HE 1 - A Igreja Primitiva C
HE 1 - A Igreja Primitiva C
HE 1 - A Igreja Primitiva C
1. A Igreja primitiva
No Império Romano.
A fé cristã começou espalhar-se, a partir de Jerusalém, nas regiões vizinhas da Síria, Egito
(Alexandria...), a atual Turquia, Grécia, etc., até chegar a Roma, a capital do Império, ao norte de
África (Cartago) e depois às restantes regiões do Império romano (as atuais Espanha e Portugal,
França, etc.1) O Império Romano abrangia todas as regiões em redor do Mar Mediterrâneo, e foi
o contexto social, político e econômico fundamental da Igreja durante os primeiros séculos. Era
um único estado (distribuído em províncias 2), governado pelo imperador, apoiado numa sólida
estrutura administrativa e de governo, e nas boas comunicações por terra (os romanos
construíram uma importante rede de estradas) e por mar.
Na Palestina.
1
Para além das fronteiras do Império Romano, a expansão do Cristianismo foi pequena (Armênia, o atual Iraque, e
algumas outras regiões Ao leste do Império).
2
O Império Romano atingiu a sua máxima extensão no século I, e começou depois uma lenta decadência. O Império
tinha muitas províncias, com diferentes estatutos. Nalgumas, como a Palestina, ainda era necessária a presença do
exército, enquanto outras estavam plenamente inseridas no Império, e os habitantes de algumas cidades tinham
inclusivamente a cidadania romana (como Tarso, de onde procede São Paulo).
2
A Palestina era uma província imperial conflituosa, por causa da inimizade entre os judeus
e os invasores romanos. Conservava a religião e a estrutura social judaica, o que criava um
ambiente diferente das outras províncias. Nos anos 66-73, uma insurreição provocou a destruição
do templo de Jerusalém, pelo General romano Tito (ano 70). Destruído para sempre este símbolo
fundamental da religião judaica, esta se reorganizou profundamente, em torno da escola rabínica
de Jâmnia, em continuidade com a escola farisaica. Nasceu assim o judaísmo rabínico que chega
até o nosso tempo, um judaísmo que encontra o seu centro na Palavra de Deus 3. Neste período, o
Cristianismo foi definitivamente condenado pelo judaísmo, e expulso das sinagogas 4. Mais tarde,
nos anos 132-135, uma segunda guerra judaica terminou com a deportação de todos os judeus,
que não voltariam à Palestina até ao século XX. A Palestina tornou-se uma região pagã, e
desapareceram as comunidades cristãs mais próximas do judaísmo (judeu-cristianismo) 5.
A cultura helenística
A partir das conquistas de Alexandro Magno (séc. IV. A. C.) deu-se uma espécie de
“globalização cultural” em todos os territórios que depois constituiriam a parte oriental do
Império Romano (Grécia, Macedônia, a atual Turquia, Egito, Síria e Líbano, Pérsia). Com o
Império Romano, esta globalização atingiu Roma e todo o Mediterrâneo. Em toda essa zona
oriental do Império, a língua comum era o grego (a Koiné, na qual foi escrito o Novo
Testamento), e igualmente em Roma, embora o latim fosse a língua oficial; as pessoas cultas
falavam grego (e também a Igreja, até ao século III, aprox.). Houve um encontro e mistura das
culturas de todas estas regiões, com uma prevalência da cultura grega. Esta cultura helenística foi
o ambiente no qual se desenvolveram as comunidades cristãs (exceto as que ficaram na Palestina
durante o século primeiro).
A diáspora judaica
3
Alguns autores falam do “Sínodo de Jâmnia” para referir-se a esta escola. O centro da Palavra de Deus é a Torah
(Pentateuco), que se completa com os Nebihim (profetas) e os Quetubim (Escritos). A Torah é Lei normativa e
também presença de Deus no meio do seu povo, fonte de sabedoria na qual o homem pode encontrar todas as
respostas que precisa. Por isso, a reflexão judaica seria, fundamentalmente, comentário à Palavra de Deus, recolhida
num corpus, o Talmud, que por sua vez também seria comentado depois por outros mestres.
4
Até este momento, existiu uma relação complexa e tensa entre as comunidades cristãs da Palestina (judeu-cristãos)
e o judaísmo. Esta expulsão tem um sentido análogo ao que teria a excomunhão entre os cristãos. O conjunto das
orações judaicas incluiu mesmo uma maldição contra os “nazarenos” (os cristãos). Os Evangelhos refletem estes
acontecimentos históricos: a destruição de Jerusalém (Lc 21, 6. 20-23; Lc 17, 31-35; Mt 24, 15-20; Mc 13, 14-18); e
a expulsão e perseguição dos cristãos (Jo 16,2). As discussões entre Jesus e “os judeus” que aparecem no Evangelho
de João, e as polêmicas de Jesus com os fariseus, refletem a tensão entre judeus e cristãos naqueles anos.
5
Uma parte deles formou a seita dos Ebionitas, que rejeitava a divindade de Cristo.
3
Religião.
Antioquia (Síria) e em meados do século I, o Cristianismo chegava a Roma 7. Ainda não existia
um conjunto unificado de doutrinas e normas (como temos atualmente o Credo, o Catecismo,
etc.). O que é agora o Novo Testamento era um conjunto de escritos que foram aparecendo desde
os anos 50 (Epístolas de São Paulo), até o fim do século I ou princípios do século II (Evangelho e
Cartas de São João, e Apocalipse), e que começaram a circular entre as comunidades. Neste
período, apareceram também muitos outros livros. No decorrer do século II, foi-se configurando
o Canôn da Bíblia, através dum longo trabalho de discernimento que selecionou os livros que
exprimem a verdadeira tradição cristã e excluiu outros, chamados apócrifos 8. A estrutura da
Igreja (bispos, presbíteros, diáconos) estava também a constituir-se e ainda não havia uma
disciplina unificada. Apareceram numerosas correntes, algumas das quais ficarão, finalmente,
afastadas da Igreja (ebionitas, movimentos gnósticos, etc.).
7
No ano 49 o imperador Cláudio expulsou os judeus de Roma por causa duma agitação destes, “provocada por
instigação de Crestos” segundo o historiador Suetónio. Os historiadores interpretam isto como fruto de algum
conflito entre os judeus e os cristãos que, entretanto haviam chegado à cidade.
8
Um testemunho desta reflexão é o canon muratoniano, um documento do fim do século II, que recolhe uma lista de
22 livros que se consideravam revelados. É bastante semelhante à lista definitiva (com 27 livros) que ficou fixada por
volta do século IV e pode encontrar-se em Santo Atanásio de Alexandria e no Papa São Dâmaso,
Entre os livros apócrifos há vários chamados Evangelhos: o Evangelho de Tomás, o Evangelho de Pedro, etc. Muitos
deles são livros gnósticos, com estranhas misturas da tradição cristã e correntes de pensamento filosóficas e
esotéricas, que exprimiam as idéias de comunidades gnósticas. Outros livros apócrifos não têm conteúdo herético,
mas recolheram historias piedosas não essenciais. Algumas destas histórias passaram a fazer parte da tradição cristã,
como alguns relatos sobre a infância de Jesus e a sua família (p.ex., os nomes dos pais da Virgem Maria, etc.).
9
As estruturas eclesiais, a maneira de organizar a Liturgia, uma parte importante do pensamento cristão e outros
elementos que configuram o Cristianismo apareceram ou consolidaram-se neste período. A Tradição cristã
(procedente, fundamentalmente, destes primeiros séculos da Igreja) é uma das fontes da Revelação, juntamente com
a Escritura.
5
Na vida das primeiras comunidades cristãs começaram a aparecer muitos dos temas
importantes da espiritualidade cristã, que se desenvolveriam nos séculos posteriores. Além de
outros elementos que trataremos mais extensamente no ponto seguinte, por serem comuns aos
primeiros séculos da Igreja (vida comunitária, Eucaristia, oração, perseguições e martírio),
podemos apontar alguns temas importantes e característicos da vida e espiritualidade destas
primeiras comunidades cristãs.
Viviam à espera da vinda gloriosa do Senhor, expressa na oração “Maranatá, vem, Senhor
Jesus”. Nos primeiros anos do Cristianismo, esperava-se esta vinda como iminente 10. Com o
10
Na primeira carta de São Paulo aos Tessalonicenses (considerada como o escrito mais antigo do Novo Testamento,
redigido talvez nos anos 50-51) podemos ver que esperavam esta vinda no seu tempo, e Paulo responde, na carta, às
perguntas que surgiam na comunidade dado o fato de alguns terem morrido antes da vinda do Senhor: “Nós, os vivos,
os que ficamos para a vinda do Senhor, não precederemos os que faleceram...” (1 Tes, 4,15). Inclusivamente, têm
aparecido algumas tendências extremas, tais como pessoas que esperando a iminente vinda do Senhor deixavam de
trabalhar (e São Paulo corrigiu esta atitude).
6
passar do tempo e com a morte de muitos membros das comunidades e mesmo dos apóstolos, as
comunidades refletiram e reinterpretaram o sentido com que o Evangelho e outros textos da
Escritura falam da espera do Senhor, e começaram a compreendê-la, já não como urgência
cronológica, mas como atitude vital de vigilância. Assim, algumas cartas apostólicas (1 Pedro)
convidam a uma atitude de espera, a viver como peregrinos e suportar com paciência as
adversidades.
Bastantes anos mais tarde, a segunda epístola de São Pedro respondia à inquietação que provocava a demora desta
vinda do Senhor: “Não é que o Senhor tarde em cumprir a sua promessa, como alguns pensam, mas simplesmente
usa de paciência para convosco...” (2 Pe, 3,9)
11
A pessoa e a vida de Jesus torna-se, também, a principal instância para compreender as suas palavras. Podemos ver
isto, por exemplo, nas Bem-aventuranças.
12
Esta confissão é muito ousada, porque rompe com a maneira judaica (mais convencional) de compreender o
monoteísmo. Há um só Deus, mas em três pessoas.
7
Cristo, e também recolhe elementos desta reflexão e oração das comunidades, patentes em alguns
hinos que São Paulo insere nas suas cartas (Efésios, Filipenses). 13.
Por sua vez, as comunidades cristãs de cultura helenística depararam-se com muitas
questões para discernir, relacionadas com a sua inserção no mundo helenístico: problemas
morais, de convivência, etc. Grande parte das cartas do Novo Testamento seria dedicada a estes
temas.
3. Comunidades cristãs
Um aspecto muito característico do Cristianismo durante estes primeiros séculos foi a sua
dimensão comunitária. São poucas as notícias das comunidades cristãs no primeiro século. Eram
comunidades pequenas, e os historiadores pagãos não falam delas. A maior fonte de informação
sobre elas é o Novo Testamento. Eram bastante diversas: havia comunidades judeo-cristãs (como
a Igreja Mãe de Jerusalém), que conservavam características em comum com o judaísmo, como a
13
É interessante, também, o que a história da formação dos Evangelhos nos refere acerca da pregação sobre Jesus
Cristo: o centro primeiro da pregação, o kerygma, foi o acontecimento pascal da morte e ressurreição de Jesus; e a
este núcleo uniram-se, depois, os relatos das suas obras (sinais, milagres, etc.) e dos seus ensinamentos (parábolas, e
outras palavras de Jesus), que foram reunidos em coleções de palavras e gestos de Jesus. Os relatos orais deram lugar
aos escritos, e, quando as testemunhas diretas de Jesus começam a morrer, surge a preocupação por recolher mais
cuidadosamente todo este material, num trabalho que teve como fruto os Evangelhos que nós conhecemos.
14
A questão era se os cristãos procedentes do paganismo tinham que fazerem-se judeus e seguir a lei judaica, para
poder ser cristãos. Finalmente, pode-se dizer que permaneceram os conteúdos morais e doutrinais, reinterpretados a
partir de Cristo, mas não outros que exprimiam, sobretudo a identidade do povo judaico (como diferente de outros
povos): circuncisão, exclusão de alguns alimentos, etc.
8
tendência a seguir a Lei mosaica 15; comunidades mais inseridas no mundo helenista, como as
paulinas (fundadas durante as viagens missionárias de São Paulo, e destinatárias de suas cartas, as
quais nos oferecem notícias destas comunidades), mais inseridas na cultura greco-romana 16, e as
comunidades joânicas, destinatárias iniciais dos escritos de são João, que enfrentavam o problema
do aparecimento do gnosticismo. A partir do século II aumentam as notícias sobre as
comunidades cristãs.
O retrato ideal da comunidade que apresenta o livro dos Atos dos Apóstolos (Atos 2, 42-
47 e 4, 32-35)17, assim como as cartas apostólicas e os escritos dos primeiros Padres da Igreja,
sublinham a importância da comunhão e do amor fraterno para os cristãos dos primeiros séculos.
É significativo que os cristãos usassem a palavra “irmãos” para se chamarem uns aos outros.
Sublinhavam-se também as virtudes relacionadas com a convivência. Embora não fosse fácil (o
Novo Testamento e os Padres também falam de divisões e conflitos) isto era apreciado como um
valor fundamental. Uma expressão importante desta comunhão era a solidariedade, expressa na
ajuda aos carenciados. A ligação entre as comunidades manifestava-se na hospitalidade mútua e
também na solidariedade (como se vê na coleta para ajudar a Igreja de Jerusalém, cf. 2 Cor 8).
15
Isto provocou conflitos com as comunidades helenísticas, que se afastaram da Lei judaica. A reflexão de São Paulo
foi muito importante para libertar o Cristianismo da observância mosaica.
A relação das comunidades judeo-cristãs com o judaísmo foi complexa. Assim, por exemplo, participavam no culto
do Templo (Atos, 2, 46), e nas sinagogas, nas quais começaram pregar o Evangelho. Esta pregação deu origem a uma
polêmica que, nos casos mais conflituosos, chegou até à perseguição, como no episódio da morte de Estevão (Atos
6,8-7,60). A carta aos Hebreus é dirigida a uma destas comunidades, como também o evangelho de São Mateus, na
sua primeira redação.
16
Estas comunidades apresentam maneiras diferentes de organização, e também problemas derivados da necessidade
de definir a sua postura perante o mundo em que viviam como a imoralidade, a convivência com as outras religiões...
17
Os especialistas da Bíblia indicam que estas passagens não devem interpretar-se propriamente como uma descrição
factual da primeira comunidade, mas como apresentação do ideal desta comunidade.
9
Jesus, acolher a sua mensagem e passar a participar na vida comunitária 18. Os autores deste tempo
falam do que significa a conversão: mudança na maneira de pensar, libertação do próprio pecado
e das fraquezas individuais, ideais novos, regeneração e identificação com Cristo morto e
ressuscitado.
18
Muitos dos autores deste tempo são convertidos, e narram a sua história (São Justino, Tertuliano, Clemente
Alexandrino...). Alguns deles, como São Justino, chegaram à fé depois dum longo caminho de busca por várias
filosofias, até que, lendo a Escritura e vendo a vida dos cristãos, encontraram aí a verdade que procuravam.
19
Representado, sobretudo, como o Bom Pastor, com a ovelha tresmalhada sobre os ombros.
20
Alguns elementos da liturgia e iniciação cristã eram paralelos aos das religiões mistéricas.
21
No século II, Santo Ireneu, fala da Regra da fé, e São Justino, por seu lado, da promessa de viver conforme as
verdades confessadas.
10
“Desça as águas, cura-te, e ficas são e limpo das manchas do pecado; depois ascendes da
água, feito um homem novo, pronto a cantar um cântico novo” (Orígenes).
“Assim, nós que estamos mortos e sepultados no batismo, quanto aos pecados carnais do
homem velho, nós que ressuscitamos com Cristo na regeneração celestial, devemos pensar
e realizar o que é próprio de Cristo” (São Cipriano).
Os autores deste tempo não desenvolveram toda a teologia da Eucaristia, mas falam dos
seus principais temas: era um ato reservado aos iniciados, aos batizados, uma refeição de ação de
graças a Deus pelos seus benefícios, e uma oração de petição e louvor. Aparece já como
memorial de Cristo, no qual Cristo Se faz realmente presente no pão e o vinho que o sacerdote
consagra. O que o cristão recebe “não é pão comum nem bebida ordinária, mas a carne e o
sangue do próprio Jesus Encarnado” (São Justino).
Os autores tinham consciência de que a Eucaristia constrói a Igreja, e une os fiéis, que
formam um só corpo pela participação num só pão 23. Exprimia esta unidade à súplica de perdão
pelas faltas mútuas, e a partilha dos bens com os necessitados, através da oferenda voluntaria (a
coleta). Os autores sublinhavam a unidade da comunidade eclesial, simbolizada na unidade do
pão:
“Como este pão estava disperso pelos montes, e reunido, se tornou um, assim também
seja reunida a tua Igreja desde os confins da terra no teu Reino. Lembrai-vos, Senhor, da
vossa Igreja e reuni-a dos quatro ventos” (Didaqué).
22
Um testemunho de São Cipriano permite pensar que a celebração eucarística, no século III, estava a tornar-se
diária.
23
Assim o indicavam a Didaqué, no século I, e São Justino, por volta do ano 150.
11
“Com este mesmo mistério é figurado o nosso povo; como muitos grãos reunidos, moídos
e misturados formam um só pão, assim, em Cristo, que é pão do céu, sabemos que há um
só corpo, no qual fica unida e fundida a nossa diversidade”. (São Cipriano)
A Igreja é santa (pelo seu fundador, porque é canal que leva a santidade de Deus até os
homens, pela sua vocação, etc.). Mas também é pecadora, pelos seus membros, e isto é algo que
os cristãos constataram desde o princípio. Os autores destes primeiros séculos referiram alguns
dos pecados que apareciam nestas comunidades cristãs: soberba, invejas e ambição, que
provocavam desobediência e divisões, apostasia no tempo das grandes perseguições, soberba de
alguns confessores (os que confessaram a Cristo durante as perseguições, arriscando a sua vida),
e também de algumas virgens e sacerdotes, etc.
24
Ascese é o conjunto de práticas que procuram a virtude e a libertação do espírito. Na espiritualidade cristã o termo
ascese usa-se, por vezes, com sentido de penitência ou mortificação.
25
Com efeito, alguns autores falam de “segundo batismo”.
12
confessar o seu pecado ao bispo (esta confissão era secreta) e fazer uma penitência (pública)
como caminho de reconciliação com Deus através da Igreja.
Nesta práxis, vemos que a Igreja, nestes primeiros séculos, tinha consciência da gravidade
da culpa humana e da grandeza da santidade, da necessidade de conversão (compreendida como
caminho de reparação e penitência pelo pecado), e do sentido cristológico e eclesial do perdão,
que o bispo concedia em nome de Cristo e da Igreja.
Vários autores deste tempo escreveram sobre a oração. São Cipriano, Orígenes e
Tertuliano escreveram comentários ao Pai Nosso26. Clemente Alexandrino definia a oração como
diálogo com Deus, que pode ter formas variadas: petição, adoração, louvor, súplica, ação de
graças, etc. A oração pode ser vocal ou mental. Os autores da escola alexandrina falam da oração
mental (oração espiritual e interior) como porta para a contemplação mística e silenciosa, na
qual o orante pode saborear a sabedoria divina, a presença de Deus.
Cristo está presente na oração. As orações dirigiam-se a Deus; ao Pai, e, com muita
frequência, a Cristo (como testemunham as Atas dos mártires, continuando a tradição da Igreja de
Jerusalém, cfr. Atos 4, 24-31). A comunidade orava com Cristo ao Pai, utilizando a Escritura.
Liam os salmos e interpretavam a partir de Cristo, como profecias messiânicas cumpridas em
Cristo. A oração tem, desde o princípio, sentido eclesial: faz-se pela Igreja, para a Igreja e com a
Igreja, como comunidade crente. A oração, mesmo a oração pessoal, tem caráter coletivo,
solidário:
“Não quis o Doutor da paz e Mestre da unidade que orasse cada um por si próprio e
privadamente, de maneira que cada um, quando orasse, rogasse apenas por si próprio.
Não dizemos “Meu Pai, que estás nos céus”, nem “o pão meu me dai hoje”, nem pede
cada um que lhe seja perdoada a sua dívida só a ele, ou que não seja deixado na tentação,
e seja livrado do mal. É pública e comum a nossa oração, e, quando oramos, não oramos
26
Orígenes, comentando o Pai Nosso, aconselhava a pedir a Deus, mais do que coisas materiais, a graça de descobri-
lo.
13
por um só, mas oramos por todo o povo, porque todo o povo forma uma só coisa” (São
Cipriano, comentário ao Pai Nosso).
Expressão desta comunhão orante era o mútuo intercâmbio de orações, que testemunha a
consciência que a Igreja antiga tinha da comunhão dos santos e do valor intercessor da oração. O
crescimento cristão, a edificação da Igreja como Corpo Místico de Cristo (com mártires, virgens,
ascetas... cristãos) é fruto da oração.
27
Segundo a tradição, todos os apóstolos, exceto João, sofreram o martírio.A história recolhe dez grandes
perseguições (na verdade, houve mais), decretadas pelos imperadores Nero (64-68), Domiciano (81-96), Trajano
(109-111), Marco Aurélio (161-180), Septímio Severo (202-210), Maximino (235), Décio (250-251), Valeriano
(256-259), Aureliano, e a grande perseguição de Diocleciano (303-313) depois da qual chegou o Édito de tolerância
que pôs fim às perseguições romanas. As perseguições dos séculos I e II atingiram, sobretudo, os cristãos mais
destacados (bispos...), e as do século III e IV foram mais gerais, e atingir a grande massa dos fiéis.
28
As catacumbas eram cemitérios subterrâneos, formados por um labirinto de galerias e nichos com uma saída para o
exterior. As catacumbas cristãs acolhiam os corpos dos mártires (e dos restantes cristãos) e tornaram- se também
lugar de reunião e celebração da fé para os cristãos nos momentos de perseguição. O testemunho dos mártires ali
enterrados e o fato destas reuniões secretas faz das catacumbas um sinal da vida daquelas comunidades: uma vida
escondida, martirial, que foi crescendo “subterraneamente”,
14
O martírio teve, desde o princípio, sentido cristológico30. Como dizia Santo Agostinho,
“O mártir vive com a verdade e morre pela verdade” (Santo Agostinho). O mártir afirma que a
única coisa radicalmente importante é Cristo, e afirma a sua fé n’Ele até a morte, rejeitando
outros deuses ou valores. Perante a tentativa dos tribunais de aceitar César como Deus (Kyrios,
Senhor), os mártires mantinham sua fé: Cristo é o Senhor. O mártir, além disso, conserva a fé
com a ajuda do próprio Cristo 31. Através do testemunho dos mártires, é Cristo que vence sobre os
poderes do mundo(pois o mártir não procura a sua própria glória, mas a glória de Cristo). O
mártir mostra heroicamente o seu amor a Cristo, e identifica-se com Cristo, e torna-se o melhor
exemplo do seguimento radical de Cristo, até às últimas consequências.
O martírio tem também uma profunda relação com o Batismo e a Eucaristia, que ligam
o cristão à vida, morte e ressurreição de Cristo 32. Por sua vez, a Eucaristia é alimento espiritual
que fortalece a constância dos mártires33. E o mártir entrega a sua vida, o seu corpo, num
sacrifício que o configura com o sacrifício de Cristo, atualizado na Eucaristia. Assim, Santo
Inácio de Antioquia fala do seu martírio próximo como de uma liturgia: “Eu sou trigo de Deus, e
tenho que ser moído pelos dentes das feras, para ser apresentado como pão de Cristo... Suplicai
a Cristo por mim, para que por estes instrumentos consiga ser sacrificado para Deus”
Acima de tudo, o martírio mostra a convicção dos cristãos, a fidelidade da sua fé,
em todas as épocas da história (pois em todas as épocas da história a Igreja tem mártires): os
mártires dão testemunho de Cristo e do Reino dos Céus perante o mundo e os seus poderes 35. Nos
tempos de paz, o martírio é testemunho que lembra a necessidade do esforço na fidelidade ao
Evangelho, pois a Igreja, embora nem sempre sofra a perseguição, está sempre sujeita à tentação
de relativizar e de baixar o nível da sua fé e exigência de vida.
Por esta razão, a Igreja, desde o princípio, celebra liturgicamente os mártires, nos quais se
manifesta o triunfo da graça de Deus. Assimilados a Cristo pela sua morte, a Igreja contempla os
mártires como co-mediadores, diante de Cristo, que é o Mediador da Graça. De fato, os primeiros
santos que a Igreja celebrou foram os mártires 36, e os primeiros templos foram construídos sobre
os seus sepulcros.
7. A virgindade
No Novo Testamento, o celibato foi proposto por Cristo como um dom e uma opção livre
que alguns fazem pelo Reino dos Céus (cfr. Mt 19, 3-12) 38. São Paulo (1 Cor 7) apresentava o
matrimônio e o celibato como dois caminhos válidos para o cristão, embora ele preferisse o
celibato. São Paulo e, segundo a tradição, também o apóstolo João, tomaram esta opção.
Podemos, então, pensar que desde o século primeiro houve alguns cristãos que viveram a
virgindade como vocação.
35
O martírio foi por vezes usado de maneira excessiva na apologética. Propriamente, o martírio prova a verdade
“subjetiva” do mártir (a sua convicção), mas não prova a verdade “objetiva” (que a fé do mártir corresponda à
verdade). De fato, muitas ideologias, grupos religiosos, organizações políticas, etc., também têm seguidores prontos
a dar a vida por elas. Isto também significa que se deve ter cuidado com o uso “propagandístico” do martírio, para
não manipular o sentido da entrega dos mártires (que morreram por amor e fidelidade a Cristo), misturando-o com
outras questões.
36
E, habitualmente, a Igreja escolheu, para recordá-los, o “dies natalis”, o dia do seu nascimento para o céu, do seu
martírio.
37
Por exemplo, em Roma, no templo de Vesta viviam as vestais, mulheres virgens que cuidavam o fogo sagrado, e
tinham um grande prestígio social. Noutras religiões, como o budismo, há também monges. Contudo, no judaísmo o
celibato por razões religiosas não se praticava nem se compreendia.
38
Os termos que usa o Evangelho apresentam a questão com caráter polêmico. No ambiente judaico, que
contemplava como mandamento também as palavras do Genesis: “Crescei e multiplicai-vos”, o celibato não era bem
visto, e provavelmente Jesus foi criticado por ser célibe.
16
A opção pelo celibato (ou seja, o celibato escolhido livremente, não imposto por
circunstâncias) apareceu nas comunidades cristãs como uma vocação e um dom recebido do Pai.
No princípio, não significava desprezo pelo matrimônio (que a Igreja sempre valorizou como
sinal da união de Cristo com a Igreja), mas era visto como um sinal dos bens definitivos. Os
autores deste tempo louvavam a virgindade como consagração da pessoa a Cristo, a Deus: “Não
as louvamos por serem virgens, mas porque são virgens consagradas a Deus com piedosa
continência” (Santo Agostinho). “Muitos entre nós, homens e mulheres, chegaram à velhice
célibes, com a esperança dum trato mais íntimo com Deus” (Atenágoras, aprox. 177)
39
Neste tempo, o sacerdócio não implicava o celibato. Só séculos mais tarde é que a Igreja latina optaria pelo
celibato para os sacerdotes (nas Igrejas orientais católicas, porém, há padres casados).
40
Assim disse São Cipriano: “O vosso Senhor e cabeça é Cristo, o vosso esposo, com quem compartilhais a vossa
sorte e condição”. E, no século IV, Santo Atanásio: “Costuma a Igreja católica chamar esposas de Cristo às mulheres
consagradas com a virtude da virgindade”. Estas expressões tornaram-se mais comuns na Idade Média.
41
Novaciano (aprox. 250) acrescentou outra metáfora, que muitos repetiram depois: a vida virginal é “ vida
angélica”. E o Pseudo – Clemente, chamou-a “vida divina e celeste”
17
Outro quem lhe outorga o dom da continência”. E o Pseudo-Clemente (séc. III): “Se desejas tudo
isto (ser virgem), vence o corpo, vence os prazeres da carne, vence o mundo no Espírito de Deus,
vence a Satanás por meio de Jesus Cristo, que te robustecerá pela escuta das suas palavras, e
pela divina Eucaristia”.
A teologia espiritual moderna, ao estudar aquelas virgens e célibes dos primeiros séculos
da Igreja, deduz também outros valores eclesiais da sua vida, sublinhando a disponibilidade para
o serviço da comunidade cristã. Os célibes consagram a Cristo toda a sua vida (não apenas a
sexualidade) porque Cristo assim o pede, e porque Cristo lhes concede este dom, que os liberta
para viverem em total disponibilidade para o Reino de Deus. E também repensa a relação entre a
virgindade e o matrimônio. A teologia tradicional sobrevalorizou o celibato e reduziu o valor do
matrimônio, que durante séculos foi considerado como inferior, devido a uma visão negativa do
corpo e da sexualidade, herdada da filosofia grega. Agora, ambos os estados de vida –virgindade
e matrimônio-, com a sua diferente contribuição, são contemplados como duas vocações
igualmente válidas e importantes na Igreja.
A Igreja, nos primeiros séculos, fez uma importante reflexão sobre Jesus Cristo e a
Santíssima Trindade, sobre a Revelação (relação entre o Antigo Testamento e Jesus, seleção dos
livros revelados que formaram o Novo Testamento) e sobre a vida cristã. Não foi fácil
desenvolver esta reflexão, guardando o equilíbrio entre as raízes cristãs (Escritura e Tradição) e a
42
Assim afirmou São Cipriano: “Dirijo-me às virgens, a porção mais ilustre do rebanho de Cristo. Por causa delas
se alegra a Igreja, e nelas floresce esplendidamente a admirável fecundidade da mãe Igreja”.
43
Com o fim das perseguições e com as conversões em massa ao Cristianismo, desapareceu a referência próxima do
martírio como testemunho radical de vida; a virgindade e o monacato ocuparam este lugar de referência. A
consideração eclesial da virgindade também cresceu, e os autores começaram a equiparar a virgindade (como
sacrifício durante toda a vida) ao martírio.
18
cultura helenística (com suas inquietações e correntes de pensamento) na qual esta reflexão se
desenvolveu e exprimiu. Por isto apareceram alguns erros sobre a compreensão de Deus ou de
Jesus Cristo, ou sobre a vida cristã e a relação do cristão com o mundo. Estes erros são as
heresias. Algumas delas (mudando nomes e certas características) viriam a atravessar grande
parte da História da Igreja. As comunidades e os seus pastores e mestres fizeram um esforço para
discernir as diferentes correntes de pensamento, rejeitar as erradas e afirmar as corretas. Muitos
dos livros que os Padres da Igreja escreveram respondem a esta necessidade de corrigir erros e
afirmar a doutrina correta (ortodoxia). Por outro lado, algumas influências indiretas de algumas
destas heresias chegaram até nós.
44
O estudo das heresias desta época corresponde ao âmbito da Patrologia ou Patrística; aqui apenas se citam, e se
estudam algumas dada a sua relação com a espiritualidade.
19
8.1.3. A gnose
Os grupos que confundiram o Cristianismo com a gnose, aceitavam Jesus como Salvador,
mas duma maneira secundária, e consideravam que Jesus Cristo tinha um corpo apenas aparente,
45
Por esta razão é que as cartas e o Evangelho de São João sublinham a realidade da Encarnação do Filho de Deus,
(que apresentam como Logos, Palavra e Sabedoria de Deus) que assume a carne, a realidade humana, e a
centralidade do amor na mensagem de Jesus e da vida cristã. O que salva não é o conhecimento, mas o amor.
46
A gnose recolhia ideias da filosofia grega, como o platonismo (por ex., a idéia de que a alma está encarcerada no
corpo), e o hermetismo, elementos procedentes de religiões orientais (Egito, Pérsia, Babilónia...), concepções
astrológicas, que atribuem aos astros poderes mágicos sobre o mundo e as pessoas.
47
Alguns livros apócrifos, como o Evangelho de Tomé ou o Evangelho de Pedro, são exemplo destas misturas do
Cristianismo com a gnose.
48
Muitos movimentos gnósticos cultivavam conhecimentos esotéricos (reservados aos membros do movimento, ou
mesmo aos que eram considerados, entre eles, perfeitos). Segundo o grau de aceso à gnose, os homens classificavam-
se em três grupos: materiais ou carnais (hylicos, que vivem na ignorância e não se salvam), animais (psíquicos, que
vivem na fé–pistis- e se salvam imperfeitamente), e espirituais (pneumáticos, que, através do conhecimento,
resgatam a faúlha divina). Estes estavam seguros da sua salvação, o que, nalguns casos, significava que podiam fazer
o que lhes apetecia,(estavam “acima do bem e do mal”), e entregavam-se à libertinagem.
20
e revelava um Deus que não tem relação com o Antigo Testamento. Entre eles destaca-se
Marcião49, que aceitava apenas o Novo Testamento como revelação do bom Deus50.
Outro grupo herético foram os mesalianos, com práticas estranhas e não bem conhecidas.
Desde a sua origem, a Igreja espera a vinda gloriosa do Senhor, que julgará o mundo e
levará a história à plenitude. Esta esperança estava muito presente nas primeiras comunidades e
nos primeiros escritores cristãos (A Didaqué, a Carta do Pseudo-Bernabé, Hermas...). Uma
forma de expressão desta espera foram os milenarismos, doutrinas que esperavam a próxima
49
Marcião viveu na segunda metade do século II. Sustentava que o Novo Testamento é revelação do Deus Pai, bom,
perdoador, enquanto o Antigo seria revelação dum Deus mau, castigador, e devia ser rejeitado. Perante esta heresia, o
Cristianismo recolheu o Antigo Testamento como testemunho da pedagogia reveladora de Deus, que chega à
plenitude em Jesus.
50
Para a história, é interessante verificar que alguns posicionamentos semelhantes aos da gnose voltaram a aparecer
mais tarde, nos movimentos cátaros (séc. XII-XIII), os «alumbrados» espanhóis (séc. XVI) e na New Age atual. Há
alguns elementos do gnosticismo que permanecem latentes na cultura ocidental.
51
Manes (216-277),foi educado numa seita mandeísta (o mandeísmo é uma religião da Pérsia Antiga, que crê em
dois princípios fundamentais: um do bem e outro do mal). Convencido por umas supostas revelações, começou a
pregar uma nova religião universal, pela Índia, Pérsia, Egito, etc. Os seus seguidores espalharam-se por todo o
Império Romano. Santo Agostinho teve relação com esta seita.
52
De fato, a palavra maniqueu passou à linguagem comum. Significa a atitude daquelas pessoas que dividem
radicalmente o mundo em “bons e maus” (normalmente, considerando bons os que pensam como elas).
21
vinda do Senhor para reinar, junto com os seus eleitos, durante mil anos (segundo Ap. 20,4).
Vários autores eclesiásticos, ao longo dos séculos, recolheram estas idéias.
O montanismo foi uma heresia fundada nesta esperança milenarista. Foi fundada pelo
sacerdote Montano53, que, por volta do ano 170, começou a pregar a próxima vinda do Messias e
o fim do mundo, e prometia aos seus seguidores um lugar importante na “Nova Jerusalém”. As
massas populares (e mesmo alguns bispos), fascinadas por este anúncio, mobilizaram-se para
acolher o Senhor. A hierarquia cristã demorou a reagir, mas finalmente condenou esta doutrina.
Porém, por volta do ano 205, esta corrente recebeu um novo impulso com a incorporação de
Tertuliano. Finalmente, este movimento fanático fundado em visões e profecias, desapareceu
antes do fim do século IV.
Tertuliano (+220 aprox.) era de Cartago (atual Túnis). De origem pagã e ampla cultura e
inteligência, converteu-se ao Cristianismo e tornou-se um dos mais brilhantes escritores cristãos
do seu tempo. De caráter radical, toda a sua obra se caracteriza pela paixão que comunica e pela
fortaleza das suas convicções, dum rigorismo crescente. Escreveu importantes obras apologéticas,
que defendiam o Cristianismo e denunciavam a falsidade das demais doutrinas e a falta de moral
do seu tempo (foi ele que afirmou que “o sangue dos mártires é semente de cristãos”); escreveu
igualmente livros contra algumas heresias do seu tempo (nestas obras fala da relação entre a
Escritura e a Tradição), e tratados morais e ascéticos, caracterizados pela crítica dos costumes
pagãos e pelo rigor54. Finalmente, a sua radicalidade na procura duma vida cristã exigente, levou-
o ao montanismo, e a posturas extremas, como criticar os que fugiam das perseguições. Nos
últimos anos da sua vida, chegou a separar-se dos montanistas e formou um grupo próprio. Este
final de vida, fora da Igreja, obscureceu a figura deste importante escritor, embora vários dos
Padres da Igreja posteriores, como Santo Agostinho, tenham recebido muito da sua sabedoria.
53
Montano era frígio e tinha sido sacerdote de Apolo e Cibele, antes de se converter ao Cristianismo.
54
Assim, por exemplo, opunha-se a que os cristãos se dedicassem a profissões como o comércio, as artes, a literatura
por considerar que podiam cair na idolatria ou na ambição; também era muito severo nas opiniões sobre os vestidos e
os adornos das mulheres.
22
Este diálogo com a cultura, para as primeiras gerações cristãs, foi importante, ao mesmo
tempo que complicado. O Cristianismo, nascido no seio do judaísmo, estendeu-se num mundo
cultural diferente, o greco-romano. Conservando o mais importante das suas raízes judaicas (a
Escritura, com a compreensão que ela transmite do homem, de Deus e do mundo), o Cristianismo
lançou também raízes na sociedade greco-romana. Assumiu muitos elementos desta cultura
(desde a vida quotidiana até parte do pensamento clássico), rejeitou outros, e modificou alguns
para aceitá-los. Por sua vez, a sociedade romana recebeu o Cristianismo com hostilidade, e o
Cristianismo procurou a maneira de responder a esta oposição. Este diálogo foi também
importante para a expressão e a formação da espiritualidade cristã. Vamos estudá-lo em dois
âmbitos: a vida quotidiana e o pensamento.
9. 1. A vida quotidiana
No século II, o autor do “Discurso a Diogneto” descrevia assim a vida dos cristãos:
55
A cultura sintetiza a maneira como as pessoas compreendem a realidade na qual vivem, e organizam sua vida com
os recursos que têm. Fazem parte da cultura muitos elementos: as técnicas, os instrumentos e saberes utilizados para
satisfazer as necessidades (produzir alimentos, proteger-se dos perigos e das inclemências do tempo, cuidar da
saúde...), os costumes, as práticas lúdicas e sociais, os conhecimentos e artes (ciências, etc.), a mentalidade e mesmo
a religião (embora a religião transcenda a cultura, porque esta abrange apenas o “lado humano”). A cultura faz parte
da vida das pessoas, e configura sua maneira de viver, pensar, sentir, amar.
23
“Cada qual habita a sua pátria, mas vivem todos como de passagem, em tudo participam
como os outros cidadãos, mas suportam como se não tivessem pátria (...) Habitam na
terra, mas sua cidade é o Céu (...) os cristãos são no mundo o que a alma é no corpo (...)
habitam no mundo, mas não são do mundo (...) encontram-se detidos no mundo, como
num cárcere, mas são eles que contêm o mundo: são a alma do mundo”
Esta descrição, embora idealizada, fala-nos da vida quotidiana dos cristãos: participavam
da vida comum das cidades: trabalho, etc.; mas viviam duma maneira peculiar. O seu sentido da
família e sua moral familiar eram mais exigentes, pois proibiam estritamente o adultério e o
aborto (contrariamente ao resto da sociedade), e rejeitavam o divórcio. Praticavam o amor
fraterno em atitudes concretas como a hospitalidade para acolher aos cristãos que chegavam, e
uma solidariedade organizada para ajudar os irmãos necessitados 56. Esta caridade fraterna
provocava admiração na sociedade. Além disso, na Igreja tratavam-se os escravos da mesma
forma que os homens livres, e castigavam-se com penas canônicas os amos que os maltratavam 57.
Por outro lado, no meio daquela sociedade acostumada ao sincretismo religioso 58, que misturava
deuses de diversas religiões, os cristãos permaneciam fiéis ao monoteísmo, e, por isso, rejeitavam
também várias profissões (que implicavam o culto a outros deuses), como guardas dos templos
pagãos, astrólogos, militares...
“Habitar no mundo, mas não ser do mundo”. Esta expressão poderia descrever a atitude
dos cristãos na vida. Viviam normalmente, mas com certo sentido de distância em relação ao
mundo, com maior atenção a Deus. Vários autores cristãos falariam do mundo como “uma
ilusão” (Gregório de Nisa), “comédia” (Santo Agostinho).
catástrofes naturais. Orígenes disse uma vez que “O povo de Cristo é odiado por todas as
nações”.
Os intelectuais, como Celso (séc. II) e Porfírio (séc. III) não faziam caso destes rumores,
mas criticavam os conteúdos da fé cristã como absurdos. Desde o princípio, os cristãos
responderam a esta rejeição social com o testemunho das suas vidas, fieis à fé até o martírio,
quando era preciso. Além disso, desde o século II 59apareceram intelectuais cristãos (convertidos
do paganismo) que começaram a escrever, apoiados nos seus conhecimentos filosóficos e
culturais, para defender o Cristianismo, e para mostrar que nele está a verdade.
Alguns destes autores julgaram a cultura pagã de maneira muito crítica, e apresentaram o
Cristianismo como superior. Assim, Teófilo de Antioquia, e Taciano (séc. II) defendiam que o
Cristianismo, pelas suas raízes judaicas, é anterior à cultura pagã, e sua moral é superior.
Também outros autores como Hermes, e Hipólito consideravam com desconfiança a filosofia
grega.
Santo Ireneu de Lião. (+202 aprox.) é, talvez a figura mais destacada entre estes Padres da
Igreja que não se apoiaram na filosofia grega 60. Nasceu na Ásia (talvez em Esmirna), e conheceu
São Policarpo, que tinha sido discípulo de São João Evangelista. Desde aí, passando por Roma,
foi até Lion (França), onde foi ordenado sacerdote e sucedeu ao bispo quando este foi
martirizado. Desenvolveu uma grande ação evangelizadora na França, e trabalhou pela unidade
da Igreja, contra as divisões provocadas pelo montanismo e vários movimentos heréticos de
caráter gnóstico, como o marcionismo. Nas suas obras (Adversus haereses, Demonstração da
pregação apostólica) defendeu a Tradição da Igreja, (apoiada pela sucessão dos bispos desde os
apóstolos), e expôs a fé cristã. Contra o marcionismo, desenvolveu uma teologia da história, que
mostra como Deus foi desenvolvendo sua revelação pedagogicamente, ao longo dum caminho de
muitos séculos, no qual o Antigo Testamento preparou a vinda de Jesus Cristo, que traz a
revelação definitiva de Deus.
Outros autores, no entanto, começaram um diálogo mais positivo com a cultura greco-
romana, recolhendo os seus elementos válidos, para propor uma gnose (sabedoria vital) cristã
como plenitude humana. O primeiro que adquiriu importância entre estes foi São Justino.
São Justino (+165 aprox.). Era pagão, e percorreu várias escolas filosóficas procurando a
verdade, até que a encontrou no Cristianismo. Depois da sua conversão, fundou uma escola em
59
Não há notícia de que os cristãos escrevessem qualquer coisa, durante o século I, para responder às críticas e
ataques contra sua fé. Nesta época, a maior parte dos cristãos era de cultura humilde, e provavelmente não se sentiam
capacitados para responder a estes ataques com uma argumentação escrita
60
Possivelmente não usou a filosofia grega porque teve que lutar contra as heresias gnósticas, baseadas em
elementos filosóficos gregos.
25
Éfeso, e mais tarde uma escola catequética em Roma, por volta do ano 150. São Justino afirmou
que o Verbo divino (o mesmo Verbo que, para revelar plenamente Deus, encarnou na pessoa de
Jesus Cristo), também Se fez presente, como as sementes num campo, nas diversas culturas e no
pensamento dos filósofos. O Verbo ilumina a todo homem que procura a verdade.
“Quanto de bom está dito em todos eles, nos pertence a nós, os cristãos, porque nós
adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus, ingénito e
inefável; pois Ele, por amor a nós, Se fez homem para compartilhar os nossos sofrimentos
e curá-los. E todos os escritores puderam ver obscuramente a realidade, graças à
semente do Verbo neles ingênita” (Apologia, II, 13).
Esta teoria das “semina Verbi”, das sementes do Verbo espalhadas nas culturas e na obra
dos filósofos não cristãos, tornou-se fundamental para ligar o pensamento cristão com a filosofia
grega (sobretudo Platão). Começava assim uma grande obra de diálogo cultural, realizada pelos
Padres da Igreja.
Justino escreveu uma Apologia (dirigida ao imperador Marco Aurélio), para defender a fé
cristã. Finalmente, foi denunciado e, perante o tribunal, confessou a fé e foi condenado à morte.
Deste modo, deu testemunho de Cristo com o seu pensamento e com o seu sangue.
São Clemente de Alexandria (150-215 aprox.) continuou este caminho de diálogo com a
cultura, e afirmou que a sabedoria humana não é contrária à fé, mas complementa-a. A filosofia é
bom caminho para aproximar o homem da fé cristã.
Orígenes (185-254 aprox.) desenvolveu a idéia da sabedoria e da perfeição cristã com uma
profundidade que influiu em grande parte nos autores posteriores. Nascido numa família cristã de
Alexandria (o seu pai foi mártir) e batizado na sua juventude, dedicou-se desde muito novo ao
26
estudo das Escrituras, e mais tarde também da filosofia grega. Ensinou em Alexandria, e depois
na Palestina, onde morreu na sequência de torturas na perseguição de Décio. Escreveu perto de
2.000 livros (dos quais muitos se perderam): comentários às Escrituras, livros sobre a oração e a
doutrina cristã, sermões, etc.
Este conhecimento profundo de Deus que Orígenes propõe como meta final da
experiência cristã, estabeleceu a pauta que os místicos cristãos posteriores seguiriam. Para
terminar este capítulo, é preciso lembrar mais dois Padres da Igreja (não citados antes por não
estarem tão envolvidos nesta questão sobre o diálogo entre Cristianismo e filosofia grega):
Santo Inácio de Antioquia (+110 aprox.). No começo do século II, Inácio, o bispo de Antioquia,
na Síria, foi preso, julgado e condenado à morte, para ser executado em Roma 63. Durante a
61
Orígenes é um dos mais importantes autores da escola alexandrina de interpretação da Bíblia. É característica
desta escola a procura do sentido místico, através duma interpretação alegórica da Bíblia. Este modo de interpretação
vai além do sentido literal, e lê de maneira simbólica, encontrando no texto elementos que falam do mundo do
espírito. Assim, por exemplo, o esposo do Cântico dos Cânticos é Cristo, e a esposa é a Igreja, e também é a alma
humana
62
A apatheia, ou imperturbabilidade, é o estado da pessoa que fica acima de todas as paixões, e não é perturbada por
nada. A filosofia estoica propunha este estado como perfeição da pessoa. E a espiritualidade cristã, desde esta época
antiga, recolheu este conceito para exprimir a perfeição, mas também o matizou: aqui trata-se da paz espiritual
fundada em Cristo, que nada nem ninguém nos pode tirar.
63
A cidade de Antioquia de Síria, uma das principais da parte oriental do Império, foi também uma das principais
dioceses do Oriente Cristão, desde o tempo dos Atos dos Apóstolos. Desapareceu totalmente vários séculos mais
27
viagem, saudou várias comunidades cristãs. Depois escreveu-lhes seis cartas, e enviou outra à
Igreja de Roma. Estas cartas (juntamente com a carta do Papa São Clemente) conservam-se entre
os primeiros escritos cristãos, oferecem-nos notícias da Igreja deste tempo, e, sobretudo, deixam-
nos o testemunho dum pastor preocupado pela caridade e unidade da Igreja, e dum mártir pronto
para seguir a Cristo: “Prefiro morrer em Cristo Jesus a reinar sobre todos os confins da terra.
Procuro Aquele que morreu por nós; quero Aquele que ressuscitou por nossa causa. Estou
prestes a nascer (...) Deixai-me alcançar a luz pura. Quando lá chegar serei verdadeiramente um
homem. Deixai-me ser imitador da paixão do meu Deus” (Carta aos Romanos)64.
São Cipriano de Cartago (+258 aprox.). Converteu-se do paganismo, e tinha formação retórica.
A Bíblia foi fundamental na sua conversão e no seu pensamento. Foi, sobretudo um grande pastor
nos tempos difíceis da violenta perseguição de Décio 65, com os problemas que implicou: houve
muitas apostasias; muitos daqueles cristãos (quando acabou a perseguição), voltaram à Igreja, e
surgiu um conflito sobre a maneira de acolhê-los. Também ajudou a resolver vários conflitos
noutras Igrejas. O seu livro mais importante é sobre “A unidade da Igreja”, além de outros
escritos pastorais e de um comentário sobre o Pai Nosso. Finalmente, foi martirizado na
perseguição do imperador Valeriano.
tarde.
A morte de muitos mártires acontecia no circo ou no anfiteatro, onde eram devorados por feras selvagens, para
divertimento dos romanos.
64
A Liturgia das Horas recolhe estas cartas no Oficio de Leituras das semanas 2ª (domingo e segunda feira), 3ª
(domingo), 10º (domingo, segunda e terça feira), 16ª (domingo, segunda e terça feira), 17ª (sexta feira e sábado), 27ª
(terça, quarta e quinta feiras) e na memória de Santo Inácio, 17 de outubro.
65
Esta perseguição, muito sangrenta, chegou depois dum longo tempo de tranquilidade, e foi causa de muitas
apostasias, o que apresentou à Igreja o problema de como acolher os cristãos que, depois da queda, quiseram voltar à
Igreja.