Essas reformulações deixaram de interrogar a história
sócio-política de categorias binárias tais como natureza/cultura, e também
sexo/gênero, no discurso colonialista ocidental. Este discurso estrutura o
mundo como objeto do conhecimento em termos da apropriação, pela
cultura, dos recursos da natureza (HARAWAY, 2004, p. 217)

Nesse entendimento, os sistemas de sexualidade e gênero estão fortemente


atrelados à classificação racial, e o racismo biológico. Enquanto modos de produção
de gente, a geometria dos sistemas de classe, raça e sexo determinam formas de
expropriação e apropriação que determinam quem são os sujeitos e as formas nas
quais estes terão sua condição humana postas ao processo de marginalização,
““natureza” ou “corpo feminino” significam, de modo simplificado, o centro
saudável da realidade, distinguível das imposições sociais do patriarcado, do
imperialismo, do capitalismo, do racismo, da história, da linguagem” (HARAWAY,
2004, p. 218 – 219).

A invenção da heterossexualidade

A heterossexualidade é uma “forma histórica ligada ao tempo – um modo


historicamente específico de organizar os sexos e os prazeres (KATZ, 1966, p. 46), em
que a distinção natureza/cultura, homossexual/heterossexual, homem/mulher,
prazer/reprodução baseiam-se nas diferenças entre os sexos, nas formas de vivencia
da sexualidade e nos processos históricos de poder e dominação que institucionaliza
essas categorias (KATZ, 1966).
Katz (1966) demostra como a heterossexualidade, na forma como a
conhecemos hoje, é uma invenção. A primeira demarcação do autor é que, mesmo
quando a palavra heterossexual aparece nos primeiros registros médicos-psíquicos,

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ela não aparece para designar uma identidade coletiva ou individual, mas como
controle de práticas sexuais e instauração de regimes de poder político-econômico
sobre essas práticas. Posto assim, ao se tornar um regime de controle, poder, norma,
símbolo e discurso, esse conjunto político acaba por se tornar uma identidade sexual,
de autorregulação e regulação de outros corpos, no âmbito da procriação,
reprodução, desejo, erotismo e identidade. Como apresenta Oscar, (2017), enquanto
mito/invenção, a heterossexualidade serve para manter a estabilidade das coisas “a
heterossexualidade justifica uma ordem social intocável. Intocável porque não é
questionado nem avaliado; é aceito sem mais, como os mitos são aceitos” (p. 17 – 18
(TN))
Para Katz, três argumentos são estruturais para a “invenção” da
heterossexualidade e sua naturalização contemporânea, por se apresentarem no
imaginário como estruturas sempre existentes, universais e postas como
necessidade:
(1) a sobrevivência da espécie humana torna a heterossexualidade uma
necessidade constante;
(2) todas as sociedades reconhecem as diferenças básicas entre os seres
humanos dos sexos masculino e feminino – essas diferenças biológicas e
culturais são a fonte de uma sexualidade perpétua que é hetero;
(3) o prazer físico proporcionado pela união entre um homem e uma
mulher continua a ser a base imutável de uma heterossexualidade eterna.
(KATZ, 1996, p. 25).

O que o autor provoca é que essas estruturas não são sinônimos de


heterossexualidade, nem da necessidade histórica do binário complementar
homem/mulher, porque a heterossexualidade não “é análoga ao ato sexual
reprodutivo dos sexos; não é o mesmo que as diferenças sexuais; não é igual ao
erotismo de mulheres e homens. Eu argumento que a heterossexualidade significa
um arranjo histórico particular dos sexos e de seus prazeres” (KATZ, 1996, p. 25). O
que só ratifica que a invenção da heterossexualidade e sua tentativa de universalizar-
se no tempo-espaço é um modo de ser sexual no capitalismo, na tentativa de manter
normas regulatórias de expropriação e apropriação do que se chama de natureza.
Katz (1996) destaca três momentos da história como base da invenção da
heterossexualidade: ordem reprodutiva colonial; a produção de uma ética do
casamento e do amor romântico; e a psicanálise. O autor destaca alguns elementos,

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por exemplo das colônias na Nova Inglaterra (1607 – 1740), onde a ordem sexual era
de ordem reprodutiva, então a regulação sexual preocupava-se com os processos de
fecundidade e esterilidade, “a organização dos sexos e de sua atividade erótica na
Nova Inglaterra era dominada por um ditame reprodutivo” (KATZ, 1966, p. 27).
Afirma o autor que, nessas colônias, “o desejo erótico por membros do mesmo sexo
não era visto como um desvio, porque o desejo erótico por um sexo diferente não
era visto como uma norma. Mesmo dentro do casamento, nenhum objeto erótico do
outro sexo era por si mesmo totalmente legítimo” (KATZ, 1966, p. 50). A regulação
não era em torno do prazer ou de uma identidade, mas sim em torno da reprodução
e, por consequência, as partes sexuais, “as partes privadas do corpo eram
consideradas oficialmente órgãos reprodutivos, não instrumentos de prazer
heterossexual” (KATZ, 1996, p. 50).
A sodomia era vista como um “paradigma ruim de energia desperdiçada no
prazer não produtivo” (KATZ, 1996, p. 51). A sodomia, como outras práticas —
masturbação e adultério —, eram perseguidas, não por conformarem uma
identidade, uma orientação, mas sim por constituírem um paradigma ruim para a
continuidade da reprodução e das colônias: “[o] contraste operante nessa sociedade
era entre a fecundidade e a esterilidade, não entre o erotismo dos sexos diferentes e
iguais” (KATZ, 1966, p. 27). É válido destacar que sodomia não é sinônimo de
homossexualidade, nem de anormalidade:
Antes da heterossexualidade, não havia nada, exceto o pecado da
sodomia. Sodomistas são aqueles que questionam o plano divino na terra:
<< crescer e multiplicar >>. No entanto, nem aqueles que cometeram o
pecado da sodomia nem aqueles que quebraram o jejum cristão eram
diferentes do resto da população. Em parte porque a noção de sodomia
engloba uma ampla gama de comportamentos pecaminosos muito
diferentes e, em parte, porque a sexualidade <<normal>> ainda não havia
sido definida(ÒSCAR, 2017, p. 22 (TL)).

A necessidade de reprodução era o que definia a organização sexual. A


Sodomia, masturbação ou qualquer outra prática sexual não reprodutiva é uma
atividade, uma prática, um ato e não uma identidade, uma orientação erótica, ou
gênero. Essa relação não definia uma sociedade heterossexual, mas sim uma

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sociedade que regulava a organização reprodutiva, controlava os corpos e o desejo


para esse fim.
O que Katz aponta é que isso não implica diretamente em heterossexualidade,
mas demarca bases e alicerces históricos-políticos dessa forma de sexualidade e que
os “indivíduos poderiam desejar ardente e constantemente um sexo ou outro e
[reconhecidos] como tendo esse desejo. Mas essa sociedade não deu origem a um
sujeito definido basicamente por sua atração pelo mesmo sexo ou por um sexo
diferente” (KATZ, 1996, p. 28). A presença regulatória era religiosa, para a qual os
corpos de homens e mulheres precisam guardar sua energia para a reprodução, e
postulava que a utilização fora da reprodução era um desperdício de energia
pecaminoso (KATZ, 1996).
Outro contexto histórico que o autor traz é a emergência da classe média no
século XIX e a criação de um padrão sexual em que se distinguia das classes altas
vitorianas, como das classes pobres e sua depravação sexual, produzindo uma “ética
da procriação”, para a qual as relações sexuais deveriam ocorrer dentro do
casamento, e movimentos que não envolvessem penetração pudessem ocorrer
antes do casamento (KAT, 1996). A energia sexual, deveria ser usada para “produzir
filhos e manter o amor e a família, não desperdiçada em prazeres libidinosos não
produtivos” (KATZ, 1996, p. 31). O autor entende que a classe média – nesse caso
americana – preocupava-se mais com práticas sexuais separadas do amor e do
casamento do que com um tipo ideal de sexualidade (KATZ, 1996). Somente em
meados do século XIX é que essa ética procriativa começa a ceder lugar, de um
padrão do verdadeiro amor, a um novo “ideal erótico de sexo diferente chamado de
norma e heterossexual” (KATZ, 1996, p. 32). Trata-se de outra base histórico-político
para o que se constitui como heterossexualidade fundada numa ética que
normalizasse e nomeasse as práticas sexuais das classes médias nos século XIX e que
possibilitasse as contradições sexuais da sociedade vitoriana.
Nesse contexto histórico, marcado por volta de 1860, devido ao avanço das
“scientia sexualis” inicia-se um processo de formação tanto da heterossexualidade
como da homossexualidade enquanto práticas sexuais. Marcados também por
diversas definições do binário heterossexual/homossexual: Dioning e Urning;

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Monossexual, Homossexual, Heterossexual e Heterogenit, entre outros. Katz sinaliza


que não se definia a heterossexualidade como normativa, mas sim como impulso
sexual da maioria da população. Para o autor é Sigmund Freud quem normaliza o
ideal heterossexual (KATZ,1996, p. 66), ao elaborar no consciente e inconsciente
coletivo a ideia edipiana de castração como fundamento ontológico que cristaliza as
relações sexuais dentro de uma família patriarcal, normalizada e com objeto sempre
numa ontológica falocêntrica.
Por mais que Freud instaure um campo de estudos na sexualidade, onde o
objeto sexual é a “satisfação do desejo erótico”, e a libido apresente-se enquanto
“princípio do prazer moderno” (KATZ, 1996, p. 69), não antagonizando sublimação
sexual e civilização, e que a heterossexualidade também é construída socialmente,
Freud confronta-se com suas próprias ambiguidades e contradições na “criação de
uma identidade heterossexual” (KATZ, 1996, p.75), e define a heterossexualidade
como uma fixação a um estágio maduro do desenvolvimento e como modelo sexual
positivo e ideal.
E por fim, a psicanálise consegue coroar a invenção da heterossexualidade,
bem como sua naturalização e implicação nas relações sexuais. O autor reconhece a
contribuição de Freud para a libertação da sexualidade quando este retira o sexo da
esfera da procriação e coloca na esfera da satisfação; como informa Katz, Freud
entende que o instinto ou impulso sexual não teria como o principal objetivo a
reprodução, mas sim “[a] busca de tipos particulares de prazer. O objetivo do instinto
sexual de Freud é a satisfação, não a reprodução. Ele salienta que o enfoque na
fertilidade é uma manifestação posterior e secundária na longa procura da vida pela
felicidade” (KATZ, 1966, p. 37).
Porém, Katz entende que Freud essencializa a heterossexualidade em sua
teoria psicanalítica: (i) criando uma identidade heterossexual, ao transformar o
desejo pelo sexo oposto em sentimento de pertencimento, de formação do ser, em
ontologia; (ii) ao introduzir a ideia de normalidade como forma de desenvolvimento
psicossexual, com o desejo orientado sempre para o sexo oposto. Assim, uma boa
sexualidade é sempre heterossexual, sempre destinada ao sexo oposto.

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Percebemos que a heterossexualidade possui uma história e não é natural.


Entendo junto a Katz que trata-se de uma história, de um modo de organizar o prazer
e a reprodução humana, que nasce junto ao mundo capitalista e colonial. A produção
do binário homo/hetero e seus dualismos no campo do desejo, das práticas e da
formas de ser no mundo, atravessa as linguagens, símbolos, organização do trabalho
e outras formas sociais. A invenção da heterossexualidade é uma justificativa de um
padrão sexual que reifica o capitalismo e suas formas sociais. Nesse campo, a ideia de
normal e anormal se institucionaliza fortemente, elaborando mais um binário —
homossexual e heterossexual —, bem como a perseguição e opressão as práticas
sexuais que as delimitam.

Conclusão

Em torno das práticas sexuais e identidades de gênero, esse binário natureza


e social, constrói uma norma sexual que, elabora uma função teleológica de procriação
com necessária coerência heterossexual. É certo que na sociedade capitalista a divisão
enrijecida entre o público e o privado implica também em práticas sexuais e suas
identidades. Em torno das práticas sexuais, a sexualidade na sociedade contemporânea
é forjada pela produção de uma política de perseguição e opressão que se manifesta em
mecanismos de repressão sexual forjados no Estado, na família, na instituição casamento
situados no âmbito da produção e reprodução social. A norma da heterossexualidade
implica na produção de relações de poder e dominação e, por conseguinte, cria o que é
natural e o anti-natural; o que é diferente, o “outro”, é o “dominado”.

No campo da diferença sexual, na ideologia de que existe macho e fêmea,


homem e mulher, cria-se uma “ontologia” binária da diferença e consequentemente sua
naturalização e de necessário complemento entre os sexos. A diversidade sexual e as
identidades sexuais e de gênero – homem, mulher, gay, lésbica, transgênero – não
eliminam esse sujeito ontológico; a diversidade sexual é diversa, é desmembramento, é
o diferente de uma unidade central: a heterossexualidade. O que está jogo aqui é a noção
de natureza, cultura e sociedade, postos sobre interesses econômicos, sociais e políticos
que, na cena contemporânea, reificam a naturalização e a diferença sexual. Como

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sistema político de dominação, regulação e poder, a heterossexualidade está atrelada a


outras lógicas de poder e dominação, tal qual raça, gênero e classe, e o modo em que
essas relações se imbricam no capitalismo.

Como resposta sociopolítica, entendemos ser necessário a construção de


mecanismos teóricos-políticos que sustentem a sexualidade como regime de
dominação e imbriquem processos de lutas sociais que articule classe, raça, gênero e
sexualidade. Ademais, é importante entender como categorias do movimento
feministas e LGBTQIA+ — bissexualidade, sexo, transgeneralidade, lesbianidade,
homossexualidade, reprodução, liberdade, as tensões identitárias sobre a definição
de homens e mulheres e etc. — estão sendo lidas, compreendidas e subjetivadas na
construção de homens cisheterossexuais. Afinal, a liberdade do gênero e da
sexualidade pressupõe as mudanças estruturais, mas também a corrosão interna do
cisheterossexismo. É fundamental localizar o sexo, as práticas sexuais e a
sexualidade a partir de uma perspectiva revolucionária e combativa, evidenciando as
formas sociais em que a naturalização da anatomia humana e a diferença sexual são
tomadas como fundamento da sexualidade humana: que borre a dualidade natureza
e social e suas consequências em sexo e gênero, homem e mulher, pois essas
polaridades, impedem, a superação de binário colonial em nossas constituições.

Bibliografia

FAUSTO-STERLING, A. Dualismos em duelo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 17/18, pp.


09-79, 2002. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/cpa/n17-18/n17a02.pdf>
HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma
palavra. Cadernos Pagu Nº 22 - 2004: pp.201-246.
KATZ, Jonathan Ned. A invenção da heterossexualidade. Ediouro. Rio de janeiro,
1996.
OSCAR, Guasch. La Crisis de la heterosexualidad. Laertes, S.A. de Ediciones,
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REBUCINI, Gianfranco. “Mariage pour tous” et émancipation sexuelle: pour une
autre stratégie politique. Contretemps: Revue de Critique Communiste, 3 dez. 2012.
Disponível em: <https://www.contretemps.eu/mariage-pour-tous-et-
emancipationsexuelle- pour-une-autre-strategie-politique/>.
RUBIN, Gayle. A política do sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

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MOSCHKOVICH, Marília. A grande tarefa do marxismo é o sexo. In:


<https://blogdaboitempo.com.br/2020/01/10/a-grande-tarefa-do-marxismo-e-o-
sexo/>.

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