Que É Hermenêutica - Rui Josgrilberg

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Revista Internacional d’Humanitats 39 jan-abr 2017

CEMOrOc-Feusp / Univ. Autònoma de Barcelona

Que é hermenêutica?1

Rui Josgrilberg2

Resumo: Este texto é um ensaio de explicitação do que se quer dizer quando falamos de “hermenêutica
de textos religiosos”. Nosso procedimento será o de abordar as três questões entrelaçadas em três textos
perguntando no primeiro (I) “o que é hermenêutica?”, depois (II) “o que é um texto?” e por fim (III) “o
que é um texto religioso?”, para responder à pergunta geral “o que é hermenêutica de textos religiosos?”
Essas questões não permitem uma resposta única e trazem ambiguidades próprias à extensão que elas
cobrem. Outro complicador é que entendemos hermenêutica como uma derivação da fenomenologia.
Palavras Chave: hermenêutica. texto. Paul Ricoeur. texto religioso. narrativa.
Abstract: This essay proposes an explanation about what is meant when we speak of "hermeneutics of
religious texts." Our procedure will be to address the three issues intertwined asking "what is
hermeneutics?", "What is a text?" And "what is a religious text?" in view to answer the general question
"what is hermeneutics religious texts?"
Keywords: Hermeneutics. text. Paul Ricoeur. religious text. narrative.

1. Fenomenologia e hermenêutica
Abrimos o caminho com breves observações sobre a fenomenologia.
Fenomenologia é uma palavra composta por phainómenon e logos, termos
gregos. Phainómenon significa o que é trazido à luz (phôs). É o que se manifesta. E
lógos é compreendido como “colheita de sentido” (na etimologia mais antiga de
légein, nos reporta à atividade agrária de produzir e colher), o sentido que é produzido
é também colhido de muitas formas, mas especialmente pela linguagem e por atribuir
ao sentido significados através de signos linguísticos. Devemos acrescentar que a
fenomenologia se relaciona adicinalmente e em consequência com a transmissão de
sentido pela linguagem, discursos, textos, além da elaboração de significados de
significados.
O que se manifesta” na fenomenologia é o que a fenomenologia entende por
“real”. O que aparece é necessariamente correlato de um ato intencional e tudo o que
se manifesta se manifesta como fenômeno ou a realidade enquanto percebida. E toda
manifestação de algo é a manifestação de sentido. Nada do que se manifesta é sem
sentido. A fenomenologia trabalha com experiência do sentido das coisas. A
experiência é uma palavra muito grande. Trazemos conosco muitas experiências às
quais não nos damos conta. Trazemos conosco experiência da humanidade e com uma
característica de universalidade e particularidades. Nossa experiência cotidiana
acumula de modo não reflexivo, isto é, com uma dose de passividade, muito sentido já
significado sem que fosse feita uma crítica sobre os mesmos. Formamos uma camada
ideológica de discurso, hábitos, tradições que podem se tornar tirânicas, falas

1. Este texto é o primeiro de três estudos do autor sobre o tema: articula-se, portanto com o seguinte (nesta
edição) e com o terceiro em RIH 40: http://www.hottopos.com/rih40/index.htm.
2. Professor dos Programas de Mestrado e Doutorado em Educação e Ciências da Religião da Univ.

Metodista de São Paulo.

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mecânicas, formações passivas de ideias, etc. Em face desse acúmulo não refletido
adequadamente a fenomenologia estabelece algumas condições para o retorno à
experiência onde o sentido é vivido de modo mais originário e com a possibilidade
uma reflexão mais atenta sobre o sentido que foi significado. Esse procedimento é
denominado de epoché. Na figura literária que vem da antiguidade, vamos à fonte de
sentido sedimentada pela humanidade na água que corre, mas vamos beber na nossa
própria caneca. A fenomenologia é nossa caneca.3 È o mundo semantizado passando
por nossa consideração originária do sentido e do significado.
O mundo semantizado passa pela existência. Todos nós vivemos uma
semântica da existência. A experiência acumulada nos tempos e em nossa vida,
significa a acumulação de sentido que constitui nosso fundo sedimentado de sentido
que através da linguagem, signos e significados, constitui o discurso latente que nos
acompanha. Esse discurso latente é apropriado em parte (apropriado= incorporado à
dinâmica de si) e com a apropriação passa de discurso latente a discurso expresso.
Assim a vida vivida é uma vida de existência pelo sentido vivido e pelo sentido que
significado.
Existir (no sentido de ex-sistir) é respirar sentido; o sentido é o oxigênio do
existir humano. O ser humano é um buscador de sentido4. A vida por si mesma é
produtora de sentido e reclama sentido. O ser humano não apenas vive. Ele é carente
de sentido e carente de discurso para viver. O mundo deve fazer sentido. A existência
deve fazer sentido. O si mesmo e o outro devem fazer sentido.
Porém, o ser humano sofre quando divaga em abstrações e perde a conexão
com o mundo vivido (ou o mundo da vida). O ser humano vive, então, a tensão que o
acompanha entre o sentido e o não-sentido: o ser humano é ameaçado pelo não-
sentido e por uma existência esvaziada. A existência revela então sua tarefa contínua
de si mesmo como compreensão. Tem sua existência marcada pelo esforço de
compreender e desenvolve atividades visando uma contínua elaboração e reelaboração
de sentido e de discursos que expressem essa reelaboração. Essa atividade de
compreensão (apontada por Schleiermacher, retomada Dilthey) é especificamente uma
atividade que gerou a necessidade de uma ciência hermenêutica geral. A
fenomenologia enquanto aproximação do sentido e das significações associada à
necessidade de compreensão passou a ser entendida como fenomenologia
hermenêutica. A fenomenologia e hermenêutica são momentos de uma mesma
atividade interpretativa do mundo e de si mesmo.
A hermenêutica situa-se como uma contínua preocupação humana de
compreender (desejo de compreender): a compreensão é uma característica existencial
e fundamental da existência: o ser humano vive num círculo de interpretação. Paul
Ricoeur coloca o ser humano como aquele que se vê no círculo de compreender a si
mesmo (com os outros) desdobrando seu modo de ser diante do mundo através de
mediações, entre as quais os textos escritos. A hermenêutica, no pensamento deste
filósofo pode ser resumida como a teoria das operações da compreensão em sua

3 O trabalho extremamente relevante da memória não pode ser desenvolvido nesse espaço. Mas,
antecipamos que a memória sedimenta um discurso vivo e latente (parte não consciente) do ser humano, e
que recorremos a ela para nosso discurso expresso. Conserva nosso patrimônio semântico para nosso
discurso ativamente construído.
4 Esse caminho do si em busca de si mesmo pode ser visto na canção interpretada por Milton Nascimento:

Eu caçador de mim: Por tanto amor / Por tanta emoção / A vida me fez assim / Doce ou atroz / Manso
ou feroz / Eu, caçador de mim. // Preso a canções / Entregue a paixões / Que nunca tiveram fim / Vou
me encontrar / Longe do meu lugar Eu, caçador de mim. // Nada a temer senão o correr da luta / Nada a
fazer senão esquecer o medo / Abrir o peito a força, numa procura / Fugir às armadilhas da mata escura.
// Longe se vai / Sonhando demais / Mas onde se chega assim? / Vou descobrir / O que me faz sentir / Eu,
caçador de mim.

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relação com a interpretação dos textos. Desde Schleiermacher trata-se de uma Teoria
da Hermenêutica Geral que se constitui a partir das condições a priori do
compreender. As hermenêuticas especiais (jurídica, psicanalítica, médica, religiosa,
bíblica, das artes, etc.) constituem possibilidades próprias do âmbito geral.
A vida humana encontra uma metáfora forte na expressão “texto”, “textura”.
Nosso modo de ser humano pode ser entendido como um fundo de sentido que é
apropriado como tecido ou redes de significações. Ricoeur escreve: “Que nos é dado
a interpretar ? Eu responderei : interpretar é explicitar o modo de ser no mundo que se
desdobra diante do texto.” A compreensão acontece como processo de interpretação
essencial à existência.5 Toda vida humana que vale a pena ser vivida é vida
interpretada. “Uma vida é apenas um fenômeno biológico enquanto não for uma vida
interpretada”6 Sócrates, segundo Platão, dizia que uma vida não examinada não vale a
pena ser vivida.
Em resumo, a vida humana é dada em um processo de interpretação no qual o
ser humano age como produtor de significados no amplo horizonte de sentido e ,
através das significações, entra no grande diálogo histórico da humanidade onde as
vidas se entrelaçam..

2. Vida e interpretação
A hermenêutica origina-se da trama de sentido na vida; mas, desenvolveu-se
especialmente pela interpretação de textos7. A mediação de textos tornou-se, em nossa
cultura, um modo essencial de produção de sentido. Um texto pode ser descrito como
uma unidade ou uma coleção de frases formando um todo (formando uma obra). Um
texto pertence a uma esfera social de produção dialógica de sentido e assume formas
variadas de estilos e gêneros usados numa cultura.
A abordagem de um texto não é totalmente neutra. O texto é um modo de
interpelação e os interessados em sua interpretação são interpretados. Os textos são
portadores de diferentes potenciais de sentido e um texto provoca pode despertar a
admiração; desde que nos sentimos interpelados pelo potencial de sentido entramos no
jogo do texto e no reconhecimento do texto entrelaçado com a vida. O intérprete busca
descobrir convergências entre o mundo da vida e o sentido que um texto propõe em
termos significados. Sem a possibilidade de uma interpretação única ou de fixar uma
verdade do texto, a hermenêutica trata dos desdobramentos possíveis e de trazer à tona
camadas de sentido que um texto encarna.
O intérprete é convidado a entrar num jogo com regras e com possibilidades:
não se trata de repetir o texto (não é possível repetir de modo vivo o texto nosso ou de

5 Ricoeur, P., « Qu'est-ce qui reste à interpréter? “Je répondrai: interpréter, c'est expliciter la sorte d'être-
au-monde déployé devant le texte.» em Du texte à action. Essais de hermenéutique II, Paris, Du Seuil,
1985, p. 114.
6 Ricoeur, “ La vida: un relato en busca de narrador”, ÁGORA — Papeles de Filosofía —, USCompostela

( Esp.), 2006, 25/2, p. 17.


7 O termo hermenêutica provém do grego hermeneuein , interpretar, transmitir uma mensagem.

Etimologia incerta, a tradição vincula a palavra ao deus Hermes que tinha a função de comunicar
(comércio) e transmitir a mensagem dos deuses a respeito do destino dos humanos. Para outros (Ebeling)
a etimologia remonta a dizer, falar. Dizer já é interpretar. Na filosofia seu uso mais importante começa
em Aristóteles, com seu breve e importante tratado Sobre a Hermenêutica (Peri hermenéias), traduzida
para o Latim por De interpretatione. Benveniste (E.), em Le vocabulaire des instituitions indo-
européennes, Paris, ed. Minuit, 1969, v. I, p. 300, atribui ao termo interpretar o significado de interpor um
valor, fixar um preço. A hermenêutica abrange tudo que encarna sentido, gestos, arte, ação, símbolos,
narrativas, textos. Desenvolveu-se particularmente como interpretação de textos.

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outro), mas de prolongá-lo em perspectivas que o iluminam indo além dele. O texto
deve reentrar na esfera dialógica de produção de sentido de onde se originou por
processos interpretativos e compreensivos.
Platão parece ter concebido a filosofia como um grande diálogo do ser
humano. A dialogicidade social do ser humano não significa para a hermenêutica a
exclusão do sujeito e da pessoa. O intérprete acolhe o texto num horizonte que lhe é
próprio. Mas, o texto vem com regras e se prolonga em forma na qual o tecido novo
não seja simplesmente uma ruptura sem que haja prolongamentos.
A vida pode ser vista numa trama de narrativas (a ação possui analogias com
um texto, uma metáfora forte como dissemos) onde outros (e muitas distintas
personagens) parecem dançar a música que nos envolve como pessoa num jogo de si
mesmo com os outros. Em certo sentido, a hermenêutica implica sempre uma
interpretação de si mesmo. O si mesmo não só acompanha os atos cognitivos
(suppositum cognoscens dos medievais e de Kant), mas é pessoa que busca, seja que
por muitos desvios, o sentido de sua própria vida. Que o hermenêutico passe pela
busca de si foi amplamente reconhecido por Paul Ricoeur ao mostrar o vínculo da
narrativa com a identidade e a constituição de si através dos outros.
Ultrapassar-se e apropriar-se do sentido (através de significados) de modo
reflexivo e interpretativo é próprio da vida humana é. A vida, em sua inquietude por
sentido encarna um paradoxo ontológico na produção e apropriação do sentido que
nenhuma ciência, nem a filosofia dão conta. A questão do sentido em relação à vida é
uma questão ontológica que fica sempre em aberto. A vida da qual falamos aqui é a
vida vivida, ou a vida vivente in vivo acto, é a vida que antecede as ciências naturais
ou ciências da cultura: o mundo da vida. A ideia do mundo da vida (o Lebenswelt de
Husserl) é essencial para a hermenêutica. O mundo da vida antecede o trabalho da
consciência8 atenta. Ele é o mundo que já está dado e no meu qual eu me encontro
(Heidegger o desenvolveu como nosso ser-no-mundo). Há uma antecedência da vida e
da existência em relação á reflexão, em relação à ciência. O sentido antecede a
consciência e a própria linguagem. O mundo da vida não só é o ambiente da existência
como é a sua reserva de sentido que supera todas as especializações da linguagem. A
linguagem é compreendida aqui como um modo humano de apropriação de sentido
através de signos e significações9.
A hermenêutica trata de interpretar a vida em suas archês de humanidade
como um caminho possível para responder as perguntas da inquietude humana ao
transcender a si mesmo: para onde? Para quê? Como? Ir além de si para morrer?
Sempre começamos indiretamente. Dependemos dos textos que nos formam antes de
nós. Porém, a vida manifesta-se também originariamente a si mesma numa
subjetividade radical e abre a busca sentido em formas que nos tocam originariamente
como nos casos da religião e da arte. O que vem indiretamente dispõe o sentido à uma
subjetividade imanente. O foro de uma subjetividade imanente daquilo que nos
transcende de algum modo (as coisas, o outro) é uma condição sine qua non de
apropriação do sentido. A objetividade de algo é sempre alcançada num primeiro
momento pela imanência da transcendência na consciência intencional. Por isso, o
processo de apropriação, não é uma forma de subjetivismo, pois o que nos transcende
é o que pode ser objetivado por não pertencer a nenhuma subjetividade, antes trata-se
da universalidade comum a todos. A imanência intencional do transcendente permite

8 Consciência como ato, ou melhor, como ação consciente, por alguma forma de intencionalidade
imanente.
9 “Apropriação” não no significado simples de posse, mas o tornar o sentido próprio ao nosso movimento,

como um modo de entrar no jogo do sentido, tomar o sentido como um jogador atuante. Um termo é um
recorte ou uma determinação de sentido.

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que sentido seja apropriado como significado, sem perder suas características teóricas
de objetividade. Mas a apropriação é importante porque nos dá um núcleo pessoal de
ação10. A rede social, a memória social, não significa a destruição do foro íntimo, do
reduto de elaboração “apropriada” (no sentido já mencionado e, repetido aqui, de
tornar própria a significação introduzindo-a no movimento compreensivo de si
mesmo). Um sistema, uma estrutura, mesmo os mais necessários à vida, precisam ser
visto com sentido. Assim uma tradição cumpre sua melhor função quando é
apropriada com alguma reflexão; não se apenas imposta ou incorporada de modo
totalmente irreflexivo.
A vida é tratada como uma manifestação que ultrapassa suas próprias
estruturas e como manifestação originária de si mesma. A fenomenologia
hermenêutica pensa o sentido que foi dado no fenômeno como a forma mais íntima e
interior à vida. A vida vivida do sentido é invisível como ideação mesmo no signo (a
visibilidade do signo arbitrário não é a visibilidade sentido ou significado). Entretanto
a vida do sentido não seria possível sem uma primeira forma de materialidade vivida
do sentido. Esse ponto é fundamental e voltaremos a ele nas outras partes que seguem
esse texto.
A excedência da vida é o lugar mesmo de sua manifestação e do modo de ser
como busca incessante de sentido, além das estruturas sejam elas existenciais ou
ontológicas. Essa excedência existencial nos obriga a ir contra o subjetivismo, mas
isso não é postar-se contra a subjetividade; ir contra o absolutismo do ego é de algum
modo a restauração do sujeito; a divergência com o estruturalismo visa o
reconhecimento do sentido como maior que o recorte estrutural das significações.
Podemos incorporar a estrutura do texto na hermenêutica, mas não podemos
acompanhar uma semiótica que se fecha no código (e seu contexto) se não estiver
aberta aos prolongamentos de sentido aportados por uma subjetividade que interpreta;
o texto se encontra também nos prolongamentos de suas interpretações. Por outro
lado, ir contra a linguística formal sem o vivo do mundo da vida visa incorporá-la na
trama da vida compreensiva, não ater-se a uma semântica puramente sistêmica, mas
levar a semântica linguística até uma semântica filosófica. Onde o mundo da vida foi
excluído trata-se de retomá-lo no esforço compreensivo-hermenêutico. Em resumo, a
hermenêutica, além de todos os métodos e epistemologias, trata de aproximar vida e
texto na produção de sentido.

3. Hermenêutica e o mundo da vida


A hermenêutica tem seu primeiro lugar no mundo da vida. Narrativas,
mundos, e personagens, começam e terminam no mundo vivido por mais que tragam
sistemas e estruturas com eles.
Na hermenêutica acontece um jogo de si mesmo com os outros, jogo mediado
socialmente nos diálogos e nos textos. Os gêneros narrativos não são criações
abstratas. Eles respondem a modos sociais de vida e de interação. Muitas personagens
são modeladas, algumas típicas, com as quais interatuamos na formação da pessoa. O
mundo da vida é o nosso solo onde de fato vivemos e não é alcançado por nenhuma
forma de ciência empírica.. A hermenêutica olha para o texto para responder suas
demandas e interpelações regradas sem perder a primazia da vida nos entrelaços com
a linguagem.

10A pessoa depende da formação dialógica e da interação entre personagens (jogos de si mesmo com os
outros, na vida lúdica, nos romances, no teatro, na poesia, na música, etc.). A ação da pessoa possui
analogias com a narrativa.

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A hermenêutica faz corresponder o aprender a ler” com o “aprender a ver” da
fenomenologia. Ambos pressupõem a admiração e o encantamento do fenômeno (ou o
“fenomenal” do fenômeno). A hermenêutica dedica-se especialmente a aprender a ler
textos, textos escritos.
Não é uma técnica. Não é exegese. Uma de suas preocupações é a de ler o
texto, escutar o texto devolvendo lhe a dinâmica, sua força dialógica de produzir
sentido nas relações com vida (vida antes do texto, vida no texto, o texto na vida). A
formação de sentido é um desdobramento próprio da vida e o texto entra aí como um
modo fundamental desta formação. A hermenêutica trata do sentido que assumiu
forma de texto para mostrar não apenas as características textuais, mas a sua
mensagem ou a elaboração de sentido que faz e suas ramificações com a vida. O texto
aparece, pois, em sua textura com a vida antes de sua formação, a textura com vida
implícita no texto, e com a textura com a vida depois do texto.
Em última instância, na ampliação máxima do horizonte hermenêutico, a
hermenêutica é também uma interpretação de si nas mediações. O intérprete é também
o interpretado. O movimento de transcender não é uma operação só sobre o texto, mas
a transcendência de si por si mesmo. A hermenêutica na fica refém da exterioridade. A
hermenêutica faz uma passagem pela subjetividade. O mundo da vida se forma sem
que possamos nos dar conta reflexivamente de sua inteireza. O mundo da vida é a
fonte de sentido da fenomenologia e onde a nossa intencionalidade é dirigida
transformando o grande acúmulo de sentido em produções culturais de significações
que nos dão o que pensar e o que interpretar. O mundo vivido é transmitido numa
dialética de passividade e de apropriação enquanto subjetividade e intersubjetividade.
Nós simplesmente nos encontramos no mundo vivido como intérprete. O mundo da
vida se torna, muito parcialmente, nosso mundo próprio, i.e., entra na dinâmica de
nossa subjetividade. Posso pensá-lo. Posso refletir e descobrir relações que o constitui
como mundo de nossa ação. Aquilo que foi passivamente e indiretamente dado pode
ser objeto de alguns modos de reflexão. Nossa vida de partilhar o sentido, mediada e
indireta desde o começo por obras, paradoxalmente, encontra subjetivamente a
possibilidade de análise e interpretação. O indireto e o não imediato são
perspectivados direta e imediatamente na imanência da subjetividade.
Essa relação com a subjetividade é a fonte de grandes discussões sobre a
fenomenologia hermenêutica. A hermenêutica pioneira de Schleiermacher (teoria
universal da compreensão e interpretação)11, por exemplo, é classificada de romântica
e psicologista, subjetivista. A hermenêutica no século XX tomou sobre si o encargo de
superação do subjetivismo. Começando com Dilthey e depois com Heidegger. Dois
caminhos se destacaram: 1) um por reconhecer o aspecto veritativo do momento de
imanência da apropriação (fenomenologia); 2) outro, por descobrir na textualização
uma lógica de objetivação, ou o texto submetido a regras da linguagem e do discurso
(hermenêutica). Além dessas tentativas temos que considerar também os positivismos
formais do estruturalismo e do formalismo linguístico e poético, além das preciosas
contribuições da semiótica. Nós vamos nos concentrar no caminho hermenêutico do
texto (v. artigo: “O que é um texto?”).
Algumas questões centrais que estruturam o que hoje nós entendemos por
hermenêutica e mundo da vida:

11 Antes de Schleiermacher os preciosos trabalhos de Friedrich Ast e A. Wolf. A hermenêutica de


Schleiermacher foi resgatada do esquecimento por Dilthey e reformulada por Heidegger. A nova
hermenêutica se apresenta como uma filosofia hermenêutica em torno de questões do texto e da
linguagem e estas em relação com a vivência humana (compreensão). Trata-se de uma hermenêutica
geral que antecede todas as formas particulares de processos interpretativos (exegese de textos,
hermenêutica jurídica, apreciação da arte, etc.).

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1. Reflexão – a reflexão não é um consenso hermenêutico. Para Ricoeur é um
componente hermenêutico incontornável. Procede de certa tradição francesa
que remonta a Descartes e Maine de Biran. Fortalece a função do sujeito e da
consciência (em oposição aos projetos de desconstrução do sujeito e da
consciência como foro de imanência). Abre o caminho para um personalismo
do sujeito da ação. A reflexão e a reflexividade possui um ritmo de formação e
de recepção, de um lado, e o de elaboração do foro subjetivo, de outro. Na
recepção pelo sujeito a operação reflexiva visa relações objetivas do texto,
como, p. ex., as relações internas e contextuais (objetivação na própria rede
textual); na elaboração de foro subjetivo o sentido é examinado sob o regime
da epoché e como reflexão eidética (imanência da consciência e intuição
eidética). Uma é preparatória para a outra em momentos diferentes. Essa
operação se prolonga na interpretação do texto projetado na vida como fonte
de sentido e onde o texto encontra prolongamentos propostos pelo sujeito
intérprete. O processo de apropriação desde as condições antes do texto,
passando pelas relações estabelecidas pelo próprio texto, desemboca na
ampliação de sentido dos significados no encontro do mundo do texto com o
mundo do leitor.

2. Compreensão – A compreensão pode ser vista, num primeiro momento, em


contraste com a explicação. A compreensão tem em vista uma totalidade que
inclui a vida das pessoas, a vida concretamente vivida, que mantém a tensão
do sentido com o vivido. A explicação é indiferente à totalidade vivida na
medida em que se limita a elucidar os termos e relações de um processo
específico. A compreensão é essencial para que se visualize o círculo
hermenêutico entre sentido e vida (há várias formas de conceber essa
circularidade). A compreensão é o pressuposto mais geral da hermenêutica ou
o seu núcleo de expansão do sentido. O sentido da compreensão implica não
só a vivência, mas o ainda o reconhecimento que a vida como fonte de sentido
não pode ser explicada por nenhuma ciência empírica. Pretensões como
encontramos hoje em algumas correntes da neurociência, de explicar tudo por
disparos neuronais, representam um falso salto lógico da explicação de um
processo empírico para a dimensão mais abrangente e compreensiva da vida.
A compreensão é quase o movimento da própria interpretação. Para Heidegger
é uma dimensão ontológica do Dasein. Surgiu entre os românticos alemães
como uma disposição humana para a síntese de sentido e adquiriu caráter
gnosiológico no pensamento de Dilthey a ponto de servir para distinguir as
ciências humanas (Geisteswissenchaften) das ciências explicativas da
natureza. Foi essencial distingui-la de um processo apenas psicológico e
descartar o psicologismo na interpretação ou mostrar que as expressões d
sentido do espírito humano não pertencem apenas à esfera psicológica.
Apresentam estruturas de inteligência e de compreensão que permitem
integrar essas expressões ás vivências humanas como um diálogo dinâmico
em torno das possibilidades de sentido. Em razão dessas estruturas próprias de
manifestação as expressões permitem em diferentes graus a objetivação do
sentido: são compreendidas num todo de sentido. Gestos, linguagens, artes,
são tomados como manifestações de sentido que retomados em processos
hermenêuticos.
A compreensão em sua dimensão ontológica é um desdobramento do evento
onto-semântico ou o evento do sentido em sua carga ontológica. Nessa
dimensão, para muitos autores, como Gabriel Marcel, entramos na fronteira
entre o sentido e o mistério. Essa dimensão que inclui o mistério como parte
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do sentido será essencial para o entendimento do que é um texto religioso e da
experiência religiosa. O sentido inclui a dimensão mal compreendida da
profundidade e do infinito (quando tudo fica reduzido à finitude humana, sem
lugar para a experiência humana do mistério).

3. Linguagem - Desde Schleiermacher a linguagem ocupa o centro das


preocupações hermenêuticas. A questão é colocada em termos da relação da
compreensão com a linguagem e o horizonte de mundo ou de mundos que se
formam. Um mundo e muitos mundos: as narrativas e outras tessituras são
documentos dessa pluralidade com unidade.
A linguagem vista in vivo acto não é primeiramente um sistema ou uma
estrutura de uma determinada língua. A linguagem significa, como vimos, o
modo de apropriação do sentido pelo ser humano em termos de signos e
significações e sua forma entramada de produção/inovação de sentido e aberta
a possibilidades interpretativas. As estruturas da língua estão a serviço do
sentido e da significação, e estas a serviço da vida. A vida não pode ser
reduzida aos limites da linguagem (como em Wittgenstein ou no último
Heidegger) e o saber não é puramente linguístico. Há saber no sentimento, na
dor e sofrimento, por exemplo, que não são plenamente expressos em
linguagem. Linguagem é uma relação ontológica, mas não a exime de ser
também, embora especial, mediação entre sentido e significado, entre
existência e mundo, entre pessoas, entre tempos, entre interpretações. Trata-
se de uma mediação, ainda que uma mediação decisiva e constitutiva, do
processo hermenêutico..
Sentido é mais que língua e linguagem. Mas, toda atividade espiritual do ser
humano envolve direta ou indiretamente a linguagem. Todo real está
impregnado de sentido. A linguagem recorta e organiza o mundo em sua
trama sem nunca esgotá-lo. Embora mantenha a característica de mediação
finita, trata-se de uma mediação que acontece no horizonte do ser.12
O ser humano se sabe como ser no mundo pela linguagem. Os textos e as
palavras encarnam uma ambiguidade produtiva que abre possibilidades de
inovação semântica e de interpretações diversas e coerentes.

4. Distinção entre significado e sentido – A abertura da vida às interpretações


têm sua fonte no dado de que as sedimentações de sentido no discurso
linguístico entrelaçam determinações com indeterminações. Um “termo” (i.
e., uma determinação do sentido no significado, é um recorte que sempre tem
fronteira com indeterminações. Não são possíveis, na linguagem,
determinações absolutas. Todo termo pode ter suas determinações estudadas
em relação com margens de indeterminação. Tal situação é semelhante à
proposta de Ortega e de J. Marías quando se referem ao aspecto
“confundente” das expressões linguísticas13).
Sentido é mais que significado. Os saberes extralinguísticos que colaboram
com a semântica se afunilam em função da determinação dos significados
como recorte linguístico. A nossa experiência de sentido não cabe toda na

12 E, em nossa interpretação, a linguagem que cola no horizonte de ser mostra que o ser é um horizonte de
sentido (resultado da a substantivação do verbo ser na filosofia grega) sobre o qual há que se perguntar
pelo sentido. Ontologia é ontologia do sentido, i.e., horizonte de ser pelo sentido.
13 Cf. Lauand, J., “Pensamento Confundente e Neutro em Tomás de Aquino” em Notandum 14

http://www.hottopos.com CEMOrOC-Feusp / IJI–Univ. doPorto- 2007, p 15 ss.

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linguagem. Os aspectos não racionais de nosso saber não são, muitas vezes,
expressos linguisticamente. O sentido se encontra no significado, mas o
significado não abarca todo o sentido. É a identidade parcial do sentido com o
significado que induz ao equívoco de simples identificação de um com o
outro. O sentido precede e acompanha o conhecimento na significação como
o ar precede e acompanha a respiração. O evento onto-semântico de sentido
não se esgota em nenhuma expressão linguística do significado. No evento
onto-semântico o mundo nos é dado em posição de linguagem, mas essa fica
aberta aos prolongamentos hermenêuticos.14 O sentido apropriado pelo ser
humano e disposto à esfera reflexiva deve sofrer as determinações, estruturas e
relações que formam o sistema de uma língua.
A hermenêutica faz e refaz continuamente a tarefa de ligar e religar sentidos e
significações.15 O sentido nos remete à fonte experiencial com a ontogênese
do mundo que alimenta os significados; os significados filtram o sentido que
vem da fonte e os sedimentam em um sistema e em um estoque de frases. O
significado funcionando na língua tende a ocultar a latência do sentido. No
confronto e interação entre os significados e a fonte maior de sentido acontece
a necessidade hermenêutica. Uma leitura que não seja apenas o de
compreender um conjunto de significados se prolonga numa leitura dos
significados na vizinhança de sentidos que fazem o texto se dilatarem com a
leitura. Esse é o movimento hermenêutico de compreender os sentidos pelos
significados e os significados pelos sentidos. A hermenêutica não é apenas
uma leitura; é também uma escuta: a escuta do ser dado na experiência
perceptiva mediada por um texto.
Sentido é uma relação com o horizonte de sentido e o modo de ser das coisas
(essentia=modo de ser). O significado na hermenêutica funciona como fio
condutor que carrega com ele a estrutura da frase, do discurso e da língua
para a reflexão hermenêutica. A hermenêutica faz o caminho inverso da
gênese espontânea do sentido e da significação.
A experiência é uma symploké (nós no mundo, o mundo em nós) com o
mundo e possui camadas pré-predicativas de sentido que fazem parte de nossa
experiência, constituem fontes de sentido. Mas, necessitamos da linguagem
para acessá-lo produtivamente. O retorno à fonte experiencial de sentido e seu
manancial pré-predicativo é a condição de todo trabalho hermenêutico que
envolve a linguagem. O manancial pré-predicativo de sentido é dado na
materialidade vivida do sentido que forma o mundo vivido. Esse retorno à
gênese do sentido permite o enriquecimento e a renovação de sentido dados
nos significados de um texto. A hermenêutica vai muito além do trabalho
semântico interno da língua e se constitui como semântica filosófica.
A inversão do caminho feito pela expressão natural (este que vai do sentido à
significação) para o caminho hermenêutico (que vai da significação ao
sentido) é um processo que envolve muitos riscos. Nós nos movemos da deter-
minação de significados conjugados na língua (condição para “leitura” que
“recolhe” esses significados) para a indeterminação do sentido, o que torna a
hermenêutica um processo de leitura criador. A experiência da polissemia na
língua se amplia com a indeterminação ontológica do sentido. Todo
significado tem sentido; mas, sentido é mais que significado; o significado é
um recorte linguístico do sentido.

14 Sobre o evento onto-semântico e a experiência estética de sentido, ver Josgrilberg, “Sentido e


significação: uma essencial distinção hermenêutica”, em Nogueira, P.A.S., Religião e linguagem.
Abordagens teóricas interdisciplinares, São Paulo, Paulus, 2015, pp. 357 ss.
15 Para o que segue cf. Josgrilberg, id., 2015, pp. 353ss.

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Cabe à hermenêutica a determinação do sentido que não se limita à
determinação do sentido numa frase.
Põe-se em questão o “esse”, o ser do sentido, o modo de ser das coisas latentes
nos significados, a ousia ou a essentia das coisas. É na fonte do evento onto-
semântico que a hermenêutica atinge a profundidade da tarefa. Mas, a tarefa
hermenêutica só se completa pelo retorno ao texto, aos significados e seu
sentido para a vida. A hermenêutica trabalha com a polissemia na língua e um
pouco mais; ela sai em busca do sentido onto-semântico latente.
Podemos sintetizar o que foi dito na seguinte expressão: o sentido se encontra
no recorte ou significado dos termos e nas frases, mas o significado de um
termo ou frase sugere possibilidades de o sentido. Todo texto apresenta
possibilidades novas de interpretação.

5. Narrativa e tempo – Narrativa é um modo privilegiado da linguagem se


entrelaçar com a vida e entrelaçar a vida com o tempo. Uma das grandes
contribuições de Ricoeur é justamente o de mostrar com clareza que a gênese
da consciência do tempo acontece por arranjos narrativos. Sua importante obra
Tempo e Narrativa16, mostra que a carne concreta do tempo de nossa
experiência não é vista no tempo cosmológico (tempo da natureza) ou no
tempo fenomenológico (fluir temporal, êxtases de passado presente e futuro),
mas está na trama temporal da narrativa. É com a narrativa que aprendemos a
dizer o tempo como o ontem, o passado, o depois, a espera do tempo da festa
ou da colheita, o tempo que se aproxima. Torna concreto o que Agostinho
chama a “distensão da alma” (distentio animi), na tentativa de compreender o
tempo. As narrativas apresentam o tempo concretamente vivido e expresso. A
linguagem, pela narrativa, está na gênese da consciência do tempo e da
consciência de mundo. É na linguagem tramada como narrativa que se
projetam o mundo e os mundos.
Os gêneros narrativos cumprem funções que unem o sujeito aos desdobramentos
sociais da linguagem o que torna os textos o lugar privilegiado da preocupa-
ção hermenêutica. A mediação do texto mantém uma relação estreita entre a
interpretação e a práxis pelas analogias existentes entre a ação e a textualidade.
Ricoeur recorre a Aristóteles, especialmente nos pequenos tratados da
hermenêutica, retórica e, especialmente o Sobre a poética17, apropriando-se
dos conceitos de mythós e mímesis. Nesses tratados o significado de mythós é
de trama, intriga, a armação temporal de um relato. Já o termo mímesis é
traduzido por Ricoeur como imitação criadora, recriadora, refiguradora de
uma trama. A mimese é tratada por Ricoeur, junto com a metáfora,
componentes essenciais do tratamento do texto (mimética textual) junto com a
imaginação, síntese criadora (ficção, fantasia).
Um dos aspectos mais importantes da obra de Ricoeur está em repensar o
sujeito e a subjetividade. A subjetividade é valorizada, mas o eu não é um
centro absoluto, pelo contrário vive de um descentramento que implica o
outro. A identidade é um caminho que se faz como uma trama narrativa
(identidade narrativa) e o outro é parte efetiva desta identidade. Quem somos
nós e quem é o outro são indagações que respondidas de forma narrativa em
que um está implicado no outro. Fazemos nosso caminho como uma trama
implícita que pode ser narrada como história, biografia ou autobiografia assim
nossa identidade é uma conjugação de tempo e eventos, de linguagem e

16 Ricoeur, P., Tempo e narrativa, Campinas, Papirus, 1997.


17 Cf. Aristote, Art rhétorique et Art poétique, Paris, Garnier, 1944. (Ed bilingue)

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narrativa, de um si mesmo que é pelos outros que estão presentes em nós. A
hermenêutica nasce não da subjetividade fechada sobre si, mas da capacidade
de descentramento de si, de se encontrar nas narrativas e de compreender os
outros no âmbito do sair de si para se encontrar. A interpretação não é perder-
se no subjetivismo, mas compreender o mundo do outro como um mundo do
texto e entender o outro na narratividade da vida. A dialética de nossa pré-
compreensão e o encontro do outro num mundo configurado narrativamente
faz da interpretação um encontro entre mundos e sim mesmos, encontro esse
delimitado e mediado pela narração. Estamos imersos no “grande diálogo”18
onde somos formados e onde nos apropriamos de uma voz e onde deixamos
nossa palavra.
Nossa compreensão dos outros que o passado guarda não nos chega por
nenhuma função psicológica de simpatia ou congenialidade (cairíamos no
subjetivismo) com as personagens históricas. Também não temos acesso ao
outro pelas estruturas genéticas ou por formalidades conceituais ou
linguísticas; seria o formalismo positivista que exclui a subjetividade. Nosso
acesso às personagens que o passado nos guarda se dá pela mediação
referencial dos textos aos outros e ao mundo e mundos que os textos
desdobram. Um texto é um pedaço de um mundo (e um momento do grande
diálogo) que podemos reconstruir em parte. “Um texto tem uma significação
distinta da qual a análise estrutural tomada da linguística lhe reconhece; é
uma mediação entre o homem e o mundo, é o que se chama referencialidade,
a mediação entre o homem e o homem, e a comunicabilidade; a mediação
entre o homem e si mesmo, é a compreensão de si. Uma obra literária implica
estas três dimensões de referencialidade, comunicabilidade, e compreensão de
si. Assim, o problema hermenêutico começa ali onde termina a linguística.”19

Pelo que já expusemos creio que fica claro que a hermenêutica entrelaça a
interpretação de si mesmo com a interpretação do mundo, do outro mediante textos. A
hermenêutica é assim uma prática dialógica no “grande diálogo” mediado por
narrativas. Entramos no tecido do grande diálogo e vamos tecendo a nossa vida numa
narrativa com muitas dobras.

Bibliografia

Ricoeur, P., Du texte à action. Essais de hermenéutique II, Paris, Du Seuil, 1985.

Ricoeur, “ La vida: un relato en busca de narrador”, ÁGORA — Papeles de Filosofía


—, US Compostela ( Esp.), 2006, 25/2.

18 No “grande diálogo da humanidade” os que já não têm a palavra como sujeito vivo e presente no
diálogo, contribuem de outro modo no diálogo pelo já dito e sedimentado em textos e tradições. Assim, os
diálogos platônicos ou os fragmentos de Heráclito exercem influência no diálogo contemporâneo. A
dialogicidade se prolonga a toda humanidade.
19 Ricoeur, “ La vida: un relato en busca de narrador”, ÁGORA — Papeles de Filosofía — Univ. Santiago

de Compostela, (2006), 25/2, p. 16)

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Benveniste (E.), em Le vocabulaire des instituitions indo-européennes, Paris, Éd.
Minuit, 1969, v. I.

Lauand, J., “Pensamento Confundente e Neutro em Tomás de Aquino” em


Notandum 14; www.hottopos.com CEMOrOC-Feusp / IJI –Univ. do Porto- 2007.

Josgrilberg, R., “Sentido e significação: uma essencial distinção hermenêutica”, em


Nogueira, P.A.S., Religião e linguagem. Abordagens teóricas interdisciplinares, São
Paulo, Paulus, 2015, pp. 357 ss.

Ricoeur, P., Tempo e narrativa, I, II, III, Campinas, Papirus, 1997.

Aristote, Art rhétorique et Art poétique, Paris, Garnier, 1944. (Ed bilingue)

Recebido para publicação em 17-06-16; aceito em 15-08-16

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