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AMBIENTE

Crónicas do meu jardim


Parte 3: Os répteis
Texto e fotografia | Carlos Steinwender
[email protected]

Apesar de, muitas vezes, serem olhados com repugnância ou medo, quase sempre devido a crenças e mitos infundados
que os tendem a rotular de seres perigosos e até maus, os répteis constituem um grupo muito especial de animais que
povoa, as mais das vezes sem ser notado, os nossos jardins, hortas e parques. Conhecê-los, mas sobretudo aprender a
conviver pacificamente com eles, é o desafio que deixamos aos leitores de mais esta crónica.
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«Lagarto, lagarto, lagarto!» sobretudo as serpentes (leia-se: todo e qualquer bicho que, por
Ao longo dos séculos, a proximidade das comunidades huma- manifesto azar da Criação apresente um corpo com característi-
nas ao mundo natural acabou por entronizar, sob a forma de cas similares ao de uma cobra e, por isso, se suspeite terrivelmen-
adágios e ditados, algumas espécies ou grupos de animais cujas te venenoso e mortal, mesmo quando não é, facto que acontece
características morfológicas ou peculiaridades biológicas, de em 99,9% das situações), são encarados com repulsa e desenca-
algum modo, as destacavam das demais. Animais tidos como deiam, invariavelmente, um sentimento de aversão que termina,
«nocivos», pelo facto de serem considerados peçonhentos ou frequentemente, com o bicho-homem (perdão, Homo sapiens
venenosos tornaram-se alvos primordiais. Este processo de per- sapiens, expressão latina que significa homem duplamente
sonificação de comportamentos e características naturais foi sábio) a arremeter selvaticamente contra o bicho-cobra com
particularmente nefasto em espécies tradicionalmente encara- qualquer objeto contundente que tenha à mão. O resultado é,
das como repelentes e asquerosas, como é o caso dos répteis, quase sempre, o mesmo: bicho-homem: 1/ bicho-cobra: 0!
sobretudo as serpentes, cuja aura malévola, fruto da associação Enquanto criança, vivi boa parte da meninice nas mui nobres e
bíblica ao pecado original, se enraizou profundamente no ima- rurais terras de Lousada. Durante esses anos, como bom rapazi-
ginário cristianizado das populações rurais. Expressões como: nho que era, deitei sempre ouvidos aos mais velhos, sobretudo
«lagarto, lagarto, lagarto!»1, «dizer cobras e lagartos»2, «cobra, ao sacro compêndio oral de dogmas e preceitos alicerçados na
quando entra na água, deixa o veneno em terra»
ou «andar como a cobra que perdeu a peçonha»3,
são expressões que ilustram o modo como a cul- Os sardões (Lacerta
tura e, de certa forma, o fabulário popular, apro- lepida), quando
juvenis, apresentam
priou, nem sempre da forma mais sábia, o modo ocelos amarelos e azuis
de vida e as peculiaridades biológicas dos seus no dorso e flanco.
vizinhos de sangue frio4.
Todavia, a relação que os seres humanos, neste
caso, os de sangue luso desenvolveram com as
diferentes espécies de répteis varia consideravel-
mente. Se os cágados são olhados com simpatia,
e os camaleões com curiosidade inofensiva (sim,
em Portugal também existem populações selva-
gens de cágados e camaleões), os lagartos, mas

1
Expressão tradicionalmente utilizada para afugentar o mau agoiro e os espíritos malignos. Em alguns locais do país, a utilização de amuletos produzidos a partir de partes de corpos de répteis (ex.
cabeças de víboras) era considerado eficaz contra o mau-olhado.
2
Expressão usada para classificar como ofensivas as palavras proferidas por alguém acerca de outra pessoa, numa alusão clara à língua das serpentes que, por ser bifurcada, é conotada com a
maledicência.
3
Em 1845, a Revista Universal Lisbonense (Tomo IV:420) publicava um pequeno texto sobre Superstições Populares no Minho, onde se referia que a cobra quando vai beber deixa o veneno sobre uma
pedra: se alguém por peça lhe rouba a pedra, fica a cobra em uma contínua efervescência e desespero, e d'aqui vem o rifão de que usam quando alguém anda inquieto, anda como a cobra que perdeu a
peçonha.
4
Na verdade, o termo sangue frio pretende designar um grupo de animais que é incapaz de regular autonomamente a temperatura do corpo, dependendo, para isso, de fontes de calor externas, como
o sol, razão pela qual algumas destas espécies, sobretudo as cobras, procuram o asfalto das estradas para se termorregularem. Infelizmente, este comportamento acabou por se converter num fator
adicional de mortalidade das serpentes, a ponto de a crença popular ter fixado que «cobra que quer morrer, à estrada vem ter».
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as lagartixas e os sardões, cuja extraordinária capacidade de li-


O lagarto-de-água (Lacerta schreiberi) é uma espécie bertar a cauda quando ameaçados, e posteriormente regenerá-
endémica da Penísnula Ibérica.
-la (autotomia), era, per si, prova irrefutável da associação destes
bichos ao demo...
Hoje, jardineiro-hortelão, e volvidas umas quantas décadas de
autodidatismo em matéria de biologia reptilária, considero-me
relativamente esclarecido, pelo menos a ponto de saber que
os licranços, contrariando o velho ditado, são, na verdade, pe-
quenos lagartos absolutamente inofensivos que, para além de
não possuírem veneno, perderam as patas durante o processo
evolutivo, adaptando-se a uma vida entre o subsolo e a densa
vegetação rasteira onde, para contentamento de qualquer jar-
dineiro, se alimentam de caracóis, lesmas e minhocas. Não se
estranha, por isso, que em jeito de redenção, tenha aprendido a
sábia e intemporal expressão: «diz que...» A coberto do anoni- partilhar o meu jardim com estes pequenos seres, encorajando
mato, a Senhora e o Senhor «diz que» teceram toda uma teia a sua permanência através da colocação de chapas de zinco e
de verdades fantasiosas que diligentemente aprendi e decorei. plásticos pretos em alguns pontos do quintal, uma vez que os li-
A saber: os sardões (e aqui se incluíam também os lagartos- cranços adoram recolher-se debaixo destes objetos que funcio-
-de-água), quando uma mulher em período de amamentação nam como coletores de calor. É um processo onde todos ficam
por eles passava, bufavam e atiravam-se elas à procura do leite. a ganhar... ou quase todos, porque as lesmas e caracóis que, até
Porque é que os lagartos gostavam de leite e como é que sa- então devassavam, impunemente, as minhas alfaces primaveris,
biam sequer que a senhora que candidamente passava no lo- sempre me pareceram relutantes em acolher a nova vizinhança.
cal estava a amamentar, foram dúvidas que os mais
velhos pacientemente remiram do meu espírito Ao contrário
da crença
utilizando todo um arsenal de argumentos que, aos popular,
meus olhos, tinham toda a credibilidade científica, o licranço
(Anguis fragilis)
tais como: aos sardões o leite dá-lhes força ou ainda é totalmente
os sardões são bichos do diabo... e estava tudo dito! inofensivo
para o
Mas se havia bicho a odiar, para além dos sardões e Homem.
das clássicas cobras (cujas diferentes espécies se re-
sumiam às «castanhas», «verdes» e «escuras», cada
uma com dois corações e litros de veneno à espera
de nos apanhar desprevenidos) os licranços, descri-
tos como a pior de todas as cobras, eram a encar-
nação viva da peçonha. E de tal modo se acreditava
nisso, que o ditado se firmou: «ferradela de licranço,
não tem cura nem descanso». Por isso, um bom li-
cranço era sempre um licranço morto. Como aliás,
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Um jardim com répteis


Atrair répteis a um jardim é um processo lento que, na maio-
ria das vezes, depende tanto do que fazemos como do que não
fazemos. Isto é, de nada serve ter um resort de luxo para rép-
teis (leia-se: um muro de pedra, ensolarado, repleto de buracos e
fendas) onde abunda o alimento (leia-se: buffet de insetos) se,
depois, desatarmos a pulverizar freneticamente todos os re-
cantos com herbicidas e pesticidas, matando plantas e insetos,
nomeadamente aqueles de que as lagartixas, frequentemente a
vanguarda da colonização réptil, se alimentam. Mas, se atrair la-
gartixas (localmente designadas sardaniscas ou sardoniscas) não
é difícil, atrair sardões ou lagartos-de-água (estes últimos vivem
geralmente próximos de linhas de água, daí o nome) constitui
um desafio de monta, ao alcance apenas dos mais devotados
eco-jardineiros. Desde logo, estes animais necessitam de mais O licranço (Anguis fragilis) é um pequeno lagarto sem
espaço vital que as lagartixas, pelo que carecem, não apenas de patas que se alimenta de caracóis e lesmas.
diversos locais com abrigos adequados (muros ou paredes com
frestas e buracos, amontoados de pedra, pilhas de lenha, tudo sam de alimento em abundância e qualidade. A ementa, que in-
sempre com uma boa dose de exposição solar) mas também clui petiscos au naturel, como moscas, mosquitos, escaravelhos,
áreas sossegadas e naturalizadas, como sebes e áreas de vege- gafanhotos, aranhas, centopeias, caracóis e, quando a ocasião
tação densa que sirva de refúgios e, se possível, estrumeiras ou propícia, até ratos, é um hino no combate às pragas de qualquer
cantinhos com areia para a postura dos ovos. Finalmente, preci- jardim ou horta e, por isso, razão de monta para qualquer jardi-

Cobra-rateira (Malpolon
monspessulanus) é um exímio predador
e uma espécie fundamental no
controle de roedores.
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Juvenil de cobra-de-água-de-colar (Natrix natrix) com Apesar do seu ar ameaçador, a cobra-de-água-de-colar (Natrix
o característico colar branco que identifica a espécie. natrix) não possui veneno e é inofensiva para o Homem.

neiro lhes estender a passadeira vermelha e exclamar, sem pejo: colheitas, quem é? Vejam lá se gostam da senhora rateira com 1,5
mi casa es tu casa! metros de apetite e que adora ratinhos fofinhos e gordinhos...) pelo
Das diversas espécies de répteis que ocorrem na região de Lou- que tento não interferir. Os roedores atraem as cobras e estas,
sada, sete são inquilinas habituais do meu jardim. Confesso que diligentemente, mantêm-nos debaixo de olho e sob apertado
não foi fácil seduzi-las a fixarem-se, sobretudo às serpentes, sem- controlo. Quando os ratos escasseiam, as serpentes mudam-se
pre esquivas e desconfiadas para com o género Homo, nomea- para regressarem logo que o self service de roedores volte a es-
damente da subespécie enxadas horribilis, mas depois de alguns tar à disposição. Resultado? Tornei-me um mero espectador na
anos a aprimorar os espaços naturais do jardim (leia-se: deixar luta quotidiana pela sobrevivência tentando, qual David Atten-
pacientemente a natureza seguir o seu curso) lá consegui conven- borough cá da terra, desmontar velhos mitos e a promover a sã
cer espécies como o sardão (Lacerta lepida), o lagarto-de-água convivência entre espécies (leia-se: convencer os anciãos a mirar
(Lacerta schreiberi), a lagartixa-de-bocage (Podarcis Bocagei), o li- um licranço a menos de um metro de distância sem recorrer à om-
cranço (Anguis fragilis), a cobra-de-água-viperina (Natrix maura), nipresente enxada).
a cobra-de-água-de-colar (Natrix natrix) e a cobra-rateira (Malpo-
lon monspessulanus) a instalarem-se. As cobras, nomeadamente A lagartixa-de-Bocage (Podarcis Bocagei) é uma das
a cobra-rateira5, são particularmente bem-vindas. Não que não espécies de répteis mais comuns na região de Lousada.
aprecie a presença do rato-do-bosque ou do rato-do-campo
que, persistente e meticulosamente se dedicam a roer as minhas
preciosas colheitas de batatas, cebolas e cenouras, mas confesso
que sou um fã do equilíbrio ecológico no meu pequeno éden
(leia-se: olá ratinhos, então quem é que adora mordiscar as minhas

5
Das espécies de serpentes que ocorrem no concelho de Lousada, a cobra-rateira é a única que
possui veneno. Todavia, não é uma espécie perigosa para os seres humanos pelo facto de ser uma
cobra opistóglifa, isto é, possuir os dentes inoculadores de veneno localizados no final da cavida-
de bucal. Por essa razão, quando morde, a cobra-rateira não consegue injetar veneno na presa.

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