As Fontes Do Processo Penal

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António da Costa Leão – Licções de Direito Processual Penal – 2024

4. As fontes do Processo Penal

A teoria da Lei Processual tem particularidades e soluções diferentes da Teoria da Lei


Penal. O sistema de fontes do Direito Processual Penal é o sistema tradicional de fontes
organizado para o Direito estadual num modelo hierárquico (a pirâmide normativa) de fontes,
com a Constituição no topo, e depois as restantes fontes secundárias.

4.1. A relevância constitucional do Processo Penal


4.1.1. A Constituição Penal

O conceito “Constituição Penal” apela a uma ideia material e não meramente formal
de Constituição, “indispensável para legitimar o poder punitivo do Estado”1.
A Constituição Penal pode reduzir-se, no essencial, às normas constitucionais que se
referem directamente ao Direito Penal, como, por exemplo, as constantes dos artigos 59 a 61
da CRM, e Processual Penal, como, por exemplo, as constantes dos artigos 62 a 68 da CRM,
bem como aos princípios gerais, como o vertido no artigo 56/2 da CRM, em que a doutrina
ancora o princípio da necessidade da pena.

4.1.2. A articulação entre as garantias penais substantivas e as garantias processuais

O legislador contempla garantias substantivas como garantias processuais porque


existe uma relação entre o direito substantivo e o direito processual.
Como garantia processual fundamental, a presunção de inocência (art.º 59/2 da CRM
e art.º 3 do CPP) – o julgamento não serve para apreciar a inocência, mas sim para apreciar
uma acusação.
Outras garantias processuais são o princípio do contraditório (que garante que todas
as partes envolvidas, sobretudo o arguido, tenham a oportunidade de serem ouvidas,
apresentar suas provas e argumentos, e contestar as alegações apresentadas pela outra parte
no processo, como uma base fundamental para garantir um julgamento justo e equitativo), o

1
Sobre a natureza o o conteúdo da Constituição Penal, v. Maria Fernanda Palma: Direito Constitucional Penal,
Almedina, Coimbra, 2006.
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princípio do juiz natural (em que é a lei que determina qual o tribunal que julga o caso) e a
tipicidade (por exemplo, ao determinar se o crime é público ou particular).
Verifica-se que o regime do Direito Penal e do Processo Penal não é totalmente
coincidente. Para além das diferenças acima mencionadas, em Processo admite-se a
integração de lacunas (art.º 12 do CPP), e em Direito Penal, cum granno salis, não. E, cum
granno salis, porquê? Porque a proibição da analogia em Direito Penal vale para a analogia
contra reum ou in malem partem, mas não favore reum ou in bonam partem.

4.2. Processo penal e presunção de inocência

A CRM consagra, no art.º 59/2 a presunção e inocência do arguido (cfr. art.º 3 do CPP).
A presunção de inocência faz-se dentro de um estatuto processual e fá-lo para obrigar o MP
a provar a culpa do arguido. O arguido não tem de provar a sua inocência, porque beneficia
deste estatuto, sendo a prova da sua culpa um ónus a cargo da acusação.
A forma prevista na CRM para provar a responsabilidade criminal é o trânsito em
julgado da sentença criminal, o que quer dizer que o arguido é considerado inocente até ao
proferimento da sentença. O Processo Penal é assim a única forma juridicamente admissível
para derrogar a presunção de inocência.

4.3. Lei, doutrina e jurisprudência

Do ponto de vista do conceito de fontes de Direito, em matéria penal, só a lei é na


verdade uma fonte de Direito. Contudo, a doutrina e a jurisprudência têm também uma
importância significativa no Processo Penal, sendo por isso reconhecidas, em sentido lato,
como tal.
A doutrina não é fonte de Direito, mas tem uma especial particularidade, porque o
entendimento que produz, são conhecimentos autónomos prévios e não influenciados pelo
caso concreto. Assim, pode ter um peso persuasivo, mas não vinculativo. Dela não resulta
força geral e abstracta para a resolução dos casos.
A jurisprudência não é igualmente fonte de Direito, porque não produz regras gerais
e abstractas com autoridade para todos os agentes jurídicos. A jurisprudência é apenas
obrigatória para os sujeitos processuais que participam no processo em que a decisão é
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tomada. A excepção é a jurisprudência do Conselho Constitucional, em sede de fiscalização


sucessiva abstracta da constitucionalidade.
Não existe, pois, entre nós, um sistema de precedente, muito menos dentro do
próprio tribunal. Uma decisão do tribunal superior é valida para o tribunal a quo (recorrido),
apenas dentro daquele concreto processo, mas nunca fora dele.
Problema: o art.º 143 da CRM, na sua alínea d), ainda fala em “assentos do Tribunal
Supremo, os acórdãos do Conselho Constitucional, bem como as demais decisões dos outros
tribunais a que a lei confira força obrigatória geral”. Em bom rigor, hoje, só os acórdãos do
Conselho Constitucional, em sede de fiscalização preventiva e em sede de fiscalização
sucessiva abstracta têm “força obrigatória geral”.
O constituinte “esqueceu-se” de adequar este art.º 143 da CRM com o novo art.º 224:
Artigo 224
(Definição)
1. O Tribunal Supremo é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais.
2. O Tribunal Supremo garante a aplicação uniforme da lei na esfera da sua jurisdição
e ao serviço dos interesses do povo moçambicano.
(…)
E nos casos de uniformização de jurisprudência? Vejamos o seu regime.

Recurso para a Fixação de Jurisprudência


Artigo 494
(Fundamento do recurso)
1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal Supremo proferir dois
acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas,
cabe recurso para o plenário do Tribunal Supremo, do acórdão proferido em último lugar.
2. Cabe igualmente recurso, nos termos do número 1, quando um tribunal superior de
recurso proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo ou de diferente
tribunal superior de recurso ou do Tribunal Supremo, e dele não for admissível recurso
ordinário, excepto nos casos em que a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de
acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal Supremo.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando,
durante o intervalo da sua prolação, não tiver sido introduzida qualquer modificação
legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito
controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito em
julgado, mas presume-se o trânsito, salvo se o recorrido alegar que o acórdão não transitou.
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5. Podem recorrer, nos termos deste artigo, o arguido, o assistente ou as partes civis,
sendo, porém, obrigatório para o Ministério Público.

Artigo 495
(Interposição e efeito)
1. No requerimento de interposição do recurso, o recorrente identifica o acórdão com
o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da
publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
2. O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.
Artigo 502
(Eficácia da decisão)
1. Sem prejuízo do disposto no número 3 do artigo 500, a decisão que resolver o
conflito tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto e nos processos cuja
tramitação tiver sido suspensa nos termos do número 2 do artigo 4982.
2. O Tribunal Supremo, conforme os casos, revê a decisão recorrida ou reenvia o
processo.
3. A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os
tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência
fixada naquela decisão.

Da análise deste regime se conclui que o acórdão uniformizador de jurisprudência não


é fonte de Direito para o sistema jurídico em geral, porque dele não resulta uma obrigação
de acatamento, mas tão só um dever acrescido de fundamentação das “divergências relativas
à jurisprudência fixada” anteriormente (art.º 502/3).
Ainda assim, temos que considerar que apesar de a jurisprudência dos tribunais
superiores não ter efeito vinculativo, acaba, inevitavelmente por ter um efeito persuasivo.
Deste modo, sabe-se que a probabilidade de uma decisão ser confirmada ou negada será
naquele sentido, daí que muitas vezes seja importante conhecer as decisões do Supremo.
Em suma, a jurisprudência não é fonte de Direito3, mas é muito relevante porque ao
marcar tendências, acaba por delimitar o campo de aplicação. Tem uma eficácia
argumentativa e persuasiva, e por isso acaba por ter uma relevância grande para a
interpretação do Direito vigente.

2
Tendo sido, porém, anteriormente reconhecida a oposição de julgados sobre a mesma matéria de direito, os
termos do recurso são suspensos até ao julgamento daquele em que primeiro se tiver concluído pela oposição
(art.º 498/2).
3
Com a excepção assinalada aos Acórdãos do CC.
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4.4. A interpretação da lei processual penal

Sendo a lei a principal fonte de Direito Processual Penal é imperativo que esta seja
interpretada. A interpretação da lei processual penal – a determinação do sentido da norma
– não é de natureza diferente da que se opera noutras áreas, ou seja, da interpretação das
restantes normas do ordenamento jurídico. Por isso, são de aceitar, neste âmbito, os cânones
gerais da interpretação jurídica constantes do Código Civil (cfr. Germano Marques da Silva).
No entanto, é preciso contextualizar esta interpretação. A interpretação da lei
processual penal é feita no ambiente de um processo conflitual, e por isso, temos que ter
cuidado com as interpretações restritivas para não destruir o equilíbrio entre os deveres.
Assim sendo, conclui-se que para fazer a interpretação da lei processual penal temos que ter
em conta certos referentes e limites, para além daquilo que resulta das técnicas
hermenêuticas de interpretação.

Referentes a ter em conta:


A densificação dos valores constitucionais: Com uma Constituição Penal relativamente
forte como a nossa, a interpretação deve densificar os valores constitucionais (interpretação
conforme)4.
Processo Penal conflitual: a interpretação deve respeitar a concordância entre o
estatuto do arguido e do ofendido. A CRM não garante só os interesses do arguido, mas
também a participação do ofendido. Assim, devemos ter sempre em mente que ao proteger
o arguido, não estamos a desproteger o ofendido. Existem estatuto de sujeitos com
pretensões opostas, mas ambos têm protecção constitucional.
Concordância prática entre os interesses em conflito: o modelo adoptado no código
não é um modelo de tudo ou nada. Aquilo que o código faz é um exercício de concordância
prática entre interesses conflituantes em que uns cedem em certa medida, mas não inutilizam
os outros.

4
Veja-se o que se diz no preâmbulo deste novo CPP: “Sendo certo que o processo penal é direito constitucional
aplicado, impõe-se que a fruição dos direitos de cidadania na sociedade democrática e plural que estamos a
consolidar, tanto no que concerne a direitos individuais como a deveres para com a comunidade, deve constituir
a bússola orientadora do novo quadro jurídico-penal da coeva sociedade moçambicana”.
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Princípio da confiança: O Direito Processual Penal está previsto para que os sujeitos
processuais saibam o que vai acontecer, de modo que o processo não pode viver de normas
de condutas sociais desconhecidas até ao momento, pondo em causa o principio da
confiança. Significa que se devem evitar as interpretações que apresentem resultados de
surpresa, que não se podiam antever a partir da lei e das decisões jurisprudenciais. Muitas
vezes a doutrina e a jurisprudência confundem aquilo que existe, com aquilo que devia existir.

Relativamente a esta matéria discute-se ainda a admissibilidade da interpretação


extensiva no âmbito do agravamento da posição processual do arguido. O princípio da
legalidade em matéria penal proíbe em determinado âmbito o uso da interpretação extensiva
(art.º 7 do CP); coerentemente, terá que entender-se a mesma proibição em situações
tendentes ao agravamento da situação processual do arguido.

Contudo, é ao nível da integração de lacunas que a questão se coloca com maior


acuidade.

4.5. A integração de lacunas: alcance e limites

Uma lacuna corresponde a uma ausência de solução. É possível encontrar lacunas em


Direito Processual Penal? É a própria lei que o regula.

Artigo 12
(Integração de lacunas)
Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por
analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal
e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.

Sobre esta questão há desde logo, que distinguir as normas que agravem a posição
juridico-processual do arguido das restantes. Quanto a estas, rege o art.º 12, segundo o qual
a integração de lacunas deverá ser feita prioritariamente por recurso a normas do CPP
(analogia legis), e apenas quando tal não seja possível se admite o recurso ao Código de
Processo Civil, ou, em última instância, aos princípios gerais do processo penal, como fontes
integradoras de lacunas e, consequentemente, como fontes de Direito.
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Quanto às normas que agravem a posição juridico-processual do arguido, dois


argumentos restringem a possibilidade de recurso à analogia: (1) o recurso ao princípio da
legalidade, na medida em que a CRM e a lei penal proíbem o recurso à analogia para
incriminar ou atribuir responsabilidade penal. Neste sentido, seria também vedado o recurso
à analogia em situações em que tal se traduza no agravamento da situação processual do
arguido; (2) por outro lado, o facto de se poder considerar que a norma que restringe o direito
de defesa do arguido é uma norma excepcional, por força da aplicação dos princípios
constitucionais relativos a direitos, liberdades e garantias. Assim sendo, e de acordo com o
art.º 11 do CC, as normas excepcionais não comportam aplicação analógica.

Independentemente disso, pode acontecer que o Código não regule uma situação,
mas isso não corresponda a uma lacuna, mas a uma decisão legislativa. Por exemplo, o
legislador não acolhe em Processo Penal a litigância de má-fé, porque esta é incompatível
com o princípio da defesa e a presunção de inocência. Aqui não temos uma lacuna, mas uma
decisão legislativa.

As “soluções” fechadas imunes a lacunas

Nos art.ºs 134 a 139 temos o seguinte regime: “A violação ou a inobservância das
disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for
expressamente cominada na lei” (art.º 134/1).

Podem existir provas proibidas;


As nulidades existem apenas nos casos em que estão previstas na lei;
As provas proibidas têm um regime; e as nulidades outro.

Artigo 156
(Legalidade da prova e métodos proibidos de produção)
1. São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
2. São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção
ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
3. São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo
que com consentimento delas, mediante: a) perturbação da liberdade de vontade ou de
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decisão através de maus-tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer


natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; b) perturbação, por qualquer
meio, da capacidade de memória ou de avaliação; c) utilização da força, fora dos casos e dos
limites permitidos pela lei; d) ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com
denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto; e) Promessa
de vantagem legalmente inadmissível.
4. Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas
mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
5. Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime,
podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo
(cfr. v.g., art.º 194 do CP).
Artigo 135 (Nulidades insanáveis); Artigo 136 (Nulidades dependentes de arguição).
Quando existem uma violação que não é nenhuma das duas, o que temos? Uma
irregularidade nos termos do art.º 139/2.
Artigo 139
(Irregularidades)
1. Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se
refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos
interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos 3 dias seguintes a contar
daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em
algum acto nele praticado.
2. Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no
momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do
acto praticado.

Isto quer dizer que o sistema é fechado: ou há uma nulidade, ou se o legislador não
declara, temos uma mera irregularidade.
Assim, se uma lacuna é uma omissão de uma solução jurídica, e o sistema é um sistema
fechado em que as nulidades estão previstas expressamente, o que não estiver previsto
expressamente é uma irregularidade, o que quer dizer que não há lacuna. Deste modo, o art.º
12 tem de ser correctamente entendido. Só há uma lacuna quando não há solução, pelo que
o art.º 12 só será aplicável perante uma ausência de regulação que configure efectivamente
uma lacuna.
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4.6. Aplicação da lei processual penal no tempo

A vigência temporal da lei processual penal é tratada no art.º 9 do CPP.


A regra é a de que a lei processual se aplica imediatamente aos processos a instaurar
e aos actos a praticar nos processos pendentes; não se aplica nunca aos actos já praticados
anteriormente, cuja validade deve ser julgada de harmonia com a lei revogada (cfr. art.º 12
do CC).
Há, no entanto, duas excepções previstas no art.º 9/2. Quando da sua aplicabilidade
imediata possa resultar:
(1) o agravamento da situação processual do arguido. Se o momento da prática do
crime é o que releva para efeitos de aplicação do princípio da legalidade em Direito Penal, a
lei que se aplica é a lei vigente no momento da prática do crime, ou outra posterior que seja
mais favorável ao arguido (Fernanda Palma);
(2) a quebra de harmonia e unidade dos vários actos do processo, casos em que é de
aplicar a lei vigente no momento em que se inicia o processo.

O agravamento da situação processual do arguido. Leis processuais penais materiais.


Independentemente da questão de saber se a excepção se ancora:

– no princípio jurídico-constitucional da legalidade em matéria penal [art.º 29.º/1 CRP]


(FIGUEIREDO DIAS); ou se diferentemente,
– decorre das restrições à diminuição do direito de defesa do arguido [art.º 32.º/1 CRP],
frustrando as expectativas de defesa relativamente à admissibilidade de certos actos de
defesa que ficariam prejudicados pela aplicação imediata da nova lei (G. MARQUES DA SILVA),
– o que está em causa são os efeitos materiais da lei processual. Se a lei tem efeitos sobre
a penalidade concreta aplicável ao arguido, ela deve ser considerada de natureza material
[ainda que também seja de natureza processual]. Assim sendo, o princípio é o da aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável e a proibição de aplicação retroactiva da lei mais
gravosa para o arguido. Donde se pode ainda concluir que a lei nova é de aplicação
imediata desde que mais favorável ao arguido (NORONHA E SILVEIRA).
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Casos específicos:
a) as normas sobre prescrição do procedimento criminal, já que constituem “causa de
afastamento da infracção”, são de aplicação retroactiva quando mais favoráveis ao
arguido;
b) relativamente às normas sobre condições de procedibilidade, verificam-se algumas
divergências. Em termos gerais é de aplicar a lei que concretamente se mostre mais
favorável ao arguido e recusar a aplicação retroactiva da lei mais gravosa (G. Marques da
Silva).

Topicamente:
A lei processual penal, quando surge, é de aplicação imediata, mas salvaguarda os
actos praticados na vigência da lei antiga. Vigora aqui o princípio tempus regit actum (os actos
regem-se pela lei em vigor à data da sua prática). Assim, a lei que permite questionar a
validade dos actos, é a lei está, ou estava, em vigor aquando da prática do acto.
Por ser de aplicação imediata, a lei processual aplica-se mesmo aos processos em
curso, tendo uma dose de retroactividade: aplica-se a processos que se iniciaram antes de
essa lei entrar em vigor. Se uma certa lei admitia o recurso do despacho de pronuncia e entra
em vigor, imediatamente, outra que retira esse direito; e se os sujeitos iniciaram o processo
com esse horizonte, a regra de aplicação imediata sofre uma contenção, passando a aplicar-
se apenas aos casos futuros, por restringir direitos dos sujeitos processuais.
Este critério geral tem duas excepções, o que quer dizer que a lei não se aplica aos
processos iniciados anteriormente em duas situações: (1) quando o recurso à nova lei resulte
num agravamento sensível e evitável da situação processual do arguido; ou (2) quando o
recurso à nova lei conduz a situações que impliquem desarticulação processual e quebra da
harmonia e unidade dos vários actos do processo (art.º 9/2).

4.7. O problema da alteração da natureza do crime

O caso mais complexo é o das repercussões processuais em virtude da mudança da


natureza do crime, situações para as quais não há solução unânime na doutrina. Temos dois
conjuntos de situações: (1) um crime público passa a crime semipúblico; (2) um crime
semipúblico ou particular passa a crime público.
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1) Um crime público passa a crime semipúblico

Se o processo não se iniciou, passa a haver um regime em que é necessária queixa e


se torna admissível a desistência. Tudo o que seja acto processual se verificará ao abrigo da
lei nova. Assim, aplicar-se-á o regime do crime semipúblico;
Se à data da alteração da lei que converte um crime público em semipúblico ou
particular, o processo já estiver instaurado, o processo mantém-se válido, já que a “nova
lei processual [não] pode afectar a validade dos actos processuais validamente praticados
segundo a lei da época em que o foram” [Ac. STJ, de 20/06/84].
Segundo G. Marques da Silva há que distinguir:
– se o processo se encontra ainda na fase da instrução, e o crime passou a ser particular,
não pode o MP deduzir acusação sem prévia queixa;
– se o processo já se encontra na fase de audiência preliminar ou de julgamento e o crime
de público passou a semipúblico ou particular, essa alteração já não tem efeitos no que
respeita à validade da acusação. Contudo, a nova natureza do crime tem implicações,
nomeadamente no que respeita ao direito de extinção do procedimento pela via da
desistência de queixa [“é de considerar relevante o perdão, entretanto concedido pelo
ofendido, e de arquivar o processo sem necessidade de julgamento” Ac. TRP, de
02/05/84].
Ou seja, se o processo já começou, o processo continua ao abrigo da lei antiga, mas
deve passar a ser admitida a desistência, caso tenha existido queixa, já que se assim não fosse,
gerar-se-iam desigualdades no tratamento dos processos. Se não houver queixa, não deverá
ser possível a desistência. Para além disto, como a desistência é facultativa, quer dizer que
poderá nem vir a ser utilizada. Em suma, permite-se que o processo iniciado na lei antiga
adopte um pressuposto da lei nova – a desistência.

2) Um crime semipúblico ou particular passa a crime público

Se o processo não se iniciou, este pode iniciar-se com a lei nova e com o regime do
crime público com apenas uma excepção: o crime era semipúblico, conhecendo os factos e
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os autores, o ofendido tinha 2 anos, ou um ano, consoante os casos (cfr. art.º 155/2 do CP),
para apresentar a queixa.
Se não o fez, deixa de ser possível, enquanto vigorar a lei antiga, apresentar queixa.
Se o direito de queixa caducou, antes da entrada em vigor da lei nova, a situação jurídica
caducou e não pode ser repristinada. Se assim não fosse gerar-se-ia uma enorme
desigualdade.
Se o processo já começou, ou se retira ao ofendido o direito de desistir e o processo
continua como público, ou se reconhece a possibilidade para desistir, mas daquilo que já é
um crime público. Nenhuma solução é boa. Frederico da Costa Pinto considera que apesar da
conversão do crime em crime público, aquele processo que começou bem, com queixa ao
abrigo do regime tipo de crime, deve permitir a desistência. Ou seja, a conversão do crime
não deve retirar ao ofendido a possibilidade de retirar queixa. Em todo o caso, nestes casos,
o melhor seria que legislador tivesse criado um regime transitório. Não o fez.

4.8. Princípio do juiz natural ou legal [competência do tribunal]

De acordo com o art.º 65/4 da CRM, “Nenhuma causa pode ser retirada ao tribunal
cuja competência se encontra estabelecida em lei anterior, salvo nos casos especialmente
previstos na lei”. Significa que, a lei que regula a competência é a lei do momento da prática
do crime (Noronha Silveira). Tem por finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou
tribunal para resolver um caso determinado.
Esta garantia deverá ser relacionada com a estabelecida também pelo art.º 222/6 CRM
[proibição dos tribunais de excepção], que proíbe “a existência de tribunais com
competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes”, à excepção dos
tribunais militares durante a vigência do estado de guerra (cfr. art.º 223 da CRM).

4.9. A aplicação da lei processual penal no espaço

Sobre a aplicação da lei processual penal no espaço dispõe o art.º 10 do CPP,


estatuíndo que a lei processual penal é aplicável em todo o território moçambicano (principio
da territorialidade) e, bem assim, em território estrangeiro nos limites definidos pelos
tratados, convenções internacionais e regras do direito internacional.
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O princípio do auxílio jurídico inter-estadual em matéria penal que é identificável


nesta matéria tem concretização em normas contidas no CPP no livro sobre as Relações com
Autoridades Estrangeiras e Entidades Judiciárias Internacionais (artigos 271 e ss) e em
legislação extravagante como a Lei da Cooperação Jurídica e Judiciária Internacional em Matéria
Penal (Lei n.º 21/2019, de 11 de Novembro).

4.10. A aplicação da lei processual penal quanto às pessoas

A lei processual penal aplica-se a todas as pessoas, nacionais ou não, a quem seja
aplicável o direito penal moçambicano, estendendo-se mesmo a quem não é arguido em
processo penal (por exemplo, a quem presta declarações na qualidade de ofendido ou de
testemunha)5.
Estão, no entanto, subtraídas à jurisdição penal moçambicana (imunidade), as pessoas
que gozam do privilégio de extraterritorialidade6, que se funda na "garantia de que certas
pessoas com funções de representação do Estado no exterior podem desempenhá-las
livremente, sem que a sua eventual responsabilidade criminal perante a lei de outro país (e,
portanto a sua sujeição ao respetivo poder judicial) prejudique o normal desenvolvimento
das relações internacionais, nomeadamente: (1) os membros das missões diplomáticas; (2)
os membros das representações consulares; (3) outras pessoas subtraídas à jurisdição
moçambicana, regras gerais de Direito Internacional e tratados internacionais ratificados por
Moçambique7.

5
Jorge Figueiredo Dias: Direito Processual Penal, 1988-89, § 113 e ss,
6
Veja-se, sobretudo, a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 18 de Abril de 1961, e a Convenção
de Viena sobre Relações Consulares, de 24 de Abril de 1963.
7
Cfr. HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS WEIGEND: Tratado de Derecho Penal, pp. 202-203.

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