São Bernardo - Ismail Xavier

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

1

O olhar e a voz: a narração multifocal do cinema e a cifra da história em São Bernardo


Ismail Xavier

a) voz e imagem: as coordenadas do problema

Tenha aqui dois focos de interesse: um esclarecimento de aspectos construtivos centrais do


filme São Bernardo (1972), realizado por Leon Hirzsman a partir do romance de Graciliano Ramos,
e uma discussão de questões mais gerais que as estratégias narrativas usadas pelo cineasta suscitam.
O objetivo é focalizar um problema muito pouco discutido nos escritos sobre cinema e, ao fazê-lo,
destacar, na forma do filme de Leon, o que enriquece seu diálogo com a obra de origem e revela, ao
mesmo tempo, o alcance estético e político de certas opções típicas do cinema moderno.
As questões ligada à adaptação da obra literária para o cinema não estarão no centro da
minha argumentação. Esta se localiza em terreno mais geral, e “de base”, quando consideramos a
narrativa como prática discursiva comum a cinema e literatura. Neste terreno, é notória a diferença
entre as duas tradições, o que tornou o uso de conceitos e procedimentos analíticos da teoria
literária uma operação recorrente nos estudos cinematográficos, principalmente após a consolidação
dos cursos de cinema nas universidades. Este têm frequentemente se beneficiado do referencial
teórico que, seja a partir dos estudos do “ponto de vista” próprios à tradição anglo-americana desde
Henry James, seja a partir da contribuição dos formalistas russos em grande parte retomada pelo
estruturalismo francês dos anos 60, consolidou a teoria da narrativa como um campo consistente de
noções e problemas. A rigor, do simples empréstimo, chegou-se a um incipiente intercâmbio, já em
meados dos anos 70, nas formulações e nos métodos de análise, intercâmbio que encontrou seu
exemplo maior na “teoria do discurso narrativo” de Gérard Genette, teoria que, retomando o termo
diegese em sua acepção vinda da teoria do cinema dos anos 50 e citando uma definição central do
discurso narrativo vinda de Christian Metz, atesta o quanto o processo, já nos anos 70, havia
2
deixado de ser de mão única .
Embora haja consistência neste campo comum de uma teoria geral da narrativa, o próprio
intercâmbio de noções tem demonstrado que muitos termos que qualificam a figura do narrador na
literatura não dão conta de certos processos no cinema, pois o meio específico em que se dá um
relato oferece recursos muitas vezes exclusivos para sua construção, exigindo, por sua vez, um
cuidado especial na caracterização das instâncias narrativas que atuam no campo das imagens, das
palavras ou outro qualquer. Algumas alterações que Genette propõe, buscando eliminar a idéia de
narração em primeira ou terceira pessoa, já refletem este senso de que é necessário um novo
vocabulário para que a teoria alcance maior precisão e amplie a sua validade. Tomando a questão
que me interessa, onde estará presente esta dimensão da “pessoa”, lembro o quanto as relações entre
voz e imagem na narrativa cinematográfica pertencem a essa esfera específica, resistente às noções
e ferramentas que a análise do filme partilha com a análise do romance. De modo geral, no cinema,

1 O texto que segue é versão ligeiramente modificada de conferência pronunciada no XXVIII Seminário Nacional de
Professores Universitários de Literatura de Língua Inglesa, realizado em Ouro Preto, de 29 de janeiro a 02 de
fevereiro de 1996, cujo tema central foi “Literatura e Cinema”.
2 Ver Gérard Genette, Figures III (Paris, Seuil, 1972); quanto ao texto citado, ver Christian Metz, “Por uma
fenomenologia da narrativa” in A Significação no Cinema (São Paulo: Perspectiva, 1972).
o olhar da câmera e a organização do décor e da mise-en-scène, emoldurados pelos agenciamentos
de imagem e som feitos na montagem, são recursos que definem uma diversidade de focos que
complica o aspecto técnico da análise. E tal pluralidade de canais se faz particularmente interessante
quando temos a presença de uma locução – voz de um narrador extra-diegético ou de uma
personagem – que se sobrepõe às imagens, sem sincronismo, para narrar, dramatizar ou comentar
certos episódios. As formas mais complexas de sobreposição de palavra e imagem encontraram seus
melhores exemplos no cinema moderno, mas a questão foi explicitamente formulada, pela primeira
vez, num artigo de S.M.Eisenstein, escrito em 1932, que resultou, não por acaso, de seu
enfrentamento com o problema da adaptação literária.
Em sua passagem por Hollywood, Eisenstein escreveu um roteiro a partir do livro A
Tragédia Americana, de Theodore Dreiser, tarefa que o inspirou na reflexão sobre as relações entre
palavra e imagem quando um filme se vale da presença simultânea de um discurso interior (palavras
que evidenciam o movimento subjetivo da personagem num dado instante) e uma cena exterior que
corresponde à situação prática vivida pela personagem enquanto pensa, expressa emoções,
indecisões. Para Eisenstein, a possibilidade de representar um momento dramático a partir desta
“montagem vertical” som-imagem, palavra interior-cena exterior, seria uma virtude peculiar ao
cinema. E ele foi adiante: tomou este exemplo como indicação de que, em outras construções mais
afinadas à literatura deste século, a justaposição de imagens e palavras poderia fazer avançar, no
cinema, técnicas modernas como a do monólogo interior e a das montagem descontínuas, de modo
a fazê-lo um medium mais rico do que a própria literatura. Deixando de lado o aspecto exaltativo do
cinema, muito próprio à reflexão da época, a formulação do cineasta russo, embora apoiada numa
situação particular, abriu espaço para formas mais radicais de combinação assincrônica de palavra e
imagem, formas de montagem vertical que o cinema moderno, depois de 1960, veio a explorar
(como em Alain Resnais, Jean-Luc Godard, Bernardo Bertolucci, Robert Bresson ou Glauber
Rocha). Vale lembrar que não basta a presença de uma locução a comentar as imagens para que
tenhamos o verticalismo proposto por Eisenstein – é preciso ter um efeito de simultaneidade que
preserve, ao mesmo tempo, a disjunção entre som e imagem, seu entrechoque, estranhamento,
distinções que um breve retrospecto pode esclarecer.
Apesar das sugestões de Eisenstein, as relações entre o campo das imagens e o que
chamamos de voz-over – esta que se superpõe às imagens e cujo foco emissor é indeterminado ou
se encontra em outro espaço frente ao observado pela câmera – não marcaram a prática nem
ganharam maior atenção entre os críticos, a menos dos que se ocuparam com a questão do
documentário cinematográfico, instância em que o debate se deu em termos mais convencionais.
Tradicionalmente, é próprio ao documentário a presença de uma versão amena de “montagem
vertical”, com a voz de um locutor que, se pondo como autoridade, comenta, explica, dá as
coordenadas do fato mostrado na tela. No trabalho dos cineastas e na crítica moderna, tem havido
uma postura de ataque sistemático a esta figura de master voice no cinema, dada a quase sempre
indesejável dominação que ela procura exercer sobre a nossa leitura das imagens, havendo uma
frequente defesa de outras estratégias de montagem do documentário que permitirão a eliminação
da locução over, tendência que o cinema moderno desenvolveu a partir de 1960.
Em relação ao que interessa aqui – a tradição ficcional – os debates, por longo tempo, se
concentraram em outras questões porque o mais usual foi e continua a ser a ausência de locuções
deste tipo, uma vez que a marca do filme narrativo clássico é a busca de transparência (uma suposta
relação direta, não mediada, entre espectador e mundo ficcional) e a consequente minimização dos
fatores que possam “atrapalhar” o envolvimento emocional da platéia com a evolução contínua das
ações. Ou seja, a par de aspectos mais técnicos, é notável a semelhança entre a abordagem clássica
da narrativa no cinema e a teoria literária do “ponto de vista” elaborada por Percy Lubbock. Esta
tinha um aspecto normativo: a defesa de uma narração apta a esconder o seu próprio trabalho e a
favorecer a relação do leitor com um mundo ficcional que devia aparentar autônomo. E foi por este
aspecto que o teórico encontrou um nítido paralelo entre suas preocupações e os códigos que
definiram o cinema narrativo clássico, produzido pela indústria entre os anos 20 e os anos 50.
Lubbock, em 1921, não pensou no cinema ao montar sua teoria jamesiana que, como já observado,
não deixava de ser uma forma de “salvar” um certo romance ameaçado pelos novos experimentos
dos escritores. No entanto, sua concepção do que deveria ser a boa narração apresenta esta afinidade
de princípios com um tipo de cinema que, curiosamente, acabava de se construir e de se consolidar
na indústria exatamente quando da elaboração de sua teoria sobre a técnica da ficção. Dado que
sugere a presença de um arcabouço estético-ideológico comum a atuar então nas duas esferas – a de
uma teoria do romance afinada a um padrão balizado na figura de Henry James e a da instituição,
em bases ainda excessivamente melodramáticas, de uma narrativa de massa a partir da
cinematografia. O essencial é que se entendeu, nos dois terrenos, o trabalho do ficcionista como
uma “exposição de cenas para o olhar do leitor-espectador”, nos moldes do teatro dramático
oitocentista. O mergulho no espaço da interioridade, próprio ao romance, era tratado
metaforicamente, por Lubbock, como a apresentação de um drama vivido num “palco” (o da
consciência), o que permitia reduzir o problema da representação da subjetividade, na literatura, a
esse “expor para o olhar”, que o narrador converte no “mostrar”, dar a ver (não cabe aqui discutir o
quanto uma aproximação fenomenológica ao processo narrativo, em verdade sempre afinada ao
cinema como o próprio Merleau-Ponty veio confirmar em 1945, explorou e enriqueceu esta direção
de análise). Colocadas as coisas nestes termos, os críticos de cinema, de uma forma distinta à de
Eisenstein, proclamavam também aí as vantagens para o novo meio que combinaria a força advinda
da apresentação visual da cena (apenas significada na literatura) com a capacidade mediadora e a
interveniência de um narrador apto a definir uma perspectiva de observação, como no romance (no
cinema clássico, as operações deste narrador estariam cristalizadas nas posições de câmera e na
montagem, então invariavelmente observadas como o núcleo da nova arte).
Tendo como referência o exemplo da narração fluente do cinema clássico, a crítica muitas
vezes utilizou a idéia de “narração em terceira pessoa” para estes casos em que temos o trabalho
mediador de uma “montagem invisível” (André Bazin), ou seja, as operações de uma instância
narrativa implícita que não se identifica e não aparece a não ser pelos seus efeitos. No entanto,
como esta instância não é literalmente uma voz (como na literatura), sendo, ao contrário, a
integração dos recursos específicos de produção da imagem e do som (o significante no cinema é
“sincrético”, envolvendo muitos códigos), mais recentemente, uma polêmica se estabeleceu entre os
teóricos quanto à validade do conceito de narrador no cinema quando aplicado às formas de
integração do filme clássico, dado o privilégio que este confere ao efeito de transparência. O terreno
da polêmica é o da operacionalidade do conceito, e a recusa em usá-lo vem de autores que admitem
a presença de um discurso narrativo mas não percebem nenhuma vantagem no uso do termo
narrador mesmo quando esta noção perde qualquer resíduo antropomórfico e se coloca como
referência a um operador apenas logicamente implicado na sucessão das imagens (sabe-se que
“pessoa”, em sentido estrito, o narrador nunca o é, mas aqui tais autores recusam, inclusive, a
nomeação da instância mediadora implicada no processo). Aceitando as objeções quanto ao
conceito de narração em terceira pessoa (idéia que Gérard Genette questiona no caso da própria
literatura), creio ser mais profícuo aceitar a hipótese do narrador, com tudo o que de complexo tal
noção abrigue quando se trata de um discurso de múltiplas bandas como é o do cinema. A própria
singularidade do termo conota muito bem uma idéia que todos aceitam: a de que o filme clássico
sempre procura manter um foco de coerência, um princípio orientador das escolhas que possa
produzir, no espectador, a sensação de que há uma autoridade a garantir a consistência do mundo
diegético, conferindo homogeneidade ao conjuntos dos procedimentos que se distribuem pelos
diversos canais (que tal coerência nem sempre seja atingida e que explorar as contradições presentes
nos filmes seja um exercício crítico dos mais profícuos, é um dado que não exclui a forte inclinação
do filme clássico em direção ao ideal de uma visão clara, una e distinta). Insistir na idéia de uma
integração pelo narrador ganha maior pertinência quando lembrado que é justamente em nome
desta perspectiva única, da clareza de critérios e da homogeneidade do processo que o filme
clássico demarca o que, dentro dele, é legítimo, descartando determinados recursos narrativos que,
em princípio, o meio coloca à sua disposição. Legitimação e descarte que definem uma certa
codificação do processo narrativo que o cinema moderno veio recusar, assumindo a
heterogeneidade do processo e explorando, ao invés de tentar reprimir, a não identidade entre os
canais da narração no cinema. Isto lhe permitiu um diálogo mais rico com a literatura, pois não
ficou preso ao primado da continuidade da ação e do “mostrar”, dispor em cenas, que gera
problemas específicos na tradução de textos literários, sendo fatores de limitação e, na melhor
hipótese, de desafio na adaptação dos romances. São já bastante conhecidas as objeções da crítica às
simplificações trazidas pela necessidade de converter os dados do texto em espetáculo. Ou seja, a
conversão do texto em cenas dadas a ver, no fluxo contínuo de ações em que as personagens, pelo
que dizem entre si ou fazem, procuram “passar recados”, transmitir as idéias implicadas na obra
literário onde a voz do narrador tinha o poder de comentar diretamente os fatos, emitir conceitos
etc. Tais simplificações são moeda corrente no filme típico da indústria cultural – motivo pelo qual
os cineastas que trabalham em outras esferas da produção, menos controlados pela linguagem do
comércio, procuram outros estilos narrativos menos “legíveis” para operar tais traduções de livro
para filme sem os mesmos entraves. O que não impede que, considerados os grandes cineastas, não
tenha havido casos em que o desafio foi enfrentado nos moldes da linguagem clássica, o filme
buscando inventar “cenas” em que o diálogo oferece um conteúdo ideacional que, na obra de
origem, vinha pela voz do narrador – um bom exemplo é o de Morte em Veneza (1970), de Luchino
Visconti, adaptação da obra de Thomas Mann. A narração, no livro do escritor alemão, é “em
terceira pessoa” ou hetero-diegética (como diria Genette) mas isto não diminuiu os problemas do
cineasta na lida com a representação dos movimentos da subjetividade – a vida interior do
protagonista – e com as idéias abstratas, os conceitos implicados na fala do narrador.
Considerada esta questão dos canais de informação mobilizados, pode-se dizer que, em tese,
a relação de um filme clássico com a “vida interior” do protagonista tende a se complicar ainda
mais quando o livro de origem apresenta um narrador-protagonista que fala em primeira pessoa,
mais precisamente de uma narrador auto-diegético (Genette). Nestes casos, a liberdade de
movimentos que a voz (no texto literário) possui na exposição dos movimentos da subjetividade do
protagonista dificilmente encontram tradução no espetáculo cênico do filme, levando o espectador
exigente a apontar um empobrecimento na caracterização de sentimentos e idéias.

Ao considerar a questão do narrador auto-diegético, entramos no terreno de São Bernardo,


de Graciliano Ramos. Como procede Leon Hirzsman na adaptação, uma vez admitido que tais casos
de narrador auto-diegético são os que apresentam desafio maior?
Recusando a opção de transformar tudo em cenas visíveis, Leon traz o texto de Graciliano
para dentro do filme, e não apenas como um dado de pontuação breve e episódica como no filme
clássico. Ou seja, assume a presença de uma narração “em primeira pessoa” (auto-diegética),
incorporada enquanto voz-over do protagonista, que estende sua presença por sobre as cenas que
dão conta de sua biografia, de começo a fim do processo narrativo, deixando clara a convivência, no
filme, de dois tempos: o do passado narrado que desfila com o suceder das cenas que compõem o
trajeto do protagonista, e o do presente do narrador que se dirige diretamente ao espectador e expõe
seu pensamento. Este presente do narrador não se manifesta somente pela voz; ele se transforma em
cena visível, uma vez que, no começo e em outros momentos, incluída a longa sequência final,
vemos a figura de Paulo Honório (Othon Bastos), só em sua fazenda, em postura de quem reflete na
pausa da escrita, sentado à mesa sobre a qual a folha de papel assinala a tarefa a que se dedica. A
opção de Leon Hirzsman tem uma série de implicações derivadas da clara inscrição de seu filme na
esfera do cinema moderno (em termos de linguagem e de estratégias de comunicação),
particularmente na esfera de um cinema político interessado em articular as conquistas da
linguagem moderna com o esforço de promoção de uma consciência crítica no espectador, numa
tendência que se fez vigorosa nos anos 60/70, claramente inspirada em Brecht e em sua noção de
espetáculo. Voltarei a este aspecto mais tarde, mas antes é necessário um esclarecimento sobre o
problema da voz-over e o estatuto da “primeira pessoa” no cinema, dentro da linha de raciocínio
seguida até aqui.
Quando eu disse acima que Leon Hirzsman “assume a presença de uma narração em
primeira pessoa”, tomei o cuidado de evitar a afirmação de que São Bernardo filme é narrado “em
primeira pessoa”, pois estou ciente de que, ao lado desta instância narrativa criada pela voz, há
outras que se atualizam no filme, seja pela imagem ou por outros “fatos” sonoros, como é o caso da
música (extra-diegética). Se a narração no cinema é sempre resultado da interação entre várias
instâncias que se manifestam através de materiais heterogêneos, simultâneos, o analista tem sempre
de verificar se as várias instâncias (palavra, mise-en-scène, olhar da câmara, montagem, música
extra-diegética) se organizam para trabalhar “na mesma direção”, de modo a fazer sentido em se
falar em um ponto de vista da narração. Pode não haver esta conjunção dos canais, como acontece
em muitos filmes modernos onde há disjunção, o filme se fazendo do conflito entre as diferentes
posturas associadas aos diferentes canais. De qualquer modo, há uma questão anterior à distinção do
clássico/moderno, típica aos filmes que trabalham com a voz-over narradora, quase sempre auto-
diegética (voz da personagem que recapitula a sua própria experiência), pois aí, mesmo no estilo
clássico, as brechas na articulação das várias instâncias se tornam patentes, à revelia do esforço de
conjunção do cineasta. O procedimento da voz-over, que sugere a tradicional narração “em
primeira pessoa”, ganhou enorme impulso dentro das produções do film noir a partir dos anos 40,
estilo cinematográfico por sua vez correlato ao gênero serie noir da literatura norte-americana
(Cain, Chandler, Hammet, Wallace). Em geral, é este material do próprio cinema norte-americano,
pertencente a uma tendência não exatamente main stream na indústria da época, mas foco central do
diálogo dos cinemas moderno e contemporâneo com a tradição de Hollywood, que serve de
exemplo maior para as discussões sobre o conflito imagem-palavra tal como já insinuado nos filmes
que ajudaram a preparar o cinema moderno – basta pensar em The Lady from Shangai (Welles,
1948) e Kiss me Deadly (Aldrich, 1955). São casos em que a questão da coerência interna não está
resolvida, nem a relação entre a voz-over da personagem e o fluxo das imagens: afinal, que
instância é hegemônica ou comanda o processo, reconhecida a não-identidade entre o foco das
palavras e o foco das imagens, sob a aparência de um único narrador? Tais questões se desdobram
em muitas direções, pois se a voz do narrador auto-diegético é, sem dúvida, de uma pessoa (até
onde se pode denominar assim as personagens), as outras instâncias são mais refratárias a tal
identificação, o que recoloca toda a questão do próprio conceito de narrador no cinema.
Especificando, há, primeiro, um problema de focalização (Genette): estariam o olhar da câmera e a
organização visível do mundo ficcional restritos ao ponto de vista afirmado pela locução verbal da
personagem? Neste particular, sabemos que até mesmo o mais elementar flashback é problemático,
pois voltamos no tempo e vemos o episódio que a personagem evoca não necessariamente a partir
de seu “ponto de vista” (aqui, nos dois sentidos, o puramente ótico e o ideológico). E o problema de
focalização se articula a um problema de voz (Genette): dado que pode haver disjunção entre
imagem e som, quem afinal narra um episódio particular, ou mesmo a estória toda, quando as
imagens parecem emanar de um narrador auto-diegético?
Ofereço um exemplo. É sabido que a biografia de Charles Foster Kane, no filme de Orson
Welles, é narrada a partir de um conjunto de depoimentos colhidos por um repórter; pois bem,
quando este lê as memórias do banqueiro Thatcher, na biblioteca gótica, os momentos da vida do
jovem Kane que nos chegam através do que se narra nestas memórias definiriam um segmento da
narrativa em que valeria a mediação de Thatcher como narrador intra-diegético. No entanto, é
célebre a ironia dirigida ao próprio banqueiro em todas as cenas que nos trazem os episódios da
vida de Kane testemunhados pelo sisudo capitalista, de modo que, apesar de convencionalmente o
filme definir como “seu” flashback, prevalece um tratamento de imagem e de som contrário ao que
viria da voz do banqueiro, sugerindo a presença de outras instâncias narrativas que se expressam
nesta flagrante ironia. Ou seja, não basta o filme criar a moldura e dizer: este episódio está sendo
narrado por fulano, porque tudo na imagem pode denunciar a presença de outras instâncias
narrativas, instâncias cujo poder acaba sendo maior do que o do suposto responsável pelo relato.
Em artigo publicado nos anos 80, David Alan Black comenta exatamente esta situação em que
outras instâncias “atropelam” a voz do narrador intra-diegético e mostram um poder maior de
3
determinação do tom de todo o episódio (ou de todo o filme) . Black começa justamente por
comentar um artigo de Brian Handerson sobre a questão dos níveis de diegese no cinema e as
dificuldades de aplicar o modelo de Genette. Sua posição é de que a tendência é haver, nestas
situações, a criação de um nível pseudo-diegético, segundo a expressão do próprio Genette. Ou seja,
3 Ver David Alan Black, “Genette and Film: Narrative Level in the Fiction Cinema”, artigo publicado na revista norte-
americana Wide Angle, vol. 8, n. 3-4, 1986.
a narração dentro da narração (que instalaria um segundo nível de diegese) na verdade não estaria
operando como esperado, pois continuaríamos nos relacionando com o primeiro nível (o segundo
seria ilusório, daí o “pseudo”), uma vez que a instância narrativa, extra-diegética, que já estava
controlando o processo antes, manteria seu poder, apesar das aparências e da convenção do filme.
O dito acima equivale a dizer que a idéia de uma narração em primeira pessoa no cinema
tende a ser ilusória. Quando em ação uma voz explícita da personagem-narradora, haveria, pelo
menos, uma segunda instância sempre presente, apta a interagir com a primeira, apta na maioria das
vezes a efetivamente prevalecer na construção dos efeitos. São Bernardo é um excelente laboratório
para discutir esta questão.

b) o filme de Leon Hirzsman

No romance de Graciliano Ramos, Paulo Honório, protagonista-narrador auto-diegético,


começa a recapitular a sua estória depois do suicídio de Madalena (Isabel Ribeiro), sua mulher,
quando atravessa uma crise pessoal sem precedentes e, num esquema clássico, toma o ato de narrar
como uma forma de re-organizar as idéias, sair da crise, entender o que não conseguiu entender no
momento em que tudo foi vivido, enfim, fazer um balanço liberador. A vida conjugal e seu
desafortunado desfecho fizeram emergir um sem número de contradições, antes não visíveis no
trajeto de Paulo Honório, na época em que ele “fluiu”, pôde montar seus estratagemas e exercer,
sem entraves psicológicos ou morais, o seu cálculo egoísta, seu pendor de apropriação, sua luta
tenaz pela aquisição de São Bernardo, a fazenda decaída que ele transformou em unidade produtora,
dentro de um espírito empreendedor que introduziu uma mentalidade capitalista onde antes havia
espírito predador oligárquico e administração indolente. Madalena entrou em sua vida quando
estava finda a etapa de acumulação do capital; São Bernardo estava em seu esplendor. A moça foi
objeto de uma conquista também encarada como empreitada de um homem de negócios, feita de
cálculos, discussões de prazos, e com nítido fim utilitário: Paulo Honório havia concluído que
precisava de um herdeiro para a fazenda e, consequentemente, de uma mulher.
Uma vez em São Bernardo, a inexperiente, porém sensível e cultivada Madalena vê sua
inteireza, sua feição humanista de professora com consciência social, assumirem a condição de
primeiro grande obstáculo à matriz objetificadora, de instrumentação de tudo e de todos, que define
o comportamento e a consciência do marido. Ou seja, num mundo em que tudo é reificação e
transformação de homens e mulheres em coisa, onde a prática de Paulo Honório coloca a sua
própria vida como instrumento de acumulação de capital, Madalena insiste em exercer sua condição
de sujeito, e ainda amplia a sua resistência pela tentativa de estender tal condição a todos os
“bichos” que servem ao marido, introduzindo desta forma uma contradição radical, insolúvel, dada
a força de sua negação, apesar do seu toque de melancolia. A oposição entre o espírito comunitário
da mulher e o egoísmo do marido fazem com que o conflito central, cuja natureza Paulo Honório
não alcança, deslize para a esfera psicológica do ciúme que, uma vez instalado, faz o percurso
clássico dos Otelos e Dom Casmurros, de modo a criar um fosso só resolvido com a decisão de
Madalena pelo suicídio, discretamente anunciada e não compreendida. Consumado o ato, Paulo
Honório imobiliza o sistema da acumulação e, reflexivo, canaliza a crise pessoal para a escrita. Esta
é o centro do romance, onde a exposição do pensamento do protagonista é o dado essencial,
mediação para que se investigue uma mentalidade historicamente formada, seus preceitos, sua visão
de mundo, e se acompanhe a ruptura do momento como forma de caracterização, em profundidade,
de um tipo humano correlato a uma forma de organização da sociedade, numa dissecação, por
dentro, de uma dimensão duplamente desumanizadora: de dominantes e dominados.
Este resumo, talvez dispensável porque nada original, tem aqui apenas uma função
recapituladora que, valendo também para o filme, inclusive no aspecto de explicitação do ato da
4
escrita e seu espaço de solidão, sugere o sentido forte da adesão de Leon Hirzsman a Graciliano . É
notória, no cineasta, a adoção da mesma perspectiva de análise do social já presente no romance, da
mesma proposta de representação do sujeito historicamente determinado, visto por dentro. Neste
aspecto, a manutenção da ordem de sucessão dos capítulos, com os devidos cortes e simplificações,
bem como a incorporação de parte do texto original como voz-over narradora, atuante de começo a
fim, assinalam este esforço de convergência de sentidos, de identidade de pontos de vista. Minhas
observações sobre os segmentos escolhidos têm como objetivo apontar as diferenças e
deslocamentos, face ao romance, no seio da identidade assumida. O leitor já deve ter percebido que,
dada a presença do texto literário no filme, tais disjunções serão fruto da multiplicidade dos canais
da narrativa no cinema, e veremos como, de fato, é pela modulação de estilos heterogêneos de
composição da imagem que o filme introduz outros pontos de vista, outros efeitos que sinalizam
uma não-identidade que tem uma dimensão histórica interessante, a qual ganha relevo pelos méritos
da fatura notável de Leon Hirzsman em seu uso, moderno por excelência, da montagem vertical.
Para resumir, chamo a atenção para três momentos: o primeiro oferece um exemplo de
compatibilidade entre os vários canais da narração, e não levanta problemas para uma hipótese de
convergência de sentidos entre filme e romance; o segundo aponta uma coerência na ação dos
vários canais da narrativa cinematográfica mas revela uma distância de tom face ao romance; o
terceiro escancara uma disjunção entre os canais e nos oferece um exemplo notável da questão
levantada por Black e outros teóricos em relação às vicissitudes da “primeira pessoa” no cinema.
Na abertura do filme, temos uma longa cena onde vemos Paulo Honório, só, sentado à mesa
da sala a manusear papel e lápis, a refletir, a acender o cachimbo; enfim, a tomar a postura do
escritor, que se manifesta pela voz-over empenhada em definir o seu próprio ato no momento
presente e dar andamento à recapitulação de sua vida. Ele se levanta, vai olhar a fazenda a partir da
soleira da porta; a câmera assume seu ponto de vista e observa um mundo rarefeito onde domina a
paisagem, a configuração do terreno da fazenda, com uma mal percebida movimentação de seres
humanos à distância e na periferia do quadro. Os planos são longos. Caracteriza-se, sem pressa, o
presente do narrador-voz, sua imobilidade, sua solidão, seu estado de espírito (o rosto e a atitude
confirmando o teor do texto), imprimindo-se uma tonalidade de melancolia que acabará por se
estender para todo o relato, apesar do teor do percurso, em tese dinâmico, da personagem. É
somente depois de bem marcado tal “presente do narrador”, seu espaço-tempo, que as imagens
passam a ilustrar o relato verbal – começa o flashback. Numa primeira fase, a voz-over detém

4 Análises do romance já esclareceram, de formas variadas, o percurso de Paulo Honório, bastando lembrar aqui os
textos de Antonio Candido, em Ficção e Confissão (Rio de Janeiro, José Olympio, 1956), de João Luiz Lafetá - “O
mundo à revelia” (texto publicado como posfácio à edição do romance pela Editora Record, em 1978) e de Carlos
Nelson Coutinho - “Uma análise estrutural dos romances de Graciliano Ramos” (Revista Civilização Brasileira, n.
5/6, março de 1966).
hegemonia, tece o fio das ações apenas esboçadas na imagem. As cenas só se estabilizam e se
alongam quando surge o tema da conquista de São Bernardo e começamos a acompanhar os
diálogos de Paulo Honório com Padilha. A partir daí o filme constrói uma modulação cuidadosa de
cena passada e voz presente, sempre mantendo o tom lento da fala, os planos longos das cenas, um
compasso de recapitulação contemplativa que, em termos do problema que discuto aqui, define uma
convergência voz-imagem apta a sugerir uma harmonia entre as instâncias (mise-en-
scene/música/fala). Ou seja, a hipótese de uma outra instância atuando por cima ou por trás da fala
de Paulo Honório não parece decisiva, pois o estado de espírito do narrador (personagem) estaria,
de qualquer modo, comandando o processo e definindo o princípio de convergência das bandas de
som e imagem. Apesar da música de Caetano Veloso e da possibilidade de vermos Paulo Honório
em ação de um ponto de vista “externo” (o olhar da câmera), pode-se assumir que a voz que diz
“eu” e a disposição atual do protagonista dão a tônica ao processo narrativo. Neste sentido, São
Bernardo, até este ponto, não parece o melhor exemplo para evidenciar as ambiguidades apontadas
pela teoria, mas uma análise mais refinada poderia explorar, já aqui, a relevância das observações
de Black quanto ao nível pseudo-diegético. Alguém, por exemplo, poderia lembrar a imagem da
nota de mil réis que domina a apresentação dos créditos, onde já se antecipam significações nas
figuras femininas (alegorias clássicas) que se destacam no design do dinheiro brasileiro da época de
Paulo Honório, e discutir o estatuto de tal composição extra-diegética que antecede a palavra do
protagonista – sinal de que, no filme, a voz é emoldurada por outras presenças que a aclimatam ao
medium, não guardando a mesma soberania do texto na literatura. Sinal também de que o tema da
reificação e a inscrição da figura feminina num circuito de poder não precisam da voz para se
afirmar, nem mesmo do início da narrativa e da instalação do espaço-tempo da ação diegética.
Um segundo momento significativo, para caracterizar o comportamento da narração, é a
sequência da reconstrução da propriedade, quando vemos as ações dos trabalhadores, as mudanças
na paisagem, a revitalização do espaço, ao mesmo tempo em que ouvimos uma voz-over entretida
em falar de morte, corrosão, processos de decadência, pontuada pelo canto de Caetano, também
lamentoso, disfórico. Na montagem lenta, na voz e na música, há convergência de tom, o que
assinala a permanência das relações de poder até aqui assumidas. Apesar das ambiguidades, não há
nenhum escândalo em assumir a idéia do comando da voz narradora, ou seja, de Paulo Honório, no
andamento da narração do filme. Tomando um outro eixo de relações, o dado revelador, e de maior
interesse, é a discrepância entre o estilo do filme e o do romance: notadamente na abertura, mas
também em trechos em que a narração dá conta do lado empreendedor de Paulo Honório, o
romance apresenta uma homologia clara entre a velocidade das ações, seu dinamismo, e a
velocidade do próprio discurso narrativo, forma de reconhecimento desta dimensão potente,
construtiva, do protagonista, em contraste com o estilo da narração que se instala a partir da
5
segunda metade do livro . No filme, não há este contraste, pois o tom melancólico, sugestivo de
uma pulsão de morte inerente a todo o trajeto, perpassa toda a narração, deixando claro que Leon
constrói um filme em que, tal como em outras obras suas, toda ênfase é dada aos aspectos
corrosivos, destruidores, da experiência social e do trabalho dentro da ordem capitalista, elidido o

5 Para a caracterização do estilo narrativo e suas homologias no romance de Graciliano, ver o texto acima citado, “O
mundo à revelia”, de João Luiz Lafetá, que caracteriza muito bem o dinamismo da abertura do romance, destacando
a página e meia que Leon Hirzsman eliminou em sua transcrição do texto de Graciliano na abertura do filme.
aspecto vital, produtivo. Esta observação, localizada no eixo das relações filme-romance, marca
uma diferença nas conotações dadas à personagem e a seu percurso, afastando Leon de Graciliano e
fornecendo uma boa pista para quem procura recorrências no percurso de um cineasta, pois é este
traço de focalização do corrosivo que liga este filme a A Falecida e Eles não usam black-tie.
Dado significativo, no plano estético, é a forma como, através da recusa do dinamismo,
internalizada na minimização da montagem e nos procedimentos de São Bernardo, Leon afirma um
estilo anti-cinema clássico, produtor de estranhamento, inscrito nas experiências de representação
da subjetividade realizadas pelo cinema moderno dos anos 60/70. A constante dos planos longos e
da imobilidade, raramente rompida no filme, não oferece a Paulo Honório nenhum momento em
que ele se apresenta com aquela potência e velocidade, fluência na relação com o mundo, muito
próprias à construção do herói no cinema clássico, onde o primado da ação ganha ressonância no
tipo de decupagem que ressalta a energia dos heróis a criar espaço, conquistar novos terrenos, sendo
acompanhados por uma câmera que se comporta como quem “segue” uma figura humana que
detém a iniciativa dos movimentos. Em São Bernardo, o protagonista aparece sempre emoldurado,
retângulos acentuados por uma fixidez da câmera que convida a uma postura contemplativa, um
olhar de fora. Há uma constelação de procedimentos inspirados em Brecht, dispositivos que, no
cinema, fazem a teatralidade das cenas vir à tona, compondo-a como um tableau que expõe os
gestos a uma observação crítica, pela sua duração e pela carga de empostação apta a desdramatizar.
Isso não impede que, num certo momento, quando do arremate da compra de São Bernardo, o filme
recorra a um campo/contra-campo que parece caminhar na direção de um envolvimento com as
personagens, mas logo a voz-over afasta o espectador daquele presente e o coloca onde parece ser o
desejo reiterado da narração: no futuro onde está tudo consumado e resta o retrospecto reflexivo e
sem sobressaltos. A exceção, para valer, à regra da contemplação mediada do passado, é a
sequência em que se constrói o ciúme de Paulo Honório – a cena do jantar com Madalena, Dona
Glória, Padilha, João Nogueira, Padre Silvestre e outros convidados. Neste momento, tudo se
compõe em torno do olhar de Paulo Honório, num dinamismo de campos e contra-campos que
ressalta o efeito de cada conversa e de cada atitude de Madalena no rosto do marido, sequência em
que a articulação entre a voz narradora e o movimento próprio da cena não visa provocar
afastamentos; pelo contrário, produz um senso de imediatez, de drama, de algo que está se
engendrando com toda força, havendo aí uma instância de nítida convergência com o escritor, pois
a tonalidade da cena segue o próprio teor da narração verbal de Paulo Honório que, pela sintaxe, já
contém os dados de dramatização que marcam um momento de identificação do narrador com a
vivência passada. Há, nesta sequência, uma confirmação de que Madalena encarna, em sua
resistência passiva – mescla de fragilidade, ar sonso e insuspeitada firmeza – o único princípio de
movimento que o filme decide consagrar em seu estilo (o dinamismo da sequência), uma vez que se
negou a consagrar os empreendimentos do protagonista. O estilo desta passagem não se repete no
filme, pois as promessas de dinamização logo se dissolvem à medida em que o fosse entre a
melancolia de Madalena e o ciúme de Paulo Honório se alarga, ficando o marido a se perder em
ruminações e a se endurecer em círculos que recebem, no filme, uma observação implacável e não
solidária. Consolidada a distância, resta a Madalena a lucidez de saber que fala sozinha quando
parece estar conversando com o marido; a este, resta receber a morte dela como um choque
inesperado, o que engendra um segundo momento de dinamização da mise-en-scene e do trabalho
da câmera. Aqui, no momento da experiência traumática, o sopro de dramatização é ainda mais
efêmero, pontual, pois o filme não demora em dissolver o clima, voltando aos planos longos e à
tônica da inércia quando, numa última elipse, nos devolve ao tempo presente do narrador, à vigília
noturna de um Paulo Honório imóvel e solitário na fazenda agora improdutiva, o rosto amargo na
pausa da escrita, a voz over a tecer sua derradeira autocrítica.
Neste final, o presente do narrador define um tempo diegético cujas coordenadas estão no
Brasil em torno de 1930, mas o filme não se restringe a focalizar o protagonista na sala escura,
alternando seu espaço fechado com outras imagens da fazenda que, se remetem ao início onde São
Bernardo aparecia mais como paisagem, trazem dados novos cujo comentário confere maior
especificidade ao discurso moderno de Leon e sua ancoragem histórica, ao lado de seu diálogo com
Graciliano Ramos. Termino as considerações sobre o filme com a referência a esta sequência final,
em que, ao contrário do início, as imagens da fazenda não chegam a nós através de seu olhar, pois
ele já não se movimenta; permanece sentado, com o tronco apoiado sobre a mesa, absorto na
própria auto-crítica e no reconhecimento da condição desumana dos que lhe servem, melancólico na
consciência de que os tempos vivos de sua propriedade já passaram e o que resta é a decadência. O
dado peculiar deste final é que, à cena de Paulo Honório na sala às escuras, as imagens que a
montagem vem justapor são cenas diurnas de um cotidiano de camponeses a trabalhar e de famílias
miseráveis em suas casas a olhar imóveis para a câmera, numa série de planos tratados num estilo
diferente daquele que marcou todo o filme até este ponto: o olhar da câmera atualiza um estilo
documentário, recebe a devolução do olhar de figuras humanas que, pela postura, denunciam a sua
contemporaneidade em relação ao espectador, a marca do documento se imprime na imagem. Ou
seja, introduz-se, no filme, imagens que não se estruturam simplesmente para manter a ilusão
própria à diegese (a vida de uma fazenda nos anos 30); ao contrário, elas apresentam os traços que,
nos anos 70, significavam a observação de um canto do mundo, aqui-agora. Deixam claro, portanto,
que o olhar que se exerce sobre a população da fazenda corresponde a um agenciamento datado
num tempo francamente alheio ao mundo diegético onde se movimenta Paulo Honório e sua própria
narração. A relação entre voz e imagem se altera completamente, por força desta inscrição de um
outro estilo e de um outro critério no olhar; e os comentários do protagonista, texto extraído de um
livro escrito nos anos 30, se projetam sobre o que está fora de seu tempo, produzindo uma interação
que joga o intervalo 1930-1970 para dentro do filme. Neste sentido, São Bernardo escancara, por
esta heterogeneidade na composição do olhar, uma instância narrativa extra-diegética sem dúvida
alheia à mediação de Paulo Honório e dotada de nítido poder de inscrever a voz-over em nova
moldura, não permitindo – e agora sem maiores dúvidas – qualquer hipótese quanto à unidade de
foco e convergência dos canais, ou quanto à hegemonia da “primeira pessoa” no processo narrativo.
O final do filme escancara a presença de, pelo menos, uma dupla instância nestes segmentos onde
se manifesta a voz-over auto-diegética; no limite, esta nunca estaria só, pela natureza do meio
(cinema), sempre havendo outra fonte a determinar o princípio organizador das imagens. É da
explicitação desta outra fonte, da discrepância entre as instâncias, que o filme de Leon Hirzsman
extrai um dos seus maiores efeitos, o que lhe permite, textualmente, enunciar uma permanência nas
estruturas sociais e na qualidade de vida neste espaço geográfico em que sabemos estar a fazenda
São Bernardo. Deste modo, produz, nas frases de Paulo Honório, este salto de 40 anos, como se não
houvesse história neste espaço, ou como se estivesse implicada, na história maior da modernização,
esta imobilidade, permanência do iníquo, que se expressa na condição destas figuras humanas que
encaram uma câmera de cinema no Brasil, pós-milagre econômico, de 1972.
O efeito deste excerto de estilo documentário no olhar de São Bernardo é semelhante ao de
uma página de jornal que se sobrepõe – aqui numa quase colagem sutil e sem demagogia – à
composição pictórica do tableau que termina por perder a sua homogeneidade, não mais se
apresentando como um exemplar bem cuidado de um certo sistema clássico de representação, mas
como uma obra moderna que comenta a representação e convida à reflexão sobre a historicidade
das imagens e das palavras. O filme de Leon mostra muito bem o quanto vale a pena examinar com
cuidado cada caso de suposta narração auto-diegética (primeira pessoa) no cinema. Esta, para se
definir em termos equivalentes à “primeira pessoa” do texto literário, requer que aceitemos uma
convenção – a de que esta voz tenha poder sobre a organização dos outros canais de comunicação
do filme com a platéia. Convenção que, já instável no caso de uma convergência bem cuidada de
estilos, entre imagem, som, música, mise-en-scène e voz, se torna insustentável quando há
disjunção flagrante entre as várias instâncias. Neste sentido, o analista deve acompanhar o cineasta
e entender como este, tal como suas construções revelam, soube muito bem explorar a dialética da
identidade e diferença entre o literário e o fílmico dentro do espaço comum do discurso narrativo,
ressalvado o que o filme elegantemente confessa: o intervalo histórico que separa a representação
de Paulo Honório no romance e a representação desta representação no cinema.

Você também pode gostar