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Verena Alberti

OUVIR CONTAR
Textos emHistória Oral
ISBN — 85-225-0477-6

C o p y r i g h t © Verena A l b e r t i

Direitos desta edição reservados à


EDITORA FGV
Praia de Botafogo, 190 — 14 andar a

22250-900 — Rio de Janeiro, RJ — Brasil


Tels.: 0800-21-7777 — 21-2559-5543
Fax: 21-2559-5532
e-mail: [email protected]
web site: www.editora.lgv.br

Impresso no Brasil / Printed in Brazíl

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no to


ou em parte, c o n s t i t u i violação do copyright (Lei n 5.988). Q

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade da autora.

I a edição — 2004

E D I T O R A Ç Ã O E L E T R Ô N I C A : FA Editoração Eletrônica

REVISÃO: Aleidis de Beltran e Fátima Caroni

CAPA: Leonardo Carvalho, a partir de "Criada c o m cântaro de leite" (1658-60),


óleo sobre tela d e j a n Vermeer (1632-75).

Ficha catalográfica elaborada pela B i b l i o t e c a


Mário H e n r i q u e Simonsen/FGV

A l b e r t i , Verena
O u v i r contar: textos e m história o r a l / Verena A l b e r t i . — Rio de
J a n e i r o : E d i t o r a FGV, 2 0 0 4 .
196p.

Inclui bibliografia.

1. História oral. 1 Fundação Getúlio Vargas. I I . Título

CDD —907.2
Sumário

Introdução 9

1. O lugar da história oral: o fascínio do vivido e as possibilidades


de pesquisa 13

2. O que documenta a fonte oral: a ação da memória 33

3. História oral e terapia: o exemplo alemão 45

4. História oral e literatura: questões de fronteira 61

5. Além das versões: possibilidades da narrativa em entrevistas


de história oral 77
6. Dramas da vida: direito e narrativa na entrevista de Evandro
Lins e Silva 91

7. "Ideias" e "fatos" na entrevista de Afonso Arinos de Melo


Franco 113

8. Um drama em gente: trajetórias e projetos de Pessoa e seus


heterônimos 149
Introdução

I ngressei no Programa de História Oral do Centro de Pesquisa e


Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da
Fundação Getúlio Vargas em 1985. Desde então, tive oportunidade de
apresentar trabalhos em encontros, congressos e seminários e de
ministrar cursos de curta duração sobre história oral, condensando
minhas reflexões sobre o assunto. Resolvi juntar o que estava esparso.
Os textos que se seguem são em parte inéditos e em parte versões
revistas de trabalhos já apresentados.
Ainda que se trate de uma coletânea de artigos, o livro como
u m todo pretende transmitir determinadas ideias. A principal delas é
uma espécie de "retorno ao fato". Ouve-se com frequência que a história
é "construção" - não como sinónimo de "tentativa de entendimento",
de "síntese", mas como sinónimo de "não vinculada à realidade": tudo
é possível, pois tudo são versões e "construções" do passado. Esse
tipo de afirmativa é especialmente recorrente na história oral, terreno
das diferentes versões e da subjetividade por excelência. Muitos não
percebem, contudo, que a história oral tem o grande mérito de permitir
que os fenómenos subjetivos se tornem inteligíveis - isto é, que se
reconheça, neles, u m estatuto tão concreto e capaz de incidir sobre a
realidade quanto qualquer outro fato. Representações são tão reais
quanto meios de transporte ou técnicas agrícolas, por exemplo. Quando
u m entrevistado nos deixa entrever determinadas representações
características de sua geração, de sua formação, de sua comunida-
de etc, elas devem ser tomadas como fatos, e não como "construções"
desprovidas de relação com a realidade. É claro que a análise desses
fatos não é simples, devendo-se levar em conta a relação de entrevista,
as intenções do entrevistado e as opiniões de outras fontes (inclusive
entrevistas). Antes de tudo, é preciso saber "ouvir contar": apurar o
ouvido e reconhecer esses fatos, que muitas vezes podem passar
despercebidos.
A afirmativa "história é construção" (repito: não no sentido de
elaboração e síntese, mas no de não vinculada à realidade) muitas
vezes leva a outra, igualmente equivocada: "história é ficção". Como
tudo é possível e não há obrigação de referencialidade ao passado,
vale a "ficção" que mais mobilizar o ouvinte. Ainda mais tratando-se
das formas de expressão genuínas que encontramos nas entrevistas.
Confundir a entrevista de história oral com obra de ficção é fechar os
olhos àquilo que a entrevista efetivamente documenta. E se afirmo
que ela não é ficção, isso não quer dizer que eu negue sua força narrativa,
que pode ser imensa.
No fundo, o que gostaria de transmitir com a ideia de "retorno
ao fato" é: tentemos aperfeiçoar nossas análises para a descoberta de
acontecimentos (em sentido amplo) capazes de gerar mudanças, para
a descoberta daquilo que engendra novos sentidos (sempre
referenciados à realidade), ao invés de repetirmos, tautologicamente,
aquilo que já é sabido, sentidos que já foram dados. Digo "tentemos"
porque reconheço que isso é muito difícil num meio tão hermenêutico
como a história oral. Mas imagino que podemos avançar um pouco
naquela direção prestando mais atenção aos "acontecimentos" e às
"ações" da entrevista, ao trabalho da linguagem em constituir
realidades e ao trabalho de enquadramento da memória.
Tudo isso está tratado nos capítulos deste livro. No primeiro,
tento desvendar o fascínio que a história oral exerce hoje em dia,
ganhando cada vez mais adeptos, e arrolo algumas possibilidades de
pesquisa. Como convém ter sempre claro de onde estamos falando
quando adotamos determinada metodologia de pesquisa, procuro
mostrar que o sucesso da história oral resulta em grande parte de sua
vinculação a dois paradigmas da modernidade: o modo de pensar
hermenêutico e a ideia do indivíduo como valor. O segundo capítulo
Introdução

trata das ações de que a entrevista é documento, em especial as do


entrevistado e do entrevistador e as da memória. Memória é vista aqui
como fato, como algo que pode incidir sobre a realidade e causar
mudanças. O terceiro capítulo discute duas noções fortemente
recorrentes no campo da história oral, a de história democrática e a
de elaboração terapêutica do passado, tendo como pano de fundo a
produção alemã na área. No capítulo 4, enfrento a confusão muitas
vezes estabelecida entre história oral e ficção literária, tentando deixar
claras as diferenças de domínio, a fim de que possamos tirar maior
proveito de cada campo específico. No caso da história oral, tento
mostrar que a força narrativa das entrevistas (o que não é o mesmo
que dizer que elas são literatura) pode ser um bom fio condutor para
sua abordagem (esse seria o sentido estrito de "ouvir contar"). O assunto
continua no capítulo 5, no qual, com auxílio do instrumental teórico
da teoria da literatura, p r o c u r o descobrir em que m o m e n t o s a
entrevista de história oral nos leva para além do conhecimento de
mais uma versão do passado e nos permite aprender algo sobre a
realidade. Tais aspectos são explorados de diferentes maneiras na
análise da entrevista de Evandro Lins e Silva, objeto do capítulo 6.
Nele, ajusto o foco para as unidades narrativas que se repetem na
entrevista e que resultam de um trabalho da linguagem em comunicar
todo um saber e toda uma experiência, específicas ao campo do direito.
O capítulo seguinte é outra análise de entrevista, a de Afonso Arinos
de Melo Franco, em que trato das diferenças e semelhanças entre livros
de memórias e depoimentos de história oral e relaciono aquilo de que
a entrevista é d o c u m e n t o com certos modos de pensar e agir de
segmentos das elites políticas e intelectuais brasileiras. O capítulo 8 é
o único em que não falo explicitamente de história oral, mas seu objeto
tem relação estreita com a ideia do indivíduo e o uso da história de
vida nas ciências humanas. Pode-se tomá-lo como desdobramento de
parte do capítulo 1, pois nele discuto o caso de Fernando Pessoa e
seus heterônimos, como exemplo claro da impossível unidade do eu
nas sociedades contemporâneas.
Algumas instituições foram direta ou indiretamente respon-
sáveis por este livro. Em primeiro lugar, é claro, o CPDOC, onde venho
desempenhando minhas atividades profissionais e onde aprendi u m
Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias
venho participando, por ampliarem enormemente o debate entre
pesquisadores e instituições da área. As instituições promotoras dos
eventos e cursos (cada uma mencionada em nota, no início dos
capítulos), que me obrigaram a sistematizar e a tornar inteligíveis
minhas reflexões em torno da história oral. E a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a
Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro (Faperj), que me concederam apoio financeiro para a
participação nos eventos académicos fora do país. A Capes e o CNPq
ainda me concederam as bolsas de mestrado em antropologia social e
doutorado em teoria da literatura, respectivamente, cursos fundamentais
para minha formação e que me permitiram traçar relações entre a
história oral e temas como o papel central do indivíduo, a hermenêutica
e os fundamentos da narrativa, entre outros.
O lugar da história oral: o fascínio do
vivido e as possibilidades de pesquisa*

V—. omecemos c o m u m a imagem certamente familiar a muitas pes-


soas: se q u i s é s s e m o s fazer u m f i l m e r e p r o d u z i n d o passo a passo
nossa vida, tal qual ela f o i , sem deixar de lado os detalhes, gastaría-
mos ainda u m a vida i n t e i r a para assisti-lo: repetir-se-iam, na tela,
os anos, os dias, as horas de nossa vida. O u seja, é impossível assis-
t i r ao que se passou, seguindo a c o n t i n u i d a d e do v i v i d o , dos even-
tos e das e m o ç õ e s . E o que vale para nossas vidas vale evidente-
mente para o passado de uma f o r m a geral: é impossível r e p r o d u z i -
lo em todos os seus meandros e acontecimentos os mais banais, tal
q u a l r e a l m e n t e a c o n t e c e u . A h i s t ó r i a , c o m o t o d a a t i v i d a d e de

* Este capítulo reúne questões que venho discutindo há algum tempo. O fascínio do vivido,
inclusive a imagem do filme de nossa vida, já foi objeto do texto "História oral: uma reflexão
crítica", apresentado no painel "Pesquisa, Memória e Documentação", no V I Encontro Estadual
de História da A N P U H - Núcleo Regional de Minas Gerais, realizado na Universidade Federal de
Minas Gerais, em Belo Horizonte, em j u l h o de 1988. A relação entre história oral e o paradigma
hermenêutico encontra-se resumida em " A vocação totalizante da história oral e o exemplo da
formação do acervo de entrevistas do CPDOC", texto apresentado no X Congresso Internacional
de História Oral, realizado no Rio de Janeiro, de 14 a 18 de j u n h o de 1998. O papel do indivíduo
no trabalho com a história oral, também tratado neste último texto, vem me ocupando há m u i t o
tempo. A questão foi objeto da palestra "Indivíduo e biografia na história oral", proferida na
mesa-redonda "O documento em história da psicologia: o oral e o textual", durante o 111
Encontro Clio-Psyché "Historiografia, psicologia e subjetividades", realizado pelo Núcleo Clio-
Psyché do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade do Estado do Rio
pensamento, opera p o r descontinuidades: selecionamos aconteci-
mentos, c o n j u n t u r a s e modos de viver, para conhecer e explicar o
que se passou.
U m a entrevista de história oral não é exceção nesse c o n j u n t o .
Mas há nela uma vivacidade, u m t o m especial, característico de d o -
cumentos pessoais. É da experiência de u m sujeito que se trata; sua
narrativa acaba c o l o r i n d o o passado c o m u m valor que nos é caro:
aquele que faz do h o m e m u m indivíduo único e singular em nossa
história, u m sujeito que efetivamente viveu - e, por isso dá vida a -
as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem tão distan-
tes. E, o u v i n d o - o falar, temos a sensação de o u v i r a história sendo
contada em u m contínuo, temos a sensação de que as descontinuida-
des são abolidas e recheadas c o m ingredientes pessoais: e m o ç õ e s ,
reações, observações, idiossincrasias, relatos pitorescos. Que i n t e -
ressante reconhecer que, em meio a conjunturas, em meio a estrutu-
ras, há pessoas que se m o v i m e n t a m , que o p i n a m , que reagem, que
v i v e m , e n f i m ! É como se pudéssemos obedecer a nosso i m p u l s o de
refazer aquele filme, de reviver o passado, através da experiência de
nosso interlocutor. E sua presença nos torna mais próximos do pas-
sado, como se pudéssemos restabelecer a c o n t i n u i d a d e com aquilo
que j á não volta mais. Se ouço de u m entrevistado u m relato de seu
cotidiano vivido há 60 anos em m i n h a cidade, acabo me i d e n t i f i c a n -

dejaneiro, de 27 a 29 de setembro de 2000. Também tratei do assunto na conferência "História


oral e biografia", proferida no Congresso de História Oral, Fronteiras, Migrações e Culturas,
realizado de 9 a 12 de j u l h o de 2002, na cidade de Goiás, pelas universidades Federal e Estadual
de Goiás. As possibilidades de pesquisa com história oral, arroladas aqui em nove itens, foram em
parte desenvolvidas no texto "História oral na Alemanha: semelhanças e dessemelhanças na
constituição de u m mesmo campo", apresentado no Grupo de Trabalho História eMemória, no
XX Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(ANPOCS), realizado de 22 a 26 de outubro de 1996, em Caxambu ( M G ) . Posteriormente, foram
apresentadas aos alunos do seminário "Arquivos e tradições orais", patrocinado pela Divisão de
Informação e de Informática da Unesco, no âmbito do projeto "Reforço das estruturas arquivísticas
nos países lusófonos de África", ministrado por m i m no Arquivo Histórico Nacional da República
de Cabo Verde, na cidade de Praia, de 18 a 21 de novembro de 1996, e aos alunos do curso
"Fontes da história: produção e organização de documentos", ministrado pelo CPDOC na
Fundação Getúlio Vargas de outubro a dezembro de 1996. Finalmente, uma versão resumida
deste capítulo foi apresentada na mesa-redonda "História oral: questões teórico-metodológicas",
no I V Encontro de História Oral do Nordeste "Espaço, Memória e Narrativa", realizado na
Universidade Federal de Campina Grande, Paraíba, de 23 a 26 de setembro de 2003.
O lugar da história oral

do com ele, e, eu mesma, caminhando pelas ruas em meio a bondes e


senhores de chapéus.
Esse fascínio do vivido é sem dúvida em grande parte responsá-
vel pelo sucesso que a história oral tem alcançado nos últimos anos -
sucesso que pode ser atestado pelo número crescente de pesquisado-
res, professores e estudiosos "fascinados" pela metodologia, que fre-
quentam os congressos e seminários de história oral em todo o mundo
e no Brasil especialmente.
É importante contudo saber que o que atrai, na história oral,
não lhe é exclusivo e muito menos "novo" no mundo de hoje. Neste
capítulo procuro situar a história oral em relação a alguns paradigmas
que podem explicar o fascínio que ela exerce. Isso ajuda a estabelecer
uma visão crítica do método e a identificar suas potencialidades em
casos em que ela pode valer a pena.

A natureza do fascínio

Em muitos casos, a entrevista de história oral nos acena com a


chance, ou ilusão, de suspendermos, um pouco que seja, a impossibi-
lidade de assistir a um filme contínuo do passado. Quando isso acon-
tece é porque nela encontramos a "vivacidade" do passado, a possibi-
lidade de revivê-lo pela experiência do entrevistado. Não é à toa que a
isso muitos dão o nome de história (ou memória) "viva".
Mas concordamos todos que a impossibilidade de restabelecer
o vivido é coisa dada. Não existe filme sem cortes, edições, mudanças
de cenário. Como em um filme, a entrevista nos revela pedaços do
passado, encadeados em um sentido no momento em que são conta-
dos e em que perguntamos a respeito. Através desses pedaços temos a
sensação de que o passado está presente. A memória, já se disse, é a
presença do passado. 1
Em texto anterior, identifiquei essa combinação entre, de um lado,
a ilusão de restabelecimento do vivido e, de outro, o trabalho da memó-
ria em dar sentido ao passado como peculiaridade da história oral:

1 Rousso, 1996, p. 94.


Mas acreditamos que a principal característica do documento
de história oral não consiste no ineditismo de alguma informa-
ção, nem tampouco no preenchimento de lacunas de que se
ressentem os arquivos de documentos escritos ou iconográficos,
por exemplo. Sua peculiaridade - e a da história oral como u m
todo - decorre de toda uma postura com relação à história e às
configurações sócio-culturais, que privilegia a recuperação do
vivido conforme concebido por quem viveu. 2

Ao combinar "vivido" e "concebido" tinha e n t ã o em mente duas


formas de a p r e e n s ã o do real que, segundo alguns autores, são centrais
em nossa relação com o mundo. "Concebemos" o m u n d o sempre de
modo d e s c o n t í n u o , agrupando e relacionando conceitos, justapondo
c o n t r a d i ç õ e s e procurando resolvê-las em sínteses. É o que o a n t r o p ó -
logo Claude Lévi-Strauss chama de eixo " m e t a f ó r i c o " de e l a b o r a ç ã o
do real, especificamente aquele no qual operam os mitos. Dele nos
valemos em toda atividade do pensamento - seja o pensamento "sel-
vagem", seja o científico. J á o eixo c o n t í n u o de e l a b o r a ç ã o do real
consiste n u m esforço de divisão infinitesimal da totalidade em partes,
como no caso da repetição obstinada de gestos e palavras em u m r i -
tual. Esse eixo " m e t o n í m i c o " , p r ó p r i o do rito, segundo Lévi-Strauss,
procura recuperar a continuidade rompida pelo pensamento, refazen-
do as pequenas unidades constitutivas do "vivido". Ainda que indis-
p e n s á v e l para a a p r e e n s ã o do real, esse e s f o r ç o m e t o n í m i c o jamais
chega a seu termo; de acordo com Lévi-Strauss, ele está fadado ao fra-
casso - daí a mistura de obstinação e i m p o t ê n c i a que o caracteriza. 3

2 Alberti, 1990, p. 5; grifado no original. A fórmula do "vivido conforme concebido por quem
viveu" já fazia parte do texto que apresentei no V I Encontro Estadual de História da A N P U H , em
Belo Horizonte, em j u l h o de 1988.
3 Lévi-Strauss, 1971. Antes de Lévi-Strauss, Schopenhauer identificou duas formas de representa-
ção pelas quais o sujeito apreende o mundo: a r e p r e s e n t a ç ã o intuitiva, t a m b é m chamada de
concreta, e a r e p r e s e n t a ç ã o abstrata, t a m b é m denominada "pensado" (Gedachten). N ã o são o
mesmo que o vivido e o pensado de Lévi-Strauss (ambas parecem ser da ordem do pensado), mas
sua caracterização é muito semelhante: de acordo com Schopenhauer, os conceitos da represen-
tação abstrata são como pequenas peças de mosaico, que, por mais precisas e pequenas, nunca se
ajustarão à realidade - ou seja, o pensado opera por descontinuidades. J á a r e p r e s e n t a ç ã o
c o n c r e t a assemelha-se a uma pintura ( c o n t í n u a , portanto, em relação ao q u e é r e p r e s e n t a d o )
(Schopenhauer, 1818 e 1844).
O lugar da história oral

A identificação dessas formas de elaboração do real pode ajudar


a compreender o fascínio da história oral. Repetições e detalhes que
funcionam como divisões infinitesimais em uma entrevista podem ser
parte do esforço obstinado e ao mesmo tempo impotente de refazer o
percurso do vivido. Por momentos podemos ter a impressão de que é
possível abolir as descontinuidades com o passado. Ao mesmo tempo,
sabemos que o passado só "retorna" através de trabalhos de síntese da
memória: só é possível recuperar o vivido pelo viés do concebido. É
claro que a história oral não é a única manifestação em que se combi-
nam desse modo o contínuo e o descontínuo, mas, como j á havia assi-
nalado no texto citado, ela se ajusta a toda uma postura que valoriza
tal combinação.
Passemos agora a dois paradigmas de nossa cultura nos quais a
história oral encontra sustentação, tão " i n f i l t r a d o s " em nosso modo
de ver o m u n d o que nem nos damos conta de sua existência: o modo
de pensar hermenêutico e a ideia do indivíduo enquanto valor.

Hermenêutica: "compreender é reencontrar o eu no tu"

A palavra "hermenêutica" designa u m conjunto bastante diver-


s i f i c a d o de q u e s t õ e s . E t i m o l o g i c a m e n t e , r e m o n t a ao deus grego
Hermes, representado com asas nos calcanhares, mensageiro entre os
deuses e os homens, mas também deus dos ladrões e das estradas.
Durante m u i t o tempo, hermenêutica consistiu no esforço de interpre-
tação de textos - principalmente religiosos - e na definição de regras
a serem seguidas para sua correta compreensão. Mais tarde, passou a
designar também u m a postura filosófica. I m p o r t a n t e , d e n t r o desse
universo, é a noção de círculo hermenêutico: a ideia de que o todo
fornece sentido às partes e vice-versa. Por exemplo: no processo de
compreensão de u m texto, a palavra ganha sentido na frase, ao mesmo
tempo em que a frase ganha sentido com as palavras.
Nas ciências humanas, a hermenêutica passou a ter importân-
cia a partir do final do século X I X , quando W i l h e l m Dilthey (1833-
1911), u m dos principais responsáveis pelo surgimento das ciências
humanas como universo distinto das ciências naturais, a elegeu como
fundamento daquelas. Para Dilthey, as ciências naturais tinham como
fundamento a explicação, enquanto as ciências humanas se baseavam
na compreensão. Dilthey teve influência decisiva nas formas de estudar
o passado que relacionam temas e acontecimentos às condições histó-
ricas de seu aparecimento e desenvolvimento. Para compreender o
homem, dizia, é necessário compreender sua historicidade - noção es-
tranha às categorias estáticas das ciências naturais. O modo de pensar
hermenêutico, que não se resume obviamente à filosofia de Dilthey,
consiste em valorizar o movimento de se colocar no lugar do outro
para compreendê-lo e em acreditar que as coisas (o passado, os so-
nhos, os textos, por exemplo) têm um sentido latente, ou profundo, a
que se chega pela interpretação. 4
Um dos pontos de contato mais claros entre hermenêutica e
história oral é a categoria da vivência - para Dilthey, a menor unidade
das ciências humanas, que são epistemologicamente atreladas à vida.
A vivência concreta, histórica e viva é o próprio ato, não algo de que
estejamos conscientes - ela deixa de ser vivência quando observada,
porque a observação atrapalha o fluir da vida (ao tomar consciência,
fixamos o momento e o que era contínuo se torna estático). Essa me-
nor unidade é um dos termos da fórmula que, segundo Dilthey, torna
acessíveis os objetos das ciências humanas: vivência-expressão-com-
preensão. As produções h u m a n a s exprimem a vivência e cabe ao
hermeneuta compreender essas expressões, de tal forma que a compre-
ensão seja o mesmo que tornar a vivenciar. "Compreender", diz Dilthey,
"é reencontrar o eu no tu." 5 É alargar nossos horizontes em relação às
possibilidades de vida humana, é vivenciar outras existências. E ele dá
u m exemplo, o de vivenciar o religioso: "Posso não ter, durante minha
existência, a possibilidade de experimentar o religioso. Mas, à medida
que leio as cartas e os escritos de Lutero e de seus contemporâneos,
vivencio o religioso com uma energia e força tais que hoje em dia
seriam impossíveis."6
Ora, podemos dizer que a postura envolvida com a história
oral é genuinamente hermenêutica: o que fascina numa entrevista é

4 Ver, a respeito
dahermenêutica e de Dilthey, Alberti, 1996.
3 "Entwúrfe zur Kritik der historischen Vemunft" ("Esboços para a crítica da razão histórica"),
Dilthey, 1959-1962, v. VII, p. 191.
6 Ibid.,p. 214.
O lugar da história oral

a possibilidade de tornar a vivenciar as experiências do outro, a


que se tem acesso sabendo compreeender as expressões de sua
vivência. Saber compreender significa realizar um verdadeiro tra-
balho de hermeneuta, de interpretação. No caso de textos antigos,
esse trabalho requer um estudo histórico e gramatical prévio, que
nos coloque na posição de um leitor da época. No caso de entrevis-
tas de história oral, ele também requer uma preparação criteriosa,
que nos transforme em interlocutores à altura de nossos entrevis-
tados, capazes de entender suas expressões de vida e de acompa-
nhar seus relatos.
Mas, como no caso do filme, o tornar a vivenciar a experiên-
cia do outro nunca será completo. A compreensão é um processo de
elevado esforço intelectual que jamais chega ao fim, diz Dilthey. Ocor-
re o mesmo que na leitura de um romance: as cenas que já li escure-
cem, o passado perde a clareza e a definição. Quando retenho o en-
redo, só me resta uma visão geral das cenas. E assim se passa com a
compreensão da vida: a hermenêutica nunca produz a certeza
demonstrável.
Observe-se que esse "jamais chegar ao fim" a que está fadada a
compreensão também está na base do fascínio da história oral. Como
nenhuma interpretação é completa, haverá sempre espaço para no-
vas possibilidades, que, novamente, não darão conta da totalidade, e
assim por diante. Mas se tomarmos esse infinito de possibilidades ao
pé da letra, corremos o risco de cair em um relativismo exacerbado,
que confere validade a toda sorte de interpretações: tudo se torna
possível, já que não há certeza demonstrável. Essa espécie de verti-
gem pode chegar ao ponto de isentar o pesquisador de todo esforço
hermenêutico: sob a alegação de que toda interpretação é apenas
uma possibilidade, basta colher e divulgar as expressões do vivido
(isto é, as próprias entrevistas). Creio, contudo, que as entrevistas
têm valor de documento, e sua interpretação tem a função de desco-
brir o que documentam. 7

7 A respeito do valor de documento das entrevistas de história oral, ver os capítulos seguintes deste
livro. Sobre os riscos de um relativismo exacerbado na hermenêutica, ver Alberti, 1996.
uuvir contar

0 indivíduo como valor

O segundo paradigma claramente "infiltrado" na história oral, a


ideia do i n d i v í d u o como valor, t a m b é m está relacionado à compreen-
são h e r m e n ê u t i c a . Quando Dilthey afirma que compreender é tornar
a vivenciar, é claro que p r e s s u p õ e o i n d i v í d u o como locus das vivências
(as originais e as depois compreendidas) - de outro modo parece difí-
cil "reencontrar o eu no t u " . Esse i n d i v í d u o , assim como a h e r m e n ê u t i c a
como modo de pensar, é específico à cultura ocidental moderna. To-
mar o i n d i v í d u o como valor n ã o é apenas c o n s i d e r á - l o uma entidade
valorizada em nossa cultura "individualista". É considerar que, em uma
ordem h i e r á r q u i c a , ele é o termo superior a englobar o(s) inferior(es),
possuindo, portanto, uma capacidade de totalização. Como a cultura
ocidental é tudo menos h i e r á r q u i c a , pois, na racionalidade moderna,
o que se p r e s s u p õ e é a igualdade, ao invés da hierarquia, dá-se com o
i n d i v í d u o moderno u m interessante paradoxo: ele j á nasceu como va-
lor englobante, apesar de firmado na igualdade; como totalizador, ape-
sar de nivelado e fragmentado. Dito de outra forma: a c r e n ç a no i n d i -
v í d u o a u t ó n o m o e igual perante os outros, que é t a m b é m o i n d i v í d u o
ú n i c o e singular, o ser psicológico, dá sentido a uma série de concep-
ções e p r á t i c a s em nosso m u n d o . Basta ver que, em outras culturas,
igualdade, liberdade, singularidade psicológica etc. n ã o d ã o sentido a
p r á t i c a s e modos de ser, para reconhecer que esse i n d i v í d u o é u m
valor em nossa c u l t u r a , n ã o tendo nada que ver c o m u m a suposta
"natureza humana". 8

É conhecido o alerta de Pierre Bourdieu para o fato de a i n d i v i -


dualidade ser, na verdade, uma "formidável a b s t r a ç ã o " , que c o n s t r u í -
mos para nos afastar da f r a g m e n t a ç ã o do eu. O nome p r ó p r i o , a assi-
natura e a individualidade b i o l ó g i c a provocam aquilo que Bourdieu
chama de "ilusão biográfica", a ilusão de uma identidade coerente e
específica, embutida na ideia de vida como estrada, que segue uma
o r d e m c r o n o l ó g i c a ( c o m u m a lógica prospectiva e retrospectiva) e
obedece ao postulado do sentido da e x i s t ê n c i a . 9

8 Sobre essa discussão, ver Duarte, 1983; Dumont, 1966 e 1983; e Castro & Araújo, 1977.
9 Ver Bourdieu, 1996.
O lugar da história oral

Não é difícil perceber como a história oral está ligada a esse


p a r a d i g m a . M u i t o s a u t o r e s a t r i b u e m a ela u m a c a p a c i d a d e de
totalização, principalmente quando confrontada com a fragmentação
de documentos escritos. Uma entrevista de história oral teria a vanta-
gem de falar, de saída, sobre o passado, interpretando-o logo em den-
sidade. Isso pode ser visto, como efetivamente o é por alguns autores,
como u m paradoxo: quanto mais moderna é a sociedade, quanto mais
rápida e fragmentada é a comunicação, tanto mais precisamos, para
entendê-la, de formas "tradicionais" de explicação, isto é, narrativas
orais, transmitidas de gerações mais velhas para mais novas, de modo
a conservar a "identidade" e a construir os significados da sociedade.
Há u m detalhe crucial, porém: o fato de o sentido e a identidade
em sociedades modernas pressuporem o indivíduo como âncora e ele-
mento constitutivo. Ao tempo indistinto, linear e racional do m u n d o
moderno contrapõe-se a densidade de significados da biografia, capaz
de sintetizar os significados do passado. 10 Se a história oral represen-
ta uma opção totalizadora frente à fragmentação de documentos es-
critos é porque ela está centrada no indivíduo, que funciona, em nossa
c u l t u r a , c o m o c o m p e n s a ç ã o t o t a l i z a d o r a à s e g m e n t a ç ã o e ao
nivelamento em todos os domínios.

Práticas e valores m u i t o "infiltrados" em nosso modo de ver o


m u n d o correm o risco de parecer coisa dada, verdades absolutas, co-
muns a todas as culturas. É o que acontece com os dois paradigmas
aqui destacados. O m o d o de pensar hermenêutico, que privilegia a
interpretação do m u n d o com vistas à busca de u m sentido p r o f u n d o
das coisas, inclusive da história e das biografias, é tão difundido - nos
livros, nos filmes, nos meios de comunicação, na academia, nas tera-
pias etc. - que mal podemos imaginar que possa haver outras possibi-
lidades. O mesmo se passa com o indivíduo como valor. Ambos são
totalizadores, f i x a m sínteses e sentidos.

A respeito desse papel central da biografia em relação à própria história, escreveu Luiz Fernando
1 0

Duarte,' "A Vida de Cada SUJeitO passa a ser medida na linha da flecha [do tempo linear] e passa a
constituir u m microtempo fundamental... a História" (Duarte, 1983, p. 37).
Ouvir contar

O campo da história oral é acentuadamente totalizador; entre-


vistado e entrevistadores trabalham conscientemente na elaboração
de projetos de significação do passado. 11 O esforço é muito mais
construtivista do que desconstrutivista (inúmeras vezes ouvimos, com
efeito, que o entrevistado "constrói o passado"), e tem como base a
experiência concreta, histórica e viva, que, graças à compreensão
hermenêutica, é transformada em expressão do humano. É importan-
te ter consciência dessa "vocação totalizante" da história oral, em um
mundo em que a fragmentação e a dissipação de significados, o desa-
parecimento do sujeito e o privilégio da superfície (em detrimento da
profundidade) também estão na ordem do dia. 12

Possibilidades de pesquisa

Reconhecer os paradigmas que estão na base do sucesso da his-


tória oral não implica renunciar a sua capacidade de ampliar o conhe-
cimento sobre o passado. Ao contrário, saber em que lugar nos situa-
mos ao trabalhar com determinada metodologia ajuda a melhor apro-
veitar seu potencial. A ideia de fundo aqui é: história oral não é solu-
ção para tudo; convém ter claro onde ela pode ser útil e delimitar
sobre o que vale a pena perguntar.
Uma das principais vantagens da história oral deriva justamente
do fascínio do vivido. A experiência histórica do entrevistado torna o
passado mais concreto, sendo, por isso, atraente na divulgação do
conhecimento. Quando bem aproveitada, a história oral tem, pois, um
elevado potencial de ensinamento do passado, porque fascina com a
experiência do outro. Esse mérito reforça a responsabilidade e o rigor
de quem colhe, interpreta e divulga entrevistas.

11 Nesse contexto, é bastante útil a noção de pwjeto desenvolvida por Gilberto Velho como sendo
uma elaboração consciente e uma tentativa de dar sentido à experiência fragmentada (Velho.
1981).
12 Aqui penso especificamente em movimentos opostos aos do paradigma hermenêutico que
surgiram a partir de fins do século XIX e mais acentuadamente no século XX, às vezes chamados
de "pós-modernos", e que tem em autores como Friedrich Nietzsche, Jacques Derrida, Jean
François Lyotard, entre outros, seus expoentes.
O lugar da história oral

Mas em que medida a experiência individual pode ser represen-


tativa? Até que ponto uma história de vida fornece informações sobre
a história da sociedade? Autores que defendem o uso da biografia no
estudo da história consideram que as biografias de indivíduos comuns
concentram todas as características do grupo. Elas mostram o que é
estrutural e estatisticamente próprio ao grupo e ilustram formas típi-
cas de comportamento. Mesmo uma biografia excepcional é capaz de
lançar luz sobre contextos e possibilidades latentes da cultura - como
é o caso de Menocchio, o m o l e i r o do livro O queijo e os vermes, de
Carlo G i n z b u r g . C o m o o próprio G i n z b u r g c h a m o u a a t e n ç ã o , a
excepcionalidade de Menocchio permite deduzir, "em negativo", o que
seria mais f r e q u e n t e . 13

Biografias, histórias de vida, entrevistas de história oral, docu-


mentos pessoais, enfim, mostram o que é potencialmente possível em
determinada sociedade ou grupo, sem esgotar, evidentemente, todas
as possibilidades sociais. Mas o que faz u m pesquisador procurar u m
indivíduo que tenha sido ator ou testemunha de determinado aconte-
cimento ou conjuntura para fazer dele u m entrevistado? C o m certeza
a busca de alguma informação e de algum conhecimento que aquele
indivíduo detém, e que o próprio pesquisador - mesmo que m u i t o
bem informado e preparado - não detém. Se não, é evidente que não
haveria necessidade de se despender tempo e verbas na realização de
uma entrevista. Só convém recorrer à metodologia de história oral
quando os resultados puderem efetivamente responder a nossas per-
guntas e quando não houver outras fontes disponíveis - mesmo entre-
vistas já realizadas - capazes de fazê-lo.
E que tipo de informação ou conhecimento são esses que se
procuram em uma entrevista? Qual sua especificidade? Sem preten-
der esgotar o r o l , vejamos alguns campos de pesquisa em que a histó-
ria oral pode ser ú t i l . 14

1. História do cotidiano. U m a entrevista de história o r a l p e r m i t e


r e c o n s t i t u i r decursos c o t i d i a n o s , que g e r a l m e n t e não estão
registrados em outro tipo de fonte. O historiador Lutz Niethammer

Levi, 1996.
1 3

Sobre os campos e temas que vêm sendo estudados à luz da história oral, ver também Janotti
1 4

& Rosa, 1992/1993; Ferreira, 1994; Joutard, 1996; e Alberti, 1997.


Ouvir contar

(1985) faz a esse respeito algumas observações interessantes. Em


primeiro lugar, reconstituir o cotidiano não é m u i t o fácil, diz ele,
porque geralmente as pessoas se lembram mais das ações não m u i -
to óbvias ou evidentes, que, por isso mesmo, ficam na lembrança.
Desse m o d o , ao solicitarmos do entrevistado que reconstitua seu
cotidiano, há o risco de o resultado acabar sendo determinado pe-
las perguntas, que só conseguem trazer à lembrança alguns aspec-
tos da vida diária. Além disso, é preciso ter claro que a descrição
do cotidiano sempre vem acompanhada de certa nostalgia, mistu-
rada a sentimentos de pesar ou de alívio, que acabam marcando o
sentido da narrativa. Mas é possível a u m b o m entrevistador obter
descrições precisas de rotinas. De u m lado, porque elas estão con-
solidadas na memória do entrevistado, que precisava dominá-las
para viver e trabalhar. De outro, porque elas geralmente são infor-
mações "inofensivas" que nunca precisaram ser interpretadas ou
reavaliadas ao longo da vida, ao contrário dos valores ou das expe-
riências problemáticas - e é por essa razão que muitas vezes o
entrevistado não entende o sentido de perguntas sobre o cotidiano,
assunto por demais trivial e sem ligação com o sentido da história
de v i d a . 15 A meu ver, algumas perguntas sobre o cotidiano são i n -
teressantes, para situarmos o entrevistado e seu passado. Pergun-
tas exaustivas e detalhadas, no entanto, só deveriam ser feitas se
isso realmente for importante para os propósitos da pesquisa, pois
a entrevista acaba se tornando m u i t o longa. Sugestões de pergun-
tas sobre o cotidiano podem ser encontradas no apêndice do livro
A voz do passado, de Paul Thompson, que abrange assuntos como
casa, família, rotina doméstica, refeições, relação com os pais, lazer,
escola e vida p r o f i s s i o n a l . 16

2. História política. A metodologia de história oral é especialmente


indicada para o estudo da história política, entendida não como
história dos "grandes homens" e "grandes feitos", e sim como estu-
do das diferentes formas de articulação de atores e grupos, trazen-
do à luz a importância das ações dos indivíduos e de suas estraté-

Niethammer, 1985, p. 423-ss. Zimmermann, 1992, também destaca a reconstrução de decur-


1 5

sos cotidianos como parte das potencialidades da história oral.


O lugar da história oral

gias. Através de entrevistas de história oral, é possível reconstituir


redes de relação, formas de socialização e canais de ingresso na
carreira, bem como investigar estilos políticos específicos a indiví-
duos e g r u p o s . 17

3. Padrões de socialização e de trajetórias. Entrevistas de história oral


permitem o estudo de padrões de socialização e de trajetórias de
indivíduos e grupos pertencentes a diferentes camadas sociais, ge-
rações, sexos, profissões, religiões e t c . 18

4. História de comunidades. A história oral pode ser utilizada como


metodologia de pesquisa para a reconstituição de trajetórias de co-
munidades específicas, como as de bairro, as imigrantes, as campo-
nesas etc. Ela pode auxiliar também na investigação de genealogias
de determinadas famílias dessas comunidades.
5. História de instituições. A metodologia de história oral pode ser
empregada no estudo da história de instituições do Estado, de or-
ganismos públicos e de empresas privadas. Nesse universo, ela per-
mite a reconstrução de organogramas administrativos, o esclareci-
mento de funções de diferentes órgãos, a recuperação de processos
de tomada de decisão e investigações sobre o esprit de corps dos
funcionários e sobre as relações entre diferentes gerações de traba-
lhadores. 19 As entrevistas p o d e m também ajudar a esclarecer o
conteúdo, a organização e as lacunas de arquivos existentes nas
instituições. 20

6. Biografias. A história oral pode auxiliar na reconstituição de traje-


tórias de vida de pessoas cuja biografia se deseja estudar.
7. História de experiências. Entrevistas de história oral podem ser usa-
das no estudo da forma como pessoas ou grupos efetuaram e elabo-
raram experiências, incluindo situações de aprendizado e decisões
estratégicas. Essa noção é particularmente desenvolvida em textos
alemães, onde recebe o nome de Erfàhrungsgeschichte ("história de
experiência"), e aparece em combinação c o m a ideia de mudança
de perspectiva (Perspektivenwechsel). E m linhas gerais, essas n o -

Veja-se, a esse respeito, Camargo, 1994; e Ferreira, 1994.


Ver Zimmermann, 1992.
Ver Ferreira, 1994.
Tourtier-Bonazzi, 1996, p. 244.
Ouvir contar

ções significam o seguinte: entender como pessoas e grupos expe-


r i m e n t a r a m o passado t o r n a possível questionar interpretações
generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas. U m
estudo de história oral sobre uma organização anarco-sindicalista
durante a guerra civil espanhola, por exemplo, desmistificou a ideia
antes p r e d o m i n a n t e de autogestão operária, revelando clivagens
internas n u m período em que se supunha prevalecer a colabora-
ção. 2 1 E, na Alemanha, u m a entrevista c o m u m trabalhador que
ingressou no Partido Comunista Alemão nos anos 1920 revelou
que explicações generalizantes dadas à influência comunista sobre
os trabalhadores da República de Weimar, como a situação do pro-
letariado ou a influência do aparelho partidário, podem nem sem-
pre corresponder às situações específicas. A história desse entre-
vistado mostra que, no processo de decisão que o levou a ingressar
no p a r t i d o , i m p o r t a r a m o exemplo do irmão mais velho e u m a
posição crítica c o m relação ao catolicismo, em especial com rela-
ção a determinado padre. Essa "história de experiência" é, para
Niethammer, u m a possibilidade de nos a p r o x i m a r m o s empirica-
mente de algo como o "significado da história dentro da história" e
permite, de acordo com Z i m m e r m a n n , questionar criticamente a
aplicação de teorias macrossociológicas sobre o passado. 22 A ca-
pacidade de a entrevista contradizer generalizações sobre o passa-
do amplia, pois, a percepção histórica - isto é, permite a "mudança
de perspectiva".

8. Registro de tradições culturais. Entrevistas de história oral transmi-


tem tradições culturais, que vão surgindo à medida que o entrevis-
tado delas se lembra: histórias, canções, poemas, provérbios, m o -
dos de falar de u m grupo, reminiscências sobre antepassados e so-
bre territórios, informações transmitidas de geração em geração
ou dentro de u m mesmo grupo profissional etc. Há autores que
fazem u m a clara distinção entre tradição oral e história oral. A
p r i m e i r a i n c l u i r i a narrativas sobre o passado universalmente co-
nhecidas em uma cultura, enquanto o testemunho ou a entrevista

Ver Garrido, 1992/1993, p. 40-41.


O lugar da história oral

de história oral se caracterizaria por versões que não são ampla-


mente conhecidas. Essa distinção pressupõe, contudo, que a tra-
23

dição oral seja imutável; ela não considera que mesmo o passado
"universalmente" conhecido é continuamente acumulado e disse-
cado. Assim, há todo um conjunto de pesquisadores que chama a
atenção para o fato de a tradição oral só se atualizar no momento
mesmo da narrativa, momento que determina, em grande parte,
para que e como algo é narrado. Desse ponto de vista, tradição
24

oral e história oral têm bastante proximidade, principalmente se


tomarmos as entrevistas como ações (ou narrações), e não somen-
te como relatos do passado.
9. História de memórias. A metodologia de história oral é bastante ade-
quada para o estudo da história de memórias, isto é, de representa-
ções do passado. Estudar essa história é estudar o trabalho de cons-
tituição e de formalização das memórias, continuamente negocia-
das. A constituição da memória é importante porque está atrelada
à construção da identidade. Como assinala Michael Pollak, a me-
mória resiste à alteridade e à mudança e é essencial na percepção
de si e dos outros. Ela é resultado de um trabalho de organização e
de seleção daquilo que é importante para o sentimento de unidade,
de continuidade e de coerência - isto é, de identidade. E porque 25

a memória é mutante, é possível falar de uma história das memó-


rias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada através de en-
trevistas de história oral. Observe-se que estudar a constituição de
memórias não é o mesmo que construir memórias. Muitos pesqui-
sadores que trabalham com história oral acham-se imbuídos da
missão de construir memórias, sem atentar para o próprio proces-
so de sua constituição, que muitas vezes oferece material riquíssimo
de análise. 26

13Essa é, por exemplo, a opinião de David Henige, resumida e comentada por Cohen, 1989.
14Essa posição é defendida por Cohen, 1989; e Cruikshank, 1996. Sobre o tema, ver também
Tonkin, 1992.
15Ver Pollak, 1989 e 1992.
16Ver, por exemplo, a análise de Alessandro Portelli sobre a história da memória de um massacre
jcorrido em 1944 na Itália (Portelli, 1996). Sobre a história de memórias, ver ainda Rousso,
L996 e 1997. E sobre questões relativas ao processo de constituição de memórias, ver o capítu-
o 2 deste livro.
Ouvir contar

Vale lembrar que as possibilidades de uso da história oral vão


além das atividades de pesquisa e documentação no âmbito das ciên-
cias humanas. No ensino de história, por exemplo, alguns recursos
oferecidos pela história oral podem ser úteis: uma entrevista pode tor-
nar o aprendizado mais fácil, porque trata de experiências concretas,
narradas de forma direta e coloquial, e os alunos também podem fazer
entrevistas sobre as histórias da comunidade e das famílias. Além de
passar a conhecer essas histórias, o estudante desenvolve várias habi-
lidades: o planejamento do trabalho, a prática de pesquisa e a capaci-
dade de falar com pessoas desconhecidas. Entrevistas de história 27

oral podem ser usadas com sucesso também em exposições, progra-


mas de vídeo e em outros recursos de multimídia, como forma de
apresentar experiências concretas sobre determinados acontecimen-
tos e conjunturas.

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Exemplos de experiências do uso da história oral em sala de aula podem ser encontrados em
2 7

Soares, 1998; e Cardoso, 1998.


O lugar da história oral 29

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[Tradução do original The voice ofthepast - oral history, publicado pela p r i m e i -
ra vez em 1978.]
O que documenta a fonte oral:
a ação da memória*

este capítulo, procurarei mostrar que as formas de concepção do


passado são também formas de ação. Conceber o passado não é ape-
nas selá-lo sob determinado significado, construir para ele uma inter-
pretação; conceber o passado é também negociar e disputar significa-
dos e desencadear ações. Para tornar isso mais claro, comecemos por
u m exercício de definição do estatuto da história oral enquanto fonte.

Resíduo de ação

Em u m artigo intitulado "Reflexões sobre a teoria das fontes", o


historiador Peter Húttenberger sugere dividir os vestígios do passado
em dois grupos: os resíduos de ação e os relatos de a ç ã o . 1 O típico
resíduo de ação seria o clássico documento de arquivo - pedaço de
uma ação passada - , enquanto o relato de ação, posterior a ela, pode-

* Uma versão resumida deste artigo foi apresentada na mesa-redonda "Ouvir e narrar: métodos
e práticas do trabalho com história oral", durante o I I Seminário de História Oral realizado pelo
Grupo de História Oral e pelo Centro de Estudos Mineiros da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, de 19 a 20 de setembro
de 1996.
1 Húttenberger, 1992.
ria ser exemplificado por uma carta que informa sobre uma ação pas-
sada, ou ainda por memórias e autobiografias.
A especificidade dos documentos produzidos a posteriori é tam-
bém destacada pelo historiador Jean-Jacques Becker, que utiliza a no-
ção de "arquivos provocados" para designar as fontes produzidas de-
pois do acontecido e que, por isso mesmo, pertencem à mesma cate-
goria das recordações ou memórias. 2

Mas Húttenberger acrescenta à sua classificação uma observa-


ção i m p o r t a n t e : u m relato de ação é também resíduo de u m a ação.
Por exemplo, a carta que informa sobre uma ação passada é também o
resíduo da ação que seu autor quis desencadear ao escrevê-la e enviá-
la. O mesmo ocorre com autobiografias:

Uma autobiografia é e quer ser principalmente u m "relato" de


ações passadas do ponto de vista de uma pessoa. Mas ela tam-
bém pode ser parte de uma ação e, por isso, "resíduo". Tanto
assim que alguns atores guardam provisoriamente suas auto-
biografias, porque receiam consequências políticas ou de outro
tipo. Eles acreditam que seu texto contém u m potencial de
possibilidades de ação, podendo, com isso, desencadear novas
ações. As autobiografias querem instruir os leitores e impingir-
lhes uma visão especial dos acontecimentos. 3

Ora, do mesmo m o d o que u m a autobiografia, podemos dizer


que u m a entrevista de história oral é, ao mesmo tempo, u m relato
de ações passadas e u m resíduo de ações desencadeadas na própria
entrevista. C o m u m a diferença, é claro: enquanto na autobiografia
há apenas u m autor, na entrevista de história oral há no m í n i m o
d o i s a u t o r e s - o e n t r e v i s t a d o e o e n t r e v i s t a d o r . M e s m o que o
entrevistador fale p o u c o , para p e r m i t i r ao entrevistado narrar suas
e x p e r i ê n c i a s , a entrevista que ele c o n d u z é parte de seu próprio
relato - científico, académico, político etc. - sobre ações passadas,
e também de suas ações.

2 Becker, 1987.
3 Húttenberger, 1992, p. 256.
O que documenta a fonte oral

E o que a entrevista documenta enquanto resíduo de ação? E m


primeiro lugar, ela é u m r e s í d u o de uma ação interativa: a comunica-
ção entre entrevistado e entrevistador. Tanto u m quanto o outro t ê m
determinadas ideias sobre seu interlocutor e tentam desencadear de-
terminadas ações: seja fazer com que o outro fale sobre sua e x p e r i ê n -
cia (o caso do entrevistador), seja fazer com que o outro entenda o
relato de tal forma que modifique suas p r ó p r i a s c o n v i c ç õ e s enquanto
pesquisador (o caso do entrevistado).
Em segundo lugar, a entrevista de história oral é r e s í d u o de uma
ação específica, qual seja, a de interpretar o passado. Note-se que, se
chamo isso de ação é porque estou indo u m pouco além da c o n s t a t a ç ã o
inicial de que a entrevista é uma c o n s t r u ç ã o do passado. Tomar a en-
trevista como r e s í d u o de a ç ã o , e n ã o apenas como relato de a ç õ e s
passadas, é chamar a a t e n ç ã o para a possibilidade de ela documentar
as ações de c o n s t i t u i ç ã o de m e m ó r i a s - as ações que tanto o entrevis-
tado quanto o entrevistador pretendem estar desencadeando ao cons-
truir o passado de uma forma e n ã o de outra.

Memória como acontecimento e ação

Quando se fala de m e m ó r i a no campo da h i s t ó r i a oral, muitas


vezes lança-se m ã o de indefinições atraentes, que garantem a manu-
t e n ç ã o de certo fascínio em r e l a ç ã o à m a t é r i a . E m alguma medida,
esse pendor para o hermetismo tem fundamento: é difícil saber o que
é a m e m ó r i a , como ela se c o n s t i t u i e se processa no c o n j u n t o das
atividades cognitivas do homem. O assunto j á ocupou diversos pensa-
dores, desde a Antiguidade, havendo até aqueles que qualificassem a
m e m ó r i a como u m sexto sentido entre as faculdades cognitivas. 4

Lutz Niethammer, em u m texto sobre q u e s t õ e s m e t o d o l ó g i c a s


da história oral, distingue dois níveis de m e m ó r i a , a ativa e a latente. A
primeira seria aquela de que sempre precisamos e que está permanen-
temente à disposição - como, por exemplo, a ideia que se tem da vida

É o caso, por exemplo, de Hobbes, em Natureza humana (1658).


Ouvir contar

como um todo -, e a segunda, a memória que necessitaria de recons-


truções e associações para ser recuperada. 5
Para os propósitos deste texto, importa destacar não o processo
cognitivo de rememoração e esquecimento, mas a possibilidade de se
tomar a ação de constituição de memórias como objeto de estudo.
Para tanto, retomemos um raciocínio desenvolvido por Michael
Pollak no início de seu artigo "Memória, esquecimento, silêncio", pelo
qual a ideia de memória coletiva tal como definida por Maurice
Halbwachs sofre uma espécie de inversão. Se, para Halbwachs, na li-
nha de Durkheim, a memória coletiva era um fato social a ser tomado
como coisa - na medida em que fundamentava e reforçava os senti-
mentos de pertencimento ao grupo -, agora, diz Pollak, trata-se de
investigar, antes de mais nada, como os fatos sociais se tornam coisas.
Isto é, antes de a memória coletiva ser positivamente dada, cumpre
verificar como ela se tornou fato positivo. Em suas palavras:

Não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas
de analisar como os fatos sociais se tornam coisas, como e por
quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade.
Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar
portanto pelos processos e atores que intervêm no trabalho de
constituição e de formalização das memórias.6

Está em jogo aqui o caráter factual da memória; estão em jogo


as possibilidades oferecidas pela história oral no sentido de se investi-
gar a memória lá onde ela não é apenas significado mas também acon-
tecimento, ação.
O próprio Pollak usa uma noção interessante que nos ajuda a
compreender essa ideia: a noção de memórias em disputa. Na cons-
tituição das memórias de partidos políticos, sindicatos ou outros ti-
pos de organização, diz Pollak, há todo um trabalho de enquadra-

5 Niethammer, 1985.
6 Pollak, 1989, p. 4.
O que documenta a fonte oral

mento e de manutenção da memória, que consiste em privilegiar acon-


tecimentos, datas e personagens dentro de determinada perspecti-
va. 7 Assim, por exemplo, no caso do m o v i m e n t o da Resistência Fran-
cesa, duas memórias concorrentes entraram em competição após o
f i m da guerra: a dos comunistas e a dos gaullistas. Estes últimos,
tendo vencido a d i s p u t a , acabaram fazendo c o i n c i d i r suas datas e
seus heróis com os da memória nacional. Jean M o u l i n , líder da Re-
sistência que poucos conheciam pessoalmente nos anos 1950, pas-
sou a ser conhecido por todos depois que seu corpo f o i trasladado
para o P a n t h é o n . 8

A ideia de u m trabalho de enquadramento da memória ajusta-se


bem à ênfase que procuro dar aqui à ideia de uma ação da memória.
No caso das entrevistas de história oral, podemos falar de u m trabalho
de enquadramento e de manutenção da memória levado a cabo tanto
pelo entrevistado quanto pelo entrevistador. Como o próprio Pollak
chamou a atenção, não é de modo algum natural falar sobre sua vida a
outrem, a não ser que se esteja "numa situação social de justificação
ou de construção de [si] próprio". 9 O entrevistado deve estar conven-
cido a respeito da "própria utilidade de falar e transmitir seu passa-
do", 1 0 utilidade que faz parte, a meu ver, da própria ação que o entre-
vistado tenciona desencadear.
Mas não é isso que preocupa Pollak. Para ele, a especificidade
da história oral é o fato de ela mostrar, através das memórias i n d i v i -
duais, os limites do trabalho de enquadramento da memória. Este se-
ria o caso das memórias silenciadas durante o stalinismo e de todo
t i p o de m e m ó r i a que ele c h a m a de " c o l e t i v a s u b t e r r â n e a " , em
contraposição à "memória coletiva o r g a n i z a d a " . 11

7 Na verdade, Pollak fala de dois trabalhos: o primeiro, de enquadramento da memória, e o


segundo, que chama o "trabalho da própria memória em si", que consiste em manter a coerência,
a unidade e a continuidade da memória enquadrada (cf. Pollak, 1992, p. 206). Para efeito de
mera simplificação, reúno ambos sob a mesma designação de "trabalho de enquadramento e de
manutenção da memória".
8 Ver Pollak, 1992.
9i b i d . , p . 213.
1 0 Pollak, 1989, p. 13.
1 1 fbid., p. 8.
i8 Ouvir contar

Armadilhas da "memória oficial"

Todos concordamos quanto à potencialidade da história oral em


permitir ojacesso a uma pluralidade de memórias e perspectivas do
passado. Creio, contudo, que devemos evitar polarizações do tipo
"memória subterrânea" versus "memória organizada", ou ainda histó-
ria ou memória "oficial" versus história ou memória "popular". Como
tais polarizações são facilmente sujeitas a simplificações, corre-se o
risco de, com elas, transformar a história oral em missão e o pesquisa-
dor em missionário encarregado de contrapor memórias "dominadas"
a memórias "dominantes".
A oposição entre "memória dominante" e "memória dominada"
não é cristalina, como bem mostrou o próprio Pollak. No caso, por
exemplo, da memória da Segunda Guerra, verifica-se que o gaullista,
membro da Resistência "dominado" pelos nazistas, passa a ser o "do-
minante", porque ganhou, dos comunistas, a disputa pela "memória
oficial". Do mesmo modo, uma associação de sobreviventes de u m
campo de concentração, isto é, u m grupo "dominado" por excelência,
elabora claramente uma memória "dominante" quando, contactada
por Pollak, seleciona e indica os membros que podem ser entrevista-
dos: apenas aqueles cujos testemunhos não entram em choque com a
imagem que a associação quer passar de si mesma e da história dos
deportados, excluindo-se os que foram deportados por crimes, por
homossexualismo e por prostituição. 1 2
Não atentar para essas nuanças pode levar o pesquisador a
participar ativamente do trabalho de enquadramento da memória,
tomando-o como bandeira, numa clara revelação das ações que pre-
tende desencadear. É o caso, por exemplo, de alguns estudos sobre a
memória de exilados e presos políticos durante a ditadura militar no
Brasil. Sem desmerecer a iniciativa de registrar as histórias e as me-
mórias dessas pessoas, chama atenção a insistência com que se con-
trapõe uma "memória social", que se estaria ajudando a construir, a

Pollak, 1989, p. 10 e 12.


O que documenta a fonte oral

u m a "memória o f i c i a l " sobre o regime m i l i t a r . E m m u i t o s casos, o


trabalho de pesquisa é visto como u m a missão, dado o fato de o
passado ainda não ter sido suficientemente elaborado pela socieda-
de. Justamente por isso ainda não é possível, a meu ver, falar de uma
memória oficial e de outra subterrânea o u dominada. N o que concerne
ao período da ditadura militar, as diferentes memórias estão em ple-
no processo de disputa, no qual se insere a ação de pesquisadores e
de seus entrevistados.
Para evitar a polarização simplificadora entre memória "oficial"
ou "dominante", de u m lado, e memória "genuína" ou "dominada", de
outro, é preciso ter em mente, portanto, que há uma multiplicidade de
memórias em disputa. O próprio Pollak chamou a atenção para isso
quando observou "a existência, numa sociedade, de memórias coleti-
vas tão numerosas quanto as unidades que compõem a sociedade". 13

Robert Frank, seu colega no Institut d'Histoire d u Temps Présent, pro-


pôs uma classificação em quatro níveis, que vai desde a memória oficial
da nação, passando pela memória áos grupos (dos atores, dos partidos,
das associações, dos militantes de uma causa etc.) e pela memória eru-
dita (dos historiadores), até a memória pública ou d i f u s a . 14 Alessandro
Portelli, finalmente, chama a atenção para o fato de, em sociedades
complexas, os indivíduos fazerem parte de diversos grupos e, portan-
to, deles extraírem as diversas memórias e organizá-las de f o r m a
idiossincrática. 15 E m sua análise do massacre de Civitella Val d i Chiana,
em que 115 civis italianos foram mortos em u m único dia pelos ale-
mães em j u n h o de 1944, Portelli fala de memória dividida, mas isso não
significa u m c o n f l i t o entre a "memória comunitária pura e espontâ-
nea" e aquela "oficial" e "ideológica". "Na verdade", diz ele, "estamos
lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e interna-
mente divididas, todas, de uma forma ou de outra, ideológica e c u l t u -
ralmente m e d i a d a s . " 16 Essa diversidade constitui, portanto, a melhor
alternativa para evitarmos a polaridade simplificadora entre "memó-
ria oficial" e "memória dominada".

13 Pollak, 1989, p. 12.


14 Frank, 1992.
15 Portelli, 1996, p. 127.
Ouvir contar

O específico da história oral

Tentemos ajustar o foco sobre aquilo que a fonte oral documen-


ta, lembrando o raciocínio de Pollak de que é preciso investigar como
o fato social se transforma em coisa.
Robert Frank considera que a história oral pode contribuir para
uma história ohjetiva da subjetividade. Isso implica que o pesquisador
deve ter como objetivo ir além da simples história do acontecimento,
interessando-se também pela história da memória desse acontecimento
até nossos dias. Eis o motivo:

Porque o conhecimento do passado dito "objetivo" não basta


para explicar o presente, sendo preciso acrescentar-lhe o co-
nhecimento da percepção presente do passado. Esse "presente
do passado" é precisamente a memória, e o estudo académico
dessa última permite melhor compreender a identidade que ela
tem por função estruturar. 17

A posição de Robert Frank reforça a ideia de que a memória é


também fato, passível de ser objetivamente estudado. E tomar a me-
mória como fato permite entender como determinadas concepções do
passado se tornaram coisas, sem o que as explicações do presente per-
manecem insuficientes.
Alessandro Portelli desenvolve reflexão igualmente relevante ao
contestar a opinião de um pesquisador, Pietro Clemente, sobre a me-
mória do massacre de Civitella Val di Chiana. Clemente teria assinala-
do que, diversamente do historiador, o antropólogo "está mais inte-
ressado 'nas representações de uma comunidade do que na verdade
dos fatos ou na tendência dos valores'". 18 Assim, saber se o massacre
de Civitella teve como culpados membros da Resistência Italiana que
haviam assassinado dois soldados alemães no interior dos limites da
cidade, ou os próprios alemães, não teria tanta importância para Cle-

1 7 Frank, 1992, p. 67.


O que documenta a fonte oral

mente, j á que a própria comunidade já havia construído sua represen-


tação sobre o trágico episódio.
D a n d o u m passo além da s i m p l e s c o n s t a t a ç ã o do passado
construído, Portelli sublinha a necessidade de tomarmos os "fatos" do
historiador e as "representações" dos antropólogos juntos, pois, de
outro modo, não saberemos distingui-los.

Representações e "fatos" não existem em esferas isoladas. As re-


presentações se utilizam dos fatos e alegam que são fatos; os fatos
são reconhecidos e organizados de acordo com as representações;
tanto fatos quanto representações convergem na subjetividade
dos seres humanos e são envoltos em sua linguagem. 19

O u seja, mais uma vez, trata-se de procurar compreender como


os fatos sociais se t o r n a m coisas - o u , no caso específico, como as
"representações" se tornam "fatos". E Portelli completa:

Talvez essa interação seja o campo específico da história oral,


que é contabilizada como história com fatos reconstruídos, mas
também aprende, em sua prática de trabalho de campo dialógico
e na confrontação crítica com a alteridade dos narradores, a
entender representações. 20

Podemos praticar essa interação com u m exemplo. E m algumas


pesquisas de história oral desenvolvidas na Alemanha e na França,
chamou a atenção dos pesquisadores o fato de a cronologia relativa ao
período da Segunda Guerra M u n d i a l aparecer diferenciada nas entre-
vistas. Na Alemanha, o ano de 1933 - ano da ascensão de H i t l e r ao
poder; como chanceler - não f o i mais importante, para muitos entre-
vistados, do que os anos de 1934, 1935 e 1936, nos quais se encerra o
desemprego em massa em v i r t u d e do crescimento da indústria béli-
ca. 21 E na França, o 8 de maio de 1945 - que marca o f i m da Segunda

1 9 Portelli, 1996, p. 111; grifo do autor.


2 0 Ibiã.
Guerra - para muitos não f o i tão importante quanto a libertação de
Paris na segunda metade do ano a n t e r i o r . 22 Devemos interpretar es-
sas diferenças como provas de que as memórias individuais são resis-
tentes ao trabalho de enquadramento da "memória oficial"? O u que as
"representações" sobre aqueles anos i m p o r t a m mais do que os "fa-
tos"? Evidentemente que não.
O mais importante nesse tipo de diversidade cronológica é es-
tarmos atentos à própria diferença entre as cronologias "nacionais", no
caso, e as de grupos ou indivíduos. O fato de os entrevistados alemães
não se lembrarem com clareza do ano de 1933 não significa, em abso-
l u t o , que ele só importe para a "história oficial". É preciso que "fato"
(1933) e "representações" (1934, 35, 36) sejam tomados juntos, para
podermos tratar objetivamente a história da memória desses anos. É
impossível saber o que o ano de 1935 significa sem considerar o ano
de 1933. Na verdade, a diferença de cronologias ajuda a compreender
a própria ascensão do nazismo - que fez m u i t o mais sucesso quando
passou a se reverter em estabilidade e bem-estar social e económico,
do que quando f o i predominantemente política.
Podemos, pois, concluir, com relação à especificidade da histó-
ria oral: sua grande riqueza está em ser u m terreno propício para o
estudo da subjetividade e das representações do passado tomados como
dados objetivos, capazes de incidir (de agir, portanto) sobre a realidade
e sobre nosso entendimento do passado.

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Além das versões: possibilidades da narrativa
em entrevistas de história oral*

trabalho com a história oral consiste na gravação de entrevis-


tas de caráter histórico e documental com atores e/ou testemunhas de
acontecimentos, conjunturas, movimentos, instituições e modos de
vida da história contemporânea. Um de seus principais alicerces é a
narrativa. Um acontecimento ou uma situação vivida pelo entrevista-
do não pode ser transmitido a outrem sem que seja narrado. Isso sig-
nifica que ele se constitui (no sentido de tornar-se algo) no momento
mesmo da entrevista. Ao contar suas experiências, o entrevistado trans-
forma aquilo que foi vivenciado em linguagem, selecionando e organi-
zando os acontecimentos de acordo com determinado sentido. Esse
trabalho da linguagem em cristalizar imagens que remetem a, e que
significam novamente, a experiência é comum a todas as narrativas -
e sabemos que algumas vezes é mais bem-sucedido do que outras (as-
sim como algumas entrevistas de história oral são certamente mais bem-
sucedidas do que outras). Mas talvez não tenhamos dado ainda a devida
atenção para esse trabalho da linguagem nas chamadas "fontes orais".

* Este capítulo foi originalmente apresentado no Simpósio Temático "Narrativas na história oral",
durante o XXII Simpósio Nacional de História da Associação Nacional de História (ANPUH), de
27 de julho a l 2 d e agosto de 2003. Uma versão um pouco modificada foi apresentada ao XIII
Congresso Internacional de História Oral "Memória e Globalização", realizado em Roma, de 23
a 26 de junho de 2004.
Ouvir contar

Lembrando que entrevistas são fontes

Antes de mais nada, convém lembrar que as entrevistas, como


toda fonte histórica, são pistas para se conhecer o passado. 1 N o caso
da história oral (como em m u i t o s o u t r o s ) , as pistas são relatos do
passado, surgidos a posteriori, p o r t a n t o . O passado existiu indepen-
2

dente dessas pistas, mas hoje só pode existir por causa delas e de
outras. Assim, se dizemos que a narrativa, na história oral, acaba cons-
tituindo o passado, isso não significa que o passado não tenha existido
antes dela. Esquecer essa diferença é tomar a narrativa, ou as narrati-
vas, como a própria realidade, ou as realidades. E quando se opta pelo
plural é porque se conclui que todas as narrativas são "válidas" - me-
lhor dizendo, são "versões" - e que não cabe ao pesquisador julgá-las.
É claro que é interessante conhecer diferentes versões sobre u m acon-
tecimento ou situação. Mas seria b o m não nos contentarmos em colhê-
las, assim como não basta compilar artigos de j o r n a l ou acórdãos de
u m t r i b u n a l , por exemplo, para dar conta de u m acontecimento ou
conjuntura do passado.

Especificidade da fonte

Se as entrevistas, tomadas como fontes, são uma forma de nos apro-


ximarmos da realidade (do passado e do presente - ver nota 1), cabe
perguntar o que podemos aprender especialmente com elas. Por que pro-
curamos uma pessoa e pedimos que nos conte sua experiência em deter-
minado acontecimento ou situação? J á se observou que o que se pede ao
entrevistado é muito estranho: que conte sua vida a alguém que mal co-
nhece e ainda por cima diante de u m gravador. As pessoas não costu-
3

mam fazer isso sequer com filhos e netos (no máximo contam episódios;
raramente "toda" a biografia). Diante do entrevistador, contudo, têm a

1 Entrevistas de história oral também são fontes para se conhecer o presente, como testemunha a
larga aplicação do método nas ciências sociais.
2 Sobre a caracterização das fontes históricas em resíduos, de u m lado, e relatos, de outro, de
ações do passado, ver Húttenberger, 1992, texto que discuto no capítulo 2 deste livro.
3 Ver, por exemplo, Pollak, 1992, p. 213; e Portelli, 2001, p. 12.
Além das versões

tarefa de "dar conta" de tudo e de responder a perguntas... O que está em


jogo especialmente aí? O trabalho de transformar lembranças, episódios,
períodos da vida (infância, adolescência e t c ) , experiências, enfim, em
linguagem. Em situações desse tipo (como em inúmeras outras) a lingua-
gem não "traduz" conhecimentos e ideias preexistentes. Ao contrário:
conhecimentos e ideias tornam-se realidade à medida que, e porque, se
fala. O sentido se constrói na própria narrativa; por isso se diz que ela
constitui (no sentido de produzir) racionalidades. 4

Aprendemos com a narrativa dos nossos entrevistados? Em que


momentos, o u em que entrevistas, nosso ganho é maior do que o de
simplesmente conhecer mais uma "versão" do passado? Este texto
sugere que uma das possíveis respostas é: quando a narrativa vai além
do caso particular e nos fornece uma chave para a compreensão da
realidade. E talvez isso aconteça mais incisivamente quando percebe-
mos o trabalho da linguagem em constituir racionalidades.

"Instrumental teórico"

A l g u n s conceitos e noções do terreno da teoria da literatura


podem nos ajudar a compreender melhor o que f o i proposto acima
como resposta. Vários autores têm destacado que a linguagem, em
vez de representar uma realidade preexistente, é ela mesma ato, pro-
dução de algo. Tal diferença, que mutatis mutandis remonta aos diálo-
gos entre Platão e os sofistas - uma dicotomia entre a linguagem "trans-
parente", de u m lado, e a retórica e a persuasão, de outro - e se en-
contra em Nietzsche e Wittgenstein, entre outros, tem claras implica-
ções epistemológicas, pois a ideia da linguagem como ação confere a
ela u m estatuto de produtora de realidade.
E m 1930, o h i s t o r i a d o r da arte e teórico da literatura André
Jolles p u b l i c o u , na Alemanha, o livro Einfache Formen (Formas sim-
ples), traduzido para diversas línguas, inclusive o português. 5 "For-

4 Ver Lima, 1989.


3Johannes Andreas Jolles, ou André Jolles, nasceu em Nieuwediep, na Holanda, em 1874, e
transferiu-se para a Alemanha nos anos 1910, vindo a falecer em Leipzig em 1946. Formas simples
foi publicado em 1976 pela Editora Cultrix (São Paulo).
Ouvir contar

mas simples", são, para o autor, aquelas que "não são apreendidas
nem pela estilística, nem pela retórica, nem pela poética, nem mesmo
pela 'escrita', talvez." Ele estuda nove delas: legenda, saga, mito, adi-
6

vinha, ditado, caso, memorável, conto de fadas e chiste. Uma forma


simples nasce sempre que, sob a égide de uma atividade mental, a
multiplicidade e a diversidade do ser e dos acontecimentos se condensa
em "gestos verbais", unidades indivisíveis que significam e remetem
novamente ao ser e aos acontecimentos. Por exemplo: expressões como
"um ladrão", num texto que conta a história de um roubo de carteira,
ou "ele abate o dragão", na história da vida de São Jorge, são unidades
indivisíveis do acontecimento que sempre aparecem quando a história
é contada. Segundo Jolles, esses "gestos verbais" são resultado do tra-
balho da linguagem em selecionar, no plano dos acontecimentos, aque-
les que encerram o sentido que a atividade mental lhes quer imprimir.
O estudo das formas simples permite, segundo Jolles, investigar
em detalhes o "itinerário que vai da linguagem à literatura". Elas 7

mostram que a linguagem produz (como o agricultor), fabrica (como


o artesão) e significa (no sentido de constituir significados), indepen-
dentemente do escritor ou poeta. Já nas "formas artísticas" ou "literá-
rias", condicionadas pelas escolhas e intervenções pessoais do artista,
não é mais na linguagem mesma que se condensa e cristaliza algo;
nelas, o máximo de concisão é alcançado por uma atividade artística
não mais repetível.
Na fronteira entre as formas simples e as artísticas, Jolles situa o
memorável, ou, no original, memorabile, tradução latina do grego
Apomnemoneuma, título de livro de Xenofonte que objetivava apresen-
tar a personalidade de Sócrates não a partir de uma abordagem pes-
soal (como havia feito Platão), mas a partir dos acontecimentos, tal
como Xenofonte os conservava na memória. O resultado é que a per-
sonalidade de Sócrates se impõe, endurece e cristaliza, na sucessão de
acontecimentos. Ou seja, na forma simples memorabile, o aconteci-
mento sempre progressivo condensa-se em determinados pontos, onde
é apreendido pela linguagem. A sucessão de acontecimentos está orien-

6 Jolles, 1976, p. 20.


7 Ibiã., p. 19.
Além das versões

tada por uma finalidade superior, um sentido que se imprime à narra-


tiva, e acaba imobilizada por este sentido. 8

Dois exemplos ajudam a entender melhor. Um deles é de um


recorte de jornal analisado por Jolles, que relata o suicídio de um con-
selheiro de comércio. O recorte traz detalhes que poderiam ser elimi-
nados em um relatório mais formal: para evitar constrangimento à
esposa, o conselheiro suicidou-se em uma noite em que ela estava no
concerto; o tiro foi ouvido pela vizinha, uma atriz famosa, que foi a
primeira a chamar médico e polícia. O outro exemplo é o da história
do assassinato, em fins do século XVI, do príncipe Guilherme de Orange,
ou Guilherme I de Nassau, que liderou o levante das Províncias Uni-
das contra a sangrenta repressão aos protestantes por parte da Coroa
espanhola. Não se trata, diz Jolles, de analisar a narrativa do ponto de
vista da ciência ou da filosofia da história. O que lhe interessa é observá-
la enquanto fato de língua. O assassinato do príncipe de Orange encarna
o sentido do todo da luta das Províncias Unidas. Como o recorte de
jornal, ele é um "recorte" da história: nele, a sucessão de aconteci-
mentos endureceu, coagulou.
Novamente detalhes poderiam ter sido suprimidos da história,
mas são frequentemente repetidos quando ela é narrada. Tendo sido
oferecidas recompensas pela morte do príncipe por parte do rei espa-
nhol Filipe I I e após um primeiro atentado frustrado, o homem que
logrará matá-lo planeja minuciosamente o crime. Aproxima-se da cor-
te fazendo-se passar por protestante perseguido. Um dia é surpreen-
dido em um setor pouco acessível do palácio investigando as possibi-
lidades de fuga e justifica-se lançando mão de uma mentira: estaria
muito mal vestido para aparecer na frente dos aposentos do príncipe.
Ao tomar conhecimento do fato, Guilherme de Orange manda entre-
gar-lhe dinheiro para que providencie melhores roupas, mas com a
quantia o assassino compra a arma do crime. No dia do assassinato, o
príncipe vestia seus trajes de gala, tinha acabado de ter uma conversa
animada no jantar e dirigia-se para a escadaria do andar superior, quan-

8 Característica semelhante foi apontada por Ricardo Benzaquen de Araújo com relação à
narrativa histórica, em sua análise sobre Capistrano de Abreu: a explicação dada para o passado
pelo historiador faz com que a flecha do tempo linear finalmente pare, aceitando uma conclusão
(Araújo, 1988, p. 49).
Ouvir contar

do foi atingido mortalmente por dois tiros da pistola do assassino, que


estava escondido em um recanto escuro.
Vamos à eficácia dos detalhes. O assassino confessou posterior-
mente que estava decidido a matar o príncipe. O fato de ter comprado
a pistola com o dinheiro que este lhe dera não teria mudado o curso
dos acontecimentos, mas, na narrativa, é eficaz para marcar a oposi-
ção entre a bondade do príncipe e a malevolência do assassino (que
mente e não hesita em comprar a arma com o dinheiro dado pela
vítima). A conversa animada e o traje de gala são eficazes para marcar
o contraste entre o movimento da vida e a morte repentina, entre a
alegria e o assassinato. O mesmo se pode dizer do recorte de jornal: o
contraste entre o suicídio, de um lado, e o concerto e a atriz famosa,
de outro. No memorabile, todos os pormenores do acontecimento su-
blinham, por discussão, comparação e confronto, a finalidade supe-
rior; eles a preenchem e são por ela preenchidos.
O memorabile é também a forma simples onde o concreto se rea-
liza. Não vemos mais o príncipe como o representante da revolta das
Províncias Unidas, mas como um homem que usa roupas de gala, que
tem um andar solene... Os objetos do memorabile são os documentos,
que tornam concreto o acontecimento (por exemplo, as roupas do
príncipe ou um buraco de bala na parede). 9

Jolles observa que a forma memorabile, surgida na época moder-


na, tornou-se tão corrente que parece não ser mais possível apreender
o acontecimento de outra maneira. As demais formas simples acaba-
ram subordinadas a ela e hoje são vistas como não sendo verdadeiras,
fidedignas etc. É o que ele chama, a certa altura, de "tirania da Histó-
ria". Mesmo as formas artísticas recorrem frequentemente aos pro-
cessos característicos do memorabile: um acontecimento imaginário,
para tornar-se digno de crédito, é cercado de indicações pormenoriza-
das, que contêm e sublinham, por discussão, comparação e confronto,
o sentido da narrativa. 1 0

9 Cada uma das formas simples tem, segundo Jolles, um objeto específico - o da legenda é a
relíquia, o do mito é o símbolo, e assim por diante.
A análise que Jolles faz de cada uma das formas simples é bastante arguta e permite verificar o
1 0

que estamos "perdendo" com a hegemonia do memorabile. Veja-se, por exemplo, em que consis-
tem, para ele, as formas simples mito, adivinha e ditado. Na origem do mito, diz Jolles, está uma
Além das versões

Intervalo
É claro que não podemos simplesmente afirmar que as entrevis-
tas de história oral são exemplos da forma simples memorabile. Mas
não há dúvida de que o "instrumental teórico" da teoria da literatura
pode nos ajudar a identificar características importantes. Podemos dizer
que a entrevista de história oral se torna mais pregnante quando o
fluxo dos acontecimentos está ordenado por, e ao mesmo tempo orde-
na, u m sentido. E porque não estamos lidando com "formas artísti-
cas", resultado de u m trabalho de aprimoramento do texto, cujo obje-
tivo é chegar a u m resultado único e definitivo, podemos, ao conduzir
e ouvir nossas entrevistas, observar, em alguns casos, o processo mes-
mo de constituição de sentido através da sucessão de acontecimentos.
Voltemos à pergunta anterior: em que momentos de nossas entrevis-
tas de história oral aprendemos algo sobre a realidade, para além de
apenas conhecer mais uma "versão"? Quando a relação entre aconte-
cimentos e sentido se condensa, ou se imobiliza, em acontecimentos-
chave (o assassinato do príncipe de Orange), em gestos verbais ("ele

pergunta feita pelo homem ao mundo acerca da natureza profunda de seus fenómenos. O m i t o é
a resposta que apazigua a pergunta original. Trata-se, pois, da forma simples na qual, por
intermédio de pergunta e resposta, o mundo é criado ao homem. A adivinha (ou enigma) é outra
forma que se atualiza em perguntas e respostas. Entretanto, ao contrário do mito (uma resposta
que contém uma pergunta original), a forma simples da adivinha é uma pergunta que contém
uma resposta: o perguntado sabe que alguém antes dele j á soube a resposta. O mito fala da relação
entre o homem e o m u n d o , enquanto a adivinha trata da relação (de poder) entre dois homens
( u m que sabe e outro que não sabe). J á o ditado (ou provérbio) é a forma simples do m u n d o da
empiria; ele encerra uma experiência, sem que com isso deixe de ser u m caso particular. Ao
contrário do que possa parecer, o provérbio não é didático, não é u m ponto de partida para u m
aprendizado; sua tendência é a retrospecção e a resignação. Quando se diz "Não se deve cantar
vitória antes da batalha", em geral é porque o que não se deve fazer j á ocorreu. Seu estilo é
afirmativo (e nisso se distancia do mito e da adivinha, que são dialógicos) e a linguagem utilizada
é única - toda palavra é sempre Jiíc et nunc (aqui e agora). Em "A mentira tem pernas curtas", por
exemplo, duas coisas sem qualquer ligação são reunidas e o resultado é u m significado que só se
constitui enquanto experiência. Jolles observa que a forma simples ditado é hoje mais c o m u m do
que a saga ou a legenda. Isso ocorre porque ela nos poupa de elaborar vivências e percepções.
Não precisamos tirar consequências conceituais das experiências; com o ditado ou o provérbio,
as experiências podem ser arquivadas como experiências apenas. O u seja, essas formas simples
mostram que existem outras atividades mentais para além da organização de acontecimentos do
memorabile ou da história. O ditado o u provérbio não ordena experiências de acordo com u m
sentido; apenas deixa-as como estão. M i t o e adivinha não tratam de acontecimento, mas de
pergunta e resposta. E assim por diante.
84 Ouvir contar

abate o dragão"), unidades indivisíveis sem as quais não podemos apre-


ender novamente o sentido. Quando isso acontece, a entrevista nos
fornece passagens de tal peso que são "citáveis".
Em u m artigo em que faz considerações metodológicas sobre a
história oral, Lutz Niethammer, que durante muitos anos coordenou o
projeto Lusir, na A l e m a n h a , 11 identifica quatro componentes do "tex-
t o " da entrevista. E m p r i m e i r o lugar, trata-se do registro de u m a
interação social (entre entrevistado e entrevistador); em segundo, de
uma ou mais versões da história de vida do entrevistado; em terceiro
lugar, o texto reúne uma variedade de informações, que p o d e m ser
verdadeiras o u não (e cabe ao pesquisador indagar-se sobre sua
plausibilidade, comparando-as com outras fontes); em quarto lugar,
finalmente, quase toda entrevista contém histórias. "Essas histórias",
diz Niethammer, "são o grande tesouro da história oral, porque nelas
se f u n d e m , esteticamente, declarações objetivas (podemos dizer: os
acontecimentos) e de s e n t i d o . " 12 "Boas histórias", continua, não se
deixam traduzir por uma " m o r a l " , porque o significado do que é nar-
rado se cristaliza no conjunto da narrativa. E porque, nessas histórias,
o sentido é apreendido do conjunto, elas são especialmente "citáveis",
têm força estética. Apresentadas ao público juntamente com propos-
tas de interpretação histórica, p e r m i t e m que haja uma ampliação do
conhecimento.

Voltando à teoria da literatura

Além de Jolles, outros autores conferem ao acontecimento u m


lugar central na narrativa e enfatizam a relação intrínseca entre a or-
ganização dos fatos e a cristalização do sentido, ou dos conceitos.
Karlheinz Stierle (1936), professor de literatura na Universidade de
Konstanz, Alemanha, desenvolve essas ideias em u m artigo, à luz de
u m pequeno texto de Johann Peter Hebel (1760-1826), escrito para

1 1 Sobre esse projeto, ver o capítulo 3 deste livro.


1 2 Niethammer, 1985, p. 407.
Além das versões

sua série de "histórias de c a l e n d á r i o " . 13 O texto conta a história de


u m mineiro e de sua noiva, na Suécia. N u m a manhã do ano de 1760, o
m i n e i r o passou pela última vez na casa da noiva, para se despedir
antes de i r para o trabalho, onde encontraria a morte. A moça, que
costurava u m lenço de seda para o noivo usar no dia do casamento
dali a oito dias, aguardou em vão seu retorno e não o esqueceu jamais.
Entrementes, diz o texto, ocorreu o terremoto de Lisboa, a Guerra
dos Sete Anos, a extinção da Companhia de Jesus, a América libertou-
se, começou a Revolução Francesa, Napoleão conquistou a Prússia, os
camponeses plantavam, o moleiro moía, os ferreiros martelavam e os
mineiros cavavam a montanha em busca de metais. Quando, entretan-
to, no ano de 1809, eles encontraram o cadáver de u m j o v e m embebi-
do em água vitriolada, que se podia reconhecer claramente, como se
tivesse morrido uma hora antes ou adormecido u m pouco, ninguém o
reconheceu: pai, mãe, conhecidos e amigos j á haviam morrido há m u i t o .
F o i então que sua noiva, cinza e encurvada, apareceu na praça e, de-
pois de se debruçar sobre o amado, revelou: "É meu noivo, cuja morte
eu chorei durante 50 anos e que agora Deus ainda permite que eu
veja, antes do meu f i m . " N o dia seguinte, envolveu o pescoço do j o v e m
com o lenço de seda, antes de acompanhá-lo ao cemitério, e despediu-
se dizendo que em breve o encontraria.
Essa narrativa de Hebel é especialmente pregnante, diz Stierle,
porque ela conserva o acontecimento presente, como se ele se sobre-
pujasse à história. A justaposição de fatos "históricos" no meio da nar-
rativa (o texto relaciona u m número bem maior do que o resumo fei-
to) tem u m significado subordinado, dado pela própria enumeração:
sua função na narrativa é mostrar o quanto a passagem do tempo é
insignificante. O eixo de uma narrativa, diz Stierle, é a diferença entre

1 3Stierle, 1977, p. 210-233. As Kalendergeschichten, histórias de calendário (semelhantes às


nossas histórias de almanaque), eram histórias curtas, em que se narravam acontecimentos
interessantes, muitas vezes originários de experiências de pessoas comuns, com a intenção de
divertir ou de instruir. Hebel destacou-se como autor dessas histórias e seus textos até hoje são
objetos de estudo. A história em questão está publicada no Brasil na excelente antologia do conto
mundial organizada por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai: Johann Peter
Hebel. "Encontro inesperado." i n : Ferreira & Rónai (org.). Mar de histórias: antologia do conto
mundial, II: do f i m da Idade Média ao Romantismo. 4 ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998,
a

p. 266-268.
Ouvir contar

o ponto de chegada (seu f i m ) e o ponto de partida (seu princípio).


Apenas quando essa diferença pressupõe u m a mudança conceituai,
quando algo m u d o u de forma relevante, é que vale a pena contar uma
história. E o que m u d o u , neste caso? Qual conceito abstrato organiza
a narrativa? A oposição entre vida e morte: o cadáver passa da morte
para a vida, a noiva velha percorre o sentido inverso, e o futuro que se
descortina é a suspensão da morte, concretizada na esperança cristã
da vida eterna.
O que temos, então? Uma história em que o plano dos aconteci-
mentos é relevado ao máximo e que, mesmo assim, está carregada de
sentido. Observe-se que o sentido é dado por u m par de oposição:
vida e morte (o mesmo que marca, entre outros, a narrativa do prínci-
pe de Orange). Stierle enumera outras possibilidades: guerra e paz,
crime e pecado, vermelho e preto... Ainda que o narrador possa esco-
lher o sistema de conceitos sob o qual construirá sua narrativa, pode-
mos dizer que dispõe de u m número limitado de possibilidades. Stierle
faz r e m o n t a r a ideia dos conceitos abstratos à teoria dos m i t o s de
Claude Lévi-Strauss, que, como se sabe, pressupõe unidades de oposi-
ção estruturalmente determinadas (limitadas, pois): v i d a - m o r t e , h o -
mem-mulher, dia-noite etc.
C o m propósitos diferentes (porque concernentes à teoria da
história, e não à teoria da narrativa ou dos mitos), mas n u m m o v i m e n -
to semelhante, Reinhart Koselleck identifica cinco categorias como
fazendo parte das condições de surgimento dos acontecimentos no
passado: (1) a inevitabilidade da morte e a possibilidade de matar e de
ser m o r t o (faculdades responsáveis por muitas das histórias que co-
nhecemos), (2) a sucessão de gerações, e as oposições entre (3) ami-
go e i n i m i g o , (4) fora e dentro (ou público e privado) e (5) em cima e
embaixo (nas organizações p o l í t i c a s ) . 14 Essas categorias ou pares de
oposição p e r m i t e m que surjam histórias.
Podemos inferir algumas implicações dessa discussão para o caso
das narrativas "citáveis" que aparecem em algumas entrevistas de his-
tória oral. Não que as cinco categorias de Koselleck o u os pares de

1 4 Koselleck, 1987. Discorro sobre esse texto de Koselleck no artigo " A existência na história:
revelações e riscos da hermenêutica" (Alberti, 1996).
Além das versões 87

oposição da teoria dos mitos de Lévi-Strauss esgotem todas as possibi-


lidades. Mas talvez seja possível dizer que algumas das "boas histó-
rias" de nossas entrevistas são atreladas a sistemas de conceitos bási-
cos na apreensão do m u n d o (como vida e morte, certamente).

Uma imagem, para reter o principal

N o início de seu l i v r o , André Jolles identifica três direções da


ciência (ou teoria) da literatura: a estética, a histórica e a morfológica,
que i n t e r p r e t a m os fenómenos literários de acordo com sua beleza,
com as condições históricas e individuais de produção e com sua for-
ma, respectivamente. É na última direção, a morfológica, que Jolles
situa sua pesquisa.
A primeira direção surgiu no século X V I I I , quando a pergunta
sobre a essência da arte, que j á existia desde o Renascimento, se trans-
f o r m o u na pergunta sobre a experiência estética. Nesse momento, os
suportes da obra de arte (a mídia) passaram a ser objetos de reflexão,
sendo comparados e investigados quanto a seu desempenho. Dois de-
les tiveram então uma função p r i m o r d i a l : a pintura e a literatura.
É nesse contexto que o escritor G o t t h o l d Ephraim Lessing (1729-
1781) escreveu u m livro que se tornou clássico: Laocoonte, ou sobre a
fronteira entre pintura e poesia, publicado pela primeira vez em 1 7 6 6 . 15

Laocoonte é uma figura lendária da Antiguidade. Sacerdote em Tróia,


teria aconselhado os troianos a não recolherem o cavalo de madeira
que trazia guerreiros em seu interior, e por isso teria sido castigado
pelas divindades protetoras dos gregos, que enviaram duas monstruo-
sas serpentes marinhas para matá-lo j u n t o com dois filhos. A história
foi contada em poema de Virgílio e representada em famosa escultura
do século I I a . C , na qual se vêem u m belo Laocoonte e seus dois filhos
contorcendo-se de dor e debatendo-se c o m as serpentes. Vista por
muitos como exemplo da perfeição da arte na Antiguidade, por causa

Lessing, 1990. Sobre o livro m u i t o já foi escrito. Merece destaque a coletânea Das Laokoon-
1 5

Projekt. Plane einersemiotíschenÁsthetik, organizada por G. Gebauer (StuttgartJ. B. Metzlersche


Verlag, 1984), com artigos de Tzvetan Todorov e Karlheinz Stierle, entre outros.
Ouvir contar

de sua força expressiva e sua dramaticidade, a escultura é o ponto de


partida do texto de Lessing, que se pergunta por que seu autor não
representou o sacerdote gritando, como aparece no poema. Porque,
responde, era preciso combinar beleza e dor; se o escultor abrisse a
boca de Laocoonte em u m grito, ele ficaria para sempre gritando, a
escultura seria feia e repugnante, fazendo com que desviássemos dela
nosso olhar.
Esse é o ponto de partida para Lessing discutir a diferença entre
as artes plásticas e a literatura. Ao contrário do escultor ou do pintor,
que representa uma parte da ação parada e visível, o poeta não precisa
se concentrar em u m único momento; ele pode falar de várias ações,
do início até o final, inclusive daquilo que não é visível (da música, por
exemplo). Cada arte tem sua especificidade: o objeto da pintura são
corpos no espaço, enquanto o objeto da literatura são as ações no
tempo. Quando o escritor descreve o espaço (uma paisagem, por exem-
p l o ) , precisa de m u i t o tempo para tornar claras cada uma das partes
e, quando chega ao f i m , geralmente já esquecemos o começo. Para o
olho que vê uma pintura, ao contrário, os objetos observados perma-
necem presentes na apreensão do todo. O próprio da poesia é, portan-
to, a progressão do tempo, enquanto o próprio da pintura é a beleza
no espaço.
Estabelecidas essas diferenças, podemos dizer que, para o poeta
e para o pintor, representar o objeto próprio da outra arte produzindo
u m efeito estético é u m desafio. Na arte, diz Lessing, é preciso suscitar
a imaginação: se Laocoonte suspira, a imaginação pode ouvi-lo gritar,
mas se j á gritasse, não haveria mais nada a imaginar, a não ser vê-lo
morto. O quadro belo talvez seja aquele que sugere a progressão do
tempo - justamente aquilo que não é objeto da p i n t u r a . Pensemos,
por exemplo, na Criada com cântaro de leite, de Vermeer (1658), em
que se "vê" a passagem do tempo no filete de leite sendo vertido do
bule; ou no Quarto de Van Gogh, que, na sua imobilidade, sugere a
existência anterior e posterior ao registro; ou mesmo na Monalisa...
J á a poesia bela seria aquela que, narrando os acontecimentos
no tempo, conseguisse chegar a u m quadro, a uma imagem, justamen-
te, que condensasse e imobilizasse o que f o i dito. Lessing observa como
Homero descreve a beleza de Helena, na Ilíada. Não é apresentando
Além das versões

os e l e m e n t o s u m a p ó s o o u t r o , p o i s seria i m p o s s í v e l ao l e i t o r i m a g i n a r
q u e e f e i t o t e r i a m e m c o n j u n t o a b o c a , o n a r i z e os o l h o s descritos.
H o m e r o " p i n t a " a bela H e l e n a a t r a v é s da p r ó p r i a a ç ã o , u s a n d o a o p i -
n i ã o de o u t r o s p e r s o n a g e n s . O m e s m o r e c u r s o é u s a d o p a r a d e s c r e v e r
a r o u p a de A g a m e n o n : o rei se veste e, ao f i n a l da a ç ã o , p o d e m o s " v ê -
l o " c o m todas as p e ç a s de sua r o u p a .
A c o m p a r a ç ã o e n t r e as e s p e c i f i c i d a d e s e os desafios de p i n t u r a e
poesia, tais q u e analisadas p o r L e s s i n g e o u t r o s ( v e r n o t a 1 5 ) , p o d e m
n o s a j u d a r a r e t e r a p r o p o s t a p r i n c i p a l deste t e x t o . A s n a r r a t i v a s na
h i s t ó r i a o r a l (e n ã o s ó elas) se t o r n a m e s p e c i a l m e n t e pregnantes, a
p o n t o de s e r e m " c i t á v e i s " , q u a n d o os a c o n t e c i m e n t o s n o t e m p o se
i m o b i l i z a m e m i m a g e n s q u e n o s i n f o r m a m s o b r e a r e a l i d a d e . É neste
m o m e n t o q u e as e n t r e v i s t a s n o s e n s i n a m algo m a i s d o q u e u m a v e r s ã o
d o passado. N e m todas a p r e s e n t a m essas p o s s i b i l i d a d e s , m a s q u a n d o
a p r e s e n t a m , p o d e m se t o r n a r ricos p o n t o s de p a r t i d a para a a n á l i s e .

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