Uma Interpretação Marxista Sobre A Infância e Os Abrigos
Uma Interpretação Marxista Sobre A Infância e Os Abrigos
Uma Interpretação Marxista Sobre A Infância e Os Abrigos
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Introdução
A infância1 como uma categoria de análise estrutural exige dos pesquisadores da área das ciências sociais
aplicadas enfoques distintos daqueles estudos tradicionalmente centrados no desenvolvimento individual,
cognitivo e nas etapas do crescimento já identificados pela psicologia. As correntes funcionalistas subestimaram
o valor da infância dirigindo suas investigações para dimensões da socialização e da relação familiar e aquelas
pesquisas inspiradas na perspectiva crítico-dialéticas, que estudaram a estrutura de classes, não atribuíram tanta
relevância ao papel desempenhado por crianças e adolescentes no capitalismo (PILOTTI, 1995).
As constatações de Pilotti, realizadas há mais de duas décadas não foram totalmente alteradas, porém
verifica-se maior preocupação entre pesquisadores, trabalhadores e militantes em produzir e disseminar
informações e conhecimento sobre o papel desempenhado por crianças e adolescentes na sociedade, seja
abordando as múltiplas determinações que produzem a situação de rua (RIZZINI, 2003); os formatos
perversos de instituições privativas de liberdade (SILVA, 2011; SALES, 2007); seja com a crítica à exploração
sexual (SANTOS, 2010); do trabalho infantil (NEVES, 1999) ou com as disputas em torno do fundo público
(SALVADOR; ALVES, 2012; LIMA, 2015).
Contudo, nas duas últimas décadas, as publicações relacionadas às medidas protetivas em regimes de
abrigo, principalmente por parte de assistentes sociais, têm sido inexpressivas. Em levantamento realizado
por Malfitano e Silva (2014) são sinalizados questionamentos pelo fato de, entre 1990 e 2009, não serem
identificadas revistas de Serviço Social2 com a divulgação de conhecimento sobre abrigos3. Embora, nessa área,
a produção intelectual e os referenciais da psicologia sejam hegemônicos, mesmo que tardiamente é possível
conjugar as dimensões teóricas e políticas de Marx, adotadas na direção estratégica da formação em Serviço
Social, com a produção do conhecimento sobre os processos de institucionalização da infância pauperizada.
Na primeira seção deste artigo, diante da pouca incidência do marxismo nos estudos sobre a infância
pauperizada, será realizada uma releitura da Lei Fabril e da Lei Geral da Acumulação. Na segunda seção, o
processo de institucionalização em abrigos aparece como resposta do Estado às expressões da questão social
e não como descompasso das famílias da classe trabalhadora em suas funções protetivas. Essas instituições
cumprem uma função na reprodução social, por meio da proteção e da coerção, assim como a preparação da
mão de obra para uma inserção precarizada no mercado de trabalho, reproduzindo o ciclo de dependência
institucional e a exploração.
O cenário dramático exposto por Marx (1983, 1984), em O Capital demonstra aos pesquisadores das
ciências sociais aplicadas que as contradições entre o capital e o trabalho assim como a necessidade de superação
da questão social4 continuam na ordem do dia. Para analisar o significado da questão social, o referencial
crítico, inspirado em Marx e na tradição marxista, merece destaque por salientar não apenas as contradições,
como também as desigualdades da sociedade, não se restringindo às determinações filosóficas que buscam
compreender a realidade, mas, sobretudo, transformá-la.
A condição de vida da classe trabalhadora na Europa, nos últimos anos do século XVIII, foi marcada
pelo fenômeno do pauperismo e, de acordo com Paulo Netto (2001, p. 42): “constituiu o aspecto mais
imediato da instauração do capitalismo em seu estágio industrial-concorrencial”. O pauperismo constituía um
fenômeno aparentemente novo e se as desigualdades e a existência de ricos e pobres na sociedade era uma
característica de longa data, por outro lado as contradições e antagonismos entre capital e trabalho ficavam
ainda mais evidentes, pois embora existisse uma capacidade crescente da produção de riqueza, a pobreza
também aumentava significativamente (PAULO NETTO, 2001).
Em O Capital (MARX, 1983;1984), a brutalidade da denúncia sobre os abusos, a estupidez punitiva e a
voracidade por mais trabalho dos proprietários, por meio de expedientes torpes e essenciais ao prolongamento da
jornada de trabalho, para além da crítica, impulsionou as classes subalternizadas a resistir e lutar por melhores
condições de vida. No tocante à preservação dessas condições, a sanha capitalista contribuiu progressivamente:
(1) para o encurtamento da vida – mortalidade real e dissimulada – de parcelas de crianças e adolescentes da
classe trabalhadora; (2) produziu epidemias; e (3) dilacerou famílias inteiras. A exploração contínua da força
de trabalho imprimiu um ritmo extenuante às crianças e, principalmente, aos adolescentes, com uma rigidez
dificilmente observada no trato dos adultos e/ou até mesmo dos sujeitos escravizados (MARX, 1983).
Além disso, o trabalho assalariado subjugou a integridade infantil e sua compleição física ao deslocar
esse público para trabalhos insalubres, em espaços úmidos, empoeirados, abafados e com resíduos nocivos
à respiração, resultando na diminuição progressiva da estatura média dos adultos e, consequentemente, dos
soldados, um problema para as forças militares. Esse processo de trabalho desumano favoreceu o uso de
substâncias inebriantes como o ópio e as bebidas alcoólicas para aplacar a dor e o cansaço diante de jornadas
de trabalho longas e fatigantes. Submetidos a cobranças desmedidas, essa exploração descaracterizou as
singelas linhas faciais infantis por um semblante rudimentar, que causava ojeriza e repugnância e desaguou,
com isso, no aligeirado processo de envelhecimento, com o desgaste e a atrofia da musculatura e a redução
da energia física e mental, comprometendo a utilização dos membros corporais e a capacidade para o trabalho
(MARX, 1983).
Os médicos, nos exames de ceramistas, diagnosticavam a degeneração, do ponto de vista físico e
moral, além de esses trabalhadores apresentarem quadros severos de deformação física, raquitismo, anemias,
reumatismo, perturbações hepáticas e renais, pneumonia, bronquite e doenças específicas provenientes da
manipulação das cerâmicas. A sociedade possui civilização excedente e, como peças de reposição de uma
engrenagem, homens, mulheres e crianças, são explorados, descartados, reutilizados ao gosto e a contragosto de
quem tem o poder sobre suas vidas: “o prolongamento da jornada de trabalho, além dos limites do dia natural
por noite adentro serve apenas de paliativo, apenas mitiga a sede vampiresca por sangue vivo do trabalho”
(MARX, 1983, p. 206).
Um documento encaminhado ao comissário de emprego infantil, pelo médico Charles Parsons (apud
MARX, 1983), merece destaque, pois embora não naturalize a exploração da mão de obra, por outro lado,
também termina por culpabilizar a família por violências e violações: “posso falar com base somente em
observações pessoais não estatísticas, mas nem por isso posso deixar de afirmar que sentia mais e mais
revolta ao ver essas pobres crianças, cuja saúde foi sacrificada para satisfazer a avareza de seus pais e de seus
empregadores” (MARX, 1983, p. 198).
Liminarmente, ao identificar o conteúdo dos relatórios das inspetorias de fábrica e o surgimento da
legislação fabril, Marx (1983, p. 220-221), explicitou com contundente crítica, os aspectos da exploração da
força de trabalho, da ampliação do pauperismo e da sociabilidade destrutiva do capital. A legislação fabril,
compreendida entre os anos de 1833 e 1864, instituía uma jornada absurda de 15 horas diárias5 de trabalho.
Para crianças entre 09 e 13 anos de idade, a atividade laborativa foi limitada em oito horas diárias e não
poderia ser realizada entre oito e meia da noite e cinco e meia da manhã – se somente essas informações
podem ser consideradas um disparate, uma afronta, cabe salientar que, antes da lei fabril de 1833, as crianças
e adolescentes extrapolavam todos os limites impostos e trabalhavam o dia e/ou a noite toda (MARX, 1983).
Nas considerações sobre mais-valia relativa percebe-se que uma das críticas marxianas reside na
problematização acerca do uso da maquinaria e de sua finalidade, à medida que, no desenvolvimento das
forças produtivas e na explicação sobre o resultado de alívio do esforço diário de um trabalhador na produção
de mercadorias, a maquinaria apresenta fundamental importância para intensificação, ampliação da jornada e
exploração sistemática dessa força de trabalho. Ou seja, a maquinaria se destinava a “baratear mercadorias e
encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador precisa para si mesmo, a fim de encompridar a outra
parte da sua jornada de trabalho que ele dá de graça para o capitalista. Ela é meio de produção de mais-valia”
(MARX, 1984, p. 7).
Com essa descoberta, Marx desvenda as diferenças fundamentais engendradas no modo de produção,
entre a ferramenta e a máquina; a manufatura e a grande indústria; entre o proprietário dos meios de produção
e as pessoas que vendem a mercadoria força de trabalho. Ressalta-se que homens e mulheres também são
apropriados diferentemente, de acordo com a utilização de sua mão de obra ou da natureza de um determinado
processo de trabalho. Um determinado meio de trabalho pode ser ferramenta, se for movido pela mão de um
único trabalhador, ou máquina, se for movido por um determinado tipo de recurso energético: “considerada
exclusivamente como meio de baratear o produto, o limite para o uso da maquinaria está em que sua própria
produção custe menos trabalho do que sua aplicação substitui” (MARX, 1984, p. 21).
A conversão do trabalho em trabalho assalariado ou o tratamento apartado entre o resultado de determinado
trabalho e o trabalho propriamente dito, ou seja, a divisão entre sujeito e objeto, demarca a linha inicial do
processo de produção e, mais diretamente, da reprodução social simples. Sendo assim, “a separação entre o
produto do trabalho e o próprio trabalho, entre as condições objetivas do trabalho e sua força subjetiva de trabalho,
era a base realmente dada, o ponto de partida do processo de produção capitalista” (MARX, 1984, p. 156).
Os processos subjetivos, os cuidados familiares6 com as crianças e adolescentes, os dilemas impostos pela
esfera do consumo, todos esses aspectos, praticamente, não são levados em consideração pelos detentores dos
meios de produção, sendo que “a compra de força de trabalho com dinheiro dá ao capitalista certos direitos de
dispor do trabalho dos outros sem considerar necessariamente o que estes possam pensar, precisar ou sentir”
(HARVEY, 2000, p. 101).
A ideologia liberal que reforça a moral do trabalho e a culpabilização individual das famílias pauperizadas
da classe trabalhadora7, sob o discurso conservador reproduzido por frases popularizadas do tipo: “mente
vazia é oficina...” ou “é melhor trabalhar do que fazer besteira...”, desconhecem o caráter alienante do modo
de produção capitalista e a impossibilidade de todos terem acesso igualitário às oportunidades de emprego
e escolarização. A essência dessa questão é descortinada ao invertermos o ponto de partida do abuso e da
exploração “é o modo de exploração capitalista que fez do poder paterno, ao suprimir sua correspondente base
econômica, um abuso” (MARX, 1984, p. 91).
E sabemos que cinco homens são capazes de produzir pão para mil pessoas; que um trabalhador pode
produzir roupa de algodão para 250 pessoas [...]. A renda é suficiente, mas há algo criminosamente errado
na administração. Quem ousaria dizer que essa enorme casa não é criminosamente administrada, quando
cinco homens podem produzir pão para mil, e ainda assim milhões não têm o que comer? (LONDON,
2004, p. 303-304).
No modo de produção capitalista as instituições asilares ou abrigos12 para crianças e adolescentes cumprem
determinações contraditórias que envolvem: a dimensão assistencial, educativa, coercitiva, protetora, tudo ao
mesmo tempo. Isso, porém, não significa necessariamente que sua função primordial seja apenas a de assistir,
educar, vigiar, controlar e proteger. A moral do trabalho e a oposição à assistência, argumentos presentes na
tradição liberal, na consolidação de uma economia de mercado (PEREIRA, 2000), embora tenham suscitado
intervenções assistenciais residuais e focalizadas, jamais foram pensadas para garantir a liberdade plena ou
potencializar qualquer tipo de emancipação.
A moral do trabalho, que caracterizou o liberalismo, privilegiava que o acesso à alimentação, ao vestuário
e ao lazer fosse garantido por meio do assalariamento dos membros da família em condições de vender a força
de trabalho, inclusive as crianças. Nos abrigos isso não era considerado um direito, mas retribuído por meio
da imposição do trabalho forçado, como contrapartida. A aquisição aos bens de consumo e às necessidades
sociais, por parte das crianças e adolescentes, era muitas vezes fruto de um salário adquirido por familiares
ou até mesmo pelos eles próprios no processo de compra e venda da força de trabalho.
Ressalte-se que do momento em que crianças, oriundas da classe trabalhadora, eram alijadas do
processo de venda da força de trabalho para a indústria emergente, reduziam-se as formas de sociabilidade,
pois escolas inexistiam ou eram insuficientes; a ajuda paroquial, peremptoriamente, diminuída; e a família,
engolfada em jornadas de trabalho extenuantes, era, cada vez mais, destituída de suas funções afetivas,
educativas, assistenciais e protetivas. Nesse sentido, em momentos históricos, as ruas se apresentavam como
uma alternativa de sobrevivência, embora, em determinadas circunstâncias – como no período de introdução
da maquinaria nas indústrias – mulheres e crianças, por constituírem a mão de obra mais barata, sustentassem
os homens adultos da família (ENGELS, 2010).
Em casas com muitas crianças, os filhos com idades mais avançadas ficavam com a incumbência de cuidar
dos mais novos. E, para manter essas crianças sossegadas, muitas vezes, eram empregados narcóticos responsáveis
por convulsões que levavam à morte. Como os laços de amor e cuidado, em uma realidade avassaladoramente
precária, praticamente inexistiam e se existiam eram extirpados da sociabilidade, evidenciavam-se efeitos
desagregadores nas relações afetivas e familiares que terminavam por se pautar monetariamente, de forma
que a família se transformava, em algumas circunstâncias, em uma instituição que poderia ser trocada por
qualquer outra coisa: “em suma, os filhos se autonomizam, considerando a casa paterna como uma pensão,
que pode ser trocada por qualquer outra se não lhes agrada” (ENGELS, 2010, p. 182)
A situação da infância nas instituições de trabalho forçado, que funcionavam como prisões, expressava
as contradições entre capital e trabalho atenuando as manifestações da questão social e principalmente os
acentuados níveis de pauperização. Na Europa, por volta de 1840, com o fim dos subsídios para os pobres,
houve uma expansão do sistema de workhouses (MAURIEL, 2011, p. 47). Na capital da Inglaterra, 2% de toda
a população13 precisavam pagar por abrigo nos albergues noturnos, uma espécie de “assistência privada”, para
ter acesso a um lugar insalubre, repugnante e permeado por incertezas: “todas as manhãs, em Londres, 50 mil
pessoas acordam sem a menor ideia de onde repousarão a cabeça na noite seguinte” (ENGELS, 2010, p. 75).
O relato trágico das condições de vida de crianças, adolescentes e familiares, efetuado por Engels
(2010), se interpretado sem o devido cuidado, por uma abordagem senso comum, desprovido de maiores
problematizações, pode levar ao simplismo de considerar tais situações como negligência individual14 e produto
de ordem pessoal e moral, sobretudo porque a tendência da ideologia liberal, que sustenta a existência de ricos
e pobres como algo natural, desconsidera a dimensão estrutural das desigualdades.
Para Marx e Engels (1999), o primeiro ato histórico é a produção dos meios que permitam a satisfação
de necessidades elementares, como a alimentação, a moradia e o vestuário. Ou seja, para se viver em sociedade
algumas condições básicas, para além das necessidades alimentares, precisam ser satisfeitas, algo que não é
garantido universalmente para todas as pessoas no modo de produção capitalista.
Os abrigos, sob as determinações do capitalismo, são espaços em que a luta de classes se materializa,
como instituições assistenciais são “palco da luta de classes, da resistência da população às suas condições
de vida” (IAMAMOTO, 2002). Para qualquer análise sobre abrigo, instituição marcada por construções
ideológicas e por idealizações, é necessária, em primeiro lugar, identificar as contradições da concepção de
proteção e as práticas de larga tradição na história, como a ajuda, o favor, o cuidado, a formação, a repressão,
o controle e a violência. E, em segundo lugar, considerar a luta de classes, o racismo e o patriarcado como
elementos fundamentais das relações sociais, “o gênero, raça/etnicidade e as classes sociais constituem eixos
estruturantes da sociedade” (SAFFIOTI, 2015, p. 83).
Na ausência, provisória ou efetiva, de um ambiente familiar, a criança ou o adolescente, impossibilitado
de vender a sua força de trabalho ou sob as ameaças constantes à integridade física tem no abrigo um dos
espaços contraditórios de proteção15. Isto significa dizer que parte do capital alienado, no processo de produção,
retorna não para o trabalhador em si, mas para toda a sociedade, e um percentual do fundo público16, destinado
ao abrigo, permite à instituição atender provisoriamente necessidades que em princípio deveriam ser providas
pelas famílias, ou seja, “o capital alienado no intercâmbio da força de trabalho é transformado em meios de
subsistência, cujo consumo serve para reproduzir músculos, nervos, ossos, cérebro” (MARX, 1984, p. 157)
não apenas dos trabalhadores existentes, mas dos trabalhadores que estão por vir.
A necessidade de uma interpretação marxista sobre o processo de institucionalização de crianças e
adolescentes se justifica, pois os esforços empreendidos pela intelectualidade e as produções são canalizadas para
defender garantia da convivência familiar, geralmente, exprimem uma concepção demasiadamente idealizada
de família e do desenvolvimento individual, sem analisar os recursos insuficientes destinados para proteção
social (LIMA, 2015) e as condições nas quais essas famílias garantem a proteção de crianças e adolescentes.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n.º 8.069/1990, por exemplo, merece ser destacado. Muitas
das críticas a essa normativa, efetuadas por conhecedores ou não, interpretam de maneira incompleta o artigo 23,
que sinaliza, justamente, um aspecto relacionado às famílias da classe trabalhadora e seus estratos pauperizados.
A Lei, em oposição às práticas do período autoritário, prescreve que “a falta ou carência de recursos materiais
não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar” (BRASIL, 1990), isso, em outras
palavras, significa dizer que, como aconteceu em história recente, seja nas primeiras décadas do século XX, com
a criação do Primeiro Código de Menores, ou no período ditadura militar, com a Fundação Nacional de Bem
Estar do Menor, onde crianças e adolescentes eram institucionalizados compulsoriamente e sem autorização
de suas famílias pelo fato de serem pobres, com o ECA isso é teoricamente superado.
Contudo, o acolhimento ou abrigamento, mesmo que motivado por questões relacionadas à miséria,
ao desemprego ou à vivência em situação de rua dos pais e/ou responsáveis, não enseja, obrigatoriamente, a
separação da família e sua prole, pois essa medida de proteção deve garantir a convivência familiar e comunitária
sem retirar a guarda da família de origem17, salvo em algumas excepcionalidades.
Em seu processo de desenvolvimento, a política de assistência social, firmada a partir de iniciativas
estatais, só se realiza, de maneira mais ampla, quando o Estado assume progressivamente os encargos sociais
com a sua inscrição na Seguridade Social (que reúne as políticas de previdência, saúde e assistência social)
na Constituição Federal de 1988, na promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS, em 1993),
e depois com a criação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS, em 2004). A institucionalização
tardia da assistência, que ultimamente tem conjugado políticas de alívio da pobreza e a centralidade da família,
contribuiu para alicerçar a ideia de processualidade, provisoriedade e excepcionalidade do atendimento onde
cabe ao abrigo ou à entidade de acolhimento institucional atender também às crianças e aos adolescentes dos
segmentos pobres com outros direitos violados, pois quando se adota a medida protetiva de institucionalização,
isso não constitui necessariamente a suspensão do poder familiar18.
Aos/às profissionais dos abrigos e unidades de acolhimento cabe ousar nas propostas de trabalho e
questionar as desigualdades sociais, raciais e de gênero, expressar teoricamente uma determinada perspectiva
de direitos humanos e traduzi-la para a população usuária, se organizar para subverter o caráter explorador do
capital, produzindo conhecimento e subsidiando os movimentos sociais e conselhos de direitos. O movimento de
construção de outra ordem societária, em sua complexidade, consiste em superar os mecanismos de adestramento
do Estado burguês, impetrado em diversas instituições, que naturalizam e simplificam demasiadamente
as condições precarizadas de vida. Isso cria as condições para que todas as crianças e adolescentes sejam
introduzidas nas relações de troca e na lógica das mercadorias, ou seja, reiteram os “olhos amorosos com que
as mercadorias piscam ao dinheiro” (MARX, 1983, p. 98).
A partir das leituras de Marx (1984, p. 187) e da concepção consagrada em Iamamoto e Carvalho (1996),
subentende-se que as expressões da questão social na infância estão intimamente vinculadas ao processo
de acumulação capitalista e abarcam múltiplos fenômenos sociais. Essas expressões incorporam também
ambiguidades radicadas na noção liberal de proteção, pois do momento em que crianças e adolescentes, por
vicissitudes da vida, não frequentam a escola, transitam ociosamente pelas ruas, ameaçam, danificam e se
apropriam da propriedade privada ou cometem qualquer ato que, supostamente, atente contra a vida, passam
a ser objeto de perseguição, criminalização e de estigmas por parte da sociedade e do Estado. A visibilidade
de meninos e meninas de segmentos da classe trabalhadora e dos estratos pauperizados depende não só do
reconhecimento de suas necessidades e, consequentemente, da intervenção dos Poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário, mas do seu ingresso numa organização que privilegia a sociabilidade urbano- industrial e o
permanente direcionamento para sua adequação ao individualismo e às determinações do mercado.
Crianças e adolescentes, ao provocar a humanidade existente na sociedade, ao comover ou, até mesmo,
ao incomodar cotidianamente a burguesia e a classe média, confrontam a arrogância envernizada e o combalido
altruísmo, exigem (in)diretamente a necessidade da consolidação de políticas sociais universais e abrangentes.
A adoção dessas políticas pode traduzir a necessária ruptura com formatos caritativos e repressivos de larga
tradição, em maior ou menor grau, na história de cada país e sinaliza a prioridade de crianças e adolescentes
no atendimento prestado nas áreas de saúde, assistência social, educação, cultura, lazer dentre outras, bem
como na efetiva materialização das demandas sociais no orçamento público, na formulação e execução de
planos, programas e projetos sociais.
Os interesses sociais antagônicos presentes na esfera da reprodução social são explicitados não apenas
pela reivindicação política ou organização do segmento infantil-adolescente em movimentos sociais e em outras
instâncias da sociedade civil, mas também por meio da rebeldia, ou seja, da ruptura com formatos idealizados
de vida e da presença recalcitrante nos espaços urbanos, geralmente destinados às classes dominantes. A
persistência e a tenacidade desses segmentos de classe insistem em se afirmar com suas características
próprias, como pessoas livres, sujeitos de direitos e não apenas com uma cidadania amparada no mercado de
consumo. E mesmo diante da exploração, dos conflitos redistributivos, dos preconceitos, das opressões e das
crueldades e da exposição real das condições de vida desumanas, da fragmentada sociabilidade nas famílias,
instituições, ruas, praças e favelas, essas crianças e adolescentes, sujeitos fundamentais para continuidade da
civilização, ainda assim sorriem, resistem, sonham e lutam pela sobrevivência, para resgatar o olhar amoroso
da humanidade e, por fim, para que seus direitos e necessidades sejam garantidos.
Considerações finais
Seja na roda dos expostos, nas famigeradas workhouses, nos grandes internatos ou mais recentemente
nos abrigos, o processo de institucionalização acontece mediado pelas contradições da sociedade. O abrigo
cumpre uma função social no modo de produção capitalista e sua superação, como idealizam inúmeras
produções, é muito improvável nos marcos da sociabilidade burguesa. A faceta desigual das relações sociais
aqui constituídas desde o período colonial, com o início do modelo escravocrata, até as metamorfoses do
neoliberalismo, revela a culpabilização e a criminalização unilateral das famílias por não reunirem as condições
objetivas para suprir as necessidades elementares de crianças e adolescentes. E as formas de institucionalização
decorrem de vários fatores como o pauperismo, a busca desenfreada pela sobrevivência nas ruas, a violência
socialmente produzida, as assimetrias da sociabilidade burguesa e de profundas desigualdades sociais e raciais
no seio da sociedade contemporânea.
Essas instituições, geralmente, tão sucateadas contam com profissionais politizados e comprometidos
com a qualificação do atendimento, mas sem a produção teórica para subsidiá-los e carecendo de organização
coletiva que aponte para ampliação dos investimentos em políticas sociais e um horizonte de transformação.
Assistentes sociais com sólida formação profissional conhecem a realidade de vida de crianças, adolescentes e
famílias e embora sua atuação, mais imediata, não transforme concretamente a realidade, ela permite, ao menos,
incidir decisivamente em diversas construções coletivas, na formação humana, nos processos de organização
e de tomada de consciência dos segmentos que vivem e trabalham em abrigos.
Por fim, a organização desses segmentos de classe, a partir da produção e socialização do conhecimento
e das práticas que se inspiram no legado teórico e político de Marx, podem mostrar um dos caminhos possíveis
para a libertação das amarras que aprisionam a população usuária à dinâmica da proteção assistencial e aos
esquemas perversos de institucionalização. Usando uma expressão dos meninos e meninas que vivem nos
abrigos: “o papo é reto e tamo junto!” Portanto, uni-vos!
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RIZZINI, I. (org.). Vidas nas ruas: crianças e adolescentes nas ruas: trajetórias inevitáveis? Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2003.
SAFFIOTI, H. Gênero, Patriarcado violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
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SALVADOR, E.; ALVES, M. da C. L. O abandono dos direitos assistenciais do ECA na execução orçamentária. Revista Sociedade
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SANTOS, B. R. dos. Enfrentamento da exploração sexual infanto-juvenil. São Paulo: Canone, 2010.
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VEIGA, C. G. Crianças Pobres como Grupo Outsider e a Participação da Escola. Educ. Real, Porto Alegre, v. 42, n. 4, p. 1239-1256, 2017.
Notas
1
No texto, a expressão infância será utilizada abrangendo a situação de vida tanto de crianças como de adolescentes, pois embora
seja um conceito envolto numa transitoriedade, “se localiza na dinâmica do desenvolvimento social e corresponde a uma estrutura
social permanente” (PILOTTI, 1995, p. 25).
2
A Revista Serviço Social e Sociedade passou a ser publicada na versão on-line somente em 2009. E, para exemplificar, assistentes
sociais também contam com publicações pontuais em livros e artigos: Carvalho (1993), Barison (1997), Borgianni (2004), Batista
(2006), Nunes (2007) e Janczura (2008).
3
Dentre temas correlatos, os descritores utilizados nas buscas foram: “abrigo”, “acolhimento à criança”, “institucionalização”,
“orfanato”, “convivência familiar e comunitária”, “família substituta” e “família acolhedora” (MALFITANO; SILVA, 2014, p.
95).
4
Para maior aprofundamento ver Iamamoto e Carvalho (1996), Pastorini (2007), Castelo (2010) e os artigos da revista Temporalis,
em especial Paulo Netto (2001), também são fundamentais, assim como um autor não marxista, Robert Castel (1998), pela produção
de metamorfoses da questão social: uma crônica da sociedade salário.
5
“Wilhem Wood, 9 anos de idade, tinha 7 anos e 10 meses quando começou a trabalhar [...]. ‘Chega todos os dias da semana às 6
horas da manhã e para por volta das 9 horas da noite’. Portanto, 15 horas de trabalho para uma criança de 7 anos!” (MARX, 1983,
p. 197).
6
Análises imediatas e baseadas na aparência dos fenômenos identificam como “negligentes” as famílias que submetem crianças
a tal exposição, porém Marx (1984, p. 22) já realizava a crítica ao capital por “utilizar mulheres e moças nuas [...] tão de acordo
com seu código moral e, sobretudo com seu livro-caixa” (MARX, 1984, p. 22).
7
“O trabalho forçado para o capitalista usurpou não apenas o lugar do folguedo infantil, mas também o trabalho livre no círculo
doméstico, dentro de limites decentes, para a própria família (MARX, 1984, p. 23).
8
Estima-se que na primeira metade do século XVIII somavam-se na Europa 200 workhouses, que ofereciam alimento e moradia
em troca de trabalho (VEIGA, 2017, p. 1242).
9
Para Huberman (2008, p. 145), o processo de acumulação primitiva do capital é a manifestação explícita da violência, da usurpação
do sangue infantil e para além de envolver o comércio de seres humanos, nativos do continente africano, contemplou formas
bizarras de traição, suborno, massacres e mesquinharias.
10
O termo pobre significava que todas as pessoas que passavam necessidades: “naturalmente isto incluía os indigentes, mas não
apenas eles. Os velhos, os enfermos, os órfãos deviam receber cuidados numa sociedade que proclamava haver lugar para qualquer
cristão no seu âmbito [...] a mendicância era severamente punida; a vagabundagem era uma ofensa capital” (POLANYI, 1980, p.
94).
11
A existência das instituições asilares foi e continua sendo funcional aos ditames do capital.
12
Promovem, na maioria das vezes, uma formação destinada a instrumentalizar, mediocremente, o seu público-alvo, estabelecendo
uma espécie de resignação acerca das desigualdades e a passivização coletiva desses segmentos ou, resumidamente, a “neutralização
das organizações proletárias” (DIAS, 1999, p. 102).
13
Londres, além de capital comercial, aglomerava 2,5 milhões de pessoas (ENGELS, 2010, p. 67). Um abrigo construído em 1844,
com capacidade para atender trezentas pessoas, recebeu 2.740 desabrigados na noite de sua inauguração.
14
A análise sobre negligência não é simples e deve-nos levar a indagar não apenas as condições estruturais de vida das famílias,
pauperizadas ou não, mas o papel do cuidado entre homens e mulheres e as responsabilidades familiares. Azevedo e Guerra (1998)
têm uma descrição do significado de negligência e sinalizam que ela não se aplica às condições que estão para além da realidade
das famílias.
15
Que, por intermédio do fundo público ou de doações e a partir de uma dimensão assistencial e educativa objetiva a reprodução
social.
16
É importante ressaltar que nos abrigos mantidos por entidades filantrópicas, o financiamento é realizado por meio dos subsídios
de igrejas, por campanhas de doação, bazares e pela contribuição solidária de determinados indivíduos da sociedade.
17
Art. 28 - “A guarda é condição a colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente
da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei” (BRASIL, 1990).
18
De acordo com o ECA, art. 92 (1º parágrafo) “o dirigente de entidade que desenvolve programa de acolhimento institucional é
equiparado ao guardião, para todos os efeitos de direito” (BRASIL, 1990), mas isso não implica em destituição do poder familiar.
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