HE 1 - A Igreja Primitiva C

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1

História da Espiritualidade cristã

1. A Igreja primitiva

1. Contexto histórico nos séculos I-III

No Império Romano.

A fé cristã começou espalhar-se, a partir de Jerusalém, nas regiões vizinhas da Síria, Egito
(Alexandria...), a atual Turquia, Grécia, etc., até chegar a Roma, a capital do Império, ao norte de
África (Cartago) e depois às restantes regiões do Império romano (as atuais Espanha e Portugal,
França, etc.1) O Império Romano abrangia todas as regiões em redor do Mar Mediterrâneo, e foi
o contexto social, político e econômico fundamental da Igreja durante os primeiros séculos. Era
um único estado (distribuído em províncias 2), governado pelo imperador, apoiado numa sólida
estrutura administrativa e de governo, e nas boas comunicações por terra (os romanos
construíram uma importante rede de estradas) e por mar.

A paz e a estabilidade política e as boas comunicações favoreciam uma intensa atividade


comercial e econômica, que fez crescer grandes cidades como Alexandria (1 milhão de
habitantes), Corinto (500.000 habitantes) e outras. Favorecia também o intercâmbio de pessoas,
idéias, etc., entre os diferentes lugares. Socialmente, havia vários grupos: a aristocracia, os
homens livres (a plebe), os libertos (escravos libertados pelos seus amos), e os escravos, que não
tinham direitos. Em Roma, os escravos eram metade da população; em Corinto, 2/3 da população.
Nas cidades, misturavam-se gentes de procedências muito diversas, mas também apareciam
antagonismos, grupos étnicos e sociais fechados.

Na Palestina.

1
Para além das fronteiras do Império Romano, a expansão do Cristianismo foi pequena (Armênia, o atual Iraque, e
algumas outras regiões Ao leste do Império).
2
O Império Romano atingiu a sua máxima extensão no século I, e começou depois uma lenta decadência. O Império
tinha muitas províncias, com diferentes estatutos. Nalgumas, como a Palestina, ainda era necessária a presença do
exército, enquanto outras estavam plenamente inseridas no Império, e os habitantes de algumas cidades tinham
inclusivamente a cidadania romana (como Tarso, de onde procede São Paulo).
2

A Palestina era uma província imperial conflituosa, por causa da inimizade entre os judeus
e os invasores romanos. Conservava a religião e a estrutura social judaica, o que criava um
ambiente diferente das outras províncias. Nos anos 66-73, uma insurreição provocou a destruição
do templo de Jerusalém, pelo General romano Tito (ano 70). Destruído para sempre este símbolo
fundamental da religião judaica, esta se reorganizou profundamente, em torno da escola rabínica
de Jâmnia, em continuidade com a escola farisaica. Nasceu assim o judaísmo rabínico que chega
até o nosso tempo, um judaísmo que encontra o seu centro na Palavra de Deus 3. Neste período, o
Cristianismo foi definitivamente condenado pelo judaísmo, e expulso das sinagogas 4. Mais tarde,
nos anos 132-135, uma segunda guerra judaica terminou com a deportação de todos os judeus,
que não voltariam à Palestina até ao século XX. A Palestina tornou-se uma região pagã, e
desapareceram as comunidades cristãs mais próximas do judaísmo (judeu-cristianismo) 5.

A cultura helenística

A partir das conquistas de Alexandro Magno (séc. IV. A. C.) deu-se uma espécie de
“globalização cultural” em todos os territórios que depois constituiriam a parte oriental do
Império Romano (Grécia, Macedônia, a atual Turquia, Egito, Síria e Líbano, Pérsia). Com o
Império Romano, esta globalização atingiu Roma e todo o Mediterrâneo. Em toda essa zona
oriental do Império, a língua comum era o grego (a Koiné, na qual foi escrito o Novo
Testamento), e igualmente em Roma, embora o latim fosse a língua oficial; as pessoas cultas
falavam grego (e também a Igreja, até ao século III, aprox.). Houve um encontro e mistura das
culturas de todas estas regiões, com uma prevalência da cultura grega. Esta cultura helenística foi
o ambiente no qual se desenvolveram as comunidades cristãs (exceto as que ficaram na Palestina
durante o século primeiro).

A diáspora judaica
3
Alguns autores falam do “Sínodo de Jâmnia” para referir-se a esta escola. O centro da Palavra de Deus é a Torah
(Pentateuco), que se completa com os Nebihim (profetas) e os Quetubim (Escritos). A Torah é Lei normativa e
também presença de Deus no meio do seu povo, fonte de sabedoria na qual o homem pode encontrar todas as
respostas que precisa. Por isso, a reflexão judaica seria, fundamentalmente, comentário à Palavra de Deus, recolhida
num corpus, o Talmud, que por sua vez também seria comentado depois por outros mestres.
4
Até este momento, existiu uma relação complexa e tensa entre as comunidades cristãs da Palestina (judeu-cristãos)
e o judaísmo. Esta expulsão tem um sentido análogo ao que teria a excomunhão entre os cristãos. O conjunto das
orações judaicas incluiu mesmo uma maldição contra os “nazarenos” (os cristãos). Os Evangelhos refletem estes
acontecimentos históricos: a destruição de Jerusalém (Lc 21, 6. 20-23; Lc 17, 31-35; Mt 24, 15-20; Mc 13, 14-18); e
a expulsão e perseguição dos cristãos (Jo 16,2). As discussões entre Jesus e “os judeus” que aparecem no Evangelho
de João, e as polêmicas de Jesus com os fariseus, refletem a tensão entre judeus e cristãos naqueles anos.
5
Uma parte deles formou a seita dos Ebionitas, que rejeitava a divindade de Cristo.
3

A partir do século IV a. C, o judaísmo começou a espalhar-se pelas cidades do mundo


helenístico (Alexandria, Antioquia), chegando até Roma. Cresceu com a incorporação de
prosélitos, pessoas que, atraídas pela solidez e coerência desta religião (monoteísmo, anúncio da
misericórdia de Deus, moral), queriam entrar nela. O mundo greco-romano olhava para o
judaísmo com receio (pelo exclusivismo judaico, porque não se assimilavam aos costumes dos
outros povos), mas também com admiração. A diáspora judaica foi um apoio importante para a
expansão do Cristianismo: os pregadores cristãos, que levaram o Evangelho para além da
Palestina, como Paulo, começaram a pregar nestas comunidades judaicas, e depois passam a
pregar também entre os pagãos. Nos seus primeiros anos, o Cristianismo parecia um grupo dentro
do judaísmo, que, pouco a pouco, se foi diferenciando dele e desenvolvendo uma identidade
própria.

Religião.

O ambiente dos primeiros séculos da era cristã caracterizava-se pela variedade de


correntes religiosas, que se misturavam num clima geral de tolerância. Roma espalhou a sua
religião, bem como o culto ao imperador (expressão da unidade política e da fidelidade a Roma),
a qual convivia com as outras religiões (exceto no caso do judaísmo, que rejeita outros deuses).
Estenderam-se também por todo o Império as religiões da sua parte oriental, sobretudo os cultos
mistéricos, que procuravam um encontro mais pessoal com a divindade 6. Algumas correntes
filosóficas (estoicismo, neoplatonismo...) procuravam também dar resposta às inquietações
religiosas das pessoas, falavam da imortalidade da alma, da ética, duma sabedoria que está além
deste mundo e dos seus sofrimentos... Algumas destas correntes misturar-se-iam com o
Cristianismo, dando lugar a grupos gnósticos. A astrologia, a magia, a crença nos demônios que
se desenvolviam naquela sociedade.

1. A Igreja nos séculos I-III.

Depois da Ressurreição de Jesus, o Evangelho começou a difundir-se através da ação dos


apóstolos e doutros pregadores itinerantes: por volta do ano 37 fundou-se a comunidade de
6
As religiões romanas e gregas, com a sua religiosidade formal e os seus deuses afastados da humanidade, não
satisfaziam este desejo de encontro com a divindade.
4

Antioquia (Síria) e em meados do século I, o Cristianismo chegava a Roma 7. Ainda não existia
um conjunto unificado de doutrinas e normas (como temos atualmente o Credo, o Catecismo,
etc.). O que é agora o Novo Testamento era um conjunto de escritos que foram aparecendo desde
os anos 50 (Epístolas de São Paulo), até o fim do século I ou princípios do século II (Evangelho e
Cartas de São João, e Apocalipse), e que começaram a circular entre as comunidades. Neste
período, apareceram também muitos outros livros. No decorrer do século II, foi-se configurando
o Canôn da Bíblia, através dum longo trabalho de discernimento que selecionou os livros que
exprimem a verdadeira tradição cristã e excluiu outros, chamados apócrifos 8. A estrutura da
Igreja (bispos, presbíteros, diáconos) estava também a constituir-se e ainda não havia uma
disciplina unificada. Apareceram numerosas correntes, algumas das quais ficarão, finalmente,
afastadas da Igreja (ebionitas, movimentos gnósticos, etc.).

Com a passagem do século I ao século II, terminou o tempo apostólico, o tempo da


criação o Novo Testamento. Os testemunhas diretas de Jesus, e a primeira geração cristã,
morreram. No lugar dos seus testemunhos orais, ficavam agora a vida das comunidades cristãs e
os escritos do Novo Testamento que, ao longo do século II, seriam discernidos se escolhidos
pelas mesmas comunidades cristãs, para formar o “Canon” da Escritura Sagrada. A Igreja passou,
assim, do tempo da Escritura ao tempo da Tradição9.

Aqueles primeiros séculos da Igreja foram uma época de criatividade e consolidação, na


qual o Cristianismo estabeleceu um fecundo diálogo com o pensamento e a cultura do seu tempo.
A Igreja, que tinha nascido no judaísmo, fez um grande esforço para traduzir o seu pensamento, a
sua fé, as suas celebrações, para o mundo cultural greco-romano, mantendo a fidelidade às suas
raízes.

2. Alguns aspetos da espiritualidade do século I

7
No ano 49 o imperador Cláudio expulsou os judeus de Roma por causa duma agitação destes, “provocada por
instigação de Crestos” segundo o historiador Suetónio. Os historiadores interpretam isto como fruto de algum
conflito entre os judeus e os cristãos que, entretanto haviam chegado à cidade.
8
Um testemunho desta reflexão é o canon muratoniano, um documento do fim do século II, que recolhe uma lista de
22 livros que se consideravam revelados. É bastante semelhante à lista definitiva (com 27 livros) que ficou fixada por
volta do século IV e pode encontrar-se em Santo Atanásio de Alexandria e no Papa São Dâmaso,
Entre os livros apócrifos há vários chamados Evangelhos: o Evangelho de Tomás, o Evangelho de Pedro, etc. Muitos
deles são livros gnósticos, com estranhas misturas da tradição cristã e correntes de pensamento filosóficas e
esotéricas, que exprimiam as idéias de comunidades gnósticas. Outros livros apócrifos não têm conteúdo herético,
mas recolheram historias piedosas não essenciais. Algumas destas histórias passaram a fazer parte da tradição cristã,
como alguns relatos sobre a infância de Jesus e a sua família (p.ex., os nomes dos pais da Virgem Maria, etc.).
9
As estruturas eclesiais, a maneira de organizar a Liturgia, uma parte importante do pensamento cristão e outros
elementos que configuram o Cristianismo apareceram ou consolidaram-se neste período. A Tradição cristã
(procedente, fundamentalmente, destes primeiros séculos da Igreja) é uma das fontes da Revelação, juntamente com
a Escritura.
5

2.1. Distinção prévia: espiritualidade bíblica e história da espiritualidade

O estudo da espiritualidade do Novo Testamento faz parte do estudo da espiritualidade


bíblica. A espiritualidade bíblica estuda um aspeto da Revelação de Deus, e de certos autores
(Paulo, Tiago, Pedro, os evangelistas) que transcendem a história. A importância e o sentido dos
escritos do Novo Testamento vão para além da sua época, num sentido diferente e mais profundo
do que os escritos dos autores espirituais posteriores, porque é Palavra de Deus, Palavra sempre
viva, que tem sentido normativo para toda a Igreja em todos os tempos.

Por esta razão, a espiritualidade do Novo Testamento, é diferente do estudo da história da


espiritualidade. É por isso que algumas histórias da espiritualidade costumam começar depois da
época apostólica, no século II. No entanto, tentaremos lançar um olhar sobre a espiritualidade das
primeiras comunidades cristãs, onde se encontra o começo da história da espiritualidade cristã,
embora este olhar seja muito limitado e parcial. Assim sendo, não pretendemos explicar a
espiritualidade dos escritos do Novo Testamento (isto pertence ao campo da espiritualidade
bíblica), mas vamos abeirar-nos da vivência espiritual daquelas comunidades cristãs do século I.

2.2. Alguns temas característicos do século I

Na vida das primeiras comunidades cristãs começaram a aparecer muitos dos temas
importantes da espiritualidade cristã, que se desenvolveriam nos séculos posteriores. Além de
outros elementos que trataremos mais extensamente no ponto seguinte, por serem comuns aos
primeiros séculos da Igreja (vida comunitária, Eucaristia, oração, perseguições e martírio),
podemos apontar alguns temas importantes e característicos da vida e espiritualidade destas
primeiras comunidades cristãs.

A espera da vinda do Senhor.

Viviam à espera da vinda gloriosa do Senhor, expressa na oração “Maranatá, vem, Senhor
Jesus”. Nos primeiros anos do Cristianismo, esperava-se esta vinda como iminente 10. Com o
10
Na primeira carta de São Paulo aos Tessalonicenses (considerada como o escrito mais antigo do Novo Testamento,
redigido talvez nos anos 50-51) podemos ver que esperavam esta vinda no seu tempo, e Paulo responde, na carta, às
perguntas que surgiam na comunidade dado o fato de alguns terem morrido antes da vinda do Senhor: “Nós, os vivos,
os que ficamos para a vinda do Senhor, não precederemos os que faleceram...” (1 Tes, 4,15). Inclusivamente, têm
aparecido algumas tendências extremas, tais como pessoas que esperando a iminente vinda do Senhor deixavam de
trabalhar (e São Paulo corrigiu esta atitude).
6

passar do tempo e com a morte de muitos membros das comunidades e mesmo dos apóstolos, as
comunidades refletiram e reinterpretaram o sentido com que o Evangelho e outros textos da
Escritura falam da espera do Senhor, e começaram a compreendê-la, já não como urgência
cronológica, mas como atitude vital de vigilância. Assim, algumas cartas apostólicas (1 Pedro)
convidam a uma atitude de espera, a viver como peregrinos e suportar com paciência as
adversidades.

A releitura do Antigo Testamento.

A partir do acontecimento da morte e ressurreição de Cristo, apareceu uma reflexão, uma


nova leitura das Escrituras (Antigo Testamento): reflexão sobre o sentido das suas promessas,
cumpridas em Jesus; das suas prescrições, aperfeiçoadas por Jesus (às vezes de maneira
conflituosa: “Eu, porém, digo-vos...”), e sobre todo o seu conteúdo. Esta releitura, guiada pelo
Espírito Santo, é um dos elementos fundamentais do Novo Testamento, e da vida daquelas
comunidades se que alimentavam das Escrituras e dos relatos sobre Jesus.

Começo da reflexão sobre Jesus e sobre a Santíssima Trindade.

A pessoa, a vida e as palavras de Jesus, sobretudo o acontecimento pascal da sua morte e


ressurreição, tornaram-se a revelação definitiva de Deus 11. A partir daí, a Igreja começou uma
reflexão, guiada pelo Espírito Santo, que proclamou Jesus como o Filho de Deus. Isto, juntamente
com a experiência do Espírito Santo, levaria à ousada confissão de Deus como Trindade 12. Situar
adequadamente o sentido desta confissão (sem negar a radicalidade de Cristo e do Espírito, nem
também cair num politeísmo) seria o desafio da teologia dos séculos seguintes. Jesus Cristo,
confessado e invocado como Senhor, escutado como mestre, seguido como exemplo de vida, era
o centro da vida das comunidades. O Novo Testamento assume e orienta esta centralidade de

Bastantes anos mais tarde, a segunda epístola de São Pedro respondia à inquietação que provocava a demora desta
vinda do Senhor: “Não é que o Senhor tarde em cumprir a sua promessa, como alguns pensam, mas simplesmente
usa de paciência para convosco...” (2 Pe, 3,9)
11
A pessoa e a vida de Jesus torna-se, também, a principal instância para compreender as suas palavras. Podemos ver
isto, por exemplo, nas Bem-aventuranças.
12
Esta confissão é muito ousada, porque rompe com a maneira judaica (mais convencional) de compreender o
monoteísmo. Há um só Deus, mas em três pessoas.
7

Cristo, e também recolhe elementos desta reflexão e oração das comunidades, patentes em alguns
hinos que São Paulo insere nas suas cartas (Efésios, Filipenses). 13.

O diálogo com o ambiente judaico. A Lei.

O sentido e o valor da Lei judaica (elemento fundamental da religião judaica, da qual


procediam os primeiros cristãos) tornaram-se fonte de polêmicas e reflexões, sobretudo quando o
Evangelho começou a abrir-se aos gentios (os que não são judeus). Finalmente, o Cristianismo
afirmou a única mediação de Cristo, para todos. Em consequência, a Lei também viria a ser
considerada a partir de Cristo 14.

O diálogo com o mundo pagão. A moral.

Por sua vez, as comunidades cristãs de cultura helenística depararam-se com muitas
questões para discernir, relacionadas com a sua inserção no mundo helenístico: problemas
morais, de convivência, etc. Grande parte das cartas do Novo Testamento seria dedicada a estes
temas.

3. Comunidades cristãs

Um aspecto muito característico do Cristianismo durante estes primeiros séculos foi a sua
dimensão comunitária. São poucas as notícias das comunidades cristãs no primeiro século. Eram
comunidades pequenas, e os historiadores pagãos não falam delas. A maior fonte de informação
sobre elas é o Novo Testamento. Eram bastante diversas: havia comunidades judeo-cristãs (como
a Igreja Mãe de Jerusalém), que conservavam características em comum com o judaísmo, como a

13
É interessante, também, o que a história da formação dos Evangelhos nos refere acerca da pregação sobre Jesus
Cristo: o centro primeiro da pregação, o kerygma, foi o acontecimento pascal da morte e ressurreição de Jesus; e a
este núcleo uniram-se, depois, os relatos das suas obras (sinais, milagres, etc.) e dos seus ensinamentos (parábolas, e
outras palavras de Jesus), que foram reunidos em coleções de palavras e gestos de Jesus. Os relatos orais deram lugar
aos escritos, e, quando as testemunhas diretas de Jesus começam a morrer, surge a preocupação por recolher mais
cuidadosamente todo este material, num trabalho que teve como fruto os Evangelhos que nós conhecemos.
14
A questão era se os cristãos procedentes do paganismo tinham que fazerem-se judeus e seguir a lei judaica, para
poder ser cristãos. Finalmente, pode-se dizer que permaneceram os conteúdos morais e doutrinais, reinterpretados a
partir de Cristo, mas não outros que exprimiam, sobretudo a identidade do povo judaico (como diferente de outros
povos): circuncisão, exclusão de alguns alimentos, etc.
8

tendência a seguir a Lei mosaica 15; comunidades mais inseridas no mundo helenista, como as
paulinas (fundadas durante as viagens missionárias de São Paulo, e destinatárias de suas cartas, as
quais nos oferecem notícias destas comunidades), mais inseridas na cultura greco-romana 16, e as
comunidades joânicas, destinatárias iniciais dos escritos de são João, que enfrentavam o problema
do aparecimento do gnosticismo. A partir do século II aumentam as notícias sobre as
comunidades cristãs.

O retrato ideal da comunidade que apresenta o livro dos Atos dos Apóstolos (Atos 2, 42-
47 e 4, 32-35)17, assim como as cartas apostólicas e os escritos dos primeiros Padres da Igreja,
sublinham a importância da comunhão e do amor fraterno para os cristãos dos primeiros séculos.
É significativo que os cristãos usassem a palavra “irmãos” para se chamarem uns aos outros.
Sublinhavam-se também as virtudes relacionadas com a convivência. Embora não fosse fácil (o
Novo Testamento e os Padres também falam de divisões e conflitos) isto era apreciado como um
valor fundamental. Uma expressão importante desta comunhão era a solidariedade, expressa na
ajuda aos carenciados. A ligação entre as comunidades manifestava-se na hospitalidade mútua e
também na solidariedade (como se vê na coleta para ajudar a Igreja de Jerusalém, cf. 2 Cor 8).

Na organização destas comunidades apareceram, no século I, vários ministérios: diáconos,


mestres, apóstolos, anciãos (presbíteros)... e também carismas: profecia, dom de curar, falar em
línguas.... Aos poucos, a organização foi-se encaminhando para a estrutura com bispo, presbíteros
e diáconos.

4. A iniciação cristã e os sacramentos

4.1. Fé e conversão. Cristocentrismo na iniciação cristã

Nos séculos II e III, a entrada no Cristianismo era, normalmente, pessoal e significava


uma experiência de fé e de conversão que levava cada um a entregar-se pessoalmente à pessoa de

15
Isto provocou conflitos com as comunidades helenísticas, que se afastaram da Lei judaica. A reflexão de São Paulo
foi muito importante para libertar o Cristianismo da observância mosaica.
A relação das comunidades judeo-cristãs com o judaísmo foi complexa. Assim, por exemplo, participavam no culto
do Templo (Atos, 2, 46), e nas sinagogas, nas quais começaram pregar o Evangelho. Esta pregação deu origem a uma
polêmica que, nos casos mais conflituosos, chegou até à perseguição, como no episódio da morte de Estevão (Atos
6,8-7,60). A carta aos Hebreus é dirigida a uma destas comunidades, como também o evangelho de São Mateus, na
sua primeira redação.
16
Estas comunidades apresentam maneiras diferentes de organização, e também problemas derivados da necessidade
de definir a sua postura perante o mundo em que viviam como a imoralidade, a convivência com as outras religiões...
17
Os especialistas da Bíblia indicam que estas passagens não devem interpretar-se propriamente como uma descrição
factual da primeira comunidade, mas como apresentação do ideal desta comunidade.
9

Jesus, acolher a sua mensagem e passar a participar na vida comunitária 18. Os autores deste tempo
falam do que significa a conversão: mudança na maneira de pensar, libertação do próprio pecado
e das fraquezas individuais, ideais novos, regeneração e identificação com Cristo morto e
ressuscitado.

Desde o início das primeiras comunidades cristãs, o cristocentrismo foi característico da


espiritualidade cristã. Cristo aparece na primeira arte cristã 19 e na liturgia. A iniciação cristã
introduz a pessoa no mistério salvador de Cristo, e põe o fiel em relação com a Santíssima
Trindade: é encontro com Cristo, selo do Espírito Santo, realização do plano salvador do Pai.
Celebrava-se na Noite Solene da Páscoa, com um triplo sacramento: batismo, crisma e eucaristia.
Era precedida de uma intensa preparação catequética, que ajudava o convertido a compreender o
que significa a “Vida em Cristo”. A riqueza simbólica dos ritos exprimia e ajudava a
experimentar e viver o significado deste mistério salvador: a unção do corpo do catecúmeno com
óleo (sinal de consagração), a imposição das mãos sobre o catecúmeno (para transmitir o Espírito
Santo), a imersão no água (que significava a morte à vida passada e o nascimento a uma nova
vida), a túnica branca com que eram vestidos (sinal da renovação vital), a luz que lhes era
entregue (sinal da iluminação interior), o beijo da paz, a entrega da oração do Senhor, o pão e o
vinho. 20

4.2. Espiritualidade do Batismo

O catecúmeno proclamava a sua fé na Santíssima Trindade, expressa na “Regra da


verdade” (uma espécie de Credo incipiente, que recolhia os aspetos fundamentais da fé). E
prometia viver conforme a estas verdades professadas21. O batismo significava a morte ao pecado
e ressurreição em Cristo; a renúncia a Satanás, renúncia ao mundo e entrega a Cristo. Os autores
deste tempo não escrevem uma teologia sistemática do batismo, mas falam dos temas teológicos
importantes do batismo, do seu caráter trinitário e da sua força que renova a pessoa para viver
uma vida nova:

18
Muitos dos autores deste tempo são convertidos, e narram a sua história (São Justino, Tertuliano, Clemente
Alexandrino...). Alguns deles, como São Justino, chegaram à fé depois dum longo caminho de busca por várias
filosofias, até que, lendo a Escritura e vendo a vida dos cristãos, encontraram aí a verdade que procuravam.
19
Representado, sobretudo, como o Bom Pastor, com a ovelha tresmalhada sobre os ombros.
20
Alguns elementos da liturgia e iniciação cristã eram paralelos aos das religiões mistéricas.
21
No século II, Santo Ireneu, fala da Regra da fé, e São Justino, por seu lado, da promessa de viver conforme as
verdades confessadas.
10

“Desça as águas, cura-te, e ficas são e limpo das manchas do pecado; depois ascendes da
água, feito um homem novo, pronto a cantar um cântico novo” (Orígenes).

“Assim, nós que estamos mortos e sepultados no batismo, quanto aos pecados carnais do
homem velho, nós que ressuscitamos com Cristo na regeneração celestial, devemos pensar
e realizar o que é próprio de Cristo” (São Cipriano).

4.3. Espiritualidade da Eucaristia

A iniciação cristã culmina na celebração e recepção da Eucaristia. Nestes séculos a


Eucaristia adquiriu a sua estrutura definitiva, enriquecendo-se com palavras e gestos próprios.
Celebrava-se nas casas privadas, nas catacumbas, e nas basílicas que começaram a construir-se.
Celebrava-se “no primeiro dia da semana”, “o dia do Senhor”(o domingo), em memória da
ressurreição de Jesus, durante a noite, pouco antes do amanhecer 22. Presidia à celebração o bispo,
representante de Cristo diante da comunidade, que une a Igreja.

Os autores deste tempo não desenvolveram toda a teologia da Eucaristia, mas falam dos
seus principais temas: era um ato reservado aos iniciados, aos batizados, uma refeição de ação de
graças a Deus pelos seus benefícios, e uma oração de petição e louvor. Aparece já como
memorial de Cristo, no qual Cristo Se faz realmente presente no pão e o vinho que o sacerdote
consagra. O que o cristão recebe “não é pão comum nem bebida ordinária, mas a carne e o
sangue do próprio Jesus Encarnado” (São Justino).

Os autores tinham consciência de que a Eucaristia constrói a Igreja, e une os fiéis, que
formam um só corpo pela participação num só pão 23. Exprimia esta unidade à súplica de perdão
pelas faltas mútuas, e a partilha dos bens com os necessitados, através da oferenda voluntaria (a
coleta). Os autores sublinhavam a unidade da comunidade eclesial, simbolizada na unidade do
pão:

“Como este pão estava disperso pelos montes, e reunido, se tornou um, assim também
seja reunida a tua Igreja desde os confins da terra no teu Reino. Lembrai-vos, Senhor, da
vossa Igreja e reuni-a dos quatro ventos” (Didaqué).

22
Um testemunho de São Cipriano permite pensar que a celebração eucarística, no século III, estava a tornar-se
diária.
23
Assim o indicavam a Didaqué, no século I, e São Justino, por volta do ano 150.
11

“Com este mesmo mistério é figurado o nosso povo; como muitos grãos reunidos, moídos
e misturados formam um só pão, assim, em Cristo, que é pão do céu, sabemos que há um
só corpo, no qual fica unida e fundida a nossa diversidade”. (São Cipriano)

A Eucaristia é alimento e fortaleza para os cristãos: “medicina de imortalidade, antídoto


contra a morte e alimento para viver para sempre em Jesus Cristo” (Santo Inácio de Antioquia).
Neste período a petição do Pai Nosso “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, começava a
interpretar-se em sentido eucarístico.

4.4. Pecado, perdão e ascese24

A Igreja é santa (pelo seu fundador, porque é canal que leva a santidade de Deus até os
homens, pela sua vocação, etc.). Mas também é pecadora, pelos seus membros, e isto é algo que
os cristãos constataram desde o princípio. Os autores destes primeiros séculos referiram alguns
dos pecados que apareciam nestas comunidades cristãs: soberba, invejas e ambição, que
provocavam desobediência e divisões, apostasia no tempo das grandes perseguições, soberba de
alguns confessores (os que confessaram a Cristo durante as perseguições, arriscando a sua vida),
e também de algumas virgens e sacerdotes, etc.

O pecado aparece como algo contrário à santidade que o cristão recebeu e se


comprometeu a viver no batismo, algo que se opõe à santidade que a comunidade cristã quer
viver. E apresenta uma questão à vida da Igreja: o que se pode fazer quando alguém que tinha
renunciado ao pecado tornou a cair nele? Para esta questão, a Igreja procurou, desde os primeiros
séculos, uma resposta que exprimisse a misericórdia de Deus para o pecador e ao mesmo tempo a
exigência de santidade da vida cristã.

Houve, em relação a isto, tendências rigoristas, (autores como Tertuliano, Novaciano).


Porém, a Igreja não as seguiu, mas estabeleceu uma prática penitencial, embora exigente. Os que
caiam em pecados graves (apostasia, adultério, homicídio, etc.) ficavam excluídos da
comunidade, até ao momento em que eram readmitidos no seio da Igreja através da penitência,
que se concedia apenas uma vez na vida, como uma segunda oportunidade 25. O pecador tinha que

24
Ascese é o conjunto de práticas que procuram a virtude e a libertação do espírito. Na espiritualidade cristã o termo
ascese usa-se, por vezes, com sentido de penitência ou mortificação.
25
Com efeito, alguns autores falam de “segundo batismo”.
12

confessar o seu pecado ao bispo (esta confissão era secreta) e fazer uma penitência (pública)
como caminho de reconciliação com Deus através da Igreja.

Nesta práxis, vemos que a Igreja, nestes primeiros séculos, tinha consciência da gravidade
da culpa humana e da grandeza da santidade, da necessidade de conversão (compreendida como
caminho de reparação e penitência pelo pecado), e do sentido cristológico e eclesial do perdão,
que o bispo concedia em nome de Cristo e da Igreja.

4. Oração pessoal e comunitária

A principal oração da comunidade cristã era a Eucaristia. No entanto, os autores deste


tempo também testemunham outras práticas orantes comunitárias, bem como a oração pessoal. A
oração aparece, desde o princípio, como algo próprio de todos os cristãos, (leigos, sacerdotes,
virgens).

Vários autores deste tempo escreveram sobre a oração. São Cipriano, Orígenes e
Tertuliano escreveram comentários ao Pai Nosso26. Clemente Alexandrino definia a oração como
diálogo com Deus, que pode ter formas variadas: petição, adoração, louvor, súplica, ação de
graças, etc. A oração pode ser vocal ou mental. Os autores da escola alexandrina falam da oração
mental (oração espiritual e interior) como porta para a contemplação mística e silenciosa, na
qual o orante pode saborear a sabedoria divina, a presença de Deus.

Cristo está presente na oração. As orações dirigiam-se a Deus; ao Pai, e, com muita
frequência, a Cristo (como testemunham as Atas dos mártires, continuando a tradição da Igreja de
Jerusalém, cfr. Atos 4, 24-31). A comunidade orava com Cristo ao Pai, utilizando a Escritura.
Liam os salmos e interpretavam a partir de Cristo, como profecias messiânicas cumpridas em
Cristo. A oração tem, desde o princípio, sentido eclesial: faz-se pela Igreja, para a Igreja e com a
Igreja, como comunidade crente. A oração, mesmo a oração pessoal, tem caráter coletivo,
solidário:

“Não quis o Doutor da paz e Mestre da unidade que orasse cada um por si próprio e
privadamente, de maneira que cada um, quando orasse, rogasse apenas por si próprio.
Não dizemos “Meu Pai, que estás nos céus”, nem “o pão meu me dai hoje”, nem pede
cada um que lhe seja perdoada a sua dívida só a ele, ou que não seja deixado na tentação,
e seja livrado do mal. É pública e comum a nossa oração, e, quando oramos, não oramos
26
Orígenes, comentando o Pai Nosso, aconselhava a pedir a Deus, mais do que coisas materiais, a graça de descobri-
lo.
13

por um só, mas oramos por todo o povo, porque todo o povo forma uma só coisa” (São
Cipriano, comentário ao Pai Nosso).

Expressão desta comunhão orante era o mútuo intercâmbio de orações, que testemunha a
consciência que a Igreja antiga tinha da comunhão dos santos e do valor intercessor da oração. O
crescimento cristão, a edificação da Igreja como Corpo Místico de Cristo (com mártires, virgens,
ascetas... cristãos) é fruto da oração.

Os autores deste tempo falavam também, secundariamente, de algumas coisas


relacionadas com a oração: lugares e momentos para orar, posturas corporais, atividade da alma
na oração. Orígenes convida a converter em oração toda a vida:

“Pois podemos considerar a recomendação “orai sem cessar” como um preceito


realizável unicamente se pudesse dizer que toda a vida de um homem é uma grande
oração continuada. O que costumamos chamar propriamente oração é uma parte desta
grande oração continuada”.

5. O martírio e sua espiritualidade.

Na vida dos cristãos cedo apareceram às perseguições e o martírio. Primeiro, no âmbito


judaico (com as mortes de Estevão e de Tiago). Pouco depois (desde o imperador Nero)o Império
Romano começou perseguir a religião cristã, que não aceitava o culto ao imperador e trazia uma
nova moral, sobretudo no aspecto social. Durante estes séculos, a Igreja viveu numa situação de
ilegalidade, de perseguição e em ambiente hostil: alvo de suspeitas pelos poderes públicos,
desprezada pelos intelectuais e caluniada pela população. Este ambiente hostil contra os cristãos
explodia periodicamente em perseguições27. Foi o tempo da “Igreja das catacumbas”28: uma
Igreja que vivia em circunstâncias adversas; e, ao mesmo tempo, uma Igreja criadora, que redigia
a doutrina para exprimir a sua fé no ambiente cultural greco-romano.

27
Segundo a tradição, todos os apóstolos, exceto João, sofreram o martírio.A história recolhe dez grandes
perseguições (na verdade, houve mais), decretadas pelos imperadores Nero (64-68), Domiciano (81-96), Trajano
(109-111), Marco Aurélio (161-180), Septímio Severo (202-210), Maximino (235), Décio (250-251), Valeriano
(256-259), Aureliano, e a grande perseguição de Diocleciano (303-313) depois da qual chegou o Édito de tolerância
que pôs fim às perseguições romanas. As perseguições dos séculos I e II atingiram, sobretudo, os cristãos mais
destacados (bispos...), e as do século III e IV foram mais gerais, e atingir a grande massa dos fiéis.
28
As catacumbas eram cemitérios subterrâneos, formados por um labirinto de galerias e nichos com uma saída para o
exterior. As catacumbas cristãs acolhiam os corpos dos mártires (e dos restantes cristãos) e tornaram- se também
lugar de reunião e celebração da fé para os cristãos nos momentos de perseguição. O testemunho dos mártires ali
enterrados e o fato destas reuniões secretas faz das catacumbas um sinal da vida daquelas comunidades: uma vida
escondida, martirial, que foi crescendo “subterraneamente”,
14

Ante a coação e as ameaças, os cristãos responderam defendendo a sua fé e dando


testemunho até entregar a própria vida29. Este é, talvez, o aspecto mais característico e chamativo
do Cristianismo daqueles primeiros séculos.

O martírio teve, desde o princípio, sentido cristológico30. Como dizia Santo Agostinho,
“O mártir vive com a verdade e morre pela verdade” (Santo Agostinho). O mártir afirma que a
única coisa radicalmente importante é Cristo, e afirma a sua fé n’Ele até a morte, rejeitando
outros deuses ou valores. Perante a tentativa dos tribunais de aceitar César como Deus (Kyrios,
Senhor), os mártires mantinham sua fé: Cristo é o Senhor. O mártir, além disso, conserva a fé
com a ajuda do próprio Cristo 31. Através do testemunho dos mártires, é Cristo que vence sobre os
poderes do mundo(pois o mártir não procura a sua própria glória, mas a glória de Cristo). O
mártir mostra heroicamente o seu amor a Cristo, e identifica-se com Cristo, e torna-se o melhor
exemplo do seguimento radical de Cristo, até às últimas consequências.

O martírio tem também uma profunda relação com o Batismo e a Eucaristia, que ligam
o cristão à vida, morte e ressurreição de Cristo 32. Por sua vez, a Eucaristia é alimento espiritual
que fortalece a constância dos mártires33. E o mártir entrega a sua vida, o seu corpo, num
sacrifício que o configura com o sacrifício de Cristo, atualizado na Eucaristia. Assim, Santo
Inácio de Antioquia fala do seu martírio próximo como de uma liturgia: “Eu sou trigo de Deus, e
tenho que ser moído pelos dentes das feras, para ser apresentado como pão de Cristo... Suplicai
a Cristo por mim, para que por estes instrumentos consiga ser sacrificado para Deus”

O martírio tornou-se também argumento apologético34. Por um lado, o martírio denuncia


as ideologias e os sistemas que oprimem a liberdade de consciência, e proclama a liberdade e
dignidade do homem. Assim, os Atos dos Apóstolos (Atos 4, 23-28) e o Apocalipse falam das
perseguições como sinais da oposição dos poderes do mundo contra Deus.
29
Em grego, testemunho é martyrion. Daí vem a palavra mártir.
A Primeira Carta de Pedro apela à constância na fé e à paciência ante a adversidade, a calúnia e a perseguição,
seguindo o exemplo de Cristo. Também o Apocalipse fala da paciência, e afirma a vitória final de Cristo e da justiça
de Deus.
30
Os Atos dos Apóstolos sublinharam uma afinidade entre a morte de Estevão e a de Jesus (Atos 7). Começa
aparecer assim o tema da configuração do mártir com Cristo.
31
Assim o reconhecem as Atas dos mártires, que fazem parte dos escritos destes primeiros séculos.
32
Por isto, o martírio foi chamado também batismo de sangue ou batismo de fogo. Também supria a penitência e o
próprio batismo, para os catecúmenos que ainda não estavam batizados.
33
Um testemunho interessante sobre o valor da Eucaristia como alimento que fortalece, é a decisão do bispo São
Cipriano: num tempo de perseguição, ele permitiu que comungassem os que ainda estavam à espera de reconciliar-se
com a Igreja (por um pecado anterior de apostasia), “para não deixar sem forças e sem defesa aqueles a quem
animamos e exortamos ao combate”.
34
Apologia é o discurso para justificar ou defender algo. Neste caso, o discurso do Cristianismo para defender a sua
verdade. Tem sentido de defesa (perante as correntes de pensamento contrárias ao Cristianismo) e também de
anúncio: mostra a verdade do Cristianismo, e atrai à aceitação da fé. Entre os primeiros Padres da Igreja estão os
Padres apologistas, como São Justino. E, desde então, a apologética constitui um ramo da teologia cristã ‘hoje
integrado na Teologia Fundamental.
15

Acima de tudo, o martírio mostra a convicção dos cristãos, a fidelidade da sua fé,
em todas as épocas da história (pois em todas as épocas da história a Igreja tem mártires): os
mártires dão testemunho de Cristo e do Reino dos Céus perante o mundo e os seus poderes 35. Nos
tempos de paz, o martírio é testemunho que lembra a necessidade do esforço na fidelidade ao
Evangelho, pois a Igreja, embora nem sempre sofra a perseguição, está sempre sujeita à tentação
de relativizar e de baixar o nível da sua fé e exigência de vida.

Por esta razão, a Igreja, desde o princípio, celebra liturgicamente os mártires, nos quais se
manifesta o triunfo da graça de Deus. Assimilados a Cristo pela sua morte, a Igreja contempla os
mártires como co-mediadores, diante de Cristo, que é o Mediador da Graça. De fato, os primeiros
santos que a Igreja celebrou foram os mártires 36, e os primeiros templos foram construídos sobre
os seus sepulcros.

7. A virgindade

A virgindade ou celibato não são exclusivos do Cristianismo. Noutros ambientes e noutros


tempos anteriores ao Cristianismo, apareceram também pessoas que por motivos religiosos ou
filosóficos, a praticaram37. Por ser conhecida e valorizada nos ambientes pagãos, a virgindade foi
apresentada por alguns Padres como uma prova da dignidade e pureza do Cristianismo.

No Novo Testamento, o celibato foi proposto por Cristo como um dom e uma opção livre
que alguns fazem pelo Reino dos Céus (cfr. Mt 19, 3-12) 38. São Paulo (1 Cor 7) apresentava o
matrimônio e o celibato como dois caminhos válidos para o cristão, embora ele preferisse o
celibato. São Paulo e, segundo a tradição, também o apóstolo João, tomaram esta opção.
Podemos, então, pensar que desde o século primeiro houve alguns cristãos que viveram a
virgindade como vocação.

35
O martírio foi por vezes usado de maneira excessiva na apologética. Propriamente, o martírio prova a verdade
“subjetiva” do mártir (a sua convicção), mas não prova a verdade “objetiva” (que a fé do mártir corresponda à
verdade). De fato, muitas ideologias, grupos religiosos, organizações políticas, etc., também têm seguidores prontos
a dar a vida por elas. Isto também significa que se deve ter cuidado com o uso “propagandístico” do martírio, para
não manipular o sentido da entrega dos mártires (que morreram por amor e fidelidade a Cristo), misturando-o com
outras questões.
36
E, habitualmente, a Igreja escolheu, para recordá-los, o “dies natalis”, o dia do seu nascimento para o céu, do seu
martírio.
37
Por exemplo, em Roma, no templo de Vesta viviam as vestais, mulheres virgens que cuidavam o fogo sagrado, e
tinham um grande prestígio social. Noutras religiões, como o budismo, há também monges. Contudo, no judaísmo o
celibato por razões religiosas não se praticava nem se compreendia.
38
Os termos que usa o Evangelho apresentam a questão com caráter polêmico. No ambiente judaico, que
contemplava como mandamento também as palavras do Genesis: “Crescei e multiplicai-vos”, o celibato não era bem
visto, e provavelmente Jesus foi criticado por ser célibe.
16

A partir do século II temos dados históricos sobre a presença de virgens consagradas ao


Senhor nas comunidades cristãs, e assim, do aparecimento da virgindade (de homens e mulheres)
no Cristianismo39.

A opção pelo celibato (ou seja, o celibato escolhido livremente, não imposto por
circunstâncias) apareceu nas comunidades cristãs como uma vocação e um dom recebido do Pai.
No princípio, não significava desprezo pelo matrimônio (que a Igreja sempre valorizou como
sinal da união de Cristo com a Igreja), mas era visto como um sinal dos bens definitivos. Os
autores deste tempo louvavam a virgindade como consagração da pessoa a Cristo, a Deus: “Não
as louvamos por serem virgens, mas porque são virgens consagradas a Deus com piedosa
continência” (Santo Agostinho). “Muitos entre nós, homens e mulheres, chegaram à velhice
célibes, com a esperança dum trato mais íntimo com Deus” (Atenágoras, aprox. 177)

A virgindade cristã, desde o princípio, teve, pois, sentido cristológico. Os autores


apresentaram-na como entrega de amor ao serviço de Cristo. Começaram também a usar, para as
virgens consagradas, um velho símbolo bíblico: o desposório de Yahveh com o povo de Israel, o
desposório de Cristo com a sua Igreja. Falar-se-ia, nesta linha, do desposório místico de Cristo
com as almas, especialmente com as virgens.40 Seguindo este simbolismo, as virgens começaram
a cobrir a sua cabeça com um véu, como as mulheres casadas (o rito da imposição deste véu
tornou-se um rito solene e muito significativo), e também eram consideradas adúlteras se
pecavam contra a castidade.

A virgindade era compreendida como oferenda, sacrifico agradável a Deus, “oblação


perfeita” (Orígenes). Também como imitação de Cristo: “O Senhor, ao fazer-se homem,
conservou a sua carne incorrupta em perpétua virgindade; logo também nós, para nos tornarmos
semelhantes ao nosso Cristo Deus, procuremos, sobretudo, honrar a virgindade” (Metódio de
Olimpo, séc. III). Começou, assim, a falar-se da virgindade como “in-corrupção”, introduzindo a
idéia (de origem grega) de que o exercício da sexualidade, de alguma maneira, manchava a carne.
Esta idéia, na Idade Média, levaria a considerar a virgindade como estado de vida melhor do que
o matrimônio41.

A virgindade, como exercício ascético sobre-humano, compreendia-se como um dom. São


Clemente Romano falava assim: “O casto na sua carne não se jacte de ser casto, pois sabe que é

39
Neste tempo, o sacerdócio não implicava o celibato. Só séculos mais tarde é que a Igreja latina optaria pelo
celibato para os sacerdotes (nas Igrejas orientais católicas, porém, há padres casados).
40
Assim disse São Cipriano: “O vosso Senhor e cabeça é Cristo, o vosso esposo, com quem compartilhais a vossa
sorte e condição”. E, no século IV, Santo Atanásio: “Costuma a Igreja católica chamar esposas de Cristo às mulheres
consagradas com a virtude da virgindade”. Estas expressões tornaram-se mais comuns na Idade Média.
41
Novaciano (aprox. 250) acrescentou outra metáfora, que muitos repetiram depois: a vida virginal é “ vida
angélica”. E o Pseudo – Clemente, chamou-a “vida divina e celeste”
17

Outro quem lhe outorga o dom da continência”. E o Pseudo-Clemente (séc. III): “Se desejas tudo
isto (ser virgem), vence o corpo, vence os prazeres da carne, vence o mundo no Espírito de Deus,
vence a Satanás por meio de Jesus Cristo, que te robustecerá pela escuta das suas palavras, e
pela divina Eucaristia”.

Os autores sublinharam também o sentido eclesial da virgindade como testemunho de


amor a Cristo e de esperança em Deus para além dos bens deste mundo. E afirmaram a
fecundidade eclesial da virgindade. As virgens eram modelos de vida entregue a Cristo e ao
Evangelho, e por essa razão eram cuidadas e louvadas pelos pastores da Igreja42.

Em relação com a virgindade, a partir do século III, apareceram a vida eremítica e o


monacato, com os quais começou a organizar-se a vida consagrada. A partir do século IV,
quando o martírio se tornou menos frequente, e a opção pela virgindade, por sua vez, aumentou e
adquiriu também mais valor na Igreja43.

A teologia espiritual moderna, ao estudar aquelas virgens e célibes dos primeiros séculos
da Igreja, deduz também outros valores eclesiais da sua vida, sublinhando a disponibilidade para
o serviço da comunidade cristã. Os célibes consagram a Cristo toda a sua vida (não apenas a
sexualidade) porque Cristo assim o pede, e porque Cristo lhes concede este dom, que os liberta
para viverem em total disponibilidade para o Reino de Deus. E também repensa a relação entre a
virgindade e o matrimônio. A teologia tradicional sobrevalorizou o celibato e reduziu o valor do
matrimônio, que durante séculos foi considerado como inferior, devido a uma visão negativa do
corpo e da sexualidade, herdada da filosofia grega. Agora, ambos os estados de vida –virgindade
e matrimônio-, com a sua diferente contribuição, são contemplados como duas vocações
igualmente válidas e importantes na Igreja.

8. As correntes heréticas e a sua influência na espiritualidade

A Igreja, nos primeiros séculos, fez uma importante reflexão sobre Jesus Cristo e a
Santíssima Trindade, sobre a Revelação (relação entre o Antigo Testamento e Jesus, seleção dos
livros revelados que formaram o Novo Testamento) e sobre a vida cristã. Não foi fácil
desenvolver esta reflexão, guardando o equilíbrio entre as raízes cristãs (Escritura e Tradição) e a
42
Assim afirmou São Cipriano: “Dirijo-me às virgens, a porção mais ilustre do rebanho de Cristo. Por causa delas
se alegra a Igreja, e nelas floresce esplendidamente a admirável fecundidade da mãe Igreja”.
43
Com o fim das perseguições e com as conversões em massa ao Cristianismo, desapareceu a referência próxima do
martírio como testemunho radical de vida; a virgindade e o monacato ocuparam este lugar de referência. A
consideração eclesial da virgindade também cresceu, e os autores começaram a equiparar a virgindade (como
sacrifício durante toda a vida) ao martírio.
18

cultura helenística (com suas inquietações e correntes de pensamento) na qual esta reflexão se
desenvolveu e exprimiu. Por isto apareceram alguns erros sobre a compreensão de Deus ou de
Jesus Cristo, ou sobre a vida cristã e a relação do cristão com o mundo. Estes erros são as
heresias. Algumas delas (mudando nomes e certas características) viriam a atravessar grande
parte da História da Igreja. As comunidades e os seus pastores e mestres fizeram um esforço para
discernir as diferentes correntes de pensamento, rejeitar as erradas e afirmar as corretas. Muitos
dos livros que os Padres da Igreja escreveram respondem a esta necessidade de corrigir erros e
afirmar a doutrina correta (ortodoxia). Por outro lado, algumas influências indiretas de algumas
destas heresias chegaram até nós.

8.1. Principais heresias deste tempo44

8.1.1. Negação da divindade de Jesus Cristo. Ebionismo e monarquianismo

Manter o monoteísmo (afirmação de que há um só Deus) e proclamar Jesus Cristo como


Deus (ou Filho de Deus) é uma questão à qual não era fácil dar solução. Alguns grupos negaram
a divindade de Jesus Cristo, como os Ebionitas, procedentes de comunidades judeo-cristãs, que
seguiram o estrito monoteísmo judaico. Mais tarde apareceu o Monarquianismo, com diferentes
autores e correntes, que tinham como elemento comum a tendência a reduzir a divindade de Jesus
Cristo, falando Dele como inferior ou submetido ao Pai. Nos finais do século III, nesta linha,
apareceu o Arianismo, que se tornaria um grave problema para a Igreja, sobretudo durante o
século IV.

8.1.2. Negação da humanidade de Jesus Cristo. Docetismo

No extremo oposto, alguns grupos e autores não aceitaram a realidade da Encarnação do


Filho de Deus, com as suas consequências (que Deus, que segundo a filosofia grega é imutável e
perfeito, pudesse sofrer e morrer). Apareceu assim o Docetismo, que afirmava que Jesus Cristo
tinha só aparência humana, mas não era verdadeiramente homem, não sofreu nem morreu. Mais
tarde, por volta do século V, apareceria o Monofisismo.

44
O estudo das heresias desta época corresponde ao âmbito da Patrologia ou Patrística; aqui apenas se citam, e se
estudam algumas dada a sua relação com a espiritualidade.
19

8.1.3. A gnose

Desde o final do século I começou a sentir-se a influência da gnose no Cristianismo 45. A


gnose era um complicado conjunto de correntes e sistemas de pensamento, seitas e autores, com
ligações religiosas, filosóficas e morais 46. Como o Cristianismo, mostrava interesse pelo homem
(e o sentido da vida), o mundo e a divindade, e procurava a salvação. Por causa desta semelhança,
houve comunidades e autores que misturaram a gnose com o Cristianismo47.

O gnosticismo era dualista: acreditava na existência de um Deus bom, criador da luz, do


bem e do espírito, e de outro ser divino criador do mundo e do tempo, dimensões nas quais
acontece a corrupção. Segundo a gnose, o homem seria uma “faúlha” desprendida da plenitude
de Deus (pleroma) e encarcerada num corpo material. O homem teria que libertar-se do corpo e
atingir a perfeição, através do conhecimento (reservado a uns poucos eleitos), ou através de ritos
(segundo a diferentes seitas)48. Portanto, consideravam a salvação não como obra da graça de
Deus, mas como esforço pessoal (e egoísta, preocupado apenas por si próprio) para atingir a
gnose. O gnosticismo desprezava o corpo (visto como cárcere para a alma) o mundo e o tempo, e
desprezavam também a sexualidade, consideravam que gerar filhos é submeter as almas à
matéria. Expressões deste desprezo eram condutas ascéticas rigorosas (vegetarianismo,
abstinência sexual, não beber vinho), embora também tivessem aparecido comportamentos
libertinos entre aqueles que, em alguns grupos, se consideravam salvos pelo seu conhecimento, e
acima de toda lei.

Os grupos que confundiram o Cristianismo com a gnose, aceitavam Jesus como Salvador,
mas duma maneira secundária, e consideravam que Jesus Cristo tinha um corpo apenas aparente,

45
Por esta razão é que as cartas e o Evangelho de São João sublinham a realidade da Encarnação do Filho de Deus,
(que apresentam como Logos, Palavra e Sabedoria de Deus) que assume a carne, a realidade humana, e a
centralidade do amor na mensagem de Jesus e da vida cristã. O que salva não é o conhecimento, mas o amor.
46
A gnose recolhia ideias da filosofia grega, como o platonismo (por ex., a idéia de que a alma está encarcerada no
corpo), e o hermetismo, elementos procedentes de religiões orientais (Egito, Pérsia, Babilónia...), concepções
astrológicas, que atribuem aos astros poderes mágicos sobre o mundo e as pessoas.
47
Alguns livros apócrifos, como o Evangelho de Tomé ou o Evangelho de Pedro, são exemplo destas misturas do
Cristianismo com a gnose.
48
Muitos movimentos gnósticos cultivavam conhecimentos esotéricos (reservados aos membros do movimento, ou
mesmo aos que eram considerados, entre eles, perfeitos). Segundo o grau de aceso à gnose, os homens classificavam-
se em três grupos: materiais ou carnais (hylicos, que vivem na ignorância e não se salvam), animais (psíquicos, que
vivem na fé–pistis- e se salvam imperfeitamente), e espirituais (pneumáticos, que, através do conhecimento,
resgatam a faúlha divina). Estes estavam seguros da sua salvação, o que, nalguns casos, significava que podiam fazer
o que lhes apetecia,(estavam “acima do bem e do mal”), e entregavam-se à libertinagem.
20

e revelava um Deus que não tem relação com o Antigo Testamento. Entre eles destaca-se
Marcião49, que aceitava apenas o Novo Testamento como revelação do bom Deus50.

8.1 4. Maniqueísmo. Encratitas e mesalianos

O maniqueísmo, fundado por Manes no Oriente51, recolhia também princípios de variadas


procedências, entre os quais se destaca um dualismo parecido com o gnóstico (um Deus criador
do bem e da luz, e outro criador do mal e as trevas) 52. Segundo as suas crenças, o Deus das
Grandezas enviava o seu espírito para libertar o homem da matéria, e Buda, Zoroastro, Jesus e
Manes foram os seus mensageiros. Sustentavam que no homem há luz e trevas, e a redenção do
homem consistiria em afastar-se da matéria através da abstinência de alimentos impuros (como a
carne e o vinho) e das más palavras, do evitar os trabalhos materiais, e da abstinência sexual.
Apenas os eleitos podiam ser redimidos, e levavam uma vida ascética, como uma espécie de
monacato. Os ouvintes, servindo os redimidos, esperavam reencarnar, depois da morte, nalgum
eleito.

Os encratitas (abstinentes) estavam também influenciados pelo dualismo gnóstico, e


consideravam negativamente o sexo (e a mulher), a carne e o vinho. Parece que esta seita teria
sido fundada pelo apologista Taciano (discípulo de São Justino) por volta do ano 170.

Outro grupo herético foram os mesalianos, com práticas estranhas e não bem conhecidas.

8.1.5. O movimento escatológico. O Montanismo

Desde a sua origem, a Igreja espera a vinda gloriosa do Senhor, que julgará o mundo e
levará a história à plenitude. Esta esperança estava muito presente nas primeiras comunidades e
nos primeiros escritores cristãos (A Didaqué, a Carta do Pseudo-Bernabé, Hermas...). Uma
forma de expressão desta espera foram os milenarismos, doutrinas que esperavam a próxima

49
Marcião viveu na segunda metade do século II. Sustentava que o Novo Testamento é revelação do Deus Pai, bom,
perdoador, enquanto o Antigo seria revelação dum Deus mau, castigador, e devia ser rejeitado. Perante esta heresia, o
Cristianismo recolheu o Antigo Testamento como testemunho da pedagogia reveladora de Deus, que chega à
plenitude em Jesus.
50
Para a história, é interessante verificar que alguns posicionamentos semelhantes aos da gnose voltaram a aparecer
mais tarde, nos movimentos cátaros (séc. XII-XIII), os «alumbrados» espanhóis (séc. XVI) e na New Age atual. Há
alguns elementos do gnosticismo que permanecem latentes na cultura ocidental.
51
Manes (216-277),foi educado numa seita mandeísta (o mandeísmo é uma religião da Pérsia Antiga, que crê em
dois princípios fundamentais: um do bem e outro do mal). Convencido por umas supostas revelações, começou a
pregar uma nova religião universal, pela Índia, Pérsia, Egito, etc. Os seus seguidores espalharam-se por todo o
Império Romano. Santo Agostinho teve relação com esta seita.
52
De fato, a palavra maniqueu passou à linguagem comum. Significa a atitude daquelas pessoas que dividem
radicalmente o mundo em “bons e maus” (normalmente, considerando bons os que pensam como elas).
21

vinda do Senhor para reinar, junto com os seus eleitos, durante mil anos (segundo Ap. 20,4).
Vários autores eclesiásticos, ao longo dos séculos, recolheram estas idéias.

O montanismo foi uma heresia fundada nesta esperança milenarista. Foi fundada pelo
sacerdote Montano53, que, por volta do ano 170, começou a pregar a próxima vinda do Messias e
o fim do mundo, e prometia aos seus seguidores um lugar importante na “Nova Jerusalém”. As
massas populares (e mesmo alguns bispos), fascinadas por este anúncio, mobilizaram-se para
acolher o Senhor. A hierarquia cristã demorou a reagir, mas finalmente condenou esta doutrina.
Porém, por volta do ano 205, esta corrente recebeu um novo impulso com a incorporação de
Tertuliano. Finalmente, este movimento fanático fundado em visões e profecias, desapareceu
antes do fim do século IV.

Tertuliano (+220 aprox.) era de Cartago (atual Túnis). De origem pagã e ampla cultura e
inteligência, converteu-se ao Cristianismo e tornou-se um dos mais brilhantes escritores cristãos
do seu tempo. De caráter radical, toda a sua obra se caracteriza pela paixão que comunica e pela
fortaleza das suas convicções, dum rigorismo crescente. Escreveu importantes obras apologéticas,
que defendiam o Cristianismo e denunciavam a falsidade das demais doutrinas e a falta de moral
do seu tempo (foi ele que afirmou que “o sangue dos mártires é semente de cristãos”); escreveu
igualmente livros contra algumas heresias do seu tempo (nestas obras fala da relação entre a
Escritura e a Tradição), e tratados morais e ascéticos, caracterizados pela crítica dos costumes
pagãos e pelo rigor54. Finalmente, a sua radicalidade na procura duma vida cristã exigente, levou-
o ao montanismo, e a posturas extremas, como criticar os que fugiam das perseguições. Nos
últimos anos da sua vida, chegou a separar-se dos montanistas e formou um grupo próprio. Este
final de vida, fora da Igreja, obscureceu a figura deste importante escritor, embora vários dos
Padres da Igreja posteriores, como Santo Agostinho, tenham recebido muito da sua sabedoria.

8.2. Consequências da heterodoxia para a espiritualidade

As heresias dos primeiros séculos revelam-nos o ambiente de inquietação espiritual, e


mesmo de crise ideológica e religiosa, no qual crescia a Igreja. O Cristianismo configurou a sua
espiritualidade em contato com múltiplas correntes de pensamento e de busca espiritual. Este
contato implica também influências. Nalguns casos, certos elementos destas correntes infiltraram-

53
Montano era frígio e tinha sido sacerdote de Apolo e Cibele, antes de se converter ao Cristianismo.
54
Assim, por exemplo, opunha-se a que os cristãos se dedicassem a profissões como o comércio, as artes, a literatura
por considerar que podiam cair na idolatria ou na ambição; também era muito severo nas opiniões sobre os vestidos e
os adornos das mulheres.
22

se no Cristianismo. Noutros, a reação contra as heresias levou a práticas contrárias. Também há


algumas coincidências que se explicam pela influência comum de elementos anteriores; por
exemplo, a ideia de que o corpo é um cárcere para a alma (própria da filosofia grega, sobretudo
do platonismo), a abstinência de carne e algumas desconfianças perante a sexualidade (originárias
do Oriente), são elementos que apareceram radicalizados na gnose e no montanismo, e, de
maneira mais suave, também nalgumas práticas e autores cristãos.

9. Os cristãos e a cultura. Algumas figuras deste período.

A religião (e, portanto espiritualidade) e a cultura 55 estão sempre em relação, e


condicionam-se mutuamente: a cultura condiciona a espiritualidade (costumes, mentalidade), e
também a religião cria cultura (introduz perspectiva, configura práticas sociais, etc.).

Este diálogo com a cultura, para as primeiras gerações cristãs, foi importante, ao mesmo
tempo que complicado. O Cristianismo, nascido no seio do judaísmo, estendeu-se num mundo
cultural diferente, o greco-romano. Conservando o mais importante das suas raízes judaicas (a
Escritura, com a compreensão que ela transmite do homem, de Deus e do mundo), o Cristianismo
lançou também raízes na sociedade greco-romana. Assumiu muitos elementos desta cultura
(desde a vida quotidiana até parte do pensamento clássico), rejeitou outros, e modificou alguns
para aceitá-los. Por sua vez, a sociedade romana recebeu o Cristianismo com hostilidade, e o
Cristianismo procurou a maneira de responder a esta oposição. Este diálogo foi também
importante para a expressão e a formação da espiritualidade cristã. Vamos estudá-lo em dois
âmbitos: a vida quotidiana e o pensamento.

9. 1. A vida quotidiana

No século II, o autor do “Discurso a Diogneto” descrevia assim a vida dos cristãos:

55
A cultura sintetiza a maneira como as pessoas compreendem a realidade na qual vivem, e organizam sua vida com
os recursos que têm. Fazem parte da cultura muitos elementos: as técnicas, os instrumentos e saberes utilizados para
satisfazer as necessidades (produzir alimentos, proteger-se dos perigos e das inclemências do tempo, cuidar da
saúde...), os costumes, as práticas lúdicas e sociais, os conhecimentos e artes (ciências, etc.), a mentalidade e mesmo
a religião (embora a religião transcenda a cultura, porque esta abrange apenas o “lado humano”). A cultura faz parte
da vida das pessoas, e configura sua maneira de viver, pensar, sentir, amar.
23

“Cada qual habita a sua pátria, mas vivem todos como de passagem, em tudo participam
como os outros cidadãos, mas suportam como se não tivessem pátria (...) Habitam na
terra, mas sua cidade é o Céu (...) os cristãos são no mundo o que a alma é no corpo (...)
habitam no mundo, mas não são do mundo (...) encontram-se detidos no mundo, como
num cárcere, mas são eles que contêm o mundo: são a alma do mundo”

Esta descrição, embora idealizada, fala-nos da vida quotidiana dos cristãos: participavam
da vida comum das cidades: trabalho, etc.; mas viviam duma maneira peculiar. O seu sentido da
família e sua moral familiar eram mais exigentes, pois proibiam estritamente o adultério e o
aborto (contrariamente ao resto da sociedade), e rejeitavam o divórcio. Praticavam o amor
fraterno em atitudes concretas como a hospitalidade para acolher aos cristãos que chegavam, e
uma solidariedade organizada para ajudar os irmãos necessitados 56. Esta caridade fraterna
provocava admiração na sociedade. Além disso, na Igreja tratavam-se os escravos da mesma
forma que os homens livres, e castigavam-se com penas canônicas os amos que os maltratavam 57.
Por outro lado, no meio daquela sociedade acostumada ao sincretismo religioso 58, que misturava
deuses de diversas religiões, os cristãos permaneciam fiéis ao monoteísmo, e, por isso, rejeitavam
também várias profissões (que implicavam o culto a outros deuses), como guardas dos templos
pagãos, astrólogos, militares...

“Habitar no mundo, mas não ser do mundo”. Esta expressão poderia descrever a atitude
dos cristãos na vida. Viviam normalmente, mas com certo sentido de distância em relação ao
mundo, com maior atenção a Deus. Vários autores cristãos falariam do mundo como “uma
ilusão” (Gregório de Nisa), “comédia” (Santo Agostinho).

9.2. Os Padres da Igreja e a filosofia grega. Grandes figuras destes séculos

O Cristianismo significava uma novidade no mundo cultural greco-romano, e encontrou


oposição a todos os níveis. Entre a plebe, circulavam rumores que acusavam os cristãos de serem
ateus, celebrarem orgias incestuosas, e até de praticarem o canibalismo. Também eram acusados
de antipatriotas, e muitas vezes eram culpados das secas, inundações, terremotos e outras
56
Nesta organização colaboravam as viúvas e as diaconisas. Eusébio de Cesárea diz que em Roma, em meados do
século III, a Igreja atendia a mais de 1.500 viúvas e carência dos, cfr. História eclesiástica, VI, 43, 11.
57
Talvez isto parecesse estranho aos seus concidadãos, e até provocasse suspeitas naquela sociedade assente sobre a
estratificação social.
58
Sincretismo é o sistema de pensamento que recolhe e mistura elementos procedentes de diversos sistemas. No caso
da sociedade romana, misturava-se o culto aos deuses e deusas protetores das cidades com o culto ao imperador, aos
deuses romanos, os cultos mistéricos, etc.
24

catástrofes naturais. Orígenes disse uma vez que “O povo de Cristo é odiado por todas as
nações”.

Os intelectuais, como Celso (séc. II) e Porfírio (séc. III) não faziam caso destes rumores,
mas criticavam os conteúdos da fé cristã como absurdos. Desde o princípio, os cristãos
responderam a esta rejeição social com o testemunho das suas vidas, fieis à fé até o martírio,
quando era preciso. Além disso, desde o século II 59apareceram intelectuais cristãos (convertidos
do paganismo) que começaram a escrever, apoiados nos seus conhecimentos filosóficos e
culturais, para defender o Cristianismo, e para mostrar que nele está a verdade.

Alguns destes autores julgaram a cultura pagã de maneira muito crítica, e apresentaram o
Cristianismo como superior. Assim, Teófilo de Antioquia, e Taciano (séc. II) defendiam que o
Cristianismo, pelas suas raízes judaicas, é anterior à cultura pagã, e sua moral é superior.
Também outros autores como Hermes, e Hipólito consideravam com desconfiança a filosofia
grega.

Santo Ireneu de Lião. (+202 aprox.) é, talvez a figura mais destacada entre estes Padres da
Igreja que não se apoiaram na filosofia grega 60. Nasceu na Ásia (talvez em Esmirna), e conheceu
São Policarpo, que tinha sido discípulo de São João Evangelista. Desde aí, passando por Roma,
foi até Lion (França), onde foi ordenado sacerdote e sucedeu ao bispo quando este foi
martirizado. Desenvolveu uma grande ação evangelizadora na França, e trabalhou pela unidade
da Igreja, contra as divisões provocadas pelo montanismo e vários movimentos heréticos de
caráter gnóstico, como o marcionismo. Nas suas obras (Adversus haereses, Demonstração da
pregação apostólica) defendeu a Tradição da Igreja, (apoiada pela sucessão dos bispos desde os
apóstolos), e expôs a fé cristã. Contra o marcionismo, desenvolveu uma teologia da história, que
mostra como Deus foi desenvolvendo sua revelação pedagogicamente, ao longo dum caminho de
muitos séculos, no qual o Antigo Testamento preparou a vinda de Jesus Cristo, que traz a
revelação definitiva de Deus.

Outros autores, no entanto, começaram um diálogo mais positivo com a cultura greco-
romana, recolhendo os seus elementos válidos, para propor uma gnose (sabedoria vital) cristã
como plenitude humana. O primeiro que adquiriu importância entre estes foi São Justino.

São Justino (+165 aprox.). Era pagão, e percorreu várias escolas filosóficas procurando a
verdade, até que a encontrou no Cristianismo. Depois da sua conversão, fundou uma escola em

59
Não há notícia de que os cristãos escrevessem qualquer coisa, durante o século I, para responder às críticas e
ataques contra sua fé. Nesta época, a maior parte dos cristãos era de cultura humilde, e provavelmente não se sentiam
capacitados para responder a estes ataques com uma argumentação escrita
60
Possivelmente não usou a filosofia grega porque teve que lutar contra as heresias gnósticas, baseadas em
elementos filosóficos gregos.
25

Éfeso, e mais tarde uma escola catequética em Roma, por volta do ano 150. São Justino afirmou
que o Verbo divino (o mesmo Verbo que, para revelar plenamente Deus, encarnou na pessoa de
Jesus Cristo), também Se fez presente, como as sementes num campo, nas diversas culturas e no
pensamento dos filósofos. O Verbo ilumina a todo homem que procura a verdade.

“Quanto de bom está dito em todos eles, nos pertence a nós, os cristãos, porque nós
adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus, ingénito e
inefável; pois Ele, por amor a nós, Se fez homem para compartilhar os nossos sofrimentos
e curá-los. E todos os escritores puderam ver obscuramente a realidade, graças à
semente do Verbo neles ingênita” (Apologia, II, 13).

Esta teoria das “semina Verbi”, das sementes do Verbo espalhadas nas culturas e na obra
dos filósofos não cristãos, tornou-se fundamental para ligar o pensamento cristão com a filosofia
grega (sobretudo Platão). Começava assim uma grande obra de diálogo cultural, realizada pelos
Padres da Igreja.

Justino escreveu uma Apologia (dirigida ao imperador Marco Aurélio), para defender a fé
cristã. Finalmente, foi denunciado e, perante o tribunal, confessou a fé e foi condenado à morte.
Deste modo, deu testemunho de Cristo com o seu pensamento e com o seu sangue.

São Clemente de Alexandria (150-215 aprox.) continuou este caminho de diálogo com a
cultura, e afirmou que a sabedoria humana não é contrária à fé, mas complementa-a. A filosofia é
bom caminho para aproximar o homem da fé cristã.

São Clemente afirma que a verdadeira gnose é a sabedoria e a santidade cristãs. O


caminho para ela passa pela fé e pelo batismo, onde somos iluminados, e adotados por Deus
como seus filhos. Neste caminho, o Logos, que é Cristo, Filho de Deus, é o guia que nos conduz
como pedagogo, e nos ensina como Mestre. Cristo é a lei escrita nos corações. E o cristão tem
que, com confiança, deixar-se conduzir por Cristo. Este caminho inclui também a oração, que é
“conversação com Deus”: oração vocal e oração silenciosa, contínua, entremeada nas atividades
quotidianas. São Clemente acrescenta um programa de vida espiritual através das virtudes e do
controle das paixões, com prudência e temperança, e através do amor do próximo. O amor é a
perfeição e a sabedoria (gnose cristã).

Orígenes (185-254 aprox.) desenvolveu a idéia da sabedoria e da perfeição cristã com uma
profundidade que influiu em grande parte nos autores posteriores. Nascido numa família cristã de
Alexandria (o seu pai foi mártir) e batizado na sua juventude, dedicou-se desde muito novo ao
26

estudo das Escrituras, e mais tarde também da filosofia grega. Ensinou em Alexandria, e depois
na Palestina, onde morreu na sequência de torturas na perseguição de Décio. Escreveu perto de
2.000 livros (dos quais muitos se perderam): comentários às Escrituras, livros sobre a oração e a
doutrina cristã, sermões, etc.

A sua fonte principal é a Escritura. Na interpretação da Escritura estabelece três sentidos:


o sentido material (literal ou histórico),o sentido moral, e o sentido místico ou espiritual 61:
“Quando te aplicares à leitura divina, procura cuidadosamente e com espírito de fé o que passa
despercebido a muitos, o espírito das divinas Escrituras. Não te contentes com golpear e
procurar. O mais importante para obter a inteligência das letras divinas é a oração”.

E propõe um caminho místico, de procura da perfeição humana. O homem é imagem de


Deus, e está chamado a tornar-se semelhança de Deus. Há três graus de perfeição, representados
nas três componentes do homem: carne, alma (mente, psique), e espírito. Por isso, há três tipos de
fiéis: materiais, (carnais) proficientes (psíquicos) e perfeitos (espirituais, gnósticos). Este é o
fundamento dos três “graus da perfeição” e dos “estados de vida” clássicos na história da
espiritualidade (que também têm correspondência com os três sentidos da Bíblia). A perfeição é
um caminho, que consiste num exercício ascético, de luta contra o pecado, conhecimento próprio,
prática das virtudes (fé, esperança e caridade) até chegar à apatheia62 e à imitação de Cristo. Este
caminho, simbolizado pelo caminho dos israelitas pelo deserto, tem vários passos: fuga do
mundo, luta contra os inimigos (apoiando-se na rocha que é Cristo), superação da parte sensitiva
(passagem do Mar Vermelho), entrada no deserto das dificuldades e purificação interiores,
imitando a Cristo na Cruz. A meta é a união mística com Cristo, o matrimônio espiritual.

Este conhecimento profundo de Deus que Orígenes propõe como meta final da
experiência cristã, estabeleceu a pauta que os místicos cristãos posteriores seguiriam. Para
terminar este capítulo, é preciso lembrar mais dois Padres da Igreja (não citados antes por não
estarem tão envolvidos nesta questão sobre o diálogo entre Cristianismo e filosofia grega):

Santo Inácio de Antioquia (+110 aprox.). No começo do século II, Inácio, o bispo de Antioquia,
na Síria, foi preso, julgado e condenado à morte, para ser executado em Roma 63. Durante a
61
Orígenes é um dos mais importantes autores da escola alexandrina de interpretação da Bíblia. É característica
desta escola a procura do sentido místico, através duma interpretação alegórica da Bíblia. Este modo de interpretação
vai além do sentido literal, e lê de maneira simbólica, encontrando no texto elementos que falam do mundo do
espírito. Assim, por exemplo, o esposo do Cântico dos Cânticos é Cristo, e a esposa é a Igreja, e também é a alma
humana
62
A apatheia, ou imperturbabilidade, é o estado da pessoa que fica acima de todas as paixões, e não é perturbada por
nada. A filosofia estoica propunha este estado como perfeição da pessoa. E a espiritualidade cristã, desde esta época
antiga, recolheu este conceito para exprimir a perfeição, mas também o matizou: aqui trata-se da paz espiritual
fundada em Cristo, que nada nem ninguém nos pode tirar.
63
A cidade de Antioquia de Síria, uma das principais da parte oriental do Império, foi também uma das principais
dioceses do Oriente Cristão, desde o tempo dos Atos dos Apóstolos. Desapareceu totalmente vários séculos mais
27

viagem, saudou várias comunidades cristãs. Depois escreveu-lhes seis cartas, e enviou outra à
Igreja de Roma. Estas cartas (juntamente com a carta do Papa São Clemente) conservam-se entre
os primeiros escritos cristãos, oferecem-nos notícias da Igreja deste tempo, e, sobretudo, deixam-
nos o testemunho dum pastor preocupado pela caridade e unidade da Igreja, e dum mártir pronto
para seguir a Cristo: “Prefiro morrer em Cristo Jesus a reinar sobre todos os confins da terra.
Procuro Aquele que morreu por nós; quero Aquele que ressuscitou por nossa causa. Estou
prestes a nascer (...) Deixai-me alcançar a luz pura. Quando lá chegar serei verdadeiramente um
homem. Deixai-me ser imitador da paixão do meu Deus” (Carta aos Romanos)64.

São Cipriano de Cartago (+258 aprox.). Converteu-se do paganismo, e tinha formação retórica.
A Bíblia foi fundamental na sua conversão e no seu pensamento. Foi, sobretudo um grande pastor
nos tempos difíceis da violenta perseguição de Décio 65, com os problemas que implicou: houve
muitas apostasias; muitos daqueles cristãos (quando acabou a perseguição), voltaram à Igreja, e
surgiu um conflito sobre a maneira de acolhê-los. Também ajudou a resolver vários conflitos
noutras Igrejas. O seu livro mais importante é sobre “A unidade da Igreja”, além de outros
escritos pastorais e de um comentário sobre o Pai Nosso. Finalmente, foi martirizado na
perseguição do imperador Valeriano.

tarde.
A morte de muitos mártires acontecia no circo ou no anfiteatro, onde eram devorados por feras selvagens, para
divertimento dos romanos.
64
A Liturgia das Horas recolhe estas cartas no Oficio de Leituras das semanas 2ª (domingo e segunda feira), 3ª
(domingo), 10º (domingo, segunda e terça feira), 16ª (domingo, segunda e terça feira), 17ª (sexta feira e sábado), 27ª
(terça, quarta e quinta feiras) e na memória de Santo Inácio, 17 de outubro.
65
Esta perseguição, muito sangrenta, chegou depois dum longo tempo de tranquilidade, e foi causa de muitas
apostasias, o que apresentou à Igreja o problema de como acolher os cristãos que, depois da queda, quiseram voltar à
Igreja.

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