Racismo e Crise
Racismo e Crise
Racismo e Crise
Uma sociedade de troca mercantil não é um dado natural, mas uma construção histórica.
O mercado ou sociedade civil não seria possível sem instituições, direito e política. Como nos
adverte Robert Boyer “as instituições básicas de uma economia mercantil pressupõem atores e
estratégias para além dos atores e estratégias meramente econômicos” 1. Para demonstrar como o
mercado é de fato uma construção social, Boyer conta-nos como a intervenção estatal direta ou
indireta foi imprescindível para: 1) tornar possível a concorrência, estipulando regras e limites à
1
BOYER, Robert. Teoria da regulação: os fundamentos. São Paulo: Estação Liberdade, 2009, p. 48.
3
2
BOYER, Robert. Teoria da regulação: os fundamentos. São Paulo: Estação Liberdade, 2009, p. 51. No mesmo
sentido ver BRUNHOFF, Simone de. Estado e capital: uma análise da política econômica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1985, p. 17.
3
É interessante notar que os discursos racistas assumem diferentes modulações a depender do contexto social,
cultural e econômico. Como nota Van Dijk, uma das características centrais do racismo contemporâneo é a sua
negação, “ilustrada de modo típico nas conhecidas ressalvas do tipo ‘não tenho nada contra negros, mas...”. VAN
DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2015, p. 155.
4
Estado e crise
[...] Ele é bem mais uma relação social entre indivíduos, grupos e classes, a ‘condensação
material de uma relação social de força’. Material, porque essa relação assume uma forma
marcada por mecanismos burocráticos e políticos próprios no sistema das instituições,
organizações e aparelhos políticos. A aparelhagem do Estado tem uma consistência e uma
estabilidade e por isso é mais do que a expressão direta de uma relação social de força.
Mudanças nas relações de força sempre produzem efeitos no interior do Estado, mas ao
mesmo tempo a estrutura existente do aparelho estatal reage sobre eles. O Estado
expressa em sua concreta estrutura organizativa relações sociais de força, mas também
simultaneamente as forma e as estabiliza” 5.
4
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 37
5
Idem, Ibidem, p. 37-38
6
Idem, Ibidem, p. 37
5
Ressalte-se que alterações das relações de força e dos conflitos sociais pressupõem a
capacidade do Estado de manter “as estruturas socioeconômicas fundamentais” e a adaptação do
Estado às transformações sociais sem comprometer sua unidade relativa e sua capacidade de
garantir a estabilidade política e econômica 7.
O conflito social entre capital e trabalho assalariado não é único conflito existente na
sociedade capitalista. Há outros conflitos que se articulam com as relações de dominação e
exploração, que não se originam nas relações de classe e tampouco “desapareceriam com ela” 8:
são conflitos raciais, sexuais, religiosos, culturais e regionais que remontam a períodos anteriores
ao capitalismo, mas que nele tomam uma forma especificamente capitalista. Portanto, entender a
dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente essencial à compreensão do capitalismo,
visto que a dominação de classe se realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual.
A relação entre Estado e sociedade não se resume à troca e produção de mercadorias; as relações
de opressão e de exploração sexuais e raciais são importantes na definição do modo de
intervenção do Estado e na organização dos aspectos gerais da sociedade9.
“O racismo, tal como a moderna construção das relações de gênero, é um meio da divisão social
e da desorganização das classes dominadas, seja no interior como no exterior das fronteiras
estatais. Através desses mecanismos de opressão e de dominação funda-se o povo enquanto
nação. Como as fronteiras estatais são sempre permeáveis e a unidade ‘étnica’ deve permanecer
basicamente indefinida e instável, o racismo adquire sua contínua eficácia e dinâmica” 10.
7
Idem, Ibidem, p. 39-40
8
Idem, Ibidem, p. 40.
9
Idem, Ibidem, p. 40
10
Idem, Ibidem, p. 86
11 [...] colocar a forma de socialização capitalista como ponto de partida de uma análise do Estado não quer dizer
que tais antagonismos não sejam essenciais, ou que apresentem “contradições secundárias” subordinadas. Ao
contrário, a relação com a natureza, de gênero, a opressão sexual e a racista estão inseparavelmente unidas com a
relação de capital, e não poderiam existir sem ela. No entanto, o decisivo é que o modo de socialização capitalista,
enquanto relação de reprodução material, é determinante na medida em que impregna as estruturas e as instituições
sociais – as formas sociais determinadas por ele – nas quais todos essas antagonismos sociais ganham expressão e
ligam-se uns aos outros. HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 134
6
compostas de mulheres, pessoas negras, indígenas, gays, imigrantes, pessoas com deficiência,
que não podem ser definidas tão somente pelo fato de não serem proprietários dos meios de
produção. […] Para entender as classes em seu sentido material, portanto, é preciso, antes de
tudo, dirigir o olhar para a situação real das minorias” 12.
12
ALMEIDA, Silvio Luiz de. “Estado, direito e análise materialista do racismo”. In: Celso Naoto Kashiura Junior;
Oswaldo Akamine Junior, Tarso de Melo. (Org.). Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas
jurídicas. São Paulo: Outras Expressões; Dobra universitário, 2015, p. 747-767.
13
A sociedade capitalista é, em razão de seus antagonismos e conflitos estruturais, fundamentalmente portadora de
crise, e por isso, só pode ser estável em suas respectivas estruturais sociais, políticas e institucionais por períodos
limitados. Seu desenvolvimento não transcorre nem linear, nem continuamente; as fases de relativa estabilidade
são sempre interrompidas por grandes crises. [...]” Idem, Ibidem, p. 131.
14
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 134.
7
política15. Não se torna mais possível convencer as pessoas de que viver debaixo de certas regras
é normal e, a violência estatal passa a ser recorrente como meio de controle social.
O racismo e as crises
A primeira grande crise do capital, de 1873, resultou na alteração brutal das relações
capitalistas. Além de alterar toda a produção industrial do mundo, redefinir o equilíbrio político e
militar e alterar todo o sistema financeiro e monetário internacional, a crise de 1873 foi o ponto
de partida para o imperialismo e, mais tarde, para a primeira grande guerra16.
15
Idem, Ibidem, p. 134.
16
COGGIOLA, Osvaldo. As grandes depressões (1873-1896 e 1929-1939): fundamentos econômicos,
consequencias geopolíticas e lições para o presente. São Paulo: Alameda, 2009, p. 104.
17
A população da ‘Africa negra’ era, no século XIX, de três a quatro vezes menor do que no século XVI. A
conquista colonial capitalista (com uso de artilharia contra, no máximo, fuzis coloniais), o trabalho forçado
multiforme e generalizado, a repressão das numerosas revoltas por meio do ferro e do fogo, a subalimentação, as
8
Esta brutal investida fora da Europa ficará conhecida pelo termo “colonização” ou
“imperialismo”. Sendo uma das maneiras de a pretensão européia ao domínio universal se
manifestar, a colonização é uma forma de poder constituinte, na qual a relação com a terra, as
populações e o território associa, de modo inédito na história da Humanidade, as três lógicas da
raça, da burocracia e do negócio (commercium). Na ordem colonial, a raça opera enquanto
princípio do corpo político. A raça permite classificar os seres humanos em categorias físicas e
mentais específicas. A burocracia emerge como um dispositivo de dominação; já a rede que liga
a morte e o negócio opera como matriz fulcral do poder. A força passa a ser lei, e alei tem por
conteúdo a própria força19.
diversas doenças locais, as doenças importadas e a continuação do tráfico negreiro oriental, reduziram ainda mais
a população que baixou para quase um terço. Idem, Ibidem, p. 118.
18
Idem, Ibidem, p. 120.
19
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014, p. 105.
9
20
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2011, p. 132.
21
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
10
Neoliberalismo e racismo
Chama-se por austeridade fiscal o corte das fontes de financiamento dos “direitos
sociais” a fim de transferir parte do orçamento público para o setor financeiro privado por meio
dos juros da dívida pública. Em nome de uma pretensa “responsabilidade fiscal” segue-se a onda
de privatizações, precarização do trabalho e desregulamentação de setores da economia. Do
ponto de vista ideológico, a produção de um discurso justificador da destruição de um sistema
histórico de proteção social revela a associação entre parte dos proprietários dos meios de
comunicação de massa e o capital financeiro: o discurso do empreendedorismo, da meritocracia,
do fim do emprego e da liberdade econômica como liberdade política são diuturnamente
martelados nos telejornais e até nos programas de entretenimento. Ao mesmo tempo, naturaliza-
se a figura do inimigo, do “bandido” que ameaça a integração social, distraindo a sociedade que,
amedrontada pelos programas policiais e pelo noticiário, aceita a intervenção repressiva do
Estado em nome da segurança, mas que, na verdade, servirá para conter o inconformismo social
diante do esgarçamento provocado pela da gestão neoliberal do capitalismo. Mais do que isso, o
regime de acumulação que alguns denominam de pós-fordista dependerá cada vez mais da
supressão da democracia22. A captura do orçamento pelo capital financeiro envolve a formulação
de um discurso que transforma decisões políticas, em especial as que envolvem finanças públicas
e macroeconomia, em decisões “técnicas”, de “especialistas”, infensas à participação popular.
22
DARDOT, Pierre; LAVAL, Cristian. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.
11
política não é mais de integração ao mercado (há que se lembrar que na lógica liberal o
“mercado” é a sociedade civil). Como não serão integrados ao mercado, seja como consumidores
ou como trabalhadores, jovens negros, pobres, moradores de periferia e minorias sexuais serão
vitimados por fome, epidemias ou pela eliminação física promovida direta ou indiretamente (e.g.
corte nos direitos sociais) pelo Estado. Enfim, no contexto da crise, o racismo é um elemento de
racionalidade, de “normalidade” e que se apresenta como modo de integração possível de uma
sociedade em que os conflitos tornam-se cada vez mais agudos.
A superação do racismo passa pela reflexão sobre formas de sociabilidade que não se
alimentem de uma lógica de conflitos, contradições e antagonismos sociais que não podem ser
resolvidos, no máximo mantidos sob controle. Todavia, a busca por uma nova economia e por
formas alternativas de organização é tarefa impossível sem que o racismo e outras formas de
discriminação sejam compreendidas como parte essencial dos processos de exploração e de
opressão de uma sociedade que se quer transformar.
REFERÊNCIAS
AGLIETTA, Michel. A theory of capitalist regulation: the US experience. London: Verso, 2000.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. “Estado, direito e análise materialista do racismo”. In: Celso Naoto
Kashiura Junior; Oswaldo Akamine Junior, Tarso de Melo. (Org.). Para a crítica do
direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. São Paulo: Outras Expressões;
Dobra universitário, 2015, p. 747-767.
BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Class and Nation: ambiguous identity.
Londres, Reino Unido: Verso, 2010.
BRUNHOFF, Simone de. Estado e capital: uma análise da política econômica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1985
12
CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Dobra;
Outras Expressões, 2015.
COGGIOLA, Osvaldo. As grandes depressões (1873-1896 e 1929-1939): fundamentos
econômicos, consequencias geopolíticas e lições para o presente. São Paulo: Alameda, 2009, p.
104
DARDOT, Pierre; LAVAL, Cristian. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.
JESSOP, Bob; SUM, Ngai-Ling. Beyond the regulation approach. Cheltenham, UK;
Northhampton, MA, EUA: Edward Elgar, 2006.
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.