O Caso Ana
O Caso Ana
O Caso Ana
O caso de Ana
Tatiana Wargas de Faria Baptista, Cristiani Vieira Machado e Luciana Dias de Lima
O bairro onde Ana reside conta com uma unidade de Saúde da Família. A unidade funciona de 7h a
17h, de segunda a sexta, mas não funciona nos finais de semana. Ana faz parte de uma das famílias
acompanhadas pelo Programa.
A história de Ana começa num sábado. Ana acorda com uma sensação de incômodo em uma das
mamas e percebe uma secreção no mamilo. No autoexame percebe que há um volume diferente e até
então ine- xistente em sua mama. Temerosa por já ter tido um caso de câncer de mama na família,
Ana logo procura atendimento médico e recorre ao pronto-socorro municipal, já que a unidade de
Saúde da Família de seu bairro não abre nos finais de semana.
No pronto-socorro Ana espera por algumas horas e é atendida pelo plantonista.
– A senhora não precisa se preocupar, não se trata de uma emergência. Seu médico poderá
avaliar melhor o seu caso. Por ora, vou lhe receitar um analgésico. Esta semana procure o médico da
sua unidade e relate o ocorrido – finalizou.
Ana sai desolada do pronto-socorro; não queria adiar uma solução para o seu caso. E o desconforto na
mama persistia. Restava-lhe tomar o analgésico.
Na manhã de segunda-feira, Ana acorda cedo e ruma para o Centro de Saúde. Havia uma pequena
fila em frente à unidade. A enfermeira recebe Ana e ela explica o ocorrido. Ana consegue ser logo
atendida e o médico da Saúde da Família a examina.
– É, dona Ana, parece que temos uma infecção aqui e também percebi um pequeno volume
na mama direita – resume o médico.
– É grave, doutor? – questiona Ana.
– Não posso ainda afirmar. É preciso ter a opinião de um especialista. Vou pedir que a senhora
vá a um ginecologista para que possamos ter uma segunda opinião. Além disso, só o especialista
poderá solicitar um exame mais específico, como a mamografia. Mantenha a medicação receitada
pelo médico do pronto-socorro caso venha a sentir dor.
O médico entrega a Ana um papel de solicitação de atendimento espe- cializado, sem qualquer
especificação do serviço de referência. Ana sai da unidade triste e pensativa:
– Um pequeno volume na mama... Será um caroço? Será que estou com um câncer, assim como
minha avó? – angustia-se Ana. E esse pedido do médico? Onde tem ginecologista aqui no município?
Será que no pronto-socorro tem?
Ana sai da unidade sem discutir suas dúvidas. A enfermeira que a atendeu a vê saindo, mas como
está envolvida com outros atendimentos não consegue saber se Ana precisa de mais alguma coisa.
Todos os profissionais da unidade estão envolvidos com algum atendimento.
Assim que seus filhos saem, Ana resolve procurar uma vizinha, uma amiga de infância. Ana
precisava contar para alguém o que se passava e precisava também se informar onde haveria médicos
ginecologistas no município. A amiga de Ana trabalha na prefeitura e informa que, no hospital municipal,
além do pronto-socorro há também alguns ambulatórios com especialidades, dentre eles a ginecologia. Ana se
despede de sua amiga e vai imediatamente para o hospital municipal.
Eram 15h quando Ana chega ao hospital. Na recepção, Ana busca informações sobre a marcação de
consultas.
– Boa tarde. Preciso de uma informação. Estou com a solicitação do meu médico para um
atendimento com o ginecologista. Onde posso agendar a consulta? – pergunta Ana.
– O horário para agendamento de consultas é até as 14h, mas já te adianto que há uma fila
de espera de mais de dois meses para o ginecologista.
Ana insiste:
– Mas estou com muita dor e preciso fazer essa consulta com urgência. A atendente não se
sensibiliza:
– Todas dizem a mesma coisa. Se for de fato uma urgência vá ao pronto socorro. Agora, se
quiser marcar uma consulta, volte amanhã até as 14h – a atendente encerra a conversa.
Ana não entende por que tanta má vontade; não entende também por que a definição de um
horário tão rígido e restrito para marcar as consultas; não entende por que tem uma fila de dois meses
para o ginecologista. E se questiona: será que há muitas mulheres precisando de consulta de
ginecologista ou será que há pouco médico no município? Não é possível que ninguém nunca
tenha reparado que isso é um problema! Ana fica irritada com toda a situação, mas também se sente
impotente. Volta para casa e de novo se vê envolvida com seus afazeres; a dor persiste e o analgésico
parece não fazer mais efeito. Ana se programa para voltar à unidade da ESF no dia seguinte.
Na terça-feira, Ana procura novamente o médico da Saúde da Família e relata o ocorrido. Preocupado
com a dificuldade de Ana para marcar a consulta com o especialista e com seu estado clínico, que
parecia agra- var-se com o aumento do volume da secreção, o médico prescreve um antibiótico e
resolve solicitar uma mamografia com urgência, mesmo sabendo que a regra do município permitia
apenas a solicitação desse exame por um especialista. O médico sabe também que esse não é um
exame disponível no município e orienta Ana a buscar o município vizinho, localizando a unidade que
realiza o exame.
Ana segue para a cidade vizinha e vai para a unidade. Ao tentar realizar o exame descobre que também nesse
município só realizam mamogra- fia se solicitada por um ginecologista e não consegue marcar o exame.
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Ana mais uma vez volta para casa sem solução para o seu problema. A angústia só aumenta a cada
dia. Ela resolve ir até a capital para tentar realizar o exame. A capital fica a duzentos quilômetros de
sua residên- cia e exigirá que Ana fique distante de casa por alguns dias. Ana tem conhecidos na
cidade e poderá contar com a ajuda deles. Em sua casa a comoção é total. O marido de Ana fica
atordoado, não sabe bem como ajudar. Os filhos de Ana percebem a angústia da mãe e também se
angustiam. Ana pede ajuda a uma irmã para os dias em que ficará fora.
Dois dias depois, tendo resolvido como fazer para se afastar de casa, Ana vai para a capital.
Na capital, Ana se depara com uma série de problemas. Apesar da oferta de serviços de saúde ser bem
maior que em sua região, os problemas também são complexos: aparelhos quebrados, falta de
profissional para manusear o equipamento, falta de médico para dar o laudo, filas para a realização de
exame etc. Foram várias negativas, algumas com a mesma justificativa do município vizinho,
condicionando o exame ao pedido de um especialista. Após várias tentativas e tendo passado quatro
dias, Ana consegue finalmente marcar o exame para dois meses. Sua amiga da capital havia
conseguido uma ajuda com um conhecido que traba- lhava num hospital do município. Ana volta para
casa. Já não estava mais com dor, pois o antibiótico tinha surtido efeito.
Ana volta à capital depois de dois meses e realiza finalmente a mamo- grafia. Mais quinze dias e o
laudo estaria disponível, informa a auxiliar de enfermagem. Ana imaginava que teria o resultado no
mesmo dia. Retorna para casa e pensa como será se tiver que fazer um tratamento na capital, se terá
dinheiro para tantas passagens, para a comida, e os dias que ficará sem trabalhar porque estará em
tratamento. Ana é uma trabalhadora autônoma, vende bijuterias, roupas e outras coisas. Sua vida já
não andava fácil; se ficasse doente então...
Ana pega o exame. Curiosa lê o laudo, mas não consegue saber se o que tem é ou não ruim. Ana leva
o resultado ao médico do Saúde da Família.
– Doutor, só agora estou com o resultado da mamografia que o senhor me solicitou há três
meses. Enfrentei tantos problemas... Só consegui fazer o exame na capital – explicou Ana.
– A senhora foi à unidade de que lhe falei? – questionou o médico.
– Sim, mas eles não aceitaram o seu pedido, disseram que só de especialista. Na capital também
não queriam aceitar, mas aí um conhecido da minha amiga que trabalha no hospital conseguiu para
mim. Assim mesmo só depois de muito lamento.
– É, esse é um problema difícil de resolver..., mas vamos ao exame. Pelo que está aqui, a senhora
tem uma imagem que sugere uma neoplasia, um câncer. Precisamos fazer rápido uma biópsia. Não
podemos perder mais tempo – resume o médico.
– Ai, doutor, outro exame? – angustia-se Ana.
– Dona Ana, não vou lhe enganar, é preciso fazer o exame o mais rápido possível. Se for um
câncer maligno podemos ter menos pre- juízos, dependendo da nossa agilidade. Se demorarmos muito
poderá lhe causar mais problemas. Assim, como já foi muito difícil realizar o primeiro exame vou
fazer algo diferente desta vez. Vou recorrer direto à Secretaria Municipal de Saúde para ver se eles
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O caso de Ana
O médico sai do consultório e conversa com a enfermeira. Depois de alguns telefonemas ele retorna e
explica:
– Dona Ana, na Secretaria Municipal de Saúde, no gabinete do secretário, tem uma senhora que
se chama Socorro. Ela é a responsável da Secretaria por tentar marcar exames complexos em outros
municípios. A senhora irá até lá e levará o meu pedido para ela. Já explicamos toda a situação, basta
entregar o pedido que ela explicará o que deve ser feito.
Ana segue rápido para a Secretaria de Saúde, nem acredita que não terá que passar por tudo de
novo para fazer um exame. Mas pensa: puxa vida, por que o médico não fez isso antes? Será que
isso é só para quem está numa situação muito grave? E como ficam todas aquelas pessoas que não
têm essa oportunidade de ir direto à Secretaria, pessoas como eu, meses atrás? Mas Ana para de
se questionar. Era preciso resolver seu problema e ela não podia resolver o problema de todos.
Chegando à Secretaria, Ana procura dona Socorro e lhe entrega o pedido do médico. Socorro olha o
pedido e comenta:
– Mais uma biópsia de mama, quantas será que vamos solicitar esse mês? Já está difícil agendar.
Filhinha, espera ali que quando eu tiver uma resposta eu te chamo.
Ana senta-se numa sala cheia de outras pessoas, algumas ali na mesma situação de Ana, outras
mais complicadas. Parecia até que Ana estava num pronto-atendimento. Todo mundo tinha um
caso para contar. Mais ou menos depois de uma hora e meia, Socorro chama Ana e lhe informa:
“consegui agendar seu exame para daqui a dois meses lá na capital, foi o melhor que pude fazer.
As unidades estão lotadas”.
Ana sai mais uma vez desolada. O que fazer? Se aquela senhora não havia conseguido marcar o
exame para antes de dois meses, ela sozinha não teria a menor chance. Ana pensa em fazer o exame
particular, mas descarta rapidamente a ideia; as dívidas que acumulava não permitiam que ela
pensasse nessa possibilidade.
Após dois meses Ana realiza a biópsia e o resultado indica uma neoplasia maligna. Dessa vez ela lê o
laudo e consegue perceber a gravidade. Leva rapidamente o laudo para o médico do Saúde da Família
que decide encaminhá-la a um mastologista:
– Dona Ana, o que eu podia fazer eu já fiz, agora é preciso um tratamento com um especialista.
O melhor tratamento está na capital, mas é melhor a senhora voltar à Secretaria de Saúde e procurar
aquela mesma senhora da outra vez. Certamente será mais fácil. Já são seis meses desde a sua
primeira consulta aqui no PSF, é preciso agilizar, lembre-se do que eu lhe disse da última vez.
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Cena 3 – Tratar é cuidar?
Ana recorre novamente à Secretaria Municipal de Saúde para agendar a consulta do mastologista.
Como no município não há essa especiali- dade, Socorro marca o atendimento no hospital estadual da
capital, que é credenciado como Centro de Complexidade em Oncologia (Cacon).
A consulta é agendada para um mês e novamente Ana escuta os comen- tários de Socorro sobre a
situação de saúde no município:
– Olha, a cada dia é mais difícil agendar consultas especializadas e exames; só consegui sua
consulta para daqui a um mês. Nem pense em faltar, porque senão fica ainda mais difícil. Não esqueça
também de levar todos os exames que já realizou – diz Socorro.
Ana agradece o agendamento e sai da Secretaria. Mais uma vez sente aquele sentimento
desconfortável de como se estivesse sendo mais beneficiada do que outros. “Essa dona Socorro é
poderosa”, pensa ela.
No mês seguinte, Ana estava lá no horário e dia agendados para a con- sulta. Ela e outras dezenas de
mulheres, vindas de vários cantos do estado. Parecia, de fato, que aquele era o único lugar de
tratamento do câncer de mama no estado.
Ana é recebida pelo mastologista que a examina e analisa os laudos de seus exames realizados. O
médico é taxativo:
– Dona Ana, a senhora já está ciente de que tem um nódulo maligno e que precisa retirá-lo.
No momento, este nódulo tem aproximadamente dois centímetros e não há aparência de
comprometimento clínico da sua cadeia linfática axilar, o que significa que existe a possibilidade de
não precisarmos retirar a mama toda. A senhora poderá voltar às suas atividades normais. Para
dar continuidade ao tratamento, temos que realizar uma bateria de exames para saber exatamente
qual é a situação atual da sua doença. Só assim poderemos saber o que fazer e tomar nossas
decisões – explica o médico.
No setor de marcação de exames, Ana descobre que terá que fazer várias idas à unidade para realizar
os exames, pois nem todos podem ser rea- lizados no mesmo dia. Além disso, um dos exames teria
que aguardar o conserto de um aparelho quebrado. Com isso, Ana levou quase três meses para fazer
todos os exames solicitados e obter os laudos. Além dos exames, Ana tinha que participar de reuniões
com outros pacientes em tratamento, com o objetivo de discutir e compreender melhor a doença e
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O caso de Ana
As idas e vindas de Ana à capital oneravam seu orçamento e apenas faziam-na sentir-se mais e
mais cansada. Um monte de questões sempre passava por sua cabeça: por que esses aparelhos estão
sempre quebrados? Uma unidade não pode emprestar para a outra ou usar o equipamento da
outra? Será que alguns exames mais simples não poderiam ser feitos no meu município? Ninguém
pensa que tudo isso pode prejudicar ainda mais a vida das pessoas? Por que tantas reuniões de
esclarecimento? E quem não tem dinheiro para pagar todas essas passagens, como fica? Vai ver que é
por isso que muita gente falta e aí a dona Socorro ainda fica brava com a falta. Vai entender...
Na consulta com o mastologista para a avaliação dos resultados dos exa- mes, Ana recebe a notícia de
que fará uma cirurgia de retirada parcial da mama, mas que durante o procedimento cirúrgico será
feita uma avaliação pelo médico patologista. Dependendo do resultado, a conduta poderá ser de
retirada de toda a mama (mastectomia). Ana assina um termo de consentimento informado e tem sua
cirurgia marcada para dali a três semanas.
A cirurgia foi um sucesso, mas Ana teve que retirar toda a mama e ainda esvaziar o conteúdo
ganglionar de sua axila, pois havia indícios de comprometimento metastásico. Após três semanas,
Ana recebe alta hospitalar e é encaminhada para o serviço de oncologia clínica do hospital para iniciar
o tratamento de quimioterapia. O hospital agenda a consulta com o oncologista para quatro semanas, e
Ana se desespera, achando que é muito tempo de intervalo. Com medo, recorre a um dos
mastologistas do ambulatório do hospital (aquele que lhe pareceu mais atencioso com ela).
– Doutor, desculpe-me incomodá-lo, sei que o senhor já está de saída, mas estou muito
angustiada. Só consegui agendar a consulta com o oncologista para daqui a quatro semanas. Tenho
filhos ainda para criar, doutor. Já estou há muito tempo tentando resolver meu problema, estou com
muito medo... – intercede Ana.
– Calma, dona Ana, vou ver o que posso fazer – fala o mastologista. O médico pega o celular e liga para
seu colega oncologista. Explica o caso e desliga o telefone. Dona Ana, na terça-feira que vem o
doutor Carlos irá atendê-la. A senhora deve chegar cedo, ele fará um encaixe para a sua consulta.
– Obrigada, doutor. Nem sei como agradecer.
Após essa consulta, popularmente chamada de “gato”, ela consegue iniciar as sessões de
quimioterapia. Ana então passa a entender que dentro do hospital não existe um fluxo correto entre os
diversos serviços envolvidos no tratamento de uma patologia como a sua, e que as relações informais,
associadas à simpatia, são elementos importantíssi- mos para a obtenção de resultados.
Ana passou os quatro meses seguintes em tratamento com quimioterapia; depois foi encaminhada
para o setor de radioterapia.
Ana levou um grande choque após a cirurgia, ao descobrir que estava sem a mama e que teria ainda
que se submeter por um tempo ao trata- mento de quimioterapia e radioterapia. Todo o tratamento
deprimia-a ainda mais. De volta para casa, não encontrava consolo. Sentia-se envergonhada, inútil,
não sabia mais como se posicionar diante dos filhos e do marido. Enquanto esteve no hospital, o
ritmo acelerado dos profissionais parecia não dar espaço para uma conversa sobre esses sentimentos.
O único espaço possível eram as reuniões abertas com os pacientes. Ana resumia-se a comer e
dormir, mais dormir do que comer. As visitas de amigos que recebia mais a angustiavam do que a
acalentavam. A família não sabia mais o que fazer para animá-la.
Concluído o tratamento, Ana é orientada a fazer o acompanhamento clínico (seguimento) por meio de
consultas semestrais e mamografias anuais.
De volta à unidade de Saúde da Família, o médico a orienta de que o melhor acompanhamento de seu
caso é o hospital da capital que realizou o tratamento, apesar de o município vizinho possuir
ginecologista e mamografia disponíveis. Ana não suportava mais pensar em voltar à capital, mas enten-
dia que ali talvez fosse o lugar mais adequado para o acompanhamento.
Ana já não é mais a mesma. Não sente mais as dores físicas da doença, mas é uma mulher marcada
por um grande sofrimento, se sente insegura e deprimida com sua condição de saúde, o que repercute
na sua vida conjugal e familiar. Todo seu percurso pelo sistema de saúde do município e da capital
havia deixado nela uma marca de tristeza; ela presenciou problemas mais graves que o seu, e se sentiu
insegura em muitos momentos. Sua cirurgia havia sido um sucesso, diziam os médicos, mas ela se
questionava: que sucesso é esse que me retirou a mama? Se eu tivesse conseguido fazer logo os
exames teria sido esse o meu destino? Ana pensava em suas opções. Conhecia pessoas que haviam
cansado do sistema público e que compravam planos de saúde particulares, mas Ana não achava isso
justo, conhecia seus direitos e sabia que os planos não davam conta dos problemas mais complexos.
O que Ana queria mesmo era que o sistema público de saúde funcionasse, mas nesse momento,
depois de toda a experiência vivida, só lhe restava rezar.
Iniciada a reunião do Conselho, Ivan solicita a entrada, como ponto de pauta, do caso de dona Ana.
– Prezados senhores e companheiros de Conselho, esta semana tomei conhecimento de um caso
grave que denuncia a qualidade da atenção à saúde no nosso município. Trata-se de uma senhora de
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O caso de Ana
51 anos que teve um diagnóstico de câncer de mama e ficou mais de nove meses para iniciar de fato o
seu tratamento. Iniciado o tratamento verificou-se a gravidade do caso, especialmente pela demora no
combate à doença. E tudo isso ocorreu por quê? Porque em nosso município, em nossa região, não há
equipamentos disponíveis ou médicos suficientes para atender à demanda. Ela pulou de assistência em
assistência até conseguir atendi- mento na capital. E lá também encontrou muitas dificuldades. Hoje,
essa mulher está sem uma mama e extremamente afetada emocionalmente; é uma outra pessoa, não se
reconhece mais. É essa a assistência à saúde que desejamos para o nosso município? Penso que esse
caso pode servir para refletirmos sobre a saúde na nossa região.
– Senhor Ivan, eu não entendi um aspecto da questão, essa senhora não conseguiu o atendimento
no município que nos serve de referência? – questiona outro conselheiro.
– Não. Ela não conseguiu realizar a mamografia nesse município, negaram porque ela só tinha o
pedido do médico da Saúde da Família – responde Ivan.
– Mas todo mundo sabe que tem uma regra, que exame especializado é só com o pedido do
especialista, não pode ser da Saúde da Família. Esse médico não sabia disso? – retruca outro
conselheiro.
– Pois é, mas é que havia uma fila de dois meses para a consulta com o especialista e o médico
da Saúde da Família já estava preocupado, por isso solicitou a mamografia. E tem outra coisa, eu
também acho que precisamos rever essas regras que adotamos. Essa, por exemplo, de que o médico
da Saúde da Família não pode pedir alguns exames, parece não ser muito boa – responde Ivan.
– Ora, senhor Ivan, não podemos mudar uma regra só porque em um caso... – intervém outro
conselheiro.
– Não se trata de um caso, precisamos pensar melhor essa regra. E tem mais, essa senhora só
conseguiu realizar outros exames e garantir seu tratamento na capital porque a nossa conhecida dona
Socorro fez a marcação do exame e da consulta – completa Ivan.
– Mas, senhor Ivan, a dona Socorro não está lá para isso mesmo? Ela não é aquela que marca as
consultas e exames mais complexos? – ques- tionou um conselheiro.
– Espere lá, a dona Socorro não pode ser a nossa Central de Marcação de consultas e exames,
até porque nem todos têm acesso a ela! – explica um conselheiro.
– Que absurdo!
– O que vocês estão insinuando?
– Ordem, ordem. Minha gente, vamos com calma, vamos ter tranquilidade para discutir esse
caso – pede o secretário de saúde.
– Pois bem, senhor secretário, o senhor poderia nos informar como temos resolvido essa questão
da referência para outros municípios? Qual tem sido a orientação da secretaria? – pergunta um
conselheiro.
– Senhores, esta não é uma questão fácil. Nosso município localiza-se numa região distante e de
difícil acesso. Tenho enorme dificuldade em manter os profissionais de saúde lotados nas unidades e
também de estabelecer relações com os municípios vizinhos. Não temos recursos suficientes para
garantir um leque mais abrangente de especialidades e, mesmo que quiséssemos, teríamos dificuldade
em implementar. Tenho solicitado com frequência o apoio da Secretaria de Estado de Saúde, mas não
tenho obtido sucesso. O caso dessa senhora extrapola os limites do município. No momento, estou em
negociação com outro município de pequeno porte da região para fazer um consórcio intermunicipal
de saúde, na esperança de juntar recursos para resolver alguns desses problemas – resume o
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secretário.
– Mas há questões nesse caso que poderíamos discutir, sr. secretário. Essa regra da Saúde da
Família, o papel da dona Socorro e outros. Acabo de me lembrar que esta sra. não teve qualquer ajuda
de custo para mantê-la em tratamento fora do município. Isso trouxe muitos problemas – responde
Ivan.
– Regras precisam existir. Não posso aceitar, e outros secretários tam- bém não aceitam, que
qualquer médico peça exames especializados. Isso pode gerar problemas financeiros
inadministráveis no futuro. A dona Socorro é fundamental, ela ajuda muito, se não fosse ela terí-
amos ainda mais problemas para agendar essas consultas. E todos a conhecem. Não posso aceitar a
crítica de favorecimento. Quanto à ajuda de custo, essa é uma questão importante, podemos pensar em
mecanis- mos para ajudar as pessoas nessa situação – retruca o secretário.
– Senhor secretário, eu ainda acho que precisamos rever essas regras e outras mais. Não estamos
sendo sensíveis aos problemas que a popula- ção enfrenta – retoma Ivan.
– Estou de acordo com o senhor Ivan – soma um conselheiro.
– Eu também. Proponho que façamos uma oficina de trabalho para analisar os principais
problemas que temos no município para garantir a referência dos pacientes – propõe o conselheiro.
– E a contrarreferência também! – adiciona um conselheiro.
– Isso, a referência e a contrarreferência – conclui o conselheiro.
O tópico de discussão do caso de dona Ana foi encerrado e a oficina proposta não foi marcada.
Apesar da comoção gerada pelo caso de Ana, o problema suscitado não foi discutido em reuniões
subsequentes.
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