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Democracia, Direitos Humanos e Cidadania:

as "novas políticas de reconhecimento" e os impasses na


judicialização da questão social
Denise dos Santos Rodrigues* & Vânia Morales Sierra**

Resumo: A pressão dos movimentos sociais pelo reconhecimento dos direitos


de identidades sociais tem ampliado a concepção da justiça social, que passou a
inserir as demandas por respeito às diferenças, considerando simultaneamente
as necessidades dos grupos sociais. Essas mudanças incidem sobre a
elaboração e execução das políticas públicas, que passam a tomar os direitos
humanos como principal referência. Este artigo tem o objetivo de identificar os
efeitos das políticas dos direitos humanos nas democracias contemporâneas,
considerando a possibilidade de realização de uma nova forma de justiça social,
defendida por Nancy Fraser e Boaventura Santos, mas fortemente criticada por
Marcel Gauchet.
Palavras-chave: direitos humanos, justiça social, judicialização,
reconhecimento, políticas públicas.

Democracy and social justice in the contemporary days: contributions and


critics the politics of human rights
Abstract: The pressure of the social movements for the recognition of the
rights of social identities has been enlarging the conception of social justice,
that has included the requests for public respect to the differences, considering
the needs of the social groups simultaneously. Those changes have
consequences upon the elaboration and execution of the public politics, that
start taking on the human rights as main references. This article aims to identify
the effects of the politics of the human rights in the contemporary democracies,
considering the possibility of accomplishment in a new way of social justice,
defended by Nancy Fraser and Boaventura Santos, but strongly criticized by
Marcel Gauchet.
Key words: human rights, social justice, judicialization, recognition, public
policy.

*
DENISE DOS SANTOS RODRIGUES é Doutora em Ciências Sociais, UERJ, Mestre em
Ciência Política pelo IUPERJ.

**
VÂNIA MORALES SIERRA é Professora da Faculdade de Serviço Social, UERJ; Doutora
e Mestre em Sociologia pelo IUPERJ

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I - Introdução políticas sociais se ampliam. Além
disso, o aumento do desemprego e a
Os novos movimentos sociais, surgidos
precarização do trabalho acabam
nas décadas de 1960 e 1970, se
tornando mais frágil a proteção social.
organizaram em torno de questões cuja
Nesse cenário ampliam-se os índices de
compreensão ultrapassava o campo
violência nos centros urbanos, que
econômico. Com o aumento do
tornam visíveis a exclusão social, seja
consumo da classe trabalhadora, o
pela expansão da informalidade, seja
acesso aos direitos trabalhistas e a
pela restrição do acesso aos serviços
ampliação das políticas de bem-estar, os
públicos.
movimentos sociais prosseguiram na
luta pela igualdade, mas voltaram-se A fim de inibir o perigo da
também para questões que eram dessocialização num mundo que perdeu
tradicionalmente reconhecidas como da a referência da integração social pelo
esfera privada. A politização dos trabalho (CASTEL, 2005), as leis vão se
problemas concernentes ao cotidiano tornando mais rigorosas por gerar, pela
dos relacionamentos sociais conferiu ameaça da punição, a expectativa de
visibilidade às reivindicações por redução da violência. De certa forma, as
direitos das mulheres, dos relações sociais se tornaram também
homossexuais, das crianças, dos idosos, relações jurídicas, pois o aumento da
dos negros, das pessoas com regulação entre as pessoas da mesma
deficiência, enfim, dos segmentos família, vizinhança, grupos
considerados em desvantagem social, profissionais e religiosos, fez com que
por conta de diversas formas de toda forma de relação social fosse
discriminação, que acabavam jurisdicizada. Em tais condições a
reforçando o estigma e/ou a exclusão proteção tem sido entendida como uma
social. Nesta perspectiva, os direitos forma de coerção e controle. Daí, como
humanos serviram como bandeira para enfrentar a questão social?
organização desses segmentos, Tratar o problema como caso de polícia
conseguindo, por meio de significativa tem sido uma estratégia, que apesar de
mobilização social, transformar suas antiga não deixou de ser adotada. Não
reivindicações em direitos. Foram as se pode afirmar que a intervenção
críticas aos abusos do Poder do Estado e consiste numa mesma forma de
as formas de execução das políticas de repressão, pois atualmente a perspectiva
controle social que sustentaram o dos direitos humanos se liga à idéia de
argumento da inclusão das demandas defesa da cidadania. Ou seja, a
por participação e reconhecimento das intervenção da polícia se faz contra
identidades de grupos sociais nos todos que ameaçam a legalidade e,
diplomas legais. O resultado tem sido o portanto, violam direitos. Sendo assim,
destaque do Poder Judiciário, que a democracia torna mais amplo o
passou a exercer a função de controle da Direito, fazendo-o chegar ao nível das
legalidade, intervindo em questões de micro-relações. Essa perspectiva não se
políticas públicas que, em geral, efetua sem seus “efeitos perversos”. Ao
ficavam circunscritas à esfera do Poder investigar as questões como se houvesse
Executivo. O problema é que num sempre um culpado, as contradições no
contexto de internacionalização da sistema democrático se exacerbam,
economia, em que se cobra do Estado a chegando a fazer recair a
contenção dos gastos sociais, as responsabilidade sobre aqueles que
dificuldades para implementação de

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poderiam também ter sido tomados depende basicamente da capacidade da
como vítimas. Quer dizer, a questão da gestão pública. Segundo Pisier (2004:
justiça social está longe de ser resolvida 176), o humanismo, o pluralismo e o
e os sistemas democráticos reformismo constituem os principais
contemporâneos não apresentam valores da concepção política de
respostas viáveis para a sua solução. gerência. No contexto do
neoliberalismo, o termo gerência
A conquista dos novos movimentos
permite acabar com a oposição entre
sociais gerou o questionamento sobre se
liberalismo e socialismo ou comunismo,
o nivelamento nas relações de poder
pois designa elementos doutrinários de
entre diferentes segmentos sociais; no
ambos. Neste sentido a afirmação dos
Direito, seria suficiente para compensar
direitos humanos, “sob a capa da
os efeitos das desigualdades na estrutura
legitimidade democrática e do
de classes. Em outras palavras, suspeita-
pluralismo, justificam as condições de
se que as questões culturais estariam
dominação de uma elite de dinheiro ou
sendo sobrepostas às questões das
de uma aristocracia de competência”.
desigualdades entre as classes sociais.
No âmbito da teoria social, alguns II- Democracia, pluralismo e Direitos
autores reforçam essa desconfiança, Humanos
receosos que a luta pelos direitos A relação entre democracia e direitos
humanos não se traduza em avanços e humanos tem sido tratada por diversos
conquistas de fato, mas se efetue como autores. Entre eles, Santos (1997)
ideologia que sustenta a política do percebe o processo da expansão dos
Estado, apesar dos processos direitos como algo positivo, uma vez
implementados de desregulamentação que é resultado das lutas dos
das relações de trabalho e de movimentos sociais. Todavia, este autor
privatização dos serviços de saúde, questiona a possibilidade da política dos
educação e assistência. direitos humanos preencher o vazio
A transição do Estado de Bem-Estar deixado pelo socialismo. De acordo
Social ao Estado Gerente não ocorreu com o seu pensamento, até o final dos
sem um discurso legitimador. Para que anos 1960, as crises da regulação social
a contra-reforma fosse aplicada, estavam articuladas com a defesa da
levando adiante as medidas emancipação, diferente do que ocorre
antipopulares para a realização do ajuste nos dias atuais, em que a crise do
fiscal – como a privatização, a perda da socialismo provocou o esmorecimento
estabilidade, o aumento dos anos de da crença nas transformações sociais
contribuição a previdência, a radicais. Além disso, Santos (1997)
mercantilização dos serviços – foi também percebe uma outra questão na
difundida a idéia que o problema do modernidade, ao destacar que os novos
Estado residia na sua forma de gestão. movimentos sociais, defensores dos
Ao combinar a “emergência da direitos humanos, são basicamente
sociedade civil” com o consenso em culturais. Trata-se da interpretação dos
torno dos direitos humanos, a problemas sociais como uma questão da
administração gerencial produz uma cultura, o que requer a percepção da
nova articulação entre o público e o conflitividade social como resultado das
privado, enfatizando a participação experiências de injustiça causadas por
popular, mas reduzindo o seu vigor por atitudes que expressam o desrespeito,
indicar que a resolução dos conflitos ou que ferem a auto-estima do(s) sujeito

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(s). Essas considerações estão baseadas na interação social. Fraser (2007),
no pensamento de Honneth (2003), que diferentemente de Honneth1 (2003),
afirma que até mesmo os conflitos de concebe o reconhecimento não como
classe podem ser compreendidos como uma questão de ética, mas de justiça,
conflitos por reconhecimento. De visto a importância conferida em seu
acordo com este autor, a base das modelo às condições de igualdade de
interações entre os indivíduos é o oportunidades. Ao repensar o conceito
conflito e a sua gramática, a luta por de justiça social, Fraser (2002) defende
reconhecimento. Fraser (2002) concorda uma articulação entre reconhecimento e
com Honneth (2003) ao entender que o redistribuição2, visto que nem toda
reconhecimento é uma categoria central forma de injustiça pode ser superada
para a análise das democracias pela distribuição econômica.
contemporâneas, mas o critica pelo
Por sustentar em seu modelo a cisão
receio que os conflitos provenientes das
entre o econômico, o cultural e o
desigualdades na estrutura político-
simbólico, Fraser recebe críticas de
econômica venham a ser reduzidos a Butler (2000), por esta considerar a não
uma disputa cultural. Ao criticar as
separação estável entre essas esferas,
políticas de identidades, por alegando que elas não são constituídas
constituírem um modelo político de forma independente da economia
problemático que valoriza a estrutura política. Além disso, Butler (2000)
psíquica em detrimento das instituições também classifica como anacrônica a
sociais e da interação social, Fraser argumentação da redução dos novos
(2010) propõe tratar o reconhecimento movimentos sociais à esfera cultural e
como uma questão de status social, não distributiva, e ainda caracteriza
sustentando que esta perspectiva requer como ortodoxia a busca forjada da
não uma identidade específica de um unidade pela esquerda que reclama das
grupo, mas a identificação de uma políticas culturais, tidas como
condição de subordinação social dos fragmentadas, identitárias e
membros do grupo. Nestes termos, o particularistas. A resposta de Fraser
não reconhecimento não significa a (2000) a Butler (2000) se direciona a
depreciação e deformação da identidade reafirmação da separação entre as
de grupo, mas trata-se da valorização esferas, advertindo para o fato de que os
das condições institucionais que danos culturais não são reflexos
impedem a paridade de participação, ou imediatos da estrutura econômica.
seja, refere-se à existência de padrões Considera que a distinção normativa
institucionalizados de valoração entre injustiça de distribuição e
cultural, que impedem os atores de
serem considerados capazes de 1
participar como iguais, constituindo Para Honneth todos merecem ter estima
pessoal. O não reconhecimento provoca danos a
assim o grupo dos excluídos, inferiores, personalidade.
“os outros” ou simplesmente invisíveis. 2
Segundo Fraser (2002), as lutas por
No “modelo de status” proposto por reconhecimento são resultantes de um processo
Fraser (2010), as reivindicações por global de politização da cultura, e trazem um
reconhecimento têm por objetivo a novo entendimento de justiça social, que
abrange a questão da distribuição, abrangendo
eliminação da condição de também as questões de representação,
subordinação, para promover a identidade e diferença. Doravante, a contestação
igualdade de status entre os indivíduos, política contra a subordinação inclui a diferença
identificados como membros integrais sexual, a “raça”, a etnicidade, a religião e a
nacionalidade.

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injustiças de reconhecimento são A afirmação da autonomia
igualmente importantes. Também individual sempre foi
entende que as lutas por rigorosamente acompanhada do
reconhecimento não precisam ameaçar crescimento de uma heteronomia
coletiva. A conquista e a ampliação
o capitalismo para serem justas e afirma
dos direitos de cada um não cessou
que as injustiças do mal reconhecimento
de alimentar a alienação de todos
são tão graves quanto as distributivas. (GAUCHET, 2002:18).
Santos (2002) também segue por este Diante disso, a cidadania, pensada a
caminho e defende a articulação entre partir da idéia de participação social
reconhecimento da diferença, luta pela autônoma no espaço público, vai
igualdade e pela redistribuição, cedendo espaço para a concepção de
conforme “os princípios de justiça e sujeito de direito, aquela identificada
constelações de direitos atentos à por Garapon (1996) como o cidadão
diversidade dos atores e dos contextos” inseguro, desprotegido, vitimizado, que
relacionados à inserção na escala local, busca proteção do Poder Judiciário. A
nacional e global (Santos, 2002: 44). crítica de Gauchet (2002) não pára
Nessas condições é que, para o autor, as nessa advertência. Ele considera
lutas pelos direitos humanos podem também que as políticas executadas a
servir à formulação de políticas partir dos direitos humanos passam a
emancipatórias, entendendo por isso adquirir sentido judiciário, reforçando
políticas cujo objetivo é a garantia da ainda mais a identificação dos cidadãos
coexistência entre grupos culturais como “réus” e “vítimas”. Diante deste
diferentes e a promoção do acesso aos formato, o exercício do controle social
direitos de cidadania. passa a ser feito com base nos diversos
De fato, a ligação entre os direitos dispositivos de controle adotados por
humanos e o Estado é o fundamento do órgãos, que são encarregados de fazer o
Estado Democrático de Direito. registro dos casos e apuração das
Contudo, a aposta numa política de denúncias. Com isso, a tendência é que
direitos humanos como via para o investimento público se volte às
emancipação social não é consensual. políticas de reabilitação das vítimas e de
Segundo Gauchet (2002) a política de combate a violação de direitos. O
direitos humanos representa, ao resultado é a possibilidade que as
contrário do que pensa Santos (2002), políticas se orientem menos no sentido
uma ameaça à democracia. Em sua da distribuição do bem-estar social,
análise, Gauchet (2002) afirma que, ao tornando-se políticas de combate ao
se tornarem uma política, os direitos mal. Nessa “cruzada” das políticas dos
humanos fazem com que a democracia direitos humanos são enquadradas as
se volte contra ela mesma. Sua políticas de combate à violência contra
advertência se fundamenta na percepção a mulher, a criança, ao idoso etc.
que a interpretação da conflitividade Enfim, as situações identificadas como
social, tida como uma questão de “expressões da questão social” passam
direitos, exacerba o individualismo, a ser despolitizadas, sendo tratadas na
provocando o aumento dos dispositivos perspectiva da conflitividade social.
de controle social, acentuando a Esse entendimento enfraquece a
heteronomia e não promovendo a mobilização política por alternativas de
autonomia. A questão é paradoxal. transformação social. Neste sentido,
Gauchet (2002) afirma que a

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democracia não tem mais inimigos, foi enfraquecida devido ao processo de
sendo praticamente inatacável do ponto internacionalização da economia, à
de vista político. Segundo Gauchet expansão do direito e à multiplicação de
(2008): canais de participação. Assim, ao
Ainda há o que falar de mal da mesmo tempo em que se tornaram mais
democracia, mas não há nada que a estáveis, as democracias passaram a se
substitua. Este fenômeno se explica organizar para atender as necessidades
pela brutal penetração do princípio da economia internacional, mesmo
de legitimidade democrática: os sendo ao custo do aumento do
direitos do indivíduo, esses que nós desemprego e da ameaça de dissociação
chamamos correntemente “os social.
direitos humanos”. Nós os
conhecemos há muitos séculos, mas III - Expansão dos direitos,
eles ganharam uma evidência judicialização da política e questão
imperativa que eles jamais tiveram. social: o desafio da justiça social na
Eles comandam de maneira globalização
indiscutível... Isso não quer dizer
que a democracia reina nos fatos,
Nas democracias contemporâneas, a
mas é o único regime aceitável em pretensão de limitação do poder do
princípio. O ímpeto é tão forte que Estado, tornou os direitos humanos a
há sérias conseqüências práticas: há referência da crítica à política,
de fato uma forma de democracia, conseguindo colocar em xeque a regra
mas que finalmente é uma majoritária. Esta tem sido uma questão
democracia mínima. O máximo lançada às esquerdas, que se dividem
possível dos direitos individuais e o constituindo, por um lado, um
menor poder coletivo possível. É movimento de luta contra o poder e as
através desse canal que o modelo formas de dominação e, por outro,
liberal da democracia comporta
enfatizando as desigualdades sociais
irresistivelmente os direitos
humanos. É como se o triunfo dos
resultantes da estrutura de classes no
princípios pudesse compensar o capitalismo. Na defesa da democracia
recuo dos atributos efetivos da contra o capitalismo, Ellen Wood
democracia. (GAUCHET, 2008:1) (2003, p.220) duvida da possibilidade
das “políticas de identidades”
Assim como Gauchet (2008), ultrapassarem a “afirmação dos
Rosanvallon (2000) entende que a princípios gerais e das boas intenções”
“democracia representativa se impõe entendendo que o capitalismo submete
em seu princípio no momento em que se todas as relações sociais às suas
encontra fragilizada em seu necessidades. Nestas condições, a
funcionamento” (2000:9). Ao mesmo democracia, para se tornar compatível
tempo em que há um consenso em torno com o capitalismo, precisou redefinir a
do seu estabelecimento, sua forma cidadania. Para tal, afastou-se do
política encontra-se desestabilizada. De modelo pensado pelos antigos
fato, foi para a concepção de soberania atenienses, para adotar o modelo
que os direitos humanos voltaram sua americano em que o povo não
crítica na defesa do indivíduo contra o representa a comunidade ativa de
Estado. A conseqüência foi o cidadãos, o demos, mas uma “coleção
afastamento da concepção republicana desagregada de cidadãos privados cujo
de democracia, aquela que toma a aspecto público era representado por
política como a expressão da vontade um Estado central distante.” (WOOD,
geral. A expressão da soberania popular

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2003: 189). Esta distância expressa a geral. A contenção dos riscos de
desvalorização da esfera política, imposição do interesse da maioria na
deixando nítida a separação entre esfera pública se faz mediante a
sociedade civil e Estado. Seguindo esta participação nas associações, que
linha de raciocínio, Abensour (1998) trabalham no sentido de garantir um
recupera o tema da “verdadeira espaço para liberdade de pequenos
democracia” em Marx, enfatizando a grupos contrários a vontade da maioria.
necessidade do fortalecimento da Além das associações também o Poder
política como espaço de construção Judiciário pode limitar o poder da
coletiva. Desse modo concebe a maioria. Nesta perspectiva, a tradução
democracia não como método, mas de interesses em direitos se efetua pela
como certa instituição política do social. penetração dos interesses no espaço
Seu crescimento está relacionado à público, confundindo assim a esfera
reabilitação da vida cívica, pública com a privada. Além disso, a
compreendida como participação dos possibilidade de reunir liberdade com
cidadãos na coisa pública, mas voltada direitos permite a ligação entre
contra o Estado. A possibilidade de cidadania e subjetividade. Neste
ligação entre o particular e o universal modelo, a expansão do direito expressa
tem como mediação a política, de forma o movimento do processo democrático.
que a cidadania não se resume a uma Em resumo, o debate contemporâneo
abstração. A democracia então acerca da democracia envolve a
ultrapassa o Estado, estendendo-se ao consideração da relação entre justiça,
conjunto da esfera do social. Seguindo a sociedade e política. No sentido dos
inspiração francesa, Abensour (1998) modelos apresentados, a compreensão
entende que “ali onde a democracia do acesso à justiça pode se realizar
cresce até conhecer uma plena mediante a participação na comunidade
expansão, o Estado desaparece”. A política numa busca pela
democracia como meio para universalidade, ou, diferentemente,
emancipação humana encontra na passa a comportar maior complexidade
comunidade cívica o espaço na relação entre sociedade civil e
privilegiado da política, como espaço de Estado. Nesta última, o espaço para o
liberdade e de criação. Nestes termos, a exercício da cidadania ocorre pela
invasão dos direitos na política e na multiplicação das formas de
sociedade significa não o representação política (conselhos,
aprofundamento da democracia, mas sindicatos, ONGs, etc.) que atuam no
uma ameaça pela tendência a expansão sentido da efetivação dos direitos,
dos mecanismos de controle social. tornando fundamental o acesso ao Poder
Numa outra chave de interpretação, a Judiciário, bem como sua participação
liberdade na democracia significa a ativa no processo político.
formação de associações, nas quais a Vale salientar que não há, neste breve
reunião de interesses privados artigo, o objetivo de avaliar se é bom ou
transforma-se em força política capaz ruim o caminho escolhido pelas
de intervir na esfera pública. A sociedades democráticas
cidadania aqui é pensada no sentido contemporâneas. O fato é que a
empregado por Tocqueville (1987), em judicialização expressa a adaptação do
que o direito de se reunir em modelo político americano nos diversos
associações permite realizar a ligação Estados, tornando-se um fenômeno
entre interesse individual e interesse

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universal, como foi observado por Tate políticas sobre esta realidade. Não que
e Vallinder (1995). Com efeito, a tenhamos aqui o interesse de negar os
ampliação dos direitos conferiu avanços obtidos com as legislações
destaque à participação do Poder nacionais e internacionais que têm
Judiciário de modo que o Direito, ao situado o Poder Judiciário no centro das
incorporar as demandas sociais, tornou sociedades democráticas, mas trata-se
o acesso à justiça um “requisito de levar em conta também suas
fundamental do sistema jurídico limitações, mesmo considerando seu
moderno e igualitário, que pretende funcionamento em suposta condição
garantir, e não apenas proclamar os ideal. Em suma, reconhecemos que o
direitos de todos” (CAPPELLETTI e acesso à justiça é fundamental, mas
GARTH, 1988: 12). Nessa direção, entendemos que esta não pode ser a
entendemos que a análise desse condição de garantia do direito do
fenômeno nos Estados requer a cidadão. Nesses termos, a crítica à
combinação de um conjunto de fatores, política dos direitos humanos é
como: a tradição jurídica e a atuação relevante na medida em que percebe
dos magistrados, o acesso das camadas tudo como problema de violação de
populares ao Poder Judiciário, a forma direito e não como “questão social”. No
como se dá a relação entre os Poderes, a entanto, a desigualdade social crescente
forma de aplicação do Direito, se em tem levado para o interior do Poder
consonância ou não com as Judiciário pessoas que não possuíam
necessidades sociais, a celeridade dos sequer o direito de recorrer das decisões
processos etc. do Poder Executivo. Sendo assim, a
questão social, entendida como questão
De certo modo, a judicialização da
de direitos, não comporta a promessa da
política pode ser compreendida como
redução da desigualdade social, mas
resultado de um processo histórico que
serve como um recurso ao
abrange: 1) o avanço do individualismo,
reconhecimento dos direitos, não apenas
intensificado pela ameaça à integração
dos sujeitos discriminados para além
social, devido ao crescimento do
das classes sociais, como os
desemprego e ao declínio das políticas
homossexuais, os negros e as pessoas
sociais; 2) a reação da sociedade aos
com deficiência, mas favorece também,
abusos do poder do Estado, bem como a
pelo menos minimamente, àqueles a
ameaça dos regimes totalitários, 3) o
quem tanto o governo quanto a
processo de democratização que se
sociedade se recusam ao
iniciou com a elaboração da legislação
reconhecimento da cidadania: os
para regulação do trabalho e do Welfare
pobres, os indigentes, os miseráveis.
State; 4) as reivindicações das minorias
Para estes, ser homossexual, criança,
em contraposição à cultura dominante
negro ou pessoa com deficiência torna a
sendo, portanto, uma conquista dos
situação ainda pior. Nestes casos, o
movimentos sociais. (Garapon, 1999;
acesso ao Poder Judiciário em geral,
Salas, 1998; Vianna, 1999). Pelo
quando ocorre, é na sua forma mais
exposto, é notória a contradição neste
dura que é a da criminalização.
processo, que expressa o avanço no
campo da cultura, mas que, ao mesmo Nos países periféricos a questão é ainda
tempo, indica o retrocesso no “social”, mais grave. As contradições deste
pelo crescimento da desigualdade, da processo parecem maiores, pois se, de
pobreza e da violência. Nessa direção, um lado, se normatiza tudo a fim de
questiona-se o alcance das intervenções instituir o cidadão enquanto sujeito de

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direitos, por outro se retira a __________. Heterosexismo, no reconocimiento
possibilidade de realização da justiça y capitalismo. Buenos Aires: Rodaballo, año 6,
no. 10, verano 2000.
social pelo trabalho das instituições
públicas, que deveriam fazer valer os GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o
guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan,
direitos de cidadania. Nestes termos, o
1999
esforço de trazer a norma jurídica à
situação concreta parece uma ilusão, GAUCHET, Marcel. La démocratie contre elle-
même. France: Éditions Galimard, 2002
que levada a sério pode até gerar a
ameaça de desorganização da HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento –
administração pública. Nestes países, as a gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: Ed. 34, 2003
políticas de reconhecimento e de
redistribuição podem chegar a ser PISIER, Evelyne. História das Idéias Políticas.
Barueri, São Paulo: Manole, 2004.
articuladas, todavia será muito mais do
que um desafio de gestão a questão da ROSANVALLON, Pierre. La démocratie
efetivação dos direitos de cidadania. inachevée: histoire de la souveraineté du peuple
en France. France: Éditions Galimard, 2000
SALAS, Denis. Le Tiers Pouvoir: vers une autre
Referências justice. Paris: Hachette Litératures, 1998.
ABENSOUR, Miguel. A democracia contra o SANTOS, Boaventura Souza. “Uma concepção
Estado: Marx e o momento maquiaveliano. Belo multicultural os direitos humanos”. São Paulo:
Horizonte: Ed.UFMG, 1998. Lua Nova, nº39, 1997.
BUTLER, Judith: “El Marxismo y lo TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na
Meramente Cultural”. Madrid: New Left América. 3ª ed. São Paulo: Editora Itatiaia e
Review, nº 2, mayo-Junio 2000. Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto VALLINDER, Torbjöm e TATE, Neal, The
Alegre: Fabris, 1988. Global Expansion of Judicial Power. USA: New
York University Press, 1995.
CASTEL, Robert. A insegurança social: o que é
ser protegido? Petrópolis: Vozes, 2005. VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria
Alice Rezende;MELO, Manuel Palácios Cunha;
FRASER, Nancy. “A justiça social na BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização
globalização: Redistribuição, reconhecimento e da política e das relações sociais no Brasil. Rio
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Ciências Sociais, nº 63, outubro 2002.
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra
__________. “Reconhecimento Sem Ética”. São Capitalismo: a enovação do materialismo
Paulo: Lua Nova, nº 70, 2007, p. 101-138. histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003
__________. “Repensando o Reconhecimento”.
Enfoques, vol. 9, nº 1, agosto 2010.

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